juventude e cidadania: uso das mídias digitais na ong aldeia, em fortaleza

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    Juventude e cidadania: uso das mdias

    digitais na ONG Aldeia, em Fortaleza

    Juventud y ciudadana: uso de los mediosdigitales en la ONG Aldeia, en Fortaleza

    Youth and citizenship: usage of digital

    media at the NGO Aldeia, in Fortaleza

    Denise Maria Cogo1

    Daniel Barsi Lopes2

    Resumo O artigo analisa os processos de comunicao cidad tecidos por

    jovens que atuam na associao Aldeia, em Fortaleza, Cear. O marco terico

    da pesquisa abrange os estudos sobre movimentos sociais, mdias digitais e

    comunicao cidad. Selecionamos, como resultado da pesquisa, trs aspectos

    dos usos das tecnologias pelos jovens do Aldeia: 1) a ausncia de uma maiorcriticidade na leitura dos meios ; 2) a complementaridade entre as mdias

    analgicas e as digitais; e 3) a demanda por profissionalizao.

    Palavras-chave: Juventude. Cidadania. Mdias digitais. Movimentos sociais.

    Resumen El artculo analiza los procesos de comunicacin ciudadana

    protagonizados por los jvenes que actan en la asociacin Aldeia, en

    Fortaleza, Cear. El marco terico abarca los estudios sobre movimientos

    sociales, medios digitales y comunicacin ciudadana. Recogemos tres aspectosen los usos de la tecnologa por los jvenes de Aldeia: 1) la falta de una mayor

    criticidad en la lectura de los medios, 2) la complementariedad entre los medios

    analgicos y digitales, y 3) la demanda hacia una mayor profesionalizacin.

    Palabras-clave: Juventud. Ciudadana. Medios digitales. Movimientos sociales.

    1 Ps-Doutorado na Universitat Autnoma de Barcelona UAB, Espanha. Professora Titular do Programa de

    Ps-graduao em Cincias da Comunicao da Unisinos. Pesquisadora Produtividade do CNPq.2 Doutor em Cincias da Comunicao na Unisinos-RS e Professor da FANOR e FCRS (Cear).

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    Abstract The article examines the citizen communication processes

    tissues by young working in association Aldeia, in Fortaleza, Cear. The

    research is theoretical studies of social movements, digital media and citizencommunication. Selected as a result of the research, three aspects of the uses of

    technology by Aldeia young participants: 1) the absence of greater criticality in

    reading the media; 2) the complementarity between analog and digital media;

    and 3) the demand for professionalism

    Keywords: Youth. Citizenship. Digital media. Social movements.

    Data de submisso: 26/01/2013Data de aceite: 04/03/2013

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    Introduo

    Apesar do lugar-comum que implica abordar as transformaes advin-das da presena e do impacto das tecnologias na vida social, entende-mos que necessrio pontuar, na introduo deste artigo, algumas dasmudanas que assistimos na sociedade nessas duas ltimas dcadas, es-pecialmente a partir do incio da popularizao da internet residencial.As mutaes nas experincias subjetivas e nas sociabilidades ocasiona-das pela emergncia e disseminao das mdias digitais3 tm repercutidosignificativamente em nossos modos de ser e de estar no mundo, recon-figurando, tambm, a atuao dos movimentos sociais e as prticas decidadania dos atores coletivos na contemporaneidade.

    So essas transformaes nas formas de articulao e de organizaoda sociedade que vm atribuindo outros contornos chamada comuni-cao cidad, noo gestada, principalmente, no contexto do pensamen-to latino-americano, e em torno da qual vm se desenvolvendo reflexessobre as prticas de atores e de movimentos sociais orientadas democra-

    tizao do acesso, da produo e da gesto dos recursos comunicacionaisnos processos de luta e de transformao da sociedade. As mdias digitaisvm provocando, nas ltimas dcadas, reordenamentos nessas prticasde comunicao cidad ao favorecerem a intensificao dos fluxos e dasredes comunicacionais e ao abrirem novas possibilidades de experimen-tao comunicacionais, aprofundando o deslocamento da condio deaudincia dos atores sociais para o de produtores de contedos miditi-cos e gestores de polticas comunicacionais.

    No marco do cenrio descrito anteriormente, o interesse deste arti-go4 perceber quais processos de comunicao cidad so engendradospelos jovens quando estes atores coletivos passam a desenvolver prticas

    3 Quando falamos das mdias digitais, estamos nos referindo aos meios e suportes de comunicao que se utilizamda tecnologia de codificao e decodificao de sinais digitais. So meios e ferramentas que tornam possvel a pro-duo e o compartilhamento de textos, sons e imagens em um tipo nico de formato, que o digital.4 As reflexes levantadas neste artigo advm dos resultados da pesquisa de doutorado de Daniel Barsi Lopes, desen-

    volvida no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da UNISINOS, sob a orientao da Prof.Dr. Denise Cogo, entre 2008 e 2012. Ver Barsi Lopes (2012).

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    de usos e apropriaes das mdias digitais no mbito de associaes eprojetos voltados para a insero sociocultural da juventude em situao

    de vulnerabilidade social. O objeto de referncia da investigao a asso-ciaoAldeia, localizada em Fortaleza, na regio Nordeste do Brasil, or-ganizao que trabalha com jovens moradores da regio do Morro SantaTerezinha5, rea de risco e pobreza, segundo vises construdas e disse-minadas por alguns meios de comunicao6 que fazem cobertura quaseque diria sobre os fenmenos da criminalidade ocorridos no local.

    Da comunicao popular comunicao cidad

    Falar de movimentos de jovens e de seu potencial de insero cidada partir dos usos das mdias digitais resgatar, inicialmente, o percur-so de entrelaamento entre os movimentos sociais e a comunicao.Vale destacar, desde j, que iniciativas como as desenvolvidas peloAldeia no surgiram do acaso e tampouco so uma novidade. Aes des-

    se tipo, mesmo que com perfis distintos, so herdeiras de uma trajetriade movimentos populares que se desenvolveram na Amrica Latina nasdcadas de 60 e 70 do sculo passado, vinculadas especialmente ao ce-nrio de reao ditadura militar.

    No panorama brasileiro, uma comunicao alternativa aparece maisvinculada aos intelectuais de esquerda, atuando em oposio ditaduramilitar, conforme foi possvel observar em propostas como a dos jornaisOpinio, O Pasquim e Coojornal, ao passo que a comunicao popular

    surge inserida em movimentos de base (como as Comunidades Eclesiaisde Base), associaes comunitrias, grupos populares (como de mulheres).Ambas se constituem como modos de resistncia a uma comunicao de

    5 Os moradores do morro vivem, em grande parte, abandonados pelos poderes pblicos e amedrontados pela violn-cia do lugar, como consequncia de Fortaleza ser uma metrpole dividida, desigual, onde so formadas reas perif-ricas mesmo no interior da cidade (geograficamente prximas do Centro, como no caso do Morro Santa Terezinha).6 Especialmente os noticirios televisivos sensacionalistas locais, como Barra Pesada, exibido pela TV Jangadeiro,

    retransmissora da TV Bandeirantes em Fortaleza, e Cidade 190, apresentado pela TV Cidade, retransmissora daRede Record na capital do Cear.

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    massa que se desenvolve alinhada aos interesses hegemnicos de grandesgrupos econmicos e polticos, incluindo das prprias organizaes midi-

    ticas (COGO, 2005)7.Entretanto, apesar das diferentes denominaes que pode receber es-

    se tipo de comunicao mais dialgica, uma srie de fenmenos sociais,econmicos, polticos e culturais que tm se intensificado cada vezmais nos ltimos anos vm colaborando em um processo de apaga-mento das fronteiras entre o alternativo, o comunitrio, o popular etc.A globalizao econmica e cultural, que reconfigura os marcos iden-titrios; o transnacionalismo, que acarreta a relativizao dos Estadosnacionais; a formao da sociedade em rede, que pode favorecer relaesmais horizontais e menos hierrquicas; o incremento das tecnologias dacomunicao especialmente o surgimento da internet , que alterasubstancialmente as noes de espao e de tempo , podem ser apon-tados como exemplos de algumas dessas transformaes em curso nocenrio contemporneo.

    Dentre esse conjunto de mudanas, no se pode deixar de destacar,

    tambm, a intensificao dos f luxos migratrios internacionais, que pro-move uma maior hibridao cultural ao mesmo tempo em que enfatizaa formao de comunidades xenfobas e fundamentalistas; a pluraliza-o das propostas e concepes de cidadania, com sua ampliao paraalm dos direitos sociais, civis e polticos; e os prprios reordenamentosdos movimentos sociais, que se aliam a novas agendas e a diversifica-das demandas socioculturais, econmicas e polticas (COGO, 2010).Alm de estarem presentes nos conflitos nitidamente de classe, os mo-

    vimentos sociais inserem em suas agendas de luta outras questes rela-cionadas s desigualdades sociais e culturais, como aquelas relativas sidentidades tnicas, sexuais, ambientais, regionais, urbanas etc.

    No marco dessas mutaes que vm provocando reordenamentosnos campos do alternativo, do comunitrio e do popular e da emer-gncia da noo de cidadania como umas das esferas centrais da co-

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    No podemos deixar de citar, tambm, a ao de vrios movimentos que, no contexto brasileiro, lutaram em proldas classes trabalhadoras, como os movimentos sindicalistas.

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    municao produzida pelos movimentos sociais, optamos por situar asprticas juvenis analisadas nesse artigo na seara da comunicao cidad8.

    No pretendemos, com isso, desconsiderar os antecedentes da presenada cidadania como uma perspectiva sociopoltica central das prticas decomunicao alternativa e popular dos movimentos sociais no contextolatino-americano, embora possamos observar que, entre os 1970 e 1990,a comunicao cidad tenha sido escassamente utilizada na AmricaLatina para nomear a comunicao alternativa e popular tanto no mbitodos movimentos sociais quanto na esfera da pesquisa comunicacional9.Os estudos acumulados, entretanto, permitem afirmar que essas prti-cas se mobilizavam em torno de ideais cidados de democratizao dosprocessos e dos meios de comunicao, vinculados a alguns iderios detransformao social.

    Desde uma tessitura em redes locais, nacionais e transnacionais10a cidadania j se constitua, portanto, em uma questo comunicacio-nal para setores da sociedade civil e para movimentos sociais organi-zados, tendo em vista que suas prticas de comunicao buscavam se

    orientar pelo deslocamento de modelos instrumentais e difusionistaspara perspectivas predominantemente interacionistas. Ou seja, busca-vam privilegiar as inter-relaes entre os polos da produo e da recep-o comunicacionais, enfatizando a comunicao como processo, naperspectiva de ampliar os espaos de interveno de setores sociais emmicro e macro instncias das polticas e das prticas de comunicao.Em sntese, a cidadania aparece includa como questo comunicacio-nal na agenda de lutas da sociedade civil, marcada, especificamente,

    pela preocupao com a democratizao dos processos comunicacionais

    8 No desconsideramos aqui que a profuso no emprego do termo cidadania por diferentes setores (acadmi-co, empresarial, governamental etc.) nos ltimos anos impacta a prpria capacidade explicativa do conceito,contribuindo para atribuir uma elasticidade exagerada a essa noo conceitual.9 Muitas vezes era mais uma dentre as vrias terminologias empregadas para nomear as experincias de comunica-o dos setores populares, denominadas, dentre outros termos, como alternativa, popular, comunitria, local, dia-lgica e horizontal.10 Vale assinalar que essa comunicao se desenvolveu atravs da combinao de perspectivas locais (das cidades,

    dos bairros etc.), nacionais (dos pases latino-americanos) e, em certa medida, tambm transnacionais (na esfera daAmrica Latina e dos vnculos entre pases latino-americanos e europeus).

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    e miditicos no contexto latino-americano como sendo uma condioprimordial para a conquista de igualdade social.

    Mais recentemente essa centralidade do termo cidado pode ser evi-denciada em reflexes acadmicas como as de Martn-Barbero (2008),que defende a comunicao cidad como terminologia mais apropriadapara nomear o panorama cada vez mais denso e interconectado de redesde meios comunitrios dinamizados na contemporaneidade. Emborapossam se situar e serem produzidas desde o local, essas mdias comu-nitrias vm buscando, de modo crescente, abranger outras esferas e in-tervir em distintos mbitos, como o regional e o nacional, ancorados emprojetos e agendas mais amplos, como os dos conflitos polticos ou as dasquestes socioambientais (MARTIN-BARBERO, 2008).

    No esforo de compreenso dessa comunicao cidad, Martn Bar-bero postula, ainda, para as chamadas pesquisas de recepo latino--americanas, o deslocamento da anlise do consumo ou da leitura dosmeios, por parte dos receptores, para a anlise dos processos de empode-ramento ou do que poderamos denominar igualmente de polticas

    do sujeito , gestadas em experimentaes com as tecnologias da comu-nicao. Em torno dessa dimenso, o posicionamento do autor sugere ja atualidade da noo de cidadania comunicativa, a partir da afirmaoda emergncia do conceito de meios cidados em lugar de meiosde comunicao comunitrios e populares como aqueles gerados nasbrechas conformadas nas contradies mais amplas do capitalismo enas pequenas contradies cotidianas (MARTIN-BARBERO, 2008).

    Se, na Amrica Latina, falar de alternativo, segundo resgata o autor,

    significava assumir a autenticidade e a beleza que representava ser peque-no ou a possibilidade de se constituir como uma alternativa amplitude,ao imperialismo e mentira dos meios de comunicao, falar de comuni-trio esteve associado ao desejo de perseguir uma democratizao internados meios, no que se refere participao de diferentes setores populares,como mulheres, crianas, jovens etc. (MARTIN-BARBERO, 2008).

    Mais recentemente, o cidado parece emergir para afirmar a capa-

    cidade dos usos dos meios de comunicao para falar da vida dos bair-

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    ros e das naes, evidenciando que mais o comunicacional, e menos otecnolgico, se torna a chave de transformao poltica e democrtica.

    Martn-Barbero nos faz refletir que as pessoas sabem que, na comuni-cao, comeam a ter um poder que nunca tiveram. [...] So os contos,msicas, narrativas, no apenas a transmisso da palavra, mas a visibili-dade poltica para se fazerem presentes com novas formas de cidadania(MARTIN-BARBERO, 2008, p. 161).

    Nas relaes entre comunicao e prticas de cidadania, cabe enfa-tizar, ainda, que entendemos a primeira como um potencial para quesujeitos coletivos atuem no sentido de construo da segunda. O direi-to comunicao no algo que deve ser pensado somente a partir daperspectiva do acesso, mas, tambm, do direito de todos de produzircomunicao, de difundir contedos, de gerir polticas pblicas nes-se mbito. Os processos de aprendizagem educomunicacionais no sedo somente a partir da apropriao das mensagens emitidas pela m-dia, mas, tambm, desde sua produo e gesto. A participao no de-senho de projetos que envolvem as tecnologias, na tomada de decises,

    na pesquisa e produo sobre temticas de relevncia que meream serdebatidas publicamente, na visibilidade de outras pautas no prioriza-das no espao dos grandes conglomerados miditicos, nos processos deedio que priorizem outras gramticas comunicativas, so algumasdas dimenses de uma comunicao cidad na qual os processos so-ciocomunicacionais podem assumir mais relevncia do que o produtofinal em si, especialmente quando a sociedade passa a organizar-seatravs da lgica das redes.

    As redes e a participao na sociedade

    A juventude contempornea configura um grupo plural e heterog-neo, que vm experimentando modos mltiplos e contraditrios deapropriaes e usos das tecnologias da comunicao na vida cotidiana.

    As relaes dos jovens com a sociedade em rede comportam uma mul-

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    tiplicidade de padres que vem colaborando para desestabilizar a per-cepo hegemnica sobre a existncia de um nico modelo de vnculo

    do jovem com o sistema digital, em que a juventude apareceria definidacomo aquela permanentemente conectada ao mundo virtual e isoladade seu entorno social concreto.

    Na perspectiva de deslocamento desse modelo, que aparece fre-quentemente afirmado pela literatura acadmica ou mesmo pelo sensocomum, propomos pensar as mdias digitais como artefatos que, emvez de promoverem apenas os processos de individualismo e de isola-mento social, so capazes de potencializar apropriaes e usos sociais.Os processos de interao com essas mdias podem propiciar, dentreoutros, alternativas de entretenimento, interesse pelo entorno local epelos acontecimentos globais, participao em determinadas instn-cias da sociedade, ou ainda, instaurao de dinmicas de cidadania.

    Os contornos que assumem as experincias de exerccio da cida-dania na atualidade ultrapassam a questo tradicional dos direitossociais, polticos e civis para fazerem referncia a elementos rela-

    tivos produo e gesto comunicacionais e, tambm, aos dilo-gos, disputas e aproximaes produtivas entre as diferentes culturas.Outros modos de exerccio cidado vo se conformando, na atualidade,para impulsionar processos de deslocamento de um iderio de cidada-nia ancorado em um vis poltico stricto sensu para abranger, tambm,questes culturais e de (re)afirmao identitria e, ao mesmo tempo,ser dinamizado no mbito das chamadas micropolticas do cotidianoe no mais apenas nas instncias macro da vida institucional. A noo

    de cidadania ativa torna-se til, nessa perspectiva, para nos deslocarda percepo de uma cidadania atribuda e distribuda pelos Estados enos situarmos em uma tica relacional, que coloca em relao Estadoe sociedade na disputa e negociao de recursos e direitos cidados.Como assinala Hopenhayn (2002, p. 9), a ideia republicana de cida-dania reaparece, mas no no horizonte da participao poltica oudos grandes projetos de sociedade, seno em uma grande variedade de

    prticas de low profile, sejam associativas ou comunicativas, que no

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    necessariamente concorrem no pblico estatal. Muitas dessas polti-cas esto orientadas hoje aos usos das mdias para a construo e para

    a visibilidade pblicas de agendas de mobilizao e lutas por parte deatores e movimentos sociais.

    A prpria constituio da sociedade em rede e da presena cen-tral das tecnologias da comunicao na vida social tem sido apontadacomo um processo que vem impactando os modos de exerccio da ci-dadania no espao pblico. Embora seja uma prtica humana muitoantiga, a formao das redes se redimensiona, na atualidade, a par-tir de trs processos que, elencados por Castells, esto relacionadoss exigncias do setor econmico por flexibilizao administrativa eorganizao do capital; supremacia de valores sociais relacionados liberdade individual e comunicao aberta; e aos avanos extraor-dinrios na computao e nas telecomunicaes, possibilitados pelarevoluo microeletrnica (CASTELLS, 2003). Como tambm refereMolina (2004), a prpria emergncia do debate a respeito das redesest associada a uma sensao de interconexo que acompanha as rela-

    es contemporneas e que no somente prprio das redes, seno umfenmeno amplamente difundido.Para Castells (1999), as redes configuram as lgicas da organiza-

    o social contempornea, caracterizando-se pela gerao, proces-samento e transmisso da informao como fontes fundamentais deprodutividade e de poder. Na viso do pesquisador, os aspectos es-senciais da constituio dessa organizao social condicionam ouimpactam de alguma forma dimenses to diversas quanto a eco-

    nomia, o conhecimento, o poder, a comunicao e a tecnologia, su-gerindo que a sociedade em rede seria a estrutura social dominantedo planeta (CASTELLS et al., 2007). O autor pensa a sociedade emrede a partir de uma abrangncia transversal, ou seja, atravs da an-lise de aspectos econmicos, culturais, polticos e sociais, ao mesmotempo em que reconhece que a lgica de rede, embora assuma umadimenso global, no substitui outras estruturas sociais, mais centra-

    lizadas e hierrquicas.

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    O carter no homogneo do que prope chamar de sociedade emrede destacado por Castells em pesquisa sobre os usos da internet

    na regio da Catalunha (Espanha), em que o autor evidencia a par-cialidade de acesso e de consumo da internet por parte da populaomundial (CASTELLS et al., 2007). Os limites de autonomia, escolhase decises na sociedade em rede so refletidos por outros autores, comoCardoso (2007), que vincula esse tipo de organizao social diretamen-te capacidade de interao dos sujeitos individuais com as tecnolo-gias, mas que, segundo alerta o autor, estar condicionada sempre porlimites sociais, econmicos e polticos que definem o acesso e o usodas tecnologias. A no homogeneidade da sociedade em rede sugere,ainda, que no podemos desconsiderar a importncia que seguem ten-do, para as sociedades contemporneas, as interaes face a face e nomediadas pelas tecnologias.

    A atuao dos movimentos sociais impactada pelos modos deorganizao da sociedade em rede e pelas possibilidades abertas aossujeitos sociais, dispersos por diferentes territrios, de articularem-

    -se e de congregarem-se, mesmo que parcial e temporariamente, apartir da mediao, em muitos casos, das mdias digitais. O que al-guns autores tm denominado de ativismo em rede (MACHADO,2007) aparece, por exemplo, materializado em um amplo espectrode aes locais, nacionais e transnacionais multiterritorializadas, emque as tecnologias da comunicao, especialmente a internet, assu-mem preponderncia nas estratgias de planejamento, articulao emobilizao dos movimentos sociais. Essa nova forma de organizao

    em rede resulta, segundo Machado (2007, p. 268), na ampliao dacapacidade de produzir, reproduzir, compartilhar, expressar e difun-dir fatos, ideias, valores, vises de mundo e experincias individuaise coletivas em torno de identidades, interesses e crenas e em umespao muito curto de tempo.

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    A associao Aldeiae o itinerrio

    metodolgico da pesquisa

    A pesquisa que origina este artigo foi articulada atravs de um processode observao das diversas atividades do Aldeia, especialmente a par-tir do acompanhamento sistemtico do Mapa ao Quadrado11, o proje-to da ONG que estava sendo desenvolvido com os jovens na poca dainvestigao. Estivemos presentes nas oficinas tericas ministradas, nasreunies para discutir a concepo do produto audiovisual que seria exe-cutado, nas gravaes pelos arredores do Morro Santa Terezinha, nasprodues das entrevistas com as principais personagens da comunidadee nos processos de edio do documentrio. Tambm seguimos, ao lon-go dos quatro anos de desenvolvimento da investigao, outras iniciativasdoAldeia, como reunies da associao, gravaes de materiais audiovi-suais, exibies de cineclube, participao em editais e concretizao doFestival de Jovens Realizadores12. Alguns dos jovens participantes da ins-tituio Roberta, 18 anos; Xaiane, 22 anos; Rosa, 19 anos; Jaqueline, 22

    anos e Lucas13

    , 22 anos nos concederam entrevistas em profundidade14

    ao final do projeto Mapa ao Quadrado, nos possibilitando conhecer suasexperincias subjetivas, vises de mundo e trajetrias no contexto dasmobilizaes coletivas, especialmente no que diz respeito experinciano mbito doAldeia.

    A ideia da criao doAldeia, em 2004, surgiu a partir de um coletivode quatro socilogos Simone Lima, Elson Batista, Ricardo Salmito eLeonardo S ligados universidade e que desejavam empreender pro-

    jetos extra-acadmicos na cidade de Fortaleza. Os quatro socilogos, quetinham uma trajetria anterior de vnculos com a mdia e de reflexo so-

    11 Projeto de capacitao e realizao audiovisual desenvolvido atravs de verba concedida via edital da FUNARTE.O projeto, parceiro e quase um filho doAldeia, utilizou como espao fsico para as oficinas e demais encontrosa sede da associao, no morro, bem como teve o auxlio de alguns jovens que participam ativamente doAldeia.12 Realizado em junho de 2011, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza/CE.13 Nomes fictcios, para preservar a identidade dos sujeitos-pesquisados.14 O roteiro das entrevistas em profundidade englobava cinco tpicos especficos: relaes entre juventude e partici-

    pao; consumo e uso dos meios; relaes entre juventude e mdia; relaes com oAldeia e o Mapa ao Quadrado;relaes entre cidadania, mdia e entorno local.

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    bre os meios de comunicao, comearam a construo doAldeia a partirdessa perspectiva crtica sobre a mdia e, tambm, com foco voltado para

    as DSTs15. Um dos grandes projetos da associao, nas palavras de Siqueira(2009)16, o Escola de Mdia, que j tem sete anos e feito, normalmente,todos os anos. Trata-se de um curso para a capacitao da juventude para aleitura e a produo miditicas, fundamentado em anlises de contedosde gneros e de programas televisivos, com o intuito de ampliar o potencialde expresso e de criao, buscando transformar os jovens em produtores eemissores de suas prprias mensagens audiovisuais.

    A atuao dos jovens no mbito doAldeia abrange duas modalidades:a de participantes voluntrios e a de bolsistas, que desenvolvem ativi-dades na associao. Para o pagamento das bolsas, bem como para osuporte financeiro da associao, oAldeia mantm uma relao estreitacom as polticas pblicas. A gente tem vrias frentes. [...] entra em editalpblico, [...] busca parcerias nos fundos de cultura estadual, federal emunicipal, [...] vai atrs de quem pode nos apoiar para desenvolver umprojeto (LIMA, 2009). OAldeia organiza grande parte de seu trabalho

    em funo dos editais, que so lanados e envolvem educao, arte, cul-tura, cidadania, direito civil, tudo o que traga alguma melhoria para aspessoas (SIQUEIRA, 2009)17.

    Dentre as vrias experincias tecidas pelos jovens atravs de suas parti-cipaes noAldeia, destacamos trs eixos de anlise a serem aprofunda-dos no prximo tpico que dizem respeito ausncia de uma perspectivamais crtica de leitura dos meios de comunicao e de anlise das estru-turas e relaes sociais geradoras de desigualdades; complementaridade

    entre as mdias analgicas e digitais nos usos cotidianos dentro e fora doespao da associao dos jovens; e uma demanda por profissionaliza-o para o mercado de trabalho voltado comunicao.

    15 Doenas sexualmente transmissveis.16 As citaes neste tpico do artigo vm das entrevistas realizadas com Simone Lima e Valdo Siqueira, diretoresdo Aldeia.17 No perodo selecionado para realizarmos o acompanhamento sistemtico (com comeo, meio e fim) de um pro-

    jeto vinculado aoAldeia o Mapa ao Quadrado apresentou-se como a nica opo, visto que a mudana de governofederal fez com que a abertura de editais pblicos diminusse consideravelmente no primeiro semestre de 2011.

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    Jovens e mdias digitais: complementaridade,

    leitura crtica e profissionalizao

    Os protagonistas da pesquisa compem um perfil no muito diferentedo que se observa em diversas comunidades populares de outras metr-poles brasileiras18. Todos estudaram em escola pblica e, atualmente,apenas um dos informantes possui vnculo empregatcio. A totalidadedos jovens relata dificuldades econmicas, mas quase todos apresentam,mesmo com as limitaes financeiras, acesso aos meios digitais (toca-dor de MP3, cmeras etc.), inclusive desde suas residncias19. Celularesmodernos, com conexo internet alguns deles smartphones e comdiversas outras funes, configuram a esttica construda e exibida pelamaioria desses sujeitos sociais.

    A dieta miditica dos jovens participantes doAldeia assume uma di-menso de complementaridade nos usos das mdias (MORLEY, 2008),configurando um cenrio no qual os acessos se do de formas mltiplase complementares, combinando apropriaes de meios novos e tra-

    dicionais. As fotos e os vdeos so feitos em cmeras ou nos celulares, ocontedo da TV visto na internet e na televiso; o acesso internet sed a partir de computador e do celular; o consumo de filmes e msicasse processa atravs da compra da DVDs piratas e de downloads atravs desites na rede; as notcias so vistas nos jornais impressos, nos telejornaise nos portais da internet. Eu acordo e j ligo o rdio, porque eu adoroescutar msica (Xaiane, 22 anos). O que eu mais vejo a televiso, elafica o dia todo ligada l em casa, porque sempre tem algum assistindo

    (Rosa, 19 anos). Como eu gosto de cuidar da casa, eu ligo primeiro ordio e fico fazendo as minhas coisas de casa. Depois eu corro para a in-ternet, para olhar os meus e-mails e as redes sociais (Jaqueline, 22 anos).

    18 Fortaleza possui cerca de 2,5 milhes de habitantes (sem contar a regio metropolitana) e figura, como referemos dados do IBGE de 2010, como a quinta cidade mais populosa do pas, atrs de So Paulo, Rio de Janeiro,Salvador e Braslia.19 Alguns dos jovens possuem computador e banda larga em seus lares. Outros, mesmo com PC em casa, tm que

    recorrer s Lan Houses para acessar a internet, pois a conexo residencial ainda se d via discagem telefnica, o quegera desconforto, por parte dos jovens, devido demora e limitao nos horrios de uso.

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    Pra mim , basicamente, internet e televiso. E o rdio, que escuto quandot indo para o trabalho (Lucas, 22 anos).

    O consumo das mdias construdo atravs de rotinas nas quais ainternet e a televiso, principalmente, aparecem como os meios maisacessados pelos jovens, apesar de uma ampla e pulverizada participa-o de outras mdias em seus processos de produo, circulao e apro-priao miditicas. Talvez em virtude da atuao em projetos que seconstituem em torno da mdia e de certa centralidade que os meios decomunicao assumem nas vivncias dos jovens, possvel destacaras competncias tcnicas adquiridas por eles no trato com a mdia,a absoro de seus processos produtivos, de suas lgicas, linguagense gramticas, apontando para o papel das mediaes videotecnolgi-cas nos processos de usos e apropriaes dos meios de comunicao.Eu gosto muito de ver o [tele]jornal e, de vez em quando, eu vejo anovela. [...] Na internet eu gosto de ver as notcias. O que eu escuto nardio eu vou l nos portais da internet pra ver mais informaes, paraconferir se verdade mesmo o que eles esto falando (Lucas, 22 anos).

    Ultimamente eu tenho me voltado mais para as notcias nacionais eregionais, apesar de saber que a mdia, muitas vezes, no mostra a re-alidade, ela mostra somente aquilo que ela quer (Jaqueline, 22 anos).

    Chama a ateno, entretanto, o fato de que, mesmo participandoem projetos que se propem a pensar sobre a mdia a partir de outraperspectiva, contra-hegemnica, esses jovens sigam roteiros em suasincurses pelos meios que vo justamente ao encontro de algumas l-gicas dominantes, em termos de gneros e contedos: seriados, tele-

    jornais, novelas e programas de humor de emissoras hegemnicas, nocaso dos consumos de televiso, e portais de notcias, redes sociais echats de conversao, no que diz respeito aos usos da internet. Adoro oRecord News, que passa notcias do mundo inteiro (Roberta, 18 anos).Eu gosto de ver um pouco de tudo, sabe, eu vejo fuxico dos artistas,eu vou muito no site do G1 e no UOL, pra ver o que t acontecendo noBrasil e no mundo (Xaiane, 22 anos). Adoro Pnico e Legendrios

    (Jaqueline, 22 anos). Ou seja, programas alternativos e sites ou blogs

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    que no estejam vinculados aos grandes conglomerados miditicos nocompem pelo menos no de modo regular os repertrios e as roti-

    nas de consumo miditico dos jovens participantes da pesquisa. nesse sentido que foi possvel perceber a ausncia de uma pers-

    pectiva de trabalho, no seio doAldeia, que se abra de forma mais ve-emente e aprofundada atravs da leitura crtica da mdia e da anlisedas estruturas sociais e estatais20. Percebemos, no mbito da associa-o, que, mesmo depois de meses de participao em um projeto que,teoricamente, tem a discusso sobre os meios de comunicao comoum dos seus eixos orientadores, os jovens informantes no foram mo-bilizados para discutir sobre questes fundamentais que, constru-das pelas mdias, repercutem diretamente em suas vidas cotidianas eincidem nas polticas de igualdade social nas quais esto inseridos. o caso, por exemplo, da violncia urbana e as formas como a m-dia apropria-se desse fenmeno e o reconfigura , sobre a qual pare-ce no haver um debate de modo mais efetivo no espao do projeto.Alguns dos sujeitos-pesquisados acabam, por exemplo, por vincular a

    violncia a aspectos individuais e a uma perspectiva maniquesta debem e mal, isentando o Estado de suas responsabilidades. O que eumudaria aqui no Morro seria a violncia. [...] A violncia algo indi-vidual, que tem dentro de voc. Com o tempo que vai se formandoo carter, ento, o que teria que acontecer essa pessoa receber umaorientao espiritual (Jaqueline, 22 anos). A cultura da violnciaaparece, nessa e em outras falas dos jovens, associada quase exclusi-vamente criminalidade, desvinculada, em geral, das instituies es-

    tatais e governamentais e de suas causas estruturais (TAVARES DOSSANTOS, 1999).

    O que parece ficar claro, em algumas experincias do Aldeia, aemergncia de uma prtica cidad, atravs das mdias digitais, que sealicera, muitas vezes, na experimentao pela experimentao, no gra-

    20 Vale ressaltar que no queremos dizer que no haja, de modo algum, uma parcela de criticidade nas posturas dos

    jovens informantes. O que ponderamos que esse carter mais reflexivo acerca do papel desempenhado pelos meiosde comunicao poderia tambm ser desenvolvido de forma mais efetiva no trabalho levado a cabo pela associao.

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    var por gravar, sem que haja uma preocupao efetiva com os sentidosque mobilizam as filmagens, com as transformaes mais profundas

    que se buscam com as visibilidades ressignificadas e com o potencialde crtica social que reveste o produto audiovisual originado naquelasexperincias. At mesmo porque as oficinas tericas, ou seja, as queenvolvem debates e discusses e se distanciam da prtica de sair pelacomunidade filmando e entrevistando os moradores so consideradasenfadonhas e montonas por boa parte dos participantes dos projetosdoAldeia. Ele [coordenador do projeto] falava muito sobre cinema, so-bre TV, e era um pouco chato, porque ele ficava s falando (Roberta,18 anos). No comeo eu no gostava, porque era muito chato, era sbesteira, a pessoa s ali falando e a gente s parado. Eu at ia desistin-do, mas a resolvi ficar, quando a gente comeou a filmar no Morro,pra fazer o documentrio (Rosa, 19 anos). As falas das jovens refletema realidade observada no acompanhamento das atividades do Mapa aoQuadrado. Enquanto as oficinas tericas se desenvolviam, podamosobservar certo desinteresse por parte da turma. Sadas constantes da

    sala, brincadeiras no celular, olhares perdidos e entediados marcavama participao de alguns dos jovens.A nsia pela prtica em detrimento de um debate mais aprofun-

    dado sobre os temas em questo pode ser explicada a partir de umdesejo recorrente e imediato desses jovens de se profissionalizarem tec-nicamente para conseguir um emprego que lhes traga alguma estabi-lidade financeira. Muitos dos participantes do Aldeia criticam a faltade encaminhamento ao mercado de trabalho, algo que, na viso deles,

    no articulado atravs da associao. A questo que voc precisade dinheiro, voc precisa trabalhar. Como eu te disse [a atuao naONG], no uma coisa constante, que te d estabilidade. Voc precisaser adulto, pagar suas contas, sustentar sua famlia (Lucas, 22 anos).Eles podiam, tipo, ter mais ateno durante o projeto para ver quemse destaca e selecionar esses para serem contratados por um perodo deexperincia em um veculo de comunicao, na TV Verdes Mares, por

    exemplo (Jaqueline, 22 anos).

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    Percebemos aqui dois elementos interessantes com relao ques-to do trabalho. Primeiramente evidenciamos uma espcie de para-

    doxo nos relatos de parte desses jovens, quando, ao mesmo tempo emque apontam falhas dos meios de comunicao (a repetio das nove-las, as bobagens dos programas de auditrio, os exageros e distoresdos telejornais, para citar alguns exemplos advindos das falas dos in-formantes), mantm o desejo de que os projetos doAldeia os formeme os encaminhem para empregos em grandes corporaes miditicas,como o Sistema Verdes Mares, em Fortaleza, afiliado da Rede Globo.Podemos tecer relaes entre esse tipo de desejo por atuar nos meioshegemnicos com a centralidade de um tempo marcado pela visibi-lidade miditica e por uma nfase no individualismo, cultivado, emparte, pela prpria mdia. O outro elemento peculiar diz respeito questo da precariedade do emprego e da ausncia de vnculos traba-lhistas estveis e duradouros como elementos que marcam o contex-to de nossos informantes limitando, de certo modo, sua entrada nomundo adulto , o que sugere um questionamento em torno do fato

    desses projetos sociais que lidam com o universo juvenil no encami-nharem seus participantes de forma prtica ao universo profissional. importante, na viso dos jovens, que as mudanas em suas vidas nocessem quando o projeto tiver fim ou quando a associao passar porproblemas financeiros e suspender suas atividades.

    Vale problematizar a questo da profissionalizao como uma pautaexcessivamente importante no discurso dos jovens, embora no deixede ser relevante. Ficou claro, ao longo do desenvolvimento do trabalho

    de campo, que as expectativas em torno dos projetos, por parte dos jo-vens participantes, materializam-se mais atravs de um interesse poruma formao tcnica e profissional e menos a partir da demanda poruma formao crtica para a vida e para atuar junto aos meios de comu-nicao. Isso parece se distanciar do iderio de projetos alternativos ecomunitrios de comunicao que conhecemos e que tm orientado,especialmente na trajetria latino-americana, a configurao de uma

    comunicao popular e cidad. No que o desejo de se profissionalizar

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    no seja legtimo, mas o risco de sua essencializao nos parece poucotransformador, principalmente se considerarmos a j forte presena, na

    atualidade, de concepes de educao orientadas profissionalizao eao pragmatismo, em detrimento de um ideal de desenvolvimento crticodos sujeitos sociais ou de um projeto educacional que, pelo menos, alieas duas dimenses profissionalizao e formao crtica. Vale ressaltar,tambm, que os sentidos de cidadania dos jovens esto vinculados de for-ma muito marcante viso de trabalho e de profissionalizao, relaoessa que se explica pela prpria situao de excluso ou de precariedadede insero do mercado laboral vivenciada por eles. Nesse sentido, pude-mos perceber uma forte demanda, por parte dos jovens, de se inseriremprofissionalmente no universo miditico hegemnico, processo esse queaparece desvinculado de uma perspectiva que enxerga as associaes eos projetos socioculturais como espaos de ref lexo sobre a mdia leitu-ra crtica e acerca das relaes sociais e comunicacionais.

    Consideraes finais

    Os resultados da pesquisa sistematizados brevemente neste artigo nosmotivam a refletir sobre que tipo de comunicao cidad vem sendotecida nesse encontro das mdias digitais e da sociedade em rede com as mobilizaes coletivas juvenis. claro que todos os processos deexperimentaes com as mdias digitais, mesmo que no sejam acom-panhados de uma reflexo crtica mais aprofundada, so legtimos, at

    por possibilitarem aos jovens formas de expresso e exerccios prticos,a partir da criao de espaos as associaes e de dinmicas as ati-vidades que, de algum modo, so propulsores de vivncias concretas.Seja atravs das filmagens de seu entorno local; da seleo do que que-rem visibilizar; das falas e dos elementos que priorizam na edio; dosroteiros produzidos; ou das ideias que vm tona nas rodas de conversa, importante apontar que no possvel desconsiderar o fato de os jovens

    estarem se relacionando com as tecnologias, desenvolvendo capacidades

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    criativas, exercitando a escrita e a expresso oral, enfim, adicionando co-nhecimentos ao seu repertrio.

    Vale ressaltar, entretanto, que questionar a mdia e recolocar sob ou-tra perspectiva a construo social da realidade por padres e organiza-es miditicas hegemnicos algo que vem sendo reconhecido comoelementos preponderantes para as transformaes sociais. Nesse sentido,situa-se, no campo de reflexo da comunicao cidad, a expectativade que os projetos socioculturais que tm os meios digitais como focopossam motivar os jovens a ultrapassar a questo do uso dos suportes, naperspectiva de no empoder-los apenas tecnicamente, mas de possibili-tar que se sintam mobilizados e aptos a refletir, e mesmo a requalificar,os sistemas miditicos. Participar e exercer a cidadania, nesse sentido,seria mais do que utilizar a mdia, mas perceber as possibilidades e aespara sua transformao.

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