justificação e acessibilidade_ como e por que rejeitar o internalismo epistêmico

103
 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – IH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA – PPGFIL JUSTIFICAÇÃO E ACESSIBILIDADE: COMO E POR QUE REJEITAR O INTERNALISMO EPISTÊMICO? Jéssica Franco de Carvalho Brasília-DF 2015

Upload: carvalhojfc

Post on 03-Nov-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

O internalismo epistêmico é uma posição substantiva sobre a justificação epistêmicae, de maneira abrangente, sobre conceitos epistêmicos em geral, usualmentecaracterizada em termos da adesão ao requisito de consciência. Esse requisitoprescreve que uma crença é justificada somente se o agente tem consciência dosfatores que contribuem para a definição do status epistêmico da crença. Discutimosuma objeção posta por Michael Bergmann, que coloca em questão a efetividade dequaisquer perspectivas internalistas, e suas repercussões sobre diferentesalternativas, alegadamente internalistas; nomeadamente, o mentalismo e odisjuntivismo epistemológico. A objeção assume a forma de um dilema. Assim, se aconsciência que o agente deve ter dos fatores que contribuem para a justificação dacrença é forte – isto é, um tipo de consciência que envolve o agente conceber queum determinado fator é relevante para a justificação ou verdade da crençasustentada –, o internalismo é sujeito a um regresso que leva a uma conclusãocética, que possui repercussões amplas. Se a consciência que o agente deve terdos fatores que contribuem para a justificação da crença é fraca – isto é, um tipo deconsciência que não envolve o agente conceber que um determinado fator érelevante para a justificação ou verdade da crença sustentada –, o internalismoperde a motivação inicial de impor o requisito de consciência. Desse modo, emqualquer caso, o internalismo leva a conclusões indesejáveis e, portanto, deve serrejeitado como uma posição substantiva sobre a justificação. Defendemos que aobjeção é parcialmente bem-sucedida e propomos algumas observações sobre opapel epistêmico que a exigência de acessibilidade cumpre no internalismoepistêmico.

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS IH

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA PPGFIL

    JUSTIFICAO E ACESSIBILIDADE: COMO E POR QUE REJEITAR

    O INTERNALISMO EPISTMICO?

    Jssica Franco de Carvalho

    Braslia-DF

    2015

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS IH

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA PPGFIL

    Jssica Franco de Carvalho

    JUSTIFICAO E ACESSIBILIDADE: COMO E POR QUE REJEITAR O

    INTERNALISMO EPISTMICO?

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao (PPGFIL) do Departamento de Filosofia,Instituto de Cincias Humanas, da Universidade deBraslia como requisito parcial para obteno dottulo de Mestra em Filosofia.

    rea de Concentrao: Teoria do Conhecimento eFilosofia da Cincia

    Orientador: Prof. Dr. Hilan N. Bensusan

    Braslia-DF

    2015

  • Dissertao de autoria de Jssica Franco de Carvalho, intitulada JUSTIFICAO E

    ACESSIBILIDADE: COMO E POR QUE REJEITAR O INTERNALISMO

    EPISTMICO?, apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, do

    Departamento de Filosofia, Instituto de Cincias Humanas, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestra em Filosofia.

    Aprovado em 07 de abril de 2015.

    Programa de Ps-graduao do Departamento de Filosofia da Universidade deBraslia

    ______________________________________________Prof. Dr. Hilan N. Bensusan

    Orientador PresidentePrograma de Ps-Graduao em Filosofia PPGFIL

    Instituto de Cincias Humanas (IH) Universidade de Braslia (UnB)

    ______________________________________________Prof. Dr. Eros Moreira de Carvalho

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH)Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

    Membro Externo

    _____________________________________________Prof. Dr. Agnaldo C. Portugal

    Membro InternoPrograma de Ps-Graduao em Filosofia PPGFIL

    Instituto de Cincias Humanas (IH) Universidade de Braslia (UnB)

    ______________________________________________Prof. Dr. Paulo C. C. Abrantes

    Membro SuplentePrograma de Ps-Graduao em Filosofia PPGFIL

    Instituto de Cincias Humanas (IH) Universidade de Braslia (UnB)

  • Carvalho, Jssica Franco de.C331j Justificao e acessibilidade: como e por que rejeitar o internalismo epistmico? / Jssica Franco de Carvalho.

    2015.102 p, 30 cm.

    Dissertao (mestrado) Universidade de Braslia, Instituto de Cincias Humanas, Departamento de Filosofia, Programa de Ps-Graduao em Filosofia, 2015.Inclui bibliografia.

    Orientao: Hilan N. Bensusan.

    1. Internalismo epistmico. 2. Ceticismo. 3. Conceitos epistmicos.I. Bensusan, Hilan, orientador. II. Ttulo.

    CDU 165

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Hilan N. Bensusan, pelo incentivo e acompanhamento ao

    longo da elaborao da dissertao.

    Ao Prof. Dr. Paulo C. C. Abrantes e ao Prof. Dr. Agnaldo C. Portugal,

    pelos apontamentos e crticas feitas na ocasio da banca de qualificao de

    mestrado.

    Ao Prof. Dr. Emerson Carlos Valcarenghi, pela abertura interlocuo.

    secretaria e coordenao do Programa de Ps-graduao em

    Filosofia da Universidade de Braslia, pelo suporte administrativo, e, em especial

    Ndia Dulcinea C. da Silva, ao Prof. Dr. Marcio G. de Paula e ao Prof. Dr. Samuel

    Simon.

    A Filipe Lazzeri, pelas discusses filosficas e sugestes.

    Capes, pela bolsa de estudo.

  • A meus pais, minha irm e meu companheiro.

  • A racionalidade, ao se eleger como o nicocaminho possvel para se produzirconhecimento e interpretar a realidade, relegaas outras formas de interpretao e produode conhecimento condio de ilegtimo existncia confinada nas favelas.

    Aline Matos da Rocha

  • RESUMO

    CARVALHO, F. J. Justificao e acessibilidade: como e por que rejeitar o

    internalismo epistmico? 2015. 102 f. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-

    Graduao em Filosofia, Universidade de Braslia, Braslia, 2015.

    O internalismo epistmico uma posio substantiva sobre a justificao epistmica

    e, de maneira abrangente, sobre conceitos epistmicos em geral, usualmente

    caracterizada em termos da adeso ao requisito de conscincia. Esse requisito

    prescreve que uma crena justificada somente se o agente tem conscincia dos

    fatores que contribuem para a definio do status epistmico da crena. Discutimos

    uma objeo posta por Michael Bergmann, que coloca em questo a efetividade de

    quaisquer perspectivas internalistas, e suas repercusses sobre diferentes

    alternativas, alegadamente internalistas; nomeadamente, o mentalismo e o

    disjuntivismo epistemolgico. A objeo assume a forma de um dilema. Assim, se a

    conscincia que o agente deve ter dos fatores que contribuem para a justificao da

    crena forte isto , um tipo de conscincia que envolve o agente conceber que

    um determinado fator relevante para a justificao ou verdade da crena

    sustentada , o internalismo sujeito a um regresso que leva a uma concluso

    ctica, que possui repercusses amplas. Se a conscincia que o agente deve ter

    dos fatores que contribuem para a justificao da crena fraca isto , um tipo de

    conscincia que no envolve o agente conceber que um determinado fator

    relevante para a justificao ou verdade da crena sustentada , o internalismo

    perde a motivao inicial de impor o requisito de conscincia. Desse modo, em

    qualquer caso, o internalismo leva a concluses indesejveis e, portanto, deve ser

    rejeitado como uma posio substantiva sobre a justificao. Defendemos que a

    objeo parcialmente bem-sucedida e propomos algumas observaes sobre o

    papel epistmico que a exigncia de acessibilidade cumpre no internalismo

    epistmico.

    Palavras-chave: Internalismo epistmico. Ceticismo. Conceitos epistmicos.

  • ABSTRACT

    CARVALHO, F. J. Justification and Accessibility: How and Why to Reject

    Epistemic Internalism? 2015. 102 f. Dissertation (Master) Graduate Program in

    Philosophy, University of Braslia, Braslia, 2015.

    Epistemic internalism is a substantive position about epistemic justification and, in a

    comprehensive way, about epistemic concepts in general, usually characterized in

    terms of adherence to the awareness requirement. This requirement states that a

    belief is justified only if the agent is aware of the factors that contribute to the

    definition of the epistemic status of belief. We discussed an objection posed by

    Michael Bergmann, which calls into question the effectiveness of any internalist

    perspective and its effects on different alternatives allegedly internalist; in particular,

    mentalism and epistemological disjunctivism. The objection takes the form of a

    dilemma. Thus, if the awareness that the agent must have of the factors that

    contribute to the justification of belief is strong that is, a type of awareness that

    involves the agent to conceive that a particular factor is relevant to the justification or

    truth of the belief held , internalism is subject to a return that leads to a skeptical

    conclusion, which has wide repercussions. If the awareness that the agent must have

    of the factors that contribute to the justification of belief is weak that is, a type of

    awareness that does not involve the agent to conceive that a particular factor is

    relevant to the justification or truth of sustained belief internalism loses the initial

    motivation to impose the awareness requirement Thus, in any case, internalism leads

    to undesirable conclusions and therefore must be rejected as a substantive position

    about the justification. We argue that the objection is partly successful and we

    propose some observations about the epistemic role that the requirement of

    accessibility plays in epistemic internalism.

    Keywords: Epistemic internalism. Skepticism. Epistemic concepts.

  • SUMRIO

    INTRODUO..............................................................................................................9

    CAPTULO 1 - O CRITRIO ACESSIBILISTA: O DILEMA DE BERGMANN CONTRAO INTERNALISMO EPISTMICO..............................................................................12

    1.1Contextualizando os marcos do debate............................................................14

    1.2Uma objeo ao requisito de conscincia: exposio e avaliao do dilema...18

    1.2.1Avaliando respostas contra o dilema de Bergmann...................................36

    1.2.1.1Bonjour x Bergmann: uma sada fundacionista?................................36

    1.2.1.2Crisp x Bergmann................................................................................41

    1.2.1.3Matherson e Rogers x Bergmann.......................................................48

    1.3Como e por que rejeitar o internalismo epistmico, segundo o critrio acessibilista?...........................................................................................................54

    CAPTULO 2 - DVIDAS ACERCA DO MENTALISMO ENQUANTO INTERNALISMO..........................................................................................................57

    2.1O que o mentalismo? E quais seus comprometimentos?..............................57

    2.2Avaliando de teorias da justificao epistmica: Bergmann contra o mentalismo.................................................................................................................................60

    2.2.1Ponderaes sobre o ataque de Bergmann ao mentalismo......................66

    2.3Do mentalismo ao externalismo semntico: dvidas sobre a primitividade do mentalismo enquanto tese epistemolgica.............................................................68

    CAPTULO 3 - DISJUNTIVISMO EPISTEMOLGICO: UMA SADA PARA O INTERNALISMO?........................................................................................................75

    3.1O que o disjuntivismo epistemolgico?..........................................................76

    3.2Dvidas acerca do componente internalista do disjuntivismo epistemolgico..80

    3.2.1Dvidas acerca da viabilidade do disjuntivismo epistemolgico: trs problemas e trs respostas................................................................................84

    3.3Como e por que rejeitar o internalismo?............................................................89

    CONSIDERAES FINAIS........................................................................................95

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................97

  • 9INTRODUO

    O presente trabalho prope-se a investigar o que caracteriza o

    internalismo epistmico e elucidar suas motivaes centrais, explicitando seus

    principais atrativos e principais dificuldades.

    Visamos apresentar e criticar diferentes respostas acerca da

    especificidade do internalismo epistmico (e, colateralmente, do externalismo

    epistmico). Tal desiderato nos remete s seguintes questes: de um ponto de vista

    internalista, quais as condies capazes de conferir um status epistmico positivo a

    uma crena? O que internalistas tm em mente quando vindicam que a natureza da

    justificao seja interna?

    Sustentamos que o papel epistmico do aspecto interno envolvido na

    justificao tem sido mal compreendido e que externalistas, em suas crticas ao

    internalismo, tm apreciado esse papel de uma maneira apenas parcialmente

    correta. Tambm sustentamos que, embora o internalismo tenha afinidade com as

    preocupaes do projeto epistemolgico tradicional1, o internalismo no se mostra

    capaz de oferecer respostas satisfatrias a elas.

    Fundamentamos essas concluses a partir da anlise da abrangncia,

    limitaes e implicaes da caracterizao mais usual da disputa entre internalistas

    e externalistas, que tomada em termos da exigncia de acessibilidade. Essa

    exigncia prescreve que um agente deve ter algum tipo de domnio reflexivo em

    relao aos fatores que constituem a justificao. Internalistas aderem exigncia

    de acessibilidade, enquanto externalistas no. Apresentamos uma reviso crtica das

    1

    Por projeto epistemolgico tradicional entendemos, em sentido amplo, as reflexesepistemolgicas da filosofia ocidental. Cf. Leite (2005).

  • 10

    posies que caracterizam o internalismo epistmico desta maneira e seus

    opositores, tendo em vista a problematizao da forma como internalismo e

    externalismo vm sendo interpretados.

    O trabalho divide-se em trs captulos.

    O primeiro captulo tematiza uma objeo exigncia de acessibilidade

    demandada pelo internalismo epistmico (BERGMANN, 2006a; 2006b; 2006c). Se

    bem-sucedida, a objeo tem como consequncia que qualquer forma de

    internalismo deve ser rejeitada, pois quaisquer que sejam suas formulaes, de

    modo irremedivel, elas tm implicaes indesejveis. Nomeadamente, se o

    internalista insiste na imprescindibilidade da exigncia de acessibilidade, ele

    levado a um regresso epistmico vicioso; e se o internalista adere a uma forma

    enfraquecida da exigncia de acessibilidade, o internalismo perderia as motivaes

    que primeiramente levam imposio da acessibilidade. Discutimos as crticas feitas

    a Bergmann no que concerne efetividade da objeo. Avaliamos que a objeo

    parcialmente bem-sucedida. Propomos algumas retificaes s consideraes

    alentadas por Bergmann, de modo a estabelecermos a concluso principal.

    No segundo captulo expomos e avaliamos (i) a objeo de Bergmann

    (2006a) quanto caracterizao do mentalismo enquanto internalismo; (ii) a anlise

    dos desideratos e critrios oferecidos pelo autor no que concerne classificao de

    teorias da justificao epistmica; e (iii) a defesa do mentalismo por Conee e

    Feldman (2004), Feldman (2004) e Conee (2007).

    O mentalismo apontado por Conee e Feldman como uma articulao do

    internalismo que melhor preservaria as principais preocupaes internalistas no que

    diz respeito aos aspectos intrnsecos da avaliao epistmica. Esses autores

    consideram tambm que, em termos da oposio geral entre internalismo e

  • 11

    externalismo, o mentalismo gozaria de um maior grau de generalidade em relao

    s formas de internalismo que aderem exigncia de acessibilidade. Sustentamos

    que a defesa do mentalismo por Conee e Feldman falha.

    No terceiro captulo, avaliamos o disjuntivismo epistemolgico2 de

    Pritchard (2012), que prope uma forma de internalismo (disjuntivista) acessibilista.

    Tal proposta, se vivel, tem consequncias substantivas no apenas para a distino

    entre teorias internalistas e externalistas da justificao epistmica. O disjuntivismo

    pode ser a tbua de salvao do internalismo. Em uma palavra, se a anlise

    disjuntivista internalista da justificao epistmica correta, a objeo colocada ao

    internalismo pela adeso exigncia de acessibilidade poderia ser evitada.

    Defendemos, no entanto, que o disjuntivismo epistemolgico forado a abandonar

    uma premissa internalista central para dar conta dos aspectos extrnsecos

    envolvidos na avaliao de crenas. Assim, a ltima sada disponvel ao internalismo

    no se mostra eficaz em resolver as dificuldades que so postas a ele.

    2 A nfase da perspectiva sobretudo em crenas perceptuais.

  • 12

    CAPTULO 1 - O CRITRIO ACESSIBILISTA: O DILEMA DE BERGMANN

    CONTRA O INTERNALISMO EPISTMICO

    Uma maneira usual de definir o internalismo epistmico por meio da

    ideia de acessibilidade, ou, mais precisamente, da exigncia de acessibilidade

    (efetiva ou potencial). O externalismo epistmico, sob esse vis, definido pela

    ausncia da exigncia de acessibilidade. Segundo esse tipo de orientao, um

    internalista deve insistir que um agente tem justificao apenas se hbil em

    identificar os fatores que conferem um status positivo crena. Bergmann designa

    como requisito de conscincia [awareness requirement] esse trao que aponta como

    distintivo do internalismo epistmico.

    A noo relevante de conscincia [awareness] no debate internalismo/

    externalismo em epistemologia no se confunde com a noo de conscincia

    presente em alguns debates em filosofia da mente (por exemplo, conscincia como

    experincia fenomnica, capacidade de formar crenas de ordem superior etc.)3.

    No presente contexto, a noo de conscincia est primariamente

    associada capacidade reflexiva do agente. Chisholm (1988) sintetiza esta ideia da

    seguinte maneira:

    o internalista pressupe que meramente refletindo sobre seu prprioestado de conscincia ele pode formular um conjunto de princpiosepistmicos que permitiro que ele descubra, no que diz respeito aqualquer crena possvel que ele tenha, se ele est justificado em teraquela crena4 (CHISHOLM, 1988; trad. nossa; grifos nossos).

    3 Para uma discusso sobre as diferentes conotaes e problemas envolvendo a noo deconscincia em filosofia da mente, Cf. Marques, 2006, p. 189-193.4 The internalist assumes that, merely by reflecting upon his own conscious state, he can formulate aset of epistemic principles that will enable him to find out, with respect to any possible belief he has,whether he is justified in having that belief (CHISHOLM, 1988, p. 285-286).

  • 13

    Bergmann (2006a; 2006b; 2006c) prope uma objeo geral ao

    internalismo epistmico, que tem como pedra de toque a problematizao do

    requisito de conscincia na forma de um dilema: se a conscincia que o agente 5 tem

    do fator que contribui para a justificao de uma crena forte, ento o internalismo

    envolve um regresso que levaria a uma concluso ctica; se fraca, o internalismo

    perde a motivao inicial de impor o requisito de conscincia. Logo, o internalismo

    no deveria ser endossado.

    Tal dilema tem a pretenso de ser um argumento final contra o

    internalismo epistmico. Seu interesse primrio, para nossos propsitos, consiste

    em analisar as motivaes e a inteligibilidade do internalismo epistmico sob o vis

    acessibilista, uma vez que consideramos que o dilema, bem como as respostas

    colocadas a ele, oferece clareza sobre o cerne das preocupaes internalistas.

    O captulo composto por trs partes.

    Na primeira, delimitamos o objeto da controvrsia entre internalismo e

    externalismo.

    Na segunda, reconstitumos e discutimos o dilema de Bergmann contra o

    internalismo epistmico e avaliamos as respostas de Bonjour (2003; 2006), Crisp

    (2010) e Rogers e Matherson (2011) contra o dilema de Bergmann. Todas as

    respostas tm em comum o fato de rejeitarem um ou outro chifre do dilema. Rogers

    e Matherson rejeitam ambos os chifres. Procuramos demonstrar que as respostas

    de Bonjour, Crisp, Rogers e Matherson falham.

    Na terceira parte, por fim, procuramos sustentar que, apesar do dilema de

    Bergmann oferecer um diagnstico preciso das fragilidades do internalismo, no

    pode ser visto como um argumento final contra o internalismo, em virtude de no

    5 Bergmann utiliza as expresses pessoa ou sujeito em todas as ocorrncias em que explicita estaideia. Optamos por utilizar o termo agente epistmico ou apenas agente por consider-los maisabrangentes.

  • 14

    esgotar as intuies internalistas. Propomos algumas retificaes s consideraes

    alentadas por Bergmann, de modo a consolidarmos a eficcia da objeo.

    1.1 CONTEXTUALIZANDO OS MARCOS DO DEBATE

    Uma ideia que parece estar subjacente a diferentes formas de

    internalismo epistmico a de que, para que uma crena se qualifique como

    justificada, ela no deve apenas possuir certas virtudes, tambm necessrio que o

    agente que a sustenta seja ciente dessas virtudes e se baseie nelas na formulao

    de um juzo. Podemos apreciar esse tipo de sensibilidade em proeminentes formas

    de internalismo, desde as mais robustas, tais como o internalismo de Chisholm o

    qual defende que os desafios do projeto epistemolgico tradicional podem ser

    enfrentados somente a partir de um empenho epistemolgico de cunho

    individualista6 , quanto em formas de internalismo prdigas no que diz respeito

    desonerao das demandas internalistas comuns.

    Propostas hbridas7 que visam reunir as vantagens e, naturalmente, evitar

    as desvantagens que tipicamente so associadas s respectivas partes da disputa,

    independentemente da posio que expressamente favoream, em geral, tm como

    elemento conservador internalista: (a) algum tipo de restrio quanto aos objetos

    que podem assumir o papel de justificadores ou (b) algum tipo de restrio quanto

    aos itens justificadores e relao do agente com esses itens.

    6 A colocao visa explicitar algumas conexes entre posies caracteristicamente internalistas (Cf.Chisholm, 1969; 1982; 1988; 1989. Cf. Foley, 1987; 1993. Cf. tambm Ginet, 1975) e certasorientaes investigativas distintivas do projeto epistemolgico tradicional, que tm em comum umanfase no ponto de vista do agente epistmico na anlise da justificao e do conhecimento.7 So exemplos o externalismo internalista de Alston (1988), o externalismo permeado depreocupaes deontolgicas de Littlejonh (2012) e ainda o disjuntivismo epistemolgico de Pritchard(2012).

  • 15

    preciso notar, contudo, que existem discordncias no mbito do prprio

    internalismo acerca de como devemos interpretar (a) e (b). Quanto a (a), por

    exemplo, se apenas estados mentais que envolvem atributos doxsticos podem

    cumprir o papel de justificadores, ou se estados mentais que no envolvem atributos

    doxsticos podem desempenhar a mesma funo epistmica, ou, ainda, se

    devemos restringir esse papel apenas vida mental8 etc. Quanto a (b), uma

    divergncia recorrente acerca de qual deve ser a relao relevante de um ponto de

    vista epistmico que o agente deve estabelecer com o justificador.

    Dada a diversidade de compreenses, por vezes incompatveis, sobre

    conceitos-chave e problemas-chave de que uma perspectiva internalista da

    justificao epistmica deve se ocupar, pertinente, talvez, nos perguntarmos:

    existe alguma caracterstica que possa ser globalmente compartilhada entre todas

    as formas de internalismo? Se existe, qual o seu papel? Ela nos oferece um critrio

    razovel para distinguirmos as abordagens internalistas das abordagens

    externalistas? Ela capaz de capturar as preocupaes internalistas centrais?

    Alston (1993; 2005) conhecidamente oferece uma objeo que procura

    lanar dvidas sobre a inteligibilidade da controvrsia sob os marcos usualmente

    assumidos por internalistas e externalistas o cerne do debate se d

    prioritariamente sob a perspectiva justificacionista9, isto , internalismo e

    externalismo procuram fornecer uma anlise da natureza e das condies da

    justificao epistmica.

    Alston argumenta que internalistas e externalistas estariam destacando

    diferentes desideratos epistmicos que cooperam para que identifiquemos uma

    8 Cf. Bonjour, 2010a, p. 32-33.9 Aqui acompanhamos a terminologia adotada por Valcarenghi (2008).

  • 16

    crena como qualificada positivamente. Internalistas e externalistas estariam

    enganosamente reunindo-os sob uma mesma designao. Nas palavras de Alston,

    no parece haver comunidade suficiente nas compreenses pr-tericas [de internalistas e externalistas acerca] da natureza dajustificao epistmica que nos permita supor que existe algum itemexclusivamente identificvel sobre o qual eles sustentam diferentesposies. Parece, ao invs disso, que eles esto destacando,enfatizando ou tirando diferentes conceitos, todos chamadosjustificao. Parece [] que eles esto selecionando diferentesdesideratos epistmicos ou pacotes deles, como merecedores dottulo honorfico justificao (ALSTON, 1993; trad. nossa)10.

    Bergmann sustenta que existe uma disputa genuna entre internalistas e

    externalistas. E somente se existe uma disputa genuna entre internalistas e

    externalistas, o dilema tem apelo11.

    De um lado, ele concede que exista mais de um tipo de justificao

    epistmica, no sentido de que ele reconhece que existem diferentes objetos,

    dimenses ou aspectos envolvidos na avaliao epistmica. De outro lado,

    Bergmann sustenta que internalistas e externalistas divergem sobre uma matria

    comum (i.e. as condies necessrias para a justificao). Bergmann defende que

    possvel identificar condies necessrias, mas no condies conjuntamente

    necessrias e suficientes para a caracterizao de uma posio como internalista

    (ou externalista). Assim, a subscrio ao requisito de conscincia identifica apenas

    uma condio necessria para que uma posio possa ser classificada como

    internalista e no suficiente.

    10 [...] There does not seem to be enough commonality in their pre-theoretical understanding of thenature of epistemic justification to warrant us in supposing that there is some uniquely identifiable itemabout which they hold different views. It seems, rather, that they are highlighting, emphasizing,pushing different concepts, all called justification. It seems [...] that they are selecting differentepistemic desiderata, or packages thereof, as deserving of the honorific title justification (Alston,1993, p. 534).11 Assim como Bergmann, ns compreendemos a disputa entre internalistas e externalistas comogenuna. Isto , compreendemos que a correo da anlise do conhecimento e da justificao de umaparte implica a rejeio da anlise do conhecimento e da justificao proposta pela outra parte.Bergmann (2006a) procura oferecer complementarmente uma defesa do externalismo.

  • 17

    Ele articula sua objeo ao internalismo levando em conta um tipo

    determinado de justificao epistmica. Nomeadamente, ele leva em conta uma

    forma de justificao doxstica por oposio justificao proposicional.

    A justificao doxstica relativa crena, enquanto a justificao

    proposicional relativa ao contedo da crena. suficiente para a justificao

    proposicional que um agente disponha de alguma base apropriada favorvel ao

    endosso, rejeio ou suspenso de julgamento acerca de uma dada proposio (ou

    seja, o que est em questo se o agente tem justificao para crer). J a

    justificao doxstica envolve a avaliao da atitude do agente ante a base (o que

    est em questo se o agente cr justificadamente).

    Ele alega que o ncleo da controvrsia entre internalismo e externalismo

    se d em torno de um tipo de justificao doxstica que possui um status epistmico

    positivo superior ao status epistmico formado (e sustentado) de uma maneira no

    culpvel12, mas que insuficiente para a garantia [warrant]. A garantia entendida

    em termos daquilo que distingue o conhecimento da crena verdadeira justificada13.

    Algumas questes conceituais so dignas de ateno. Em especial,

    desejamos expressar que, como entendemos, a posio que Bergmann defende

    acerca do internalismo pode ser classificada como acessibilista14. Por acessibilismo

    (ou internalismo de acesso), tomamos qualquer posio sobre a justificao

    epistmica que prescreva que os elementos que compem a justificao (e algumas

    formulaes mais robustas, o reconhecimento do status de uma crena como12 So exemplos de crenas no culpveis as crenas formadas por um agente em um cenrioepistmico maligno (i. e., um cenrio em que o agente est sujeito ao engano sistemtico).Pressupe-se que crenas formadas e sustentadas por um agente em um cenrio maligno, emcondies em que o mesmo no viola nenhum dever epistmico, qualificam-se positivamente de umponto de vista epistmico (i. e. seu status difere-se, por exemplo, de uma crena sustentada porpensamento desejoso [wishful thinking], e, neste sentido, mais desejvel de um ponto de vistaepistmico).13 Cf. Blaauw, 2005, p. 154; Plantinga, 1992; 1993.14 Bergmann, no entanto, no utiliza os termos acessibilismo ou internalismo de acesso destamaneira.

  • 18

    justificada) se encontram, em maior ou menor medida, sob o domnio reflexivo do

    agente.

    Nosso entendimento acerca do acessibilismo, que inclui a caracterizao

    de Bergmann do internalismo, se coaduna com a caracterizao de Vahid (2011),

    segundo a qual um internalista (acessibilista) deve insistir que

    somente os fatores dos quais um agente tem algum tipo de acessono problemtico, no sentido de estar abrangido pela sua esfera deconscincia, podem ter o papel de justificadores para sua crena. []O internalismo de acesso se apresenta em diferentes variedades ouforas, dependendo de como algum interpreta o tipo de acesso,bem como seus objetos (VAHID, 2011, p. 146; trad. nossa)15.

    Essa ideia encontrada massivamente na literatura, em enunciaes

    variadas, em termos daquilo que o agente pode constatar por reflexo, introspeco

    etc.

    Dada a configurao conceitual exposta, consideramos que, ao

    investigarmos a eficcia e as possveis consequncias da objeo de Bergmann ao

    internalismo, podemos ter um maior entendimento sobre o ncleo das premissas

    internalistas. O que nos oferece elementos para respondermos questo

    norteadora: como e por que rejeitar o internalismo epistmico?

    1.2 UMA OBJEO AO REQUISITO DE CONSCINCIA: EXPOSIO E

    AVALIAO DO DILEMA

    15 [] Only those factors to which an agent has some sort of unproblematic access, in the sense offalling within his sphere of awareness, can play the role of justifiers for his beliefs. [] Acessinternalism comes in different varieties or strengths depending on how one construes the type ofaccess as well its objects (VAHID, 2011, p. 146).

  • 19

    Bergmann (2006a) apresenta o dilema da seguinte maneira16:

    I Uma caracterstica essencial do internalismo que ele faz da

    conscincia efetiva ou potencial de algum fator contribuinte para a justificao uma

    condio necessria para a justificao de qualquer crena sustentada pelo agente.

    II A conscincia requerida pelo internalismo ou uma conscincia forte

    ou fraca.

    III Se a conscincia requerida pelo internalismo a conscincia forte,

    ento o internalismo enfrenta problemas de regresso, levando ao ceticismo radical.

    IV Se a conscincia requerida pelo internalismo a conscincia fraca,

    ento o internalismo vulnervel Objeo da Perspectiva Subjetiva (OPS17).

    Nesse caso, o internalismo perde sua principal motivao para impor o requisito de

    conscincia.

    V Se o internalismo ou leva ao ceticismo radical ou perde sua principal

    motivao para impor o requisito de conscincia (isto , evitar OPS), ento ns no

    deveramos endossar o internalismo.

    VI Logo, ns no deveramos endossar o internalismo18.

    Nos prximos pargrafos, nos dedicamos a avaliar a defesa de Bergmann

    de (I)-(VI).

    A premissa (I) denota precisamente o ncleo da leitura acessibilista de

    Bergmann do internalismo epistmico. Bergmann (2006a) no apresenta uma

    defesa dessa premissa na exposio do dilema. Mas em Bergmann (2006c) so

    16 Bergmann (2006c) possui uma apresentao alternativa do dilema.17 A Objeo da Perspectiva Subjetiva [Subject's Perspective Objection] uma objeo segundo aqual, se o agente, ao sustentar uma crena, no consciente de algo que contribui para ajustificao, ento o agente no capaz de discriminar como o status dessa crena distinto de umpalpite, adivinhao, ou concluso derivada de pensamento desejoso; da perspectiva do agente, um acidente que sua crena seja verdadeira, logo, a crena no seria justificada (BERGMANN,2006a, p. 12). 18 Cf. Bergmann, 2006a, p. 13-14.

  • 20

    apresentadas algumas consideraes sobre a plausibilidade dessa premissa, e,

    portanto, de uma leitura acessibilista do internalismo.

    Bergmann (2006c) inicia avaliando duas afirmaes implcitas no

    enunciado premissa (I). So elas, respectivamente: (i) que, de acordo com o

    internalismo, a conscincia efetiva ou potencial de alguma coisa exigida; e (ii),

    que, de acordo com o internalismo, tal conscincia requerida para o agente.

    Embora aparentemente redundantes, essas afirmaes envolvem

    comprometimentos substantivos.

    Bergmann inicia sua defesa de (i) e (ii) levando em conta formulaes

    alternativas sobre o que definiria o internalismo. Ele nota que uma maneira comum

    de caracterizar o internalismo em termos da posio sobre a justificao que

    sustenta que as condies da justificao so internas19. Em outras formulaes, o

    aspecto interno qualificado como sendo aquilo que relevantemente disponvel

    ao agente de alguma maneira no mediada, direta20.

    Bergmann nota que a fala sobre condies internas s faz sentido se

    permeada de consideraes sobre a especificidade de seu escopo. Em outras

    palavras, o que interno interno a alguma coisa e a relao estabelecida

    necessita ser clarificada21.

    19 Cf. Brown, 2007, p. 13-14; Chisholm, 1989, p. 76; Fumerton, 2007, p. 36.20 Cf. Alston, 1989, p. 188; Bonjour, 2003; Ginet, 1975, p. 34; Pryor, 2001, p. 104; Steup, 1996, p. 84.21 Bergmann prope que o recorte a ser feito deva ser em termos daquilo que interno a adultoshumanos normais [normal adult humans]. Avaliamos que a expresso inapropriada e tambmincorreta. Depreendemos do contexto que, por adultos humanos normais, Bergmann tem em menteagentes epistmicos humanos possuidores de caractersticas intelectuais, lingusticas e conceituais,entre outras, comuns a adultos. Avaliamos que a expresso normal e seus correlatos no trazemganho elucidativo. Ademais, preciso notar que existe uma conotao pejorativa no vocabulriocomum associada negao dessas expresses (por ex., anormal etc.). Realizamos a substituioda expresso adultos humanos normais por agentes epistmicos humanos adultos, observadas asconsideraes ora expostas. Fazemo-lo sem prejuzos exposio e avaliao da argumentaodo autor. Substitumos tambm expresses anlogas, como anormalidade [abnormality] porexpresses pertinentes, de modo a expressar o contedo veiculado fidedignamente. Explicitamoseventuais adaptaes. Preservamos a expresso original na reproduo do texto em lngua inglesa.

  • 21

    O contraste com as teorias externalistas, conforme a maneira aludida de

    caracterizar o internalismo epistmico, dado, por exemplo, pela crtica internalista

    de que a anlise externalista da justificao epistmica tais como a de

    confiabilistas de processo, os quais sustentam ser suficiente para a justificao que

    uma crena satisfaa uma condio externa que envolve uma relao entre os

    processos de formao de crena do agente e as relaes que o agente estabelece

    com mundo22 no satisfaria intuies que estariam ligadas prpria noo de

    justificao. O ponto colocado por Bergmann simples, em suas palavras:

    [isso] sugere que o desacordo entre internalistas e externalistas tema ver com se as condies da justificao so internas: internalistasdizem que as condies necessrias so internas, externalistasdizem que no so23 (BERGMANN, 2006c; trad. nossa).

    Uma maneira de sintetizar o que seria suficiente para que uma posio

    possa ser considerada internalista ante as consideraes apreciadas consistiria no

    seguinte:

    I: Pelo menos uma das condies necessrias da justificao interna

    (isto , interna a agentes epistmicos humanos)24.

    Bergmann pretende mostrar que I no suficiente para que uma posio

    possa ser considerada internalista e busca sua motivao a partir precisamente de

    (i) e (ii). Bergmann argumenta que se I for verdadeiro, um internalista deveria

    assumir que, no seguinte caso, o agente estaria justificado:

    22 Cf. Goldman, 1979; 1986.23 This sort of interchange suggests that the disagreement between internalists and externalists has todo with whether the conditions necessary for justification are internal conditions: internalists say theconditions necessary for justification are internal; externalists say they arent (BERGMANN, 2006c,p.139; grifos do autor).24 At least one of the necessary conditions of justification is internal (i.e., internal to normal adulthumans) (BERGMANN, 2006c, p. 140).

  • 22

    Julie acredita que p. Esta crena satisfaz cada uma das condiesque so conjuntamente necessrias e suficientes para a justificao.Ademais, todas estas condies so internas, na medida em que sointernas a [agentes epistmicos humanos]. Mas Julie no [possui ascaractersticas tpicas de um agente epistmico humano]. Comoresultado de sua [condio], nenhuma das condies necessriaspara a justificao so internas a ela. Com efeito, a crena de Julieque p est justificada mesmo ela no estando consciente (oupotencialmente consciente) de alguma coisa que contribui parajustificao de sua crena que p. O que importante para ajustificao que sua crena satisfaz cada uma das condiesnecessrias para a justificao no que qualquer dessas condiesou qualquer coisa que contribua para justificao de sua crena sejainterna a ela (embora seja verdadeiro que cada dessas condiesacontea de ser interna a [agentes epistmicos humanos])(BERGMANN, 2006c, trad. nossa; com adaptaes)25.

    Atribuir justificao a Julie, argumenta Bergmann, nessas circunstncias,

    de um ponto de vista internalista, seria inadmissvel. Mas por qual razo?

    Outra maneira de entender as motivaes internalistas sem cometer

    uma petio de princpio que favorea uma leitura acessibilista do internalismo

    pela reflexo acerca das preocupaes da epistemologia tradicional. O projeto

    epistemolgico tradicional tenta responder questes como a da possibilidade de

    respondermos, de maneira epistemicamente responsvel, por nossas alegaes de

    conhecimento26.

    25 Julie believes that p. That belief satisfies each of the conditions that are together necessary andsufficient for justification. Furthermore, all of these conditions are internal conditions insofar as theyare internal to normal adult humans. But Julie isnt normal. As a result of her abnormality, none of thenecessary conditions of justification is internal to her. In fact, Julies belief that p is justified eventhough she isnt aware (or potentially aware) of anything that contributes to the justification of herbelief that p. Whats important for justification is that her belief satisfies each of the necessaryconditions of justification not that any of these conditions or anything contributing to the justificationof her belief is internal to her (though its true that each of these conditions happens to be internal tonormal adult humans) (BERGMANN, 2006c, p. 140).26 Observamos, assim, uma forte conexo entre o internalismo e os problemas clssicos doconhecimento. J no que diz respeito s motivaes ou pressupostos do externalismo no cenrioepistemolgico, quais seriam elas? O externalismo epistmico tem como uma premissa bsica, aideia de que fatores ou processos que so parcial ou inteiramente externos perspectiva cognitiva doagente contribuem para a justificao da crena (Cf., por exemplo, BONJOUR, 2010b, p. 203). Oexternalismo epistmico tem sido associado ao projeto do naturalismo epistemolgico (Cf.ABRANTES; BENSUSAN, 2003; GOLDMAN, 1998; KORNBLITH, 2002; KVANVIG, 2010; WILLIAMS,2004). Tipicamente, essas abordagens rejeitam o apriorismo, privilegiam o falibilismo e chamam aateno para relaes (nomolgicas, etiolgicas, causais, entre outras) entre o agente e o ambiente,na anlise da justificao epistmica.

  • 23

    Tal projeto, epitomado por Descartes (por exemplo, nas Meditaes

    (2004)), ocupa ainda grande centralidade na investigao epistemolgica. Bonjour

    (2010; cf. tambm BONJOUR; SOSA, 2003), por exemplo, ao defender um retorno

    ao fundacionismo (no seu caso, um fundacionismo internalista), concebe-o como

    uma maneira adequada de lidar com questes recalcitrantes, como o problema do

    regresso quanto para a justificao de crenas empricas. Goldman (1980) observa

    que a epistemologia tradicional [...] tem sido predominantemente internalista ou

    egocntrica (GOLDMAN, 1980, p. 32; grifo do autor; trad. nossa), no sentido de o

    ponto de partida para a investigao ser de dentro para fora. Ou seja, na

    epistemologia tradicional, o agente, a partir de si, constri o conhecimento. Essa

    concepo tem sido acusada de colocar problemas insolveis ao implicar,

    alegadamente, concluses cticas, devido alta exigncia da satisfao de suas

    condies27 ou, ainda, de ser demasiado intelectualista28.

    Por outro lado, deparamos com os questionamentos internalistas quanto

    capacidade de o externalismo oferecer uma soluo adequada para esses

    problemas. Internalistas como Fumerton (1988; 1990; 1995), Bonjour (1980, 1985) e

    Stroud (1989; 1994) rejeitam que essas abordagens o faam. O externalismo

    epistmico acusado, por sua vez, de [...] estar mudando de assunto [...] ou, no

    melhor caso, ter oferecido uma resposta insatisfatria questo tradicional (LEITE,

    2005; trad. nossa). No entanto, por que exatamente abordagens externalistas

    ofereceriam uma resposta insatisfatria a tais questes?29

    Bonjour (1980) aponta que, no cenrio epistemolgico tradicional, no

    pareceria razovel a qualquer proposta construtiva acerca do conhecimento tomar

    27 Cf. Bergmann, 2006a; Bonjour, 2010a, p. 365.28 Cf. Vahid, 2011, p. 150.29 Cf. Leite, 2005; Schmitt, 1992.

  • 24

    para a justificao de uma crena fatos ou relaes externas sob a perspectiva do

    agente, pois elas seriam demasiadamente frgeis, enquanto suporte epistmico.

    Como o cenrio cartesiano indica, a crena na mera fiabilidade do mundo no

    suficiente o crente pode estar enleado de modo sistemtico. Para Bonjour, as

    relaes externas possuem um papel na justificao somente na medida em que

    so acompanhadas pelas razes que o agente possui para sustent-las (BONJOUR,

    1980, p. 56). A partir dessas ponderaes, podemos compreender melhor as razes

    de Bergmann em afirmar que I no satisfaria os requisitos tipicamente internalistas.

    Bergmann prope, ento, um ajuste em I, que resulta em I30.

    I: Pelo menos uma das condies necessrias para a justificao

    interna ao sujeito (isto , pessoa que sustenta a crena em questo)31.

    De maneira semelhante, o autor procura demonstrar que a I no faz jus

    plenamente s intuies internalistas. Bergmann argumenta que se I for verdadeiro,

    um internalista deveria assumir que, no seguinte caso, o agente estaria justificado, o

    que tambm seria inadmissvel, sob uma perspectiva internalista:

    Tanner acredita que p. Esta crena satisfaz cada uma das condiesnecessrias para a justificao. Ademais, cada uma dessascondies (contingentemente) interna a Tanner. No entanto, existeum mundo possvel no qual Tanner acredita que p e sua crena quep satisfaz cada uma das condies necessrias para a justificao,embora nenhuma dessas condies seja interna a ele. Neste mundo,a crena de Tanner que p justificada mesmo se ele no consciente (ou potencialmente consciente) de qualquer coisa quecontribua para a justificao de sua crena que p. O que importapara a justificao que a crena em questo satisfaz cada uma dascondies necessrias para a justificao no que qualquer dessas

    30 No trecho, no realizamos a substituio das expresses sujeito ou pessoa por agenteepistmico ou expresso anloga. Isso porque o contraste que o autor prendeu estabelecer entre I eI poderia ser elipsado com a substituio.31 At least one of the necessary conditions of justification is internal to the subject (i.e., to the personholding the belief whose justification is at issue) (BERGMANN, 2006c, p. 140).

  • 25

    condies (ou qualquer coisa que contribua para a justificao dacrena) seja interna pessoa que sustenta a crena. Apenas ocaso que no mundo atual cada uma das condies necessrias paraa justificao interna a Tanner (BERGMANN, 2006c; trad. nossa)32.

    Bergmann sustenta que os casos apresentados ilustram respectivamente,

    (i) e (ii). O primeiro caso fornece apoio ideia de que, de um ponto de vista

    epistmico, a caracterstica principal do fator interno que ele diz respeito vida

    mental consciente do agente. O segundo caso fornece apoio ideia de que deve

    haver uma conexo necessria entre esses fatores e a relao estabelecida com o

    agente33. Bergmann prope que interpretemos a relao de acesso que o agente

    tem com os fatores que contribuem para a justificao de uma crena em termos da

    conscincia efetiva ou potencial que o agente tem desses fatores. Assim, Bergmann

    conclui que uma condio necessria, mas no suficiente, para que uma abordagem

    seja internalista a seguinte:

    I A crena B de um agente est justificada somente se: existe alguma

    coisa X que contribui para a justificao de B por exemplo, indcios para B ou

    indicadores de verdade para B ou a satisfao de alguma condio necessria para

    a justificao de B e o agente consciente (ou potencialmente consciente) de X

    (BERGMANN, 2006a, p. 141).

    32 Tanner believes that p. That belief satisfies each of the necessary conditions of justification.Furthermore, each of these conditions is (contingently) internal to Tanner. However, there is a possibleworld in which Tanner believes p and his belief that p satisfies each of the necessary conditions ofjustification although none of those conditions is internal to him. In that world, Tanners belief that p isjustified even though he isnt aware (or potentially aware) of anything that contributes to thejustification of his belief that p. What matters for justification is that the belief in question satisfies eachof the conditions necessary for justification not that any of those conditions (or anything contributingto the belief s justification) is internal to the person holding the belief. It just happens to be the casethat, in the actual world, each of the necessary conditions of justification is internal to Tanner(BERGMANN, 2006c, p. 140-141).33 Essa afirmao no necessita ser tomada de modo categrico. Diferentes formas de internalismopodem divergir acerca de como essa relao se d. Cf. Alston, 1971.

  • 26

    Se I de fato uma condio necessria para que uma abordagem seja

    internalista, ento a premissa (I) verdadeira. Assim, Bergmann conclui a defesa da

    premissa (I).

    A premissa (II) Bergmann (2006c) argumenta que dispensa defesa,

    apenas por uma questo programtica. Alguns comentrios so necessrios. O que

    significa conscincia forte e conscincia fraca no presente contexto? O autor

    esclarece que por conscincia forte devemos entender um tipo de conscincia que

    envolve a concepo ou apreciao da parte do agente que um determinado fator

    relevante para a justificao ou verdade da crena sustentada. Por conscincia fraca

    devemos entender um tipo de conscincia que no envolve a concepo ou

    apreciao da parte do agente que um determinado fator relevante para a

    justificao ou verdade da crena sustentada. Bergmann (2006a) explicita que a

    chamada conscincia forte envolve a aplicao de conceitos. Ter conscincia de X,

    assim, envolve a posse do conceito X. A chamada conscincia fraca, em oposio,

    no envolve a posse de conceitos animais no humanos sencientes partilham este

    segundo tipo de conscincia. Bergmann nota que humanos podem,

    semelhantemente, ser conscientes de suas experincias, sem a articulao

    conceitual; no entanto, somente humanos teriam a capacidade de tornarem-se

    conscientes de forma conceitual.

    A premissa (III) o primeiro chifre do dilema. Bergmann (2006c) distingue

    as verses doxsticas e no doxsticas da conscincia forte, e distingue ainda seu

    carter, entre efetivo e potencial. A conscincia forte doxstica envolve a crena de

    que o objeto de conscincia de alguma maneira relevante para a justificao ou

    verdade de uma crena-alvo (BERGMANN, 2006c, p. 14; grifos do autor) e a verso

    no doxstica aquela que meramente no envolve atributos de natureza avaliativa.

  • 27

    Se efetiva, o agente deve levar a cabo de fato as exigncias impostas pelo requisito

    de conscincia, se potencial, o agente deve apenas ter a capacidade de faz-lo.

    Bergmann argumenta que as verses doxsticas da conscincia forte

    levam a problemas de regresso, que por sua vez, tm consequncias cticas, visto

    que isso implica que poucas ou nenhumas das crenas que sustentamos em

    contextos ordinrios so justificadas, pois elas no cumpririam os requisitos

    internalistas. O autor sustenta que o apelo a verses doxsticas que envolvam a

    mera capacidade do agente, bem como as verses no doxsticas, no capaz de

    oferecer uma resposta robusta ao problema colocado. A cada subtipo relevante de

    conscincia, corresponde uma formulao particular do requisito de conscincia.

    Avaliamos primeiramente os argumentos de Bergmann acerca de como

    as verses doxsticas da conscincia forte levam a problemas de regresso.

    conscincia forte doxstica efetiva corresponde a seguinte formulao

    do requisito de conscincia:

    Requisito de conscincia forte doxstica efetiva: A crena C deum agente justificada se: existe alguma coisa X que contribui paraa justificao de C e o agente efetivamente consciente de X de talmaneira que o agente cr justificadamente que X em algum sentidorelevante para a adequao da sustentao da crena C(BERGMANN, 2006c, p. 14-15).

    pertinente observarmos a segunda parte da clusula. Por que o sujeito

    deve crer justificadamente acerca do papel epistmico de X (e se ele desempenha

    de modo eficaz esse papel)? Podemos nos questionar: esse tipo de compromisso

    coerente com as demandas de uma perspectiva internalista? Ou ainda, no

    estaramos atacando uma caricatura do internalismo ao imputarmos a ele tais

    exigncias, ao onerar o agente em deveres epistmicos pouco plausveis de serem

    cumpridos?

  • 28

    O autor procura oferecer elementos a uma resposta positiva primeira de

    nossas questes e uma negativa para a segunda. Ele argumenta que uma

    perspectiva internalista tpica no seria facilmente impressionada pela mera crena

    da parte do agente acerca do papel desempenhado por X. Um internalista deve

    insistir que o agente deve, de alguma maneira, reconhecer a relao justificatria

    relevante. Ou seja, no basta apenas que um agente disponha de indcios que

    suportem a verdade de uma determinada alegao de conhecimento, por exemplo,

    de que a biblioteca fecha s 23 horas e 45 minutos. Se entendermos a noo de

    indcios de uma maneira suficientemente amigvel ao internalismo, de modo a

    contar uma lembrana como um indcio34, notamos que o internalista julga que

    necessrio tambm que o agente creia que essa lembrana fivel, e que ele tem

    mais razes para sustentar que os indcios que lhe so disponveis fornecem um

    suporte apropriado para crena de que a biblioteca fecha s 23 horas e 45 minutos

    do que para no assentir a esse entendimento ou suspender o juzo.

    O problema de regresso instaurado pelo Requisito de conscincia forte

    doxstica efetiva agora inevitvel. Segundo o requisito, o agente deve ter uma

    crena justificada' com relao a um fator X que contribui para a justificao da

    crena do agente em C. Assim, temos que:

    P: X de alguma maneira relevante adequao da sustentao de C35.

    Isto, por sua vez, tem a implicao de que para que a crena P seja

    justificada, o agente deve ter uma crena justificada'' a respeito de um fator X que

    contribui a crena de P.

    34 Conee e Feldman (2004) so favorveis a uma interpretao lata da noo de indcio [evidence].35 Cf. Bergmann, 2006c, p. 15.

  • 29

    P: X , de alguma maneira, relevante adequao da crena de que 'X

    , de alguma maneira, relevante adequao da sustentao de C'.

    De modo semelhante, temos que para que a crena em P seja

    justificada, o agente deve ter uma crena justificada''' com relao a um fator X que

    contribui para a justificao da crena do agente em P:

    P: X de alguma maneira relevante para a adequao da crena de que

    'X de alguma maneira relevante para a adequao da crena de que 'X de

    alguma maneira relevante para a adequao da sustentao de C''.

    Podemos prosseguir indefinidamente questionando as credenciais

    epistmicas dos elementos envolvidos na cadeia justificatria. E precisamente por

    isso que o Requisito de conscincia forte doxstica efetiva implica um regresso,

    que, como nota Bergmann, de complexidade crescente. Qualquer agente

    epistmico com as caractersticas de um humano adulto dificilmente poderia

    acompanhar muitos passos de tal cadeia.

    O autor pede que consideremos, ento, a verso da conscincia forte

    doxstica potencial. O requisito de conscincia, neste caso, pode ser expresso da

    seguinte maneira:

    Requisito de conscincia forte doxstica potencial: A crena C de um

    agente justificada se: existe alguma coisa X que contribui para a justificao de C

    e o agente capaz a partir da reflexo apenas ser consciente de X de tal maneira

  • 30

    que o agente cr justificadamente que X em algum sentido relevante para a

    adequao da sustentao da crena C36.

    O que esta formulao traz de novo em relao ao Requisito de

    conscincia forte doxstica efetiva? Qual precisamente a natureza da

    potencialidade aludida nessa formulao? Bergmann afirma que o sentido

    relevante o das capacidades cognitivas humanas. Assim, no est em questo a

    possibilidade lgica ou metafsica de o agente cumprir o requisito. A expresso a

    partir da reflexo apenas ilustra precisamente o tipo de operao cognitiva que est

    pressuposta que abrange somente aquilo que o agente pode, a partir de um

    esforo intelectual, alcanar.

    Ainda que soe vaga, essa formulao consegue capturar nuanas de

    ideias defendidas por diferentes internalistas, como a de que a justificao

    epistmica deriva de um esforo deliberado do agente e somente se ele procede de

    maneira adequada, a partir daquilo que lhe disponvel (por exemplo, o raciocnio

    indutivo ou dedutivo, sua memria, introspeco etc.), podemos atribuir mrito

    epistmico crena parte da crtica internalista contra o externalismo diz respeito

    alegada trivialidade que seria incutida pela anlise externalista da justificao, que

    faria com que qualquer crena pudesse facilmente qualificar-se positivamente

    deriva desta concepo37.

    O Requisito de conscincia forte doxstica potencial consegue evitar

    o problema de regresso e as concluses cticas que se decorrem? Bergmann

    oferece uma resposta negativa. Para cada srie Pn de crenas, o agente s

    justificado em sustentar a crena-alvo C se capaz de crer justificadamente em Pn.

    36 Cf. Bergmann (2006c, p. 16; grifos do autor).37 Cf. Cohen (2002) e Vogel (2000).

  • 31

    Ou seja, a fala acerca da mera potencialidade no capaz de inibir o regresso,

    novamente, o internalista est diante de uma demanda irrealizvel. Ambos os

    regressos implicados compartilham a caracterstica de exigirem do agente crenas

    de complexidade crescente observado o fato que cada crena pode ocorrer uma

    vez na srie.

    Bergmann nota que uma maneira como alguns internalistas tentam evitar

    os problemas implicados pelo Requisito de conscincia forte doxstica efetiva e

    pelo Requisito de conscincia forte doxstica potencial abrindo mo da

    insistncia sob o carter doxstico da conscincia. Em uma palavra, o

    entendimento de que talvez o tipo de conscincia relevante de um ponto de vista

    epistmico no envolva crenas. Como podemos fazer sentido dessa ideia?

    Internalistas como Moser (1989) propem uma distino entre aquilo que temos

    chamado de conscincia forte doxstica e aquilo que designa conscincia

    conceitual. A ltima envolveria a categorizao de um fator X que contribui para a

    justificao sem um julgamento de sua natureza. Assim, X identificvel e passvel

    de classificao, sem, contudo, envolver, da parte do agente, uma mediao

    avaliativa de um tipo que envolva crenas ou opinies. Bergmann nota, no entanto,

    que o apelo a esse tipo de conscincia no evita os problemas anteriormente

    identificados. Isso se deve ao fato de que o ato do agente, ao identificar X e

    classific-lo de certa maneira, isto , vindicando que X o caso e possui

    caractersticas de individuao, pode ser, semelhantemente, correto ou incorreto, e

    portanto, justificado ou injustificado.

    O autor prope a seguinte verso do requisito de conscincia para a

    conscincia forte no doxstica efetiva:

  • 32

    Requisito de conscincia forte no doxstica efetiva: A crena C ou

    conceito de aplicao Y justificado se: existe alguma coisa X que contribui para a

    justificao de Y e o agente consciente de X de tal maneira que o agente

    justificadamente aplica o conceito de ser de alguma maneira relevante para a

    adequao de Y38.

    A conscincia forte no doxstica efetiva tambm induz a um regresso,

    ainda que no seja um regresso de crenas, mas um regresso de conceitos de

    aplicao. O apelo conscincia forte no doxstica potencial no de ajuda, pois

    sujeita s mesmas consideraes que a conscincia forte doxstica potencial.

    Assim, o Requisito de conscincia forte no doxstica efetiva tambm possui

    implicaes cticas.

    Ao demonstrar que qualquer tipo de conscincia forte envolve um

    regresso e que por isso tem consequncias cticas, Bergmann conclui sua defesa

    da premissa (III).

    Antes de expor a premissa (IV), gostaramos de fazer algumas

    consideraes sobre as consequncias cticas implicadas pelo regresso, bem como

    internalistas e externalistas se colocam em relao ao desafio ctico.

    Como vimos, o internalismo possui uma forte afinidade com o projeto

    epistemolgico tradicional, que marcado pela reabilitao da figura do ctico, que

    neste cenrio ocupa uma funo metodolgica primordial.

    O externalismo, por sua vez, mantm-se no bojo desta herana, ainda

    que como antagonista. E como nota Vahid (2001), as respostas de internalistas e

    externalistas ao desafio ctico tm sido usadas como material, pelas respectivas

    38 Cf. Bergmann (2006c, p. 17; grifos do autor).

  • 33

    partes, para uma reductio ad absurdum das posies elas mesmas (VAHID, 2011, p.

    153).

    De um lado, externalistas sustentam que a anlise internalista da

    justificao tem como implicao que poucas ou nenhuma das nossas crenas so

    justificadas. Portanto, o internalismo no oferece uma resposta ao ceticismo; ao

    invs disso, tem precisamente implicaes cticas. De outro lado, internalistas

    sustentam que a anlise externalista da justificao ou oferece um critrio

    trivializante, ou meramente comete uma mudana dialtica ilcita. A concluso

    extrada pelo internalista , semelhantemente, de que o externalismo no oferece

    uma resposta satisfatria ao ceticismo; ao invs disso, tem consequncias cticas.

    O que explica esse impasse? Ele possui alguma soluo? Cremos que o

    impasse pode ser explicado, ao menos parcialmente, pelo fato de que a gnese das

    epistemologias internalistas e externalistas eminentemente positiva, isto ,

    somente pela pressuposio de que temos conhecimento de fato, que uma posio

    que contrarie esta intuio deve ser rejeitada.

    Bergmann (2006a) considera a possibilidade de o internalista aceitar as

    concluses cticas implicadas, no entanto, negando que o internalismo deva ser

    rejeitado. Ou seja, Bergmann prope que consideremos uma situao tal que um

    internalista aceita a premissa (III) e, no entanto, no est disposto a aceitar as

    premissas (V) e (VI) ao menos em relao s assunes vinculadas ao primeiro

    chifre. Bergmann procura dar inteligibilidade a este cenrio motivando-o a partir de

    uma reflexo sobre o problema do critrio39.

    Podemos entender o internalista como um metodista, isto , o internalista

    prope que, a partir de uma familiaridade prvia em relao a um dado critrio para

    a justificao, podemos avaliar o status epistmico de um dado conjunto de crenas.

    39 Cf. Chisholm, 1982, 1989.

  • 34

    O critrio internalista o da imposio do requisito de conscincia, se o requisito

    tem consequncias cticas, ainda assim, no teramos razo para abandonar o

    internalismo. A pressuposio da correo do critrio de que ele capaz de

    capturar as nuanas essenciais do conceito prevalece em relao s intuies

    otimistas acerca do status epistmico das crenas ordinrias; se, de acordo com ele,

    nenhuma das nossas crenas ordinrias se qualifica como justificada, teramos de

    aceitar esta consequncia. Bergmann nota que tal critrio tem como implicao que,

    se correto, qualquer agente epistmico que possua recursos cognitivos, conceituais

    e lingusticos limitados, como o caso de adultos humanos, jamais poderia estar

    justificado. E plausvel pensarmos que o conceito de justificao que interessa a

    internalistas e externalistas pode ser exemplificado no tipo de agente aludido. E

    neste sentido, esta possvel sada internalista no se mostra de interesse, no

    presente contexto.

    A premissa (IV) o segundo chifre do dilema. Bergmann sustenta que

    tanto a verso conceitual quanto a verso no conceitual da conscincia fraca so

    sujeitas a (OPS) a conscincia fraca conceitual envolve a aplicao de conceitos,

    enquanto a conscincia fraca no conceitual no a envolve.

    Contra a verso da conscincia fraca no conceitual, Bergmann prope

    que raciocinemos a partir do seguinte caso: suponhamos que algum um

    externalista do tipo confiabilista, e que, portanto, sustenta que as condies

    necessrias e suficientes da justificao epistmica so uma funo de processos

    confiveis de formao de crena.

    Seja considerado o caso de um dado agente, Jack. Uma crena C de

    Jack produzida por um processo confivel de formao de crena. C uma

    instncia de um tipo de processo confivel de formao de crena. Se o confiabilista

  • 35

    admite a robustez de (OPS), bastaria a imposio da conscincia fraca no

    conceitual? Ou seja, essa estratgia evita a concluso de que, do ponto de vista

    subjetivo de Jack, o status de sua crena C no se difere do de uma crena C' que

    uma instncia de um tipo de processo no confivel de formao de crena? O

    autor defende que no. Uma vez que, mesmo que Jack tenha uma conscincia fraca

    no conceitual do tipo processo confivel de formao de crena, possvel que

    Jack no o conceba como relevante, em algum sentido, para a sustentao da

    crena C; neste caso, uma coincidncia da perspectiva de Jack que sua crena

    seja justificada. Se considerarmos a conscincia fraca conceitual, o fato de Jack ter

    a capacidade de aplicar conceitos compatvel com a possibilidade de que ele no

    aplique o conceito relevante, uma vez que somente o requisito de conscincia forte

    capaz de garantir que o agente aplica de fato o conceito adequado.

    (OPS) em geral colocada como uma objeo s perspectivas

    externalistas, em especial, o confiabilismo, contra a ideia de que a satisfao de

    uma condio externa suficiente para a justificao.

    O ncleo de (OPS) envolve a assuno de que a satisfao de condies

    externas no suficiente para a justificao devido atitude do agente ser

    suscetvel, ou ao menos compatvel, com a irracionalidade epistmica e com o

    acaso epistmico.

    O aval epistmico concebido pelo externalista pressupe que a existncia

    de garantias negativas capaz de qualificar uma crena como justificada, enquanto

    o internalista compreende que somente garantias positivas (razes, indcios) podem

    cumprir essa funo. O requisito de conscincia, em qualquer de suas verses, tem

    como propsito estabelecer a funo de garantia positiva. O ponto de Bergmann

  • 36

    que a conscincia fraca no capaz de cumprir esse propsito, e, precisamente, por

    essa razo sujeita ao mesmo tipo de crtica que o externalismo.

    Assim se encerra a defesa da premissa (IV).

    As premissas (V) e (VI) seguem as demais.

    1.2.1 Avaliando respostas contra o dilema de Bergmann

    Nesta seo analisamos algumas respostas oferecidas ao dilema, bem

    como oferecemos uma anlise de suas motivaes e sua eficcia contra o dilema.

    1.2.1.1 Bonjour x Bergmann: uma sada fundacionista?

    Uma maneira pela qual podemos compreender o fundacionismo como

    uma teoria sobre a arquitetura ou estrutura do conhecimento ou da justificao, que

    afirma existirem dois tipos elementares de crenas, as bsicas e as no bsicas. As

    crenas bsicas no derivam de outras crenas e so entendidas ou como

    autojustificadas ou como no carecendo de justificao em algumas formulaes. As

    crenas no bsicas seriam todas as outras crenas que no possuem essas

    qualidades40. O status epistmico das segundas depende do status das primeiras.

    Conforme este tipo de compreenso, uma determinada crena emprica C ser

    justificada se ela deriva de uma cadeia de crenas que possua a crena C' em sua

    origem, sendo que C' portadora de qualidades epistmicas excelentes (por ex.,

    verdade, certeza, entre outras) que se estendem cadeia. O fundacionismo se ope

    40 Cf. Audi, 1993; Huemer, 2010, p. 22-33.

  • 37

    tipicamente ao coerentismo, ao infinitismo41 e ao contextualismo42, ainda que

    historicamente o ncleo da discusso tenha se dado, com prioridade, entre o

    fundacionismo e o coerentismo.

    As formas mais proeminentes tanto do internalismo quanto do

    externalismo sobre justificao apresentam-se articuladas em termos de uma teoria

    fundacionista. Embora existam, naturalmente, tambm formas de internalismo

    coerentistas, trataremos aqui apenas das formas fundacionistas do internalismo.

    Nesta seo, analisamos a defesa do Bonjour do fundacionismo

    internalista e a resposta de Bonjour (2006) ao dilema de Bergmann (2006a; 2006b).

    Bonjour conhecidamente talvez um dos maiores defensores do

    fundacionismo internalista e, paradoxalmente, um de seus maiores detratores.

    Bonjour (1980), ainda na poca que defendia uma verso coerentista de

    internalismo, colocava uma objeo fundamental contra o fundacionismo internalista

    que dizia respeito ao suposto regresso epistmico implicado por ele. No entanto, a

    partir de sua virada fundacionista, Bonjour passa a defender que a rejeio do

    fundacionismo internalista que motivaria primeiramente a adeso ao coerentismo

    internalista e ao externalismo (fundacionista) e que essas posies no ofereciam

    respostas adequadas aos problemas centrais da epistemologia.

    Assim, a tarefa precpua de Bonjour defender o fundacionismo da

    objeo do regresso epistmico, outrora identificada por ele. Uma resposta a essa

    objeo deve irremediavelmente tratar de dois problemas-chave fundamentais que

    se colocam a qualquer perspectiva fundacionista acerca do conhecimento ou da

    justificao. Um deles o da elucidao na natureza das crenas bsicas, isto , de

    que maneira essas crenas podem desempenhar o papel de garantia epistmica

    41 Cf. Klein, 1998; 1999; 2005.42 Cf. Feldman, 2010, p. 10-22.

  • 38

    para as crenas no bsicas ou nos termos de Bonjour (2001; 2003), que o

    fundacionista deve se ocupar de demonstrar que existem ou podem existir crenas

    fundacionais que desempenham funo relevante, tal como o internalismo

    fundacionista alega. O outro a elucidao da natureza e condies, e qual a

    relao justificacional entre as crenas bsicas (que, em sua formulao, dizem

    respeito aos estados de conscincia do agente) e no bsicas (por exemplo,

    crenas a respeito de objetos fsicos).

    Ao examinarmos as respostas fundacionistas a esses problemas,

    esclarecemos colateralmente quais as motivaes do endosso ao fundacionismo.

    Bonjour (2001; 2003; 2006), em seu recuo fundacionista, alega que somente o

    fundacionismo capaz de fazer justia s consideraes sobre a racionalidade das

    crenas empricas e oferecer uma resposta ao ceticismo.

    No que diz respeito ao problema da elucidao da natureza das crenas

    bsicas, Bonjour observa que as crenas bsicas no podem ser crenas empricas.

    Se elas o fossem, para que um agente pudesse sustent-las racionalmente, deveria

    oferecer um suporte a ela, e, por essa razo, a crena bsica perderia o seu carter

    fundacional.

    Bonjour prope que o carter epistemicamente positivo das crenas

    bsicas seja explicado pelo apelo experincia. As crenas bsicas para Bonjour

    so crenas contingentes que devem preservar o aspecto da condutibilidade

    verdade. A estratgia de Bonjour difere em alguns aspectos de propostas

    fundacionistas internalistas, como as de Lewis (1946) e Fumerton (1995). Esses

    ltimos propem que o carter epistemicamente positivo das crenas bsicas seja

    explicado por uma relao de apreenso direta [direct apprehension] ou

    familiaridade [direct acquaintance] da crena bsica com o contedo da experincia

  • 39

    do agente. Isso porque se insiste que da [...] conscincia da coincidncia do

    contedo [da crena bsica] com o valor assertivo com a proposio (GALLINA,

    2010, p. 24) que o status de uma crena no bsica determinado. A partir disso,

    compreendemos, com mais exatido, o papel desempenhado pela crena bsica.

    Segundo Bonjour, teorias da apreenso direta ou familiaridade seriam

    uma resposta insatisfatria objeo ao regresso colocada ao fundacionismo devido

    falta de clareza sobre a natureza do ltimo elemento da trade experincia-crena

    bsica-apreenso. Em suas palavras,

    a figura sugere que na situao da crena fundacional existem ostrs seguintes elementos distinguveis. Primeiro, existe a experinciasensorial ela mesma. Segundo, existe a alegada crena bsica oufundacional, cujo contedo, eu irei assumir, diz respeito a algumaoutra caracterstica ou aspecto da experincia. E terceiro, existe oque parece ser o outro ato mental de algum tipo distinto da crena, oato de apreenso ou familiaridade direta com a experincia sensoriale suas caractersticas relevantes. E este outro ato mental que deveprover a razo para a pessoa pensar que sua crena verdadeira(BONJOUR, 2003, p. 17; trad. nossa)43.

    Bonjour sugere uma resposta ao dilema contra o fundacionismo.

    Observe que as posies aludidas aqui podem ser classificadas como

    internalistas por aderirem a uma formulao do requisito de conscincia.

    Bonjour avalia que nessas formas de fundacionismo, o dilema se coloca

    de modo inevitvel, pois sempre possvel questionar sobre o status epistmico do

    segundo ato mental (ou mesmo avali-lo como adequado ou inadequado, etc.). Isso

    nos remeteria a um terceiro ato mental e assim por diante o que no uma

    concluso desejvel. Este o primeiro chifre do dilema. Do outro lado, temos que se

    43 The picture it suggests is that in a situation of foundational belief, there are the following threedistinguishable elements. First, there is the relevant sensory experience itself. Second, there is theallegedly basic or foundational belief, whose content, I will assume, pertains to some feature or aspectof that experience. And third, there is what appears to be a further mental act of some kind that isdistinct from the belief, an act of direct apprehension of or immediate acquaintance with the sensoryexperience and its relevant features. And it is this further mental act that is supposed to provide thepersons reason for thinking that the belief is true (BONJOUR, 2003, p. 17).

  • 40

    sustentado que esse segundo ato mental no natureza cognitiva ou avaliativa, o

    regresso evitado; no entanto, de que maneira que ele colaboraria para o xito

    epistmico? Em outros termos, de que maneira um ato mental no cognitivo

    conferiria um status epistmico positivo s crenas no bsicas? Ademais, nesse

    cenrio, a natureza das crenas bsicas ainda permanece obscura.

    Bonjour vindica que em virtude da natureza consciente das crenas, o

    agente provido de uma instncia de parada, assim o regresso evitado. Nisto

    consiste o elemento internalista da soluo ao problema do regresso ao

    fundacionismo. Gallina (2010) sintetiza a soluo de Bonjour nos seguintes termos:

    O acesso ao elemento justificador autoriza o reconhecimento de queesse elemento fundamental para as demais crenas. Essa posio o que caracteriza seu internalismo como sendo de acesso [...].[Bonjour] estabelece como elemento justificador um contedodescritivo, uma proposio cujo acesso no mais uma introspecodo agente, mas um insight racional, guiado por uma espcie deconscincia da verdade intrnseca ao estado doxstico, umaconscincia que constitui a crena enquanto tal (GALLINA, 2010, p.23).

    Se correta a proposta de Bonjour, uma elegante sada ao dilema contra

    o fundacionismo. Admitamos por um momento que isso seja verdadeiro. As

    consideraes de Bonjour acerca da natureza da crena bastariam para dissolver o

    dilema de Bergmann contra o internalismo? Bergmann (2006a) nota que, de acordo

    com Bonjour (2001, 2003, 2006), a determinao do status de uma crena emprica

    C envolve a conscincia de uma experincia sensorial E e a adequao descritiva

    entre a experincia sensorial E e o contedo proposicional de C. Bergmann

    argumenta que o tipo de conscincia com que Bonjour parece estar comprometido

    a conscincia forte ou seja, um tipo de conscincia que envolve a concepo ou

    apreciao da parte do agente que um determinado fator relevante para a

    justificao ou verdade da crena sustentada.

  • 41

    Sendo assim, para que a crena-alvo C seja justificada, o agente deve

    formar uma metacrena, que por sua vez, s pode ter seu status explicado se o

    agente encontra-se em uma situao na qual capaz remeter-se provido de bons

    indicadores, avaliar a srie Pn de proposies que ocorrem na cadeia.

    Bergmann identifica, assim, que por aceitar o chifre forte, Bonjour acaba

    por ser alvo das consequncias que dele se seguem, ou seja, o regresso epistmico

    passa a ser inevitvel e dele se acompanha o ceticismo global sobre a justificao.

    1.2.1.2 Crisp x Bergmann

    Crisp (2010), semelhantemente a Bonjour (2006a), dedica sua ateno ao

    primeiro chifre do dilema, isto , o chifre que explicita a objeo de que a subscrio

    exigncia de acessibilidade entendida nos termos do que Bergmann (2006a)

    designa conscincia forte levaria o internalismo a um regresso epistmico vicioso.

    Como consequncia, nenhuma de nossas crenas seria efetivamente justificada,

    conduzindo ao ceticismo radical no entanto, por uma via sensivelmente distinta.

    A argumentao de Crisp dividida em duas etapas: a primeira consiste

    em sua tentativa de mostrar que Bergmann no oferece razes robustas para a

    aceitao do primeiro chifre do dilema; a segunda etapa compreende a tentativa de

    Crisp de mostrar que o chifre alvo falso, e a consequncia imediata a de que o

    argumento de Bergmann contra o internalismo seria invlido. Uma concluso

    secundria extrada por Crisp a de que se o argumento geral de Bergmann contra

    o internalismo falha, o propsito colateral de Bergmann, que a defesa das

    perspectivas externalistas da justificao epistmica, tambm falha.

  • 42

    Notamos que Crisp faz uma importante concesso: Crisp concorda que a

    exigncia de acessibilidade leva a um regresso epistmico. Porm Crisp rejeita que

    esse regresso seja vicioso, ou seja, que a existncia do regresso inviabilize a fala

    sobre justificao. Este o ncleo da defesa de Crisp acerca da razo de que o

    chifre no seria bem motivado. Em resumo, Crisp argumenta que se a nica razo

    para que Bergmann assuma a viciosidade do regresso epistmico for o aumento da

    complexidade do contedo com que o agente tem de lidar no processo justificatrio

    implicando presuno da posse de capacidades cognitivas capazes de lidar com

    uma estrutura de raciocnio de dificuldade exponencialmente crescente, claramente

    indisponveis a agentes epistmicos humanos ao demonstrar que no h aumento

    na complexidade do contedo, demonstrar-se-ia tambm que o regresso epistmico

    no levaria a uma concluso ctica no que diz respeito justificao.

    O autor alega que uma forma de internalismo que interprete a exigncia

    da acessibilidade em termos do Requisito de conscincia forte doxstica

    potencial poderia evitar o regresso em sua forma viciosa.

    Bergmann (2006a) argumenta que o Requisito de conscincia forte

    doxstica potencial implica que, para uma dada crena ser justificada,

    necessrio que o agente seja capaz de justificar uma srie Pn de crenas, e

    irrazovel esperar que agentes epistmicos humanos possam ter sucesso em tal

    empreitada. Crisp44 se vale da seguinte estratgia: sempre possvel bloquear o

    aumento da complexidade do processo justificatrio se o agente pode se remeter

    diretamente proposio que expressa a conscincia do fator que colabora para a

    justificao da crena. E, assim, ainda que a forma da exigncia de acessibilidade

    coloque o agente em uma circunstncia tal, que ele obrigado a explicitar como

    44 Cf. Crisp, 2010, p. 358-359.

  • 43

    embasou o passo anterior da cadeia justificatria, no est implicado o aumento da

    complexidade do contedo informacional. Em seus termos,

    o requisito de conscincia forte doxstica potencial induz ao regressoe isto est correto, mas no um regresso que envolva um aumentocrescente de complexidade de suas proposies constituintes. [...]Bergmann argumentou em favor da premissa (III) [o primeiro chifre]que o Requisito de conscincia forte doxstica potencial induz aoregresso. Mas o segundo conjunto est incorreto: o regresso noenvolve o aumento da complexidade. Uma vez que o supostoaumento de complexidade induzido pelo requisito de conscinciaforte doxstica potencial foi a nica razo para Bergmann afirmar queele vicioso, eu concluo que ele no nos d razo para pensarmosque o regresso vicioso e assim, no nos d nenhuma razo paraaceitar a premissa (III) de seu argumento45. (CRISP, 2010, p. 359;trad. nossa; com adaptaes).

    Em seguida, ele considera a seguinte questo: a viciosidade implicada

    pelo regresso pode ser reinstaurada de alguma maneira? Crisp considera uma

    verso revisada do Requisito de conscincia forte doxstica potencial, que

    parece ter o tipo de consequncia que ele, precisamente, busca evitar. A verso

    revisada do Requisito de conscincia forte doxstica potencial assume a

    seguinte forma:

    Requisito de conscincia forte doxstica potencial revisado: A crenaC de um agente justificada se: existe alguma coisa X que contribuipara a justificao de C e o agente capaz por reflexo apenas deser consciente de X de tal maneira que o agente aceitajustificadamente a proposio expressa por 'X de alguma maneirarelevante para a adequao da sustentao da crena C' (CRISP,2010, p. 360; trad. nossa; com adaptaes; grifo nosso)46.

    45 PDSAR induces regress alright, but not one involving increasing complexity of its constituentpropositions. [...] Bergmann argued on behalf of (3) that PDSAR induces regress, and that the regressis vicious owing to the increasing complexity of the propositions comprising it. The first conjunct isright: PDSAR does indeed induce regress. But the second conjunct is wrong: the regress involves noincrease of complexity. Since the alleged increase of complexity along the steps of the PDSAR-induced regress was Bergmanns only reason for claiming it vicious, I conclude hes given us noreason for thinking it vicious and thus no reason for accepting premise (3) of his argument. (CRISP,2010, p. 359)46 Revised Potential Doxastic Strong Awareness Requirement: Ss belief B that P is justified only if (i)there is something, X, that contributes to the justification of B, and (ii) S is able on reflection alone tobe aware of X in such a way that S justifiedly accepts the proposition expressed by X is in some wayrelevant to the appropriateness of holding the belief that P (CRISP, 2010, p. 360).

  • 44

    Por que o Requisito de conscincia forte doxstica potencial revisado

    deve ser uma preocupao para Crisp? Como ele adequadamente enfatiza, se OPS

    favorece ou implica o Requisito de conscincia forte doxstica potencial

    revisado, haver-se-ia de conceder o ponto a Bergmann. Uma vez que a atratividade

    argumentativa do dilema repousa precisamente na inexorabilidade de concluses

    indesejveis que se seguiriam para o internalismo ou seja, que o internalista, ao

    evitar os problemas postos em um chifre, acaba por deparar com os problemas

    postos pelo outro chifre , demonstrar que Crisp no escapa do cerco um ganho

    importante.

    Crisp argumenta que OPS no fornece boas razes para pensarmos que

    o Requisito de conscincia forte doxstica potencial revisado seja verdadeiro.

    Isso se deveria ao fato de que, ainda que esta formulao do requisito envolva o

    aumento da complexidade do contedo com que o agente deve lidar no processo

    justificatrio, ele ainda assim conseguiria fazer justia ideia de que, embora, no

    contexto relevante, nem sempre o agente esteja em condies de oferecer razes

    para uma crena da cadeia justificatria. No seria, do ponto de vista do agente,

    uma questo de acaso que as crenas subjacentes ou a cadeia justificatria de

    maneira predominante sejam condutivas verdade. Este fato poderia ser explicado

    pela relao de privilgio, de um ponto de vista epistmico, que o agente estabelece

    com o justificador. Assim, o autor conclui a primeira etapa de sua argumentao.

    A segunda etapa da argumentao de Crisp consiste na tentativa de

    demonstrar que o dilema no obtm sucesso; ele busca razes independentes que

    comprovem a viciosidade do regresso e rejeita que existam razes plausveis para

    que se aceite que o regresso implicado seja incompatvel com a justificao47. Crisp

    47 Crisp mantm a concesso de que existe um regresso epistmico, no entanto, rejeita que ele sejamaligno.

  • 45

    procura apoio em uma teoria das intuies48 para articular uma verso do Requisito

    de conscincia forte doxstica potencial em que as intuies cumprem o papel

    de garantia epistmica no embasamento de alegaes de conhecimento.

    Intuies prima facie so favorveis a uma articulao enfraquecida da

    exigncia de acessibilidade, tal como o Requisito de conscincia forte doxstica

    potencial prescreve. Crisp procura demonstrar que se intuies podem

    desempenhar o papel de evidncias ou indcios de verdade, ainda que revogveis,

    elas se adquam s exigncias do Requisito de conscincia forte doxstica

    potencial, sem que com isso esteja implicado um regresso vicioso49. Segundo o

    autor, a posse de tal tipo de garantia epistmica evitaria a viciosidade do regresso,

    pois ainda que o Requisito de conscincia forte doxstica potencial induzisse

    exigncia de metacrenas, no contexto relevante, o agente estaria em plenas

    condies de form-las e sustent-las adequadamente.

    Avaliamos que a resposta de Crisp insatisfatria em ao menos dois

    sentidos. O primeiro diz respeito ao de ela fornecer ao internalista muito menos do

    que este tipicamente espera, ou seja, o tipo de suporte epistmico que o agente

    capaz de fornecer nas condies especificadas por Crisp dificilmente satisfaria as

    condies impostas pelas formas de internalismo mais usuais. O elemento interno,

    que neste contexto coextensivo ao que disponvel ao agente introspectivamente,

    de tal modo esvaziado ou enfraquecido, que no claro de que maneira ele pode

    48 Cf. Bealer, 1998.49 Crisp sustenta que nossas crenas sobre importantes aspectos de nossa vida cognitiva sojustificadas com base em intuies. Por exemplo, certas crenas relacionadas moralidade soformadas (e sustentadas) com base em intuies. Assumindo-se que ao menos algumas dessascrenas calhem de ser verificadas, pode ser dito que as intuies preservam, em algum sentido, acondutividade verdade. A natureza do suporte epistmico oferecido pelas intuies no apodtico,mas antes, revogvel. preciso notar tambm que as intuies no se apresentam, por vezes, naforma de razes, ou racionalizaes, mas na forma de um solo comum de assunes que tornam umdeterminado fato epistmico inteligvel.

  • 46

    cumprir o papel epistmico que deveria cumprir. Mais drasticamente, identificamos

    que a resposta de Crisp envolve uma confuso com relao ao cerne de OPS.

    OPS, tal como articulada por Bergmann (e em seu surgimento com

    Bonjour), tem como alvo pelo menos quatro aspectos da avaliao epistmica,

    nomeadamente: a dimenso que designaremos de (1) racional (ou crtica) que diz

    respeito atribuio de racionalidade ao agente no contexto relevante; por exemplo,

    se Norman tem ou no motivos para achar que h uma faculdade fivel responsvel

    por suas asseveraes preditivas ; (2) a deontolgica que diz respeito aos

    deveres epistmicos do agente no contexto relevante, isto , se permitido ou

    proibido a Norman crer na asseverao preditiva , a de uma (3) condio antiacaso

    que diz respeito presena ou ausncia de mecanismo que bloqueie o acaso

    epistmico (a acidentalidade da verdade da crena), de um tipo que seja

    incompatvel com o conhecimento e o da (4) condutibili