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Teatro

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

    ESTUDOS DE TEATRO

    Jlio Csar Machado Cronista de Teatro: Os Folhetins dA Revoluo de Setembro e do Dirio de Notcias

    Licnia Rodrigues Ferreira

    MESTRADO EM ESTUDOS DE TEATRO

    2011

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

    ESTUDOS DE TEATRO

    Jlio Csar Machado Cronista de Teatro: Os Folhetins dA Revoluo de Setembro e do Dirio de Notcias

    Licnia Rodrigues Ferreira

    Dissertao de Mestrado orientada pelo Professor Doutor Jos Cames

    MESTRADO EM ESTUDOS DE TEATRO 2011

  • RESUMO

    Atravs do folhetim uma categoria jornalstico-literria indissocivel da imprensa peridica oitocentista , procuramos nesta dissertao traar um panorama do movimento teatral de Lisboa entre os anos de 1850 e 1890. Para isso, recorremos aos folhetins de Jlio Csar Machado, celebrado autor na poca, particularmente os dA Revoluo de Setembro e os do Dirio de notcias. Tratando-se de uma figura muito ligada ao teatro como tradutor, dramaturgo, bigrafo e crtico , revela-se um observador atento das transformaes que a sociedade sofre, bem como dos sinais de mudana nas correntes artsticas. O olhar que Jlio Csar Machado lana sobre os espectculos, os pblicos, as figuras de palco e a literatura dramtica, transposto para as suas crnicas em folhetim, e para a sua obra em geral, ergue-se, assim, como importante documento para a histria do teatro em Portugal.

    Palavras-chave: Jlio Csar Machado, Folhetim, Teatro oitocentista, Crnicas teatrais, Pblicos, Espectculos

    ABSTRACT

    The present dissertation intends to trace a wide view of Lisbons theatrical movement between 1850 and 1890, supported on the feuilleton, a journalistic/literary genre, highly related with the nineteenth century periodical press. In order to fulfil this purpose, we explore the feuilletons of Jlio Csar Machado, a renowned writer at that time, particularly those of the newspapers A Revoluo de Setembro and Dirio de Notcias. Being Machado a well known intellectual in the theatre scene as a translator, dramaturge, biographer and critic, he reveals himself a sharp observer of the social transformations as well as of the signs of change in the artistic streams. Jlio Csar Machados view on the shows, the audiences, the stage artists, and on the dramatic literature, documented in his chronicles and in his works in general, emerges as an important source of information for the history of the Portuguese Theatre.

    Keywords: Jlio Csar Machado, Feuilleton, 19th Century Theatre, Theatre Chronicles, Audiences, Shows

  • SUMRIO

    Introduo...............................................................................................................................1

    1. O folhetim...........................................................................................................................5 1.1 Crnica de teatros.................................................................................................6 1.2 De Antnio Pedro Lopes de Mendona a Jlio Csar Machado........................10

    2. Jlio Csar Machado e o folhetim....................................................................................16 2.1 Percurso teatral...................................................................................................16 2.2 O folhetim dA Revoluo de Setembro.............................................................27 2.3 O folhetim do Dirio de notcias........................................................................31 2.4 Folhetins de outros peridicos............................................................................34

    3. Temtica teatral................................................................................................................37 3.1 Teatros................................................................................................................38 3.1.1 Teatros pblicos de Lisboa..................................................................38 3.1.2 Teatros particulares..............................................................................48 3.1.3 Outros teatros do pas..........................................................................51 3.1.4 Teatros estrangeiros.............................................................................53 3.2 Espectculos.......................................................................................................55 3.2.1 Dramas.................................................................................................58 3.2.2 Comdias.............................................................................................62 3.2.3 Revistas................................................................................................66 3.2.4 Farsas...................................................................................................68 3.2.5 Melodramas.........................................................................................69 3.2.6 Tragdias..............................................................................................70 3.2.7 Mgicas................................................................................................71 3.2.8 Operetas...............................................................................................72 3.2.9 Rcitas de companhias estrangeiras.....................................................73 3.3 Pblicos..............................................................................................................76 3.4 Figuras de palco e bastidores..............................................................................87 3.5 Literatura dramtica..........................................................................................103

    4. Incurses teatrais (obras de Jlio Csar Machado)........................................................116

    Concluso...........................................................................................................................128

    Bibliografia.130 Peridicos...............................................................................................................130 Obras de Jlio Csar Machado (monografias e partes de monografias)........130 Sobre Jlio Csar Machado....................................................................................134 Sobre o teatro oitocentista......................................................................................136 Sobre o folhetim e a imprensa peridica................................................................138 Obras de contextualizao......................................................................................140

  • Anexos................................................................................................................................142 Anexo 1 Lista cronolgica dos folhetins de Jlio Csar Machado nA Revoluo de Setembro143 Anexo 2 Lista cronolgica dos folhetins de Jlio Csar Machado no Dirio de notcias...........................................................................................................................154 Anexo 3 Lista alfabtica de espectculos recenseados por Jlio Csar Machado nA Revoluo de Setembro e no Dirio de notcias......................................................165

    Anexo 4 Alguns folhetins (transcrio)...........................................185 A Revoluo de Setembro, 15 de Maio de 1860.....185

    A Revoluo de Setembro, 9 de Julho de 1861.......190 A Revoluo de Setembro, 25 de Maro de 1862...194

    Dirio de notcias, 20 de Dezembro de 1883.................197 Dirio de notcias, 8 de Maio de 1884...........................201 Dirio de notcias, 24 de Outubro de 1889....................205

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    INTRODUO

    O fenmeno teatral tem sido alvo das mais diversas abordagens nas ltimas dcadas, em reaco tendncia dominante de considerar o teatro sobretudo pela face da literatura dramtica. Por um lado, pretende-se estudar o teatro enquanto espectculo, analisando cada componente da sua produo, desde actores a cenrios, tcnicas, encenao, ritmo ou movimentaes, num contexto de esttica mas tambm de crtica. Por outro lado, tem-se igualmente relacionado o teatro com outras disciplinas, quer artsticas, quer de diferentes reas, como a antropologia, a lingustica ou a psicologia. Podemos dizer que uma perspectiva presente no trabalho que aqui apresentamos de carcter sociolgico; no obstante, ele procura tambm contribuir para o conhecimento da histria de alguns daqueles elementos do espectculo e mesmo da escrita teatral. Este tipo de abordagem prende-se com a necessidade de determinar e pr em evidncia o lugar que o teatro ocupou na sociedade portuguesa (melhor seria dizer lisboeta) do sculo XIX. So vrios os sinais dessa centralidade do acontecimento teatral, entre os quais se reconhece uma categoria jornalstica/literria em que ele se encontra exposto em abundncia, o folhetim, e, de forma muito especial, os folhetins de Jlio Csar Machado. Atravs deste subconjunto de textos, possvel projectar aquilo que foi o teatro daquela poca: simultaneamente, um espao de divertimento, de sociabilidade e, embora em menor grau, de formao. O folhetim era, para Jlio Csar Machado, crnica de costumes, onde se espelhava a vida de Lisboa do seu tempo. As suas observaes tomavam a forma de um retrato do quotidiano, de tipos sociais, de modas e hbitos, de acontecimentos, enfim, da sociedade que o rodeava. A obra de Jlio Csar Machado , pois, um testemunho repleto de informaes para a histria do teatro portugus do sculo XIX. Os escritos deste autor, incluindo literatura dramtica, biografias de actores e um livro sobre os teatros de Lisboa, so profundamente imbudos de esprito teatral, e reportam-nos os mais variados conhecimentos sobre o mundo artstico do seu tempo.

    Nos folhetins de jornal, Jlio Csar Machado dava notcia dos principais espectculos a decorrer na capital, analisando os seus diferentes ngulos sem esconder a personalidade do folhetinista, servindo-se, outras vezes, do rodap dos jornais para divulgar dramas publicados, para falar de dramaturgos, para publicar apontamentos

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    biogrficos de actores ou fisiologias1 de artistas. Neste sentido, as crnicas jornalsticas de Jlio Csar Machado so tambm um sintoma dos gostos teatrais do seu tempo, de modo que ser necessrio indicar, ao longo deste trabalho, as principais tendncias estticas do teatro em Portugal, nomeadamente no perodo entre 1850 e 1890. Poder-se- ainda estabelecer uma relao com elementos como a recepo e o comportamento do pblico perante os espectculos, uma vez que este era outro dos tpicos a que Jlio Csar Machado se referia no folhetim.

    Foi j reconhecido, por nomes como Vtor Wladimiro Ferreira, Ernesto Rodrigues ou Vitorino Nemsio, que est por explorar toda uma literatura espalhada pelos rodaps dos jornais, da qual se extrairiam informaes teis para a compreenso de uma poca, nos mais variados aspectos2. A investigao que realizmos permitiu-nos comprovar essa projeco, ao constatar como o folhetim se ergueu como fenmeno de popularidade, no qual se debatiam assuntos to dspares, das polmicas pessoais divulgao cientfica, servindo de veculo ao desejado alargamento da instruo. Atestmos igualmente que o teatro era assunto frequente desse espao jornalstico, no conjunto dos autores (por vezes annimos) que publicavam folhetins, com especial relevncia junto do autor objecto do nosso estudo.

    Paralelamente, foi do mesmo modo reconhecido que no s a obra monogrfica de Jlio Csar Machado era valiosa para o estudo da sua poca, assim como os inmeros textos que deixou publicados em tantos ttulos de jornais e revistas requeriam uma ateno particular, de modo a potenciar o seu idntico valor. , tambm, para combater a permanncia de uma ideia mutilada ou elitista de cultura que aqui deixamos o nosso contributo, trazendo luz esses textos abandonados, reconhecendo igualmente, da nossa parte, o mundo que ficou perdido em memrias fugazes. Aqui apenas nos limitamos a um vector desse mundo, o teatro, que, sendo ele prprio uma manifestao fugaz, de semelhante forma foi inscrito nas crnicas semanais de Jlio Csar Machado, que depressa perdiam a actualidade.

    Jlio Csar Machado era um dos intelectuais que melhor conheciam o meio teatral do seu tempo. No era principalmente um saber tcnico aquele a que nos referimos, mas

    1 Retomando uma prtica vinda de Frana, a designao fisiologia, emprestada das cincias naturais, onde

    significa o estudo dos mecanismos vitais dos seres vivos, assumia para os intelectuais oitocentistas um sentido de anlise social, de investigao dos costumes. 2 Veja-se por exemplo o Prefcio de V. W. Ferreira edio de 1992 de Contos ao luar; de V. Nemsio,

    Jlio Csar Machado e os folhetinistas, in Ondas mdias (2000); e Ernesto Rodrigues, Mgico folhetim (1998).

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    sim, em primeiro lugar, um conhecimento da teia de relaes implicadas no processo teatral, das pessoas, da sua dimenso envolvente, pblica e privada. Como veremos, isso deve-se ao percurso biogrfico do autor, que no s contou com uma propenso inata para o mundo das artes e letras como tambm reuniu na sua vida uma srie de circunstncias que o aproximaram do teatro. O certo que estas condies lhe deram a possibilidade de conhecer e divulgar aquilo que sabia a propsito do teatro coevo (e no apenas o de Portugal), num estilo pitoresco que, embora carregado de subjectividade e muito marcado pelo gosto da poca, no deixa de ter validade histrica.

    Em suma, a escolha do folhetim de Jlio Csar Machado para objecto desta dissertao prende-se com as duas faces em que o teatro nele se revela: enquanto espectculo, manifestao artstica, e enquanto acontecimento ou fenmeno social. Com a anlise da presena do teatro no folhetim de Jlio Csar Machado pretende-se mostrar, pois, que este um conjunto documental que deve ser valorizado no estudo da actividade teatral da segunda metade do sc. XIX em Portugal. No que diz respeito a uma assimilao intelectual do pensamento de Machado, dentro dos limites em que circula o escritor, ela foi por vezes perturbada por incoerncias, em certos casos apenas decorrentes de imprecises na sua escrita. Procurmos, assim, ultrapassar os obstculos coerncia e unio do pensamento do autor, de modo a que no afectassem a compreenso do texto, simultaneamente respeitando a ideia original.

    medida que fomos encontrando lacunas relativas vida e obra do autor escolhido, procurmos colmatar essas falhas, na certeza de ser Jlio Csar Machado uma figura, a vrios nveis, merecedora de maior ateno. Devido existncia de tradues que ficaram inditas e, acima de tudo, elevada produo jornalstica, as dificuldades de uma reunio completa dos escritos de Jlio Csar Machado so evidentes, no entanto, a bibliografia que apresentamos no final, conscientes de no esgotar todas as referncias, j bastante extensa.

    O corpus seleccionado (por razes que exporemos adiante) para servir de base ao contedo primacial desta dissertao consiste num conjunto de perto de trs centenas de folhetins do jornal A Revoluo de Setembro e de uma centena e meia do Dirio de notcias, sendo, por conseguinte, estas as obras mais citadas, adoptando-se as referncias abreviadas RS e DN, respectivamente.

    De resto, a ortografia foi actualizada (pr acordo ortogrfico de 1990), quer na transcrio de textos quer na citao de ttulos, de modo a facilitar a leitura e a compreenso. Na verdade, na poca a que nos reportamos a ortografia no estava ainda

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    uniformizada. A prpria pontuao foi por vezes acertada de modo a clarificar o sentido ou a conform-la com as regras gramaticais. Note-se, alis, que sucedia com frequncia uma alterao da pontuao original no momento da composio tipogrfica na imprensa.

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    1. O FOLHETIM

    Nos ltimos anos surgiram alguns estudos sobre o folhetim da imprensa portuguesa. Por entre artigos e trabalhos de maior envergadura, pontificam as teses doutorais de Ernesto Rodrigues Mgico folhetim: literatura e jornalismo em Portugal (1998) e de Ftima Outeirinho O folhetim em Portugal no sculo XIX: uma nova janela no mundo das letras (2003). Encontra-se, pois, este gnero influente historiado quer a nvel nacional quer a nvel das suas origens francesas. No descreveremos aqui, portanto, seno as etapas fundamentais do desenvolvimento desta categoria jornalstico-literria. O que nos pareceu necessrio evidenciar, olhando para os traos distintivos dessa histria do folhetim, foi a forte presena dos assuntos teatrais, desde o primeiro momento. Ora, se o folhetim se tinha assumido como um fenmeno popular e marcante da histria literria do sculo romntico, era preciso ento perceber qual o papel do teatro nesse fenmeno, descobrir o seu envolvimento profundo nessa popularidade.

    O caso portugus, respirando as essncias francesas, seguia os mesmos parmetros, sucedendo naquele espao delimitado do rodap dos jornais (ou mesmo de revistas) uma frequente invaso de assuntos teatrais. Existem peas de teatro, originais ou traduzidas, que foram primeiro publicadas em folhetim, antes da passagem ao formato livro; existem estudos sobre a arte dramtica publicados em folhetim, numa perspectiva histrica ou esttica. Porm, o centro desta dissertao localiza-se num tipo especfico de folhetim, o de crnica, que constitui um notrio testemunho da passagem do sculo, incluindo a vida teatral. Essas crnicas traduzem precisamente isso: o que havia de vivo no teatro, os espectculos e o que se movia sua volta, circunstncias que a histria do teatro tem dificuldade em recuperar. O contexto especfico destas crnicas no pode, no entanto, ser descurado, pois elas so um sintoma do significado cultural do teatro naquela poca.

    O folhetim constitui, com efeito, uma fonte documental importante para a histria do teatro em Portugal, como procuraremos demonstrar ao longo deste trabalho, que versa sobre o perodo temporal de maior sucesso do folhetim entre ns, isto , desde a dcada de 1840, pouco depois do seu surgimento nas pginas da imprensa portuguesa, at ao final da dcada de 1880.

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    1.1 Crnica de teatros

    A Frana surge como lugar de origem do folhetim, as coordenadas temporais situam-no no final do sculo XVIII. Tem uma pr-histria ligada difuso da imprensa poltica e literria nascente da Revoluo Francesa, associada desde cedo rubrica de Espectculos, mas o ponto de partida do folhetim tal como se caracterizou ao longo do sculo XIX data, precisamente, do ano de 1800. No incio desse ano, o abade Julien-Louis Geoffroy (1743-1814) comea a publicar (a 28 de Janeiro de 1800), na parte inferior das colunas do Journal des dbats de Paris, as suas crnicas. O que significativo que a contratao deste cronista por parte do jornal lhe transmite o objectivo de dar conta dos teatros nesse espao delimitado por um filete negro, ao fundo da pgina. Assim, em tom meio srio meio jocoso, Geoffroy inaugurou a poca do folhetim falando sobre teatros, e com um tal sucesso que fez aumentar as assinaturas do jornal.

    O xito levou a que, alguns anos depois, se procedesse a uma recolha de folhetins de Geoffroy, compilada sob o ttulo Cours de littrature dramatique (Paris, 1819). O prlogo da segunda edio (1825) explica a relevncia desta publicao:

    Les feuilletons de Geoffroy avaient obtenu un succs si prodigieux, et avaient mme exerc une telle influence sur la littrature, quil et t dommage de les laisser tomber dans loubli: cet t une vritable perte; car ils contiennent ce quil y a de mieux pens sur notre thtre, et prsentent en mme temps un livre aussi agrable quinstructif (p. I).

    E acrescenta: desenganem-se os que julgavam terem esses folhetins apenas o interesse momentneo de uma folha de jornal, pois a escrita de Geoffroy, embora ao correr da pena, era fruto de estudos continuados. por isso que o conjunto dos seus folhetins redigidos ao longo de 14 anos se pode considerar um verdadeiro Curso de literatura dramtica. A sua funo no Journal des dbats era, pois, escrever (em folhetim) a crtica do teatro francs. A consistncia e o esclarecimento com que desempenhou o cargo tero mesmo levado as suas ideias a influenciar o gosto do pblico (ibidem: XV). Os folhetins de Geoffroy agradavam aos leitores e eram comentados nas conversas de salo, nas reunies da sociedade. Para os escrever, assistia s primeiras representaes, na pera e no teatro declamado, e exprimia as sensaes a experimentadas:

    Son ministre thtral tait tellement tendu, son activit si remarquable, quil ne ddaignait pas dassister aux premires reprsentations des petits thtres, depuis le Vaudeville jusquaux danseurs de corde, Forioso et Ravel, et jusquau thtre de Pierre:

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    tout ressortissait de son tribunal, tout ce qui tenait aux jeux de la scne rentrait dans ses attributions; il stablissait le rapporteur de la plus petite affaire, et donnait toujours ses conclusions (ibidem: XXIV-XXV).

    A frmula do sucesso dos folhetins de Geoffroy ter sido, a partir de uma escrita de tom impressionista, transmitir contedo instrutivo de um modo que agradasse e at divertisse o leitor (ibidem: XXXI).

    A eleio do teatro como tema central prende-se com a grande importncia que esta arte adquiriu na sociedade francesa no ps Revoluo Liberal, exprimindo as suas aspiraes, enquanto o folhetim integrava a crescente classe dos leitores. Ele marcava no dia-a-dia a volubilidade do quotidiano, ou ento trazia a lume as conquistas do sculo que haveriam de perdurar. O folhetim, no entanto, haveria de ser recordado sobretudo pelo romance-folhetim, que trouxe uma frmula certeira para atrair o pblico, suspendendo a narrao no auge das emoes, prometendo a continuao no nmero seguinte.

    Outro dos maiores folhetinistas franceses, Jules Janin a principal influncia estrangeira de Jlio Csar Machado , direccionava tambm os seus textos para a crnica teatral. Estes folhetins ficariam reunidos em quatro volumes de Critique dramatique. O Journal des dbats foi igualmente o lugar onde se destacou no folhetim, desde o final de 1829, altura em que entrou no jornal para substituir Duviquet. O primeiro folhetim que aqui publicou versava sobre a representao inaugural do drama em verso Ngre, no Thtre-Franais. Eis como o autor interpreta a sua estreia:

    Telle fut mon entre au feuilleton; pour qui veut lire avec sang-froid cette ironie o la forme et le fond sont tout fait lunisson dune chose de mauvais got, dans le fond et dans la forme, il est impossible de sexpliquer comment il sest fait que, dans un journal aussi grave, et cette mme place occupe par des crivains judicieux, corrects, et dun style si calme et si pos, cette infraction tous les usages de la critique savante nait pas t immdiatement rprouve. Au contraire, il ny eut quune voix pour approuver ma hardiesse Elle tait nouvelle en ce lieu de si bonne compagnie, et voil pourquoi elle russit (Janin, 1877: 17).

    Janin tinha um concorrente que com ele rivalizava nos folhetins teatrais: Thophile

    Gautier, jornalista do La presse, onde se lanou em 1837 com um folhetim de revista teatral, prosseguindo nessa especialidade por mais de trs dcadas (Berthier, 2004: 443). Ora, o caso de Gautier deu igualmente origem a uma seleco dos melhores folhetins dramticos que escreveu para o La presse, reunidos em seis volumes publicados em 1858 sob o ttulo talvez o mais ambicioso de Histoire de lart dramatique en France depuis vingt-cinq ans (ibidem: 445). Tanto este como Janin, no entanto, se debatiam com o

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    embarao de ter que falar todas as semanas de espectculos por vezes medocres, j para no mencionar aquelas em que absolutamente nada de interessante havia para contar. Esse era um problema que, entre ns, Jlio Csar Machado enfrentava da mesma maneira (como outros). Alis, as palavras que Patrick Berthier, especialista em literatura e jornalismo do sculo XIX francs, utiliza para descrever o modo como Gautier contorna a questo aplicam-se muito bem a Jlio Csar Machado:

    Gautier ne se prive pas du plaisir ou de la commodit de parler de tout autre chose que de thtre, notamment les semaines o la rcolte est mince: ncrologies dartistes, comptes rendus de livres, dessais sur lart, dditions illustres doeuvres classiques ou contemporaines (par Gustave Dor notamment). Mais encore il convoque tout un discours interne sur lactivit feuilletonesque elle-mme, qui permet dtablir entre lui-mme et son devoir critique une distance humoristique, surtout sensible dans les premires annes (ibidem: 446-447).

    Em Csar Machado havia at outro gnero de folhetins a entremear as crnicas da semana, de tempos a tempos, nomeadamente, atravs de pequenos contos, relatos de viagens ou fisiologias contemporneas. De resto, uma parte das crticas formuladas ao estado da literatura dramtica ou qualidade dos espectculos por Gautier em relao cena francesa repete-se na pena de Machado, aplicada realidade portuguesa.

    Temos portanto os ttulos Curso de literatura dramtica (Geoffroy), Crtica dramtica (Janin) e Histria da arte dramtica (Gautier), o que significa que a Frana, no imediato contexto, soube dar importncia aos escritos nicos de cada um destes folhetinistas e percebeu a necessidade de os extrair da volatilidade das folhas de jornal. O conjunto dos folhetins de crtica dramtica de cada um deles constitui um documento incontornvel da arte do teatro tal como se desenvolveu em Frana, mormente em Paris, no perodo em que escreveram, e da que eles tenham sido encarados como verdadeiros cursos de histria e esttica do teatro.

    A conexo folhetim-teatro era to bvia que, em pouco tempo, os dicionrios apresentavam o folhetim como a parte dos jornais onde se lia a crtica das peas de teatro e de outras obras (cf. Rodrigues, 1998: 203). A evoluo do gnero tornou-o permevel a todo o tipo de assuntos, o que se veio depois a reflectir nas entradas de dicionrio; de qualquer forma, sintomtica esta origem do folhetim, entroncada em dois vectores, a crnica e o teatro. O folhetim-crnica era, pois, a modalidade mais genuna do folhetim, e a que poderia quase classificar-se como um gnero prprio do discurso jornalstico.

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    Dada a extrema variedade de assuntos que quadram o folhetim, a nica coisa que resta de comum a todos eles apenas uma configurao espacial, uma dimenso fsica que os situa ao fundo da pgina de um jornal ou de uma revista, com um nmero varivel de colunas (de duas a sete) e de pginas ocupadas (geralmente uma ou duas, por vezes trs). Depois, muitos dos textos que os preenchem seriam passveis de se colocar noutra seco do jornal ou at em livro, embora se possa observar uma certa adaptao ao espao do folhetim, quer sejam romances, contos, peas de teatro, poesia, artigos cientficos ou mesmo algum tipo de crnicas. A crnica de folhetim, por sua vez, adquire traos especficos, tais como a linguagem corrente, a ligeireza de tom, a reflexo sobre si mesma, a presena marcada da individualidade do cronista ou a semelhana com uma conversa.

    Ernesto Rodrigues (1998) historia o percurso do folhetim na imprensa portuguesa. Indica o Peridico dos pobres no Porto como o primeiro jornal portugus com folhetim (p. 236), no que depois corroborado por Ftima Outeirinho (2003). Seria ento o artigo Ano novo, datado de 1 de Janeiro de 1838, o primeiro folhetim portugus. A sua temtica de carcter editorial, em particular de opinio relativa actualidade poltico-social, o que se mantm nos folhetins seguintes; a temtica teatral, porm, no se fez esperar muito: ela

    surge de imediato no n 14, de 16 de Janeiro de 1838. Dos outros peridicos identificados para os alvores do folhetim em Portugal (O atleta, o Correio de Lisboa e O nacional, em 1839), Ernesto Rodrigues aponta matrias que em geral remetem para questes de actualidade, eventualmente de cariz teatral, embora no incio no assumam a designao Folhetim (o que alis nem sempre aconteceria mais tarde, depois de consolidada a categoria), preferindo outras como Variedades ou Miscelnea. Segundo Ernesto Rodrigues, a primeira vez que o cabealho Folhetim aparece efectivamente num rodap de jornal acontece na Revista teatral, em Agosto de 1840: A primazia, apesar da hesitao, vamos atribu-la Revista Teatral (Lisboa), no esprito das origens teatrais da frmula (p. 238).

    Em suma, o folhetim surge na imprensa portuguesa no final da dcada de 1830, muitos anos depois do seu aparecimento em Frana. medida que se instala nos rodaps periodsticos, a temtica teatral ocupa cada vez mais linhas, como observa ainda Ernesto Rodrigues: Se, de novo em 1840-1841, o propsito poltico anti-cabralista qualifica um tom, a erupo de uma subjectividade marca o espao de dirio onde se impor a cronstica de A. P. Lopes de Mendona e Jlio Csar. Os teatros reassumem a dianteira crtica (p. 238). E os prprios folhetinistas vo ganhando conscincia da responsabilidade da sua funo. J em 1851, num folhetim de crnica dos teatros publicado no jornal A lei, o

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    jornalista e dramaturgo Lus de Vasconcelos enaltecia a obra do folhetinista. Tratando da abertura da nova poca no Teatro de S. Carlos e da formao de partidos pelas cantoras, Vasconcelos afirma: Um folhetinista, em matrias de teatros, exerce quase a misso do historiador na poltica: cumpre-lhe, portanto, compenetrar-se bem do seu carcter de informador e de crtico, e ser verdadeiro nas suas informaes e justo nas suas anlises (A lei, 11.10.1851).

    Tambm entre ns se produziram compilaes de folhetins de alguns autores (por exemplo, Ensaios de crtica e literatura, 1849, de A. P. Lopes de Mendona, ou Entre o caf e o cognac, 1873, de Alberto Pimentel), embora no tratem exclusivamente de folhetins de teatro. Se esta compilao fosse feita, o nome de Jlio Csar Machado dever-se-ia erguer como primeiro candidato. A par de Machado, outros autores escreveram sobre teatro em folhetim, at mesmo seguindo o seu modelo e com uma certa regularidade, pelo que mereceriam de igual modo ser recuperados. A vantagem que Machado sobre eles apresenta que, no seu tempo, era considerado o folhetinista maior, e, alm disso, tem um largo nmero de folhetins dedicados ao teatro. Assim, de uma compilao imaginria procuraremos aqui apresentar alguns extractos, e reflectir sobre o seu valor.

    1.2 De Antnio Pedro Lopes de Mendona a Jlio Csar Machado

    Ultrapassado o perodo de instalao, o folhetim comea a aparecer como terreno de lanamento de literatos. certo que de diferentes fontes chega a opinio de ter sido o romancista e poltico Antnio Pedro Lopes de Mendona (1826-1865) o primeiro folhetinista entre ns, porm, no discutiremos essa questo, pois, na verdade, esse no o principal motivo da sua escolha como ponto de partida. As razes prendem-se com o facto de ser ele o precursor de Jlio Csar Machado no folhetim, sucesso que aconteceu tendo por pano de fundo o mesmo jornal, o mesmo responsvel (Jos Estvo), e com pleno conhecimento de ambos os protagonistas.

    Foi, ento, nA Revoluo de Setembro que Lopes de Mendona se notabilizou como folhetinista, onde escreveu desde 1846 at 1858. Um dos primeiros artigos que subscreve trata da representao no Teatro de D. Maria II do drama O casamento de Lus XV (RS 11.8.1846). O formato genrico da crtica teatral haveria de ser continuado em muitos nmeros do jornal, formando-se assim deste autor, como de outros mais, um corpus significativo de crnicas teatrais dispersas pelas folhas peridicas. Crnica significa

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    opinio, impresses pessoais, dos espectculos a decorrer na capital. O tom adoptado por Mendona era, todavia, mais srio do que o do seu sucessor, que usava por hbito um estilo despreocupado. De facto, Lopes de Mendona, para alm de se ocupar dos entretenimentos e cuidados da sociedade burguesa em que se integrava, encaminhava muitas vezes a sua pena para os assuntos polticos que, alis, o haveriam de afastar da carreira jornalstica e literria.

    Foi Lopes de Mendona, no entanto, que fez do folhetim um conceituado instrumento de opinio pblica. Estabeleceu com solidez o folhetim na ptica da anlise e crtica dos principais acontecimentos sociais e literrios. O teatro, para este autor, ocupa um lugar de destaque; com efeito, como escreveu a historiadora Maria Manuela Tavares Ribeiro, para Mendona, o teatro, isto , o teatro enquanto espectculo e no j enquanto simples obra literria, tem tambm um papel educativo fundamental. um meio propcio de instruo que facilmente se grava no esprito do espectador (1980: 3). Nos seus artigos de imprensa, reflecte-se esta concepo. A mesma autora sintetiza deste modo a vertente cronstica de Lopes de Mendona:

    Os seus folhetins so um precioso documento da vida burguesa lisboeta nas suas diversssimas facetas. Todas as semanas escreve a sua crnica onde apresenta e critica os espectculos de pera, teatro, de msica ou bailado, em exibio no Teatro D. Maria II ou no S. Carlos; onde faz as suas crticas literrias e tradues de contos, ou de poemas. Na linha de uma das caractersticas do romantismo e que, sobretudo em Frana, fizera furor, Lopes de Mendona retrata tambm nos folhetins autnticas fisiologias: a fisiologia dos bailes, a fisiologia do poeta, a fisiologia do oleiro, a fisiologia dos teatros (ibidem: 46-47).

    Podemos acrescentar que Jlio Csar Machado segue na perfeio estas pegadas do seu mestre a citao aplicar-se-lhe-ia sem dificuldade. Divergem sobretudo no estilo, na profundidade de anlise, na atitude e, para alm disso, cada um explora distintos assuntos particulares, mas a essncia a mesma. A carreira de Mendona foi, no entanto, mais curta, e as caractersticas de Machado tornaram-no mais popular.

    Os teatros de So Carlos e de D. Maria II so, de facto, os mais nomeados por Lopes de Mendona, surgindo notcias esparsas dos restantes teatros, mormente o do Ginsio. O que, no entanto, o parece interessar acima de tudo a possibilidade de extrair um significado daquilo que v sua volta. Os espectculos de teatro aparecem, assim, como sintomas do estado de sade da sociedade e da cultura. Lopes de Mendona acredita que, enquanto crtico, tem uma importante misso de contribuir para a regenerao do teatro e, com ela, a de toda a nao. A sua prosa , portanto, bastante comprometida com a

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    luta por um progresso intelectual do pas, onde o teatro e a literatura ocupariam um lugar central. As ltimas palavras do folhetim de 27 de Agosto de 1846 resumem esta orientao que apela educao do pblico: queremos apenas desvendar-lhe os olhos, e fazer-lhe ver que o seu futuro est vinculado regenerao literria, para que se prepara a gerao nova (RS 27.8.1846).

    Ultrapassando as crticas iniciais que lhe foram dirigidas no perodo da sua introduo no meio jornalstico, Jlio Csar Machado haveria de se tornar o folhetinista, unanimemente consagrado pelos seus contemporneos. Chegou no momento em que o folhetim alcanava a mais alta popularidade, que a frequncia diria nas pginas da imprensa s pode confirmar. De facto, ele tinha-se tornado indispensvel no apenas na maior parte dos jornais, assim como as prprias revistas o cultivavam. A simplicidade, a leveza e a graa parecem ter sido o segredo do sucesso de Machado. Para essa opinio se encaminham igualmente os autores que sobre ele escreveram.

    Alfredo Mesquita recorda que, depois do romance, logo se evidenciou a sua superior aptido para o folhetim. Primava em todos os requisitos do gnero: conhecia muito e sabia transmitir o muito que conhecia, na mais graciosa das linguagens, linguagem vivaz e espontnea, risonha, que lhe servia para expor a apreciao rpida de sucessos (1890: 19). Era comparado, muitas vezes, ao clebre folhetinista francs Jules Janin, chamavam-lhe o Janin portugus.

    No mesmo sentido se direccionam as palavras de Camilo Castelo Branco, que apresenta um bom resumo das qualidades do amigo:

    Jlio Csar Machado tinha a clara e fluente linguagem que o gnero requer; tinha ironias e remoques comedidos, como a cortesania manda; realava no bem discernir o quilate das peras cantadas, do cantor louvvel, e do actor inteligente; achava de pronto as finas pedras do livro novo e assoprava mui delicadamente o cisco em que se deslapidavam, de jeito e modo que no fosse incomodar os olhos do autor. Estes felizes atributos deram ao folhetinista de diversos jornais um bem ganhado e soado nome (1969: 190).

    Alude Camilo falta de firmeza na crtica de Machado, que escassas palavras escrevia de sabor amargo. De facto, no foram muitas as polmicas em que se viu envolvido por conta dos seus artigos. Eles eram expresso, talvez, da vida alegre e do optimismo com que encarava tudo sua volta. Prossegue Camilo: O vazio que eu, porm, achei nos seus folhetins era justamente o que lhe tem acareado muitos amigos: minguavam em crtica, doutrina, conselho e ensinamento. Ora, esta falta no se h-de arguir ao entendimento de Jlio Csar: uma virtude nele, bondade de corao (ibidem: 190-191), ao ponto de,

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    como refere ainda Camilo, ser capaz de jogar com os seus prprios vcios, quando enumera os chaves que utiliza para anunciar um livro ou elogiar um autor.

    A resposta de Jlio Csar Machado vem num folhetim dA Revoluo de Setembro em 17 de Setembro de 1861, integrado depois como prefcio ao livro de Vieira de Castro sobre Camilo Castelo Branco (notcia da sua vida e obras). A, o cronista explica que no v na crtica a sua principal funo enquanto folhetinista, e que, de certa forma, lhe compete mais falar sobre o belo do que repreender as incorreces:

    Em uma nota, que eu agradeo do corao desvelada amizade do autor, que, a poder de estima por mim, me apresentou como eu queria ser, acusa-me ele um poucochinho, e j se v que me acusa com o ar afvel de um irmo, por eu no escovar de vez em quando a reputao dos colegas. Devo responder a isto uma palavra: que eu suponho que o folhetim seja mais a obra de um poeta que de um crtico, e que, como para mim h apenas duas classes de escritores, os que escrevem com o talento e os que escrevem com a mo, ocupo-me dos primeiros e no me julgo responsvel perante o pblico a medir todas as semanas at que ponto uma m coisa m!... Para com os que principiam tenho a indulgncia que no se teve em tempos para comigo; para com os que acabam deixo-os morrer!... (Machado, 1863e: 27).

    Por outras palavras tinha j o autor emitido idntica opinio, no mesmo local, mas no ano anterior, quando explicou que entendia o folhetim como uma categoria literria de estilo elegante, e que, por conseguinte, ele no estaria destinado anlise severa e impiedosa dos mestres da crtica. E o argumento decisivo a fica: A crtica no me parece consistir, como por a se cuida, em procurar os defeitos, mas em procurar as belezas (RS 20.11.1860).

    Brincando com o fatalismo de ser folhetinista por causa do nome Jlio, que possui em comum com colegas estrangeiros (Jules Janin, Jules Lacroix, Jules Lecomte), lamenta que a profisso seja no nosso pas muito menos respeitada do que em Frana. Entre ns, os escritores ligeiros, constata, so cobiados pelos leitores mas no estimados, podendo mesmo o folhetim baixar a considerao pblica do autor. este um dos motivos que leva Machado a dirigir-se especialmente s leitoras, por serem misericordiosas e indulgentes (RS 9.4.1861).

    Reflexes meta-folhetinsticas so, em muitos casos, a nota de abertura do prprio folhetim de Machado, principalmente ao tratar-se de revista da semana, quando a escassez de acontecimentos lhe impunha um esforo da imaginao para cobrir a falta de assunto. Sente, pois, a presso para trazer todas as semanas novidades mundanas ao jornal: o folhetim exigente, teimoso, insacivel; quer bailes, quer espectculos, quer peas novas,

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    livros novos, actrizes novas, notcias novas, e o que de tudo o pior! , e ideias novas! (RS 23.2.1860).

    Na verdade, como escreveu Joo Chagas em Vida literria (1906), o folhetim chegava para distrair a nao, que queria descansar das longas lutas polticas, e para isso servia melhor um tom primaveril, onde o bom humor e bem estar de Jlio Csar Machado se enquadravam na perfeio. Algumas espcies de folhetim traziam, certo, assuntos graves, de poltica, de cincia, de agricultura etc., mas esses eram, seguramente, uma minoria, que prova, no entanto, que o folhetim no era s entretenimento mas tambm educao e informao. Nessa poca de relativa estabilidade em que Machado apareceu, liberalismo e romantismo pareciam definitivos e no havia seno usufruir estas conquistas. O adormecimento esttico s foi sentido um pouco mais tarde e denunciado por uma outra gerao, quando Ea de Queirs e Ramalho Ortigo ousaram acordar aos berros e farpear esta sociedade enlanguescida. Para Jlio Csar Machado, pelo contrrio, tratava-se ainda de deleitar pela graa este pblico (p. 115-117). Desempenhou essa tarefa com o esprito anedtico, a sinceridade, a espontaneidade e a bonomia que o caracterizavam e que, se por um lado o tornaram nico no seu tempo, por outro lado o apagaram facilmente da memria dos que se lhe seguiram. Jlio Csar Machado manteve-se fiel a esse esprito, mesmo quando os ventos j sopravam noutra direco.

    Pinheiro Chagas, por sua vez, acentua a democraticidade do folhetim, cuja inveno foi a consequncia necessria do derramamento da luz intelectual e da participao de todas as classes nos prazeres delicados, que eram dantes privilgio dum limitado nmero. Associa portanto o folhetim, bem como a expanso da literatura e mesmo dos teatros, a um notvel alargamento da esfera da opinio pblica. E aqui, neste contexto, ningum melhor do que Jlio Csar Machado compreendeu esta ndole especial do folhetim, ningum soube melhor do que ele fazer do folhetim uma conversao escrita (Chagas, 1866: 93-94).

    Sampaio Bruno chamou ao folhetim o alimento espiritual de uma populao pouco culta, para logo de seguida admitir, todavia, que ele contribuiu poderosamente para alargar o gosto e fomentar as curiosidades do esprito, estimulando em larga escala a cultura esttica do maior nmero (Bruno, 1984: 72). De facto, j em 1886 Mariano Pina observava: Foi fazendo folhetim que Ea de Queirs, Camilo Castelo Branco, Pinheiro Chagas e Ramalho Ortigo meteram mais ideias na cabea do pblico que todos os professores de filosofia dos nossos liceus reunidos (A ilustrao, 5.2.1886, cit. por Outeirinho, 2000: 89). Neste sentido, o folhetim assume-se como veculo de formao e no apenas de mera recreao.

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    Se h quem afirme, no sem razo, que o folhetim-crnica surgiu, na poca romntica, para cumprir uma funo mundana de sociabilidade: para alargar ao espao pblico a vivncia intelectual do salo; para democratizar a convivialidade, oferecendo-a, em diferido, ao cidado burgus (Santana, 2003: 11), no menos verdade que, no discurso de Jlio Csar Machado, pelo menos, notamos uma certa equiparao do emissor ao receptor, discursando aquele para um leitor que esteve l, que conhece tanto como ele aquilo de que se est a falar. Ilustremos: descrevendo a Favorita no So Carlos: Mas, para que estou eu a cansar-me? O leitor l estava, l viu tudo exactamente como eu, melhor mesmo do que eu (RS 27.12.1859). Neste caso, a misso do folhetinista parece mais a reunio dos espaos de convivialidade e seu comentrio do que oferecer aos excludos a possibilidade de os conhecer.

    bem certo que Jlio Csar Machado deve ser lido atentamente como crtico da sua poca, uma vez que foi exmio em perceber as marcas do sculo, em observar os seus contemporneos e a reportar essa realidade3. O teatro , pois, apenas um dos temas, embora o mais recorrente, que se encontram presentes na crnica machadiana. Mas como deixaria o teatro de ser o privilegiado, se ele era ento, para o autor, uma das mais necessrias condies civilizao de qualquer pas (RS 4.8.1854)?

    3 Um exemplo: a moda lisboeta de tirar o retrato, que o cronista assinala em 1854 (RS 4.8.1854).

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    2. JLIO CSAR MACHADO E O FOLHETIM

    2.1 Percurso teatral

    Um conjunto de circunstncias mais ou menos ocasionais impulsionou a vida de Jlio Csar Machado para junto do teatro, quer fsica quer intelectualmente. Ao facto no sero alheias as caractersticas da organizao da sociedade do tempo, onde um determinado nmero de instncias se erigia como campo de formao, entretenimento e socializao obrigatrios para os literatos. Referimo-nos aos jornais, aos sales literrios, aos cafs e, naturalmente, aos teatros. A actividade literria e jornalstica de Machado foi to prolfica que requer um grande esforo para se esgotar todas as referncias, sobretudo no que diz respeito s colaboraes na imprensa peridica, incluindo textos em peridicos regionais, ou mesmo a prefcios e outros textos introdutrios. Para mais, a fonte principal para a biobibliografia de Jlio Csar Machado constituda pelos seus textos autobiogrficos, embora por vezes se torne problemtico identificar datas com clareza, tendo em conta o estilo despreocupado do autor.

    Assim que chegou a Lisboa, ainda criana, Jlio Csar Machado comeou a frequentar os teatros na companhia de seu pai, Lus da Costa Machado, e cedo tomou conhecimento de factos e personalidades do mundo do espectculo. As relaes que Lus da Costa Machado tinha em Lisboa com figuras de relevo da cultura da poca iniciaram o filho na sociedade literria de meados da centria oitocentista, de tal modo que este se foi progressivamente afastando da carreira em Medicina que a famlia lhe augurava. Recorda, por exemplo, nos primeiros Apontamentos de um folhetinista, a sua presena na abertura do Teatro do Ginsio, em 16 de Maio de 1846, onde assistiu com o pai representao de Os fabricantes de moeda falsa, de Csar Perini de Lucca. Tinha ento 10 anos e usava ainda umas calcinhas abertas por detrs e copiava de um traslado inconstitucionalissimamente (p. 13). Refere tambm, de passagem, em Aquele tempo (p. 100), as visitas ao Teatro de S. Carlos com o pai na poca em que pontificava a cantora Carolina Sannazzaro (1851-1852). A casa onde foi morar com seu pai nesse regresso a Lisboa regresso, porque foi l que nasceu, a 1 de Outubro de 1835, onde viveu a primeira infncia, seguindo depois para a aldeia de origem de sua me, Durruivos (hoje A-dos-Ruivos), concelho do Bombarral ficava prxima do antigo Teatro do Salitre, na Travessa do Moreira. A vivia no ano da sua morte (1890), adquirindo mais tarde esse arruamento o

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    nome do escritor. Desde logo comeou a frequentar aquele teatro, uma vez que refere, na Biografia da actriz Soller (1860), ter assistido estreia da artista, na pea A ciganinha, no Teatro do Salitre: E eu vi-a estrear-se na sua carreira de actriz! Eu, que tinha nove anos ento, e me recordo, todavia, de a ver aparecer na montanha com o seu chapeuzinho de cigana levemente inclinado sobre a orelha, saia curta, e botinha de cano! (p. 20).

    Em 1849, com apenas 14 anos, deu-se a estreia literria de Jlio Csar Machado, primeiro em registo potico (O mar e O cura, poemas publicados no peridico A assembleia literria, n 12, de 20.10.1849, e n 17, de 1.12.18494) e logo de seguida na forma dramtica, escrevendo a comdia em 1 acto Umas calas de lista, representada pela primeira vez no Teatro do Salitre, a 30 de Dezembro de 1849 (Machado, 1875a: 101). Foi fruto de um dos acasos de ascendncia dramtica que sucederam a Jlio Csar Machado: um dos seus vizinhos na Travessa do Moreira era o ponto do Teatro do Salitre, Jos Manuel Alves, com quem Machado costumava conversar a respeito das peas que ali iam cena. Quando se preparava o espectculo de benefcio de Jos Manuel Alves, faltava escolher uma pequena comdia para se representar junto com um drama, a apenas um ms da data marcada. Ao saber disto, Machado encontrou a uma oportunidade para mostrar as suas qualidades literrias, escreveu ele mesmo a comdia, que foi aprovada pelo beneficiado. Representou-se com interpretaes de Joaquim Bento e Adelaide Douradinha, e parece ter feito algum sucesso, a julgar pelo relato de aplausos a solicitar o autor em palco para agradecer5. O empresrio do Teatro do Salitre era ento Jos Martiniano da Silva Vieira, que pagava ao jovem dramaturgo um pinto6 por cada rcita.

    No estava de todo imberbe na literatura teatral, pois, antes de escrever aquela primeira pea, Jlio Csar Machado havia percorrido os principais ttulos em voga, produtos do romantismo que continuava a imperar no mundo das letras. Procurava-os de moto prprio, circulando pelas lojas de livros, recordando em especial o livreiro Antnio Maria Pereira foi o meu primeiro conhecimento de livraria (Machado, 1878a: 190) , com quem negociava a troca de um livro qualquer por um volume da coleco Arquivo teatral:

    4 Esse jornal de instruo A assembleia literria era propriedade de Antnia Gertrudes Pusich, uma das

    raras mulheres literatas que tinha, para mais, o mrito de protectora de jovens talentos literrios como aconteceu com Jlio Csar Machado, que dela faz o elogio num folhetim do Dirio de notcias de 25.10.1883. 5 Embora num posterior folhetim dA Revoluo de Setembro o autor aluda a uma pateada na sua estreia, a

    referncia reportar-se- provavelmente a Paraso, Terra e Inferno, de que fala num outro folhetim, a 4 de Fevereiro de 1862, discorrendo acerca de estreias literrias e mencionando esta sua no teatro, de que o pblico fez inferno, e mesmo a crtica, se confrontarmos a Revista dos espectculos de Setembro de 1854. 6 Cerca de 480 ris (segundo Vieira, 1900: 255, e Carvalho, 1991: 245).

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    E examinava-se a fazenda, e discutia-se o contrato, e chegava-se a um acordo, e eu ia-me pela rua Augusta acima, livre e despachado do Atlas, todo ufano com uns folhetos que se chamavam o Cabrito monts, o Bergami, o Ramo de carvalho, a Freira sanguinria, as Vtimas da clausura, os Sete infantes de Lara, o Urso e o Pach (ibidem: 198).

    Ou seja, levava consigo os textos de peas representadas nos teatros de Lisboa ao longo das dcadas de 30 e 40 daquele sculo, na maior parte melodramas e comdias traduzidos do francs. Recorda-se de os ver representar no Teatro do Salitre, sempre ilustre e sempre popular, aqueles dramas de enredos complicados, entremeados de testamentos roubados, rasgados, queimados; certides de baptismo perdidas, achadas outra vez; marchas, contramarchas, surpresas, traies, re-surpresas, retraies, venenos, contravenenos, casos

    de fazerem a gente doida (ibidem: 201), destinados a castigar o crime e a premiar a virtude7.

    Comeou por esta altura, portanto, a colaborar em revistas e jornais. O jornal literrio A semana que o jovem Machado lia em casa, pois seu pai era assinante (ibidem: 144) publicou-lhe em Outubro de 1850 o pequeno conto Estrela dAlva: memrias de um barqueiro, onde principia a revelar-se o seu esprito de observao dos tipos da sociedade. No chegou a entrar no ensino superior, mas era de ndole curiosa e interessou-se desde cedo pelas leituras, que procurava para alm da escola. Um outro acontecimento veio condicionar a sua formao e conduzi-lo mais depressa s lides teatrais. A morte de Lus da Costa Machado, em 1852, deixou Jlio Csar Machado rfo, aos 16 anos, e na necessidade de carregar uma pesada herana de dvidas que seu pai lhe deixava. Em vez de regressar aldeia de Durruivos com sua me, Maria Incia Machado, preferiu manter-se em Lisboa, nico stio onde lhe poderia sorrir uma carreira literria, da em diante constrangido a procurar sozinho a sua sorte.

    Foi assim que, pouco tempo depois, produziu diversos trabalhos literrios, no apenas porque se sentia sempre mais inclinado para as letras, mas agora tambm porque necessitava de um meio de obter rendimentos. Com efeito, Jlio Csar Machado relata que, numa conversa com Eduardo Marecos, que estava para mandar imprimir um poema, se deu conta de que a publicao de uma obra poderia ser uma fonte de receita para ultrapassar as dificuldades que o afectavam. E assim, quase instantaneamente, Machado produziu em pouco tempo o seu primeiro romance, Cludio, que logo em 1852 foi impresso pelo

    7 Sempre no Salitre se acatou em tanta maneira a virtude, que eram pateadas as peas em que triunfasse o

    crime! (Machado, 1878a: 202).

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    tipgrafo Joo de Almeida (Machado, 1875a: 169, 279). A chave do xito que alcanou este romance de juventude foi como reconhece o prprio autor o folhetim que a ele dedicou Antnio Pedro Lopes de Mendona, anunciando o livro, nA Revoluo de Setembro de 3 de Julho de 18528.

    A verdade que esse xito lhe abriu portas, assim como os conhecimentos que j tinha no mundo literrio e artstico. Um deles era o actor Romo Antnio Martins, que resolveu ajudar Jlio Csar Machado entregando-lhe a traduo de peas, para serem representadas no Teatro do Ginsio, onde Romo era ensaiador. Uma boa parte das peas que passaram pelos palcos portugueses do sculo XIX provinha do repertrio francs, de modo que o actor Romo se assegurou primeiro de que Machado sabia a lngua (costumava falar com seu pai em francs Machado, 1878a: 10) e imediatamente lhe entregou a comdia de Bayard Le petit-fils, que Machado traduziu como O neto. A pea foi pouco depois representada, no Ginsio, nesse ano de 1852, com interpretaes de Jos Gerardo Moniz e de Emlia Letroublon (Machado, 1878a: 10-15).

    Consolidou-se deste modo a aproximao de Jlio Csar Machado esfera teatral, que j se vinha realizando aos poucos: Entrei eu para o teatro do Ginsio como tradutor, e encontrei em toda aquela gente o gasalhado afectuoso e alegre, que ningum no mundo sabe dar como os artistas (ibidem: 33). Continuaram do Ginsio a dar-lhe comdias para traduzir, a par de outros gneros dramticos, entre os quais o folhetinista recorda, desses primeiros tempos, a pera cmica O chalet, original de Eugne Scribe e A. H. J. Mlesville, com msica de Adolphe Adam, representada no Teatro do Ginsio desde 1850. Provavelmente mais tarde, acumulando experincia, Machado pde escolher ele mesmo peas para o repertrio do Ginsio Quando eu ia livraria Langl, hoje Frin, escolher peas francesas para o Ginsio (ibidem: 286). O jovem tradutor chegou mesmo a ensinar francs ao actor Taborda, que, enquanto se remodelava o edifcio, quis aproveitar o interregno para conhecer os teatros de Paris, contando com o patrocnio do rei D. Fernando para a viagem: Durante o ms que precedeu sua partida, reunamo-nos s noites, ele e eu, no camarim, e dvamos lies de francs. Eu tinha ento dezassete anos, e era tradutor do Ginsio (Machado, 1871b: 24).

    Desde muito novo, portanto, Jlio Csar Machado fez amizade com personalidades do teatro. Entre elas, para alm dos j referidos, encontram-se ainda os dramaturgos Antnio da Silva Mendes Leal e seu irmo Jos da Silva Mendes Leal, o actor Joo

    8 Esse xito foi devido sobretudo ao folhetim de Lopes de Mendona. No se calcula hoje facilmente a

    importncia que tinha nessa poca uma recomendao da imprensa (Machado, 1875a: 280).

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    Anastcio Rosa, que casara com uma irm de Pedro Vidoeira, amigo de Machado, e com quem trocavam impresses, facilitando-lhes ao mesmo tempo o acesso a textos de comdias e dramas (Machado, 1878a: 150). Alis, a sua relao com Jos da Silva Mendes Leal proporcionou-lhe a oportunidade de em 1853 se tornar revisor do jornal A lei, de que o dramaturgo era redactor, onde Jlio Csar Machado escreveu os primeiros folhetins, durante seis meses.

    Em Aquele tempo, o autor recorda o pequeno cenculo de literatos que estavam a crescer que era a casa dos irmos Silveira da Mota, onde se reuniam jovens com pretenses carreira das letras, com os quais travou conhecimento, nomeadamente, o actor Jos Carlos dos Santos e os dramaturgos Lus de Arajo e Rodrigo Paganino:

    Andvamos todos pela mesma idade, quatorze, quinze anos, e escusado dizer que j ramos todos literatos. Um havia feito seis grandes dramas de duas folhas de papel almao cada um; outro tinha uma excelente comdia e uma excelentssima pera cmica, prontas e primeira voz para serem representadas em qualquer dos teatros; este extraa uma pea do Conde de Monte Cristo, e, quando digo que a extraa, era como se a pregasse; aquele planeava um teatro, formava a companhia, estabelecia-se primeiro actor, e figurava entre si um repertrio e mil triunfos (p. 143-144).

    Nessas reunies, Jos Carlos dos Santos recitava excertos de melodramas que aprendia de cor nos espectculos a que assistia este grupo:

    A companhia do teatro de D. Maria, estabelecida nesse tempo em sociedade, dava frequentes rcitas de benefcios vendidos, e havia sempre, porta, bilhetes a pataco. Caamos l todos aos sbados, por no haver aula no dia imediato, podermos retirar-nos com maior urbanidade dos quatorze actos do Mercado de Londres, Mistrios de Paris, Estalagem da Virgem, Trapeiro, et coetera, e chegarmos a nossas casas, a casa dos nossos pais, ao romper do dia (ibidem: 146).

    Era o meado do sculo XIX. A carreira jornalstica exercia um fascnio sobre os jovens aspirantes a escritores, desenvolvendo um papel preponderante na vida pblica. Para muitos, a colaborao em jornais servia de veculo no apenas para a actividade literria, mas tambm como ponto de lanamento para uma carreira poltica. No entanto, no parece ter sido este o intuito de Csar Machado (o prprio assim o reclama), que se manteve ao longo da vida afastado de ambies partidrias ou de poder (cf. Machado, 1880a: 102-104). Nos seus Apontamentos (262 ss.), conta que aos vinte anos fundou o jornal Eco literrio, junto com Francisco Serra e Jos Joaquim Vieira, sendo o primeiro nmero publicado em 1 de Julho de 1855, jornal esse que veio a reunir artigos de autores como A. P. Lopes de Mendona, Bulho Pato ou Mendes Leal. Durou at 1856 e contou

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    com uma lista de assinantes de nome respeitvel, a julgar pela abundncia de denominaes honorficas (Rei, Marqus, Duque, Conselheiro, etc.). Existe um folhetim do Dirio de notcias em que recorda esse trao da sua carreira jornalstica, despoletada a lembrana pelo reencontro de Jos Joaquim Vieira, num retrato publicado no jornal O clamor de Almada. O que torna essa narrao atractiva a introduo que lhe d, a partir de impresses teatrais:

    No se lembram de ter visto na Rua dos Condes, no Salitre de outros tempos, e, ainda hoje, s vezes, no teatro do Prncipe, uns dramas de situaes nunca sonhadas em que, l pelo terceiro ou quarto acto, um dos personagens conta a outro certa histria de um caso que sucedera trinta anos antes, produzindo com isso uma impresso to vivamente manifestada pelo outro que infalvel ter de interromper-se e proferir como num aparte: - Vs empalideceis, general! Viram? seguro que ho-de ter visto. H dezoito mil peas com este lance e esta fala. O mesmo agora se deu comigo, simples excepo de eu no ser general e de, em vez de algum me dar a deixa, dar eu a deixa e a fala a mim prprio: - Jos Joaquim Vieira? Eu empalideo! () Imaginem que, em 1854, Francisco Serra empreendeu um jornal, O eco literrio, com este Jos Joaquim Vieira e este seu venerador (DN 9.5.1889).

    Para l da graa que se pode achar neste excerto, dele se retm a explorao de um clich do drama romntico.

    Estava, na verdade, em grande dependncia dessa colaborao com a imprensa, para a qual j escrevia folhetins, crnicas, contos, ou ento actuava como revisor, ou ainda integrado na redaco, de tal modo que a epidemia de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 lhe tornou difcil o sustento, na medida em que os teatros e os jornais tiveram que ser suspensos por essa ocasio (designadamente, no que interessa ao nosso autor, fechou o Teatro do Ginsio, para o qual traduzia, foram interrompidos o jornal O doze de Agosto, onde dirigia a seco literria, e a Revista universal lisbonense, onde era revisor Machado, 1878a: 7). De novo, Jlio Csar Machado recorre escrita para obter algum rendimento, dando luz o romance contemporneo A vida em Lisboa, publicado em 1858, uma das suas obras de maior flego, traada como um longo folhetim (ibidem: 301). Entretanto, outros trabalhos de Jlio Csar Machado tinham sido publicados, incluindo algumas peas de teatro.

    Chegou a integrar, em finais da dcada de 1850, a empresa que explorava o Teatro do Salitre, como vice-secretrio, sob a direco de Henrique Mouchett, Freire Cardoso e Joaquim Maria Rodrigues (cf. ibidem: 210). Por essa altura escreveu, a pedido do actor Isidoro, a pea em trs actos O tio Paulo, publicada em 1860 no jornal A poltica liberal e

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    mais tarde inserida na colectnea Passeios e fantasias (1862): O teatro abriu com a Loteria do Diabo, mgica imortal. Isidoro era o pajem. No melhor das representaes da Loteria, apareceu-me ele em casa, a pedir-me que escrevesse uma pea, nas condies que ele me indicasse; estava descontente com os papis que tinha, e vivia no desejo de representar um papel srio (ibidem: 210). Em matrias de administrao dos teatros, uma outra ocorrncia consignada por Machado, a sua nomeao pelo Governo para uma comisso de reforma do Teatro Nacional D. Maria II, tendo no entanto recusado o cargo. De acordo com Gustavo de Matos Sequeira (1955: 325), o episdio decorreu em Junho de 1875, e Machado no foi o nico a recusar, uma vez que se tratava de fazer uma reforma sem contar com um subsdio, de modo que a comisso acabou por adiar a questo.

    A popularidade que alcanaram os dois volumes do romance A vida em Lisboa foi decisiva para a contratao de Jlio Csar Machado para folhetinista dA Revoluo de Setembro, em substituio de A. P. Lopes de Mendona, cada vez mais embrenhado na vida poltica. A prpria estreia nessa funo foi associada a um facto teatral, ou melhor, a uma personalidade, a actriz trgica Adelaide Ristori. Com a notoriedade que os folhetins lhe proporcionaram, Machado obteve o maior sucesso na coleco de Contos ao luar publicada em 1861 e de que saram trs edies em menos de um ano, num total de 5 mil exemplares (cf. Machado, 1880a: 107). Desses Contos faz parte, entre outras pequenas histrias de amores idlicos e de costumes da provncia, no raro centradas em personagens do universo do teatro, Uma rcita do Roberto do Diabo, em que o folhetinista efabula uma noite de espectculo, mesclando as cenas do palco com os dramas da plateia, onde figura o prprio narrador. Satisfeito com o resultado das vendas, o editor Jos Maria Correia Seabra continuou a contratar com o autor dos Contos ao luar, que de imediato lhe forneceu manuscritos novos. No ano seguinte, 1862, editava Cenas da minha terra e Passeios e fantasias.

    Pouco antes de regressar ao prdio onde vivera na infncia, situado, como vimos, na antiga Travessa do Moreira, em Lisboa finalmente libertado das hipotecas herdadas do pai , Jlio Csar Machado empreende a sua primeira viagem Europa. Daqui resulta o livro Recordaes de Paris e Londres, contratado com o mesmo editor e publicado em 1863, vendido a igual preo de cada exemplar dos anteriores, 500 ris. Outros dois livros de viagens resultariam da pena de Csar Machado: Em Espanha (1865) e Do Chiado a Veneza (1867). Em Junho de 1862 estava Machado, portanto, em Paris, em busca de um impulso que refrescasse os seus folhetins: Entregue tarefa mproba de sustentar os folhetins semanais da Revoluo de Setembro, numa poca sem acontecimentos, cada

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    semana ia correndo o seu giro com uma velocidade irnica, sem eu saber o que dizer e de que falar; entendi que precisava de um tnico, e o tnico que me receitei foi ir viajar (Machado, 1863a: 20-21).

    O refrescamento das ideias passou, como seria de esperar, pelas salas dos teatros da capital francesa: Funambules, pera-Comique, Thtre-Franais, Gymnase, Ambigu-Comique, etc. Desta forma, este livro de viagens tambm uma espcie de fisiologia dos teatros de Paris, descritos aqui com tudo aquilo que envolvem, na perspectiva do cronista. Os teatros de Londres, que no impressionavam tanto o esprito portugus, ocupam neste relato um espao menor. No regresso a Lisboa, a primeira coisa que o folhetinista procurou saber foi o programa de espectculos para aquela noite (cf. ibidem: 236).

    Ainda naquele ano de 1863 o mesmo editor publicou mais uma recolha de contos do autor, alguns deles adaptados do francs, intitulada Histrias para gente moa, bem como a comdia em 1 acto Amor s cegas. No ano seguinte, Machado preparava uma nova visita a Paris, durante a qual foi apresentado ao compositor Rossini, por intermdio do bartono Beneventano. De facto, no folhetim dA Revoluo de Setembro de 23 de Maro de 1864 despede-se dos leitores, e nos seguintes conta a histria do encontro com o compositor. Acrescente-se que, em Agosto de 1889, Jlio Csar Machado empreenderia a sua ltima viagem a Paris, com o fito de visitar a Exposio Universal.

    Com uma vasta produo literria, repartida em contos, romances, peas de teatro e literatura de viagens, e uma intensa colaborao na imprensa peridica, que faziam de Jlio Csar Machado um dos autores mais populares na dcada de 1860, os proventos auferidos permitiam-lhe manter uma vida bomia caracterstica da maior parte dos literatos do tempo. As numerosas amizades que construiu no meio literrio proporcionaram-lhe, no entanto, um mais seguro recurso de subsistncia, um emprego de secretrio no Instituto Industrial de Lisboa, em substituio de Ricardo Guimares (Visconde de Benalcanfor), o mesmo que antes influenciara a entrada do amigo para A Revoluo de Setembro. As contas que fez na sua cabea no dia em que lhe propuseram o lugar, em Agosto de 1864, resumiam-se ao seguinte: embora pudesse manter-se com o que recebia dos seus escritos e de algumas propriedades, nenhum destes era garantia certa:

    De modo que teria de viver, dali em diante, do rendimento do prdio do Salitre e do prdio da rua das Pretas, adicionado aos lucros demasiadamente paradoxais que as letras me estavam dando por aquele tempo: Correia Seabra, meu editor nos Contos ao luar, Cenas da minha terra, Passeios e fantasias, Recordaes de Paris e Londres, morrera nesse ano; a Revoluo de Setembro estava, por esse tempo, na pior das crises (Machado, 1880a: 264).

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    Decidiu-se ento a solicitar a interveno de Andrade Corvo, seu antigo companheiro na plateia do So Carlos (ibidem: 265), junto do Ministro das Obras Pblicas, Joo Crisstomo de Abreu e Sousa. O lugar foi atribudo a Jlio Csar Machado e por ele ocupado at ao fim da sua vida. Os primeiros tempos de funcionalismo violentaram os seus hbitos desregrados: Senti-me como um ente explorado, fechado a sete chaves, a quem unicamente o jubileu do domingo poderia libertar () Que saudades tive naquele primeiro dia de gaiola do descuidoso viver que eu levara desde os dezasseis anos, trabalhando sempre, mas sem ter horas marcadas (ibidem: 274-275). Porm, acabou por convencer-se de ter seguido o caminho justo. A sua vida literria no terminou aqui, pelo contrrio, seguiu intacta e aplaudida ainda por vrios anos. Em Lisboa moderna, Zacarias de Aa menciona que o ordenado de secretrio do Instituto contabilizava pouco mais de trinta mil ris por ms (p. 119), o que no era, de facto, estipndio elevado. Compare-se, por exemplo, o que recebia uma actriz ou um actor mdio do Teatro Nacional cerca de 40 ou 50 mil ris (cf. Sequeira, 1955: 245, 282). No surpreende, assim, que Machado continuasse a desdobrar-se em artigos para a imprensa mesmo depois de alcanar o emprego. Alm disso, ele foi sempre, acima de tudo, um homem de letras.

    E depois, quem sabe se, nas circunstncias de outrora, de vida de artista, de vida alegre, eu haveria resistido, nesta casa da travessa do Moreira, onde tenho vivido e trabalhado h tantos anos, aos rigores despticos da avenida da liberdade, que se prope demolir-me o prdio o prdio! como se ele estivesse no meio da rua a impedir o trnsito!9 (Machado, 1880a: 275-276).

    Alis, esta vida alegre, que intitula o segundo volume dos seus apontamentos autobiogrficos, seria continuada pela vida literria, num projectado terceiro volume que no se chegou a publicar.

    Deste modo, embora limitado no tempo pelo exerccio do cargo de secretrio do Instituto Industrial, a actividade literria no abrandou, pois continuou a escrever para inmeros peridicos e a produzir livros. Para o teatro prosseguiu a traduzir comdias e a elaborar originais, como o caso do entreacto Para as eleies, escrito expressamente para ser representado pelo actor Taborda. Para alm disso, colaborou com palavras introdutrias por vezes provenientes de algum folhetim em diversas obras, entre as quais Luz coada por ferros (1863) de Ana Plcido, Uma alma de mulher (1869) de Guiomar Torrezo, ou

    9 Alude s obras que transformaram o Passeio Pblico na Avenida da Liberdade, a partir de 1879.

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    ainda Banhos de caldas e guas minerais (1875) de Ramalho Ortigo. Saram tambm livros inteiramente de sua autoria, incluindo Quadros do campo e da cidade (1868), Trechos de folhetim (1870) e, entre outros, o seu maior xito editorial depois de Contos ao luar, que foi a compilao de textos do folhetim do Dirio de notcias relatando uma visita ao hospital de alienados de Rilhafoles e intitulada Da loucura e das manias em Portugal (1871).

    Foi convidado em 1865 para realizar uma conferncia no Grmio Literrio, na qual discursou sobre o panorama da literatura contempornea em Portugal. De acordo com Teixeira de Vasconcelos, ter sido a estreia oratria de Jlio Csar Machado (cf. Crnica dos teatros, 19.3.1865). Participou numa srie de conferncias no Colgio Artstico Comercial, organizadas por Andrade Ferreira, em 1866, com uma comunicao acerca de Rossini (cf. Aa, 1906: 132). Nesse mesmo ano, o jornal parisiense La comdie noticiava com palavras de apreo a atribuio das insgnias da Ordem de Cristo ao colega da imprensa portuguesa:

    A Lisbonne, M. Jules-Csar Machado, secrtaire de lInstitut industriel portugais, feuilletoniste de la Revoluo de Setembro, crivain trs distingu et un des plus savants collaborateurs de la Crnica dos teatros, a t dcor de lordre du Christ. Cette distinction est approuve par toute la presse parisienne (La comdie, 18.2.1866).

    Aquela no foi a nica condecorao que recebeu; Machado seria, em 1873, ordenado Cavaleiro da Ordem da Rosa do Brasil (cf. RS 25.1.1873), e, trs anos depois, Cavaleiro da Coroa de Itlia (cf. RS 24.3.1876). Igualmente em 1873, foi eleito scio correspondente do Instituto de Coimbra, e, em 1876, da Academia das Cincias de Lisboa. Mais tarde, em 1880, foi um dos fundadores da primeira Associao de Jornalistas e Escritores Portugueses.

    O fim trgico deste romntico polgrafo foi sobejamente comentado na imprensa. Suicidou-se em 12 de Janeiro de 1890, muito provavelmente por no ser capaz de suster a dor que lhe causara idntica morte de seu filho, Jlio da Costa Machado, pouco tempo antes, no ms de Novembro de 1889. Escassos dias antes de Jlio Csar Machado morria o empresrio Francisco Palha e alguns meses depois suicidava-se Camilo Castelo Branco. Bem longe ficou, por conseguinte, do projectado final de vida em idlio campestre, que partilhava num folhetim dirigido ao amigo Vieira de Castro, em 1864:

    Um dia, quando j estiver cansado de haver feito da vida um folhetim, e ter levado anos a divagar sobre o trillo da prima-donna, o grito da actriz, o trabalho dos pintores, o entrechat

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    da bailarina, e a poesia, e a msica, e tudo que respira mocidade e esperana, direi adeus arte, entregarei por uma vez ao porteiro o culo de teatro, despedir-me-ei do Grmio, fecharei a conta no luveiro, comprarei um cache-nez, irei entreter-me na aldeia a capar os nabos da fazenda (RS 19.1.1864).

    So numerosas as referncias a Jlio Csar Machado por parte de autores seus contemporneos. Em geral, elas asseveram da significativa popularidade do escritor em vida. Em alguns pontos discordantes, as opinies convergem no entanto em dois aspectos constantes: a bondade de corao de Jlio Csar Machado e a sua ntima relao com o teatro. Centrar-nos-emos, pois, neste ltimo aspecto.

    Alberto Pimentel um dos autores que mais apontamentos deixaram acerca do folhetinista, de quem era amigo. No volume 2 de Espelho de portugueses (1901), Pimentel escreve:

    Jlio Csar Machado, escritor delicado e alegre, vivo e gracioso, s podia trabalhar sob a influncia da luz da manh, que a mais doce e suave luz do dia. Levantava-se cedo, para o que se preparava evitando deitar-se tarde. Era rarssimo demorar-se num teatro at que o espectculo terminasse, porque, se perdesse a manh, teria perdido o dia. Era o sol nascente, brilhante e macio, que o inspirava (p. 75).

    Pinto de Carvalho, por sua vez, reporta um testemunho do actor Queirs, segundo o qual o folhetinista raramente aparecia nos camarins teatrais (Carvalho, 1938: 9). Existem, porm, relatos que apontam noutro sentido. Zacarias de Aa, por exemplo, desmente a opinio: Ao contrrio dos seus colegas nas letras, Jlio Machado no era frequentador assduo dos cafs, e, se entrava no Marrare, no se demorava: desde muito novo preferiu-lhes o teatro. No palco, nos camarins dos artistas, travou relaes ntimas com os mais distintos (1906: 129).

    J o outro aspecto relativo presena nos cafs contrariado, quer por Pinto de Carvalho, que nomeia o Penim como taberna por muitos anos frequentada pelo folhetinista (Carvalho, 1938: 16), quer pelo prprio Jlio Csar Machado, quando fala de artigos que redigia mesa do caf10. Zacarias de Aa nomeia ainda algumas figuras do crculo de amizades de Machado, vendo nele destacados amigos ilustres nas artes e na cena, tais como o empresrio Campos Valdez (que esteve muitos anos a dirigir o So Carlos), o

    10 O caf Suo era onde se fazia o jornal Folhetim: Tinha artigos de teatro de Roussado, um romance de

    Pedro Freire de Almeida; as revistas de Lisboa fazia-as eu. Nessa mesa se escreviam os artigos, o que lhe dava foros de escritrio de redaco (Machado, 1875a: 124-125).

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    bartono Beneventano e o tenor Mongini, os italianos de S. Carlos, os da velha guarda de D. Maria, do Ginsio, da Trindade (1906: 130), etc. Destas relaes se conservam provas no arquivo do Museu Municipal do Bombarral, entidade que rene um diversificado esplio documental de Jlio Csar Machado, e que guarda, entre a correspondncia recebida pelo escritor, cartas de cantores italianos e outros artistas estrangeiros que actuaram no nosso pas.

    Zacarias de Aa reconheceu, por ltimo, o decrscimo de popularidade que afectou o folhetinista na dcada de 1880 (cf. 1906: 138). Podemos acrescentar que o pico da celebridade foi alcanado nos anos de 1860, entrando pela dcada seguinte e comeando depois a decair. Desde os anos 1850, porm, ele foi o mais elegante e gracioso cronista da vida portuguesa contempornea (ibidem: 141).

    Alfredo Mesquita, no retrato literrio que traou de Jlio Csar Machado no ano da sua morte, evidencia a vertente artstica da biografia deste escritor e o esprito de observao decalcado nos seus escritos:

    O talento abundante, mas dispersivo, levou-o para o teatro. () Frequentando as caixas, visitando os camarins, cavaqueando pelos foyers, a embrenhar-se na meia bomia da vida entre bastidores, entreteve-se no entanto a estud-la, analisando-a nos indivduos e nos episdios. Biografou alguns actores, como Isidoro e Sargedas, e escreveu Os teatros de Lisboa, historiando-os em recordaes de passados tempos e de passadas glrias, apreciando na cena e na vida real os vultos artsticos que iam desaparecendo, os que passavam, os que vinham chegando: Tasso, Isidoro, Epifnio, Teodorico, Manuela Rey, Emlia das Neves, Rosa pai, Santos, Antnio Pedro, Emlia Adelaide, Virgnia, Damasceno, Ana Pereira, Braso, Rosas filhos Assistira estreia indecisa de uns e glorificao completa de outros. Conhecia-os todos (1890: 24-25).

    2.2 O folhetim dA Revoluo de Setembro

    Os dois pilares que sustentam a carreira jornalstica de Jlio Csar Machado consistem na colaborao que prestou a dois grandes peridicos: A Revoluo de Setembro (fundado em 22 de Junho de 1840, findo em 20 de Janeiro de 1901) e o Dirio de notcias (fundado em 29 de Dezembro de 1864, o mesmo que hoje ainda vive). Fundamenta-se esta deduo em dois factores: um deles o facto de serem dois dos jornais com mais consistncia, regularidade e aceitao junto do pblico no perodo considerado; o outro factor, de maior incidncia, tem a ver com uma colaborao intensa, continuada, de longa

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    durao, por parte de Machado. Ou seja, nestes dois peridicos que encontramos a mais difusa lista de textos de Jlio Csar Machado, todos eles em formato de folhetim, seguindo um determinado padro. Pelas mais variadas razes entre as quais a efemeridade dos peridicos ocupa o principal posto , em nenhum outro dos inmeros jornais e revistas onde escreveu se encontra uma to extensa colaborao. Encontrando-se A Revoluo de Setembro cronologicamente primeiro na actividade do folhetinista, a anlise do volume dos seus textos nestes dois peridicos ao longo dos anos parece mostrar uma transio equilibrada entre um e outro, uma vez que os folhetins de Machado nA Revoluo de Setembro comeam a escassear quando se intensifica a sua produo no Dirio de notcias. Alis, h exemplos de folhetins publicados nA Revoluo de Setembro extrados do Dirio de notcias. Na verdade, a repetio e a transcrio de textos, ou de excertos, com ou sem alteraes, em diferentes lugares da imprensa peridica ou em livros publicados uma prtica comum, no apenas em Machado mas tambm noutros autores. Fundado em 1840 por Jos Estvo e Mendes Leite, A Revoluo de Setembro haveria de se tornar, com Antnio Rodrigues Sampaio, um jornal de referncia obrigatria. A sua feio poltica, adepto do setembrismo e opondo-se ao cabralismo, custou-lhe a perseguio e a suspenso em diferentes momentos, como aconteceu em 1844, o que no impediu que se mantivesse em actividade at ao dobrar do sculo, imprimindo o ltimo nmero em 20 de Janeiro de 1901. A colaborao de Jlio Csar Machado nA Revoluo de Setembro foi crucial para a sua afirmao como folhetinista consagrado. Como vimos, Machado sucedeu a Lopes de Mendona no lugar de folhetinista principal daquele peridico, cabendo-lhe a responsabilidade de, pelo menos, manter o interesse que as crnicas semanais despertavam no pblico. A contratao de Machado data de 1859, como nos conta nos Apontamentos de um folhetinista; no entanto, o seu primeiro folhetim nA Revoluo de Setembro remonta a cinco anos antes. Com efeito, logo em 1854 o saldo da colaborao do jovem autor traduz-se em vinte e cinco folhetins, publicados entre 6 de Julho e 30 de Dezembro desse ano. Pela continuidade da colaborao de Machado, torna-se arriscado isolar a data concreta em que foi contratado para folhetinista permanente dA Revoluo. No entanto, no final do folhetim de 25 de Outubro de 1859, Machado explica a possibilidade de adiar alguns assuntos para o folhetim da semana seguinte, visto achar-[s]e de novo encartado com a pasta folhetinstica dos negcios teatrais (RS 25.10.1859). Este ter sido, por conseguinte, o primeiro folhetim que Jlio Csar Machado escreveu depois de convidado por Jos Estvo a fazer parte dos membros efectivos do jornal.

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    A dcada de 1860 para Jlio Csar Machado a poca de ouro do folhetim dA Revoluo de Setembro, o que implica, em todos os campos, incluindo o teatro, uma crnica mais intensa, regular e produtiva. Os seus folhetins, embora predominantes no cmputo global do peridico, so intercalados por contributos de outros autores, no entanto, apenas adquirem estes maior peso desde finais da mencionada dcada. Comeam ento a competir com a revista da semana de Machado as crnicas teatrais de Costa Godolfim e de Cristvo de S (pseudnimo de A. M. da Cunha Belm). No que se refere a outros tipos de folhetim, encontram-se neste peridico tradues de romances ou de diferentes obras literrias, recenses de publicaes, artigos de crtica, de cultura francesa, notcias cientficas ou literrias, poesia, crnicas diversas. O prprio Jlio Csar Machado substitui algumas vezes a sua crnica semanal inserindo um conto, um excerto de uma pea ou, num registo mais aproximado do cnone cronstico, uma biografia ou um relato de viagem.

    Porm, a crnica semanal ou revista da semana ergue-se como a matriz dos folhetins de Jlio Csar Machado naquele peridico. De que assuntos fala nessas crnicas? Podemos dizer que o teatro o tema central. Ainda que nem sempre ocupe todo o espao da crnica, ele , na maior parte das revistas semanais, assunto designado. Em primeiro lugar, o caso mais frequente, no registo da actividade dos teatros da capital; depois, na evocao de figuras de palco, na notcia da publicao de alguma obra dramtica, na pintura de espaos teatrais fora de Lisboa. O teatro lrico , no global, o que merece maior montante de comentrios no folhetim. Esta predominncia deve estar ligada a uma outra caracterstica peculiar deste tipo de crnicas, que a de eleger o sexo feminino como camada leitora privilegiada. que as senhoras da sociedade culta preferiam o teatro lrico como tema de conversa entre elas, ao mesmo tempo que folheavam lbuns e jornais de modas (RS 23.10.1860). Para alm do teatro, de que outros assuntos trata o folhetim de Jlio Csar Machado? Genericamente, ocupa-se da vida galante e da vida literria contempornea. Sendo assim, os restantes divertimentos da capital so alvo comum, tais como os bailes, o Passeio Pblico, o circo, os cafs, as touradas, as soires, os banhos, os jardins pblicos No que diz respeito vida literria, noticia outros gneros para alm do dramtico, tece o panorama da literatura portuguesa, conta anedotas e episdios de homens de letras. Serve assim como cronista de Lisboa, faceta que lhe foi sendo reconhecida com o passar dos anos, tratando-se de um autor muito citado nesse domnio.

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    Das palavras do prprio folhetinista, sabemos que a sua misso naquele rs-do-cho do jornal era dar conta, semanalmente, de tudo o que da vida lisboeta merecesse ser registado. Embora tantas vezes se queixe, precisamente, da falta de acontecimentos dignos de registo numa capital afectada de monotonia, a verdade que, na prtica, sempre encontrava assunto para escrever. O folhetim de Jlio Csar Machado deu voz aos interesses de uma burguesia que, poca, o liberalismo j tinha formado, e que necessitava destas crnicas mundanas como instrumento da sua afirmao na esfera pblica. Segundo Pierre Hourcade (1978: 39), atravs do folhetim que se reflectem mais fielmente as tendncias dos meios burgueses cultos, que estes aprendem o que devem pensar dos livros ou das ideias recentes, ou que encontram a imagem agradavelmente torneada das suas prprias convices. Toda a actividade intelectual cincia, filosofia, teatro, romance, poesia nele comentada em estilo jocoso ou doutrinrio. Os folhetins de Jlio Csar Machado seriam, assim, um retrato da sociedade. Alis, a tese vem do prprio Machado, que abre a Revista de Lisboa de 31 de Janeiro de 1860, nA Revoluo de Setembro, com essa lapidar proposio: O folhetim a expresso da sociedade, querendo com ela, neste caso, justificar a falta de assunto para escrever (para a revista estar de acordo com este conceito, preciso no tratar hoje de mais nada, porque nada mais sucedeu desde tera-feira passada). Neste sentido, como refere Ernesto Rodrigues, a proeminncia do teatro no folhetim serviria o objectivo basilar: o folhetim suporta as cargas do edifcio social e, de um modo adequado, nele cabe tudo: crtica hiper-impressionista sobre livros, etc., mas, sobretudo, o universo teatral (), visto que o teatro tido como fotografia da sociedade (1980: 35). Os leitores, em especial as leitoras, rever-se-iam ento nessa fotografia, amvel e prazenteira, conversando com o folhetinista sobre os assuntos que os moviam. Sintetizando, ainda com as palavras de Ernesto Rodrigues, a essncia dos folhetins de Jlio Csar Machado nA Revoluo de Setembro, vemos que o gnero, se, alm de ser a revista da semana, recolhe textos de gaveta ou impresses de viagens, nem por isso esquece as prescries de reprodutor da sociedade e do real (ibidem: 36).

    No total, Jlio Csar Machado escreveu mais de cinco centenas de folhetins para A Revoluo de Setembro, concentrando-se os maiores nmeros nos anos de 1860 a 1871. Cerca de metade daquele total contm informaes para a histria do teatro oitocentista. Naquela fatia mais producente, a frequncia habitual era de um folhetim por semana, em regra tera-feira. Com os suportes que conhecemos (ou seja, fazendo f nas coleces das bibliotecas Nacional de Lisboa e Geral da Universidade de Coimbra), e excluindo a

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    hiptese do anonimato ou do pseudnimo, o primeiro folhetim deste jornal assinado por Jlio Csar Machado data de 6 de Julho de 1854, e o ltimo de 19 de Junho de 1886. Os dados para a histria do teatro e do espectculo so, no obstante a sua quantidade e pertinncia, elementos a captar com o cuidado que impe o recurso a uma fonte selectiva, que no tem pejo em expor as suas particularidades, e que, no fundo, no tem uma misso estritamente informativa. H algumas passagens em que Machado refere que, quando no tem oportunidade de assistir ele mesmo ao espectculo, recorre a relatos de amigos. Em qualquer dos casos, o tom coloquial uma caracterstica constante. Veja-se, por exemplo, o folhetim de 29 de Maio de 1860: No h melhor modo de cada um encher o seu folhetim do que no ir a parte alguma! Escusa de ter opinio e de formar um juzo! Os seus amigos incumbem-se de o informar, e, como quase sempre mentem um poucochinho, o artigo fica mais imaginoso e mais brilhante!. E acrescenta: Saber das coisas para falar delas! Eu fiz isso no meu primeiro semestre! (RS). certo, porm, que no deixa de transparecer aqui alguma retrica, pois o conjunto dos indcios aponta para que Csar Machado tenha sido, na realidade, um frequentador assduo dos teatros.

    2.3 O folhetim do Dirio de notcias

    A primeira colaborao em folhetim de Jlio Csar Machado para o Dirio de notcias data de 5 de Fevereiro de 1865, pouco mais de um ms aps a fundao deste jornal inovador. a nica, no entanto, que encontramos nesse ano. Regressa em Julho de 1866 para mais trs intervenes, em 1867 assume colaborao intensa nos meses de Abril e Maio, interrompendo logo por um perodo de trs anos, apenas cortado por um folhetim em 30 de Outubro de 1870. Por esta altura ainda se encontravam no topo da celebridade os seus folhetins dA Revoluo de Setembro, para onde estava contratado. Por conseguinte, estas prestaes episdicas funcionariam talvez por convite. A primeira delas, de facto, traz uma pequena introduo a revelar que se trata de uma carta de Jlio Csar Machado em resposta ao convite do Dirio de notcias para escrever um folhetim. Os restantes deste perodo contm pequenos contos de Jlio Csar Machado No lago de Como, em 1866, Entre a murta, em 1867. J em Fevereiro de 1871 inicia-se a colaborao regular, quinzenal, de folhetins de Jlio Csar Machado no Dirio. Prolonga-se, em continuidade, at 7 de Novembro de 1889, data do ltimo folhetim assinado pelo autor. Recorde-se que o suicdio do filho

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    aconteceria na semana seguinte (a 13 de Novembro). Alfredo da Cunha apresenta idnticas balizas para o compromisso de Jlio Csar Machado com o Dirio de notcias, dando como incio o ano de 1871, acrescentando que se conservou como folhetinista efectivo at pouco antes da sua desgraada morte, em princpios de 1890 (Cunha, 1891: 106). No primeiro ano de existncia do jornal, os folhetinistas efectivos eram Camilo Mariano Fris, Bernardino Martins e F. Leite Bastos (ibidem: 109).

    Se a tera-feira era o dia da semana em que saam de preferncia os artigos de Machado nA Revoluo de Setembro, no Dirio de notcias saam maioritariamente quinta-feira. Este jornal integrava em quase todos os nmeros a seco do folhetim, por norma na primeira pgina, eventualmente prosseguindo ou duplicando na segunda pgina. No eram, porm, to dedicados s artes teatrais como os dA Revoluo de Setembro. Abarcavam temas muitos diversos, desde crnicas quotidianas a assuntos militares, passando pelo romance (o caso paradigmtico o da obra conjunta de Ramalho Ortigo e Ea de Queirs O mistrio da estrada de Sintra, que foi primeiro publicada em folhetins pelo Dirio de notcias, entre 24 de Julho e 27 de Setembro de 1870). Desde os tempos inaugurais, pontuavam no rodap do Dirio de notcias os nomes de Eduardo Coelho (que fundou o peridico juntamente com Toms Quintino Antunes), Mariano Fris, Pinheiro Chagas, Lus de Arajo, Andrade Ferreira, Bulho Pato, Xavier da Silva, A. F. de Castilho, J. Simes Ferreira, Camilo Castelo Branco, Santos Nazar, Teixeira de Vasconcelos, entre tantos outros.

    O ano de 1871 apresenta em primeiro plano, de Jlio Csar Machado, uma srie de folhetins sobre o hospital de alienados de Rilhafoles, que reunidos mais tarde em volume se transformaram num dos seus principais xitos editoriais: Da loucura e das manias em Portugal. Finda a srie de Rilhafoles, e exceptuando os pequenos contos que vo surgindo esporadicamente, alguns integrados depois em monografias, inicia-se com um folhetim sobre O Salitre, em 7 de Dezembro de 1871, o padro dominante da produo de Jlio Csar Machado para o Dirio de notcias. Aqui, Machado j no escreve revistas da semana, como fazia para A Revoluo de Setembro; esse tipo de folhetim, alis, no fez escola no Dirio, embora nele surgissem pontualmente os seus cultores, como foi o caso de Pinheiro Chagas. Os folhetins de Jlio Csar Machado no deixam de se apoiar na realidade contempornea, mas j no pretendem passar uma rpida revista sobre os acontecimentos da semana. Em vez disso, elegem uma figura, um evento, um lugar que ficou a marcar aqueles dias, e sob