juliana mastelini moysesb – universidade estadual de ... · a esperança de encontrar um lugar...

14
IVAIPORÃ: HISTÓRIAS A PARTIR DE FOTOGRAFIAS E ORALIDADE a Juliana Mastelini Moyses b – Universidade Estadual de Londrina O presente trabalho constitui uma proposta de observar a relação entre fotografia e memória a partir da recuperação histórica de Ivaiporã por meio de relato oral, textos e imagens. A ideia da pesquisa surgiu da observação de que, apesar da história do município estar viva na memória dos primeiros moradores e de seus descendentes, há carência de estudos sobre a região, e então a possibilidade de se recuperar a história junto às pessoas, e também de estudar a relação fotografia e memória. A pesquisa propõe a recuperação histórica com base em duas perspectivas: 1) as histórias contadas pelas pessoas e 2) pelas fotografias. A partir disso, organizá-la para que não se perca e para que as pessoas possam acessá-la e conhecê-la. As fotografias não terão o papel de meras ilustrações; elas serão usadas como “contadoras” de histórias e como instrumento auxiliar para a recordação e, portanto, reveladoras de outras histórias. Elas assumem um papel muito importante quando se busca contar a história a partir da perspectiva daqueles que viveram, já que além de “contar” histórias, as fotografias despertam a memória das pessoas para um acontecimento, um lugar, uma pessoa. O papel das fotografias foi analisado da seguinte forma: o primeiro momento da entrevista era direcionado às histórias espontâneas dos entrevistados e também aos questionamentos. No segundo momento, fotografias antigas da cidade eram apresentadas aos entrevistados, pedindo para que eles discorressem sobre a imagem, com o objetivo de observar o que a fotografia despertava em cada um. A metodologia adotada será: pesquisa bibliográfica, coleta e análise de fotografias e história oral, ou seja, entrevista com pioneiros e descendentes. A pesquisa bibliográfica foi o primeiro passo e serviu como base para os outros dois procedimentos: buscar as fontes orais e as fotografias. Fotografia e oralidade: história “Toda fotografia tem atrás de si uma história” (KOSSOY, 2001, p. 45), e todo mundo tem uma história para contar. Conhecer essas histórias é conhecer também um pouco da história coletiva, já que aquelas falam muito do conjunto. Um dos instrumentos para isso é a história oral, que auxilia na tentativa de dar voz aos anônimos que têm muito III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1649

Upload: dominh

Post on 13-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

IVAIPORÃ: HISTÓRIAS A PARTIR DE FOTOGRAFIAS E ORALIDADEa

Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de Londrina

O presente trabalho constitui uma proposta de observar a relação entre

fotografia e memória a partir da recuperação histórica de Ivaiporã por meio de relato oral,

textos e imagens. A ideia da pesquisa surgiu da observação de que, apesar da história do

município estar viva na memória dos primeiros moradores e de seus descendentes, há

carência de estudos sobre a região, e então a possibilidade de se recuperar a história junto às

pessoas, e também de estudar a relação fotografia e memória. A pesquisa propõe a

recuperação histórica com base em duas perspectivas: 1) as histórias contadas pelas pessoas e

2) pelas fotografias. A partir disso, organizá-la para que não se perca e para que as pessoas

possam acessá-la e conhecê-la.

As fotografias não terão o papel de meras ilustrações; elas serão usadas

como “contadoras” de histórias e como instrumento auxiliar para a recordação e, portanto,

reveladoras de outras histórias. Elas assumem um papel muito importante quando se busca

contar a história a partir da perspectiva daqueles que viveram, já que além de “contar”

histórias, as fotografias despertam a memória das pessoas para um acontecimento, um lugar,

uma pessoa.

O papel das fotografias foi analisado da seguinte forma: o primeiro

momento da entrevista era direcionado às histórias espontâneas dos entrevistados e também

aos questionamentos. No segundo momento, fotografias antigas da cidade eram apresentadas

aos entrevistados, pedindo para que eles discorressem sobre a imagem, com o objetivo de

observar o que a fotografia despertava em cada um.

A metodologia adotada será: pesquisa bibliográfica, coleta e análise de

fotografias e história oral, ou seja, entrevista com pioneiros e descendentes. A pesquisa

bibliográfica foi o primeiro passo e serviu como base para os outros dois procedimentos:

buscar as fontes orais e as fotografias.

Fotografia e oralidade: história

“Toda fotografia tem atrás de si uma história” (KOSSOY, 2001, p. 45), e

todo mundo tem uma história para contar. Conhecer essas histórias é conhecer também um

pouco da história coletiva, já que aquelas falam muito do conjunto. Um dos instrumentos

para isso é a história oral, que auxilia na tentativa de dar voz aos anônimos que têm muito

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1649

Page 2: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

que contar. Boing (2007) pontua que a utilização de dados orais “oferece lugar na história

àqueles que não souberam e puderam se expressar”. Segundo ele, além de oferecer a outra

versão dos fatos, com a história oral é possível uma interpretação mais aberta às diferenças, o

que serve de base para o confronto de pontos de vista sobre um mesmo acontecimento. Passa-

se a ouvir não só uma versão dos fatos, mas várias versões, o que facilita a compreensão da

realidade.

As fotografias também representam um importante instrumento para se

contar a história de um grupo de pessoas ou de um lugar. Barthes (1984) fala que uma

fotografia é sempre invisível, não é a ela que vemos, é o que está além. Elas, mais do que a

expressão estética de um momento recortado no tempo, contam muito do ambiente e da

situação vivida. Desse recorte, elas carregam características peculiares, que contam muito dos

hábitos, costumes e rotina de um povo, aguçando também a memória. Neste sentido, Barthes

(1984, p.49) fala que “quando William Klein fotografa 'Primeiro de Maio', ensina-me como

se vestem os russos (o que no fim das contas não sei): noto o grosso boné de um garoto, a

gravata do outro...”

A fotografia é um documento que ajuda a contar a história a partir da

presentificação de um momento visual vivido no passado. Ela familiariza um lugar, um

instante a alguém que não esteve ali, naquela época. O recorte fotográfico atualiza um

momento do passado (um recorte apenas) a cada novo olhar. Assim, aquele período não fica

somente no passado, se torna eterno. As fotografias são guardiãs de uma realidade, mesmo

que parcial. De acordo com Kossoy (2001, p. 27), elas têm a capacidade de “registro preciso

do aparente e das aparências.”

Por isso, fotografia e memória mantêm entre si uma relação muito forte - e

daí a importância de se aliar com a história oral - já que existem justamente para servir à

memória, pois se produz uma fotografia para preservar aquele momento de alguma forma –

num recorte de papel. E esse objetivo é atingido quando as pessoas que não estavam ali

observam a fotografia, trazendo à tona uma cena que os antepassados quiseram preservar.

A memória despertada pela fotografia em cada um ajuda a construir um

discurso histórico, já que cabe a cada cidadão e a todos a formação do lugar onde se vive.

Cada família que saiu do lugar onde estava, mudando-se para Ivaiporã no intuito de construir

a vida, criar os filhos; cada pessoa que com enxada e a serra na mão ergueu sua vida onde

nada existia, que se formou ao mesmo tempo que a cidade, tem muito a dizer.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1650

Page 3: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

Nesse sentido, dar voz aos atores esquecidos na sociedade é colocá-los em

seu devido lugar: de “fazedores” da história e construtores da cultura. Pois mesmo que não

apareçam, a história só pôde ser construída graças ao seu trabalho. O poema Perguntas de um

operário que lê de Bertold Brecht exemplifica perfeitamente:

Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída – Quem a reconstruiu várias vezes? (...) A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os césares? (...) Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta? Tantas histórias. Tantas questões. c

Um pouco de história

Jovem cidade do centro norte do Paraná, Ivaiporã acolheu pessoas de

diferentes lugares em busca de melhoria de vida ou de simplesmente um lugar para viver. Sua

ocupação se deu a partir da vinda de pessoas de diversos estados, com o encontro das três

frentes de colonização que marcam a ocupação do Paraná: frente tradicional, frente do norte e

frente sulista. Cada frente representa uma cultura que ocupou um espaço geográfico

diferente. Por isso se fala da existência de “três paranás” que se encontraram na região de

Ivaiporã.

Os primeiros a se dirigirem para a região foram os chamados caboclos, no

final da década de 30, que se adentravam nas matas e abriam lugares novos no sertão

(BOING, 2007). O jeito dos caboclos causou estranhamento nos catarinense que chegaram ao

final dos anos 40. Os caboclos por sua vez estranhavam o jeito de lidar dos catarinenses, que

chegavam comprando suas posses de terras e os obrigavam a se dirigir para outros lugares.

Para os catarinenses, a terra tinha uma noção de posse, tanto que a família da pioneira

Adelina Bitencourt chegou em 1948 em busca de mais terras para comprar, posto que em

Santa Catarina a família morava no sítio, “mas existia pouca terra”, contad.

Os imigrantes se dirigiam para a região atraídos pelas terras férteis e os

grandes espaços para produzir. A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1651

Page 4: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

pudessem viver do trabalho na terra atraiu muitos que eram estimulados por aqueles que já ali

se encontravam.

Figura 1: Mata da Fazenda Ubá Fotografia: Autoria e data desconhecidas

Fonte: Acervo Prefeitura Municipal de Ivaiporã

A mata retratada na fotografia traz consigo a ideia de fertilidade das terras,

já que a floresta só cresce em solo fértil. Onde existia mata, podia-se plantar porque a

produção era garantida. E os entrevistados contam que de Porto Ubá até Ivaiporã tudo era

sertão. As estradas eram abertas no meio da mata pelos primeiros que ali passaram,

derrubando árvores, queimando-as e fazendo picadas.

As matas, à medida em que o lugar foi sendo desbravado, foram

derrubadas, abrindo lugar às plantações e às estradas. As enormes árvores, depois de

arrancadas com ferramentas manuais como enxadas e picaretas, eram queimadas. Com o

objetivo de explorar cada vez mais as terras, o desmatamento prosseguiu. Tanto que a mata

foi quase que completamente devastada. O único reduto que restou é o lugar conhecido como

Mata do Placídio, nas terras do pioneiro Placídio Miranda, que preservou a mata e hoje se

orgulha de guardar em seu sítio o “pulmão de Ivaiporã”.

A fotografia não é datada, mas provavelmente situa-se no final da década

de 1940, quando a Companhia Ubá dirigiu-se para a região a fim de lotear os terrenos da

Fazenda Ubá, nome do lugar onde nasceu acidade. O homem ao centro é Bráulio Barbosa,

um dos donos da Companhia Colonizadora.

Em 1948, antes da Companhia Ubá se instalar na região, cerca de 200

famílias catarinenses se dirigiram para a região. A ida foi autorizada pelo então governador

do estado Moyses Lupion. A família de Adelina Bitencourt chegou ao lugar onde se formaria

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1652

Page 5: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

Ivaiporã com essa leva de catarinenses. Um ano depois era a vez da família de Normélia

Braum, incentivada pelo avô que viera em 1948. O avô, ao observar que nas terras recém

ocupadas era possível alcançar o que buscavam, tratou de incentivar a vinda dos familiares.

Normélia recorda que as famílias chegavam, escolhiam o terreno que

queriam cultivar e já começavam a trabalhar na terra. Mas, além disso, as terras eles

compravam das pessoas que já estavam aqui, os caboclos, porém, segundo Normélia, já

sabendo que teriam que regularizar a situação das terras depois, já que os membros da Cia.

Ubá, cientes da ocupação das terras tratou de avisá-los da ilegalidade das suas ações. Nesta

época, a companhia lutava pelo reconhecimento da posse das terras pelo estado.

Os catarinenses como a família de Normélia e de Adelina e mesmo os

próprios paranaenses ou de outros lugares que vieram em direção ao Paraná sem sequer

conhecer o lugar a que se dirigiam, vieram na cara e na coragem, com base somente naquilo

que os outros contavam. O estranhamento com o choque de culturas que se deu na época fica

evidente na fala de Normélia se referindo aos “paranaenses”, aqueles que já estavam aqui.

Para os catarinenses, os caboclos eram folgados e não tinham inteligência, nem coragem.

As estradas incipientes fizeram com que a viagem de Normélia demorasse

uma semana. A viagem foi feita no caminhão de um tio, que um ano antes trouxera também o

avô. Eram cinco pessoas na cabine do caminhão, Normélia inclusive com 10 meses de idade,

e a mudança na carroceria. O tio que os trouxe aproveitava a viagem para levar milho em

espiga para Santa Catarina para tratar a criação.

Normélia conta que a viagem foi difícil, a família inteira apertada na cabine

do caminhão durante uma semana de trajetoe. Para a família de Maria José Machado, porém,

a situação era ainda pior, ela e a família percorreu o caminho que separa Ortigueira e Ivaiporã

a pé. O trajeto levou cerca de três diasf.

O tio de Maria José que morava na região de Ivaiporã mandava cartas para

os parentes de Ortigueira contando as qualidades desta terra. “Ele escrevia pro pai na carta:

‘Compadre Agenor, vem embora pra cá. Aqui junta dinheiro com rodo. As terras são boas, as

terras são não sei o quê. ’ E foi fazendo a cabeça do meu pai e da minha mãe”, conta Maria

José.

No caminho ainda não existia a ponte sobre o rio Ivaí, esta só foi construída

por volta de 1970, alguns anos depois do registro abaixo. Aqueles que vinham pelo norte

precisavam atravessar o rio de balsa. Se a balsa estava do outro lado do rio, era preciso

esperar que ela voltasse à margem em que se encontravam para, então, levá-los ao outro lado.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1653

Page 6: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

A viagem, que já demorava por causa da incipiência das estradas, atrasava mais ainda na

espera pela balsa.

Figura 2: Balsa sobre o rio Ivaí Fotografia: autor desconhecido. Data: 1966

Fonte: Acervo Prefeitura Municipal de Ivaiporã

Quando pela balsa não era possível atravessar, apelava-se para medidas

alternativas. Adelina Bitencourt conta que certa vez uma enchente muito forte carregou a

balsa. Seu marido, que fora buscar cereais em Apucarana, teve que atravessar o rio por canoa

para transportar os mantimentos. A balsa para essa família era fundamental já que eles

sempre se dirigiam para Londrina ou Apucarana comprar o que era necessário.

Herondy Anunziato recorda que a balsa era puxada à mão com a ajuda de

um pedaço de pau e uma forquilha que formavam uma espécie de gancho passado no cabo de

aço que era puxado para atravessar o riog. Pode-se observar os cabos de aço do lado direito da

fotografia e um homem de chapéu abaixado ao centro, manipulando uma corrente,

provavelmente algum mecanismo da balsa.

A margem do rio Ivaí aparece devastada, mostrando já na década de 60, o

desmatamento de onde antes era tudo sertão. A fotografia retrata a caravana das catequistas

do Sagrado Coração de Jesus e padres de Prudentópolis para Ivaiporã para a bênção da pedra

fundamental da construção do colégio Santa Olgah.

Nas décadas de 40 e 50, as pessoas se dirigiam exclusivamente para os

sítios, a cidade só se formaria depois. O lugar em torno do qual a cidade foi crescendo

possuía umas poucas casas ao longo da atual avenida Brasil. Essas casas eram também

vendas nas quais aqueles que moravam nos sítios compravam o que precisavam. A primeira

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1654

Page 7: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

sala da casa era a venda, a família morava nos cômodos do fundo. Os compradores que

chegavam a cavalo amarravam o animal nas cercas ao redor da casa.

Figura 3: Avenida Brasil Fotografia: Autor desconhecido data: 1954

Fonte: Acervo Jornal Paraná Centro

A fotografia acima é a imagem mais lembrada quando se pergunta como era

Ivaiporã no seu início, tempo em que o lugar era chamado de Sapecado. Ao redor dessa rua

foi se formando a cidade. Ali se encontravam as casas comerciais e hotéis. A imagem mostra

como o terreno era variado, alguns lugares de mata e outros não. Pode-se ver que a floresta é

encontrada apenas ao fundo da cena. O lugar onde foram construídas a rua e as casas passou

por uma queimada, deixando o terreno limpo. Deve-se a esta queimada a primeira nomeação

do lugar, Sapecado.

Figura 4: Avenida Brasil Fotografia: Autor desconhecido data: 1954

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1655

Page 8: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

Fonte: Acervo Biblioteca Municipal de Ivaiporã

Nesta outra fotografia também da atual Avenida Brasil é possível observar

melhor o estilo das casas. Nelas, encontra-se referência das construções europeias,

principalmente alemãs, devido à instalação de migrantes de Santa Catarina, estado que

recebeu grandes levas de alemães. As casas eram construídas com os telhados bem pontudos

na Alemanha para que a neve escorregasse e não pesasse em cima do telhado, com o perigo

de derrubá-lo. Os migrantes vieram para o Brasil de clima tropical e mantiveram as casas aos

moldes que construíam, mesmo sem necessidade. Ao migrar novamente, desta vez para a

Paraná, trouxeram o jeito de fazer as casas.

Os telhados são todos feitos de tábuas cortadas pequenas e pregadas umas

do lado das outras. Maria José Machado conta que as tábuas eram excelentes para se cobrir a

casa. “A tabuinha se pregava e pregava a capa em cima pra não entrar chuva. Podia cair

tormenta, podia cair pedra, aquilo só escutava o barulho da chuva lá fora”, explica Maria

José.

Do lado direito da imagem aparece um homem descendo do cavalo. Esses

animais, juntamente com as carroças representavam os meios de transporte quase que

exclusivos na época, principalmente daqueles que moravam nos sítios e precisavam ir para a

cidade em busca de produtos. Os carros eram raros e os únicos que conseguiam se locomover

nos terrenos acidentados eram os jeeps. Quem não possuía cavalo ou carroça fazia o trajeto a

pé. As mercadorias vendidas ou trazidas de outras cidades eram transportadas por caminhões.

Tanto nessa imagem quanto na anterior, só aparecem homens, todos vestem

chapéu. Numa análise primária pode-se supor que o chapéu tinha a única função de proteção

do sol, porém a pioneira Tusnelda Goedert conta que o chapéu na época representava a

masculinidade, todos os homens precisavam usar chapéu.

Desde essa época até muitos anos depois, na década de 70, não existia

energia elétrica, a iluminação era obtida a partir de lampiões a querosene. Nas serrarias, que

precisavam de energia para mover as máquinas, o que garantia a energia eram os motores a

vapor.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1656

Page 9: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

Figura 5: Motor à vapor da Serraria (1962) Fotografia: autoria desconhecida Fonte: Acervo da família Martos

Na fotografia aparece o motor a vapor da Serraria Brasil em primeiro plano.

O funcionamento do motor era similar ao de uma locomotiva de trem, a lenha era colocada

para queimar, o calor produzido pela lenha esquentava a água que então se transformava em

vapori. A fotografia é datada de 1962, ano em que a Serraria Brasil iniciou suas atividades, o

motor ainda foi utilizado por 15 anos. Mesmo depois da energia elétrica ser instalada na

cidade, ela era muito precária e insuficiente, portanto a serraria continuou utilizando o motor

a vapor.

Para o restante da cidade, a energia era fornecida por meio de um motor

estacionário. As pessoas recebiam energia até a meia noite, depois disso as luzes se

apagavam e com ela o grande barulho do motor. Quando a energia elétrica chegou à cidade,

as pessoas estranhavam tanto o silêncio como a nova tecnologia. Inês Ishii conta que mesmo

depois de ter luz elétrica em casa, quando levantava de madrugada acendia uma vela para

iluminar o ambientej.

Considerações finais

A fotografia não desperta os mesmos sentimentos em todas as pessoas, cada

um reage de uma maneira, trazendo nessa reação muito de suas características pessoais.

Portanto, traçar até que ponto a fotografia é capaz de fazer despertar para um acontecimento,

uma situação, é de certa forma complicado e pode acabar caindo numa generalização

pretensiosa. Falar de ser humano é falar das peculiaridades e não de generalizações. “Essa

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1657

Page 10: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

foto me agradava? Me interessava? Me intrigava? Nem mesmo isso. Simplesmente ela existia

(para mim).” (BARTHES, 1984, p. 40)

O aspecto primordial da fotografia, percebido com a pesquisa, é que ela é

uma mídia que prende a atenção. Para se “ler” uma fotografia é preciso estar de olhos atentos

na cena retratada, e a atenção do interlocutor é questão importantíssima quando se pretende

obter informações que, para serem descobertas, é necessário recorrer à memória de um

acontecimento distante no tempo. A fotografia faz recordar detalhes, pois deixa-os à mostra.

Detalhes que o pesquisador, por desconhecimento, não saberia indagar. Neste ponto a

fotografia atua como ampliadora de uma realidade até certo ponto escondida. Roland Barthes

(1984, p. 37) fala que uma fotografia em si não é animada, “mas ela me anima”.

Normélia Braum, por exemplo, ficou tempo discorrendo sobre a vivência na

cidade que ainda demoraria a nascer. Quando o assunto se esvaziava, as indagações faziam

recordar. A fotografia cumpria também esse papel, fazia recordar num instante. Mas ia além,

ela trazia à tona detalhes perdidos. A fotografia do antigo cinema na área central da cidade

despertou até para o filme que se assistia à época e também para o jeito de andar do

personagem do filme.

Figura 6: Antigo Cine Ivaiporã na atual avenida Souza Naves Fotografia: autoria desconhecida

Fonte: Acervo Prefeitura Municipal de Ivaiporã

O que se observa é que, mesmo as reações sendo diferentes, ninguém fica

alheio à fotografia Seja num relance ou numa desconfiança, a fotografia desperta algum

sentimento, de alegria ou de repúdio. Isso aconteceu de forma mais aparente na conversa com

Herondy Anunziato. Percebeu-se na sua fala muita influência daquilo que ele lera sobre a

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1658

Page 11: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

cidade, e quando da observação das fotografias, o que apareceu foi o cidadão contando as

suas experiências.

Assim como Herondy, para algumas pessoas, a fotografia serve de

instrumento primordial no auxílio à memória. Odilon Andradek, por exemplo, dispersava-se

nas histórias, querendo sempre recorrer a textos para auxiliar. Logo no início da entrevista,

percebendo o não fluir da conversa, passou-se para a apresentação das fotografias. A cena se

alterou totalmente e ele, que inicialmente contava histórias vagas, começou a lembrar

aspectos até então não atentados.

As histórias obtidas junto a Odilon foram, quase que exclusivamente,

graças ao uso das fotografias, justamente pela já exposta concentração da atenção que a

fotografia exige: é preciso “pegar”, prender o olhar, atentar a cada detalhe. Ela exige isso. Ao

se olhar uma fotografia, ela requer toda atenção. A observação detalhada pressupõe tal

exigência.

Até determinadas entrevistas, todas as fotografias eram entregues juntas aos

entrevistados. Isso demonstrou certa limitação já que as pessoas ficavam instigadas a olhar a

próxima fotografia e não deixavam um tempo à memória para recordar. Assim que as

lembranças diminuíam, a tendência era passar para a próxima fotografia.

A partir da entrevista com Maria José Machado, a mostra de fotografias foi

feita de forma diferente. As fotografias eram dadas uma a uma, e mesmo com silêncio, não se

abandonava aquela fotografia. É preciso um tempo para que as informações sejam

organizadas no pensamento e estejam prontas para serem verbalizadas. A memória necessita

de um tempo.

Sem auxílio de questionamentos ou direcionamento, Maria José começou a

contar sua história, em que cada informação se tecia com riqueza de detalhes. Maria José,

sem que fosse preciso perguntas, contou histórias surpreendentes, capazes de reconstruir

visões sobre a história da cidade. As fotografias, na conversa com Maria José tiveram o papel

de despertadoras para novos relatos, além de confirmadoras de histórias já contadas. Com

Maria José, fotografia e memória se fundem para aprofundar lembranças.

A fotografia da primeira capela de Ivaiporã, por exemplo, despertou em

Maria José a recordação do casamento de sua prima, cuja referência já havia feito, mas de

forma genérica. Nessa época, quando o lugarejo ainda se chamava Sapecado, a igreja se

encontrava onde atualmente é o Largo Dom Pedro II, no centro da cidade.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1659

Page 12: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

Figura 7: Primeira capela Fotografia: autoria desconhecida

Fonte: Acervo Biblioteca Pública de Ivaiporã

A igreja era pequena, toda em madeira e rodeada pela mata. Maria José

conta que a prima casou nesta igreja, para onde foi levada a cavalo do sítio onde moravam

para a confissão na sexta-feira, dia anterior ao casamento.

Além disso, a fotografia atua para os entrevistados também como prova

daquilo que já fora dito. Muitos, ao verem a fotografia após os relatos, retomavam o assunto

para explicitar, por outro sentido (a visão) aquilo que transmitiram e se percebe através da

audição. Como diz Barthes, numa fotografia jamais se pode negar que a coisa esteve lá, pelo

menos isso ela garante. “Era certo que isso existira: não se tratava de exatidão, mas de

realidade: o historiador não era mais o mediador [,,,] o fato estava estabelecido sem método”.

(1984, p. 120). A história dos entrevistados então se torna contundente, comprovável. Sua

memória parece ser atestada com a fotografia, meio que estabelece uma relação direta com o

momento contado/retratado. Sua história sendo atestada pela fotografia se torna motivadora

para contar outros aspectos da cena retratada.

Além disso, Barthes acrescenta que as pessoas têm uma certa resistência

para acreditar no passado, na História. A fotografia faz cessar essa resistência: “o passado,

doravante, é tão seguro quanto o presente, o que se vê no papel é tão seguro quanto o que se

toca. É o advento da Fotografia [...] que partilha a história do mundo” (1984, p. 130).

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1660

Page 13: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

Os próprios entrevistados demonstravam a importância da fotografia. Inês

Ishii, por exemplo, ao vasculhar a caixa de fotografias pessoais e falar da alegria que uma

fotografia traz, lamentou não possuir nenhuma fotografia da mãe. Isso faz referência ao

pensamento de Barthes, na fotografia não se pode negar que aquilo ou aquela pessoa existiu,

mas quando Inês não estiver mais viva, e talvez seja a única que guarde recordações da mãe,

a mãe também de certa forma vai morrer de novo.

O que será abolido com essa foto que amarelece, empalidece, apaga-se e um dia será jogada no lixo, se não por mim - muito supersticioso para isso -, pelo menos quando de minha morte? Não somente a 'vida' (isso esteve vivo, posado vivo diante da objetiva), mas também, às vezes, como dizer? o amor. Diante da única foto em que vejo meu pai e minha mãe juntos, que sei que se amavam, penso: é o amor como tesouro que desaparecerá para sempre; pois quando eu não estiver mais vivo, ninguém poderá mais testemunhá-lo... (BARTHES, 1984, p. 140)

De outra forma, Maria José Machado também atesta essa importância da

fotografia. Ela conta que gosta de ir a um determinado supermercado da cidade para observar

os quadros com fotografias antigas expostos nas paredes. Essa atitude atesta aquilo que se

buscou analisar nesta pesquisa, a importância da fotografia para a memória: as fotografias

trazem lembranças de um tempo que deixou saudades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

40 ANOS de História, 1964 a 2004. Revista comemorativa dos 40 anos do Colégio Santa Olga em Ivaiporã. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984 BOING, Lúcio. Vale do Ivaí: conflitos e ocupação das terras regionais, 2007 (Apresentação de Trabalho/Comunicação). Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/ arquivos/ 582-4.pdf>. Acesso em 20 mar. 2010. BONI, Paulo César (Org.). Certidões de Nascimento da História: o surgimento de municípios no eixo Londrina – Maringá. Londrina: Planográfica, 2009. BRECHT, Bertold apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin- aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Trad.: Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005 IVAIPORÃ. Lei Orgância do Município. Câmara de Vereadores.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1661

Page 14: Juliana Mastelini Moysesb – Universidade Estadual de ... · A esperança de encontrar um lugar que fosse seu, onde III Encontro Nacional de ... Normélia conta que a viagem foi

JORNAL Paraná Centro. Edição especial em comemoração aos 48 anos de Ivaiporã. 16 a 22 de novembro de 2009. KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001 KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. LAZIER, Hermógenes. Paraná: terra de todas as gentes. Francisco Beltrão, 2003, p. 154 apud BOING, Lúcio. Vale do I vai : conflitos e ocupações de terras regionais, 2007 (Apresentação de Trabalho/Comunicação). Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/ arquivos/ 582-4.pdf>. Acesso em 20 mar. 2010. LÖWY, Michael. Walter Benjamin- aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução: Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005 QUIEZI, Simone Aparecida. Companhia Ubá: colonização e ocupação do território entre os rios Ivaí e Corumbataí (1939-1970). Trabalho apresentado para a conclusão do curso de Pós-Graduação em História da FAFIMAN. Mandaguari, 1999. REVISTA Ivaiporã: sua história e sua evolução, 1988 a Projeto de Iniciação Científica sob a orientação do professor doutor Paulo César Boni b Estudante de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq. E-mail: [email protected] c BRECHT, Bertold apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução: Wanda Nogueira Caldeira Brant. 1ª edição.São Paulo: Boitempo, 2005 d Adelina Bitencourt. Entrevista concedida a Juliana Mastelini Moyses em 27 de julho de. 2010 e Normélia Braum. Entrevista concedida a Juliana Mastelini Moyses em 16 de outubro de 2010 f Maria José Machado. Entrevista concedida a Juliana Mastelini Moyses em 16 de fevereiro de 2011 g Herondy Anunziato. Entrevista concedida a Juliana Mastelini Moyses em 28 de julho de 2010 h 40 ANOS de História, 1964 a 2004. Revista comemorativa dos 40 anos do Colégio Santa Olga em Ivaiporã. i JORNAL Paraná Centro. Edição especial em comemoração aos 48 anos de Ivaiporã. 16 a 22 de novembro de 2009. j Inês Mitsuko Ishii. Entrevista concedida a Juliana Mastelini Moyses em 26 de julho de 2010. k Odilon Andrade. Entrevista concedida a Juliana Mastelini Moyses em 18 de fevereiro de 2011

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

1662