julio pomar. o neo-realismo e depois

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Júlio Pomar . O neo-realismo, e depois (1942-1968) in Júlio Pomar, Catálogo “Raisonné” I. Pinturas, Ferros e Assemblages 1942-1968 / Catalogue Raisonné I, Peintures, Fers et Assemblages 1942-1968 , textos/textes de Alexandre Pomar, Marcelin Pleynet. Éditions de la Différence, Paris / Ed. Artemágica, Lisboa, 2004. (V ersion française disponible) Pintura, 1944, ! 81,5cm, Col. Particular I Os primeiros anos da obra de Júlio Pomar estão ligados, a partir de 1945, à afirmação do movimento neo-realista e marcam a inicial especificidade deste no contexto europeu, até se lhe imporem as pressões ideológicas  próprias do início da Guerra Fria. Por volta de 1956, sem haver um ponto  preciso de ruptura na sua produção pictural ou um afastamento explícito das anteriores posições políticas, o itinerário de Pomar começa a orientar- se noutras d irecções. Esse tem po da aparição do pintor é desde logo o de 1

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Prefácio. Julio Pomar: Catalogue Raisonné I, Peintures, Fers et Assemblages 1942-1968, texto/texte de Alexandre Pomar. Éditions de la Différence, Paris

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Júlio Pomar. O neo-realismo, e

depois (1942-1968)

inJúlio Pomar, Catálogo “Raisonné” I. Pinturas, Ferros e Assemblages 1942-1968 /Catalogue Raisonné I, Peintures, Fers et Assemblages 1942-1968, textos/textes deAlexandre Pomar, Marcelin Pleynet. Éditions de la Différence, Paris / Ed.Artemágica, Lisboa, 2004. (Version française disponible)

Pintura, 1944, ∅ 81,5cm, Col. Particular 

I

Os primeiros anos da obra de Júlio Pomar estão ligados, a partir de 1945, àafirmação do movimento neo-realista e marcam a inicial especificidadedeste no contexto europeu, até se lhe imporem as pressões ideológicas próprias do início da Guerra Fria. Por volta de 1956, sem haver um ponto  preciso de ruptura na sua produção pictural ou um afastamento explícito

das anteriores posições políticas, o itinerário de Pomar começa a orientar-se noutras direcções. Esse tempo da aparição do pintor é desde logo o de

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uma imediata grande notoriedade pública e crítica, a qual ficoulongamente associada ao nome de um movimento de problemáticaidentidade, marcado pelas circunstâncias particularmente difíceis dahistória política do país e por uma corajosa luta colectiva pela liberdade.Algumas das suas obras dessa primeira juventude criativa continuam aimpor-se como marcos maiores do seu itinerário e da arte feita emPortugal.

O período inicial do neo-realismo português no campo das artes plásticas1   pode situar-se com precisão entre os primeiros meses de 1945 e os finaisde 1947, no quadro específico em que foi vivido no país o termo da IIGuerra. Estas datas asseguram-lhe uma inicial independência face àafirmação mais ou menos dogmática dos realismos socialistas nos países

da Europa ocidental ao tempo da re-estalinização, da criação doCominform e das polémicas francesas em torno da linha artística do partido comunista.

De facto, é indispensável considerar que o que em Portugal sechamou neo-realismo surgiu com o dinamismo de uma afirmaçãogeracional, da qual Pomar foi protagonista, à frente dos artistas que

  por essa época iam fazendo a sua aparição pública, quase todosnascidos nos anos 20 e sendo Pomar o mais novo deles (1926). O ímpeto próprio da emergência de uma nova geração2  começou

  por caracterizar a aparição do movimento, para além da nitidezdas suas linhas de definição ideológica e, aliás, em convergênciacom a manifestação de outras orientações menos empenhadas na

intervenção social. Para os jovens artistas de então, o momento

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1. O neo-realismo no campo da poesia e do romance surge desde finais dos anos 30 como afirmação de uma «Nova Geração» (Geração de 37) directamente influenciada peladoutrinação comunista e coincidente com o início da Guerra de Espanha, datando de1944-45 importantes debates sobre a teorização do movimento e a publicação de obras já denotória maturidade criativa. 

2. José-Augusto França viria a designá-la, desde meados dos anos 50, como a terceirageração de artistas modernos em Portugal.

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que viviam era também de ruptura colectiva com a práticaestabelecida por anteriores gerações, quer estas assegurassem acontinuidade de um naturalismo provincial fixado em tradiçõesoitocentistas, quer ilustrassem uma modernização mais ou menos

cosmopolita que tinha favorável acolhimento em algumasinstâncias oficiais do regime de Salazar.

Uma tal ruptura geracional, que se expressou mais visivelmenteno voluntarismo político dos que se identificaram como neo-realistas, teve como factor decisivamente estimulante asexpectativas a respeito da queda iminente da ditadura fascista,

como consequência natural da vitória do campo aliado. Aintervenção dos novos artistas não podia deixar de ser marcada  pela ambição de participar no combate político democrático,associando a sua irrupção no panorama artístico à novidade daconjuntura nacional. As novas condições políticas que faziamvacilar a ordem repressiva do Estado Novo abriam-lhes umterreno inédito de manifestação pública, autorizando a organização

de salões colectivos e a sua expressão programática através daimprensa.

Enquanto nos países europeus destroçados pela guerra, asexpressões de cunho político vindas da Resistência e dotestemunho sobre os campos de concentração, que se iriam definir como realismos socialistas nos anos seguintes, foram encabeçados

 por artistas afirmados nos anos 30, prosseguindo ou actualizandoanteriores dinâmicas de intervenção anti-fascista, existiram nocaso português condições particulares que asseguraramsignificativas diferenças na origem e na caracterização do neo-realismo.

Se, pela vinculação partidária dos seus primeiros responsáveis(Pomar filia-se em finais de 45 nas Juventudes Comunistas,

ilegais), se tratava já de um realismo de intenção socialista, há queentender esse primeiro neo-realismo, no melhor da sua produção,

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como manifestação de jovens artistas implicados na procura demodernas linguagens plásticas, que não reconheciam antecedentesdirectos na produção nacional e que contavam com um acesso decerto modo alargado e original à informação internacional

(embora sempre através de reproduções).

A par da energia própria de uma afirmação geracional conscientede si mesma, importa sublinhar a inexistência em Portugal decriações anteriores associadas aos realismos de intervenção dosanos 20-30 cujo exemplo pudesse ser seguido. Só «o melhor» daobra solitária de Abel Salazar, 1888-1945, foi brevemente

defendido como um modelo ético3

. No período anterior ao conflitomundial publicaram-se intervenções teóricas que divulgavam adoutrinação de Plekhanov, Gorki e Jdanov, mas elas apenasagitavam o campo da criação literária. Existindo uma naturalcumplicidade ideológica com os escritores neo-realistas surgidosnos finais da década de 30, convergente na ambição de associar aarte à intervenção política e de tomar «o povo» como inspiração e

destino das obras, a resposta para as questões de ordem formal e  plástica que se punham aos novos pintores seria procurada numuniverso amplo de referências.

  No caso de Pomar, cuja produção plástica foi acompanhada por abundante intervenção escrita, essa busca de orientações ereferências estéticas expressa-se numa afirmada vontade de

convivência com toda a história da arte, desde logo através do queos museus portugueses lhe podiam oferecer directamente, emboracom o seu atávico atraso face à modernidade internacional.Entretanto, parte decisiva de informação sobre a criaçãocontemporânea que, num país neutral face à guerra mas isolado

 por uma férrea censura, era à época acessível aos jovens artistas

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3.  Ainda em 1953, por exemplo, Pomar aponta Abel Salazar, no «melhor  da sua obra»,

como «precursor da moderna tendência para um realismo social», para o qual «o povo foi,não um modelo estático, mas uma massa em movimento» (O Comércio do Porto).

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tinha origem norte-americana (e também latino-americana,incluindo o Brasil), no quadro da propaganda do campodemocrático que chegava a Lisboa, em alternativa à presençacultural dos países do Eixo.

A apresentação de uma obra de Portinari (Café) no pavilhão doBrasil na Exposição do Mundo Português de 1940 fora muitodiscutida; depois, já em 1946, a passagem do pintor por Lisboaseria especialmente saudada. Entretanto, os catálogos do Museude Arte Moderna de Nova Iorque e outras publicações dos EstadosUnidos que chegavam às bibliotecas pelos circuitos diplomáticos

asseguraram o conhecimento das obras dos muralistas mexicanose das correntes realistas norte-americanas. Estas foram fontes deinspiração dominantes para os jovens neo-realistas, em oposição auma então dispersa e suspeita Escola de Paris, cuja «decadência»se associava quer à queda da Europa sob o jugo alemão quer àssuas diversas variações que realizavam os «modernistas» comcirculação nos salões oficiais do regime, onde também o

surrealismo se divulgava desde 1939. A «American Scene», comos seus regionalistas (conservadores) como Thomas Hart Bentonou Grant Wood e os seus realistas sociais como Ben Shahn e Jack Levine, foi obviamente muito mais influente na formação dos

 jovens neo-realistas de 1945, à procura de caminhos modernos, doque a eventual informação sobre anteriores modelos soviéticos derealismo socialista.

  Nos anos seguintes, acompanhando-se já a actualidade europeia, eos Salões de Outono parisienses em especial, os pintores que

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vieram a seguir a ortodoxia estalinista, como André Fougeron4 eBoris Taslizky, iriam ser vistos por vários artistas com uma

 prudente distância crítica, em confronto com o maior interesse por Picasso e Pignon, e mesmo o mais independente realismo

narrativamente militante de Renato Guttuso já não seria bemacolhido por Pomar.

Por outro lado, a informação sobre os realismos americanos  posteriores ao New Deal, incluindo o muralismo mexicano (queusava a designação neo-realismo), é pouco influente na restanteEuropa, mais focada nas suas tradições nacionais e marcadamente

eurocêntrica. Orozco, Tamayo e Siqueiros são revelados ao  público europeu na Bienal de Veneza de 1950; Ben Shahn éexposto no pavilhão americano em 54, em conjunto com DeKooning5. 

Um breve depoimento publicado em 1953, em Paris, num «Bilande l’Art Actuel» da revista Soleil Noire. Positions (nº 3-4), ilumina

os primeiros anos da obra de Júlio Pomar e a abertura intelectualdo neo-realismo plástico português, de que é a figura principal.Publicado por ocasião de um breve período em que se impôs ummais rígido controle ideológico, como veremos, é um documentoque também indicia uma continuidade de pensamento e de prática

 pictural através dos diferentes períodos da sua obra:

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4. J.-A. França, numa breve aproximação ao neo-realismo, aponta o exemplo de

Fougeron ao defender “um sentido moderno de realismo (…) em que a imaginação criadora vive o acordo dialéctico entre a realidade e o objecto” : «A Arte Moderna é hoje essencialmente uma arte clássica. (…) É ver Fougeron.» (“Da Realidade, do

Objecto e ainda do seu acordo”, Horizonte , nº 9, 2ª quinzena de Abril 1947).

Fougeron só em 1948 expôs as Parisiennes au Marché que iam definir o realismo

socialista à francesa e deixaram «desolado» o neo-realista Mário Dionísio.

5. Ver Sarah Wilson, «Réalismes sous le signe du drapeau rouge, 1945-1960», in Face àl’Histoire, Flammarion/Centre Pompidou, Paris, 1996.

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«Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do  Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. Otrabalho ( métier   ) de pintor é um trabalho de pesquisas, dedescobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que

nascem da vida e a ela regressam. Houve um tempo em quedesprezei certos assuntos? Erro meu. O assunto não é o conteúdo,é um pretexto, e mais nada. O conteúdo, é a síntese dialécticaentre o tema e a experiência pessoal e vivida do artista. Elemanifesta-se na forma, vive nela, é exaltado por ela. Os conteúdosdas minhas telas são “as razões que me ajudam a viver”» (trad.do francês*).

 Nos textos de intervenção estética que Pomar publica desde 1945,associando o trabalho de pintor à luta política contra o regime deSalazar, que o levaria à prisão em 1947, é atribuída prioridade àdefesa da responsabilidade social do artista e à ambição de uma«arte francamente popular, esclarecedora e construtiva», quefaria da arte neo-realista «uma arte do povo, pelo povo e para o

 povo» («O pintor e o presente», Seara Nova, Janeiro de 1947). Noentanto, aquela recusa da autoridade de todos os papas e oentendimento do trabalho do pintor como uma pesquisa pessoal evivida são constantemente reafirmados em artigos quecontrariavam a fixação do novo realismo social que então Pomar 

  procura nas regras de um estilo ou na mera prioridade dosconteúdos «humanistas».

Por exemplo, ao comentar a primeira exposição do escultor JorgeVieira  (Vértice, Dezembro de 1949, p. 376), que apresentavatrabalhos de inspiração surrealista e abstracta, Pomar saúda demodo enfático a independência de uma procura «sem part-pris deescola – ou grupo (e oxalá assim se conserve!)», insistindo quenão têm «espírito de grupo» «um Arp ou um Laurens, um Mooreou um Lipchitz, sim os pobres “istas” de qualquer estética ouanti-estética». O recado dirigir-se-ia tanto aos neo-realistas como

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aos que tinham em 1947 trocado o movimento pela formação degrupos surrealistas.

Em 1951, ao comentar elogiosamente os trabalhos do neo-realista

Lima de Freitas (Vértice, Março), um Pomar já reconhecido comochefe de fila do movimento previne contra o simplismo dos quereduzem a criação plástica à mensagem de «solidariedade humanaque há a transmitir»: «Não nos parece que, senão grosseiramente, se possa reduzir o conteúdo do quadro à história que se conta»;«pelo menos para nós, o conteúdo é, sim, a história vista enarrada e enriquecida pelo artista – e muito mais do que isso, a

  sublevação de emoções e de ideias latentes, de complexos  sentimentos, de alusões e descobertas, para a qual o assunto, ahistória ou o tema, como lhe queiram chamar, foi apenas o pretexto, consciente ou inconscientemente. Assim, o quadro deixade ser a “mulher sentada” ou o “par abraçado” para, mercê das  forças despertadas, se tornar numa verdadeira síntese docosmos». A mensagem, diz, «tem de ir de epiderme a epiderme» -

«de nada lhe serve [ao homem] o mais belo pensamento, se não éna própria carne que o vai encontrar, dramaticamente. Há umaexperiência insubstituível, que é a própria, e ai do que a ela nãoestiver atento, que não tenha, na própria carne, e só nela, travadoo combate que o tornará de escravo em senhor.»

As habituais sínteses historiográficas sobre o neo-realismo, muito

influenciada por adversários e sem consulta de fontes directas, têmreduzido a uma caricatura do realismo socialista o que foi adensidade reflexiva vivida com entusiasmos juvenis, sériasinquietações teóricas e naturais equívocos pela produção escritados principais teóricos e críticos do neo-realismo plástico

  português, a de Júlio Pomar e também a de Mário Dionísio eErnesto de Sousa. Subordinando a realidade portuguesa à

informação francesa posterior, não foi valorizado o que destinguea primeira fase de afirmação do movimento (1945-47), onde

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coincide uma genuína expectativa de libertação do fascismo  português e a procura de uma moderna arte de intervenção, docomplexo período seguinte em que o regime recupera os meios derepressão no contexto da Guerra Fria e onde a produção artística

da nova geração atravessa um difícil tempo de resistência,desistências e confrontações internas. Mas ainda aí haverá aconsiderar, em especial na obra de Pomar, uma etapa de aberturainformativa e experiências independentes, que vai até 1952, sóentão se fechando, numa breve etapa de rigidez estalinista, o

 período da inicial afirmação do movimento.

II. 1945, um ano decisivo

Gadanheiro, 1945, 122x83cm, Col. Museu do Chiado, Lisboa 

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1945, quando Pomar tem ainda 19 anos, é um ano decisivo. Os  jovens artistas das Exposições Independentes do Porto6 apresentam-se em Lisboa. Pomar dirige a página semanal «Arte»,entre Junho e Outubro. Em Agosto e Setembro participa na IX

Missão Estética de Férias, em Évora, de onde traz à Sociedade  Nacional de Belas Artes (S.N.B.A.) o Gadanheiro, primeiroquadro-manifesto do neo-realismo. Em Dezembro, Mário Dionísiodedica-lhe um primeiro artigo monográfico sob título «O princípiode um grande pintor?» Todas estas etapas merecemdesenvolvimento.

A 3ª Exposição Independente (Coliseu do Porto, Dezembro de1944) abre em versão condensada e revista no Instituto Superior Técnico de Lisboa, a 21 de Maio, poucos dias depois das grandesmanifestações populares que saudaram o termo da Guerra (7-9 deMaio). Pomar e também Victor Palla proferem conferências nainauguração, a seguir publicadas na revista Vértice, encetando o

  primeiro uma longa colaboração no principal orgão do neo-

realismo literário. Intitulada «Caminho da pintura» (nº 12-16,Maio), é o mais ambicioso texto de um ano de abundante produção escrita.

A defesa de uma arte socialmente interveniente, que nuncadesigna como realista, é aí sustentada numa análise crítica de todaa história da arte e em especial da arte moderna, vista esta, do

impressionisno ao surrealismo, como uma caminho de «evasão para o país onde as formas eram formas sem significado», «cultoda expressão individualista» que é «um índice do estadocivilizacional de uma época». 

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6. Inauguradas em Abril de 1943 por um grupo de alunos da Escola de Belas Artes do Porto,do qual se destacaram Júlio Resende, Fernando Lanhas e Nadir Afonso. A exposição degrupo realizada em Lisboa, no final de 1942, por Pomar e os seus colegas vindos da EscolaAntónio Arroio constituiu, no entanto, a primeira aparição pública dos jovens artistas da «3 ªgeração moderna».

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Pomar procura então direcções novas à margem da «arte-imitação» («o realismo imitativo», que foi «o mal entendidoantigo» e que a fotografia tinha tornado vão) e da «arte-abstracção» (o equívoco de «dar aos meios o papel dos fins»),

ressalvando embora a importância das aquisições anteriores:«Despido o quadro em busca da “emoção pura”, trabalhandocom puras linhas, puras formas, puras cores, o pintor ficaobrigado a conhecê-las no seu intrínseco potencial expressivo.  Enriquecimento lógico da técnica, domínio racional,conhecimento inteligente dos meios plásticos.»

Cita Aragon (os pintores «perderam-se até à abstracção, nada dehumano ficou nas suas telas»), Lurçat («não queremos mais bater-nos por invenções gramaticais») e Ozenfant, mais longamente: emarte, a revolução necessária «deve consistir em romper com asrevoluções sem motivo»; «a arte social, aquela de que temos hojeuma necessidade extrema, não deve ser um estupefaciente para pessoas que se aborrecem»; trata-se agora de «pintar para todos»,

«de nos exprimirmos tão universalmente quanto possível». Invocando a «obra viva e actual» de Brueghel-o-Velho e a ideiade beleza segundo Gromaire (a «ideia do essencial que parece ser um dos apanágios da beleza na ordem técnica é-o também naordem plástica»), rejeita o «deleite no agradável» de Braque e odelírio do «objecto em liberdade» de Léger. E conclui: «O pintor não fecha mais os olhos diante da realidade. O que não quer dizer que a imite, isto é, que localize nela o seu ideal de perfeição.» 

Pomar afirma então que «os variados ismos, tal como osentendiam os seus adeptos – fossem eles pintores dos maiores – não existem mais, incapacitados de corresponder à torrente dasnecessidades colectivas contemporâneas, cada vez mais prementes». E alerta sempre que «a pintura não pode retroceder 

 pelo caminho andado, não pode desperdiçar as conquistas feitas,

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 sob pena de um retrocesso na técnica – e o seu movimento negar- se-ia a si mesmo».

«Se (o pintor   ) repõe como fulcro da sua arte, da sua vida, o

homem e a realidade», porque «tem uma missão a cumprir», é dealgo de novo que se vai tratar, atingido que foi com oimpressionismo «o estádio último da corrida para o realismoimitativo», fechado com Monet, Gauguin, Van Gogh, Cezanne eos cubistas «o futuro da pintura tendo como fulcro a semelhança».Com «o progresso contínuo da fotografia, as suas possibilidadescada vez maiores de exactidão», «a pintura fria, documental,

naturalista, tinha praticamente os seus dias contados».

E prossegue: «A pintura não utiliza mais a imitação, mas o camporiquíssimo, inesgotável das equivalências, da representação maisexpressiva porque é sintética, directa. Todo um sistema intuitivode supressões e deformações: o objecto liberta-se do que, não ocaracterizando, desnecessariamente o complica; o quadro liberta-

  se do que não possui suficientes propriedades emotivas, e nãotem, digamos assim, uma função emocional a desempenhar. A arte  popular, a arte primitiva, a arte das crianças, assentam numabase intuitiva de equivalentes plásticos. E os grandes momentosda arte são exactamente os do equilíbrio síntese-força.»

Pintura, Café e Ferros (este não localizado –  «uma prisão, um

arame farpado, uma vaga forma humana, verde», segundoErnesto de Sousa) são as três pinturas que traz do Porto. A  primeira é construída com um desenho flamejante que articulafiguras recortadas em espaços planificados numa composiçãoritmicamente animada - esse é um primeiro estilo gráfico quemarca a produção de 1944 e muitos estudos que ficaram sóesboçados. A forma circular sublinha a condição do quadro como

uma visão sintetizada do mundo – a guerra é referida por soldadosque irrompem à direita num céu amarelo diante das chaminés das

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fábricas e um corpo feminino definido num erótico arabesco étentadoramente visto de pernas para o ar (como surgira já numaisolada pintura de 1942 e voltará a acontecer no «período erótico»,notou-o Michel Waldberg num álbum de 1990). Ao centro, um

 jovem de punho bem erguido põe ordem na composição caótica e promete mudar a história. Café, onde se reconhece um primeiro auto-retrato, é tambémmarcado pela planificação anti-naturalista do espaço numasucessão de zonas abstractas de cor lisa, lembrando Matisse overtical fundo vermelho em que as figuras se inscrevem, enquanto

os bordos do quadro cortam abruptamente cabeças e corpos.Entretanto, uma outra presença é determinante para dar a essaexposição de 45 o cunho de uma ruptura plural no panorama

  português: Fernando Lanhas expõe o quadro então chamadoViolino (depois 02-43-44), que inaugurava o seu peculiar abstraccionismo geométrico de inspiração cósmica e metafísica.Pomar estimulara Lanhas a expôr as suas pesquisas de abstracção

e é ele que propõe a apresentação do quadro em Lisboa. Umaestreita relação de cumplicidade estabelecera-se entre os doisestudantes do Porto e iria prosseguir nos anos seguintes, acima dediferenças das pesquisas plásticas e posições políticas, trocandoobras e mútuos retratos desenhados, já em 1948; Pomar a

 propósito das primeiras gravuras que realizou no Porto, em 1951,lembrará num texto de 2003, «a camaradagem com Fernando

 Lanhas, que era com quem eu melhor me entendia no ramal dasartes».

Em Janeiro e Fevereiro de 45, Pomar participou, pela última vez,em mostras colectivas da iniciativa dos orgãos culturais do regime,em Lisboa e no Porto, então os únicos salões abertos a linguagensmodernas. Em Abril inicia a colaboração no diário   A Tarde, do

Porto, e a 9 de Junho coordena o primeiro de vinte suplementos«Arte» publicados até 20 de Outubro, num momento em que a

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viragem da relação de forças internacional atenua o controlecensório. Aí se juntam numa frente única e vivamente panfletáriaos jovens artistas das Escola do Porto e ex-colegas de Lisboa (emespecial Mário Cesariny e Vespeira, futuros surrealistas).

O apelo a uma «arte útil» e «enérgica» associa-se então paraPomar ao esclarecimento do público a respeito de um realismonecessariamente novo, partindo de uma citação de Picasso - «Umacoisa é ver, outra é pintar». Tal como a ciência «elimina darealidade o que a esconde ao olhar comum, quotidiano», «a  posição do pintor é a tradução da realidade em sínteses

objectivas. Não o detém o aparencial das coisas; qualquer ocapta, todos com ele lidam. Pintar tal qual se vê não tem razão de  ser. (…) Quando a um pintor chamamos realista, colocamo-loimediatamente num local determinado das necessidadescolectivas: anulação da camuflagem (organizada ou não) darealidade» («Nota sobre a arte útil», 16 de Junho). 

A 23 de Junho, numa entrevista a Manuel Filipe (nascido em1908, faz então uma primeira exposição significativa, comtrabalhos a carvão de forte expressividade social que suscitam

  polémica na imprensa), Pomar e o seu entrevistado fazem pela primeira vez a extensão da designação neo-realismo da literaturaàs artes plásticas, mas a fórmula terá escasso uso até 1947. Umartigo de Pedro Oom, outro futuro surrealista, comenta a

emergência em Portugal de uma corrente pictórica «nascida nos  países latino-americanos», «mas que aqui mal se esboça».Limitam-na, diz, «as dificuldade de produção que encontram os jovens pintores e escultores sem liberdade económica», bem como«a reacção do “público” na sua maioria conservador», face àgrande «oposição do neo-realismo às velhas formas». Só a pinturamural – «bastante desenvolvida nos EUA, no México e no Brasil»

- «satisfaz as condições que esta corrente precisa»: «sendo umaarte para as massas, uma arte de grande divulgação, não pode ser 

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  fechada dentro das molduras dos quadros de cavalete» (28 deAgosto). Em vários números, Pomar escreve sobre Orozco,Portinari, Jack Levine, Thomas Benton e em geral sobre a pinturamexicana. 

Entretanto, Agosto e Setembro passa-os Pomar em Évora, numaMissão Estética de Férias que era iniciativa anual e itinerante daAcademia Nacional de Belas Artes destinada a finalistas das duasEscolas nacionais (Pomar não o era ainda, nem chegara afrequentar aulas de pintura). A conjuntura política conferiu àMissão uma relevância pública inabitual na cidade e a exposição

dos seus trabalhos em Lisboa foi especialmente notada.Além de um pequeno retrato de camponês, Gadanheiro é o maisconseguido de uma série de quatro óleos, quase todos de grandeformato, portadores de uma ambição pictural e políticadesmesuradamente heróica para a experiência do pintor. Aconcretização do projecto revolucionário sustenta-se aí numafirme estrutura compositiva diagonal e numa construção de

  profundidades espaciais, na paisagem estudada com T. Benton,que ampliam ameaçadoramente o movimento da figura docamponês brandindo a foice como uma alavanca que mudaria omundo. A intenção política foi denunciada no jornal local da Igreja( A Defesa): «As figuras de Júlio Pomar reflectem grande anseio social e revolucionário, bebido mais na literatura estrangeira doque no convívio com o bom homem da terra alentejana».

Pomar dirá mais tarde que «acontece aqui pela primeira vez, ou pelo menos de uma forma mais nítida, qualquer coisa que vais ser uma constante na minha pintura, e que é uma relação entre o que se passa dentro da tela e os limites que o quadro tem. (…) há aquium movimento, um tentativa de expansão, uma vontade deexplosão, um choque com o limite, com os quatro bordos do

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quadro. Ou seja, o quadro é aqui duplamente investido pelo corpoem movimento: como acto e como imagem.»7

Mário Dionísio, então poeta e crítico literário neo-realista (pintor 

também), saúdou o ciclo alentejano num texto onde analisava játoda a carreira de Pomar, três anos apenas desde a sua aparição,com «um temperamento de verdadeiro pintor», numa mostra degrupo com outros colegas saídos da Escola António Arroio, deLisboa. Ao recordar «duas fases» já reconhecíveis em 1942 num«pintor de dezasseis anos» (e inaugurava-se assim um percurso desucessivas e inesperadas «fases»), separava uma «primeira que

  seria reveladora eloquente dos primeiros entusiasmos por esseabsorvente Vicente Van Gogh» e a «segunda, anunciadora daconsciência de que os tempos eram outros» - «estava ali um  pintor novíssimo com os pé enterrados na miséria da rua».Acrescenta Dionísio que logo a seguir, nas obras de 1944, «Pomar   se perdeu por experiências pouco construtivas», afundando «os  seus assuntos» «por debaixo da excentricidade estéril do

  processo, (…) do falso poder expressivo dos montes de tintaarenosa, do contormo sem vibração, do desenho de adivinha».

O crítico e amigo mais velho dizia também que três anos são umespaço de tempo considerável «para quem agarra nos seus pincéisde manhã e pinta até haver luz, pinta e desfaz e volta a pintar,deita fora e recomeça constantemente, sabendo muito bem que a

inspiração só é um facto através do trabalho (do trabalhoaturado)», e assim «Pomar pôde encontrar de facto um caminhoque lhe abre as maiores perspectivas na jovem pintura portuguesa» (Seara Nova, 8 de Dezembro 1945).

De regresso ao Porto, pinta Mulher com uma Pá, um «estudo»onde a desmesurada ampliação das mãos e dos pés justificava que

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7 . In Alexandre Melo, “ Júlio Pomar”, suplemento de Arte Ibér ica, Lisboa, nº 14, Maio1998.

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se lhe apontasse a influência de Portinari, embora a libertáriadeformação expressiva do corpo nu mostrasse o interesse directo

 por Picasso e um arriscar da pesquisa plástica pelo menos paraleloà vontade da denúncia social. Varina Comendo Melancia, de

1949, terá uma idêntica posição no contexto da produção  posterior, libertando a cor e as formas de qualquer disciplinarealista.

III. 1947

Farrapeira, 70x40cm; Carvoeiras, 36x54; em baixo, Parlatório, Caxias, 54x88; Bailique,Caxias, 87x 52; O Golo, 64x50. 1947. Cat. “raisonné”, p. 65 

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Pomar entrega-se intensamente à agitação estudantil e política,  bem como à organização de novos salões colectivos que terãolugar no Porto e em Lisboa em 1946, para os quais os jovens neo-realistas mobilizam artistas mais velhos que deles se aproximam

ou que, seguindo outras orientações estéticas, até conservadoras,se identificam politicamente como anti-fascistas. Na Escola deBelas Artes é disciplinarmente castigado, abandonando a seguir ocurso de pintura; numa conferência paralela à Exposição daPrimavera no Porto, sobre «Arte e juventude», dizia que no ensinoescolar  «se faz abstracção do significado da hora presente, seignoram as conquistas da técnica moderna, não se preparando

assim técnicos mas amadores, e se não esclarecem os estudantes  sobre a sua função e responsabilidade futura» (notícia de O  Primeiro de Janeiro, 27 de Junho). Em Julho de 1946 integra acomissão central do MUD Juvenil, extensão do Movimento deUnidade Democrática em que converge toda a oposição política.

Inaugurados pela 1ª Exposição da Primavera, em Junho de 46,

com sequência imediata e mais ampla na Exposição Geral deArtes Plásticas (EGAP), em Julho (só esta teria continuidade, emdez edições), os novos salões têm um projecto político, demanifestação unitária de todo o campo anti-fascista, mas tambémvisam criar condições que assegurem a dinamização e a

  profissionalização do panorama artístico, ambicionando criar umnovo público que possa sustentar a produção dos novos artistas,

num país com um quase inexistente mercado de arte.

Pomar estará particularmente atento a essa necessidade, uma vezque já encara a pintura como profissão exclusiva e, apesar daconsagração muito precoce, tem uma perspectiva de longo prazoquanto ao amadurecimento de uma carreira de artista e de umalinguagem plástica própria: «Vemos os grandes artistas, os

Matisse, Picasso, Lurçat, Villon, atingirem a sua melhor formaquando a mocidade já vai longe. A sua produção quando jovens

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  pode vir já carregada de promessas, mas que distância a  percorrer até à obra que realmente os caracteriza! Que vemosentre nós? À arrancada inicial segue-se, no comum das vezes, oestagnamento ou o auto-pastiche» (entrevista a O Primeiro de

 Janeiro, 1951). «Uma das causas da estagnação das váriastentativas de renovação da arte portuguesa deste século é aausência de um profissionalismo, a impossibilidade de o artista seconsagrar à sua tarefa, o ser levado a trocá-la por outrasactividades mais rendosas.» ( Átomo, 1952)

Os novos salões organizam-se num quadro frentista dirigido

clandestinamente pelo Partido Comunista, dispensando aintervenção de júris, e é aí que o neo-realismo plástico semanifesta como tendência ou corrente, com maior evidência e eco

  público na edição de 1947, a par da presença de outrasorientações, como o surrealismo de António Pedro e CândidoCosta Pinto, vindo dos salões do Secretariado de Propaganda

 Nacional, além de «académicos» e «modernistas».

  Na terceira edição (1948), porém, vários jovens artistas quetrocam o neo-realismo pela organização de grupos surrealistasafastam-se da EGAP e vão expor isoladamente no ano seguinte.Por coincidência, ou não, começava também naquele ano a ser hostilizado publicamente o ascendente do P.C.P. no seio daoposição democrática, o qual se irá manter, no entanto, no campo

do activismo cultural. Com a quebra da frente política, mais queda unidade estética, que não se pretendia, ficava então aberta umaduradoura linha de fractura e crispação entre duas «vanguardas»concorrentes que terá longa sobrevivência pessoal e crítica,alimentada pela tendência crescente para o sectarismo da linhacomunista.

Face aos salões anuais do novo Secretariado Nacional deInformação, que só conseguem subsistir até 1951, as ExposiçõesGerais continuarão a ser, até 1956, além de comícios anuais da

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oposição, um centro ao mesmo tempo estável e dinamizador davida artística portuguesa, onde sucessivamente os novos artistasfazem a sua aparição e se manifestam em conjunto diversasorientações, sem exclusão dos ensaios abstraccionistas.

Particularmente relevante, é a abertura das EGAP, logo desde1946, à arquitectura do Movimento Moderno, às artes decorativas,à fotografia e mesmo à publicidade, através da qual tem curso a

 procura da «integração das artes» e se cruzam diversas dinâmicasrenovadoras.

 No Porto, a exposição de 46 tem a ausência notória dos artistas

das Exposições Independentes não interessados no alinhamentooposicionista (Resende, Lanhas, Nadir e Dórdio Gomes, professor que a eles se juntara), mas integra artistas mais velhos que entãose identificam com o projecto político, como Augusto Gomes eCamarinha, para além de Abel Salazar e Manuel Filipe.

Pomar apresenta ainda duas pinturas de Évora, Malta e

Gadanheiro, mais os carvões aguarelados Estrada Nova eMarcha e o estudo desenhado de Resistência, obras de  imediataveemência revolucionária que logo a seguir deixaria de ser 

 possível expor.

Em Lisboa, Pomar não tem nesse ano pinturas novas para mostrar (Vespeira expõe Apertado pela Fome, inspirado por Siqueiros).

Em 47, a 2ª Geral coincide com a agudização da luta política(Pomar está na prisão durante quatro meses, com toda a direcçãodo MUD Juvenil). Com uma participação mais alargada e umaextensa atenção da imprensa, a exposição é atacada pela direita esofre uma incursão da polícia política nas vésperas doencerramento, sendo sequestradas mais de uma dezena de obras.Pomar expõe o Almoço do Trolha (que a sua detenção deixarainacabado), Resistência (uma das obras apreendidas) e tambémFarrapeira, além de desenhos e um estudo para o fresco doCinema Batalha.

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O Almoço, que põe em cena uma emblemática família proletária(quadro-cartaz sempre presente em qualquer referência ao neo-realismo, multiplicar-se-á em 1951 como um ícone da esquerda

através de uma gravura próxima, A Refeição do Menino), aponta para a pintura que se vai seguir, marcada por uma tonalidade maisliricamente intimista que heróica, em figuras de maternidades e decrianças, com correspondência tanto à história pessoal do pintor como ao bloqueamento da história política do país. No entanto, acomposição sinteticamente geometrizada e a àspera densidadetexturada das cores surdas tornava ainda a sua solidez estrutural

uma promessa de luta, que Resistência ilustrava num clarodesafio ao regime policial,  permanecendo ambos como marcos deuma obra e de um tempo nacional. 

Entretanto, Farrapeira foi particularmente destacado pela crítica,que o via «no limite da representação formal do desgaste humano,do trágico social» (Fernando de Azevedo,  Horizonte). «Parece

construída com lixo e com líquidos infectos, e isso dá à pinturaum profundo realismo (no sentido actual e renovado da palavra)»,escrevia Huertas Lobo na Vértice.

À realização de desenhos de intervenção e propaganda, alguns  publicados na imprensa outros clandestinos, bem como às  primeiras capas de livros, junta-se uma abundante produção

escrita. É escasso o tempo para a pintura, até porque 1946-47 étambém a ocasião das grandes pinturas murais do Cinema Batalha,no Porto, confiadas a um pintor de vinte anos, onde aresponsabilidade decorativa, resolvida espacialmente por flamejantes arabescos, integra a figuração popular das festas doSão João do Porto, sem particular mensagem política para alémdessa presença do «povo». Inaugurado o cinema com uma das

 pinturas por concluir, viriam a ser ocultadas um ano depois, já em1948, por imposição policial, quando o regime recuperava a

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dureza repressiva. Mas a memória e as reproduções dos muraisficarão como um episódio mítico destes anos explosivos.

Os textos que Pomar publica neste período de grande mobilização

 política, começam por um balanço crítico das gerações anterioresmodernas e um artigo atento à renovação da Escola de Paris na viada «construção do futuro» (Dezembro de 1946, com ecos de JeanCassou e da exposição «Art et Résistence»), prosseguindo umtrajecto abertamente militante («A Arte e as classestrabalhadoras», «O pintor e o presente», «Arte e juventude»,«Realismo e acção», este de Abril de 47, nas vésperas da sua

  prisão), com passagem por comentários sobre Picasso e HenriMoore.

Dois textos balizam as condições e as orientações da necessáriaintervenção política dos artistas. Em «O pintor e o

  presente» (Seara Nova, Janeiro de 47) defende que «tanto osinteresses imediatos como os objectivos gerais dos artistas

agrupados em torno do novo realismo visam à mais ampla e  socialmente proveitosa utilização da arte pelo povo. Ou seja: aarte neo-realista tende a tornar-se uma arte do povo, pelo povo e para o povo».

«Tende a tornar-se», sublinha Pomar, porque «não basta fazer arte de intenção neo-realista», já que tal «não significa que a sua  produção esteja já ao alcance do povo». Alerta então «que oartista se deve preocupar de igual modo com o colocar da sua produção, (…) com a melhor maneira da sua actividade de artista  se tornar numa actividade socialmente útil aos homens seusirmãos». Não «se sairá do campo da discussão pretensamenteteórica, realmente utópica», diz, se não se olharem «dum modoobjectivo para as condições do presente». Importava considerar as«tarefas do presente» e «os caminhos de acção imediata», entre

estes o «consumo da arte pelo povo» - a procura de novos lugaresde exposição («os clubes desportivos, as sociedades recreativas,

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todas as organizações populares congéneres, podem tornar-seesplêndidos meios de aproximação») e também a chamada «àslinhas de fogo (dos) processos de reprodução». 

Abordando a oposição então corrente entre pintura de cavalete e  pintura mural, no momento em que está perto de terminar os painéis do Cinema Batalha, diz que esta questão «está, entre nós,mais francamente na ordem do dia das discussões que na ordemdo dia das realizações» - é um «programa máximo» que revela«um ingénuo optimismo e uma total inconsciência das condiçõesque o presente nos oferece». E acrescenta, como que levantando

reservas aos seus próprios frescos –  «algumas paredes se têm pintado», mas «cremos que (…) nada adiantam, quanto aos  problemas da utilização popular da pintura: pintura de intuitosapenas decorativos, ou pouco mais, filha, em regra, de uma sériede compromissos de difícil libertação. (…) tudo bem longedaquela arte francamente popular, esclarecedora e construtiva, para a qual a razão nos norteia».

Em Outubro, saído da prisão, um outro texto publicado na Seara Nova é um alerta incisivo quanto a «certas visões simplistas darealidade» manifestadas «na trincheira do novo humanismo». Oartigo intitulado «Introdução a um estudo sobre a “Escola deParis”» é meridiamente claro quanto à recusa dos esquematismosideológicos que se repercutem, como «um estilo particular de

actuação», sobre a criação cultural e artística do neo-realismo,aqui não nomeado como tal: «A análise de certos problemas fic(ou) amputada, pela substimação de outros factores que não o‘económico’ e o ‘social’ .

«Insiste(-se) no velho erro, agora virado do avesso, de isolar   fenómenos intrinsecamente ligados», diz. «Daí que, ainda hoje,muita obra de crítica se faça aprioristicamente em termos de panfleto pró e contra  , em vez de se realizar pela via da análiseobjectiva, pelo estudo aprofundado e dialéctico (na realidade e

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não na barretina do crítico). Daí que no campo da arte, e em  particular no campo da arte moderna, se tenham vulgarizadovisões limitadas, conceitos erróneos, pelos quais ou se salientaapenas o interesse do ponto de vista das aquisições técnicas , ou se

lhe enfia a carapuça da arte-passatenpo. Daí que entre estes dois  pólos se faça girar todo um período dos mais ricos, dos maiscomplexos, dos mais apaixonantes períodos da história da arte».

Como que num balanço dos primeiros anos de acção, Pomar escreve: «A luta desenrolou-se fundamentalmente em extensão. E desenrolou-se em vertigem (…) Houve assim que, por vezes,

entrar na liça com um apetrechamento cuja estruturação ficavainevitavelmente aquém dos problemas postos. A extensão da lutaia reflectir-se em prejuízo da sua profundidade. Os problemas foram atacados, sim, mas quantas vezes se substituiu a posição doestudioso ou do investigador, que do estudo e do trabalho arrancaas suas conclusões, pela do papagueador que, supondo ter namão uma chave-abre-tudo, julga os problemas antes de na

verdade os ter estudado, os amolda a meia duzia de soluções- frases-feitas, e, limitando-os e empobrecendo-os, faz do Homem edo método que diz seu uma triste caricatura».

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IV. 1947-53

Varina comendo melancia, 1949, 100x100 cm. Col. Part.

Em 1947, pouco depois de sair do Forte de Caxias, Pomar faz asua primeira exposição individual, apenas de desenhos, no Porto,aonde também vai concluir os frescos do Cinema Batalha. Amostra prolonga-se no álbum XVI Desenhos , com datas deDezembro de 1946 a Dezembro de 47, sendo oito, de Maio-Agosto, feitos na prisão.

É Dionísio quem escreve o texto que o acompanha (Março de 48),referindo que «os meninos deitados, ou jogando o eixo, ouvendendo jornais, o velho acartando fardos, a mãe doente, amenina com o galo, as lavadeiras, são composições onde passaum sopro humano de tristeza inconformada, um sentido dehumanidade e de juventude a que qualquer coisa de profundo  falta para ser feliz e, sobretudo uma atmosfera popular,

 seriamente popular, que é nova entre nós.» 

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É um texto já sintonizado com um novo ciclo político repressivoque se agrava rapidamente, no qual os artistas continuam «ao ladodos produtores» mas em que a urgência dos temas de agitaçãorevolucionária vai dar lugar a uma reflexão mais centrada no

«ofício». Cita palavras de Pomar: «Há que trabalhar dentro daslimitações do presente», «há que enveredar, digamos assim, por uma política francamente realista, fazendo exclusão de todas asconsiderações que, hoje, apenas encontram lugar no terreno dautopia».

Dionísio vê na evolução do artista uma «magnífica serenidade e

certeza», vê-o «narrar em linguagem comum e bela, factos belosocorrendo entre homens comuns», e «entrar no seu caminhoverdadeiramente pessoal», como um «descobridor de formas e deritmos», no qual «o sentido de síntese» se encontra com a«ternura humana». 

Um crítico (A. Ramos de Almeida, na Vértice, Outubro de 47)

distinguira os primeiros desenhos «carregados de sentido polémico - mas é a própria realidade que assim se afirma» - dosseguintes que revelam «uma paragem dolorosa», onde, se«ganhou em perfeição formal, perdeu em profundidade», em«equilíbrio entre a forma e o fundo». Em especial, reage aos «nusesporádicos dentro da obra de um artista que não se deixaludibriar pelas mistificações sedutoras»; na sua reserva, diz que

«representam o Amor frustrado».Em resposta, Dionísio destaca em especial «a nota nova, e não tãoinesperada como poderíamos supor», dos nus então expostos (sóA Onda é publicado) - «Haverá quem não veja a importânciadestes nus na obra de Pomar?». Sublinha que «a mão ganha emdoçura e voluptuosidade» («a linha perde a dureza»),«adoptando os arabescos que vêm em linha directa de um mestrecomo Matisse», e em especial elogia «a tomada de consciência dacurva decorativa, que se desprende das suas primeiras tendências

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de pura estilização». Refere «o convite da vivacidade barroca euma promessa ainda longínqua mas já visível de um clima maisacentuadamente peninsular». 

O ensaísta falava dos desenhos e também das obras de pintura queconhece, que se irão reunir na exposição individual de 1950,mostrando «a sua evolução constante e realizada por saltosbruscos», «numa fidelidade à expressão do homem dos nossosdias», vista como «caminho pensado e largo para orealismo» (Vértice, Novembro 1950).

Os textos da época são atravessados pelas primeiras tensões claras(mesmo se camufladas para passar nas malhas da censura) sobre oque deve ser a «linha do partido». Em Dezembro de 49, na revista Portucale, Pomar defendia que «numa obra de arte, fundo e forma  são inseparáveis - não há ‘altas intenções’ metidas em ‘formas pobres’», em oposição a uma muito citada fórmula de ÁlvaroCunhal (O Diabo, 1939) que dissociava formas e significados,

 para admitir que as «formas velhas – ainda que excepcionalmente – podem conter um significado moderno e progressista».

Uma palestra pedagógica publicada em 1951 («Ver, sentir, etc»,Vértice, Julho) faz um apelo à abertura por parte do espectador comum e do «verdadeiro trabalhador intelectual» diante da obrade arte, exigindo «uma educação dos sentidos» e «o convíviolongo com o objecto», «a lenta habituação à linguagem das formas», «para poder sentir a música ou as artes plásticas».Contra «o espectáculo da ignorância e a prosápia tola», lembraos exemplos das incompreensões que sofreram Rembrandt, Goyae Van Gogh, a «capacidade de modéstia» das investigações deHokusai e Cézanne, «porque, dia e noite, se ouvem condenar asmais variadas coisas, sejam elas quadros e esculturas, mesmoantes de qualquer modesta tentativa para o seu entendimento».

«Os girassóis de Van Gogh não são apenas um pobre vaso com girassóis. (…) Toda a obra de arte, a mais pequena obra de arte é

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a visão sintética e apaixonada do mundo, é uma parte, quantasvezes angustiante, de nós próprios.» Nela cabe, diz, a razão fria ea força do instinto, o irracional e o racional.

Ao analisar o caminho percorrido em cinco Exposições Geraiscomo «um corajoso movimento colectivo de renovação» (Vértice,1950), Pomar salientara que cada pintor  «busca encontrar o seucaminho próprio» e «afirma a sua personalidade», sublinhando«a diversidade patente entre as obras agora expostas, a riqueza ea variedade de perspectivas que o conjunto revela», de tal modoque «as afinidades se têm de buscar mais no plano ideológico do

que no enfeudamento a tipos determinados de realização formal».

Dizendo que «este grupo de artistas chama a si o lugar davanguarda no movimento artístico português», refere como sinalde «uma nova vitalidade vinda de um elan comum» que este«movimento introduz na arte portuguesa características novas,até mesmo nas formas que, sob determinado ponto de vista, se

  podem considerar como filiadas numa concepção de arte comoactividade mais ou menos desinteressada».

Dionísio e Pomar, as duas figuras principais do campo que, comodiz este, tem «o homem como tema central da arte», estãoenvolvidos numa luta pela «revalorização da legitimidade da pesquisa como motor central do trabalho do artista», ainda que os

seus textos sejam necessariamente atravessados pelas fórmulasideológicas do tempo e não cedam terreno «aos inimigos do novorealismo», como mostram os ataques aos surrealistas, aos « fait-neants literateiros» que «batem pelos cafés a tecla do formalismo»ou à «velha tradição aristocratizante que toma a cultura  portuguesa como mero arrabalde do boulevard de Saint Germain» (idem).

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A sua pintura de 1948 a 52 é esse caminho de pesquisa, mesmo deaprendizagem, que não tivera ainda tempo para fazer, observávelem ensaios que variam de quadro em quadro, sempre, aliás, em

  pequeno número, sem multiplicação dos achados ou soluções de

estilo. Ensaios partilhados com a ilustração, com a cerâmica, maisvendável, e com colaborações decorativas em obras dearquitectura, numa luta difícil pela sobrevivência económica deuma família que cresce. Predominam as figuras de mulheres emeninos como personagens principais a ocupar grandes planosestruturantes, as maternidades, interiores domésticos, os«subúrbios» e alguns tipos populares, as varinas, mulheres na

  praia ou no cais, entre a imagem vista e a alegoria procurada,explorando a sensualidade da linha (sentimentalmente às vezes) etambém a materialidade da cor, visando aprofundar ostestemunhos do real através da simplificação rítmica e daorganização decorativa da tela. Se é visível o interesse por Picasso, a sua influência directa é muito medida, evitando com adiversidade das informações (Matisse, Gromaire, etc) os

formulários do pós-cubismo que têm por esses anos grande curso,e grandes riscos de dependência.

O crítico José-Augusto França referia então «um formalismo fácil que parece sem remédio» (Seara Nova, 21-28 de Julho 1951).

  Na cerâmica e em pequenas esculturas de barro mostradas nas

exposições individuais de 1950 e 1952, em desenhos também,surge a novidade do humor e uma desconhecida veia satírica, logonotados por alguns críticos, em especial em séries de «animaissábios» que terão continuidade em alguns macacos de 62 e muitodepois mais largamente em tigres, porcos, mais macacos e outros

 bichos de particular estimação até ao presente. São de AlexandreO’Neill, presente nas exposições surrealistas de 49 e 50, as

 poesias do catálogo da segunda exposição, na Galeria de Março,dirigida por J.-A. França.

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Leitão de Barros, que já em 1950 o elogiara n’O Século como possível «expoente de geração» («poeta, com certos prejuízos damoda política embora, mas sincero do primeiro ao último gesto»),refere-o em 52 como «inconformista por temperamento, rebelde a

escolas ou a processos de lugar comum» («a sua arte é umamensagem sincera, independente e livre»). Destaca nessaexposição «uma notável série de desenhos», «que vale uma galeria», «onde o nu feminino, em interpretações de ténue traço,mas de poderosa síntese, transmite um sentido riquíssimo da forma e do movimento».

Por sua vez, o neo-realista Lima de Freitas refere o humor como«uma faceta até aqui inédita», no «ataque mordaz contra aimitação falsa do homem, o riso decisivo ante a ‘valsa’ dosmacacos» ( Átomo, Dezembro 52), mas comenta com distância oerotismo de novos nus: «Pomar compraz-se sobretudo em sentir adeliciosa canção das linhas que melodicamente reconstroem omais tépido e macio de um corpo jovem de mulher (…) São por 

certo imagens de paz, mas não a sua completa fisionomia actual,que é imperioso descrever». «Talvez a mulher, nos desenhos de  Pomar, seja um lugar de eleição, por isso extremamente,excessivamente aliciante» (Vertice, Janeiro de 53).

 Nota-se o subir de uma tensão interna no seio do movimento, emespecial no campo literário, que se vem tornando explosiva com

agressivas condenações dos desvios formalistas por parte de umsector duramente estalinista. É o eclodir da «polémica interna doneo-realismo», que divide os intelectuais do PC em 52-54, até àseguinte aprovação da linha de «combate ao sectarismo»8.

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8 . Ver João Madeira, Os Engenheiros de Almas. O Partido Comunista e os Intelectuais,Estampa, Lisboa, 1996, e, para o quadro político até 1949, José Pacheco Pereira, ÁlvaroCunhal, uma Biografia Política, II vol., Temas e Debates, Lisboa, 2001.

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Pomar censura então um artista que «percorre os ciclos de Paris sem ter por objectivo sair deles», apenas a «refazer experiências»,e pergunta: «Não será uma espécie de conformismo que conduz  g r a n d e p a r t e d a p i n t u r a a u m i n t r a g á v e l  

cosmopolitismo?» (Vértice, Fevereiro, 1953). No mês seguintecondena a abstracção geométrica de Edgar Pillet como «jogos deformas» de quem entende a pintura «como um fim em si», opçãoem que se denuncia «toda uma posição perante a vida» e «ummétodo metafísico de pensamento».

Mas é um artigo que se apresenta como um balanço global da

«tendência para um novo realismo», desde os seus primórdios em45, e uma declaração de confiança no fortalecimento da corrente,integrado num vasto inquérito sobre a arte em Portugal, publicadoem Dezembro de 1953 pel’O Comércio do Porto, que se deve ler como resultado directo da desgastante crise que então se vive.

Aí se refere Pomar ao «cair das ilusões que uma interpretação

apressada das consequências da 2ª Guerra Mundial ajudara acriar», e às suas consequências: «Entre aqueles que se afirmavamdentro dos princípios da corrente alguns perigosos caminhoscomeçaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a  substituir a agressividade dramática das primeiras tentativas. A procura das soluções formais começa a sobrepor-se ao vigor deconteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemasrealmente vivos». Diz então que «boa parte» do que pintou «nosanos de 49 a 51 oferece tais características, e desvios de tipoanálogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio». A censurado formalismo, do individualismo e do aristocratismo dosintelectuais comparecem neste momento de autocrítica.

Com este texto encerra-se, porém, a sua intervenção regular naimprensa.

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A produção de 1952, que também é de necessidade decorativa  para espaços de encomenda, já acusa o desgaste causado pelacedência à disciplina partidária, em novos painéis de teor políticocomo Marcha e A Vida e a Morte  (53), a que a conjuntura

nacional não podia servir de estímulo, ambos de uma esforçada eanedótica composição vergada à intenção demonstrativa. Osretratos seguintes, com parcial excepção para o do escritor eamigo José Cardoso Pires, têm idênticas dificuldades, ainda queem escultura tivessem surgido, entre 49 e 51, originais peças deretrato, em barro e cimento.

Algumas pequenas paisagens pintadas, também de 52, à data nãoexpostas, aparecem, porém, como íntimas alternativas, entre aobservação saborosa de falésias marítimas e espaços abertos auma invenção de formas algo imaginárias, de coloridoinesperamente irrealista num caso. Outras vistas de Lisboa, váriasdelas nocturnas, vão acontecendo nos incertos anos imediatos.

Este período mais difícil polariza-se nas duas telas maiores dochamado «Ciclo do Arroz», resultante de várias excursões aosarrozais do Ribatejo, feitas com outros artistas na companhia deAlves Redol, romancista conhecedor da região, num projecto deinspiração documental em contacto directo com o mundo dotrabalho, numa ambição de epopeia e comunicabilidade popular,então recomendada. Os dois «estudos» principais cumprem a

intenção verista e são o testemunho mais próximo das fórmulas dorealismo socialista, mas ainda resistem à convenção propagandística na sua austera disciplina formal e na tensão queexiste entre os corpos e os limites do quadro que os encerram.

O autor não os recusava, numa declaração recente: «Vemos aqui a presença do pintor muito mais neutralizada, o quadro a abeirar-sede um realismo fotográfico. Nele houve, voluntariamente, aadopção de uma linguagem a que na altura chamaríamosobjectiva. A proximidade da fotografia (de resto foram

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utilizados documentos fotográficos) é muito grande. No entanto,  sob a pretensa objectividade da representação, há umaarquitectura íntima, um jogo de formas nítidas que não andalonge de certas marcas futuras da minha pintura. A atracção pela

obra do Piero de la Francesca parece já lá estar.»9

V.1956-1968

Maria da Fonte, 1957, 121x180cm, Col. Part.

 Não existe uma ruptura súbita na pintura de Pomar e há tanto decontinuidade como de mudança na escassa produção conhecidaque expôs nas colectivas de meados da década de 50, ameaçada

  pelas limitações da situação portuguesa e por urgências detrabalho alimentar, que incluem encomendas decorativas, acerâmica e vidros. «Não pode haver pintura sem pintores. Não pode haver pintores se não houver ofício, e não há ofício se elenão for procurado. Ai do ofício cujos produtos não tiverem

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9. Ver nota 7.

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 procura! (…) O problema da pintura portuguesa não começa por   ser um problema de tendência; começa por ser um problema devida ou de morte», afirma em 1956 na resposta a um inquérito deO Comércio do Porto.

 Com a estranha melancolia de O Circo e O Baile, de 1955 e 56,duas festas tristes, despede-se o artista desses anos maisopressivos. Entretanto, o contexto artístico nacional alterava-secom a criação de novos salões colectivos desde 1956, terminandoentão as Exposições Gerais com uma edição de retrospectiva eainda de afirmação do neo-realismo; surgem as manifestações de

uma nova geração de artistas já distanciada das confrontações doimediato pós-guerra, e o início da acção da Fundação CalousteGulbenkian abre espaços alternativos aos do poder oficial. Pomar interessa-se mais activamente pela prática da gravura,dinamizando uma cooperativa de gravadores, e viaja com maior assiduidade, a Paris (56) e pela Itália (58 e 60).

A evolução vem de dentro da sua pintura, com aberturas a novosencontros e fidelidades a interesses anteriores, sem se apresentar como uma transformação estratégica ou uma decisão de ruptura.Maria da Fonte, de 1957, marca, contudo, um corte na obra dePomar , identificando-o Michel Waldberg como um novo quadro-manifesto, agora da pintura em si mesma, embora também

 pudesse ser visto como um dos pontos marcantes do neo-realismo10

.

Este quadro, nunca mais exposto desde que se mostrou, comsurpresa, na 1ª Exposição Gulbenkian, recorda uma revolta

  popular do século XIX e podia prolongar uma identificaçãosumária com o projecto de intervenção social a que o pintor era

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10 . Michel Waldberg, Pomar, Ed. de la Différence, 1990. Fernando Azevedo considerouMaria da Fonte «um dos pontos marcantes do neo-realismo português», Colóquio Artes, nº28, Junho de 1976.

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associado, indicando que as novas preocupações e qualidades  picturais que se lhe reconhecessem não o distanciavam dos  propósitos de uma firme posição política, que era uma atitudeinterior de rejeição do medíocre pântano nacional e não um

activismo partidário. A gravura que foi então premiada, Mulherdo Mar, filiava-se por inteiro na corrente do seu realismo maisliricamente populista.

O volume compacto e instavelmente lançado para a frente dasfiguras em movimento de Maria da Fonte, guiadas por uma novagadanha, domina uma composição dinâmica no seu deliberado

desequilíbrio perspéctico, que se constrói numa tensão explosivaentre brancos e manchas sombrias sobre um abstracto  espaçodramático. Ambição de pintura de história (e de diálogo com ahistória da pintura), vem na sequência das primeiras Marchas emanifesta o interesse por Goya, admirado em Madrid já no

 princípio da década e que ficara à espera, e também pela pinturasolitariamente moderna dos anos de juventude de Columbano11.

Os Cegos de Madrid , de 57-59, obra paralela e já sequencial, dá aver, como uma visão temível, uma massa humana em deslocação,ou em aparição, vinda de dentro do negro informe de um múltiplocorpo único que flutua num espaço vazio e luminoso  e se fendeem olhos de susto. Lota e Cena de Cais, de 58 e 59, sustentam aevolução do pintor em mais obras de ambicioso formato e

  primeira importância, de uma mesma «fase negra», estasretomando cenas urbanas que o neo-realista várias vezes abordara,embora trocassem pela invenção de uma nova densidade eteatralidade pictural a reconhecibilidade da mensagem, anterior 

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11 . « A romagem ao Prado e a Santo António de la Florida. Contacto ao vivo com Goya, edepois Columbano, duplo encontro que marca a Maria da Fonte sugerida pela leitura de

 Aquilino, cujo Romance de Camilo estava a ilustrar, conjunção ibérica…», in Helena Vazda Silva, Com Júlio Pomar, 1980, p. 84. (Pomar refere-se a Columbano Bordalo Pinheiro,1857-1929).

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questão chave da relação do artista com o público-povo e dautilidade da arte. O espectáculo visual observado que lhes serve de

 ponto de partida tornava-se vibrante espectáculo da pintura.

Em 1955, numa entrevista ao  Diário de Notícias, ficara dito por Pomar que o neo-realismo não teve nenhum resultado prático. «Deresto – acrescenta - não creio que isso deva preocupar o artista.Quando digo que a pintura tem uma função refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de umestado de espírito do que como acção sobre o público».

 Num depoimento ao Diário de Lisboa em 1958, sobre o 1º Salãode Arte Moderna, onde expõe Lota, diz que lhe interessa«encontrar uma expressão moderna verdadeiramentelocalizada»,   pela qual procuraria a adequação interna de umalinguagem própria a temas próximos, de algum modo nacionais,ou, melhor, ibéricos, recusando «os caminhos da arte pensados de  fora para dentro». Refere como exemplo as obras de Permeke e

  Nolde, que se individualizaram no quadro internacional pelaancoragem nos respectivos espaços culturais, e condena «os  profissionais da vanguarda» como «súbditos fiéis de todas ascorrentes parisienses». Reconhecendo então «o domínio daexpressão  não figurativa entre os mais jovens artistas», adiantaque «os jovens não estão ainda suficientemente amadurecidos  para contrariarem uma posição dominante na pintura moderna,

que lhes é apresentada como bandeira de actualidade e rebeldia,onde afinal muitas vezes há apenas uma aceitação de posiçõesoficializadas.» Argumentos também políticos são invocados, aocomentar a representação da Espanha na Bienal de Veneza «sócom quadros abstractos»: «de factos como estes poder-se-iaestabelecer uma relação entre uma rebeldia plástica e oconservadorismo dum Estado que a propõe.»

Maria da Fonte surgira enquanto tema entre as ilustraçõesdesenhadas, de 1955 a 57, para uma biografia de Camilo Castelo

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Branco. Nesse momento da obra de Pomar, a prática intensa dodesenho destinado à ilustração de obras literárias, que então se

 publicavam em edições de grande qualidade gráfica, em fascículosmensais, não é alheia à evolução da sua pintura por novos

caminhos expressivos. Vejam-se em especial os desenhos e osmuitos estudos realizados de 56 a 58 para Guerra e Paz deTolstoi, com o pincel japonês trazido de Paris, em sequência daadmiração por Hokusai, numa escrita veloz e sincopada onde asformas se definem na clareza e no ritmo dos gestos.

Por aí chegará à extrema tensão sintética de novos desenhos

eróticos, expostos em 61, prosseguidos em 65 numa série de«Étreintes», em paralelo com os ciclos dedicados ao «catch» e aPantagruel de Rabelais. Desenho entendido já como «escuta dotraço», do «traço justo (que) dá a forma», na busca de «identificar o traço e a respiração (…) e poder chegar à liberdade de umatotal ausência de determinação» (Pomar, Catch, 1984, a

 propósito dos desenhos de 1965).

Por outro lado, esse mesmo exercício da ilustração independentede compromissos descritivos, igualmente praticado em pinturas de

  pequeno formato para As Mil e uma Noites e várias antologias poéticas, desde 56, depois para a novela O Barão de Branquinhoda Fonseca e D. Quixote, em 57-59, permitirá, através do contactocom essas outras realidades que são os temas literários, uma

abertura ao imaginário iconográfico por onde se insinuaminteresses e linguagens antes contidos por uma disciplina que sequisera realista. 

É particularmente o caso das três dezenas de pequenas pinturas a  preto e branco com que ilustrou Cervantes (mostradas em 1960,numa primeira exposição individual desde 1952), as quais dãodepois lugar a uma sequência muito concisa de cinco pinturas demaior fôlego (60-63) já sem pretexto ilustrativo e a outra degravuras, e também a esculturas em ferros soldados. Essa é uma

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 primeira e isolada série ficcional que antecede de muitos anos osciclos sobre temas literários e mitológicos dos anos 80 e 90, quecomeçaram por reunir-se em Les Mots de la Peinture, em 1991.

  No ano de 1960, em que pinta também quadros tão marcantescomo Cena na Praia, O Carro das Mulas ou Estaleiro e inicia ociclo longo das Tauromaquias, Ernesto de Sousa dedica a Pomar uma primeira monografia onde toda essa evolução recente,observada no seu «encontro com as técnicas da abstracção», ésituada ainda no âmbito do realismo, conforme as classificaçõesvigentes à época. O crítico destaca em especial a procura de uma

tradição ibérica, identificando-a «na riqueza dramática» com que«organiza em profundidade o espaço plástico», quando o pintor járompera com a estruturação perspéctica do espaço.

Grande parte da recepção crítica da obra que se seguirá seria aindaenquadrada pelas questões da conflitualidade entre figuração eabstraccionismo, que persistem em Portugal ao longo da década

de 60, ora se valorizando vias de uma possível síntese com aabstracção, ora se supondo fatalmente necessária a desaparição dafigura. Na lógica formalista de uma pintura «pura» defendidacomo colectivo estilo moderno, saudava-se a «influência» doinformalismo gestual e a presença dos valores abstractos, massupunha-se dever suceder-lhes o abandono das referências aomundo visível. Haveria por consequência «uma hesitação

estética» e «uma íntima contradição expressiva», um debate nãoresolvido «entre um compromisso figurativo e uma vontade deexpressão directa», argumentos muito repetidos que em geral se

  prolongavam no reconhecimento de uma «espantosa habilidadeoficinal». O tema do virtuosismo podia então dar lugar à censurade «uma concessão excessiva ao bom gosto burguês que debilita arotundidade e a força da sua mensagem», ou de «uma pintura quetem enveredado pelo aspecto mundano e agradável».

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Pomar, que escassamente comenta então a pintura que expõe (atéregressar à escrita nos anos 70), reivindicava-se à margem deescolas e de fórmulas, escolhendo «o risco de uma posição solitária»: «É preciso estar com o seu tempo, é preciso estar 

contra ele». Estar «contra a corrente», dirá noutra entrevista posterior. Afirmando-se interessado em personalidades e não emtendências, preferia indicar «antepassados» como Uccello eVelasquez, aos quais acrescentaria em 1967 os contemporâneosBacon e Rauschenberg12.

Campinos, 1963, 97x130cm; Col. CAM / Gulbenkian 

 Neste primeiro período mais produtivo de uma carreira que se farásempre através de sucessives mutações e fases, as Tauromaquiassurgem, com a diversidade dos seus vários tópicos temáticos,como uma série mais emblemática, até às Corridas de cavalos já

 pintadas em Paris, para onde Pomar se muda em 1963. Nelas se

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12. Entrevistas publicadas em 5 de Março 1964, 26 de Fevereiro de 1966, 2 de Março de1967.

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  polarizou a leitura de uma problemática do movimento,diferenciado nas duas séries, onde a arquitectura tensional dasforças em combate, primeiro, e depois a velocidade contínuacoincidem no jogo pictural enquanto arabesco sincopado e surgir 

diferido da forma que constrói o seu próprio espaço. No entanto,em quadros dos mesmos anos, Pomar também persegue imagensdo mesmo mundo do trabalho com que o neo-realismoromanticamente se quisera identificar, revisitando-o agora sem osentraves do projecto alegórico associado ao anterior vínculoideológico.

Cenas de cais, pescadores e sargaceiros, pastores, as debulhas, o pisar do vinho, integram o largo reportório de um teatro social queé agora motivador pelo seu intrínseco dinamismo visual, primeiroem busca da viabilidade de uma linguagem descritiva, depoisseguindo a efervescência da presença humana e a impermanênciado instante visto, sem que o pintor se detenha em códigos derepresentação estabilizados. É essa abertura a uma impregnação

  pelo real, mais vivência do que observação apenas, que o pintor refere numa entrevista de 1964 em se declara «o contrário o deum pintor abstracto»: «O que sobretudo me atrai, e se transforma  por isso em pretexto de pintura, é o que em si abriga e  simultaneamente gera sensações diversas: movimento, cores –   porque não ruídos e cheiros? Todos os espectáculos em que os  sentidos se completam, em que a imagem é múltipla: multidões,

  praias de pescadores, fainas de campo, mercados, as grandescidades e, naturalmente, as corridas de touros. O que se agita,move, transforma.»13 

 Nesse trânsito do visto, e sentido, ao visível pictural, ao fazer doquadro, é cada vez mais a arquitectura efémera do espectáculo queimporta, na contingência mutável da cena de grupo enquanto

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13 . Entrevista de Maria Lamas, 5 de Março 1964.

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conjunção instantânea de formas e forças, e a representação torna-se inscrição caligráfica de fulgurações, cintilação breve de cores,traço ou marca que no seu movimento constrói e faz vibrar oespaço da tela. As diferentes «coisas» vistas como motivo

(modelo) da pintura, o espectáculo de touradas e corridas, de personagens ou multidões, precipitam-se num mesmo observar doacontecer da imagem, do aparecer da forma e do seu desfazer,como tradução da sua instável mobilidade. A figura irá dissolver-se na energia das suas linhas de força e no movimento do seuaparecer. Nesse caminho, Pomar não partia de uma influência doinformalismo ou expressionismo gestual, como a sua obra da

viragem dos anos 50 para os 60 comprova, mas chegava a umaidêntica vertigem do fazer pictural por necessidade própria da suaexpressão do real visto. Nos sucessivos estudos realizados de 1961a 64, pelo menos, a partir da Batalha de San Romano de PaoloUccello, ensaia os limites da possibilidade de sustentar a solidezde uma dinâmica tensional com a gestualidade da pintura, sem sedesvanecerem as referências no gesto só.

À longa série das corridas de cavalos, muito breve no tempo,travando uma sucessão virtuosística, sucedem a retoma ocasionaldos metros, com a sua especulação sobre espaços tubulares evelocidades, e também o ensaio de um novo tema, os combates decatch a que assiste nas salas Wagram e Elisée Montmartre. Destesobreviveram, além da série de desenhos editados em 1984, algunsacrílicos sobre papel ou tela onde leva mais longe que nunca, até à

total desfiguração, a via do informalismo gestual, mas o grossodessa produção seria destruída.

Abria-se então um longo período de ausência das exposições, emLisboa e em Paris, entre 1966 e 73 (excepto quanto aos desenhosde Pantagruel, em 67, e já a presença dos Banhos Turcos emraras mostras colectivas, a partir de 71), numa distância que 

testemunha a prioridade da pesquisa pictural sobre a urgência deexpor, contando o pintor com alguns coleccionadores fiéis.

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As assemblages de 1967 (expostas só em 78 e 79, já em conjuntocom um novo ciclo da sua produção) são um acontecimentolateral, um «trabalho de Verão», mas com consequências, em

grande medida não imediatas, no curso da pintura de Pomar. O  jogo com as coisas encontradas, uso de formas e a suatransformação noutras, não se orienta no direcção de umareciclagem de sentidos, na pista do «ready-made», ou numexercício do «non-sens». Nessa reconfiguração sem destino ouchave oculta, achamento e visão, montagem e desmontagem, estãono princípio e no fim desse uso das coisas, suspenso na prática da

sua transformação, antes de serem ícones ou panóplias. Uma prática que não será alheia ao posterior uso heráldico dos corposfragmentados e às colagens de desenhos recortados.

Os Rugbys nascem então com um diferente vigor plástico, numexercício que já é de atracções e choques de corpos humanos,mediado pela velocidade do jogo, numa série sugerida por recortes

fotográficos, sem interesse em frequentar os estádios.Interrompem-se nos três retratos de 67-68, excepcional retorno àrepresentação da figura isolada e imóvel, mas tornada movimentoe tempo da pintura, numa dinâmica de experimentaçõesdivergentes que contêm sempre possibilidades de futurosdesenvolvimentos.

Com os Rugbys conjugam-se de imediato os Maios 68, que foramresposta pronta ao espectáculo das ruas de Paris e transformaçãoacelerada da pintura de Pomar (ambas as séries só foram

 parcialmente expostas em 1986-87). A arquitectónica gestual quese experimentara nas batalhas de Uccello, reconfigurada agora noenfrentamento de escudos e matracas, vai dando então lugar crescente à nitidez do recorte das formas em largas zonas de cor 

  plana, numa mudança radical de processos. Por onde se faz atransição, em sucessivas rupturas de interior necessidade, para a

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rigorosa definição das formas-corpos que abandonam a dinstinçãoentre figura e fundo nas variações sobre os Banhos Turcos deIngres. Eram corpos femininos esses, abrindo novas

 possibilidades.

Mai 68 (CRS-SS) II, 1968, 97x130cm; Col. Jorge de Brito, Cascais 

#

* “Déformation profissionelle: je ne crois pas à l'infaillibilité du Pape.

Chaque jour, chaque minute, je remets le monde en question. Le métier de  peintre est un métier de recherches, de découvertes, d'inventions:recherches, inventions, découvertes qui naissent de la vie et retournent àelle. Il fut un temps où je méprisais certains sujets? La faute en était à moi. Le sujet n'est pas le contenu, il est un prétexte, rien que cela. Le contenu,c'est la synthèse dialectique entre le sujet et l'experience personelle, vécuede l'artiste. Il se manifeste dans la forme, vit en elle, est exalté par elle. Les contenus de mes toiles sont ‘les raisons qui m'aident à vivre.’” J.P., in

«Bilan de l’Art Actuel», Soleil Noire. Positions nº 3-4, Paris 1953.

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 http://www.ladifference.fr/-catalogues-raisonnes-.html?catalogue=3&livre=173#livre173

http://www.althum.com/index.php?cid=__catalogo&prid=5bf2413143e72eab

 

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