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JUCIMEIRE RAMOS DE SOUZA ENDO A POETIZAÇÃO DO COTIDIANO NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA PUC-SP SÃO PAULO 2006

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JUCIMEIRE RAMOS DE SOUZA ENDO

A POETIZAÇÃO DO COTIDIANO NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

PUC-SP

SÃO PAULO

2006

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JUCIMEIRE RAMOS DE SOUZA ENDO

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof.a Dr.a Maria Aparecida Junqueira.

SÃO PAULO

2006

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Presidente e orientador ____________________________

_______________________________________________

_______________________________________________

_______________________________________________

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A Deus, pela realização de mais um sonho. À minha princesinha, Isadora, razão do meu viver. Ao meu esposo, Rinaldo, amigo e companheiro de todas as horas.

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Agradecimentos

À Prof.a Dr.a Maria Aparecida Junqueira, minha orientadora, pela

oportunidade e confiança, que me possibilitaram realizar este trabalho.

Agradeço não só sua orientação sempre amiga e o exemplo de conduta

acadêmica, que me ensinaram a olhar a pesquisa sempre com humildade, mas

também, e sobretudo, por sempre ter me revelado a faceta mais bonita dos

seres humanos, mesmo nos momentos dos meus grandes equívocos.

Permanecerá em mim para sempre o exemplo de sua enorme paciência,

atenção e compreensão diante da minha inconstância. A sua sempre presente

solidariedade diante dos meus descaminhos é, em grande parte, responsável

pela concretização deste trabalho.

Aos professores Viviana Bosi (USP) e Fernando Segolin (PUC-SP), pelas

leituras atentas e pelas sugestões críticas feitas no exame de qualificação, as

quais foram de grande valor para a recomposição deste trabalho. E, ainda, ao

Prof. Fernando Segolin, pelas aulas de Teoria da Literatura, que me

conduziram pelo mundo da poesia e me ensinaram os primeiros passos na arte

poética.

Às Prof.as Dr.as Vera Lúcia Bastazin, Maria José Palo e Olga de Sá, pelos

ensinamentos, pela leitura, pelas correções e pelos comentários em uma série

de trabalhos, que só me fizeram amadurecer.

À Prof.ª Dr.ª Maira Inês B. Campos, que acompanhou com interesse o

desenvolvimento de minha dissertação.

À minha amiga Luciane Hidalgo, pela companhia sempre amiga, pela

força, pelo estímulo e pelo convívio fraterno.

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Ao amigo Eduardo Araújo Teixeira, pela cuidadosa atenção com que leu

os originais dos meus textos e, também, por suas observações e pela sempre

presente solidariedade nos momentos difíceis.

Aos meus colegas da E. E. Caramuru, pelo tempo que trabalhamos juntos

e por tudo o que me ensinaram. Cito em especial aqueles que acompanharam

a minha trajetória: Aleixina, Zilda, Elizabete, Léia, Taís, Odete, Núbia, Paulo,

Cláudio, Maricy, Silvia, Flávia, Marcelo, Roseli, Anita e Sandra.

Aos meus colegas da pós-graduação, que também ocupariam uma lista

enorme. Por isso, peço licença para citar alguns nomes que participaram mais

de perto da minha pesquisa: Ana Paula, Débora, Celina, Maria das Dores,

Élcio, Telma, Marion, Nelma, Nailton, Gilda e Regina.

Ao Programa Bolsa Mestrado, da Secretaria da Educação, pela

concessão da bolsa que me ajudou a realizar este trabalho.

Aos meus familiares, que mesmo distantes sempre acompanharam o meu

trabalho, e em especial aos meus pais, que não mediram esforços para que eu

chegasse aqui, com destaque para minha mãe, que, mesmo não estando mais

entre nós, tenho certeza que está me abençoando por esta conquista.

À minha irmã, Jaci, amiga sincera, de quem sempre recebi apoio em

tantos anos de convivência e cumplicidade, agradeço pelo afeto e pela

companhia.

À minha pequenina, Isadora, que mesmo sem compreender bem as

coisas, soube aceitar e respeitar os meus momentos de ausência; agradeço a

Deus por ter me dado uma filha carinhosa e companheira.

Ao meu esposo Rinaldo, que nunca mediu esforços para ajudar-me na

realização do curso de mestrado; agradeço sua companhia sempre amiga, os

instantes de pura confidência, e sua compreensão, principalmente nos

momentos em que precisei me dedicar dia e noite a esta pesquisa.

Enfim, agradeço a todas as pessoas que passaram pela minha vida e

deixaram um pouquinho de suas experiências dentro de mim, contribuindo para

que meu olhar sobre a vida seja sempre renovado.

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Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo de los años puebla un espacio con imágenes de provincias, de reinos, de montanãs, de bahias, de naves, de islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros, de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre que ese paciente laberinto de líneas traza la imagen de su cara.

Jorge Luis Borges

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Resumo

O propósito desta dissertação é apreender como se dá o processo de

construção poética em poemas de Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira.

Foram selecionados os poemas “Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma

notícia de jornal” e “Poema de Finados”, nos quais se encontram marcas

prosaicas na exploração de imagens brasileiras. Os poemas foram agrupados

em torno de três núcleos temáticos: a infância, a consciência social e a morte.

Procura-se explorar, na análise, os elementos composicionais que constroem a

simplicidade lírica, a temática do coloquialismo, do prosaico, das

reminiscências infantis e da morte. Partindo da recorrência da temática do

cotidiano, em que o eu lírico extrai do lugar-comum, das situações concretas da

vida, o seu mais rico elemento poético, perguntou-se: que elementos formais

ou estruturais operam como recursos poéticos para traduzir o cotidiano? como

a hibridização do gênero lírico produz, na poesia de Manuel Bandeira, um

efeito que se caracteriza como tratamento peculiar de sua poesia? Para tentar

responder a essa proposta poética, foram utilizadas, como fundamentação

teórica, as concepções de Victor Chklovski, Roman Jakobson, Iuri Tynianov,

Octavio Paz e Hugo Friedrich. Entre outros aspectos, refletiu-se sobre cadência

rítmica irregular, rimas aleatórias ou ausentes, multiplicidade de tom, corte

arbitrário, aproximação da prosa, geração de imagens, enfim, sobre

particularidades da linguagem poética. Concluiu-se que Manuel Bandeira, ao

introduzir em sua poesia elementos do cotidiano, a linguagem coloquial e

características do gênero narrativo, por exemplo, rompeu com as leis da forma

poética tradicional e produziu uma poética transgressora e híbrida, que o

libertou e o enveredou para a construção de uma nova forma poética: a

poetização do cotidiano.

PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira, Libertinagem, modernismo,

poesia, cotidiano.

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Abstract

The purpose of this Master dissertation is to apprehend the process of

poetic construction in Manuel Bandeira’s Libertinagem’s poems. The selected

poems are “Evocação do Recife”, “Poema tirado de um notícia de jornal” and

“Poema de Finados”, which were put together, rounded up in three thematic

nucleus: childhood, social conscience and death. In its analysis, this study tries

to explore the elements that led to lyric simplicity, the thematic of colloquialism,

the prosaic, childhood reminiscences and death. It starts with the everyday life

thematic, in which the self lyric retrieves its richest poetic element from

commonplace and real life situations. Then it asks the questions: What formal

or structural elements work as poetic resources to translate everyday life? How

the hybridization of the lyric gender produce in Manuel Bandeira’s poetry an

effect that describes a peculiar treatment of his poetry?

Trying to meet this poetic proposal, it was used as theoretical bases,

Victor Chklovski, Roman Jakobson, Iuri Tynianov, Octavio Paz and Hugo

Friedrich’s conceptions.

Among other aspects, were studied the irregular rhythmic movements,

random or absent rhymes, multiplicity of sounds, arbitrary cut, proselike

approach, generation of images — particularities of poetic language. As a

conclusion, the study suggests that when Manuel Bandeira introduced in his

poetry everyday life elements, colloquial language and characteristics of

narrative gender, for example, he broke the laws of the traditional poetic form

and produced an hybrid poetic, which allowed him to go free and led him to a

new form of poetic: the everyday life poetic.

KEY WORDS: Manuel Bandeira, Libertinagem, Modernism, poetry,

everyday life.

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Sumário

INTRODUÇÃO................................................................................................... 2

CAPÍTULO 1 — CONCEPÇÕES TEÓRICAS EM TORNO DA POESIA........... 9 1.1 Os gêneros literários .................................................................................... 9 1.2 O gênero lírico............................................................................................ 14 1.3 Os formalistas russos................................................................................. 17 1.4 A lírica moderna ......................................................................................... 25

CAPÍTULO 2 — DIÁLOGO DA POÉTICA BANDEIRIANA COM OS MODERNISTAS............................................................................................... 31 2.1 Bandeira e a Semana de Arte Moderna: uma ausência presente .............. 31 2.2 As vozes da crítica ..................................................................................... 34

CAPÍTULO 3 — O COTIDIANO EM POEMAS DE LIBERTINAGEM.............. 47 3.1 A infância: memória e presença em “Evocação do Recife” ........................ 48

3.1.1 Transgressão estilística: a liberdade poética ...................................... 51 3.1.2 Transgressão temática: imagens memorialísticas .............................. 57

3.2 O cotidiano social: linguagem jornalística em “Poema tirado de uma notícia de jornal” .......................................................................................................... 75

3.2.1 Transgressão estilística: do prosaico ao poético................................. 77 3.2.2 Transgressão temática: a tragédia brasileira ...................................... 78

3.3 Memento morti: evocação do ausente em “Poema de Finados” ................ 84 3.3.1 Transgressão estilística: figuração da audiência................................. 87 3.3.2 Transgressão temática: ambigüidade poemática................................ 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 96

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 102 Do autor ......................................................................................................... 102 Sobre o autor.................................................................................................. 102 Geral .............................................................................................................. 103 Internet ........................................................................................................... 105

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Introdução

A poesia de Manuel Carneiro de Souza Bandeira (1886-1968) desperta,

com sua simplicidade lírica, o interesse de leitores e de críticos. Foi um dos

primeiros autores a usar o verso livre e a incorporar a linguagem coloquial em

seus textos, e a recuperar o prosaico e as reminiscências infantis em sua

expressão poética. Esses procedimentos marcaram uma poesia inovadora e

são, ainda hoje, um desafio para a análise e a interpretação de seus textos.

Tido como um dos maiores poetas do modernismo, Manuel Bandeira é

também considerado um clássico da literatura brasileira no século XX,

ocupando há muito um capítulo substancioso na história literária nacional. Sem

esse poeta “não haveria no Brasil poesia moderna, ou então, ela não seria o

que ela é”.1 Sua obra caracterizou-se por uma naturalidade peculiar, graças a

um esforço de redução às essências, quer no plano temático, quer no da

linguagem.

Considerado por Mário de Andrade o “São João Batista do Modernismo”,

Bandeira teve papel fundamental em nossa modernidade literária tanto do

ponto de vista estético como do histórico. Em toda sua trajetória poética, ele já

nos mostra uma preocupação com a busca de novas formas de expressão. No

seu livro de estréia, A cinza das horas (1917), temos poemas classificados

como parnasiano-simbolistas. Em Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924),

percebemos que o poeta vai se engajando mais e mais com os ideais

modernistas, revelando um espírito renovador.

A obra Carnaval apresenta o início da libertação das formas fixas e a

opção pela liberdade formal, que se tornaria uma das marcas registradas de

sua poesia. Em O ritmo dissoluto, o prosaísmo começa a emergir com mais

freqüência, aproximando-se dos procedimentos da estética modernista. Nessas

primeiras obras, estão presentes poemas de cunho melancólico, relacionados à

1 Nota escrita por Otto Maria Carpeaux, para a orelha da primeira edição de Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, 1966.

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doença que o acometera — a tuberculose — e à solidão, e às privações

financeiras a que esteve submetido.

Em 1930, a primeira edição de Libertinagem, com quinhentos exemplares,

foi custeada pelo próprio autor. Nela está presente o registro definitivo de sua

“afinação poética”, como ele mesmo explica:

[...] tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar [...], a que por isso mesmo chamei de Libertinagem. [Bandeira,1957, p. 67]

A partir de Libertinagem, consolida-se a poesia de Bandeira. Quando da

publicação dessa obra, Bandeira (1957, p. 82) confessa:

Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 — os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira pois que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo.

A incorporação da linguagem coloquial, popular, e a temática do dia-a-dia

estão presentes nos diferentes poemas dessa obra, que trazem uma mudança

radical na técnica do verso tradicional. Assim, a poesia ganha uma liberdade

estética. Rosenbaum (1993, p. 31) caracteriza a importância do movimento

modernista para a vida do poeta:

[...] é pela fenda modernista que o poeta escapa da vivência de uma dor enclausurada para largar-se no descampado dos telegrafismos, do humor, da ironia, dos sonhos e da vivacidade de, afinal, ter sobrevivido.

A obra bandeiriana é um rico exemplo para entender os ideais

modernistas, que, em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico

dos parnasianos, valorizavam a incorporação de gírias e da sintaxe irregular, e

também a aproximação com a linguagem oral de vários segmentos da

sociedade brasileira. No plano formal, o verso livre, a concisão e a objetividade

são características marcantes desse movimento.

Ao ampliar sua poética nas fronteiras da forma e do conteúdo, Bandeira

não abandona algumas das características da poesia tradicional, como certo

sentimentalismo de gosto romântico e uma semântica, às vezes, obscura. A

isso, soma uma nova tendência modernista, a descoberta do cotidiano,

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cultivada com a mesma profundidade com que se aproximara da herança

parnasiana, simbolista e crepuscular.

Entre os vários críticos literários que se debruçaram sobre a poética de

Bandeira, dois enfatizam a presença da experiência cotidiana: Yudith

Rosenbaum e Davi Arrigucci Jr.

Para a crítica literária Yudith Rosenbaum (1993, p. 31), o espírito

modernista proporcionou ao poeta “o instrumental necessário para livrar-se de

um encerramento de caráter melancólico, servindo-se dos elementos mais

libertadores para anistiar a si mesmo”.

Segundo o crítico literário Arrigucci (2003, p. 15), com o advento do

modernismo, a poética de Bandeira alcançou um ideal inovador:

[...] o ideal da poética de Bandeira é o de uma mescla estilística inovadora e moderna, uma vez que persegue uma elevada emoção poética através das palavras mais simples de todo o dia. Para o poeta, o alumbramento, revelação simbólica da poesia, pode dar-se no chão do mais “humilde cotidiano”, de onde o poético pode ser desentranhado, à força da depuração e condensação da linguagem, na forma simples e natural do poema.

Arrigucci (2003, p. 91) esclarece a importância de Libertinagem, uma obra

que foi “o momento de adesão mais clara de Manuel Bandeira ao ideário

estético do modernismo”. Os escritores modernistas desejavam ser atuais,

exprimir a vida diária. Nesse sentido, não celebravam apenas as máquinas,

como os futuristas italianos, mas tomavam como tema as coisas do cotidiano,

descrevendo-o com palavras “de todo o dia”, um combate à literatura discursiva

e pomposa, ao estilo retórico com que seus antecessores abordavam as coisas

mais simples.

Os poemas de Libertinagem trazem versos impregnados de lirismo, em

que o eu poético transfigura as descobertas do cotidiano: o amor como

experiência direta do corpo, o desejo erótico iluminando a carne e tornando-a

sagrada, a ternura das “coisas mais simples e menos intencionais”, a

humanidade dos humildes e dos marginais, a evocação da infância e da morte,

sendo esta última sempre presente, tida como sua velha confidente. Os versos

brotam de fontes heterogêneas: da experiência mais íntima da leitura da

tradução de grandes poetas, de uma notícia de jornal, de bulas de remédio, de

propagandas, de homenagens a amigos, de pregões populares, de frases

avulsas escutadas em conversas, dentre muitas outras, posto que a “poesia

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existe tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas

disparadas” (Bandeira,1985, p. 41).

A trajetória de vida do poeta foi permeada pela tragédia e pela

tuberculose, refletindo-se em obras nitidamente modernas, como Libertinagem.

Imprime-se nessa obra a marca de sua melancolia, de sua paixão pela vida,

das imagens brasileiras. Nesse momento, por meio dessa produção, Bandeira

atinge o ponto culminante da escola moderna, quando envolve plenamente

uma linguagem coloquial e irônica. Desse modo, alcança a característica

principal das propostas da Semana de Arte Moderna: a desvinculação das

técnicas clássicas e a utilização do linguajar popular nas construções da

poesia.

O novo que a proposta de Manuel Bandeira traz molda-se aos valores

modernos, tornando possível a conciliação de duas forças em eterno conflito na

vida: tradição e renovação. O crítico e poeta Carlos Drummond de Andrade

(1985, p. 5) faz elogios à habilidade de Bandeira em adaptar-se às várias

formas literárias:

Bandeira tinha uma variedade de interesses literários e foi um mestre em todas as formas de poesia. Assim, através de sua poesia, podemos, inclusive, entender melhor o percurso da própria poesia brasileira.

Manuel Bandeira encarnou como ninguém o academismo da poesia

modernista. Desbastando seus excessos e provocações, enraizou-a na

tradição dos grandes mestres da língua e de outras línguas: ao provincianismo

modernista, contrapôs o universalismo da poesia. Foi com grande sensibilidade

que o poeta recuperou a tradição e renovou a modernidade.

O crítico Mário de Andrade, amigo de Manuel Bandeira, declara na obra

Aspectos da literatura brasileira, que o modernismo brasileiro se caracteriza

pelo sentido da experiência coletiva, pela confiança no presente, pela coragem

intelectual, pela ousadia da experimentação, pelo próprio apego à realidade

prosaica/cotidiana e pela preocupação social. Essas tendências modernistas

estimularam Bandeira a buscar sua completa liberdade poética, que resultou na

obra Libertinagem:

Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia de Manuel Bandeira, pois que este livro confirma a grandeza dum dos nossos maiores poetas, mas da

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psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já publicou. [Mário de Andrade, 1972, p. 28]

Dentro do escopo da obra de Manuel Bandeira, o objetivo desta

dissertação é analisar o processo de construção poética em poemas de

Libertinagem como: “Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de

jornal” e “Poema de Finados”. Nesses poemas, há marcas prosaicas de

exploração de imagens brasileiras, e procuraremos identificar os elementos

composicionais que constroem a simplicidade lírica e a temática do

coloquialismo, do prosaico, das reminiscências infantis e da morte. A

descoberta do cotidiano é um tema recorrente em vários poemas, em que o eu

poético extrai do lugar-comum, das situações concretas da vida, o seu mais

rico elemento poético.

Tendo como tema uma das obras mais significativas da literatura

brasileira, cuja configuração está sempre a desafiar seus receptores, a

presente dissertação propõe abordar os seguintes aspectos nos poemas

escolhidos: a cadência rítmica irregular, as rimas aleatórias ou ausentes, sua

multiplicidade de tom, seu corte arbitrário e sua aproximação à prosa (tudo isso

associado aos elementos do cotidiano).

Quanto ao estilo de Bandeira, procuraremos analisar as várias figuras de

linguagem que permeiam os poemas de Libertinagem: “O poeta muitas vezes

se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus

sonhos, das suas experiências, mas ‘desgangarizando-a’ ” (Marcondes Moura,

1973, p. 44).

Nessa análise, duas questões são norteadoras: que elementos formais ou

estruturais encontrados em Libertinagem operam como recursos poéticos para

traduzir o cotidiano? como a hibridização do gênero lírico produz, na poesia de

Manuel Bandeira, um efeito que se caracteriza como tratamento peculiar de

sua poesia?

Diante da problemática e dos objetivos propostos, selecionamos as

seguintes hipóteses:

o coloquial e o prosaico, ao marcarem o paradigma da poética

modernista, evidenciam uma outra arquitetura poética;

a linguagem cotidiana é um dos elementos constitutivos do poema de

Bandeira, traduzindo-se pela hibridização do gênero lírico.

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Para tentar responder à proposta poética de Bandeira, utilizaremos

algumas concepções teóricas de autores como Victor Chklovski, Roman

Jakobson, Iuri Tynianov, Octavio Paz e Hugo Friedrich, que nos proporcionarão

suporte para analisar os poemas selecionados ao refletirem sobre

estranhamento, função poética, ritmo, imagem, verso e particularidades da

linguagem poética.

No primeiro capítulo, “Concepções teóricas em torno da poesia”, o

objetivo é abordar transformações do gênero lírico, para então entendermos o

conceito de linguagem poética na lírica moderna e, conseqüentemente, na

lírica bandeiriana. As propriedades fundamentais da poesia lírica serão

estudadas à luz dos estudiosos mencionados. Tal escolha teórica permitirá

uma leitura da poética bandeiriana e dos estudos da poesia lírica moderna

brasileira, em especial. Tentaremos, dessa maneira, conduzir o leitor pelos

caminhos bandeirianos construídos a partir de cada dia, de cada momento, de

cada experiência vividos intensamente.

No segundo capítulo, “Diálogo da poética bandeiriana com os

modernistas”, o objetivo é contextualizar a importância da poesia de Manuel

Bandeira e de sua presença no modernismo da primeira fase, assim como sua

participação na Semana de Arte Moderna. Também recuperaremos diferentes

vozes da crítica, que enfatizam as características de vanguarda presente nos

poemas de Libertinagem.

No terceiro capítulo, “O cotidiano em poemas de Libertinagem”, a

proposta é analisar poemas que apresentam o tema da infância (“Evocação do

Recife”), da consciência social (“Poema tirado de uma notícia de jornal”) e da

morte (“Poema de Finados”), na fase de sua maturidade profissional e de vida.

O foco interpretativo é percorrer a ruptura entre prosa e poesia. Essa análise

procurará recuperar, na linguagem poética, o potencial expressivo de

vocábulos e frases da fala cotidiana com recursos como espaçamentos,

pontuação e simulação do ouvinte, para criar uma impressão de oralidade no

texto literário. Ou seja, investigar o estilo poético bandeiriano, sua

transgressão, observando como o poeta realiza, em sua obra, uma ruptura com

a lírica tradicional.

A proposta desta dissertação é percorrer os caminhos de uma linguagem

coloquial e ir ao encontro de uma obra de vanguarda que causa, à primeira

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vista, estranhamento. Para isso, os poemas escolhidos estão agrupados em

torno de três núcleos temáticos (a infância, a consciência social e a morte), que

articulam paradigmas teóricos relevantes e fecundos para o estudo do texto

poético bandeiriano. Assim, pretende-se chegar à configuração prosaica e

cotidiana da poesia manuelina por meio dos recursos poéticos.

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Capítulo 1 — Concepções teóricas em torno da poesia

Apliquei o coração a esquadrinhar, e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; este enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir. Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento. [...] Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência, aumenta tristeza.

Eclesiastes 1, 12-18.

Neste capítulo, abordaremos algumas transformações do gênero lírico,

certos aspectos que servem de fundamento à proposta poética do formalismo

russo, e também enfocaremos a concepção de lírica moderna à luz de Hugo

Friedrich e Octavio Paz. Alertamos, entretanto, que nossa preocupação, aqui, é

a de sistematizar concepções teóricas que sejam esteios para nossa leitura de

poemas de Bandeira.

1.1 Os gêneros literários

Em uma tentativa primeira de definição de gênero literário, podemos nos

guiar por aquilo que é criado pela imaginação, por aquilo que não existe na

realidade, portanto, pelo imaginário, pelo fabuloso. Essa concepção pode ser

aplicada à literatura em geral, uma vez que o universo ficcional é regido pela

imaginação e composto de uma realidade virtual.

Ao longo da história literária, houve muitas discussões em torno das

diferentes posturas teóricas diante da diversidade de gêneros modernos, e uma

delas relaciona-se com a classificação rígida conhecida como clássica: o lírico,

o épico e o dramático; e outra, como moderna: o romance, a novela, o conto, o

drama etc.

Em Os gêneros do discurso, Tzvetan Todorov (1980) dá uma contribuição

valiosa à discussão dos gêneros textuais, porque acrescenta mais um dado ao

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tema: o caráter histórico. No capítulo intitulado “A origem dos gêneros”, o autor

descreve a linha histórica pela qual se desenvolveram os gêneros, da Grécia

antiga até o século XX, além de estudar as variações e os motivos das

variações nesse período.

Todorov (1980, p. 46) define gênero como uma codificação de

propriedades discursivas e diz que “um gênero é sempre a transformação de

um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por

combinação”. Ainda afirma que os gêneros evidenciam os aspectos

constitutivos da sociedade a que pertencem.

Muitos foram os autores depois de Platão e Aristóteles que, aceitando-a

ou não, retomaram a divisão triádica dos gêneros, para só então terem uma

compreensão desta e, a partir daí, poderem propor uma reestruturação que se

adapte à época vigente. Dentre os autores que se dedicaram à teoria dos

gêneros, temos Horácio e Quintiliano (na Roma antiga), Goethe, Friedrich

Schlegel, Hegel, W. Benjamim, Novalis, Lukács, para citarmos alguns dos mais

importantes.

O gênero é de suma importância para a literatura. Não se pode pensar a

literatura sem gêneros, até porque ela é um “sistema em contínua

transformação e a questão das origens não pode abandonar, historicamente, o

terreno dos próprios gêneros: no tempo, nada há de ‘anterior’ aos gêneros”

(Todorov, 1980, p. 46).

Nos séculos XVI e XVII, a doutrina clássica dos gêneros literários

defendida pela poética do classicismo renascentista e do classicismo francês

não se impôs de modo geral, o que fez aumentar as polêmicas em torno dos

problemas da existência e da natureza dos gêneros literários, provocadas por

autores maneiristas, pré-barrocos e barrocos, que envolviam problemas tanto

dos gêneros como das regras, já que esses dois problemas estéticos são

indissociáveis.

Foi após a redescoberta e a fusão da Poética de Aristóteles, no século

XVII, da Renascença até o Barroco, que a classificação tripartida dos gêneros

literários foi tida como uma verdade inquestionável, com a inclusão da lírica no

sistema dos gêneros, ao lado do drama e da narrativa, já que esta compartilha

com as outras artes a representação, a expressão, a ação sobre o receptor.

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Somente então procuraram uma teoria para a lírica, que se tornou um dos

gêneros literários fundamentais.

No século XVIII, estabeleceu-se de um modo rigoroso a tríade da

literatura dramática, épica e lírica. Goethe denominou esses gêneros de

“formas naturais de poesia”, o que aponta para a indistinção, na época, entre

história e definição ontológica dos gêneros.

Na virada do século XVIII para o XIX, Friedrich Schlegel e Novalis

utilizaram os gêneros de um ponto de vista muito mais livre e criativo, e

transformaram-nos em tons: em cada obra poderia haver mais do que um

desses tons atuando em sua estrutura. Com esses autores a poética deixou de

ser uma prescritora de regras para o autor e este se viu livre para compor

conforme o seu “gênio”. Não devemos esquecer que foram os românticos que

introduziram uma teoria e uma concepção forte do romance como gênero por

excelência da modernidade. Ele representaria justamente a mistura e a

superação dos demais gêneros literários. Ou seja, na modernidade, o gênero é

dissolvido por força da individualidade e do estilo de cada texto.

As regras clássicas reprimiam a espontaneidade do criador e da cultura

vigente, porém, essa postura radical não foi aceita por todos os românticos,

que reconheciam a multiplicidade e a diversidade das obras artísticas

existentes. O filósofo alemão Friedrich Schlegel (1962, p. 30), no seu Diálogo

sobre a poesia, salienta que a

fantasia do poeta não deve desintegrar-se em poesias caoticamente genéricas, mas cada uma das suas obras deve possuir um caráter próprio e totalmente definido, de acordo com a forma e o gênero a que pertence.

Dentro desse contexto, o filósofo idealista italiano Benedetto Croce (1866-

1956) — um dos grandes nomes da vasta renovação da filosofia e da

mentalidade européias — também discutiu as normas gerais impostas aos

gêneros literários, aceitando-as apenas no âmbito histórico, e não

exclusivamente no aspecto literário, pois a beleza artística, somente nesse

aspecto, deixaria de ter valor. A obra literária, tirada de seu contexto, perderia

sua essência artística, sendo levada a uma mera classificação de gêneros. Um

erro que “começa quando do conceito se pretende deduzir a expressão e

reencontrar no fato substituto as leis do fato substituído” (Croce, 1973, p. 121).

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Também é desse filósofo a importante crítica à imposição das regras

literárias, a qual prega a distinção rígida dos gêneros:

Se pudessem representar num gráfico como [...] as regras literárias têm custado aos poetas e aos escritores, ficar-se-ia estupefato ao ver-se quantos loucos se deixam atormentar por outros homens por nada, e como docilmente se prestam a flagelar-se a si mesmos, tornando-se heautontimoroumenoi ou, como traduzia Alfieri, carrascos de si próprios. [Croce, 1946, p.183]

Essa abordagem influenciou a crítica formalista de raízes idealistas, ao

dar ênfase maior aos elementos técnico-formais do texto literário,

preocupando-se mais com a análise íntima de cada obra.

Da mesma maneira, um grupo de estudiosos de produção poética da

Universidade de Moscou, conhecidos como formalistas russos, acreditava que

a individualidade e a simplicidade de cada obra literária se davam justamente

por seu caráter generalista, ou seja, por suas características, afirmando assim

a aceitação tripartida dos gêneros.

O gênero é a base para a construção de uma obra literária, pois esta só é

compreendida em conexão com ele; por isso, os formalistas não aceitam

reduzir a classificação dos gêneros a uma mera classificação histórica

descritiva.

Essa compreensão histórica e sociológica vai ao encontro de um modelo

biológico contido na obra Teoria da literatura, na qual B. Tomachevski diz que

os gêneros vivem e se desenvolvem, podendo modificar-se lentamente, como

também sofrer bruscas e radicais mudanças, por vezes separando-se. Dessa

dissolução novos gêneros nascem ou desaparecem:

O gênero fica enriquecido de novas obras que unem-se às já existentes. A causa que promoveu um gênero pode não agir mais; seus traços fundamentais podem mudar lentamente, mas o gênero continua a viver, embora como espécie, isto é, pelo encadeamento habitual de novas obras ao gênero já existentes. Ele sofre uma evolução e, por vezes, uma brusca revolução. [1971, p. 201]

Essa modificação pode ser vista quando analisamos a transformação por

que passaram os gêneros literários, em especial o gênero lírico. Na literatura,

esse processo de transformação, que ocorre periodicamente na vida em

sociedade, pode ser observado quando comparamos as obras de autores de

épocas diversas.

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Os gêneros do passado foram substituídos por outros. Não se fala mais

de poesia e prosa, de testemunho e ficção, mas do romance e da narrativa, do

narrativo e do discurso, do diálogo e do diário. Quanto aos questionamentos

sobre a origem dos gêneros, eles provêm de outros gêneros.

Os gêneros são unidades que podemos descrever sob dois pontos de

vista diferentes: o da observação empírica e o da análise abstrata. Numa

sociedade, institucionaliza-se a recorrência de certas propriedades discursivas,

e os textos individuais são produzidos e percebidos em relação à norma que

essa codificação constitui. Um gênero, literário ou não, é essa codificação das

propriedades discursivas.

Pelo viés da institucionalização, os gêneros se comunicam com a

sociedade em que ocorrem. Esse aspecto é o que mais interessará o etnólogo

ou o historiador. Com efeito, de um sistema de gêneros, o primeiro reterá as

categorias que o diferenciam daquele dos povos vizinhos, as quais serão

correlacionadas com outros elementos da mesma cultura. O mesmo ocorre

com o historiador, para quem cada época tem seu próprio sistema de gêneros,

que está em relação com a ideologia dominante. Como em qualquer instituição,

os gêneros evidenciam os aspectos constitutivos da sociedade a que

pertencem.

O gênero é o lugar de encontro da poética geral e da história literária

factual; é, por isso mesmo, um objeto privilegiado, o que lhe poderia valer a

honra de tornar-se personagem principal dos estudos literários. Foram as

teorias aristotélicas que, num primeiro momento, possibilitaram o pensar das

regras internas existentes nos textos poéticos. A cultura da humanidade é

formada pelos conhecimentos de cada época. O presente só existe porque o

passado colaborou na sua construção, e isso inclui também a literatura. Se

Aristóteles não pensou em hibridização, nós, pelo conhecimento que

acumulamos e a partir de estudos realizados até nossos dias, não podemos

deixar de lado essa característica tão atual e paradoxalmente tão antiga.

Sabendo que, em certo sentido, a literatura é representação da realidade,

e que cada época produz um novo pensar, gerando uma transformação que

não se dá sem divergência de idéias, o caso dos três gêneros fundamentais

estabelecidos por Platão (o lírico, o dramático e o narrativo — entendidos como

uma tripartição perfeita e lógica na sua essência) pode tornar-se discutível e

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sua prática, equivocada, quando aplicada rigidamente a determinadas obras. É

que, na criação artística, confluem as águas dessas três fontes, predominando,

em certas obras, um gênero sobre o outro. Não haverá, é certo, a expressão

pura de um só gênero.

Entre os críticos modernos, notadamente Todorov (1972) ensina que os

gêneros literários devem ser estudados indutivamente, a partir das

características da obra, e não a partir de nomes classificatórios. A

desobediência ao gênero não o torna inexistente, pelo contrário, para que

exista transgressão, faz-se necessário uma lei, para ser transgredida. “A norma

não se torna visível — não vive — senão graças às suas transgressões”

(Todorov, 1980, p. 45).

1.2 O gênero lírico

Ao longo da história literária, a poesia é um gênero em permanente

mudança: inova e/ou retoma tradições. Ela vincula-se à necessidade do

homem de imitar o mundo, pondo em palavras acontecimentos cotidianos. Ou

seja, o eu poético cria representações. Nesse sentido, a poesia caracteriza-se

pela materialização do signo, uma vez que apreende o real de forma sensorial.

Ao afastar-se da linguagem instrumento, o poeta passa a trabalhar as palavras

vendo-as como coisas.

A poesia rompe com a rotina da linguagem utilitária e propõe a vivência

profunda da realidade. Por apresentar uma natureza poética, o que provoca

certo estranhamento, não tem de imediato uma utilidade prática no contexto

social; entretanto, ao subverter o real, intervém no mundo.

A palavra lírica tem origem latina e significa “lira” — instrumento musical

usado para acompanhar as canções dos poetas da Grécia antiga —, e foi

retomada na Idade Média pelos trovadores. Pode-se dizer que o gênero lírico é

aquele que se preocupa demasiadamente com as sensações, com os estados

de alma do eu lírico. O universo exterior só é considerado quando existe uma

identificação ou é passível de ser interiorizado pelo poeta.

A poesia há muito atravessa os sentimentos humanos. Por esse motivo,

seu conceito e sua definição são bastante dificultados, adquirindo uma

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concepção própria em cada época, para cada poeta, em cada período literário.

Para ter-se uma idéia, na Grécia antiga, a poesia era poiésis, do verbo poiein

que significa “fazer” e indica o ato que opera a passagem para o ser daquilo

que antes não existia. Entende-se que todo labor humano estava identificado

na arte poética.

Com o transcurso do tempo, os poetas líricos afastam de seu foco de

interesse as circunstâncias históricas e sociais imediatas, preferindo uma

elaboração mais voltada para a interioridade ou para a generalização de

experiências individuais. Forma-se, então, um conjunto de temas “universais”,

configurando o que se chama “tradição da lírica ocidental”, vigente até nossos

dias.

Entre tais assuntos (menos subordinados ao vaivém dos séculos), figuram

o canto amoroso, a interrogação sobre o sentido da vida e da morte, a

consciência da brevidade da existência, a meditação sobre o valor dos gestos

humanos, o questionamento religioso, a louvação da natureza etc.

Caracterizam o gênero lírico como aquele que sobreviveu durante 2700 anos,

estabelecendo uma cumplicidade emocional, primeiro com seus ouvintes,

depois com seus leitores. Outros gêneros não possuem a mesma resistência e

se transformam continuamente. O fato de a poesia resistir por cerca de três

milênios quase sem modificações atesta quão necessária ela foi e é para a

humanidade.

Com a invenção da imprensa na Renascença (século XV), a poesia lírica,

que entre os gregos era composta para ser cantada ou acompanhada por

música, tornou-se palavra escrita, para ser lida. A partir daí, houve a

necessidade de distinguir quais seriam, então, as qualidades próprias dessa

poesia, que faziam com que conseguisse reencontrar sua antiga tradição lírica.

A poesia lírica romana, que surgiu durante a época do imperador Augusto

(63 a.C.-14 d.C.), sofreu grande influência da lírica grega. Aquela trouxe

consigo o caráter imitativo desta. Ela conseguiu, mais do que a lírica grega,

desagregar-se das instituições sociais, econômicas, políticas, jurídicas, e da

criação de um mundo imaginário, via palavras.

Nos séculos XI e XII, surgiu o verso medieval, na região da Provença (Sul

da França), importantíssimo para a tradição da poesia ocidental. Ligado ainda à

música, mas já também à escrita, trabalhava a língua no esquema da

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tonicidade e, ao mesmo tempo, fazia perdurar o aspecto da duração das

sílabas.

Essa poesia provou que a língua não precisava submeter-se a regras ou

gramáticas. O elemento musical passa a ser intrínseco ao próprio trato com as

palavras, enfatizando a musicalidade dos versos. A partir daí, a poesia se

rebelará contra a tirania da versificação silábica, notadamente a partir do

romantismo.

O romantismo não é apenas um movimento literário ou artístico exaurido

pelo advento do realismo, mas um estado de espírito, um projeto de vida que

caracteriza a primeira metade do século XIX e, intempestivamente, é flagrado

na ideologia do homem que anuncia ativamente o ano 2000. Oriundos de

radicais transformações socioeconômicas, a prática e o pensamento

românticos inauguraram uma nova cultura, contendo traços característicos e

contraditórios entre si. É nesse jogo de contradições que nasce a poesia lírica

romântica.

Esse movimento literário, que começa a instalar-se com o advento da

modernidade, reproduz, de certa forma, em sua própria poética, uma lírica que

oscila entre o encantamento da poesia anterior e a constatação do solo árido e

seco do qual nascerá a nova poesia. O poeta vê-se obrigado a buscar, no

próprio material verbal, expressões que pudessem dar um novo perfil à

linguagem poética.

O período romântico, segundo Salete de Almeida Cara (1998, p. 30), em

seu ensaio A poesia lírica, provoca uma mudança conceitual no sujeito lírico:

O período romântico, coincidindo com um agudo senso do indivíduo, altera o conceito do sujeito clássico, submetido à convenção universalista do “logos” — “penso, logo existo” — que definia o “ego” da tradição clássica.

Essa mudança já era percebida a partir do século XVII com a valorização

e o reconhecimento da individualidade no seu mais amplo sentido, ficando

perceptível a diferença entre a época grega e a contemporânea.

O romantismo trouxe consigo a idéia de poesia como expressão inspirada

de uma alma, e não mais como imitação, em concordância com o conceito

neoclássico da mimese aristotélica. O conceito de poesia lírica sofre uma

revolução de valores, principalmente no que diz respeito às produções e às

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reflexões estéticas, tendo como conseqüência a revisão da divisão clássica dos

gêneros literários. A multiplicidade de técnicas e as misturas de estilos favoreceram a

hibridização do gênero lírico. Para Todorov (1972, p. 45), isso seria “um signo

da modernidade autêntica, de um escritor já não mais obedecer à separação

dos gêneros”. Stalloni (2001, p. 129), por sua vez, afirma que “a poesia não

constitui um gênero”, e leva-nos a crer que o gênero lírico nunca poderia ser

considerado “puro”, pois, como a linguagem cotidiana, ele se contamina por

outros gêneros e está sempre em contínua mutação.

A discussão sobre gêneros literários e sobre poesia é pertinente numa

época fértil, em que as possibilidades criativas são infinitas e na qual a

reavaliação da classificação das obras já consagradas se torna necessária.

Nesse sentido é que precisamos ter novos olhares para as combinações e

inter-relações dos gêneros, embora sempre relacionados com as mais antigas

formas de expressão humana: contar histórias, metaforizar o mundo, os

sentimentos, e representar a vida.

Dentre os estudos contemporâneos voltados para a poética, destacamos

o da “Escola Formalista Russa”. Pensando na poesia inovadora de Bandeira e

em sua melhor compreensão, elegemos tratar — mesmo que de forma geral —

da teoria dos formalistas russos.

1.3 Os formalistas russos

No início do século XX, um grupo de estudiosos, poetas e escritores da

Universidade de Moscou, reunidos na Sociedade para os Estudos da Língua

Poética (OPOIAZ), propuseram-se a estudar a produção poética segundo

princípios da ciência. Dedicaram-se à análise da função poética da linguagem

proposta pelo Círculo Lingüístico de Moscou por volta de 1915. Depois da

Revolução Russa (1917), uma condenação pública e categórica ao formalismo

e sua virtual interdição obrigaram os estudiosos ao exílio, e suas obras foram

relegadas ao esquecimento. O estruturalismo francês, tempos depois,

redescobriu as obras dos formalistas russos e passou a utilizá-las largamente

para formular as teorias que perseguia.

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Diferente da teoria grega de poesia concebida por Platão e Aristóteles,

que valorizava o texto a partir do efeito e da recepção, os formalistas tentaram

mostrar a funcionalidade da poesia, desenvolvendo estudos de poética e de

lingüística. Procuraram elaborar uma teoria interna da literatura, baseada na

análise do automatismo da percepção, e consideraram os aspectos

renovadores da arte poética. A questão central dos formalistas russos era: o

que faz de uma obra literária uma obra de arte?

Roman Ossipovitch Jakobson (1896-1982), Yuri Tinianov (1894-1943) e

Victor Chklovski (1893-1984) contribuíram para a elaboração de uma ciência da

poesia. Tinham como objetivo estudar o texto literário com métodos científicos,

dando ênfase mais à forma do que ao conteúdo. Não aceitaram a divisão

tradicional entre forma e conteúdo, uma vez que entendiam que havia uma

hierarquia de funções no poema, de modo que o som se vinculava ao sentido.

Por isso, davam uma ênfase maior ao tratamento dos elementos sonoros na

estrutura poética, propondo “a autonomia da função estética”.

Roman Jakobson, o mais importante formalista para a poesia e grande

discípulo de Saussure — portanto, de formação lingüística —, preocupou-se

com o uso especial da linguagem e formulou o conceito de função poética.

Para ele, essa função é resultado da projeção do princípio de similaridade do

paradigma sobre o sintagma, dando uma dupla função de sentido — a

linguagem prismática. Essa perspectiva teórica tem relação com as

manifestações da arte de vanguarda, notadamente o cubismo e o futurismo

russo. O lingüista manteve vínculo com poetas de sua época como Vladimir

Maiakovski (1893-1930) e Velimir Khlebnikov (1885-1922), os quais exerceram

forte influência em suas idéias sobre a comunicação e a linguagem, e juntos

fundaram o Círculo Lingüístico de Moscou, um espaço privilegiado para a

discussão da arte literária e dos mecanismos da poesia e do som.

Em 1920, Jakobson foi viver na Tchecoslováquia, onde desenvolveu

importantes estudos sobre fonologia e fonética, sobre poesia comparada e

estruturas narrativas, e fundou ali um novo e importante núcleo de estudo, o

Círculo Lingüístico de Praga. Quando as tropas nazistas invadiram Praga,

Jakobson foi para a Escandinávia, onde escreveu sua obra fundamental, na

qual analisa os distúrbios de afasia e conclui pela classificação dos dois eixos

da linguagem — paradigmático e sintagmático —, base para o

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desenvolvimento das pesquisas que o levaram a formular as funções da

linguagem.

Nas suas ocupações intelectuais, decifrava mecanismos de uma magia

tão antiga quanto o homem, a competência de articular artisticamente as

diversas linguagens que interagem na comunicação humana, desafiando as

potencialidades das linguagens. Foi também autor do famoso trecho que se

tornaria quase um manifesto do movimento: “A poesia é linguagem em sua

função estética. Desse modo, o objeto do estudo literário não é a literatura,

mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra

literária” (1971, p. 9-10).

Um conceito igualmente importante para a concepção de poesia é a teoria

do estranhamento, concebida por Viktor Chklovski, autor do mais antigo

documento (1914) do movimento formalista: A ressurreição da palavra. Para

ele, a arte deve ser entendida em sua funcionalidade e não em seu aspecto

biográfico ou sociológico. Preocupa-se, assim como todo o grupo, em estudar o

específico, ou seja, fazer uma análise imanentista da literatura, uma análise

dos sons e ritmos dos versos, das estruturas narrativas da prosa, enfim, dos

aspectos estritamente literários.

Os formalistas adotaram posições combativas em relação às teorias

críticas vigentes, e com ardileza chegaram muitas vezes a declarar a

independência da obra literária em oposição às demais formas de

manifestação social. Por isso, foram acusados de tentar isolar a obra literária

da história que a produz.

Pretendemos abordar somente as idéias originárias como pressupostos

de uma estética focalizada na linguagem, ou seja, que parte da noção de signo

e de forma. É sob a dominância do ponto de vista formal, em suas

preocupações com a linguagem, que os formalistas se distinguem de seus

predecessores. Para eles, a obra não pode ser explicada a partir da biografia

de um escritor nem a palavra poética a partir das tendências filosóficas e

religiosas, cada vez mais preponderantes entre os simbolistas. Tal concepção

era a palavra de ordem que reunia o primeiro grupo dos formalistas.

Em 1917, Chklovski publicou o artigo “A arte como procedimento”, em que

analisa a importância da ação de estranhar o objeto representado, o que leva o

receptor a buscar novas percepções, distante do peso do rotineiro, do habitual,

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do já experimentado, do já visto, do já lido. Esse artigo traz uma idéia central a

esse respeito, na medida em que, rejeitando todo tipo de misticismo — que só

pode “encobrir o ato da criação” e a própria obra —, privilegia o enfoque

técnico de sua “fabricação”.

Essa postulação é contrária à idéia de que a imagem constitui a essência

da poesia, preconizada por Potebnia e que tão bem serviu aos propósitos

simbolistas. Chegou-se, portanto, via Eikeinbaum, à conclusão de que aquela,

assim como as outras figuras da linguagem, é apenas meio de que o poeta ou

o artista podem se servir, mas não caracteriza essencialmente a poesia. Em

vez disso, a singularização passa a ser considerada a característica

fundamental da obra poética. O objetivo da arte, portanto, seria gerar a

sensação do objeto como visão sensorial e como reconhecimento; o

procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos, que

obscurece a forma e aumenta a dificuldade e a duração da percepção.

No século XX, o conceito de literatura se transformou com o

desenvolvimento de obras elaboradas com novas possibilidades do código

verbal e de seus limites, marcando o fim da obra de representação. A

percepção desautomatizante fez com que o leitor saísse do marasmo

perceptivo para apreender realidades não desgastadas. Essa produção de

obra, de acesso estranhável, induziu a novas descobertas de linguagem e,

conseqüentemente, à renovação do próprio código.

Essa descoberta de linguagem, como organização, levou o formalismo

russo a olhar o texto como obra literária, com suas funções e sua articulação

sistemática do todo. Seu olhar volta-se para a natureza poética, cujo problema

é descobrir como o objeto funciona artisticamente, como ela é, como se

constrói, como se organiza em si mesma. Preocupa-se com o enigma da

linguagem poética, o próprio texto. Para ele, o que importa é a literariedade.

Essa função da consciência das formas é, pois, a função por excelência a

permitir, no limite, transformar a mensagem em seu próprio objeto e então

refletir o deslizamento intencional da matéria para a maneira — o “como” se

constrói o objeto real em arte. O texto é uma defesa da arte compreendida

como linguagem em seu amplo sentido, o que significa considerar a obra de

arte como signo e forma, situando-a na primeiridade.

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Boris Schnaiderman (1971, p. 12) nos esclarece o verdadeiro idealismo

do formalismo russo:

[...] o assim chamado formalismo russo procurou na literatura viva e não apenas nos monumentos do passado aquilo que podia caracterizar a linguagem da obra literária. Ele estudou o específico, o inerente à literatura. Mas, ao mesmo tempo, as novas correntes artísticas afirmavam a necessidade de fundir a arte na vida cotidiana.

Os artistas modernos foram buscar na realidade da vida cotidiana a

inspiração necessária para a produção literária. Essa fusão da arte com a vida

cotidiana foi uma das tendências mais marcantes da poesia moderna. Os

formalistas deram um importante destaque à relação dialética entre diacronia e

sincronia. Para eles, a língua é tida como um fenômeno social, por isso, seus

estudos se voltaram para o estudo histórico tanto da linguagem como de sua

expressão literária.

Roman Jakobson (1971, p. 17) declarou, numa sessão do Círculo

Lingüístico de Copenhague, em 1936, a verdadeira tarefa da escola formalista

russa:

Dominar no plano lingüístico a construção da obra em poesia, [...] não se trata de soma mecânica, mas de um sistema de processos: estes se relacionam entre si segundo leis e formam uma hierarquia característica. A transformação poética consiste nos deslocamentos desta hierarquia: o que muda é a hierarquia dos processos no quadro de um gênero poético dado, a hierarquia dos gêneros, a hierarquia das diferentes artes e a relação da arte com os domínios vizinhos da cultura, e em particular a relação da arte verbal com outros tipos de enunciado [...]

Com essa citação de Jakobson, podemos entender claramente não só o

princípio construtivo de toda poesia moderna, mas também sua

importantíssima ajuda para novas análises poéticas.

Esses conceitos influenciaram várias gerações de estudiosos no mundo

inteiro. No Brasil, o escritor e crítico literário Cristóvão Tezza (2003, p. 100)

recuperou a importância dessa perspectiva teórica, explicando que é difícil

delimitar o termo formalista, assim como a definição de poesia. A nova escola

formalista “chamava a atenção justamente para os aspectos ‘formais’, o

material da obra de arte, descartando o resto — isto é, tudo que esteja no

terreno genérico dos ‘conteúdos’ — como não relevante para definir a

especificidade da literatura”.

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Para responder a essa questão, Osip Brik, jornalista russo e um dos

principais organizadores do formalismo, caracteriza um dos elementos poéticos

fundamentais: o ritmo. A construção poética não se dá somente pela

alternância regular dos sons ou pela repetição periódica dos elementos no

tempo ou no espaço — mas pelo verso, que determina, ao mesmo tempo, uma

unidade rítmica e sintática. Brik separa, portanto, a visão metafórica do “ritmo”,

unicamente intuitiva, de sua intencionalidade e especificidade poéticas. Para

ele, o ritmo aparece também na combinação das palavras segundo qualidades

tanto semânticas como fônicas. Esse valor semântico transporta a um conceito

abstrato que leva o leitor a considerar o significado do verso; caso contrário,

deixará de ser parte da língua.

Significativa é a comparação que Brik faz entre a visão tradicional e a

moderna, no que diz respeito à criação poética. Ele critica certos estudiosos

que possuem uma visão tradicional dessa criação, pois acreditam que a

perfeição da arte poética consiste em inscrever as palavras no verso sem

alterar a estrutura da língua. Defende a visão modernista, que entende a

“imagem inversa à criação poética”, uma imagem indefinida do complexo lírico,

de estrutura transracional, que se articula em palavras significantes,

transformando as inspirações do poeta em palavras acessíveis aos leitores.

Para Brik (2003, p. 123), “é preciso compreender a língua poética naquilo que a

une à língua falada e naquilo que a distingue; é preciso compreender a sua

natureza propriamente lingüística”.

A poesia sempre apresentou regras múltiplas com componentes que a

governaram por muito tempo, as quais o poeta/operário era obrigado a seguir,

reprimindo assim sua criação mais sublime. Dentro dessa complexidade

estética, o crítico literário Stalloni (2001) defende a idéia de que o poeta não

pode ficar preso a esses recursos estéticos, pois estão carregados de

incertezas. O autor parte, então, para outra descrição tipológica, levando em

conta a natureza profunda da poesia (sua essência), seu campo de aplicação

(suas formas) e suas extensões (os domínios vizinhos), para tentar definir que

a poesia é um gênero aberto, e que por isso outros procedimentos devem ser

levados em conta, como novas prioridades de natureza estilística e lingüística.

Para Stalloni (2001, p. 158), “a poesia não se confunde com a arte de

fazer versos” e “o talento do versificador não é suficiente para se fazer um bom

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poeta”. O que prova que o artista precisa dominar tanto o engenho como a

técnica, caso contrário não se tem poesia.

Um outro conceito central na teoria da poesia é o verso. O crítico

formalista Yuri Tinianov desenvolveu importantes trabalhos de teoria literária;

dentre eles, destaca-se O problema da linguagem poética (1924), no qual

analisa o conceito concreto do verso e as particularidades da linguagem

poética. Ao escrever um prefácio para o ensaio, assinala um progresso

significativo dos estudos da poesia como “ciência”, a partir da década de 1920.

Enfatiza a necessidade de manter a poesia como uma ciência de rigor, assim

como a psicologia, a filosofia, a matemática, entre outras.

Para ele, a linguagem e o estilo da poesia estão separados do verso, e

faz pensar que ambos não se ligam ao verso e não dependem dele. A

linguagem poética se faz a partir da violentação das normas gramaticais,

sintáticas etc. Afinal, transgredir a linguagem é transgredir a própria realidade.

O trabalho de criação da linguagem poética é o de desestruturar essas

normas, rompê-las. Na poesia, esse fato aconteceu tardiamente, mas de forma

avassaladora, pois o verso era a marca principal que a contrapunha à prosa.

Essa transgressão deu-se ao introduzir na poesia o verso branco, a prosa

poética ou o poema em prosa.

Para Tinianov, a característica principal da linguagem poética é o ritmo.

Na tradição, esse elemento era marcado pela métrica, mas, no poema

moderno, é marcado pela combinação da palavra. Ao discutir a linguagem

poética, o crítico limita seu estudo a dois aspectos: o ritmo como elemento

construtivo do verso e o sentido da palavra poética. Ao analisar o conceito

concreto do verso e as particularidades da linguagem poética, observou o

verso como construção em que todos os elementos subsistem numa relação

mútua, tentando, assim, relacionar o estudo dos elementos lingüísticos no que

diz respeito ao significado e sentido da palavra poética. O conceito de verso

aparece em oposição ao conceito de prosa, tendo o ritmo como princípio de

construção do verso, o qual será o fator principal e subordinante deste. Para

ele, a noção de ritmo tornou-se muito mais complexa e multíplice, em

conseqüência da concepção do verso em termos acústicos.

Em seu estudo, Tinianov classifica duas categorias: o material e a

construção. Sendo o material igualmente formal, agirá sobre ele o “princípio da

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construção”, em que velhos modelos, já automatizados, serão reformados e

reciclados. O conceito de material “não transcende os limites da forma;

confundi-lo com momentos estranhos à construção é errôneo”. A história da

literatura, nessa perspectiva, será “a história das novas possibilidades

construtivas, a história dos procedimentos construtivos” (Tezza, 2003, p. 124).

A interação com novos fatores fará com que “o princípio construtivo do

metro se fortaleça com a introdução de novos esquemas métricos” (1975,

p. 12), como o verso livre. Permanecendo invariáveis as categorias

fundamentais da forma poética, “o desenvolvimento histórico não confunde as

cartas, não anula a diversidade existente entre princípio construtivo e material,

mas, ao contrário, a acentua”.

Em Estruturalismo e semiologia, no texto “O que é poesia?”, Jakobson

(1978, p. 176) desmistifica a crítica de que a “Escola Formalista” não

compreende as relações da arte com a vida social:

Nem Tynianov, nem Mukarovsky, nem Chklovski, nem eu pregamos que a arte se basta a si mesma; mostramos, ao contrário, que ela é uma parte do edifício social, um componente variável, pois a esfera da arte e sua relação com os outros setores da estrutura social se modificam sem cessar dialeticamente. O que ressalta não é um separatismo da arte, mas a autonomia da função estética.

A literatura, nas idéias formalistas, procura apresentar, nas coisas mais

comuns, uma visão surpreendente, acomum. O leitor não vê de imediato a

utilidade dessa poesia e se questiona quanto à importância de textos iguais a

este no meio social: Para que servem? Qual sua função no contexto social?

Essas reflexões fazem parte da grande repercussão que a palavra exerce

no meio literário, buscando provocar no leitor um conjunto de sons e imagens

ao qual se refere. O poema, fruto concreto dessa poesia, é, segundo Octavio

Paz (1982, p. 37), o lugar onde os homens realmente reencontram seu estado

poético:

Objeto magnético, secreto lugar de encontro de forças contrárias, graças ao poema podemos chegar à experiência poética. O poema é uma possibilidade aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou sua disposição [...] é senão isto: possibilidade, algo que só se anima ao contato de um leitor ou de um ouvinte. Há uma característica comum a todos os poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a participação.

A leitura da poesia moderna nos oferece desafios a todo momento, mercê

do seu estado plurissignificativo: ora a inversão de palavras com um tudo/nada

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que nos deixa estupefatos, ora o uso dos espaços em branco na folha que nos

surpreende, ora uma imagem que encanta, ora um conjunto de signos que nos

coloca um pouco perdidos na busca de um sentido.

O poeta dialoga com a visualidade contemporânea e sai daí uma

intervenção que nos causa estranheza, que desautomatiza a leitura dessa

visualidade que procura dominar o mundo moderno. A poesia é alguma coisa

— apesar de aparentemente inútil, no sentido de não ter aplicação direta —

que move montanhas, percepções, compreensões e formas de estar no

mundo. Ela também problematiza e povoa o mundo, pelo menos o de nossa

imaginação.

1.4 A lírica moderna

Se voltarmos no tempo, veremos que a lírica moderna surge com os

primeiros românticos do século XVIII, atravessa o século XIX, passa por

sucessivas transformações e avança até o século XX. A partir da primeira

metade desse século, o lirismo deixou de representar a expressão de uma

individualidade privilegiada para esquadrinhar o território do outro,

caracterizando a modernidade já esboçada pela revolução estética do século

XIX. Se, desde a velha Grécia, a lírica era aceita como manifestação da

subjetividade e rito de ascensão do sujeito ao centro constelar do mundo

social, o conceito de despersonalização contribuiu para destruir a clareza das

fronteiras entre o lírico, o épico e o dramático.

A poesia lírica moderna constitui-se, então, numa linguagem “modificada”,

que contraria em suas bases o padrão clássico de linguagem. Moldada a partir

de valores como clareza e coerência, leva a efeito um processo radical de

desarticulação dos modelos de mundo e de homem em vigor no Ocidente

desde a Grécia antiga.

Esse processo de desarticulação operado pela poesia moderna reflete,

em nível explícito, a situação caótica de um mundo fragmentário e minado em

seus fundamentos. Por ser, no entanto, uma linguagem cujo centro de

articulação é o ritmo (impulso primário, visão da origem), a manifestação lírica

acaba por conferir sentido ao caos, estabelecendo o fragmento como

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tendência. Daí que muitas vezes resulte, do ponto de vista lógico, absurda,

contraditória e obscura, tendo como conseqüência uma linguagem que é ao

mesmo tempo una e plural.

Em Estrutura da lírica moderna, o crítico alemão Hugo Friedrich (1991)

trata da poesia do século XX sem deixar de ir às suas fontes: Baudelaire —

considerado o iniciador desse modelo de lírica —, Rimbaud e Mallarmé, os

indicadores dos limites a que a poesia poderia chegar. Todos, entretanto,

antecedidos pelos ideais da literatura romântica, teorizados e explicitados por

Novalis e Edgar Allan Poe, mais anteriormente fundamentados por Rousseau e

Diderot. Para o autor, a literatura desse século é composta de uma lírica que,

por ser obscura, fascina na mesma medida em que desconcerta o leitor. Ao

processo de junção da incompreensibilidade com a fascinação, denomina

dissonância; ou seja, uma tensão que leva à inquietude, sendo esta um dos

objetivos da arte moderna.

Além da obscuridade, encontra outra tensão dissonante, em que formas

distintas coexistem, fixando uma arte cujos

traços de origem arcaica, mística e oculta contrastam com uma aguda intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade, o arredondamento lingüístico com a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento estilístico. [Friedrich, 1991, p. 16]

Traços entendidos como tensões formais, mas que podem ser

encontradas também nos conteúdos, já que a poesia não quer ser mais

construída como reflexo da realidade ambiente e, quando se volta para ela,

esta se completa com um significado diverso do que tinha na poesia de outros

tempos. A realidade na poesia, segundo Friedrich, libertou-se da ordem

espacial, temporal, objetiva e anímica, e fez diminuir as diferenças entre a

proximidade e a distância, entre o belo e o feio, entre a dor e a alegria, entre

terra e céu.

O poeta moderno, então, pode — não apenas no sentido de tornar viável,

mas de suportar e tornar suportável — lançar-se completamente ao

fragmentarismo. O resultado é uma linguagem tensa (tensão dissonante), que

encena de diversas formas e ângulos os conflitos básicos do nosso tempo.

Desvinculadas de todas as correntes ideológicas em vigor, sem no entanto

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deixar de contemplar, à sua maneira, cada uma delas, a poesia moderna

comporta com muita freqüência a contradição explícita. Ou seja, não se deixa

prender pela “unilateralidade da época”.

A lírica moderna rompe com a perspectiva clássica e novos modelos são

estabelecidos. A poesia refugia-se na própria linguagem, alargando os

horizontes do eu poético. Ela expande sua própria abrangência e abre espaços

para elementos formais e semânticos de outras culturas, colocadas à margem

ao longo de séculos. Em sua estranha e definitiva maneira de ser, rompe com a

tradição até mesmo quando pretende recuperá-la. Linguagem voltada para si

mesma, em oposição a um mundo alienado e hostil.

Na grande maioria, os textos que visam tratar da modernidade tendem a

iniciar sua reflexão partindo de seu caráter de ruptura. Essa tendência explica-

se pelo rompimento de uma ordem preexistente e estabelece uma outra ordem,

sendo a ordem rompida, o passado, e a nova, o moderno. É possível, portanto,

perceber uma relação de paralelismo entre os termos moderno e novo, relação

para a qual o passado representava algo totalmente descartado. O poeta e

crítico mexicano Octavio Paz, em Os filhos do barro (1984), reflete sobre essa

questão, procurando rever e redimensionar a compreensão do que é e do que

representa o moderno. Afirma que o moderno, justamente por valer-se

continuamente da ruptura, constitui também uma tradição. Tradição singular,

que se afirma como ruptura de uma tradição imperante, que será substituída

por outra, a qual também será substituída, e assim sucessivamente. Ou seja, o

moderno só o é na sua atualidade, o futuro o transformará em uma tradição.

Por isso, prioriza o tempo presente como o seu “tempo ideal”, na tentativa de

escapar desse destino. Nas palavras de Paz (1984, p. 18), a

modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre diferente. A primeira postula a unidade entre o passado e o hoje; a segunda, não satisfeita em ressaltar as diferenças entre ambos, afirma que esse passado não é único, mas sim plural. Tradição do moderno: heterogeneidade, pluralidade de passados, estranheza radical.

Cada vez que o moderno aparece, funda sua própria tradição, pois é

auto-suficiente. Desse ponto de vista, o fragmentarismo na lírica representa —

ante um mundo falseado pela idéia de progresso, pela promessa da máquina e

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pela propaganda — uma quebra da hipocrisia. Sua incoerência nos níveis

formal e semântico é, a um só tempo, uma coerência como encenação em

profundidade do mundo moderno. A poesia lírica, em sua anormalidade

congênita, traz as marcas de um texto sempre novo e estranho, que inquieta e

fascina.

A dissonância ainda ocorre, porque ao poeta moderno cabe desfazer a

idéia generalizada de que a lírica é a linguagem do estado de ânimo, tomando

parte dela não mais como pessoa particular, mas como uma inteligência ativa e

transformadora, como um operador da linguagem, o qual, por meio de uma

linguagem perturbadora, de combinações insólitas, faz emergir de seus textos

significações que até então não podiam relacionar-se com o estético. A língua

poética cria um estranhamento, porquanto se funda em uma sintaxe

desconstrutiva reduzida, muitas vezes, a expressões nominais, aplicando de

maneira renovada os mais antigos instrumentos da poesia — a metáfora e a

comparação. Todos os processos renovadores provocam uma impressão de

anormalidade.

A função da poesia moderna seria, então, transformar o real pelo modo

de dizer, fazendo uso de elementos estranhadores. O estranhamento é fator de

iluminação que nos revela aquilo que as coisas, os fatos e os sentimentos

humanos têm e que não estamos habituados a ver. O tempo transforma esse

olhar automático num olhar iluminado via poesia.

Esse novo olhar é provocado pelo poeta ao utilizar palavras comuns e de

algum modo as transformar em incomuns. Roland Barthes (1971, p. 61-62), em

seu ensaio, Existe uma escritura poética?, declara que a palavra, na poesia

moderna, alcançou a liberdade máxima, chegando a ganhar a dimensão de

um discurso cheio de buracos e cheio de luz, cheio de ausências e de signos supernutridos, sem previsão nem permanência de intenção e, por isso mesmo, de tal modo oposto à função social da linguagem que o simples recurso a uma fala descontínua abre caminho para todas as sobrenaturezas.

A introdução da linguagem do cotidiano foi também um fator considerável

para a transformação da poesia lírica. Atualmente, não podemos mais ficar

presos a determinadas ideologias que discriminam certos elementos, como

impróprios ou não para a produção artística. O poeta utiliza a palavra como

objeto de trabalho, segundo a dominância da função poética, que foi

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introduzida por Roman Jakobson, e que se caracteriza pela desautomatização

convencional dos signos nos fatores determinantes da universalidade e da

variedade do espaço que desenha o verso.

A importância do trabalho do poeta pode ser entendida, segundo Jean-

Paul Sartre (2004, p. 13), da seguinte forma: “O poeta extrai instrumentos da

palavra, tornando-a coisa, não signo convencional”. O desvio e a transgressão

são a desverbalização das palavras. Portanto, o objetivo da poesia não é firmar

conhecimentos, e sim brincar com conhecimento, libertando o homem de

padrões e certezas automáticas e automatizantes. Poeta e poesia confundem-

se no indissociável amálgama da vida.

O trabalho da criação poética é desestruturar normas, rompê-las. Na

poesia, esse fato aconteceu tardiamente, mas foi avassalador. Friedrich (1991,

p. 16) destaca três comportamentos da composição lírica: sentir, observar e

transformar. Este último é o que domina a poesia moderna, tanto no mundo

como na linguagem: transformar o real a partir da linguagem poética.

Essa tensão dissonante da poesia moderna exprime-se ainda em outros

aspectos. Traços de origem arcaica, mística e oculta contrastam com uma

aguda intelectualidade; a simplicidade da exposição com a complexidade

daquilo que é expresso; o arredondamento lingüístico com a inextricabilidade

do conteúdo, a precisão com o absurdo; a tenuidade do motivo com o mais

impetuoso movimento estilístico. São, em parte, tensões formais e querem,

freqüentemente, ser entendidas apenas como tais.

As características que a lírica moderna sustenta transporta-nos ao

pensamento de Paz sobre a “tradição moderna”. O crítico nos coloca à frente

de um paradoxo que rompe com as tradicionais contradições, pois a era

moderna desfaz, quase por completo, o antagonismo entre o antigo e o atual, o

novo e o tradicional. Podemos dizer, então, que a poesia moderna apresenta

um múltiplo mosaico, uma fusão temporal. Para Paz (1984, p. 22-23),

[...] a tradição moderna, bem como as idéias e imagens contraditórias que esta expressão suscita, não são mais que a conseqüência de um fenômeno ainda mais perturbador: a época moderna é a da aceleração do tempo histórico [...] Passam-se mais coisas e todas elas passam quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra, mas simultaneamente. Aceleração e fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem em um aqui e um agora.

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A lírica moderna traz consigo uma proposta de vivência profunda da

realidade, desestabilizando o congelamento das formas de pensar pela

contemplação crítica, e também uma tal proposta de transgressão que chega a

transgredir a própria transgressão. Deixa de aceitar o que é convencional, para

buscar a liberdade do pensamento, da palavra.

Esses fundamentos teóricos sobre a lírica nos ajudarão a entender a

poesia bandeiriana e seu valor no contexto modernista. De outro modo, assim

como apreendemos as transformações dessa lírica, recuperaremos a crítica

referente à poética de Manuel Bandeira e, em especial, à obra Libertinagem.

Ambas abrirão um leque de possibilidades de leitura aos poemas eleitos para a

análise.

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Capítulo 2 — Diálogo da poética bandeiriana com os modernistas

[...] o julgamento do estilo é resultado final de uma longa experiência.

Longino, Do sublime

O objetivo deste capítulo é contextualizar a importância da poesia de

Manuel Bandeira e sua presença no modernismo da primeira fase. Vamos

considerar a superação da estética passadista e sua afirmação na

modernidade, procurando marcar o processo de ruptura com a poesia

tradicional. Também recuperaremos diferentes vozes da crítica, como Mário de

Andrade, Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido, Sérgio Buarque de

Holanda, Haroldo de Campos, Leônidas Câmara, Otávio Faria, Ribeiro Couto,

Davi Arrigucci Jr., Yudith Rosenbaum, Murilo Marcondes Moura, que

enfatizaram as características de vanguarda presentes nos poemas.

Finalizaremos com a avaliação crítica feita pelo próprio poeta sobre seu fazer

poético.

2.1 Bandeira e a Semana de Arte Moderna: uma ausência presente

O escritor inicia seu artigo falando da chegada a Natal da indígena

Tapuya, principal representante da antropofagia, com a qual realiza uma

entrevista. Nessa entrevista, a indígena se autodenomina “Miss Macunaíma”,

devido à sua relação com o estudioso Koch Grünbeg, ao qual forneceu

informações sobre as lendas de Macunaíma.

No primeiro quartel do século XX, novas correntes artísticas começaram a

circular em muitas cidades européias, que viviam várias transformações

sociais, políticas, econômicas, tecnológicas, culturais, que modificaram o

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cotidiano com novas invenções tecnológicas, como o automóvel, o rádio, o

telefone e, principalmente, o cinema.

A industrialização alterou a economia das potências com os lucros

acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados, o que

garantiu às classes dominantes a sensação de conforto, segurança e otimismo

em relação ao futuro. A capital da França, Paris, abrigava artistas brasileiros,

atraídos pelo dinamismo cultural e pelo ritmo eletrizante da vida social, com

seus cafés, bares e cabarés. Em meio a esse contexto surgiram as vanguardas

artísticas, como o futurismo, o cubismo, o dadaísmo, o expressionismo e o

surrealismo.

No Brasil da década de 1910, as estéticas parnasianas e simbolistas

ainda norteavam as criações poéticas, mas já demonstravam sinais de

esgotamento, e vários escritores procuravam renovar as formas de expressão

artística. O país também vivia grandes mudanças políticas, sociais e culturais,

inclusive com a urbanização e a chegada de novas tecnologias que

transformavam o ritmo de vida e o cenário de cidades como Rio de Janeiro e

São Paulo.

O progresso e o cosmopolitismo eram contrapostos ao

subdesenvolvimento e à miséria estrutural de vastas regiões nacionais, nem

sempre distantes dos centros populosos. A capital do país, o Rio de Janeiro,

vivia em péssimas condições de saneamento básico e sofreu uma ampla

urbanização, o que a modernizou. O novo planejamento urbano, contudo,

previa uma recolocação de moradias populares, excluindo do centro urbano os

pobres, massacrados pelo desemprego e pela carestia. Em 1904, o Governo

lançou uma campanha de vacinação obrigatória que fez explodir a insatisfação

popular, ocorrendo uma verdadeira batalha, que recebeu o nome de Revolta da

Vacina, violentamente reprimida. Em São Paulo, um grupo de trabalhadores

anarco-sindicalista organizou uma greve geral em 1917, reivindicando

melhores salários e condições de trabalho (redução de jornada, segurança

etc.). O país passava por um período histórico conturbado, que resultou no fim

da República Velha (1889-1930).

Foi nesse cenário tumultuado que os modernistas refletiram sobre a

realidade brasileira e procuraram renovar a cultura do país. A partir de meados

da década de 1910, começaram a organizar-se em grupos, principalmente no

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Rio de Janeiro, no Recife e em São Paulo. Escritores e poetas, cujas obras e

eventos eram patrocinados pela aristocracia enriquecida com o café e a

industrialização, começaram a introduzir novas faces na literatura brasileira.

Eram artistas — músicos, arquitetos, literatos, escultores — que buscavam

algo novo. Era um pequeno grupo de jovens artistas ligados à elite paulistana,

que se voltou para questões literárias e culturais, irradiando e enriquecendo as

produções de arte divulgadas no meio intelectual.

O modernismo ganhava expressão, e São Paulo tornou-se palco de

manifestações de independência cultural contra a estagnação do resto do país.

Nesse contexto cultural, os escritores buscaram romper com a corrente

tradicional, e em 1920 começaram a preparar a Semana de Arte Moderna. No

ano seguinte, escritores paulistanos foram ao Rio de Janeiro para dialogar com

intelectuais como Ribeiro Couto, Renato Almeida, Villa-Lobos, Ronald de

Carvalho, Álvaro Moreira, Sérgio Buarque de Holanda e Manuel Bandeira. A

partir desse encontro, começou-se a trilhar o caminho para a realização da

Semana de Arte Moderna, considerada o marco inicial do movimento.

Nesse mesmo ano, Bandeira publicou seu livro A cinza das horas, que

ganhou ampla repercussão nas páginas da Revista do Brasil e tornou o poeta

conhecido como aquele “capaz de determinar correntes”. O poeta uniu-se,

prontamente, a esses jovens artistas, publicando seus poemas em outras

revistas paulistanas, como Klaxon, Terra Roxa e Revista de Antropofagia.

Sobre a relação de Bandeira com o movimento paulista, Wilson Martins

(1991, p. 77) analisa:

O modernismo foi não apenas uma ruptura com o passado, uma quebra brutal na “direção” estética, mas, ainda, uma interrupção da história literária: seus doze apóstolos começaram a contar de 1922 o ano I da literatura brasileira.

A Semana de Arte Moderna foi um grande acontecimento artístico, que

teve por objetivo mostrar as novas tendências da arte, que já vigoravam em

cidades da Europa. Entre as muitas atividades artísticas e culturais dessa

Semana, destaca-se a declamação feita por Ronald de Carvalho do poema “Os

sapos”, de Manuel Bandeira. O poeta carioca não veio pessoalmente a São

Paulo, mas participou de forma inusitada, logo na abertura, com a leitura de

seu poema — que, após ser declamado, foi imediatamente vaiado pela platéia.

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Assim, Manuel Bandeira, que compartilhava do horror ao lirismo

comedido e erudito das gerações anteriores, criticou um sapo parnasiano

(Vede como primo/ Em comer os hiatos!), ao lado de “sonetos que não passam

de pastiches parnasianos”. Esse poema fora publicado em Carnaval (1919),

mas só depois da declamação ganhou o estatuto de manifesto modernista, pois

delimitou o fim de uma época cultural. Conforme Bandeira (1957, p. 54-55),

naturalmente a sátira dos “Sapos” estava a calhar como número de combate e, com efeito, por ocasião da Semana de Arte Moderna, três anos depois, foi o meu poema bravamente declamado no Teatro Municipal de São Paulo pela voz de Ronald de Carvalho sob os apupos, os assobios, a gritaria de “foi não foi” da maioria do público, adversa ao movimento.

Dessa maneira, Bandeira não esteve ausente dos eventos da Semana,

pois, além de ironizar o ritmo da poesia parnasiana, comparando seus autores

a sapos coachando, também teve seu poema “Debussy” posto em música por

Villa-Lobos, sob o título de “O novelozinho de linha”.

Bandeira tinha procurado transpor para o poema a maneira do autor de

La jeune fille aux cheveux de lin, em que o verso repetido: “Para cá, para lá...”

reproduzia a linha melódica inicial, que acabou sendo resgatada de forma

perfeita por Villa-Lobos:

[...] foi Villa-Lobos cem por cento e até suprimiu naquela música o nome inútil do compositor francês, intitulando-a “O novelozinho de linha”. E ela foi cantada, não sei se vaiada, num dos concertos de Semana de Arte Moderna. [Bandeira, 1957, p. 77]

Depois da Semana, Bandeira caiu no gosto dos modernistas paulistanos.

E seu poema “Bonheur lyrique” foi publicado na primeira edição de Klaxon. Na

quinta edição da revista, apareceu “Poème”, futuramente incluído em

Libertinagem com o título de “Chambre vide”.

O envolvimento com o grupo paulista deu-se também em outros eventos,

como em sua participação, em 1925, no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, cujo

organizador de colaboração era Mário de Andrade. O prestígio alcançado por

Manuel Bandeira poderá ser mais bem visualizado por intermédio da crítica da

época. Faz-se então necessário percorrermos as idéias de alguns críticos, para

vermos como receberam a obra bandeiriana.

2.2 As vozes da crítica

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Nesse contexto modernista, Bandeira foi considerado o são João Batista

do modernismo. Receptivo a tudo o que era novo, não se filiou a nenhuma

escola, moda ou estilo, e era tido como exemplo de inovação técnica e dono de

uma escrita apurada. Aproveitando-se das revolucionárias técnicas

vanguardistas, adquiriu uma pluralidade artística marcada pelo desdobramento

de muitos recursos, combinados sempre de modo original e coerente. Ao

adotar essa liberdade artística, passou a elaborar obras de múltiplas formas

poéticas, encontradas principalmente em Libertinagem.

Bandeira descaracteriza o mundo real/comum para, em seguida,

recaracterizá-lo poeticamente. Sua poesia desafia qualquer tipo de

classificação por ser uma poesia de transgressão. O exame crítico desses

pontos tem por objetivo pôr em evidência certos aspectos da produção poética

de Manuel Bandeira e, conseqüentemente, de Libertinagem, ao longo das

décadas.

Em 1942, o escritor Mário de Andrade proferiu no Rio de Janeiro a

importante conferência sobre o movimento modernista. Para ele, a tendência

de Bandeira para o coloquial e o prosaico advém de um exercício de libertação

pessoal, responsável pelo caráter “tipográfico” dos poemas:

Raro na doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo, em versos espetados, entradas bruscas, sentimentos em lascas, gestos quebrados, nenhuma ondulação. A famosa cadência oratória da frase desapareceu. Nesse sentido, Manuel Bandeira é o poeta mais civilizado do Brasil: não só pelo abandono total do efeito gostoso, como por ser o mais [...] tipográfico de quantos, bons, possuímos. [Mário de Andrade,1972, p. 29]

Nos poemas de Libertinagem, sublinha Mário de Andrade, estão suas

qualidades inovadoras: “Por mais pessoais que sejam assuntos e detalhes,

mais o poeta se despersonaliza, mais é toda a gente e menos é

caracteristicamente ritmado” (1972, p. 30). O modernismo brasileiro, segundo

ele, caracteriza-se pelo sentido da experiência coletiva, a confiança no

presente, a coragem intelectual, a ousadia da experimentação, o próprio apego

à realidade prosaica e cotidiana, e a preocupação social.

Em Libertinagem, o poeta aventurou por experiências múltiplas, e, com

coragem intelectual, experimentou um novo ritmo, diferente dos caminhos até

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então batidos, numa pesquisa de linguagem para transmitir sua interpretação

pessoal do mundo, por meio de um vocabulário, imagens e torneios que se

amoldassem às necessidades de uma expressão voltada para o cotidiano da

vida social. Essa obra traz marcas da hibridização do gênero lírico na

modernidade, transgredindo as leis da poética tradicional e as leis temáticas, o

que registra o amadurecimento do poeta para as tendências modernistas.

A formação do projeto poético de Bandeira dá-se pela constante busca de

uma poesia livre, cheia de ritmos e melodias. Ao dominar os mecanismos de

criação, alcança a liberdade, a graça, a leveza, o descompromisso, e busca o

seu próprio caminho. Anuncia-se como poeta que não se resigna à rotina

literária e faz da descoberta do cotidiano uma aventura possível.

Para Ribeiro Couto (1980, p. 49-50), em poemas de Libertinagem o

cotidiano presente “às vezes é comovente, às vezes é ridículo”, como em

“Pneumotórax”, em que recupera a “humanidade irônica de tísico”.

Mário de Andrade explica que essas características, percebidas em

Libertinagem, tiveram importância renovadora no contexto da década de 1930.

O livro revela que o bom versificador moderno não é aquele que somente tem

“a licença de não metrificar [...] imaginando que ninguém carece de ter ritmo

mais e basta ajuntar frases fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso livre”

(Mário de Andrade,1972, p. 27).

Para Mário, Libertinagem é uma obra de “cristalização”, não da poesia,

mas da psicologia de Bandeira. Livro mais “indivíduo”, dentre os publicados

pelo poeta. Com ele, o poeta atingiu seus ideais estéticos, o que deixou bem

claro no poema “Poética”:

Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

manifestações de apreço ao sr. diretor Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo

de um vocábulo Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Libertinagem, segundo o crítico, apresenta poemas com total sonoridade,

materialização própria do som: “Manuel Bandeira é dentre os poetas vivos

nossos o que prescinde mais do som” (Mário de Andrade, 1967, p. 238).

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O ritmo de Bandeira, para Mário (1967, p. 239), encontra-se numa poesia

que comove pela “simplicidade de expressões, acolhendo mil símbolos fiéis”, o

que pode ser visto no poema “O cacto”: belo, áspero, intratável. Esses

adjetivos reportam à “luta permanente entre essa essência ‘intratável’ do

indivíduo Manuel Bandeira e o lírico que tem nele”. Em “Poema de Finados” e

“Vou-me embora pra Pasárgada”, para o crítico (1967, p. 239), “o poeta se

generaliza tanto que volta aos ritmos menos individualistas da metrificação,

como já o fizera nas cantigas dos ‘Sinos’ e do ‘Berimbau’, no O ritmo dissoluto”.

Por ser um dos amigos próximo de Bandeira, Mário de Andrade, vinte

anos depois da Semana de Arte Moderna, analisou cuidadosamente essa obra,

tida como a cartilha dos poetas modernistas. Aí está uma poesia que transgride

para renovar, e ao renovar deixa um modelo inovador dentro da literatura

brasileira.

Como ninguém, Bandeira encarnou o academismo da poesia modernista,

desbastando-lhe os excessos e as provocações, enraizando-a na tradição dos

grandes mestres da língua e de outras línguas. Ao provincianismo modernista,

contrapôs o universalismo da poesia. Com grande sensibilidade, o poeta

recuperou a tradição e renovou a modernidade, avalia o escritor Mário de

Andrade.

Em vários poemas, como em “Evocação do Recife”, “Profundamente” e

“Poema de Finados”, a angústia da vida cheia de mazelas e o saudosismo da

infância estão presentes nas figuras familiares recuperadas pela memória. No

conjunto da obra do poeta, todavia, é possível apreender a gênese de sua

poesia. O modo de articular o aspecto social com o formal torna-se o ponto

decisivo para a interpretação de sua lírica, aspecto essencial da produção

poética marcada de “circunstâncias e desabafos”, surgida de um poeta “tão

intratavelmente individualista”, como definiu Mário de Andrade.

Uma outra importante crítica literária foi feita em nota introdutória para a

obra Estrela da vida inteira, realizada por Gilda de Mello e Souza e Antonio

Candido, em comemoração ao octogésimo aniversário de Bandeira. Sem

dúvida, um documento importante para avaliar a receptividade da crítica

brasileira à obra do poeta. Caracterizam-no como “o grande clássico da nossa

poesia contemporânea”, que, como os clássicos,

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possui a virtude de descrever diretamente os atos e os fatos sem os tornar prosaicos. O caráter acolhedor do seu verso importa em atrair o leitor para essa despojada comunhão lírica no quotidiano e, depois de adquirida a sua confiança, em arrastá-lo para o mundo das mensagens oníricas [...] [Candido; Souza, 1993, p. 5]

Para os críticos, esse acessório retirado da realidade é despido dos

“adornos coloridos e melodiosos” dos primeiros livros, provando, assim, o

amadurecimento da poética bandeiriana, que com o tempo superou a

característica impressionista existente até então em sua obra, aprendendo “a

dissecar o elemento decisivo, para construir uma poesia ‘desentranhada’ que,

como o minerador, ‘lava o minério para isolar o metal fino’ ”.

Outras análises aludem à capacidade do poeta de adequar-se às

influências modernistas do prosaísmo, do folclore e do nivelamento dos temas.

Essas novas maneiras estão explicadas nos poemas de Libertinagem, ao

caracterizar “os objetos perdidos na fluidez crepuscular, definir os sentimentos

por um contorno nítido e ordenar uns e outros em espaços inventados ou

observados com arbítrio muito mais poderoso” (Candido; Souza, 1993, p. 6-7).

Para Souza e Candido (1993, p. 7), essa evolução “permitiu

conseqüências aparentemente contraditórias: de um lado, a adesão mais firme

ao real, reforçando a naturalidade ameaçada pela deliqüescência pós-

simbolista; de outro lado, a criação de contextos insólitos, libérrimos, parecidos

com os mundos imaginados, mas rigorosos, da arte moderna”.

Os críticos explicam que, enquanto o cotidiano é tratado de forma

sublime, na sua mais simbólica verdade, o mistério é tratado com familiaridade

minuciosa e objetiva, que o aproxima da sensibilidade cotidiana, ou seja, “o

poeta conquistou a posição-chave que lhe permite compor o espaço poético de

maneira a exprimir a realidade do mundo e as suas mais desvairadas

projeções”.

Em 1967, a partir da obra Poesia completa e prosa, Sérgio Buarque de

Holanda trata da singularidade poética de Bandeira, que advém da não-

obediência a nenhum programa definido e não se prende a nenhum

compromisso estético, ainda que atraído pelo movimento modernista. Para

Holanda (1967, p. 13), a poesia bandeiriana percorreu um longo caminho até

chegar à concretude modernista:

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A popularidade atual de sua poesia não se fez, aliás, rapidamente, pois sujeita, embora, a uma técnica extremamente cultivada, ela não visa ao efeito exterior, e muitas vezes se dirige tanto ao sentimento, ao “coração”, como a regiões menos exploradas da alma.

Holanda (1967, p. 14) declara também que o lirismo de Bandeira “não é

produto de laboratório, mas vem, como toda verdadeira poesia, de fontes

íntimas, exigindo, para realizar-se, condições que não se podem forjar

arbitrariamente”.

Sua obra é uma condensação da tradição clássica com a moderna, em

busca de novos ritmos e de total liberdade de criação. Para o crítico, essa

ambição libertadora de Bandeira “não conhece as fronteiras do ‘bom gosto’ ”.

Ao contrário, ela o impulsiona a criar em profusão, associada ao domínio da

técnica. Ele não se prende a nenhuma regra, ao contrário, molda-se livremente

às tendências da época e, com sua experiência poética, cria de acordo com o

momento cultural e histórico.

Manuel Bandeira pertence à geração que se manifesta mais ativamente

no modernismo brasileiro. Holanda (1967, p. 16) define bem como é o poeta

Bandeira:

Ele é tudo menos um fotógrafo. O mundo visível pode fornecer as imagens que hão de animar sua poesia, mas essas imagens combinam-se, justapõem-se, de modo imprevisto, coordenadas às vezes por uma faculdade íntima cujo mecanismo pode escapar-nos. E escaparia, não raro, ao próprio poeta. Essa faculdade, resistente a qualquer análise meticulosa, ajuda-o a abordar os temas vulgares e até prosaicos, conservando-se, no entanto, inconfundível e só aparentemente imitável.

Em “Não sei dançar”, o poeta resume toda a sua evolução anterior: “Eu já

tomei tristeza, hoje tomo alegria”; e por isso declara, em poema posterior

(“Poética”): “— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.

Suas poesias são de profunda evocação, subjetivas e íntimas, como em

“Evocação”, “Profundamente”, “Poema de Finados” e “Noite morta”. Holanda

acaba por definir a trajetória da poesia bandeiriana como uma insistente luta

para transcender-se. A mudança dos elementos do mundo visível para o

mundo poético permite um tom intimista, melancólico, dependendo do estado

de alma do poeta, o que Sérgio Buarque de Holanda (1976, p. 18) sagazmente

apreende:

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Essa transfiguração dos acidentes do mundo visível nas imagens da vida íntima e pessoal pode adquirir, não raro, um timbre monótono, e não é para admirar se o poeta chegou quase a desenvolver um verdadeiro sistema de referências simbólicas, cujo sentido se alterna segundo os estados de alma que procura refletir.

Nos poemas, há uma assimilação dos acidentes do mundo exterior, no

início, associado ao seu próprio mundo íntimo. Esse esforço decisivo para

ultrapassar essa condição inicial termina, com efeito, com uma derrota: “O meu

carnaval sem nenhuma alegria!...” A palavra alegria conjuga-se, muitas vezes,

ao constante intento de superar a própria situação particular.

Holanda conclui que, dentre todas as propostas do modernismo, as

soluções libertárias foram as que lhe pareceram corresponder à sua forma de

expressão poética. Liberdade e objetividade tornaram-se termos rigorosamente

correlatos. Manuel Bandeira jamais se deixou seduzir pelos hermetismos e

estetismos, que constituem formas aristocráticas de reclusão, intoleráveis para

quem aspira a vencer, pela poesia, sua própria reclusão e confinamento. É a

partir dessa atitude precisa, de quem sabe o que busca, que a crítica apontou

Bandeira como aquele que traz consigo uma poesia original e, portanto, um

modelo a ser seguido.

Um outro estudioso da poesia bandeiriana é Murilo Marcondes Moura,

que recupera a divisão da obra de Bandeira em três grandes momentos: o

primeiro, obras de 1917 a 1924, com vínculo neoparnasiano e neosimbolista, já

com vínculos receptivos a procedimentos modernistas; o segundo, de 1930 a

1936, obras de “cristalização” modernista; e o terceiro, de 1948 a 1963, fase de

certa estabilidade criadora, de completa maturidade. Para o crítico, essa forma

de divisão permite visualizar os momentos principais da poesia brasileira do

século XX, do chamado pré-modernismo às vanguardas da década de 1950.

Para Moura, Libertinagem é a obra de “cristalização”, uma ponte de

passagem das três primeiras obras. A proposta modernista contida nos

poemas mescla o prosaico com o poético, sendo o verso livre uma das

manifestações, como em “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Ainda

segundo Moura, o poeta, muitas vezes, delicia-se em criar poesia, não tirando-

a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, e sim

“desgangarizando-a”. Esse estilo diferente de fazer poesia relaciona-se a um

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projeto maior de nosso modernismo, ou seja, o de representar e compreender

a realidade brasileira.

Outra importante crítica, da década de 1970, é o ensaio de Haroldo de

Campos intitulado “Bandeira, o desconstelizador”. O destaque é para a função

desconstelizadora presente na poesia de Bandeira, que atua sob duas formas:

a primeira, “como geradora da particular ‘mockery’ do poeta, em poemas de

linha coloquial-irônica”; a segunda

como suporte de certa poesia de simplicidade emocional quase tocada pela trivialidade, que no entanto se sustenta admiravelmente em tênues linhas de força graças ao efeito de singularidade obtido pelo poeta com o arranjo novo dessas aparentes banalidades sentimentais. [Haroldo de Campos,1970, p. 104]

Outro crítico imprescindível para entender a atitude humilde do poeta é

Davi Arrigucci Jr. No ensaio “O humilde cotidiano de Manuel Bandeira” (1983),

editado na obra Enigma e comentário (1987), o crítico ressalta que a

compreensão dessa “atitude humilde” é um problema complexo da obra de

Bandeira.

O primeiro aspecto abordado nesse ensaio é a reação de estranhamento

e de perplexidade diante dos poemas, o que leva a questionamentos diversos

devido ao estado de completa confusão em que se encontra o leitor, ao tentar

entender sua atitude humilde. Atitude que pode ser explicada pelo desejo que o

poeta tem de “despojamento e redução ao essencial”, tanto nos temas como na

linguagem. Essa questão poder ser encarada, segundo Arrigucci, pela

convivência do poeta com a pobreza. A partir daí, o poeta adquire serenidade,

o que o leva a conceber concretamente o poético, convertendo seu modo de

ser num modo de ver a vida e de fazer a poesia. Para Arrigucci (1987, p. 10),

essa concepção primeira que Bandeira tem do fazer poético origina-se de

[...] uma atividade do espírito, em momentos de súbita iluminação, concretizada em obras feitas de palavras. E trata-se de uma poética centrada num paradoxo: o da busca de uma simplicidade em que brilha oculto o sublime.

Para o crítico, a simplicidade existente na poesia bandeiriana não oculta o

sublime, e sim desnuda-se por meio dela. Sua poesia nasce no mais humilde

cotidiano. Devido a essa característica, Bandeira recebeu denominações

variadas. Davi Arrigucci Jr. trata de uma simplicidade “difícil de entender”;

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Casais Monteiro, de uma “pobreza voluntária” do Bandeira maduro; e Álvaro

Lins, da “pobreza franciscana”.

A década de 1920, de acordo com Arrigucci (1987, p. 10), foi um período

decisivo para a constituição dessa atitude fundamental, fruto de um processo

de amadurecimento do poeta, ao longo de sua experiência de vida. Essa

postura “se assemelha à prática de um artesanato interior, que se processasse

como modelagem da subjetividade em sua relação com o mundo”.

Para Arrigucci, Bandeira abandona a marca da emotividade, encontrada

nas primeiras obras, como um ser marcado pelo sofrimento, um ser elevado,

sublime, e fixa-se junto ao chão do mais humilde cotidiano. É para o mundo e

para a vida que o poeta se entrega, para doar-se plenamente na forma poética,

na qual a poesia poderá captar e mostrar seus raros momentos. É nesse

movimento que “surge um sujeito evasivo que representa propriamente uma

objetivação do eu, uma ruptura das defesas e barreiras para o exterior” (1987,

p. 12), deixando o meio circundante penetrar com ousadia no seu eu.

O poeta, declara ainda o crítico, deixa-se envolver pela liberdade da

poesia moderna, e passa a dialogar com seres e coisas do mundo, numa

linguagem comum, realizando uma dança com o acaso, de verdadeira

libertinagem. Para Arrigucci (1987, p. 12), a poesia de Bandeira nasce

no mesmo plano da materialidade do corpo, como uma autêntica “iluminação profana”, um alumbramento. É quando se subverte a banalidade da existência, o lugar-comum se muda num insólito mais real do que o real e se produz o estranhamento do novo [...]

Em um outro estudo, intitulado “Humildade, paixão e morte: a poesia de

Manuel Bandeira”, Davi Arrigucci (1990, p. 52-53) revela que a afinidade

profunda entre o poeta e o aspecto da realidade só foi possível de materializar-

se poeticamente com o advento do modernismo:

[...] esse modo de conceber a literatura não se desprende da direção tomada pela literatura brasileira durante o modernismo. Uma das características fundamentais do período modernista, quando se define, afirma e enriquece extraordinariamente a obra de Bandeira, sobretudo a partir de Libertinagem, na década de 30, é que a vida de relação, tal como se mostrava no dia-a-dia, se torna matéria literária.

Em 1993, a crítica Yudith Rosenbaum publica um importante estudo

intitulado Manuel Bandeira: uma poesia da ausência. O estudo tem como foco

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de interesse a ausência como um tópos maior do autor. Para a crítica, a poesia

de Bandeira, de modo geral, “tematiza expressivamente uma dificuldade em

superar as perdas que marcaram a sensibilidade poética de Manuel Bandeira”

(p. 22). Essas perdas, tidas como uma “experimentação particularmente sofrida

da vida” (tuberculose precoce, perdas sucessivas de mãe, irmã, pai e irmão),

teriam alimentado um “núcleo pulsional e criativo em que o fazer poético” se

tornou “uma possibilidade de recompor a integridade perdida”. É do convívio

solitário e das experiências vividas que o poeta extrai imagens que acabam por

materializar essa “ausência”.

A obra de Bandeira, segundo Rosenbaum, percorre várias vertentes

estilísticas: parnasianismo, simbolismo, penumbrismo, as vanguardas

européias e o modernismo brasileiro. Mas é na guinada modernista que o

poeta se impõe decisivamente, incorporando e superando traços anteriores.

Para ela, Bandeira soube “safar-se de todas as camisas-de-força das várias

escolas, forjando um caminho próprio inconfundível” (p. 24).

O poeta foi invadido por “ventos renovadores” a partir de Libertinagem, já

que os aspectos modernistas são evidentes. A geração modernista teria,

segundo Rosenbaum (1993, p. 29), impregnado

o poeta de mais de trinta anos com sua revolta contra a tirania métrica, sua mensagem irônica, coloquial, prosaica, seus exercícios lúdicos e humorísticos, recém-saídos da “libertinagem” das vanguardas européias.

Também a estética maior bandeiriana “sempre esteve marcada por uma

postura de combate à rigidez da forma e um constante ‘experimentalismo’

consciencioso das múltiplas possibilidades lingüísticas” (p. 30). São exemplos

dessa versatilidade as incursões do poeta pelos caminhos concretistas na

década de 1950.

A poética de Bandeira, segundo a autora, mesmo depois da fase heróica

do modernismo, não abandonou o compromisso maior entre arte e realidade.

Depois da primeira fase modernista, a progressão dessa obra “mostra uma

crescente impregnação da experiência na poesia, um voltar-se à realidade

cotidiana” (1993, p. 30), na qual a poesia se torna “cada vez cheia de tudo”.1

Há “uma recriação dos traços circundantes de forma a torná-los bandeirianos”,

1 Expressão extraída da “Canção do vento e da minha vida” (Lira dos Cinqüent’anos, 1940).

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dando-lhes nova vida, nova essência formal no corpo da poesia. Rosenbaum

afirma ainda (1993, p. 31) que

o espírito modernista deu o instrumental necessário para Bandeira livrar-se de um encerramento de caráter melancólico, sevindo-se dos elementos mais libertadores para anistiar a si mesmo.

Bandeira sempre foi, para a crítica, um poeta aberto a inovações

estéticas, mas “soube preservar — e resgatar quando assim ditasse sua arte —

as aprendizagens passadas” (p. 24).

O crítico Otávio Faria (1980, p. 122), no ensaio Estudos sobre Manuel

Bandeira, explica que, em Libertinagem, “tudo fala num mesmo sentido e esse

sentido, uma palavra o sintetiza: libertação. O poeta põe resolutamente de lado

o sofrimento, decide ser feliz, livre, inconseqüente”, como afirma em “Vou-me

embora pra Pasárgada”, lugar de “reino estranho”, “onde tudo é fácil e a

existência, uma aventura ‘inconseqüente’ ”. O eu poético deixa para trás a

tristeza, o sofrimento, com suas complicações e parte para um mundo com

inúmeras possibilidades de ser feliz.

Sob a perspectiva formal, o crítico Leônidas Câmara (1980, p. 166-67),

em A poesia de Manuel Bandeira: seu revestimento ideológico e formal, afirma

que Libertinagem tem a seguinte construção formal:

[...] movimentos bruscos, de assonâncias, sinestesias, imagens incorporadas ao círculo fechado das ideações alógicas, torneios sintáticos de geometria própria, desvios, tortuosidades intencionais, modulações de ritmo livre. Um abandono da estrofe de versos enquadrados, de cadência medida numa simetria de linhas laboriosamente arranjada.

Não podemos afirmar que o poeta tivesse consciência desse projeto

maior, que marca a obra de todo artista e a faz única em comparação com as

demais. No entanto, Bandeira só conseguiu conquistar notoriedade literária no

modernismo brasileiro porque tinha absoluto domínio da técnica do verso, o

que, segundo Câmara (1980, p. 167), o ajudou a eliminar “todos os recursos

tradicionalmente padronizados de uma candíssima arte poética”. Não é

possível dissociar a obra de Bandeira do conjunto das obras modernistas, ou

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seja, negar qualquer semelhança, já que seu projeto se adapta ao projeto

modernista e com ele busca identificação.

Ao rasurar, corrigir, trocar, eliminar, o artista a princípio não sabe bem o

que quer. Só se sabe satisfeito quando sai em busca dessa perfeição. Por isso

vai lapidando seus poemas e dando-lhes nova forma, definindo-os no corpo do

seu texto, no ato da escritura, no fazer e refazer.

Para finalizar essa trajetória com a crítica em torno da produção poética

de Bandeira, voltemos a ele mesmo, declarando-se “um poeta de

circunstâncias e desabafos”, como escreve em crônica de 1956, publicada em

Andorinha, andorinha:

No fundo, sou, apenas, por força das circunstâncias, um simples poeta lírico, um poeta menor, que há uns cinqüenta anos não faz senão esperar a morte, cantando as grandes tristezas e as pequenas alegrias que a vida lhe tem proporcionado. [1966, p. 17]

Em relação à obra Libertinagem, ele a vê como uma brincadeira que o

levou a libertar-se das amarras tanto pessoais como estéticas. A partir daí,

pôde brincar com as palavras, em plena libertinagem poética. Essa obra

representa a “dissolução de regras, de fórmulas; libertinagem de matéria. Total:

liberdade. A liberdade que é a primeira condição para a libertinagem” (Couto,

1980, p. 55).

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Capítulo 3 — O cotidiano em poemas de Libertinagem

Assim, em círculos afins se desenvolve a busca

real e em níveis incoincidentes a espiral dialética

da linguagem encontra as materializações que se dizem

nos textos. Textos possíveis. Sinais de transgressão.

Afins do real. Acusadores e silenciosos. O ruído da

cristalização antiestática da voz de um homem/homens.

E. M. de Melo e Castro. Círculos afins, 1977

O objetivo deste capítulo é analisar os temas da infância, da consciência

social e da morte nos respectivos poemas de Libertinagem: “Evocação do

Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “Poema de Finados”, para

investigar o estilo poético bandeiriano e sua transgressão com a lírica

tradicional.

Para isso, estudaremos procedimentos estilísticos como a cadência

rítmica irregular, as rimas aleatórias ou ausentes, a multiplicidade de tom e a

aproximação com a prosa. Essa análise tem como fundamentação teórica os

conceitos de “função poética”, de Jakobson; o “estranhamento”, na perspectiva

de Chklovski; a concepção de “linguagem poética” desenvolvida por Tinianov; e

a estrutura da lírica moderna segundo Hugo Friedrich e Octavio Paz. Assim,

buscaremos responder às questões norteadoras desta pesquisa: que

elementos formais ou estruturais encontrados em Libertinagem operam como

recursos poéticos para traduzir o cotidiano? como o eu poético rompe com a

métrica e a linguagem tradicional?

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3.1 A infância: memória e presença em “Evocação do Recife”

A visão tem o poder de reorganizar o mundo, conforme o movimento do desejo [...]

Davi Arrigucci Jr.

Os poemas de Bandeira publicados em Libertinagem trazem, com

freqüência, o cotidiano como uma de suas principais fontes temáticas, em que

a parcela do real é sentida, meditada, vivenciada numa comunhão com a

realidade objetiva e com as pessoas que o rodeiam. O interesse pela existência

em sua concretude presentifica-se em versos prosaicos e simples.

Dentro desse cotidiano, o tema da infância está presente em “Evocação

do Recife”, escrito em 1925 a pedido do amigo e escritor Gilberto Freyre, para

representar o Recife da meninice do poeta. Nota-se a busca de um ideal de

vida centrado na simplicidade, no desprendimento, no contentamento com as

pequenas coisas da vida. Vamos transcrevê-lo para as etapas de análise.

1 Recife 2 Não a Veneza americana 3 Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais 4 Não o Recife dos Mascates 5 Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois 6 Recife das revoluções libertárias 7 Mas o Recife sem história nem literatura 8 Recife sem mais nada 9 Recife da minha infância 10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da

casa de dona Aninhas Viegas 11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz 12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,

namoros, risadas 13 A gente brincava no meio da rua 14 Os meninos gritavam: 15 Coelho sai! 16 Não sai! 17 A distância as vozes macias das meninas politonavam: 18 Roseira dá-me uma rosa 19 Craveiro dá-me um botão

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20 (Dessas rosas muita rosa 21 Terá morrido em botão...) 22 De repente 23 nos longes da noite 24 um sino 25 Uma pessoa grande dizia: 26 Fogo em Santo Antônio! 27 Outra contrariava: São José! 28 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José. 29 Os homens punham o chapéu saíam fumando 30 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo 31 Rua da União... 32 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância 33 Rua do Sol 34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal) 35 Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... 36 ... onde se ia fumar escondido 37 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... 38 ... onde se ia pescar escondido 39 Capiberibe 40 ─ Capibaribe 41 Lá longe o sertãozinho de Caxangá 42 Banheiros de palha 43 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho 44 Fiquei parado o coração batendo 45 Ela se riu 46 Foi meu primeiro alumbramento 47 Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu 48 E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de

bananeiras 49 Novenas 50 Cavalhadas 51 Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos 52 Capiberibe 53 ─ Capibaribe 54 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas 55 Com o xale vistoso de pano da Costa 56 E o vendedor de roletes de cana 57 O de amendoim 58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido 59 Me lembro de todos os pregões: 60 Ovos frescos e baratos 61 Dez ovos por uma pataca 62 Foi há muito tempo... 63 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros 64 Vinha da boca do povo na língua errada do povo 65 Língua certa do povo 66 Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil 67 Ao passo que nós

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68 O que fazemos 69 É macaquear 70 A sintaxe lusíada 71 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem 72 Terras que não sabia onde ficavam 73 Recife... 74 Rua da União... 75 A casa do meu avô... 76 Nunca pensei que ela acabasse! 77 Tudo lá parecia impregnado de eternidade 78 Recife... 79 Meu avô morto. 80 Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

Nesse poema, estão postas algumas características que revolucionaram

a prosa moderna: um olhar pautado na experiência de espaço/tempo que se

dissipou, convertendo-se em memória viva, do adulto que apreende o mundo.

O mundo da infância está estreitamente associado a um cenário simples e

provinciano, anterior a qualquer sofisticação imposta pelo progresso. O retorno

à inocência original, evocada pelas reminiscências do adulto e transfigurada

pela poesia, permite emergir uma emoção particular: o sentimento poético.

Portanto, é um poema altamente lírico, carregado de sentimentos puros e

espontâneos como os bêbados (“Poética”), e não tirados dos manuais de

cartas, mas da observação de fatos cotidianos brasileiros, como as

brincadeiras, as enchentes e os pregões dos ambulantes.

A análise do poema, para maior clareza, foi organizada em dois aspectos

centrais: a transgressão estilística e a temática. Quanto ao primeiro,

destacamos a estrutura fragmentária — na alternância de versos longos com

curtos, nos espacejamentos da página em branco, na ausência de pontuação,

nas enumerações; em seguida, recuperamos a seqüência textual dos versos

soltos e livres que remetem ao caráter vago e intuitivo da memória, espaço em

que as imagens brotam espontaneamente, sem controle rigoroso de seleção,

de ordenação e de organização.

Quanto ao aspecto temático, abordaremos a poesia de reminiscência, em

seis momentos memorialísticos: a abertura do poema; o exame do Recife; as

impressões pessoais mais patentes; em tom de crônica, o poeta mira o Brasil;

a consciência do homem em relação à poesia; o lamento e a reflexão sobre a

passagem do tempo.

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Essa abordagem centra-se em duas perspectivas: a mítica, nostalgia da

origem, a saudade; e a memorialística, atualização — do eu poético que se

expressa na forma da coexistência entre o passado e o presente, entre o

menino e o adulto.

3.1.1 Transgressão estilística: a liberdade poética

“Evocação do Recife” é um exemplo de revolução contra a poesia

tradicional brasileira. Pode ser comprovada no uso da linguagem coloquial, na

valorização do cotidiano até então inadmissíveis na obra literária, sobretudo em

versos.

A introdução da língua falada na obra literária é um dos recursos mais

utilizados por Bandeira. A língua falada, por ser espontânea, não está sujeita à

racionalidade, o que a torna coerente com a ideologia romântica do século XIX,

que buscava a liberdade da expressão individual. Com o advento do

modernismo, essa transposição da língua falada para a escrita literária ganhou

lugar privilegiado entre os poetas brasileiros, e principalmente em Bandeira.

Essa forma de escrita poética provocou no leitor um certo estranhamento

em relação ao objeto representado. O eu poético transpõe o universo comum,

rotineiro, habitual, para uma esfera de novas percepções: um cotidiano recriado

a partir do olhar artístico. Para Chklovski (1971, p. 34), “a função do artista

moderno é de destruir os clichês e as associações estereotipadas, impondo

uma complexa percepção sensorial do universo”.

Temos um poema visivelmente transgressivo em relação à estética

tradicional, portanto, moderno. Na época de sua criação, alguns dos poetas

ainda seguiam o modelo parnasiano, criavam poemas metrificados, com

vocabulário castiço, cuja qualidade era medida pelas rimas ricas e raras. Hoje,

não parece tão moderno ou transgressivo, porque a forma prosaica de

Bandeira já está completamente assimilada pelos poetas contemporâneos,

como se reconhece, por exemplo, na música popular, e também na literatura

de hoje. O leitor vê-se diante de uma estrutura poética que conecta seus

elementos de forma fragmentada, rompendo com o automatismo receptivo da

linguagem comum, e chamando sua atenção para a função verdadeira da arte,

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que é, usando as palavras do crítico Jakobson, a “deformação organizada” da

língua comum pela língua poética (apud Eikhenbaum, 1971, p. 58).

O uso de versos longos é freqüente na poesia de Manuel Bandeira. Com

esse procedimento, o poeta transfere para o texto literário uma propriedade da

fala, que se distancia com freqüência da linguagem formal pela flexibilidade

maior que apresenta em termos de organicidade. Além disso, o verso longo

reforça a noção de livre expressão do pensamento, pois o fluxo alonga-se

duplamente livre: primeiro, pela vazão “sem amarras” da subjetividade,

segundo, graficamente “livre”, pelo rompimento dos limites do verso

metrificado.

A linguagem é simples, coloquial, pois, segundo o texto, o povo fala

gostoso o português do Brasil, que é empregado no poema. Não há

preocupação com rima ou métrica, apenas com a disposição gráfica dos versos

e com as expressões de um lirismo profundo, de modo a impregnar o presente

de seu Recife tão brasileiro e inesquecível.

O quadro histórico-literário, segundo o crítico Yuri Tinianov (1975, p. 11-

12), só pôde ser mudado com

uma nova interação, e não simplesmente a introdução de um fator qualquer por si próprio. O uso de um metro gasto (desgastado em conseqüência de uma associação marcada, habitual, com o sistema tônico da frase e com certos elementos lexicais), em interação com novos fatores, renova aquele metro, desperta nele novas possibilidades construtivas. Do mesmo modo o princípio construtivo do metro se fortalece com a introdução de novos esquemas métricos.

Esses novos esquemas métricos são possivelmente encontráveis nos versos

dos poemas manuelinos. Ao usar o verso livre e elementos considerados até

então apoéticos, Bandeira renova a poesia brasileira.

“Evocação” é um poema gráfico-visual, portanto, concreto, com

movimentos cinematográficos. Um poema estruturado por estrofes-fotogramas,

no qual o leitor fixa o olhar simultâneo ao longo do recorte de versos, no

espaço da página. Nesse sentido, podemos dizer que Bandeira cria uma

poética de transgressão. O caráter vago e intuitivo das evocações é expresso

por uma linguagem em que predomina a organização paratática, na qual as

imagens não obedecem a uma conexão lógica. Nesse caso, o texto literário,

em sua aparente dispersão, assume os traços de um monólogo interior. Por

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exemplo, do verso 10 ao 12, a atitude dispersiva do falante projeta-se na

estrutura fragmentária, constituída de imagens “soltas”:

10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas

11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz 12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,

namoros, risadas

Pela extensão do enunciado sem pontuação — verso mais alongado —, o

poeta registra, no verso 10, com a espontaneidade da fala, episódios da

infância.

No verso 12, há o registro de antigos valores, que desapareceram. Essas

características também são encontradas em outros versos:

54 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas 55 Com o xale vistoso de pano da Costa 57 O de amendoim 58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido

A fala presente que recupera os episódios infantis do eu poético acentua

a impressão de oralidade, principalmente, os versos longos contidos nesse

poema.

Encontramos, também, do verso 13 ao 16, o termo gente, que remete a

uma situação de fala no texto literário:

13 A gente brincava no meio da rua 14 Os meninos gritavam:

15 Coelho sai! 16 Não sai!

O mesmo ocorre com certas colocações pronominais, do tipo “onde se ia”

(versos 36 e 38), “ela se riu” (verso 45), “me lembro” (verso 59), características

do registro coloquial dessa linguagem.

Ao rememorar episódios da infância, o eu poético registra os gritos,

emitidos pelas crianças nas brincadeiras e nas cantigas, intercalados aos

pregões de rua:

17 A distância as vozes macias das meninas politonavam: 18 Roseira dá-me uma rosa 19 Craveiro dá-me um botão

20 (Dessas rosas muita rosa 21 Terá morrido em botão...)

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59 Me lembro de todos os pregões: 60 Ovos frescos e baratos 61 Dez ovos por uma pataca

No verso 17, o uso do pretérito imperfeito reforça o desejo de interação

entre o passado e o presente. A organização sintática recupera o discurso

popular, trazendo a oralidade para o texto literário. O poeta também recorre a

uma ortografia própria, a fim de estabelecer um diálogo entre a linguagem

escrita e a oral, como na substituição de “amendoim” por “midubim”:

56 E o vendedor de roletes de cana 57 O de amendoim

58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido

A entonação expressiva é marcada pela pontuação: os pontos de

exclamação registram as modulações melódicas da fala, decorrentes de

atitudes emotivas, como podemos notar no verso abaixo:

76 Nunca pensei que ela acabasse!

Outro sinal gráfico que assinala uma situação de fala são os parênteses,

que remetem à presença de uma voz no interior do texto, de um comentário, de

uma reflexão ou de uma observação. Com esse mecanismo, o poeta coloca em

destaque o processo de enunciação, recuperando a linguagem em seu

dinamismo, pressupondo uma situação real de fala.

20 (Dessas rosas muita rosa 21 Terá morrido em botão...) 34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)

Processos enumerativos e repetitivos também são comuns na linguagem

poética de Manuel Bandeira. Trata-se de recursos freqüentemente utilizados

pelo falante, que recorre, muitas vezes, à simples repetição ou enumeração

dos signos lingüísticos, sem conectivos lógicos ou coesivos.

Por meio da elipse — de conectivos, verbos e substantivos —, o poeta

também recupera uma característica da fala. Vejamos nos versos abaixo:

25 Uma pessoa grande dizia: 26 Fogo em Santo Antônio! 27 Outra contrariava: São José! 28 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José. 29 Os homens punham o chapéu saíam fumando

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30 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

Os nomes próprios, por exemplo, aparecem em número expressivo.1

Neles, o poeta procura o que há de sugestivo, de curioso, de inusitado. Os

nomes de ruas, por sua vez, estão, neste poema, associados às experiências

infantis, como revelam esses versos:

31 Rua da União... 32 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância 33 Rua do Sol 34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)

Esse interesse de Bandeira por determinados vocábulos, que atraem

justamente por sua estranheza, pelo que comportam de sugestivo, de

impreciso, de misterioso, está presente ao longo de sua obra.

As expressões da linguagem popular são muitas na poesia de Manuel

Bandeira. Os efeitos irônicos e humorísticos da lírica bandeiriana são

resultantes do emprego de exemplos de gírias, trocadilhos, frases feitas,

tirados da oralidade. Trata-se de uma linguagem que, ao mesmo tempo, traduz,

no plano existencial, uma atitude de indiferença, de irreverência. No plano

lingüístico, constitui uma ironia com o gosto clássico, do purismo lingüístico, do

bom-tom parnasiano. Como salienta o próprio autor:

A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente seleto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão. Assim, a expressão “ficar safado da vida”, em que o adjetivo “safado” só pode ser superado por outro que não se deve escrever, continua para mim preservando, na sua condição de lugar-comum, a mesma virtude inicial. [Bandeira, 1957, p. 92]

Esses exemplos mostram a consciência de Bandeira em relação à carga

lírica da linguagem cotidiana, que, em seu projeto poético, busca resgatar em

sua obra. Além disso, as expressões de cunho popular, eleitas por ele,

comportam algo de extravagante, de irreverente, contribuindo para a veia

humorística.

Um dos principais recursos estilísticos de que Manuel Bandeira se vale

para dar um tom de oralidade aos seus poemas provém da aproximação do

texto escrito com a fala popular, buscando a entonação dos falantes não 1 Dentre os nomes próprios podemos contar quinze: Recife, Veneza, Mauritssatd, Rua da União, Totônio Rodrigues, Rua do Sol, Rua da Saudade, Rua da Aurora, Capibaribe, Caxangá, Novenas, Cavalhada, Costa e Aninha Viegas.

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letrados. Nesse sentido, o verso livre constitui o primeiro passo na busca dessa

representação da oralidade no texto literário. A partir de seu uso, diversas

experiências são mobilizadas em termos de ritmo e de linguagem, num

verdadeiro trabalho de estilização do coloquial. Os deslocamentos, os espaços

em branco, as fragmentações, são conscientemente utilizados e visam imitar,

no plano da expressão literária, o discurso fragmentado do falante, que

dispensa os nexos lógicos e coesivos, por contar com o auxílio da situação e

dos gestos. Além disso, privilegia-se o plano gráfico-visual do poema, ou seja,

a espacialidade da página.

Ao analisar o fragmentarismo da lírica moderna, Friedrich (1991, p. 153)

explica a estrutura fragmentada do poema como uma “hostilidade à frase”, o

que contribui para a originalidade da expressão poética:

Quanto menos tradicional a poesia queira ser, tanto mais se distancia da frase como forma tradicional articulada pelo sujeito, objeto, predicado verbal, preposição etc. Ante a lírica moderna pode-se até mesmo falar de uma hostilidade à frase, cujos fenômenos, aliás, também se poderiam descrever do ponto de vista do fragmentarismo.

Em “Evocação do Recife”, o deslocamento de segmentos rítmicos para o

canto da página remete a um gesto do falante, que é a confidência, a revelação

em segredo:

35 Atrás da casa ficava a Rua da Saudade... 36 ...onde se ia fumar escondido 37 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... 38 ...onde se ia pescar escondido

Esse recurso também é utilizado, no verso 46, para a confissão da

primeira experiência erótica, no mesmo poema:

43 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho 44 Fiquei parado o coração batendo 45 Ela se riu 46 Foi o meu primeiro alumbramento

Os vários recursos estilísticos usados, como versos longos e curtos,

espacejamentos, não-pontuação, expressões da linguagem popular, oralidade,

verso livre, parataxe, processos enumerativos e repetitivos, ajudam o eu

poético a transformar a linguagem cotidiana e as situações diárias em

elementos poéticos. Bandeira consegue, com maestria, atingir os objetivos

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propostos pelos modernistas, criando uma poesia transgressora, que rompe

com a estética parnasiana.

A palavra escultória, de que Bandeira é exemplo, fala da verdadeira

essência da poesia, que é a corporação da palavra. Na tentativa de transformar

a palavra — que é signo por convenção — numa escultura, por meio do cinzel

do poeta, materializa-a num ser poético. Uma palavra que não representa, mas

que seja o máximo possível colocada ao ser. É o estranho encontro do homem

com o outro, encontro catártico, que ocorre em “Evocação do Recife”, como um

defragador epifânico.

3.1.2 Transgressão temática: imagens memorialísticas

Nas evocações do Recife, o eu poético traz a região do Nordeste por

intermédio das paisagens de outrora e das personagens, que compõem sua

mitologia pessoal. Essas evocações são marcadas pela recorrência de versos

fragmentados como “porções sensíveis do passado”.

O título, “Evocação do Recife”, antecipa ao leitor o tema do poema: o

resgate por meio da evocação da infância vivida na capital de Pernambuco; a

cidade que se preservou na memória do homem adulto. A palavra evocação

deriva do verbo evocar, do latim evocatione, que significa “chamar a si”,

“recordar”, “relembrar”. O eu poético inicia um processo mágico que o

transporta a um passado remoto, da “infância feliz” vivida nos primeiros anos

de vida, fundamentais para a formação do homem adulto que rememora. Ele

reconquista o tempo passado — infância —, por meio de grandes momentos

memorialísticos.

Nos oitenta versos, numa “correnteza de recordações”, as imagens e

vultos da infância retornam com força total, trazendo de volta um tempo bom da

vida. O eu poético recorda, assim, esses momentos com ternura, como se

fosse ainda o menino que brincava na rua. É no decurso dos versos,

agrupados em recortes memorialísticos, que tentaremos visualizar o mosaico

das reminiscências infantis, geradas na memória do poeta.

1.o recorte memorialístico: abertura do poema

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No primeiro verso deste recorte memorialístico, o eu poético define para o

leitor o foco/tema do poema: a infância na cidade do Recife:

1 Recife

Esse verso inicial propõe uma definição, uma síntese, como a abertura de

um verbete. Mas, na verdade, são as reminiscências do poeta. Chama pelo

“seu Recife”, lugar inicial de sua meninice. Depois dessa evocação, nos versos

subseqüentes, elucida, por paralelismo semântico, indicado pelo advérbio de

negação — Não —, o que não quer evocar:

2 Não a Veneza Americana

O eu poético exclui, no verso acima, o lugar-comum (senso comum,

convencional) — “Veneza americana” —, cuja associação vem do fato de os

rios Capibaribe e Beberibe estarem incorporados à paisagem da cidade de

Recife, dividindo-a em três bairros, retirando a idéia de dependência de uma

imagem exterior, estrangeira, ou seja, ele nega o filtro europeu.

Nos versos:

3 Não a Mauritssatd dos armadores da Índias Ocidentais 4 Não o Recife dos mascates

novamente, há uma negação do estrangeirismo, mas aqui também a recusa é

ao sentido “histórico” — Mauritssatd, que significa “Cidade de Maurício”, é uma

alusão ao período de dominação holandesa no Recife, governado por Maurício

de Nassau. O “Recife dos mascates” é uma referência à Guerra dos Mascates,

ocorrida em Pernambuco no início do século XVIII, envolvendo os mascates

em luta pela independência de Recife e os senhores de engenho de Olinda —,

a História maior, do período de dominação estrangeira da cidade que ele ama,

justamente, por ser tão brasileira. E segue:

5 Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois 6 Recife das revoluções libertárias

O contexto histórico é retomado no verso 6, ao dirigir-se às “revoluções

libertárias”, alusão à Revolução Praieira (1848-49), de caráter liberal, quando o

povo se rebelou contra os latifundiários e os comerciantes portugueses. A

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cidade é tida como um espaço de transformação, tanto que separa em dois

tempos (“aprendi a amar”/ “depois”). Essas transformações são vividas e

revividas pelo eu poético, nos versos a seguir:

7 Mas o Recife sem história nem literatura 8 Recife sem mais nada 9 Recife da minha infância

No verso 7, o eu poético se refere ao Recife inocente, como a infância,

sem impregnar-se de história e sentido “pensado”, “racional”, um Recife de

sensações, de primeiras impressões sobre o mundo, de formação. A expressão

— “sem mais nada” — do verso 8 não tem sentido pejorativo, mas está

esvaziada de todo conceito; isso para chegar à essência do que, para o poeta,

foi Recife, o Recife essencial da experiência empírica da criança e a rua das

cidades, das descobertas, das epifanias advindas das experiências sutis:

pessoais, subjetivas. O verso 9 fecha a abertura do poema com a definição

precisa de seu foco. Todos os versos anteriores seguem em negação, uma

afirmação precisa: “Recife da minha infância”. O pronome possessivo minha

particulariza a cidade, sua impressão é filtrada por uma forte subjetividade, e

não se faz “racionalmente”, mas por meio de instantâneos, impressões rápidas,

sempre envolvendo “pessoas” e sua relação com a “cidade”. O provinciano dá

a tônica da pureza da infância, um mundo ainda não tocado por uma

consciência crítica, mas dado pela apreensão dos sentidos.

Esse primeiro momento aproxima a abertura do poema de um prólogo,

semelhante ao processo épico, para anunciar o tema que será desenvolvido.

Após uma série de exclusões, o poeta acaba definindo o foco de seu poema:

trata-se de um olhar amoroso, não do Recife atual, moderno, mas do passado

provinciano. Será, portanto, alvo de seu canto, de sua “saudosa”

celebração/evocação, a cidade da sua infância. Para isso, primeiro

desmistifica-a para, em seguida, particularizá-la com uma série de imagens e

impressões tiradas da memória, de sua experiência “pessoal”, que,

contraditoriamente, singulariza e universaliza a experiência da infância.

Desde a abertura do poema, o eu poético enuncia o objeto de sua

exaltação, sem explicá-lo. A ele, não interessam os fatos históricos contidos

nos livros didáticos, mas o espaço das primeiras aventuras, das experiências

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amorosas, das primeiras frustrações, primeiras descobertas, ou seja, o nada

que é tudo: Recife.

2.º momento memorialístico: exame do Recife

O eu poético segue para o segundo momento, do verso 10 ao 62,

descrevendo com pormenores os instantâneos da vida cotidiana da época da

infância. Esses versos podem ser entendidos como expressão que pressupõe

a reminiscência propriamente dita, invade o eu lírico no momento presente,

como se ele estivesse, pelo fluxo da consciência, caminhando pelas ruas de

sua meninice, palco das inesquecíveis brincadeiras. Ao relembrá-las,

associam-se a elas diversas figuras dessa fase de sua vida: Totônio Rodrigues,

Aninha Viegas, a preta das bananas, os vendedores de rolete de cana e de

amendoim, a rua da União, rua do Sol, o rio Capibaribe, o sertãozinho de

Caxangá e a casa do avô.

Como afirma Octavio Paz (1982), em O Arco e a Lira, a poesia também é

recordação. A partir do silêncio, da palavra em branco, a palavra poética nasce

e se reitera à criação. A fronteira do tempo — passado/presente — se rompe,

porque “o tempo da poesia é o tempo de antes do tempo, o da ‘vida’ anterior,

que reaparece no olhar da criança, o tempo sem datas” (Paz, 1984, p. 67).

Portanto, a enorme incidência do pretérito imperfeito (“brincava”, “botava”,

“tomavam” etc), contida nos versos 10 ao 12, indica ações passadas,

prolongando-se no tempo — efeito da atualização desses momentos alegres:

10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninhas Viegas

Manuel Bandeira (1957, p. 12-13) disserta, em Itinerário de Pasárgada,

sobre as figuras humanas citadas no poema:

Dos seis anos aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com pequenos veraneios nos arredores — Monteiro, Sertãozinho de Caxangá, Boa Viagem, Usina do Cabo — construiu-se a minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos, um Totônio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heróica das personagens dos poemas homéricos.

A partir desse verso, inicia-se uma espécie de crônica da infância, em que

se recorda do espaço, das brincadeiras e das figuras humanas. O discurso

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parece truncado, precisando ser completado, mas encontramos um rol de

impressões rápidas, descrições subjetivas, um rol memorialista:

11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz 12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas

Outra figura que simboliza o passado está marcada com o vocábulo

pincenê — verso 11. Uma certa identificação do eu poético com a velhice. O

verso distende-se como o anterior, sem ponto final, em aberto, mas não é

desconexo, funciona como uma “impressão“, um instantâneo da memória,

como uma fotografia.

O uso dos verbos no passado reforça o tom de

rememoração/reminiscência. No verso 12, novamente há uma crônica, o eu

poético examina um tempo, pontua os comportamentos, os hábitos, as

relações interpessoais:

13 A gente brincava no meio da rua

Esse verso coloquial, devido ao uso da expressão “a gente”, traz consigo

uma ambigüidade, que tanto mira os outros externamente — “a

gente”/“eles”/“as crianças” — como inclui o eu poético no grupo, “a gente”: nós,

“crianças”.

A rápida alternância de ritmo e andamento — versos longos, líricos

(flashes da memória), seguidos de afirmações curtas, deliberadamente

subentendidas —, juntamente com as orações coordenadas, indica a estrutura

fragmentada do poema, o que cria imagens das reminiscências infantis,

desentranhando-se a partir do cotidiano e que aflora na consciência do adulto.

14 Os meninos gritavam: 15 Coelho sai! 16 Não sai!

Nesses versos, a crônica e as brincadeiras infantis são inseridas com

verbos no presente, para introduzir uma celebração e recuperar uma

pluralidade de vozes. A estrutura fragmentada é representada pelas

brincadeiras infantis (“chicote-queimado”), pelas figuras humanas que povoam

o imaginário do poeta (“Aninha Viegas”, “Totônio Rodrigues”) e pelas situações

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comuns da vida cotidiana, “cadeiras nas calçadas”, “mexericos”, “namoros”,

“risadas”.

17 A distância as vozes macias das meninas politonavam: 18 Roseira dá-me uma rosa 19 Craveiro dá-me um botão

A crônica ganha dimensões variadas, como se observa no verso 17. O

verbo politonar cria estranhamento, porque registra em léxico-padrão a idéia de

canto em vários tons. Em “vozes macias”, há a ocorrência da sinestesia, macia

é uma impressão tátil e não sonora. Os versos 18 e 19 inserem a cantiga

infantil, que hoje é considerada folclórica. Os versos 20 e 21:

20 (Dessas rosas muita rosa 21 Terá morrido em botão...)

postos entre parênteses e com uso de reticências, surgem como inserção de

um comentário do “homem já adulto”. O futuro reforça o comentário

endereçado ao “leitor”. A partir do comentário, a cantiga infantil ganha novo

significado. A rosa em botão são meninas que não envelheceram, que

morreram jovens, ou seja, diferentes do “eu poético”, que envelheceu, e

recorda o passado.

Uma característica temática importante são os pormenores históricos e

geográficos, que, arrolados, referem não só ao sujeito lírico, mas também ao

que o abrange. As personagens e os acontecimentos da cidade têm como

núcleo a vida do eu menino, mas possuem amplidão social, pois acabam

refletindo a própria vida na então província:

22 De repente 23 nos longes da noite 24 um sino

Os três versos acima, que poderíamos contar como um, porque

espacialmente fragmentados, mas conectados pela lógica textual, reconduzem

o discurso do eu poético para o passado, fazem com que retorne às

impressões da infância. Quebram igualmente a possível monotonia do

discurso, introduzindo um fragmento prosaico, ou melhor, inserem uma

narração breve, uma “cena” com direito ao discurso direto.

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O jogo tipográfico desses mesmos versos remete-nos à poesia

concretista. O efeito de ruptura e retomada de atmosfera é alcançado por esse

jogo, ao dispor as palavras de modo a aproveitar o espaço em branco da

página. Esse aspecto acentua o fato de Bandeira ter sido um dos poucos

modernistas a apoiar a experiência dos poetas concretistas, na década de

1950.

O eu poético, nos versos 22, 23 e 24, chama a atenção do leitor para os

ecos do som do sino, espacialmente localizado no alto, como que ecoando pela

noite — memória. De maneira geral, os dois planos se fundem: o objetivo —

ligado à própria cidade — e o subjetivo — ligado às recordações de infância do

sujeito lírico. Da intersecção entre esses dois planos, surge o poético ou a

objetivação da reminiscência.

Uma “pessoa grande” reforça o coloquialismo do verso e também a idéia

de “visão infantil”, que chama o adulto/mais velho de “pessoa grande”:

25 Uma pessoa grande dizia: 26 Fogo em Santo Antônio! 27 Outra contrariava: São José! 28 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.

Novo comentário subjetivo reitera a importância de Totônio Rodrigues na

visão do menino. A importância dessa observação ficou registrada no Itinerário

de Pasárgada (1957, p. 87):

Na “Evocação” já havia mencionado o nome de Totônio Rodrigues, que “era muito velho e botava o pince-nez na ponta do nariz”. Esse Totônio era sobrinho de meu avô e me parecia muitíssimo mais velho do que ele. Não sei se foi isso ou a maneira de usar o pince-nez, ou o jeito de falar que o marcou tão profundamente na minha memória.

O eu poético segue o fluxo da memória. No verso 29, a presença de um

assíndeto aponta para a falta de conexão entre as frases, materializando o

fluxo da memória. No verso 30, surge o eu individualizado, confirmando sua

posição de menino, e a frustração de não poder gozar da liberdade completa

dos adultos.

O mundo da infância, evocado por esse incessante fluir da memória, fica

num plano intemporal, fora dos limites humanos e cronológicos, numa

dimensão interior e subjetiva, própria da fantasia poética. O uso do imperfeito,

em verbos com “brincava”, “ficava”, “passava” e outros, contribui para essa

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penetração do passado no presente, permitindo que o poeta reviva, no plano

da interioridade, o que não pode no plano da experiência concreta. Cria uma

espécie de crônica, mirando uma infância precisa, até passível de ser

determinada:

29 Os homens punham o chapéu saíam fumando 30 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

3.o momento memorialístico: impressões pessoais mais patentes

Não foram somente pessoas que ficaram marcadas na memória do eu

poético, mas também nomes de rua de enorme expressividade, que aqui no

poema, do verso 31 ao 38, estão freqüentemente associados a momentos de

sutil felicidade:

31 Rua da União...

A rua da União é citada pela segunda vez, agora enfaticamente, graças

às reticências, que assumem o sentido de saudosismo, pois se dissolve como

um suspiro. A rua da “União” parece materializar a própria infância:

32 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância

Da crônica para a impressão pessoal, o comentário passa a revelar o

amor pelas palavras, nomear o mundo e as pessoas, trazendo-as de volta.

Perder/mudar o nome é assumir a passagem, perder o passado:

33 Rua do Sol 34 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)

Os nomes das ruas “União”, “Sol”, ”Saudade”, “Aurora” reforçam a idéia

de valores humanos e apontam para o princípio das coisas essenciais, não

contaminadas pela “história” e por isso puras, essenciais: “sol”, “aurora”. No

verso 34, o uso dos parênteses para um comentário pontual marca uma

impressão do presente, reforçado pelo “que foi”, já uma consciência crítica

sobre os eventos do passado. Os parênteses refletem a fala do homem adulto,

que revela seu distanciamento da cidade do Recife, pois já não sabe como

está, só a “geografia” reside na memória:

35 Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...

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36 ...onde se ia fumar escondido 37 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... 38 ...onde se ia pescar escondido

Os versos anteriores são paralelísticos, pois seguem a mesma estrutura

sintática e podem ser “atados” aos versos que se fecham junto aos que se

abrem em reticências. O uso espacial da página determina o cadenciamento

mais pausado na leitura, a repetição reforça a noção de mundo “harmônico”,

pacífico, constante. As transgressões “fumar escondido”/“pescar escondido”

reforçam também a noção de permeio entre a ordem e a liberdade. Por usar

formas impessoais, o eu poético mostra que não há censura na transgressão,

elas são vistas como naturais, como “libertinagem”, no sentido de liberdade

ativa, para a descoberta do mundo.

Esses procedimentos poéticos despertam no leitor a impressão de

anormalidade, o que causa estranheza e lembra uma característica crônica dos

poetas modernos: a não-assimilabilidade. Os fenômenos da lírica

contemporânea, segundo Friedrich (1991, p. 18), devem ser qualificados de

anormais. Entende-se que “ ‘anormal’ não é um juízo de valor e não significa

‘degenerado’ ”.

A normalidade da lírica moderna se faz necessária, no caso deste poema,

para que as situações comuns da vida cotidiana — como os mexericos, os

namoros, as risadas, o comércio ambulante, os pregões, as comemorações

das festas típicas — possam constituir um exemplo de vida autêntica, cheia de

calor humano, de atitudes descontraídas e espontâneas, de gestos simples e

provincianos, opostos ao tempo presente, repleto de rigor, de subserviência às

convenções. A verdadeira função cardinal da poesia é, para Paz (1984, p. 75),

“nos mostrar o outro lado das coisas, o maravilhoso cotidiano: não a

irrealidade, mas a prodigiosa realidade do mundo”.

Nesse contexto, a alternância vocálica presente marca outra lembrança:

39 Capiberibe 40 — Capibaribe

No plano musical, corresponde a uma dissonância: “[...] Capiberibe, a

primeira vez com e, a segunda com a, me dava a impressão de um acidente,

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como se a palavra fosse uma frase melódica dita na segunda vez com bemol

na terceira nota” (Bandeira, 1964, p. 64).

A memória muda os nomes, o primeiro está incorreto, o segundo reafirma

a palavra (“travessão indica a fala”), quando o eu poético se corrige. As duas

formas de grafar o nome do rio devem-se, também, a um incidente de aula,

quando o poeta era aluno de José Veríssimo, professor de geografia no

Ginásio Nacional. Bandeira (1967, p. 64) declara:

José Veríssimo. Ótimo professor [...] sempre nos ensinava em cima do mapa e de vara em punho. Certo dia perguntou à classe: “Qual é o maior rio de Pernambuco?”. Não quis eu que ninguém se me antecipasse na resposta e gritei imediatamente do fundo da sala: “Capibaribe”! Capibaribe com a, como sempre tinha ouvido dizer no Recife. Fiquei perplexo quando Veríssimo comentou, para grande divertimento da turma: “Bem se vê que o senhor é um pernambucano!” (pronunciou “pernambucano” abrindo bem o e) e corrigiu: “Capiberibe”. Meti a viola no saco, mas na “Evocação” me desforrei do professor...

Outra vez está presente a idéia de poema próximo da fala, pela repetição:

41 Lá longe o sertãozinho de Caxangá

A expressão “Lá longe” é prosaica, coloquial, imprecisa, e nos abre a

visão para o espaço do “sertãozinho” (observa-se o uso diminutivo não como a

demarcar proporção, e sim afetividade, outro uso comum do português “falado

no Brasil”).

No verso seguinte, o eu poético retoma, outra vez, um dado geográfico, e

uma relação do “homem” com esse meio:

42 Banheiros de palha

A palha serve ao menino como banheiro, ou seja, ele é livre (libertinagem)

no espaço que habita. A infância é, portanto, espaço privilegiado para

liberdade/libertinagem.

Entre as reminiscências da infância estão as brincadeiras, as cantigas de

roda, as molecagens, sobretudo a sensação da primeira experiência erótica, a

visão da mulher nua no banho:

43 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho 44 Fiquei parado o coração batendo 45 Ela se riu 46 Foi o meu primeiro alumbramento...

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Inserem-se quatro versos que, a exemplo do fogo anunciado (verso 26),

trazem igualmente um fragmento de narrativa. A abertura “um dia” é

particularmente prosaica e infantil; a visão da moça “nuinha” (novamente o

diminutivo usado como adjunto de intensidade, “muito, completamente nua”);

notam-se a ausência de conectivo no segundo verso (assíndeto) e a sintaxe

incomum de “Ela se riu,” próxima da fala. O termo alumbramento indica a

epifania, a descoberta do desejo, o prenúncio do crescimento e do fim da

infância. Fica ao canto da página, para singularizar, graficamente, a própria

ruptura com a ordem do texto poético.

Na expressão “vi uma moça nuinha no banho”, o eu poético iconiza o

desmascaramento de todo tipo de preconceito — que não deve haver na

inocência da experiência infantil —, ao revelar sua paixão pelos momentos de

verdadeira união com o outro. Depois desse alumbramento — “eu vi” —, vem a

concretização do contato físico, no verso 51 — “eu me deitei no colo da

menina”, mais concreto e denso. O eu poético reconstrói um “diagrama,

materializando a própria dispersão da memória, a desordem e a liberdade das

sensações” (Albuquerque, apud Silva Lino e Silva, 2004, p. 154).

Se a imaginação é a força dinâmica pela qual o homem consegue

imaginar mundos e dar sentido à vida por meio de imagens, a poesia é o vetor

de operacionalização dos instantes vividos, das transmutações da linguagem,

da valorização dos sentimentos e das coisas mais simples. É por intermédio da

imaginação e da concretização da poesia que o ser humano consegue dar

forma às coisas mais tênues, evanescentes, e auto-afirmar-se. Sendo assim, a

poesia é transcendência, contemplação, força que edifica e revigora o homem

ante às vicissitudes da vida. Ou, como afirma Paz (1984, p. 67), “a imaginação

não está no homem, ela é o espírito do lugar e do momento; não é apenas a

potência pela qual vemos a realidade visível e a oculta: é também o meio

através do qual a natureza nos fala e fala consigo mesma”.

Essa materialização desordenada da memória só foi possível com a

abolição das regras tradicionais, praticadas pela poesia clássica. A palavra

ganhou uma liberdade que proporcionou ao poeta mil relações incertas e

possíveis, um verdadeiro projeto vertical, no qual mergulhou “num total de

sentidos, de reflexos e remanências” (Barthes, 1971, p. 61).

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4.o momento memorialístico: em tom de crônica, o poeta mira o Brasil

Em vários momentos do poema, as imagens ganham expressões, como

nos versos 47 e 48:

47 Cheia! As Cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu 48 E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas

de bananeiras

O verso fragmentado (verso 47) retoma o “flash” rápido das impressões,

dadas de modo fragmentário mas que, no encadeamento, produzem sentido. A

palavra rio (cheia do rio) está subentendida, e as exclamações reforçam a idéia

de impressão viva, surpreendente, de evento extraordinário, seguido de cinco

substantivos, um adjetivo e um verbo, esse último posto sem sujeito no final do

verso. Sem vírgulas (conectivos), a seqüência de palavras provoca uma noção

de desordem, e o significado das cheias “do rio” se sobrepõe e se “mistura” a

diversos elementos: boi, árvores, destroços.

Uma seqüência de palavras baseia-se na associação livre de idéias,

aparentemente sem nenhuma causalidade lógica. Essa sucessão de palavras,

sem vírgulas, sugere imagens velozes das coisas arrastadas pela cheia,

tornando possível a visualização da cena pelo leitor. Imagens diferentes

arregimentam-se rapidamente umas às outras, condensando várias imagens

em tão pouco tempo. A função referencial é quase sempre deslocada em

benefício da função poética, na qual a referência é uma outra realidade,

cunhada e lapidada pelos caprichos transgressores da cultura.

Dentre os muitos nomes que teve essa nova linguagem, até mesmo por

ser descritiva, destaca-se o simultaneísmo, poética originária do cubismo e do

futurismo. Segundo Paz (1984, p. 157), é um método de composição em que

“há um centro secreto, um eixo de atração e repulsão, em torno do qual giram

as estrofes e imagens”. Sendo assim, para o crítico (1984, p. 159), “o poema se

reduz a uma série de blocos verbais sem nexos sintáticos, unidos uns aos

outros pela lei da atração da imagem”.

Dentro da fúria da natureza — verso 48 —, o eu poético contempla a

intervenção do homem (“ponte do trem de ferro”) e surpreende novamente o

homem brasileiro (“caboclos destemidos em jangadas de bananeiras”), o

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homem comum e o extraordinário. A poética moderna obedece a uma

organização analógica, na qual as palavras se relacionam por similaridade.

O objetivo primeiro do poeta é introduzir no sintagma o princípio de

similaridade do paradigma. Segundo o crítico russo Jakobson (1983, p. 130), a

poesia se caracteriza pela inserção do princípio de similaridade do paradigma

no corpo do sintagma, ou seja, “ao projetar o princípio da equivalência do eixo

de seleção sobre o eixo da combinação”. A linguagem poética faz com que

todos os elementos de uma seqüência ajam por recorrência aos mesmos

princípios paradigmáticos, que não evoluem senão quando suavemente

combinados ou interrompidos pelo corte abrupto. O estranhamento, próprio da

linguagem poética, acontece toda vez que se insere, no mesmo espaço

funcional do sintagma, algum elemento de similaridade. A linguagem poética

aspira ao estabelecimento de relações de similaridade que são reações

paranomásticas, e as busca o tempo todo.

Nos versos seguintes, o eu poético traz memorialisticamente os fatos

culturais do estado de Pernambuco para, em seguida, centrar-se no espaço

das entrelinhas, a liberdade das sensações:

49 Novenas 50 Cavalhadas 51 Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus

cabelos

No verso 49, a manifestação da fé cristã está presente nas novenas; no

verso 50, as comemorações típicas, como as Cavalhadas, comuns nessas

regiões, também aparecem; e no verso 51, a retomada gradual da descoberta

da afetividade e do desejo.

O refrão memorialístico dos versos é retomado:

52 Capiberibe 53 ─ Capibaribe

Apresentam-se como correção e rememoração, por meio da evocação do

tempo e do fluxo do rio.

54 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas 55 Com o xale vistoso de pano da Costa

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Nesses versos, o eu poético mapeia o que é específico no país, as frutas,

“as negras”, vendedoras de doces, vestidas ainda como escravas — “pano da

Costa”.

56 E o vendedor de roletes de cana 57 O de amendoim 58 que se chamava midubim e não era torrado era cozido

Crônicas e comidas típicas do Brasil são trazidas nesses versos,

marcando que uma nação se define também pelos seus hábitos e costumes

alimentares.

59 Me lembro de todos os pregões: 60 Ovos frescos e baratos 61 Dez ovos por uma pataca 62 Foi há muito tempo...

Os pregões parecem prenunciar o prazer dos versos do menino; a palavra

pataca reporta a um tempo em que a moeda brasileira tinha esse nome,

tempos de velhice como nos tempos de Totônio Rodrigues. No verso 62, as

imagens de felicidade fazem vibrar uma profunda melancolia.

Se retomarmos a idéia de Paz (1984, p. 160), veremos que

a imagem ocupa, dentro da economia do poema, o antigo lugar que tinham tido o ritmo e a analogia. Ou mais exatamente: a imagem é a essência da analogia e do ritmo, a forma mais perfeita e sintética da correspondência universal. No sistema solar que é cada poema, a imagem é o sol.

Ou seja, imagem como a verdadeira realidade espiritual autônoma. Há uma

desautomatização da linguagem por meio da imagem. O espaço poético (do

poema) é o lugar onde a linguagem se desarticula e se faz imagem.

5.o momento memorialístico: consciência do homem em relação à poesia

Nos versos 63 a 71, a linguagem remete ao sentido de brasilidade

marcado nas palavras e expressões “a gente”, “nuinha”, “midubim”, “me

lembro”; no registro da fala em “coelho sai/não sai!”; no pregão em “ovos

frescos e baratos/ dez ovos por uma pataca”. Essa linguagem autenticamente

brasileira (“língua certa do povo”) opõe-se à linguagem acadêmica, de natureza

retórica e artificial, que não expressa os nossos valores e que insiste em

“macaquear”:

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63 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros 64 Vinha da boca do povo na língua errada do povo 65 Língua certa do povo 66 Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

No verso 63, o eu poético reporta-se à vida que não sofria mediação, mas

que era vivida, vivenciada. Não se sujeita às normas e às interferências

externas. As palavras não seguiam regras e a vida não era normatizada, como

aparece em livros e jornais.

No verso 64, há a quebra do poema saudoso-memoralista, infantil. A voz

do eu poético revela uma postura crítica em relação ao país, atrelada à

linguagem e casada ao “povo”, ao homem comum, não subordinado a

“estéticas cerradas”, dogmas do bom gosto de jornais “da capital” e livros de

“versificação”. A fala do povo é reflexo de um jeito “singular” de viver, não mais

tributário da “Europa”. O Brasil como uma outra coisa. Não há antítese com a

língua errada do povo, pois há a reafirmação, por parte do poeta, de que é a

“língua certa do povo”. No verso seguinte (65), reafirma-se a separação entre o

“português” lusitano e o “português do Brasil”, com outra sinestesia: “fala

gostoso”, ou seja, com prazer, com naturalidade, sem imitar a sintaxe que, pela

passagem do tempo, se afastou daquela dos antigos colonizadores. Em

seguida, volta-se para o povo brasileiro, e para o poeta:

67 Ao passo que nós 68 O que fazemos 69 É macaquear 70 A sintaxe lusíada

No verso 67, o pronome pessoal nós refere-se ao “poeta brasileiro”, grupo

ao qual o eu poético pertence. Sua visão é crítica, pois já se rebela contra o

“macaquear” (imitar como um macaco) externo, o que o afastou da forma de

expressão brasileira (“A sintaxe lusíada” — de Os lusíadas, de Camões,

portanto, sintaxe portuguesa). Os quatro versos curtos destacam-se

graficamente, mobilizando a atenção do leitor. O eu poético constata, em tom

caçoísta, a submissão brasileira ao português gramaticado em Lisboa. No meio

dos versos livres, inicia uma dança repentina e organizada que, aos poucos, se

torna um verdadeiro refrão coreográfico e coral, que o leva diretamente ao

aspecto mais característico do ser brasileiro: o idioma que se fala no Brasil.

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Assim, demonstra metaforicamente a posição brasileira numa época

tumultuada da formação cultural e nacional.

71 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem 72 Terras que não sabia onde ficava

A inocência (a ignorância da ordem do mundo) e a liberdade de ser, agir,

pensar — verso 71 — são valores que o eu poético reconhece terem sido

dados na infância, valores que almeja recuperar. Ele o faz na abertura do

poema, quando recupera os valores mediados pela cultura formal (história,

literatura, universo intelectual). Pela infância, o poeta deseja se aproximar do

que é essencial: do universo dos afetos, do real e das pessoas que habitam

esse universo (o povo brasileiro).

No verso 72, o eu poético reforça a noção de que o exterior pouco

contribuiu, suas raízes estão no Recife, as “coisas” realmente formadoras e

importantes estão sintetizadas lá na rua da União, na casa do avô e na figura

do avô. À cidade pública (Recife) se juntam a particular, a vida privada e as

figuras humanas.

6.o momento memorialístico: lamento e reflexão sobre a passagem do tempo

Na parte final do poema, revela-se a consciência da distância (“Foi há

muito tempo...”) desse passado em relação ao presente vivido. Não só da

distância, mas também da finitude da vida. O mundo da infância desaparece,

desfaz-se a ilusão de perenidade da vida e a ligação com a morte se torna

profunda. Com melancolia e tristeza, o eu poético retrata a passagem de todos

e as imagens da distância entre o passado e o presente:

73 Recife... 74 Rua da União... 75 A casa do meu avô... 76 Nunca pensei que ela acabasse! 77 Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Do verso 73 ao 75, o eu poético fecha seu foco na geografia pelo uso das

reticências: a cidade, a rua, a casa. Em seguida, introduz um comentário

pessoal, enfático em sua exclamação, e reforça a idéia de passagem. O

espaço do poema torna-se mais melancólico. O poeta percebe-se necessitado

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de valores mais consistentes, eternos. Mas toma consciência da passagem do

tempo, que não convém negar, mas impregnar-se nele, para extrair o

essencial: a visão do menino, que vê o mais prosaico do mundo com olhos

novos, olhos de “alumbramento” diante do cotidiano e do começinho da vida.

78 Recife... 79 Meu avô morto. 80 Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

A morte do avô, a perda do “Recife” da infância, da “Rua da União” e a

própria “casa do avô” (“Nunca pensei que ela acabasse!”) impõem ao eu

poético o presente transformado, não mais lúdico, não mais aberto aos

“alumbramentos”. Gera o choque que reaviva a reminiscência, mas que

também conduz à consciência da passagem do tempo, à consciência da

efemeridade da vida (“Tudo lá parecia impregnado de eternidade”), o que gera

o sentimento de grande melancolia com que o poema é encarado, melancolia

que se opõe à alegria da infância.

O crítico Alexandre Magnus Abrantes de Albuquerque (apud Silva Lino e

Silva, 2004, p. 158), ao término de sua análise desse mesmo poema, declara:

A vida do poeta absorve as sensações eternizadas no coração do menino, não deixando de receber humildemente a morte. A perda maior, inerente ao processo da existência humana, e que tão logo rondará a vida que poderia ter sido e não foi, é imantada na imagem do avô morto. E o Recife do poeta passa a fluir na consciência junto à paragem definitiva do avô, imobilizando, com a mesma força estética, a casa que foi cenário de um caleidoscópio de sentimentos e ações.

O Recife morto é o Recife da infância, o Recife do seu passado. Seu

maior valor, que o torna singular, é ser brasileiro, como mostrou ao longo do

poema nos diversos modos de viver, agir, alimentar-se. Inserido nessa casa,

deseja ressaltar esse Brasil autêntico, expresso na fala e no modo de ser do

povo. Memória e realidade encontram-se para o último abraço, eternizado na

poesia.

Por intermédio da imagem poética, “cria uma percepção particular do

objeto, cria uma visão” (Chklovski, 1971, p. 50), na qual a arte é um

“procedimento” que liberta o objeto do “automatismo perceptivo”. O todo do

poema desloca as imagens do seu meio habitual e propõe ao leitor uma nova

maneira de ver o objeto artisticamente, causando estranhamento. É a poesia

que “nos protege contra a automatização, contra a ferrugem que ameaça a

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nossa fórmula do amor e do ódio, da revolta e da reconciliação, da fé e da

negação” (Jakobson, 1978, p. 177).

Toda uma cartografia poética da territorialidade infantil está expressa

nesse poema. A evocação como um recurso memorialístico e a construção

poética baseada no uso do pretérito imperfeito, no monólogo interior, na

alternância de ritmo e andamento, na estrutura coordenativa criam a imagem

básica do retorno: por intermédio da vida aberta pela reminiscência, aceder aos

“núcleos” da infância, à “idade de ouro”.

Nesse “humilde cotidiano”, o poeta reencontra o mundo de sua infância,

podendo recordar e revivê-la, com um tom confessional que descreve a

geografia do Recife, especificamente, a rua do Curvelo, experiência que definiu

sua meninice na rua da União, no Recife:

Quanto ao morro do Curvelo, o meu apartamento, o andar mais alto de um velho casarão em ruína, era pelo lado dos fundos, posto de observação da pobreza mais dura e mais valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada sem lei nem rei que infestava as minhas janelas, quebrando-lhes às vezes as vidraças, mas restituindo-me de certo modo o meu clima de meninice na rua da União em Pernambuco. Não sei se exagero dizendo que foi na rua do Curvelo que reaprendi os caminhos da infância, [Bandeira, 1985, p. 75]

O retorno à infância não é um recuo cronológico, mas subjetivo. O adulto

vai rememorar a experiência infantil no momento de sua criação, no instante do

“alumbramento” artístico, o que equivale a tentar presentificar a emoção de

outrora. Nesse instante, raro e singular, o adulto vê o mundo com o olhar da

criança, sente-o como uma fonte de novidades. Em outras palavras, é a

irrupção do menino no adulto.

O resgate dos acontecimentos e das figuras do passado é um motivo

recorrente nos poemas bandeirianos. A imagem da infância, lembrança do

tempo de outrora, vem acompanhada de uma intensa afetividade e aparece

transfigurada pelo trabalho poético, no presente.

Bandeira transforma sua vivência — passado e presente — assim como o

meio circundante em momentos etéreos. Oferece ao leitor imagens ilimitadas

desse seu meio, numa multiplicidade de olhares e experiências que

desautomatiza o corriqueiro, tornando-o objeto poético por um processo de

materialização que transforma o próprio ser dito no dito.

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O discurso lógico, no ato de nomear, distancia-se das coisas do mundo.

Diferente desse, o poeta “quer o objeto, quer uma linguagem para entrar em

fusão com as coisas. A poesia constitui a linguagem do encontro, como se

dizer fosse o próprio ser, o objeto tocado pelo poema” (Segolin, em aula,

16 fev. 2005).

O papel do poema, então, seria traduzir o cotidiano numa linguagem

metaforizada, o que leva o leitor a descobrir um mundo de significações jamais

visto, graças à força materializadora da linguagem poética. Vale citar a

definição que Octavio Paz (1984, p. 144) dá ao tempo do poema:

O momento do poema é a dissolução de todos os momentos; não obstante, o momento eterno do poema é este momento: um tempo único, irrepetível, histórico. O poema não é um ato puro, é uma contingência, uma violação do absoluto.

3.2 O cotidiano social: linguagem jornalística em “Poema tirado de uma notícia de jornal”

Poesia se faz com palavras e não com idéias. O escritor, homem livre que se dirige a homens livres, só pode ter um tema: a liberdade.

Mallarmé

Nos poemas de Libertinagem, Bandeira apresenta uma versatilidade

poética que se liga à variedade de formas utilizadas, como o prosaísmo

presente em poemas que recuperam a vida cotidiana. Em linguagem simples,

de cunho popular, o autor mantém vivo o lirismo, a musicalidade, a singeleza, o

intimismo.

Entre os muitos poemas líricos, escreveu também aqueles que abordam o

social. “Poema tirado de uma notícia de jornal” é um deles, e foi publicado pela

primeira vez no jornal carioca A Noite (1925), como parte de uma crônica da

vida brasileira. O eu poético transforma uma notícia retirada do cotidiano

jornalístico (que relata a história trágica de um homem de classe humilde) e

converte-a em poema em prosa.

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A expressão “poema em prosa” designa uma forma poemática que

prescinde dos versos e acolhe elementos narrativos. No plano formal, rompe os

limites estabelecidos entre a prosa e a poesia, na medida em que incorpora,

em sua estrutura, o caráter discursivo e linear da prosa.

Atualmente, definir o que é poesia é quase impossível. Diferente do

classicismo ou do romantismo, quando os temas poéticos eram limitados pelas

exigências tradicionais — tais como “noite”, “estrelas”, “lua”, “flores” etc —, na

modernidade os poetas buscam “inspiração poética” no mundo que os rodeia.

Tomam as coisas desse mundo como elemento passível de poeticidade,

independente de seu encanto ou feiúra. Para Jakobson (1978, p. 168), nada

mais está fora do domínio da poesia: “Não há natureza-morta ou ato, paisagem

ou pensamento, que esteja atualmente fora do domínio da poesia. Por

conseguinte, a questão do tema poético perdeu hoje a sua razão de ser”.

Desse modo, definir o conjunto de procedimentos poéticos é algo que

ultrapassa as possibilidades mentais, pois não conseguiríamos descortinar os

limites da poesia. Procedimentos que foram usados em épocas anteriores —

aliterações, assonâncias, paralelismos — são facilmente encontrados nos

poemas de hoje, e são ainda mais usados na linguagem falada cotidiana. Ainda

declara Jakobson (1978, p. 173):

Toda expressão verbal estiliza e transforma, num certo sentido, o acontecimento que descreve. A orientação é dada pela tendência, pelo patos, pelo destinatário, pela “censura” prévia, pela reserva de estereótipos.

A incorporação do caráter discursivo na estrutura poética só foi possível

com a introdução do verso livre na poesia moderna, que possibilitou a mistura

dos gêneros, com suas métricas “variáveis”, como explica Tinianov(1975,

p. 38):

[...] o ritmo do verso é dado pela combinação entre as palavras, por meio dos sons (fonemas), que saem delas, as quais se tornam o próprio objeto materializado. É a partir desse agrupamento de palavras no sistema que podemos encontrar, não um discurso mecanizado, mas dinamizado, onde as palavras adquirem autonomia para se transformar no próprio objeto mencionado, e criar um ritmo livre, liberto das amarras da métrica tradicional.

Antes da análise, a transcrição do poema:

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1 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.

2 Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro 3 Bebeu 4 Cantou 5 Dançou 6 Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Para melhor entendermos o processo de construção desse poema, a

análise foi estruturada em duas subseções: na transgressão estilística, os

procedimentos usados na passagem do prosaico ao poético; na transgressão

temática, a partir do título do poema, a relação com o jornal e como o eu

poético transforma uma notícia de jornal em poesia.

Nesse poema, o cotidiano social assume, perante a sociedade, uma

funcionalidade indefinida, por apresentar um objeto estranho ao contexto

literário. Rompendo com os padrões da estética tradicional, o leitor está diante

de um texto que reflete o mistério da existência humana.

3.2.1 Transgressão estilística: do prosaico ao poético

No plano da forma composicional, três recursos poéticos marcam a prosa

poética: a distribuição do texto em seis versos, a não-pontuação e,

principalmente, a sugestiva combinação de versos longos com versos curtos,

levando a uma mobilidade rítmica que imita o clima de orgia em que se envolve

a figura de João Gostoso.

Aparentemente, há pouco trabalho na conversão da notícia em poesia. Os

versos, pelo menos o primeiro e o segundo, conservam a ênfase referencial (a

narração do acontecimento) e apresentam-se ainda prosaicos:

1 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.

2 Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Depois da descrição da personagem “João Gostoso”, no primeiro verso, o

segundo principia com o adjunto adverbial “Uma noite”, para introduzir, como

nas narrativas tradicionais, a fórmula “Era uma vez”, marcando o início da

narração.

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Poema curto, a composição mantém uma estrutura correspondente à

narrativa, com início (descida de João Gostoso do morro), ação (quando João

Gostoso entra no bar) e morte (queda de João Gostoso nas águas da lagoa

Rodrigo de Freitas). A personagem vive um trágico destino, contado pelo

narrador-observador que emprega os verbos no pretérito perfeito a partir do

segundo verso do poema; portanto, ações pretéritas, definitivas, pelo uso do

imperativo. Os versos, aparentemente “soltos”, fixam ações corriqueiras da

personagem João Gostoso em um determinado tempo.

3 Bebeu 4 Cantou 5 Dançou

Nesses versos, as ações já concluídas em pequenos cortes em close

aparecem como fotogramas. Construção semântica visual não apenas da

notícia de jornal, mas de um fato esculpido. Há um jogo melódico de

movimento entre os versos iniciais longuíssimos e os seguintes, curtíssimos,

que terminam no verso seguinte, com a dança de morte de João Gostoso.

É a partir do romantismo que se inicia a tendência para a irregularidade

métrica, a qual se estende no modernismo e na época contemporânea.

Segundo Paz (1984, p. 125), “o modernismo chega a ser moderno quando tem

consciência de sua mortalidade, isto é, quando não se leva a sério, injeta uma

dose de prosa no verso e faz poesia com a crítica da poesia”.

3.2.2 Transgressão temática: a tragédia brasileira

O longo título do poema contrasta com a forma condensada do texto: o eu

poético chama a atenção do leitor pela analogia que estabelece com o jornal,

sugerindo uma transformação do texto referencial em texto poético. Ao

empregar o particípio passado do verbo tirar, que significa fazer sair de algum

ponto ou lugar, o eu poético recria poeticamente a vida simples de um

brasileiro: João Gostoso.

Notícia de jornal tem como finalidade focalizar ocorrências pontuais,

efêmeras como a morte de um simples “carregador de feira livre”, mas esse

fato transforma-se em “poema”. A elaboração estética ressalta e aprofunda o

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cotidiano, imortalizando-o. Esse ato inovador do trabalho de inversão foi tido

por Arrigucci (1991, p. 102) como um

choque da novidade, tão característico do jornal, vem materializado, assim, na própria linguagem com que se anuncia de forma insólita o poema. É o que se vê, sobretudo, pelo emprego de um particípio como “tirado”, corriqueiro e tão próximo da materialidade banal do ato que exprime, que soa como um golpe baixo em toda expectativa de elevada inspiração poética.

No verso inicial — o mais longo do poema — se flagra um plano

descritivo, pois apresenta a personagem pelos adjetivos: “Gostoso”,

“carregador”. São ecos semânticos que pontualmente vão modelando a

personagem:

1 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.

O verso abre com o prenome e a alcunha do protagonista, sua atividade

profissional, definindo-o no espaço e no tempo em que vivia. “Gostoso” é um

uso coloquial brasileiro, que sugere tanto um sujeito leviano, sedutor, malandro,

como alguém que se julga superior. No poema, essa alcunha logo propõe certa

comicidade abandonada no modo como João age.

O nome da personagem sugere anulação, rompida pelo apelido que

particulariza sua curta “biografia”. Proveniente das camadas populares, João

Gostoso tem uma profissão e endereço, mas sua vida insignificante resume-se

a uma única linha do poema.

A geografia da cidade, marcada pelos nomes dos lugares — “morro da

Babilônia”, “bar Vinte de Novembro”, “Lagoa Rodrigo de Freitas” —, impõe-se

sobre a existência do sujeito, seu isolamento e, principalmente, sua solidão,

reforçando sua insignificância dentro da cidade do Rio de Janeiro. Essa solidão

apresenta-se na indicação do “barracão sem número”. A ausência de um lugar

preciso reforça a idéia de vida vazia, insignificante, de alguém totalmente à

margem da assistência do poder público; ironicamente contrasta com o bar

cujo nome é um número (Vinte de Novembro) e com a lagoa onde a

personagem morre afogada, que possui nome e sobrenome: Rodrigo de

Freitas.

Nesse jogo de nomes, apelidos, exclusões, o eu poético parece reforçar a

“insignificância” do personagem em que se centra a notícia, e ao percorrer as

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ações desempenhadas no curso da noite derradeira, em que perambula pela

cidade, bêbado e solitário, parece solidarizar-se com ele e com seu próprio

entorpecimento na cidade.

João Gostoso, a personagem anônima do barracão sem número, bebe,

dança, canta e suicida-se na lagoa que embeleza a paisagem. Assim como

Macabéa, de Clarice Lispector, João Gostoso é o herói anônimo que sucumbe

à voracidade da cidade grande. Para o autor, não são necessárias muitas

palavras, metros ou rimas para compor uma tragédia; os fatos bastam por si

só. É um poema modernista em sua primeira fase: análise crítica da realidade

brasileira expressa por uma linguagem coloquial, sucinta, em que se restringem

os fatos, como em uma notícia de jornal.

Para Arrigucci (1990, p. 111), esse processo de caracterização vem

marcado por uma

ambigüidade contraditória: os traços singularizadores e localistas que determinam o malandro carioca em seu espaço característico são ao mesmo tempo fatores de indeterminação genérica e abstratizante do tipo social, não deixando espaço para a diversidade individual.

O eu poético desautomatiza nossa forma de olhar as coisas corriqueiras

que perderam sentido na vida. Retirando a notícia do contexto jornalístico, ele a

transforma em um diagrama, ícone da queda ou do movimento da vida em

direção à morte. Não fala simplesmente de alguém que se embriagou e

morreu, mas de uma personagem que vive no morro e, repentinamente, desce

para encontrar-se com a morte.

O fato não é contado como uma notícia de jornal, mas em uma forma que

compõe um diagrama visual, perceptível no espaço da página, na escolha

vocabular, nos cortes das frases longas (versos) e, em outros momentos,

apenas nos verbos de ação. Com esses cortes, o eu poético constrói um ato a

cada movimento dessa queda. E nessa descensão define o caminhar para a

morte. Esse movimento não é apenas dito no poema, mas desenhado pela

forma de composição arquitetural, usada na página de modo que o leitor possa

experimentar esse caminhar gradativo, visível na tela da página em branco,

transformada em curiosa tela cinematográfica.

Os elementos rítmicos são importantes para a construção do poema

como instância inaugural. Bem como para Octavio Paz, o poema se configura

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sob um encadeamento rítmico, sonoro. O som acompanha um sentido. A

sonoridade, o ritmo das palavras provocam-nos afeição diferente, de acordo

com o que venham a designar. As palavras, além de carregarem em si seu

silêncio, seu vir-a-ser, levam consigo a sonoridade que as define. Na

compreensão do poético, segundo a concepção de Paz, Bandeira coloca o

ritmo e a analogia como “faces da mesma moeda”. Isso pode ser notado

quando o eu lírico utiliza outro elemento que provoca estranhamento, como a

palavra morro. Analogicamente, esse vocábulo indica um ponto superior

localizado longe do ponto final (lagoa Rodrigo de Freitas). Essa relação de

altura e descida não se refere apenas ao morro da Babilônia, mas a um ponto

de partida para a descida e a morte. A palavra Babilônia, derivada de Babel,

cujo significado é “balbúrdia”, “confusão”, adquire múltiplos significados, o que

não aconteceria no jornal.

A expressão “barracão sem número” marca um espaço anônimo da

residência e do morador. Também não é apenas um barraco, mas se perde

entre os outros, o que exprime falta de identidade e ausência de valor do

homem “João”. Na multidão do morro, o ser humano se perde, entra no bar,

bebe, canta e dança. Esses verbos assinalam um plano de entrada e de saída

para a chegada de outro plano: a noite.

Esse tempo adquire outra dimensão, associada à chegada ao bar:

momento de prazer e de libertação de um simples carregador de feira livre,

morador do morro, barracão sem número. A noite representa um plano novo

que se abre para o indivíduo não mais anônimo. Portanto, o ápice de libertação

é registrado no último verso: “Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e

morreu afogado”.

O objetivo não é marcar o fato no tempo e espaço, mas mostrar, por meio

desse momento trágico do cotidiano de “João Gostoso”, uma metáfora do ser

humano em busca de algo. Um fato corriqueiro ganha dimensão metafórica,

estabelecendo uma relação entre um homem à procura de sua identidade e

liberdade.

Nos versos do poema, a vida e a morte se fundem numa rede de

sentidos. A solidão da vida parece ser somente um ensaio da “grande solidão”

de cada ser humano. Nesse sentido, a poesia é capaz de comunicar uma

profunda consciência do sentido da vida e de seus mistérios, pois, como afirma

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Octavio Paz (1984, p. 177), “vida e morte são apenas dois movimentos,

antagônicos mas complementares, de uma mesma realidade”.

Os movimentos de vida e morte complementam-se na busca de João

Gostoso, na queda para a libertação. Ele mergulha na lagoa Rodrigo de

Freitas, fato trágico do registro jornalístico. Depois de experimentar a festa, ele,

no entanto, se joga na lagoa. Fim da festa que adquire valor positivo, luminoso;

a personagem se liberta da sua vida sinistra, difícil, miserável e desumana.

Esse mergulho desanimador, porque leva à morte, é visto como libertação. A

linguagem poética não é “fala de”, mas passa uma experiência sensorial, uma

possibilidade de experimentar sensorialmente certos aspectos do fato

(movimento, queda, imagem, purificação e libertação).

Arrigucci (1990, p. 110) define esse último ato do João Gostoso como

uma ação de dramaticidade:

A ação ganha em dramatismo ainda mais por efeito da brevidade, que aproxima, secamente, a rápida seqüência de atos de João Gostoso (“Bebeu/ Cantou/ Dançou”), em sua aparente expressão da alegria de viver, manifestada num crescendo da expansão efusiva, ao abrupto desfecho do último verso.

O poema termina tematizando a noção de fatalidade a que está sujeito

qualquer indivíduo, qualquer ser humano. Sob o homem simples, a existência

de uma complexidade humana que o singulariza. Trata-se do olhar sobre o

cotidiano, sobre o homem comum, sobre os desprovidos de voz, o sujeito

solitário que cotidianamente se perde, e passa despercebido nas páginas de

jornais das grandes metrópoles.

A eficiência do poema surge da ausência de drama no último gesto, que

(diferente do gênero notícia) não abarca a ação e o gesto que a notícia

normalmente visa pontuar. O não-sentido da morte (o lançar-se de modo

fortuito, gratuito, na lagoa) ou a “inferência” possível de um drama pessoal (sua

peripécia derradeira e exaltada, a culminar no suicídio) deixam o leitor atônito,

como diante de um enigma a exigir decifração. O poema resgata o gênero

notícia e rompe com ele ao explicitar o esqueleto de um “drama” que não é

desenvolvido e que a simples menção dos atos não consegue abarcar. João

Gostoso eterniza-se, porque convertido em poesia. É palavra não efêmera

como a nota de jornal.

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Stefan Baciu (1966, p. 152), ao abordar o tema da morte nas poesias de

Manuel Bandeira, declara que a morte de João Gostoso

é de uma excepcional matéria-prima, que Bandeira soube poetizar com simplicidade sem igual [...] O fato-diverso, reconstituído da coluna policial, se reveste de profundo sentimento humano, e aqui a morte impressiona por sua simplicidade, por sua nudez.

Bandeira é aquele que impulsiona à inovação. Retirou do cotidiano um

elemento inusitado, uma notícia de jornal, dando-lhe nova forma, uma nova

noção do poético. Para Arrigucci (1991, p. 100), essa atitude reformadora de

Bandeira definiu os rumos da poesia moderna, na década de 1920:

[...] a matéria nova e chocante, cujo caráter jornalístico e prosaico marcava o deslocamento da noção de poético; o tratamento novo e também chocante dessa matéria, que implicava a mescla de gêneros, a liga entre o épico e o lírico, com a nova posição do sujeito, capaz de confidenciar emoções íntimas, aparentemente desaparecendo do primeiro plano. Notícias de jornal, fragmentos de conversa ou de escrita telegráfica constituíam os materiais preferenciais dessa abrupta simplificação da matéria poética. O objetivismo lírico fundava um modo paradoxal de dar forma, como se nota pela aparente contradição dos termos que definia essa voluntária pobreza do tratamento artístico. Matéria e forma novas, naqueles anos, que poderiam muito bem caracterizar o achado do próprio Bandeira no “Poema tirado de uma notícia de jornal”.

A mistura dos gêneros já pode ser vista desde o romantismo. Dentro

dessa tradição, se sobressai o diálogo entre a prosa e a poesia. Mediante esse

diálogo, “perseguia-se, de um lado, vitalizar-se a primeira por sua imersão na

linguagem comum e, de outro, idealizar a prosa, dissolver a lógica do discurso

na lógica da imagem” (Paz, 1984, p. 84).

A partir dessa fusão, o poema em prosa e a periódica renovação da

linguagem poética acentuam — ao longo da século XIX e, precisamente, no

século XX — a introdução da fala popular no meio poético. Mesmo que em

1920 essa novidade não fosse a grande especulação dos poetas sobre prosa e

poesia, pelo fato de ter transbordado os limites da poética antiga, essa nova

poesia passa a expressar uma nova maneira de sentir e de viver. O poema,

então, segundo Paz (1984, p. 85), “não é apenas uma realidade verbal: é

também um ato. O poeta diz e, ao dizer, faz. Este fazer é sobretudo um fazer-

se a si mesmo: a poesia não é só autoconhecimento, mas também

autocriação”.

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Desse modo, a observação do cotidiano não se desgarra

necessariamente da intenção artística, por ser um terreno perfeito para a

sondagem lírica. E é por isso que Bandeira se tornou um exemplo de poeta,

pois sua lírica e o mistério da simplicidade de sua forma poética, construída em

grande parte com palavras simples, fatos e imagens do dia-a-dia, são a prova

de uma poesia ”desentranhada”, “desconstelizada” do cotidiano.

A poesia provoca uma relação erótica de entrega total entre o texto, o

poeta e o seu receptor, eliminando a distância entre o sujeito e o objeto. Muitos

serão os receptores que se sentirão no texto, numa comunhão entre poema e

leitor. É no espaço da poesia que o eu poético desnuda essa tragédia

brasileira, e, por isso, a poesia é transgressora. Deixa de aceitar o que é

convencional e busca a liberdade da palavra e da vida. Nela, Bandeira

reencontrou o significado da vida. Uma vida permeada pela sombra da morte,

mas que soube vencê-la, e, por isso, ele escreve “como quem morre”.

3.3 Memento morti: evocação do ausente em “Poema de Finados”

A vida inteira que podia ter sido e que não foi

Manuel Bandeira, “Pneumotórax”

Continuando o percurso poético bandeiriano, depois de passarmos pela

infância e percorrermos a maturidade poética de Bandeira em sua consciência

social, nos deteremos, ao final deste percurso, no tema da morte. Essa

temática é outra vertente que aparece em Libertinagem.

Caracteriza a poesia de Bandeira, como estamos vendo, a forma simples

e singela de repassar para o leitor o tom pessoal, o envolvimento sentimental, a

amargura e a melancolia; transmite a sensação de uma vida vazia, muito bem

definida em alguns versos, como: “A vida inteira que podia ter sido e que não

foi” (“Pneumotórax”), ou nos quartetos de “Poema de Finados”, em que a

sensação de morte que o poeta experimenta está associada à sensação de

perda dos parentes próximos.

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No “Poema de Finados”, podemos perceber que quase não há abertura

para a elaboração do luto. O que temos é um momento que implica um longo

percurso do eu lírico para chegar a um elaborado nível de linguagem e a uma

atitude em relação ao mundo circundante. Transcrevemos o poema:

1 Amanhã que é dia dos mortos 2 Vai ao cemitério. Vai 3 E procura entre as sepulturas 4 A sepultura de meu pai. 5 Leva três rosas bem bonitas. 6 Ajoelha e reza uma oração. 7 Não pelo pai, mas pelo filho: 8 O filho tem mais precisão. 9 O que resta de mim na vida 10 É a amargura do que sofri. 11 Pois nada quero, nada espero. 12 E em verdade estou morto ali.

Manuel Bandeira caminhou por um longo itinerário para chegar ao seu

amadurecimento poético. Muitas influências recebeu, desde menino;

primeiramente nos contos da carochinha, nas histórias que Rosa vinha lhe

contar antes de dormir e até mesmo pela influência de seu pai, que tinha muito

apreço por poemas e considerava que a poesia estava em tudo: “Assim, na

companhia paterna ia-me eu embebendo dessa idéia que poesia está em tudo

— tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas

coisas disparadas” (Bandeira, 1957, p. 11).

Bandeira bem sabia que o sentimento podia ajudar o poeta a escrever

seus poemas, porém, o sentimento não bastava para fazer poesia, esta

necessitava de palavras certas nos lugares exatos. Seu sonho de ser arquiteto

não foi realizado, pois, com a descoberta de sua enfermidade, Bandeira não

pôde mais estudar e começou a escrever para sentir-se menos inútil do que

realmente se achava: “No fim do ano letivo adoeci e tive de abandonar os

estudos [...] Sem saber que os versos, que eu fizera em menino por

divertimento, principiaria então a fazê-los por necessidade, por fatalidade”

(Bandeira, 1957, p. 20).

Nessa fase é que se inicia realmente a produção poética de Bandeira,

cuja obra lírica nasce diante da circunstância dramática da ameaça iminente da

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morte. Nela, na qual percebemos uma situação de vazio, uma existência

condenada pela doença fatal,

pode-se avaliar a importância não só do aproveitamento de um tema como esse, casado à condição básica da experiência poética bandeiriana, mas também de toda a linha de reflexão que ele envolve como um fator essencial para a compreensão do sentido mesmo da poesia na existência desse poeta. [Davi Arrigucci Jr., 1990, p. 225]

Se essa poesia não tivesse essa verdade, esse sentimento impregnado em

cada palavra, talvez não fosse considerada uma obra literária, como hoje é.

A partir da descoberta da doença, Manuel Bandeira escreveu muitos

poemas em que a morte, o desalento e a tristeza eram tema ou subtema. A

morte tornou-se sua “companheira indesejável”. Prevendo que a qualquer

momento ela poderia chamá-lo, viveu à sua espera, sem saber que o destino

lhe pregaria grandes desafios e surpresas — como presenciar a morte de todos

os seus familiares. Aprendeu a viver com as ausências e a solidão. A crítica

Yudith Rosenbaum (1993, p. 73), em Manuel Bandeira: uma poesia da

ausência, no capítulo “A aprendizagem da morte”, declara a importância do

estudo desse tema para a compreensão da obra bandeiriana:

Presentificação da falta por excelência, o topos da morte se impõe obrigatoriamente no estudo da poesia bandeiriana. Pelo seu domínio temático na obra, poder-se-ia considerá-la uma verdadeira obsessão do poeta [...] A mesma interação entre os elementos biográficos e poéticos que surpreendemos ao abordar o topos da infância ocorrerá aqui novamente, dado o estreito convívio do poeta com a morte, da adolescência até o fim da vida [...] Esses traços biográficos, se não determinam sua obra, ampliam as possibilidades de compreensão de sua poesia.

Os poemas, mesmo assim, aplicam-se no cultivo de uma resignação que

o poeta destitui de qualquer sentido derrotista. Incorporar a experiência do

sofrimento com aquele sinal positivo não é curvar-se ao fatalismo, mas

sobreviver a ele e contestá-lo com a experiência mesma do poético, objetivado

em palavras.

Mas o interessante é como Bandeira aborda esse assunto, pois a morte

não aparece da mesma forma em todos os poemas. Às vezes trata-a como a

“indesejada das gentes”, outras de maneira bem humorada, como em

“Pneumotórax”, ou, ainda, para resgatar a vida na morte, como uma tentativa

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de preencher a ausência de um ente querido, no momento da evocação do

ausente (“Poema de Finados”).

A construção desse poema será mais bem interpretada se ele for lido sob

dois enfoques: a transgressão estilística, observando os recursos utilizados

para mostrar como o ritmo é elemento construtivo do poema, essencial para

seu processo de significação; e a transgressão temática, notando, a partir do

título, a ambigüidade em relação ao poema não “ao finado” pai, mas ao “pai e

filho”, como finados, o que leva o eu lírico a um estado de profunda melancolia.

3.3.1 Transgressão estilística: figuração da audiência1

Diferente dos poemas analisados anteriormente, que não exibem uma

regularidade estrófica, este apresenta uma certa harmonia estrutural. Possui

doze versos, organizados em três quadras com versos octassílabos; em cada

uma delas, há rima entre o segundo verso e o verso final: vai/pai;

oração/precisão; sofri/ali — rimas ricas que não se observam nos demais

versos.

Podemos notar, também, rima interna no verso 3, entre os vocábulos

procura/sepulturas; e no verso 11: quero/espero. Esse paralelismo fônico, que

se repete no interior dos versos de todas as quadras, reforça a idéia de um eco

mórbido que se propaga em todo o poema. Com destaque para a rima interna

entre os vocábulos procura/sepulturas (o primeiro, um verbo no singular e o

segundo, um substantivo no plural), que amplia o clima de morbidez gerado

desde o primeiro verso.

O eu lírico parece ter lançado mão de todo arsenal de som e ruído de que

dispunha, combinando aliterações, assonâncias, rimas internas em eco, tudo

dinamicamente combinado no movimento do ritmo, que, no meio das estrofes,

junta as duas expressões mais poderosas como efeito sonoro e visual da cena

“tumular”. Esse clima mórbido se faz presente, porque o ritmo é inseparável do

conteúdo concreto do poema. Como observa Paz (1982, p. 71), no ritmo verbal,

1 Expressão extraída da primeira parte — “A retórica do coloquial” — do livro O coloquial na poética de Manuel Bandeira (1986), de Maria Helena Camargo.

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a frase ou “idéia poética” não vem antes do ritmo, nem este precede aquela. Ambos são a mesma coisa. No verso já palpita a frase e sua possível significação. Por isso há metros heróicos e ligeiros, dançantes e solenes, alegres e fúnebres.

Essas figuras (aliteração, assonância) de som põem em evidência o

sentido poético do poema. Por serem criadoras de imagens, enriquecem o

texto lírico e sugerem significações novas. A pureza, a liberdade e a harmonia

constituem os mais importantes dados de perfeição da linguagem poética

moderna. Sendo assim, a harmonia exige uma plenitude de sons que seja

adequada à extensão do sentido.

A harmonia sonora une as palavras em grupos indizíveis. Determina a

escolha das palavras e quais imagens e comparações serão mais usadas. Por

isso sua função, ao unir uma palavra a outra, é unir também conceitos. Essa

extensão, para Tinianov, indica o efeito do ritmo sobre a semântica, ou seja, a

mudança de significado semântico de uma palavra se obtém em conseqüência

de seu significado rítmico.

As imagens, determinadas pela harmonia sonora, nos remetem a um

clima emocional, no qual podemos testemunhar, junto ao eu lírico, uma perda.

No capítulo “A imagem”, do livro O arco e a lira (1982), o crítico literário Octavio

Paz afirma que o vocábulo-imagem possui diversos significados. Quando

evocamos ou produzimos uma figura, seja ela real ou irreal, por meio da

imaginação, o vocábulo (imagem) possui um valor psicológico: as imagens são

produtos imaginários.

Paz designa imagem como toda forma verbal, frase ou conjunto de frases,

que o eu lírico diz e que, unidas, compõem um poema. Essas expressões

verbais têm em comum preservar a pluralidade de significados de uma palavra

sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases. Ou seja,

para Paz (1986, p. 98-99),

[...] toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real. Conceitos e leis científicas não pretendem outra coisa. Graças a uma mesma redução racional, indivíduos e objetos — plumas leves e pedras pesadas — convertem-se em unidades homogêneas.

Portanto, a linguagem poética não se dá por mecanização de símbolos, mas

traz para a palavra o sentido (poético) não previsto em um sistema. A

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linguagem configura o real, apesar de inutilizar parâmetros para a realidade. A

prática lógica está desconectada da poética. A construção, longe de

segmentar-se, surge do “impulso”, silêncio e palavra.

As imagens recorrentes recriam-se também por meio do texto da fala

coloquial, de forma crítica e renovadora. O eu lírico utiliza formas

estereotipadas da fala e da linguagem popular/utilitária, muito freqüente nos

poemas modernos, para modificá-las e revitalizá-las. Como podemos observar

no verso 5, por exemplo, quando o eu lírico serve-se do vocábulo bem: “Leva

três rosas bem bonitas”.

Outro aspecto marcante na poética bandeiriana são os procedimentos

que o eu lírico utiliza para representar a presença do ouvinte, característica

básica da língua falada. Ele dialoga o tempo todo com um receptor implícito, no

ato mesmo da escrita. Esse contato diminui o distanciamento comum entre o

eu lírico e a audiência, propiciando um tom próximo da conserva, como

podemos notar nos versos 1 e 2:

1 Amanhã que é dia dos mortos 2 Vai ao cemitério. Vai

Concretamente, essa aproximação se dá por meio do comentário: “Amanhã

que é dia dos mortos”, e do suposto diálogo com o intercolutor, do verso 2 ao

verso 8, marcado pelos verbos no imperativo: “Vai; procura; leva; ajoelha”, o

que cria um clima de cumplicidade com quem recebe a mensagem.

Nos versos 3 e 4: “E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai”;

e nos versos 7 e 8: “Não pelo pai, mas pelo filho:/ O filho tem mais precisão”, o

eu lírico utiliza uma técnica própria da comunicação oral, cuja finalidade é

diminuir os efeitos do ruído, no sentido lingüístico, conhecido como feed-back.

Essa técnica corresponderia ao que Jakobson (1975, p. 126) chama de “função

fática”. Seu objetivo é enfatizar o canal, um voltar atrás, para que a mensagem

possa ser feita de modo mais claro e mais compreensível ao receptor. Nesses

versos, como se trata de um texto poético, esse retomar corrige/esclarece o

que o eu lírico quer dizer. Tudo se estrutura obedecendo à retórica do texto em

verso, o que leva as palavras a rimarem.

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Em O coloquial na poética de Manuel Bandeira (1986, p. 26), a crítica

literária Maria Helena C. Regis, ao trabalhar com os procedimentos usados por

Bandeira para representar a língua falada na escrita, declara que

quando o eu lírico comenta um verso anterior é um artifício para imitar o alogismo do discurso oral, decuidado, aproximando-se, também, da imitação do fluir do pensamento. Há o indício de que, aos poucos, o enfoque acentuado do eu lírico da primeira fase se transfere, ora para o receptor [...] ora para a própria linguagem, acentuando sua função metalingüística.

Além do recurso do feed-back, há também um ritmo entonacional e

durativo, que é pausado pela presença da pontuação, principalmente pela

presença da vírgula, no verso 7: “Não pelo pai, mas pelo filho”. Isso cria uma

dupla leitura. O foco se desdobra entre o eu e aquele do qual se fala. Em todo

o poema, notamos um tom de definição, bem marcado pela pontuação precisa,

com pontos finais e dois pontos. Somente duas vírgulas aparecem

distintamente, para marcar a anulação do sujeito.

O tom confidencial que se insinua no verso 7 e em toda estrofe que segue

(terceira quadra) modifica o ritmo, harmonizando a entonação com o nível do

significado: confidência feita em tom discreto. Podemos inferir, então, em

relação à série rítmica da poesia, que o ritmo não é somente um elemento

construtivo, mas também determinante no processo de sua significação

poética. Logo, só é possível notar uma mudança de ritmo, a partir do verso 7,

pela escolha lexical.

Esse procedimento rítmico, associado ao contexto semântico, ajuda-nos a

perceber um outro, o de intervenção do eu lírico para aproximar-se do receptor,

supostamente presente, que é imprescindível na poética bandeiriana. Podemos

considerar essa intervenção, entre outras, o gerador da simplicidade que

perpassa a grande maioria dos poemas de Libertinagem. Ela representa uma

tentativa de aproximar a literatura da língua oral. Conforme Paz (1982, p. 62),

todo aquele que pratica a escrita automática conhece os encantamentos das

associações da linguagem entregue à sua própria espontaneidade:

O sonho, o delírio, a hipnose e outros estados de relaxamento da consciência favorecem o jorro das frases. A corrente parece não ter fim: uma frase nos leva a outra. Arrastados pelo rio de imagens, roçamos as margens do puro existir e adivinhamos um estado de unidade, de união final com nosso ser e com o ser do mundo. Incapaz de opor diques à maré, a consciência vacila. E de repente tudo desemboca numa imagem final.

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3.3.2 Transgressão temática: ambigüidade poemática

O tema do “Poema de Finados” é o testemunho da perda do pai, casada à

sensação de aniquilamento individual, ou seja, morte do próprio eu. Ao clima

emocional soma-se uma súplica do eu lírico, órfão paterno, para que o leitor do

poema se compadeça dele, lhe dedique uma oração. O título indica não o

poema “ao finado” pai, mas encadeia “pai e filho”, como se ambos estivessem

“finados”. Finado é termo que se origina do particípio do verbo finar, para

indicar aquilo/aquele que teve fim, faleceu. Como sinônimo, finado serviu desde

sempre, com propriedade, como eufemismo para o termo morto, forma mais

agressiva.

O primeiro verso indica alusão ao “dia de Finados”, com a referência

direta: “Amanhã é dia dos mortos”. A data está presente na liturgia cristã,

oficialmente é o dia 2 de novembro, posterior ao Dia de Todos os Santos,

aproximando o celestial (santos) e o terreno (os mortos, a finitude).2 O tom é

pessoal/confessional, de forte amargura e vida vazia.

Na primeira quadra, o eu lírico faz uso do imperativo (forma verbal

predominante nas duas primeiras quadras) na segunda pessoa (tu). O

vocábulo vai, por ser idêntico à forma do verbo ir no presente do indicativo

2 O culto aos mortos é muito antigo e esteve presente em quase todas as religiões, principalmente nas mais antigas. Inicialmente era ligado aos cultos agrários e de fertilidade. Os mais antigos acreditavam que, como as sementes, os mortos eram enterrados com vistas à ressurreição. Na prática da Igreja católica, o Dia de Finados surgiu como um vínculo suplementar entre vivos e mortos, destinado a todos. Os falecidos sempre estiveram presentes nas celebrações da Igreja e no Memento dos mortos, no cânon da missa. Já no século I, os cristãos rezavam pelos falecidos: visitavam os túmulos dos mártires para rezar pelos que morreram. No século V, a Igreja dedicava um dia do ano para rezar por todos os mortos, pelos quais ninguém rezava e dos quais ninguém lembrava.

No século X, a Igreja católica instituiu oficialmente o Dia de Finados. A partir do século XI, os papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) passaram a obrigar a comunidade a dedicar um dia aos mortos. No século XIII, esse dia passou a ser comemorado em 2 de novembro, porque 1.º de novembro é a Festa de Todos os Santos.

Com o passar do tempo, a comemoração ultrapassou seu aspecto exclusivamente religioso, para revelar uma feição emotiva: a saudade de quem perdeu entes queridos. Hoje, o Dia de Finados é um dos feriados mais universais. São cerca de mil anos de celebração pela fé na ressurreição.

As pessoas costumam celebrar os mortos levando flores aos túmulos e rezando por eles. Alguns preferem chamar a data de “Dia da Saudade” , retirando o peso do aspecto fúnebre e enfatizando as melhores lembranças daqueles que se foram. (http://www.grupovila.com.br)

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(idêntico em sua forma “vai”), ameniza e suaviza: a expressão atenua a ordem

e sugere um pedido, um clamor sutil:

1 Amanhã é dia dos mortos 2 Vai ao cemitério. Vai 3 E procura entre as sepulturas 4 A sepultura de meu pai.

O poema lírico, em primeira pessoa, assume um tom melancólico,

confessional, porque se dedica a uma terceira pessoa, que podemos identificar

como o “leitor potencial”.

A segunda quadra inicia com o eu lírico, pedindo de forma coloquial — a

qual se apresenta, no verso 5, pelo advérbio de intensidade “bem” — que o

receptor leve rosas ao túmulo:

5 Leva três rosas bem bonitas. 6 Ajoelha e reza uma oração. 7 Não pelo pai, mas pelo filho:

Levar rosas é cumprir um ritual, prática católica para homenagear os

mortos. Essa oferta/oferenda soma-se à postura/posição de humildade

reverente e religiosa (genuflexão), e à prática da louvação solene (rezar uma

oração). Rezar ao filho e não ao pai indica uma quebra, marcada no “mas”

(conjunção adversativa central), da lógica natural do culto. Rezar ao filho (vivo),

voz enunciadora/emissora do poema (confirmado nos dois versos que fecham

a primeira quadra: “E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai”),

indica igualmente uma súplica dada de modo sutil, pois se deve dirigir a oração

ao “vivo”, e não “ao morto”. Súplica, no caso, não só porque ele sofre pela

ausência de seus “mortos”, mas pela dor, melancolia e solidão extrema que o

leva a desejar a morte.

A reza representaria, portanto, um reconhecimento dessa dor, um gesto

de “irmandade” que visaria à “graça” daquele que está na vida como um morto,

a própria expressão da “amargura”, da dor “encarnada” (“O que resta de mim

na vida/ É a amargura do que sofri”). Quebra-se o sentido do poema dedicado

ao outro (os mortos, os finados), pois, pela correspondência entre o eu lírico e

o “morto” (ou seja, entre pai e filho), a ambos se dedica o poema, um monólogo

confessional do eu, emocionalmente aniquilado.

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Nessa segunda quadra, como no poema todo, o tema da morte

apresenta-se de forma ainda mais familiar (se compararmos com as obras

iniciais do poeta). Em Manuel Bandeira de corpo inteiro (1966, p. 159), Stefan

Baciu, ao comentar essa quadra, declara que, em tom simples, ela nos dá “a

impressão nítida de estar o filho-poeta visitando o pai para com ele manter uma

conversa aquém e além do tempo”. Esse pai, segundo Baciu, é o mesmo que,

“depois de haver lido seu primeiro livro de poemas, se limitaria a dizer: ‘Sim

senhor’, palavras aparentemente secas que ocultam, porém, uma admiração

contida pela emoção paterna e à qual o filho responde indiretamente”, como

vimos nessa quadra. Logo, o verso 8 apresenta-se sob a forma explicativa:

8 O filho tem mais precisão.

O termo precisão corresponde a uma expressão mais coloquial, a

necessidade do filho é maior que a necessidade de oração do pai morto. A

morte aplacaria o sofrimento do qual em vida ele padece melancolicamente.

Para Baciu (1966, p. 159), do “ ‘sim, senhor’, de Bandeira-pai, à ‘precisão’ de

uma oração do filho, vai um sentimento humano de amargura e tristeza”.

A visão é absolutamente pessimista, casa-se perfeitamente com a

mentalidade cristã: a vida como sofrimento, amargura. Tal pessimismo é

reforçado pelo “nada” duplamente reiterado, fim dos desejos e das expectativas

em relação à vida. Aqui, o desejo de morte faz parentesco com a dramaticidade

do “romantismo”, o que os diferencia é a ausência da “dor de amor”: no poema

é uma postura existencial. As perdas dos entes amados leva o eu lírico à

solidão, daí a evocar aos que estão de fora que se compadeçam de seu

sofrimento. Em Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira,

Arigucci (1990, p. 228), ao analisar o tema da morte no poema

“Profundamente”, declara que, assim como em outros poemas de Bandeira, em

“Poema de Finados”,

a ruptura dos laços afetivos do Eu com o mundo de seu passado, determinada pela perda dos entes queridos, é sentida como uma antecipação da morte do próprio sujeito, identificado com seus mortos, ou apresentada como uma sensação de morte em vida, até mesmo de inumação em vida, ou ainda, ao contrário, experimentada sob a forma do sentimento de divisão do ser e de perda de si mesmo.

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Sendo assim, a identidade do eu lírico passa a ser a do pai morto, pois

ele também se julga morto. Na morte está o fim das possibilidades já reiteradas

no “nada” quero/espero:

9 O que resta de mim na vida 10 É a amargura do que sofri. 11 Pois nada quero, nada espero. 12 E em verdade estou morto ali.

Lembremos que o pai representa normalmente o modelo para o filho,

além de representar seu esteio, proteção. Perdê-lo é estar lançado por “si” no

mundo, desabrigado, desprotegido, caso não tenha ele próprio uma autonomia

individual (emocional/psicológica), como parece ser o do filho que fala no

poema. Conforme Baciu (1966, p. 160), o último verso vale por uma profissão

de fé, “uma completa identificação com o pai, sempre presente na vida do

poeta, ‘até pela morte’ ”. E Baciu completa, afirmando que esta é “uma maneira

muito sutil, se não completamente nova, de afirmar a presença do amor filial”.

Em Manuel Bandeira: uma poesia da ausência, Yudith Rosenbaum (1993)

— valendo-se, sobretudo, das ciências da linguagem, em especial a estilística

e a psicanálise —, ao buscar a compreensão da matéria-prima que plasmou

imagens poéticas tidas sem favorecimento algum como das mais expressivas

da língua portuguesa, soube traçar com maestria um perfil psicológico do

poeta, traçando um circuito a que chamou de psicopoético, já que poesia e

biografia convivem em estreita ligação em Manuel Bandeira. Poesia que se fez

de lembranças extremamente íntimas e da pulsão cotidiana. A arte manuelina,

como diz a ensaísta, universaliza, na materialidade simbólica, um discurso

particular.

Alcançado em seu vôo poético pela renovação modernista, o poeta nunca

deixou de lado uma certa “disposição melancólica”, típica do espírito simbolista,

encontrando no humor, na ironia, na paródia, no tom coloquial e na crueza

erótica uma maneira ímpar de fazer poesia.

Em “O canto da ausência”, quinto capítulo do mesmo livro, Rosenbaum

enfatiza a linha-mestra de sua vertente crítica. Dentre os poemas analisados,

encontramos o “Poema de Finados”. Ao abordar a questão da melancolia em

Bandeira, vetor de sua poesia, procura encontrar uma explicação para a

obsessão com que o eu lírico tenta reconstruir mentalmente um passado

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impossível de recuperar. Ao analisar a última estrofe, a crítica declara que o eu

lírico se identificou com o pai morto e vive apenas a amargura de seus

sofrimentos, sem expectativa, sem objetivos, incapaz de desligar-se da imagem

paterna e reconstituir-se.

O eu lírico tenta buscar um sentido para a vida. Sendo a morte

indissociavelmente ligada à sua vida, ele a faz instrumento para o imaginário e

a prática poética. Em “O jovem octogenário”, edição comemorativa do

centenário de Manuel Bandeira, o crítico Tristão de Athayde (1969, p. liv)

afirma que o poeta foi de uma utilidade incomparavelmente maior do que teria

se seguisse a carreira de arquiteto, do que se a “Morte não o tivesse namorado

desde moço”, e que por isso foi

útil e continua a sê-lo como ninguém, ainda brincando com a vida e com as palavras da vida, com que tem dado vida a mais de uma geração em nossa terra. Sua poesia, com efeito, é um laço de união, ao mesmo tempo muito sábio e muito espontâneo, entre esses dois tipos de humanidade, que os antigos chamavam de Homo ludens e Homo faber: o homem que brinca e o homem que faz. Bandeira brincou sempre com a vida e a morte, através da Palavra.

O eu lírico transporta, de forma mágica, a morte para o poema em

linguagem viva. O poema é o lugar da linguagem e a linguagem toma forma no

corpo do poema, ou seja, ela se torna propriamente linguagem no poema. A

poesia é ou busca se constituir sempre como uma utopia da linguagem. O

poema funda todo um complexo da subjetvidade do ser por meio do sistema

léxico, conjugando o som, o ritmo e o silêncio das palavras, e procura criar uma

festa dos possíveis da língua que ainda não é; e que apenas no ser do poema

se torna possível. Segundo Paz (1982, p. 345), é na modernidade que “o

poema assume a forma da interrogação. Não é o homem que pergunta: a

linguagem nos interroga”.

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Considerações finais

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação

Manuel Bandeira, “Poética”

Este trabalho ateve-se ao processo de poetização do cotidiano em

poemas de Libertinagem. Para chegar a esse processo de construção poética,

primeiramente, fez-se necessário recuperar, mesmo que sumariamente, a

tradição do gênero lírico e o conceito de lírica moderna, para mostrar as

rupturas que marcaram a renovação da poética brasileira, em especial, a

poesia de Manuel Bandeira. Da mesma forma, recuperamos a tradição crítica

para dialogar com ela e construir uma releitura de alguns poemas bandeirianos.

A delimitação do corpus foi realizada a partir de temas, fazendo um

percurso que envolveu infância, consciência social e morte. Os poemas

“Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “Poema de

Finados” foram analisados. Nesses poemas, identificamos o estilo poético

bandeiriano, por meio dos elementos composicionais que constroem a

simplicidade lírica dos textos, e a temática do coloquialismo, do prosaico, das

reminiscências infantis e da morte. Quanto aos procedimentos estilísticos,

investigamos a cadência rítmica irregular, as rimas aleatórias ou ausentes, a

multiplicidade de tom e a aproximação com a prosa. Atentamos também para a

recorrência a determinados recursos: espacejamento, pontuação, simulação do

ouvinte, os quais o poeta utiliza para criar uma impressão de oralidade no texto

literário.

Dizer que Manuel Bandeira foi um grande divulgador das letras

brasileiras, isso todos já sabem. Os depoimentos de críticos da poesia de

Bandeira, ao longo dos tempos, comprovam sua importância no contexto

modernista. Percorrendo a fortuna crítica do poeta, constatamos, de forma

unânime, que Bandeira era tido como o revolucionador da poesia brasileira,

principalmente com sua obra Libertinagem, a qual transgride as leis da forma

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poética tradicional e as leis temáticas, marcando o amadurecimento pleno do

poeta para as tendências modernistas.

A formação do projeto poético de Bandeira se dá pela busca constante de

uma poesia mais livre, cheia de ritmos e melodias. É a partir de seu

amadurecimento que o poeta mistura a poesia do verso livre com o rimado. Ao

dominar os mecanismos de criação, alcança a liberdade, a graça, a leveza, o

descompromisso, e busca o seu próprio caminho.

Tínhamos duas hipóteses: a primeira, se o coloquial e o prosaico, ao

marcarem o paradigma da poética modernista, evidenciavam uma outra

arquitetura poética; e a segunda aludia à linguagem do cotidiano como um dos

elementos constitutivos do poema de Bandeira, traduzindo-se pela hibridização

do gênero lírico. Apoiado nas análises, observamos que o poeta, sustentado

pelas reminiscências infantis, pelas leituras da vida cotidiana e pelas

evocações dos familiares ausentes, recriou um mundo perdido, atualizando, via

recordação e evocação, cenas e personagens já findas. Por esse caminho,

Bandeira encontrou forças para confrontar-se com suas perdas, insatisfações,

frustrações, conseguindo, assim, reconstruir sua história de vida por meio da

poesia.

Essas hipóteses foram testadas e comprovadas nos poemas analisados.

Em “Evocação do Recife”, pudemos destacar de que forma o eu lírico rompe

com a estética tradicional, diferenciando-se desta ao reproduzir diálogos, grafar

as palavras de acordo com a pronúncia popular e mesclá-las com os versos de

maneira inesperada. Vimos, no decorrer da análise, que há a preocupação com

a disposição gráfica. Tal preocupação não é revelada em relação à rima,

porém, sua maior expressão está na força da palavra. Esta é coloquial,

cotidiana, empregada com brilhantismo, não desprezando seu aspecto sonoro,

o que acaba por fornecer ao poema um ritmo pessoal e harmonioso que,

somado à emoção, assemelha-se a uma canção.

Em “Poema tirado de uma notícia de jornal”, temos uma notícia de jornal

que anuncia a morte de mais um favelado. A miséria anônima (vem do alto, no

morro da Babilônia, como o jardim suspenso da Babilônia) desce e chega à

lagoa Rodrigo de Freitas (lugar da classe alta no Rio de Janeiro). O drama e o

elemento narrativo unem-se ao ritmo: versos longos na introdução e no

desfecho. Versos curtos, dissílabos quando se trata do prazer. Para o eu lírico,

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não são necessárias muitas palavras, metros ou rimas para compor uma

tragédia, os fatos bastam por si sós. Notamos, aí, o projeto maior do eu lírico

de hibridização textual, o poético dialogando com o prosaico.

Continuando o percurso analítico dos poemas, chegamos ao “Poema de

Finados”. Aqui, constatou-se como tema principal a morte, a autocomiseração.

Encontramos, na primeira estrofe, um eu lírico que se dirigia a um interlocutor

— tu —, referindo-se ao cemitério e à sepultura do pai; na segunda, ao ritual de

colocar flores na sepultura e orar, porém, o eu lírico alerta que o filho é quem

necessita de oração. Na terceira estrofe, a explicação: o sofrimento, a

amargura, já não há mais nada. Sente-se um morto-vivo. Nessa análise,

enfatizou-se a presença implícita de um interlocutor como uma inovação na

poética moderna brasileira.

Esses poemas trazem consigo marcas de novas formas poéticas, nas

quais o eu lírico encheu de cotidiano. Essa conquista de novas formas

proporcionou ao poeta, Bandeira, compor em muitos ritmos. A busca constante

no jogo da superação artística o fez, também, um sábio no jogo com as

palavras, as métricas, as rimas. Temperou a busca com a leitura de Rimbaud,

de Lautréamont e dos lúcidos Mallarmé e Valéry, com quem aprendeu as

técnicas de invenção verbal.

Logo no primeiro poema de Libertinagem, “Não sei dançar”, Bandeira

resume a sua evolução anterior: “Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria”; e por

isso declara em poema posterior, “Poética”, que “— Não quero mais saber do

lirismo que não é libertação”.

No poema “Poética”, temos claramente a proposta do lirismo bandeiriano,

ou seja, o verdadeiro ofício do poeta, segundo as leis modernistas. Esse

poema deve ser considerado um verdadeiro “hino de libertação modernista”.

Portanto, nega (“abaixo os puristas”) o parnasianismo, escola literária marcada

pelo rigor formal e pelo preciosismo vocabular (características repudiadas por

Bandeira nos versos em que defende o uso de “todas as palavras” e “todos os

ritmos”, na construção do poema). É um poema metalingüístico e também um

texto lírico, em que encontramos recursos rítmicos característicos desse

gênero literário, como a utilização sistemática de paralelismos sintáticos. Os

versos livres e a sintaxe simples e direta constituem alguns dos recursos que

aproximam o poema da linguagem coloquial, configurando-se esse

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procedimento como uma das principais bandeiras da estética modernista e, em

especial, da proposta poética bandeiriana. Podemos perceber ainda um anseio

de liberdade vital, no qual o eu lírico (poeta melancólico, solitário e irônico)

extravasa seus ideais libertários, quer de sentimentos e desejos vitais, quer

estéticos.

“Poética” é uma espécie de plataforma teórica da poesia modernista. Um

texto de propostas e críticas. Propostas modernistas e críticas ao

tradicionalismo, representado pela estética parnasiana. Portanto, temos, nos

poemas de Libertinagem, a novidade, o erotismo, a musicalidade, a força de

imagens, o cunho biográfico, a paixão pela vida e a visão da morte, a infância,

a pureza, a liberdade, a saudade, o amor, a alegria, a tristeza e a evasão, a

solidão. De acordo com Faria (1980, p. 128), no livro Libertinagem, “tudo fala

num mesmo sentido e esse sentido, uma palavra o sintetiza: libertação. O

poeta põe resolutamente de lado o sofrimento, decide ser feliz, livre,

inconseqüente”, como afirma no poema “Vou-me embora pra Pasárgada”.

Pasárgada é tida como aquele lugar de “reino estranho”, “onde tudo é fácil e a

existência, uma aventura ‘inconseqüente’ ”. Deixa para trás a tristeza, o

sofrimento e suas complicações, e parte para um mundo com inúmeras

possibilidades de ser feliz.

O grito de Bandeira acontece, então, efetivamente em Libertinagem. O

poeta traz ainda a melancolia que marcou seus poemas, mas já vislumbra uma

cidade onde pode sonhar e deseja, melancolicamente, partir para Pasárgada,

resgatar uma infância — como resgatou em “Evocação do Recife”, por meio

das reminiscências infantis —, ter a mulher na cama de sua livre escolha.

Bandeira, enfim, com o ritmo dissolvido, sem máscaras, liberta-se e envereda

para a construção de um novo estilo literário: a poetização do cotidiano.

Ao lermos o poema “Poética”, encontramos a recusa de tudo o que não

seja o lirismo em si mesmo. Parte-se do insulamento (isolação) radical do ser

humano, para daí tentar voltar a fundar laços. Mas atenção, o poeta é mais

ardiloso do que parece. Lirismo, nele, não quer dizer poesia pura, separação,

não, define para o lirismo traços e momentos de intimidade verdadeira com a

linguagem, é o que podemos observar em “Poema tirado de uma notícia de

jornal”. Ao transformar uma notícia retirada do cotidiano jornalístico em poema

em prosa, ou ao utilizar formas estereotipadas da fala cotidiana e da linguagem

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popular de maneira crítica e renovadora, introduz um novo modo de construir a

representação da realidade, por meio da transformação de elementos

considerados apoéticos em material poético, da hibridização dos gêneros

poéticos e narrativos.

Ao tentar conceituar essa poesia do cotidiano como transgressora,

percebeu-se que os procedimentos poéticos empregados por Manuel Bandeira

são experimentados tanto em poemas prosaicos como nas reminiscências

infantis, e até mesmo nas sensações de morte associadas à sensação de

perda dos parentes próximos.

Os procedimentos poéticos utilizados por Bandeira foram investigados

estilisticamente e tematicamente a partir das análises dos poemas escolhidos.

Ao final dessas análises, percebemos que os poemas retomam as idéias do

manifesto modernista defendido pelo poeta em “Poética”. São poemas que

apresentam características que revolucionaram a poesia moderna brasileira,

com sua estrutura fragmentária; seus versos soltos e livres; seus

espacejamentos; sua ausência de pontuação; sua liberdade temática; sua

versatilidade poética; seu poema em prosa; seu elaborado nível de linguagem

e com uma atitude poética em relação ao meio circundante. Essa liberdade

estética e temática ressalta e aprofunda o cotidiano na poética bandeiriana. Um

ato inovador, que levou a uma nova concepção de “linguagem poética”.

Manuel Bandeira transgride a lírica tradicional, pois, para ele, um poema

não deve seguir regras externas ao “eu interior” do poeta. Ele é contra as

normas sintáticas, semânticas ou poéticas impostas pelos conceitos clássicos.

Prefere o lirismo, isto é, a expressão livre e espontânea dos sentimentos do “eu

lírico”, como a dos “bêbados” e dos “clowns de Shakespeare”. O que Bandeira

queria e pelo que ele lutou era conquistar a liberdade de ir-e-vir, confluindo

estéticas variadas, fossem elas clássicas ou modernas.

Concluímos, assim, que a proposta de poesia do cotidiano de Manuel

Bandeira comprova que as condições do lirismo são, para ele, o transcender o

sentimento, objetivando-o, é a busca de pureza, a simplicidade no existir e no

dizer, é ser vivo e não ser conduzido como boi morto entre os destroços do

presente. É pensar a confluência entre a linguagem coloquial, a linguagem

prosaica e a linguagem poética, pois, nesse “poeta poesia”, evidencia-se uma

outra, ou seja, uma moderna arquitetura poética, uma identidade luminosa. Não

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há rupturas, porque a palavra e a poesia são feitas dessas junções de temas,

de estilos e de tempos vários. Palavra e poesia encontram-se no cotidiano. Ao

introduzir o coloquial e o prosaico em sua poesia, Bandeira rompe com a

poética clássica, e produz uma poética que traz consigo marcas de hibridização

do gênero lírico na modernidade.

Dessa forma, Bandeira insere sua poesia entre aqueles que resistem ao

tempo. Embora fosse seu desejo “morrer completamente”: “Morrer mais

completamente ainda,/ — Sem deixar sequer esse nome...”, legou-nos uma

poesia valiosíssima, de rigor cotidiano, e deixou seu nome ligado aos grandes

nomes da nossa literatura.

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