julião sarmento, pelo labirinto da pintura, city, maio/may 2000

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    Flashback ottulo da exposio que traz Julio Sarmentoaos olhos do pblico portugus. Do Centro Reina Sofia,em Madrid, para oCentro de Arte Moderna da FundaoGulbenkian, em Lisboa, veio uma mostra que pretendeexibir "as ligaes mais profundas que existem entreotrabalho recente eotrabalho inicial" deste artista. Sarmentofala Citydo "fio condutor" que uneessas obras edo labirintoque pretendeu criar no espao expositivo. Perca-se.

    Ataque (1), de 1994.

    Por Ruth RosengartenX Fotografias de Roberto Gios tra

    P lo labi intoCity- ua exposioFlashback, comissariada porJames lingwoodalado deVelazquez (Reina Sofia), em Madrid, numa versforosamente mais pequena. Pelo que vi no catlogo, a exposletem uma estrutura coeSiva, crtdndo assim uma nova narrativ

    l d .S aJulio Sarmento -A exposio foi congeminada, imaginada e estruturadapor James Lingwood. Mas obviamente, estas coisas sempre resultam dediscusses a dois. As linhas de fora ptincipais de todo este projecto eramduas. Em primeiro lugar, mostrar trabalho recente, e em segundo lugar,mostrar as ligaes mais profundas que existem entre o trabalho tecentee o trabalho inicial.

    i s s co ti I .,Nos ltimosanos, todas as exposiesque tenho feito- e fiz vtiasexposiesantolgicas e retrospectivas - batiam sempte na mesma tecla, a tecla dosanos 80. Eramexposiesde pinturados anos 80. Eu estavaj um bocadocansado disso. Ptecisava de respirar um pouco. Os filmes, as instalaes,o trabalho fotogtfico que fiz nos anos 70 so quase desconhecidos emPortugal. Como se sabe, nesta altura havia pouqussimas exposiesem Portugal, o ambiente artstico no tinha nada a ver com o que hoje.

    ce oa A t r'lar 1 TO e 77 eExacto. Mas fora disso e algumas poucas exposies aqui, o meu trabalhodesenvolveu-se muito f ot a de Po rtugal . H ainda outros factos

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    City, Abril (?) de 2000

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    do desconhecimento deste meu trabalho inilid: um deles que muitasdessas obras dos anos 70 j; no existem, por razes variadssimas, mascsscncialmente pelo flcto de o meu atelier tn ardido em I ')B 1.Reconstituste agora este trabalho desaparecido?Algumas das obras. ; \0 caso do trabalho fowgr;flco, :IS vczcs sohreviveramos nL'gati\'()'o: noutros casos nem iS'oo era pOS'ovel porque os negativostamlK:m arderam. :-'1as fIZer essa aproxima

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    Lindsayeeufizemos, que a bandasonoraacompanhando a peaFlashback.um obrtua pinmem6rinacabExactamente. A ideia era mesmo que houvesse a possibilidade da pessoase perder dentro do local da exposio e sair sem ver tudo, sem sabertudo, e da a ideia da narrativa incompleta.uma espciedelbum virtualde imagens, fragmentos ejlashesfotogrflcos.

    o que eu pretendo ser uma espcie de contador de histrias de umamaneira subversiva. Conto histrias que no existem. Nem existem paramim. No tm um princpio, nem um meio, nem um fim. Sou umcontador de bocados de histrias. a criao de uma realidade fugaz,uma frase que se torna romance.

    Em Espanha foi assim; acho que no vamos poder ter o filme duas vezesaqui. Porque em Espanha tnhamos uma s entrada; em Portugal novai ser possvel porque o espao de exposies temporrias da CAM temduas entradas. Aqui, este filme no determina a entrada e a sada daexposio.

    aPorque eu estou a olhar, e eu sou homem. Sou incapaz de me colocarna posio de uma mulher. O meu trabalho sempre teve este ladovoyeurstico. uma parte intrnseca da minha maneira de pensar e daminha maneira de ser.

    As mulheres so genricas. No so gordas nem so magras nem soaltas nem so baixas, so recortes de uma ideia genrica de "mulher". por isso que no tm cabea, nem cara. Quando tu dizes que eu norepresento homens, s represento mulheres, no verdade. Representohomens. O homem sou eu.

    rm' ane ud a strSim. Vai ser outra narrativa.

    a preto e branco - um loopmulher, de I os Itos, a n

    Toda a gente fala destes saltos altos!H, como dizes, um grande sentido de cumplicidade. Muitas vezesa cumplicidade ertica, mas no necessariamente. Esse sentido decumplicidade fundamental, ou seja, nenhuma das pessoas que esta ser observada est a ser observada contra a sua prpria vontade.H sempre um jogo directo de relao entre quem v e quem esta exibir qualquer coisa.

    Exactamente, porque o voyeur quem v semessacumplicidade, quemv sem este jogo de conluio.

    Absolutamente. A sobrevivncia tem a ver com a paixo e o desejo.No fundo, a sobrevivncia da prpria paixo e do prprio desejo.As absolutas estratgias de sobrevivncia so essas.

    No, obviamenteque no por acaso que ela usa saltosaltos, mas tambmno fundamental. No uma simbologia ertica que est em causa.No fundo, isto uma perseguio. Uma perseguio do olhar. E deuma pessoa, uma mulher, que est numa rua, quesegue pela rua adiante- e a cmarasegue esta figura, naquilo que em linguagem cinematogrfiase chama dog's eye, que com a mquina colocada numa posio muitobaixinha. Vamos seguindo esta figura com a cmara, com o olhar.A cmarasegue a mulher, e ela nunca chega a lado nenhum, e a cmaranunca chega a ela.

    Muito. um tipo de esttica que me continua a interessar. Tu falas dosfilmes do Warhol, em que nada se passa, em que no fundo tudo bvio.Muitos anos depois, comecei a interessar-me pelas escritas do RaymondCarver e do Dirty Realism americano, que tem precisamente a ver comisso. Com o no acontecer nada. Repara que h um total paralelismoentre o discurso do Carver e os filmes do Warhol. No fundo, estabanalidade que me interessa. Portanto no era o Warhol em particular,mas aquilo que o Warhol representava enquanto criador de situaes.

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    'u io sarmento

    Sem ttulo, 1975o trabalho fotogrfico inicial de Julio Sarmento foi marcado pelos mtodos de pesquisa e documentao que caracterizavam aArteConceptual. Esta pea fotogrfica justape texto e imagens, numa experincia pseudocientfica de reverso/inverso entre corpos humanose animais. 'A mesma pessoa vestiu oito abafos diferentes, executados a partir de peles de animais e de fibras que as imitam', assim nos dizo texto. Vemos primeiro o corpo nu, seguidamente envolto em diferentes peles. Sempre decapitado, o corpo feminino apresenta-se-noscom a rigorosa frontalidade de uma ilustrao forense ou de catlogo. O modelo, Helena Vasconcelos, primeira mulher do artista, apareceem muitos dos seus trabalhos at meados dos anos 80. Mais cmplice do que musa, a sua inconfundvel figura esguia parece estabeleceruma espcie de padro ou paradigma da 'mulher genrica'.

    Some Feeling of Threat, Some SenseofMenace, 1998Numerosos artistas dos finais dos anos 90 (por exemplo Kiki Smith,os irmos Chapman, Charles Ray, Ron Mueck) tm utilizado um simulacrotridimensional do corpo humano como meio de sublinhar no apenasoabjecto, mas tambm de criar uma tenso entre a realidade earepresentao.Julio Sarmento vai buscar o prottipo destas figuras femininas de tamanhoreal s suas prprias pinturas e aos seus prprios filmes. Aqui, a ausnciada cabea no modelo tridimensional (como representao da noo demulher,mais do que retrato de esta mulher em particular) transforma a figura numobjecto ameaado, certamente controlado pelo olhar, implicitamente

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    Estratgias de Sobrevivncia, 1984Nesta exposio uma das poucas obras dos anos 1980 - claramenteseleccionada pela sua ligao iconogrfica auma pintura posterior,Anythingto Fil! in the Long Silences, de 1998. Em ambas as obras aparece umamulher usando um vestido comprido, debruada sobre uma mesa, coma cabea nela apoiada e os braos estendidos. uma posiosimultaneamente abjecta epassiva (como que espera,masoquisticamente,de castigo) e de cumplicidade. Na sua pintura da primeira metade dosanos 80, influenciado pelos vrios 'regressos' pintura dessa dcada(a chamada'Bad Painting'americana, aTransvanguarda italiana, os Wildenalemes) Sarmento utiliza papel spero como suporte para trs imagens,cada uma no seu prprio enquadramento. As figuras so rapidamentepintadas, como que representando num ecr instantes passageiros efugazes, e assim evitando a coeso unificada de uma nica cena numdado momento. A influncia da linguagem cinematogrfica torna-seevidente, no sna composio como tambm nos instantes fragmentadosde aco que recusam submeter-se a um simples fio narrativo, mas quese combinam para criar uma atmosfera de mistrio e erotismo.

    Febre, (21), 1995Sarmento tem vindo a pintar desde os anos 80 as suas "pinturasbrancas" - onde, num fundo texturado pintado a branco, se inscrevesimplesmente fragmentos de desenhos - to misteriosas quantoreveladoras. O branco , parece, a cor tanto da memria comodo esquecimento. Fragmentos de corpos - mos, pescoos, lnguas,lbios, ps - encontram equivalentes em fragmentos da natureza troncos de rvores, flores, ramos, ossos. Ottulo sugere uma narrativido desejo incompleta e febril. Os actos de lamber e de tocar,enquanto objectos de um olhar erotizado - aqui representado comofragmento de um desenho - j apareciam nos primeiros traba,lhos doartista, por exemplo no filme Faces de 1976, dando o mote para umsrie de grandes obras dos meados dos anos 90, de que este trabalh exemplo. A modelo, cortada aos bocados, cmplice neste jogo deolhares, de esconder e revelar. Nesta cumplicidade, o artista joga com (paradoxos inerentes aos jogos erticos de domnio e submisso, nuncaabdicando da sua posio como voyeur, como observador da cena.

    o

    Sem ttulo, 1999A mquina fotogrfica coloca-se na posio de dog's eye - olhar de co - em baixo, pertodo cho. Ns, os espectadores, somos mimeticamente colocados na posio da mquina,vemos o que ela v. O ponto de vista do co apenas nos permite v-Ia at cintura.A cabea, o cabelo, as costas, os ombros, subtraem-se ao nosso olhar. Traz uma saiatravada escura e sapatos de salto alto: objectos, certamente, de um olhar fetichizado.Com elegncia e preciso, estes ps evitam os obstculos de uma calada portuguesa,o que no tarefa fcil. F-lo com elegncia e preciso porque aprendeu a andar naspasserel!es - modelo, embora ns no o saibamos. No suposto sabermos o que querque seja. O filme no comea nem acaba, continuando indefinidamente a perseguio.Estamos a tentar apanhar esta mulher, a segui-Ia. Ela caminha nossa frente semabrandar nem apressar o passo e nunca chegando a stio nenhum. No h princpio nemfim, a narrativa est suspensa.