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www.mst.org.br ANO XXX– Nº 319 – SET/OUT/NOV 2012 Edgar Kolling: os desafios do MST na luta pela Reforma Agrária Páginas 10 e 11 6º CONGRESSO MST monta acampamento permanente em Brasília Páginas 4 e 5 ENTREVISTA

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Jornada dos Sem Terrinha Crinças lutam por melhor educação nos assentamentos e pelo cumprimento da Reforma Agrária

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www.ms t . o rg . b r ANO XXX– Nº 319 – SET/OUT/NOV 2012

Edgar Kolling: os

desafios do MST na luta

pela Reforma Agrária

Páginas 10 e 11

6º CONGRESSO

MST monta

acampamento permanente

em Brasília

Páginas 4 e 5

ENTREVISTA

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2 JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

EDITORIAL Proposta sofreu uma perda política com as derrotas do PSDB, mas o governo quer retomar

Palavra do leitor FRASE DO MÊS

DIREÇÃO NACIONAL DO MST

Edição-chefe: Igor Felippe Santos. Edição-adjunto: Luiz FelipeAlbuquerque. Revisão: Jade Percassi. Projeto gráfico e diagramação:Eliel Almeida. Assinaturas: Elaine Silva. Tiragem: 10 mil exemplares.Endereço: Al. Barão de Limeira, 1232 – CEP 01202-002 – São Paulo/SP – Tel/fax: (11) 2131-0850. Correio eletrônico: [email protected]ágina na internet: www.mst.org.br. Todos os textos do Jornal SemTerra podem ser reproduzidas por qualquer veículo de comunicação,desde que citada a fonte e mantida a íntegra do material.

Mande sua mensagempara o Jornal Sem Terra

Sua participação é muito importante. Ascorrespondências podem ser enviadas [email protected] ou para a Alameda Barão de Limeira,1232, Campos Elíseos, São Paulo/SP, CEP 01202-002. Asopiniões expressas na seção “Palavra do leitor” nãorefletem, necessariamente, as opiniões do Jornal sobreos temas abordados. A equipe do JST pode,eventualmente, ter de editar as cartas recebidas.

A reforma agrária não é apenas para“eliminar” os acampados. Nem creio queseja questão de produção ouprodutividade, pois tanto o latifúndioquanto as pequenas e médiaspropriedades possuem características quelhes ajudam e outras que atrapalham.O maior dos benefícios é bem outro, e

A NOSSA BASE e os nossos militantesestão preocupados com o anúncio dogoverno de que haverá mudanças norumo da política de Reforma Agrária,com um discurso aparentemente progres-sista, de levar os assentados à classe médiacom o desenvolvimento dos assentamen-tos nos moldes do agronegócio. Por trásdesse discurso, há uma tentativa porparte do setor mais conservador dentrodo governo de ressuscitar umaelaboração teórica conhecida como NovoMundo Rural, criada no governoneoliberal de FHC e derrotada nasúltimas três eleições presidenciais.

O Novo Mundo Rural foi a receitaneoliberal aplicada ao campo, que tinhacomo fundamento a separação daagricultura em três níveis:agronegócio, agricultura familiar e ospobres do campo. A partir disso, oEstado passa a organizar as políticaspúblicas, aplicando o receituário doFundo Monetário Internacional (FMI)e do Banco Mundial aos pobres docampo, com políticas focalizadas ecompensatórias. Nesse período, ogoverno construiu um conjunto deinstrumentos para implementar essapolítica, como a criação do Ministériodo Desenvolvimento Agrário, aextinção do crédito especial da ReformaAgrária (o Procera) e a inclusão dosassentados no Pronaf.

Além disso, enfraqueceu o Incra,criou a Agência Nacional de Terras,acabou com assistência técnica públicae lançou um conjunto de iniciativas naárea jurídica para criminalizar a luta. A

proposta do Novo Mundo Rural sofreuuma derrota política com as derrotas doPSDB, com muita luta e enfrentamento.No entanto, parte das medidas previstasnesse plano continuou sendo aplicada,como a política de crédito agrícola. Háuma retomada dessas políticas para ocampo, que estão ganhando força dentrode um governo que foi eleito porassentados e acampados para derrotar apolítica neoliberal.

O Novo Mundo Rural da presidentaDilma Rousseff tem como objetivocolocar o campo na linha doneodesenvolvimentismo, com base noempreendedorismo, para elevar o nívelda renda das famílias de pequenosagricultores. A implementação dapolítica do governo tem caminhado naseguinte direção:

-A política de obtenção de terra estáparada. O governo tem defendido quesó fará assentamento em áreas boas paraReforma Agrária, desde que não sejammuito caras. Essas áreas até o momentonão foram encontradas. No atualmomento de ofensiva do capital naagricultura, é difícil crer que existamterras boas e baratas no mercado...

-Está em curso uma propostado governo de emancipação dosassentamentos.

Com discurso de que osassentamentos antigos precisam terautonomia do Estado, as famíliasdeveriam deixar de ser assentadas. Naprática, essa política será a privatizaçãodos assentamentos, da terra, dos direitosdos assentados e dos recursos públicos

até hoje investidos, que cairão nas mãosde um mercado dominado peloagronegócio. Assim, a política dedesenvolvimento dos assentados dogoverno tem como objetivo transformarparte dos assentamentos em agricultoresfamiliares, com produção em escala eacesso a crédito, levando essas famíliaspara a tal classe média da Dilma.

As famílias que não conseguiremchegar a esse nível de desenvolvimento– possivelmente, a maioria pelasdificuldades de enfrentar a lógica dacompetição do mercado capitalista -entrarão para o Programa Brasil SemMiséria. Conseguimos fazer lutas eresistir ao modelo neoliberal de FHC.Atualmente, a maior parte das políticasdo governo Dilma tem o mesmoconteúdo do projeto do Novo MundoRural. Porém, hoje temos maisdificuldades no processo de mobilizaçãopara resistir e impor um novo modelopara agricultura brasileira. Precisamoscontinuar a luta por uma nova políticade Reforma Agrária, que possa resolveros problemas dos pobres e adesigualdade no campo e, ao mesmotempo, avançar a política dedesenvolvimento do meio rural.

A distribuição da terra é oprimeiro passo do processo deReforma Agrária. Depois, é necessárioorganizar a produção e a vida nessesterritórios, com apoio do Estado, paragarantir o êxito dos assentamentos.Abaixo, 10 condições fundamentaispara o desenvolvimento dos projetosde Reforma Agrária:

1 - Produção de alimentos de qualidade esaudáveis para atender a demanda dosmunicípios próximos dos assentamen-tos e as compras governamentais.

2 - Cooperação agrícola para aumentara escala da produção.

3 - Organizar agroindústrias próximasao local de produção agrícola, naforma de cooperativas, sob controledos agricultores, para agregar valorà produção e gerar renda.

4 - Agricultura diversificada, rompendocom a monocultura, para promoveruma agricultura sustentável, embases agroecológicas, semagrotóxicos e transgênicos.

5 - Universalização do acesso à educaçãoescolar pelo Estado.

6 - Construção e melhoria das moradiasno meio rural, conjugado comgarantia de acesso a energia elétrica,para melhorar a qualidade de vida.

7 - Garantia do abastecimento de águapotável nas comunidades ruraispelo Estado.

8 - Avançar o processo de democrati-zação do acesso a terra.

9 - Apoio de políticas públicas do Estado,como garantia de preços, crédito,fomento à transição e consolidaçãoda produção agroecológica, seguro,assistência técnica, armazenagem eprogramas de compra.

10 - Manutenção da mobilização e lutasdos assentados, uma vez que asconquistas atuais fazem parte desseprocesso de acúmulo de forças.

O velho Novo Mundo Rural

traduz-se na imperiosa necessidade demitigar o poder imenso da oligarquiarural, cuja concentração de riquezaabsurda perpetua o atraso e osubdesenvolvimento e distorce atémesmo a noção de igualdade deoportunidades, tão cara aos liberais.

VLAD

•••Não há justificativa para o descaso dogoverno federal com a reforma agrária.Este é um compromisso histórico do PT.Por que o governo privilegia oagronegócio e abandona 180 milfamílias de agricultores brasileiros?

FABIO PASSOS

“Só no Youtubeo ‘Veneno estána Mesa’já teve maisde 120 milacessos. Fora as milhares de cópiasque cada parceiro se preocupouem reproduzir, multiplicar edistribuir o filme. Sem falsamodéstia, já podemos falar na casade 1 milhão de espectadores”

SILVIO TENDLER, cineasta e diretor doVeneno está na Mesa.Foto da capa: MST-PA

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3JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

ESTUDO As crises são resultados do desenvolvimento das contradições internas de um determinado processo

POR ARMANDO BOITO JR.

PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL

DE CAMPINAS (UNICAMP)

A CRISE POLÍTICA é um fenômenoobjetivo e situado numa conjuntura es-pecífica, o que quer dizer que ela ocor-re independentemente da vontade par-ticular de cada agente político envol-vido no processo e se estende por umperíodo de tempo mais ou menos curto.A crise política resulta da exacerbaçãodo conjunto de contradições entre clas-ses e frações de classe que movimentamo processo político num país ou numconjunto de determinados países.

Os tipos de crise

Podemos pensar em pelo menosquatro tipos de crise política. Uma cri-se de importância menor é a crise degoverno, quando é apenas a equipe go-vernamental que tem sua permanênciano comando do Estado ameaçada. Estacrise de governo é superficial e nãoaltera o bloco no poder ou a forma deEstado, como pudemos constatar coma crise do impeachment de FernandoCollor, em 1992.

Algo mais importante é a criseda forma de Estado, quando a formavigente, ditatorial ou democrática,é colocada em questão. No Brasil,conhecemos esse tipo de crise naconjuntura de 1978-1985, quando aditadura militar viu-se contestadapor parte dos de cima e pela maioriados debaixo.

Há também a crise de um determi-nado bloco no poder, isto é, quandoum determinado arranjo burguês decontrole do Estado é contestado poruma ou mais forças burguesas e/oupopulares. Foi esse tipo de crise que

ocorreu no Brasil em 1930. Naquelaconjuntura, a hegemonia da grandeburguesia cafeeira paulista no interiordo bloco no poder foi posta em questãoe liquidada pelo movimento político emilitar dirigido pelos tenentes emoutubro daquele ano.

A crise política mais profunda é acrise do próprio Estado e, nesse caso,que é mais raro, estamos diante de umacrise revolucionária. No Brasil,tivemos uma crise do Estado, isto é,revolucionária, na conjuntura de 1888-1891, quando a revolução antiescravis-ta e antimonárquica logrou liquidar aescravidão, e o Estado monárquicoescravista elaborou a primeira Cons-tituição Republicana.

Da crise do governo à crise doEstado, passando pela crise da formade Estado e pela crise do bloco nopoder, a profundidade da crise écrescente. Uma crise do Estado étambém, e necessariamente, uma crisedo bloco no poder, da forma de Estadoe do próprio governo.

Fenômenos distintos

Não devemos confundir crise políti-ca com crise econômica. Esses são doisfenômenos distintos e a relação entre

eles é complexa. O que há de comumé que tanto a crise econômica, quantoa crise política, resultam, fundamen-talmente, do desenvolvimento decontradições internas a um determinadoprocesso – o processo econômico, nocaso da primeira, e o processo políticono caso da segunda.

A crise econômica se desenvolvede modo espontâneo e diz respeitoao processo de acumulação de capi-tal. A crise política não se localizano processo de acumulação de ca-pital, mas no plano da luta pelo po-der e, embora seja um fenômeno ob-jetivo, não é inteiramente espontâ-neo já que supõe a existência de umaforça organizada que tem condiçõesde propor – e que de fato propõe –a deposição de um governo, a der-rubada de uma forma de Estado, aalteração de um determinado blocono poder ou a destruição de um tipode Estado – feudal, escravista oucapitalista. Sem a existência de talforça politicamente organizada,podemos ter uma si tuação deinstabilidade política, mas não decrise, seja do tipo que for. A situaçãode instabilidade pode se prolongarsem que uma verdadeira crisepolítica se instaure.

As crises políticas do sistema capitalista

A crise econômica pode provocaruma crise política, mas nem sempre éisso que ocorre. Desde 2008, a eco-nomia capitalista encontra-se pati-nando numa crise econômica graveque nasceu no coração do sistema, masnão instaurou, pelo menos até o

momento, uma situação de crisepolítica nos países centrais.

A crise econômica motivou, é ver-dade, reações e lutas que criaram umcenário político novo. Mas esse é, empaíses como a Grécia, um cenário deinstabilidade e não de crise política. Masnão há uma força política organizada,representativa e dotada de um programaeconômico e social alternativo emcondições de substituir o bloco no poderque controla o Estado nesses países.

Guernica (1937), de Pablo Picasso, mostra os horrores da guerra e a crueldade de governos tirânicos

A crise econômicadiz respeito ao processode acumulação decapital, e a crisepolítica no plano daluta pelo poder

Sem a existência de talforça politicamente

organizada, podemoster uma situação de

instabilidade política,mas não de crise

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4 JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

Em entrevista, Kelli Maffort da direção nacional do MST, ressalta a importância da participação daENTREVISTA

POR IRIS PACHECO

SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

JST - O Acampamento NacionalPermanente Hugo Chávez inicioucomo parte integrante da Jornadade Lutas das Mulheres. Qual é aimportância de sua realização naatual conjuntura?

KL - Sem dúvida alguma, o acampa-mento permanente é crucial, dada aatual conjuntura de bloqueio da Re-forma Agrária. Esse bloqueio é com-binado entre as ações dos governosfederais e estaduais, em conjunto coma hegemonia do agronegócio e a açãodo Poder Judiciário, que tem atuado nosentido de criminalizar a luta pela terra.Portanto, se estamos vivendo umaconjuntura de bloqueio da ReformaAgrária, a luta dos movimentos so-ciais tem que ser a altura deste. Elatem que ser permanente pararomper com essa lógica. Por isso,o acampamento é um esforço doMST e de outros movimentos

“A luta dos movimentos sociais será aaltura do bloqueio da Reforma Agrária”Os movimentos sociais do camposofrem historicamente o descaso dosgovernos com a Reforma Agrária.Nos últimos meses, esse descasovem se acentuando. O governo dapresidenta Dilma Rousseff é o quemenos desapropriou imóveisrurais para a Reforma Agrária.Diante dessa conjuntura, osmovimentos sociais acreditam queé necessário travar um processode luta permanente contra oagronegócio e pelo fortalecimentoda Reforma Agrária. Dessa forma,desde o dia 5 de março, o MSTorganiza um acampamentopermanente em Brasília.O acampamento, batizado com onome de Hugo Chávez depois damorte do presidente da Venezuela,iniciou com a Jornada Nacional deLuta das Mulheres da ViaCampesina. Continuará por tempoindeterminado. Em entrevista aoJornal Sem Terra, Kelli Maffort, dadireção nacional e coordenadora dosetor de gênero do MST, ressalta aimportância da participação damulher na condução da luta. Paraela, o acampamento é instrumento depressão para o governo retomar oprocesso de criação deassentamentos. “Estamos vivendouma conjuntura de bloqueio daReforma Agrária. A luta dosmovimentos sociais tem que serpermanente para romper com essalógica”, afirma. Confira a entrevista:

sociais do campo de manter asatividades de forma permanente epor tempo indeterminado.

JST - Esse bloqueio pode serconsiderado o grande desafio paraos movimentos sociais do campo?

KL - Estamos atravessando umaconjuntura em que a ReformaAgrária está sendo colocada comouma bandeira superada. Isso porque,dada a realidade agrária, de avançodo agronegócio e o processo de

industrialização no campo, nãohaveria mais a necessidade de fazerReforma Agrária no país.No entanto, na prática é justamente ocontrário. Hoje 30% dos alimentosconsumidos pela população, deacordo com a Anvisa (AgênciaNacional de Vigilância Sanitária),estão contaminados por agrotóxicos.As pessoas estão sendo envenenadaspor esse modelo de produçãohegemônico do agronegócio.Portanto, o agronegócio não pode sero modelo do campo brasileiro. É pre-ciso buscar outra forma de produzir.E essa forma é a agricultura agroe-cológica presente na Reforma Agrária.

JST - O Poder Judiciário se revelacomo um entrave nos processos dedesapropriações de terra. Ademarcação dos territórios indígenase quilombolas é exemplo claro desseentrave no atual cenário do campobrasileiro. Quais ações de lutasconjuntas os movimentos pretendem

Homenagem ao presidente da Venezuela Hugo Chávez, falecido no dia 5 de março.

Por vivermos em umasociedade patriarcal,as mulheres sãoduplamente atingidas.Atingidas como classetrabalhadora e tambémcomo mulheres

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mulher na condução da luta

realizar para garantir odesenvolvimento deste processo dedemarcação?

KL - Em agosto de 2012 foi reali-zado, em Brasília, um encontrounitário dos movimentos sociais docampo. Esse encontro das organi-zações revelou que a questão docampesinato não envolve somente opúblico da Reforma Agrária. As po-líticas para o campo brasileiro prio-rizam o agronegócio e inviabilizamum projeto popular que atenda opúblico assentado, as populaçõesindígenas, quilombolas e pescadores.Todas essas comunidades e movimentosestão impactados pela hegemonia desse

modelo no campo, que é a materializaçãodo capital. Os movimentos estãoavançando na compreensão de que paraenfrentar esse modelo devem fazê-lo deforma articulada. É por meio dessaarticulação que vamos conseguir rompercom esse modelo de sociedade e de fatoenfrentar o capital.

JST - Por que o agronegócio afetaprincipalmente as mulheres?

KL - A dominação da hegemonia doagronegócio está presente para todaa classe trabalhadora, seu impacto aatinge como um todo. Porém, porvivermos em uma sociedade patriarcalas mulheres são duplamente atingidas.Atingidas como classe trabalhadorae também como mulheres.

JST - Como a violênciacontra a mulher é discutidapela Via Campesina?

KL - Violência contra a mulher estápresente em toda a sociedade, logotambém no campo brasileiro. Aviolência não deve ser tratada emseparado do tema do enfrentamentoao capital, porque essas relações estãoarticuladas com a dominação dopatriarcado e do capital. Ainda são

incipientes os dados da violênciacontra as mulheres no campo. Noentanto, em nossos acampamentos eassentamentos, nós já percebemos que énecessário combatê-la de forma bastantecontundente. O MST, que é portador deum novo projeto de sociedade, em que acriação de novas relações de gênero estáinserida, luta também contra essaviolência, a partir das nossas áreas.

JST - Qual foi o principalponto de pauta da Jornada deLutas das Mulheres neste ano?

KL - Historicamente a jornada dasmulheres tem pautado a defesa daReforma Agrária. Neste ano reafir-mamos essa pauta. Queremos oassentamento das 90 mil famíliasacampadas em todo país. Hoje há umapolítica por parte do governo federalde bloquear a Reforma Agrária, favo-recendo o agronegócio e deixando osassentamentos em uma difícil situaçãoeconômica e de desenvolvimento social.

JST - Como as camponesaspretendem contribuir na construçãoda soberania alimentar no Brasil?

KL - As camponesas, em sua vida nocampo, se organizam e ocupam ta-refas que são práticas concretas desseprojeto de soberania alimentar. No diaa dia das camponesas, estão presentesprincípios que regem esse projeto epautam a luta do enfrentamento aomodelo do agronegócio, que invia-biliza a soberania popular e alimentar.A pretensão é que a partir das

experiências concretas consigamosenfrentar o capital e construir novasrelações sociais.

JST - A precarização do trabalho noâmbito das relações no campo é umproblema latente. Como astrabalhadoras rurais são afetadaspor esta questão específica?

KL - Podemos citar um exemplo queocorre com as mulheres trabalhadorasna atividade do plantio da cana-de-açúcar. Essa atividade é feitamaciçamente por mulheres. Dado oavanço da mecanização em atividadessuper energéticas, as mulheres estãosendo forçadas a uma jornada detrabalho ainda mais extenuante.Isso é importante para podermos

perceber que a propaganda doagronegócio de novo e moderno nãotem fundamento verídico, porque coma mecanização moderna as mulherestrabalhadoras são forçadas a competircom a máquina, tendo assim queaumentar seu grau de produção.É contra essas relações de trabalho quelutamos para alterar. O que oagronegócio propõe como modernidade,na realidade é carregado de relaçõessociais extremamente arcaicas e queaumentam a superexploração do trabalho.

JST - A questão da ReformaAgrária atinge direta ouindiretamente homens e mulheres,seja no campo ou na cidade. Comovocê vê a unificação dosmovimentos sociais camponeses eurbanos em defesa desta bandeira?

KL - No lema “Mulheres em Lutacontra o Capital e pela Soberania dosPovos”, da Jornada de Lutas dasMulheres, está presente o componentede que a luta das mulheres camponesasé algo que nos coloca em um patamarde enfrentamento de classe emcontraposição ao modelo do capital.Esse modelo não está presentesomente no campo, como tambémna cidade. Quando nós tivermos acapacidade de romper com obloqueio do campo e cidade,unificando a luta a partir danecessidade latente de articulaçãodos movimentos sociais campesinose urbanos, conseguiremos avançarem um projeto de sociedade dastrabalhadoras e dos trabalhadorespara de fato derrotar esse modelocapitalista e construir novas relações.

O que o agronegóciopropõe comomodernidade é carregadode relações sociaisarcaicas e que aumentama superexploraçãodo trabalho

Sem Terra montam acampamento em Brasília por tempo indeterminado

Sem Terra fazem ato na embaixada da Venezuela para homenagear Hugo Chávez

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6 JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

ESTADOS Enterro dos Sem Terra assassinados por Adriano Chafik, que será julgado em abril

DA COMUNICAÇÃO DO MST

DIVERSAS atividades estãosendo realizadas em MinasGerais para denunciar os 8

anos de impunidade do Massacre de Felis-burgo, completados no dia 20 de novem-bro. As atividades visam, sobretudo,reivindicar a punição do latifundiário emandante do crime, Adriano Chafik, eseus pistoleiros, já que Chafik vai a JúriPopular em abril. As mobilizaçõestambém exigem a desapropriação da áreada fazenda Nova Alegria para fins deReforma Agrária e indenização dasfamílias vítimas da chacina.

Diante disso, cerca de 300 pessoasparticiparam da audiência pública na As-sembléia Legislativa de Minas Gerais, emBelo Horizonte no dia 20/11 para denun-ciar a violência no campo e exigir justiça.

Após a audiência, um grupo de pessoasdo comitê realizou um escracho em frenteao fórum de Contagem, onde acontecia o

julgamento do ex-goleiro Bruno, paracobrar da mídia a cobertura do massacre.

No dia Dia internacional de lutapelos Direitos Humanos, em 10 dedezembro, outra mobilização foirealizada nova mobilização na capitalmineira e diversos outros atos nos

Sem Terra se mobilizam para pressionarJúri Popular no Massacre de Felisburgo

A rádio mantém um público fiel que se sintoniza das 6h às 20h

Ministérios Públicos e Tribunais deJustiças em vários estados.

No dia do Júri Popular do mandantedo Massacre, o latifundiário AdrianoChafik, o Comitê Justiça para Felisburgomontará um acampamento em BeloHorizonte para acompanhar o processo.

Histórico

Cerca de 230 famílias haviam ocupadoa Fazenda Nova Alegria, com o acampa-mento Terra Prometida, em Felisburgo,no Vale do Jequitinhonha, consideradadevoluta pelo Instituto de Terras de MinasGerais (Iter), em 1º de maio de 2004.

Seis meses depois, o latifundiárioAdriano Chafik comandou pessoalmente oataque às famílias. Cinco trabalhadoresrurais foram assassinados e 13 pessoasficaram feridas, entre elas uma criança de12 anos, que levou um tiro no olho. A escolalocal e vários barracos foram queimados.

O fazendeiro foi preso e posto emliberdade por duas vezes, por decisãodo Superior Tribunal de Justiça (STJ),mesmo depois de confessar a par-ticipação na chacina em depoimento.Atualmente, ele aguarda o julgamentodo Tribunal do Júri de Belo Horizonte,enquanto seus advogados protelam suarealização.

POR RAMIRO OLIVIER E JADE PERCASSI

SETOR DE COMUNICAÇÃO

O ASSENTAMENTO mais antigo doestado de São Paulo comemorou entre

os dias 2 e 5 de novembro seus 25anos de existência. Na luta desde1987, o Assentamento Reunidas, nomunicípio de Promissão, tambémcelebrou os 104 anos do lutador Sem

Terra mais antigo do Brasil, omilitante e poeta Seu Luiz Beltrame.

Em meio a peças de teatro, apre-sentações musicais, comilanças,roda de viola, forró e futebol, os as-sentados e amigos do Reunidascomemoraram mais um dia derenascimento e resistência, rodeadode muita luta dos trabalhadores etrabalhadoras rurais pela conquistada terra e em busca da ReformaAgrária. E foi nesse meio de confi-guração do sujeito do campo que osassentados prestaram homenagem aseu Luiz Beltrame, personagem dopróprio assentamento e símbolo deresistência e luta.

Nascido em Paramirim (BA) em1908, Seu Luiz trabalhou desdecedo na roça, no garimpo, nalavoura de algodão. Não frequentoua escola, tendo aprendido a ler eescrever com seu pai aos 14 anos.

Em 1991 veio para o AssentamentoReunidas, em Promissão. Pai de oitofilhos, 47 netos e muitos bisnetos etataranetos, em 1997 Seu Luiz setornou mais conhecido entre acompanheirada do Movimento porsua participação na Marcha pela Re-forma Agrária, Emprego e Justiça.Desde então, participou de dezmarchas, escreveu dois livros, e suahistória foi tema do documentárioLuiz Poeta, vencedor do concursolatinoamericano Caixa de Curtas.

Poeta e militante do MST, SeuLuiz chega aos 104 anos com lucideze saúde para seguir lutando. Com apele enrugada, cabelo calvo e andarvagaroso, mesmo com a idadeavançada, segue sendo um exemplopara nossa militância e para asociedade de que nada, nemninguém, pode deter a marcha de umpovo por sua libertação.Seu Luiz já participou de 10 marchas e escreveu dois livros

Assentamento Reunidas comemora 25 anose homenageia Seu Luiz Beltrame

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ESTADOS Assentamento Terra Vista participa do concurso na Sala do Chocolate, na França

NO FINAL de outubro, osassentados do Itamarati (MS)

exportaram 500 toneladas de sementes defeijão preto à Venezuela. Foram 12,5 milsacas de 40 quilos que foram entreguesao governo, que foram distribuídas aosagricultores familiares venezuelanos parainiciarem o plantio do feijão.

Ronaldo Pucci, presidente da Coope-rativa Agroindustrial Ceres (Copaceres),explica que 180 associados da cooperativa

participaram do projeto. O percentual éreferente ao valor líquido, isto é, do preçototal do negócio, R$ 3,5 milhões.

Já está sendo negociada a exportaçãode um novo carregamento de mais 500toneladas de feijão. Segundo os técnicosdo MST, que coordenou todos os passosda comercialização, a possibilidade demanter as exportações com a Venezuelaé bem provável. De acordo com ostécnicos, o MST está conversando essas

POR WESLEY LIMA

SETOR DE COMUNICAÇÃO

ENTRE OS DIAS 26 denovembro a 1° de dezembro,o MST junto com outras

organizações sociais realizaram a 1° Jor-nada de Agroecologia da Bahia, noAssentamento Terra a Vista, em Arataca.

Com o tema “Agroecologia: umaproposta de soberania do territóriobaiano”, o evento teve a finalidade deproporcionar um espaço para a refle-xão sobre a agroecologia e o desenvol-vimento sustentável dos povos e comu-nidades tradicionais do território baiano.

Diante disso, a atividade contoucom conferências de análise de conjun-tura e formação política, oficinas práti-

cas, feiras de troca, apresentações cul-turais e a comercialização de produtostrazidos pelos diferentes povos.

AssentamentoTerra Vista

O Assentamento Terra a Vista já é tidocomo referência nacional em produçãoagroecologica. Já se tornou um exemplode que este método produtivo, além degerar renda às famílias, garantir asustentabilidade da área por não utilizaragrotóxicos no manejo do solo.

Além disso, o assentamento estáparticipando do Concurso no Salão doChocolate em Paris, na França, onde ocacau será avaliado diante da suaaltíssima qualidade.

Bahia realiza 1° Jornada de Agroecologia

Terra Vista já se tornou referência nacional na produção agroecológica

Entre os dias 13 à 17 denovembro foi realizada a 2°

Jornada Cultural dos Assentamentosda Reforma Agrária de SantaCatarina, no Assentamento JoséMaria, em Abelardo Luz.

O principal objetivo da jornada foienvolver, sobretudo, a juventude dosassentamentos, e se propôs at rabalhar com as d iversaslinguagens da Cultura PopularBrasileira. A simbologia da luta eda identidade camponesa foramum dos temas centrais trabalha-

Assentados exportam 500 toneladasde feijão à Venezuela

parcerias. “A Venezuela não é um paístradicionalmente agrícola, precisa de tudosobre agricultura e o governo estáempenhado em acelerar o programa desoberania alimentar”, afirmam.

Para o associado da Copaceres,Jusceli Santos, “não foi pouco o tra-balho para chegar a esse nível co-mercial. O MST ficou dois anos orien-tando os venezuelanos sobre a produçãode feijão preto”, disse.

dos ao longo das atividades. Dian-te disso, a jornada pôde contarcom espaços destinados à es-tudos sobre questão agrária, ofici-nas culturais, com teatro, música,artes plásticas, poesia, áudiov isual e capoei ra , a lém dasapresentações culturais, comgrupos de teatros, lançamento dodocumentário Sem Perder a Ternu-ra (de direção de Márcia Paraísoe Ralf Tambke), apresentação deflauta, cantos, violeiros e dançasgaúchas e germânica.

Estudo e cultura simbolizam a 2° Jornada Cultural de Santa Catarina

O principal objetivo da jornada foi envolver, sobretudo, a juventude dos assentamentos

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ESPECIAL A Jornada contou com marchas, atos de solidariedade, ocupações, encontros, oficinas e diversos momentos de descontração

98 JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

JOSÉ COUTINHO JUNIOR

SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

“Bandeira, Bandeira, BandeiraVermelhinha, na luta pela terra nóssomos Sem Terrinha”.

A Jornada Nacional dos SemTerrinha acontece anualmente nomês de outubro nos 24 estados emque o MST está organizado. Osassentamentos e acampamentostornam-se palco do encontro dascrianças que lutam pelo direito deser reconhecido no campo comosujeito de sua própria história.

Realizada desde 1996, a ativi-dade integra as jornadas nacionaisde lutas do MST e tem se consti-tuído em um importante espaço devisibilidade à realidade vivenciadapelas crianças acampadas e as-sentadas, pautando temas que asafetam diretamente.

A jornada contou com marchas,atos de solidariedade, ocupações,encontros, oficinas e diversosmomentos de descontração, tanto nascidades como nos assentamentos.Entre as diversas ações, destaca-se adistribuição de uma tonelada dealimentos orgânicos produzidos portrabalhadores assentados da ReformaAgrária na Paraíba, o ato de

solidariedade dos Sem Terrinha doMaranhão com as crianças daPalestina, vítimas de violência eencarceramento por Israel, queresultou em diversas cartas de apoioaos companheiros do distante país, ea ocupação dos Núcleos Regionais deEducação (NRE) e a SecretariaEstadual de Educação do Estado doParaná (SEED), realizada por mais de3 mil crianças para exigir melhorescondições nas escolas do estado.

Em relação à educação, as crian-ças colocam em pauta temas como aprecariedade da educação no campo,causada pela falta de estrutura nasescolas do meio rural, construção deescolas nos assentamentos, aten-dimento apropriado às crianças comdeficiências especiais, melhorescondições de trabalho aos profes-sores e pelo fim do fechamento dasescolas no campo (nos últimos 10anos, foram fechadas mais de 37 milescolas rurais em todo o Brasil).

As crianças também denunciarama situação de violência no campo,exigindo segurança nas áreas de con-flitos, reivindicando os assentamentosdas famílias acampadas pelo país e adesapropriação de terras para aReforma Agrária. Confira a seguir asfotos da Jornada nos diferentes estados:

“Bandeira Vermelhinha, na luta pelaterra nós somos Sem Terrinha”

“Eu gostei das brincadeiras, das oficinas, de ter conhecido novos amigos, aprendimuitas coisas do MST. Eu gostei muito do passeio na beira da praia” – SemTerrinha Rogério Moura, de 11 anos, sobre a jornada no Ceará.

No Rio Grande do Sul, mais de 400 Sem Terrinha participaram do encontro, que contou com música, teatro, além de oficinas pedagógicas e esportivas. As crianças marcharam até oPalácio Piratini, onde foram recebidas pelo governador Tarsos Genro, e reivindicaram o assentamento de famílias acampadas e a criação de escolas nos assentamentos já existentes.

Na Paraíba, os Sem Terrinha participaram de jogos, brincadeiras populares e assistirem ao filme"Kirikú e a feiticeira", finalizando o dia com a festa popular do Dia das Crianças.

Sem Terrinhas no Paraná marcham por melhores escolas no campo epelo cumprimento da Reforma Agrária

O assentamento Normandia, em Pernambuco, foi palco de uma grande festa, comshows, gincanas e atividades de formação para as crianças.

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Marcha em Brasília durante o 5º Congresso Nacional do MST, em 2007

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Os assentamentos também têm que servir de exemplo na disputa por hegemonia nos maisRUMO AO 6° CONGRESSO

POR EDGAR JORGE KOLLING

SETOR DE EDUCAÇÃO DO MST

PASSADOS QUASE 30 anos da fun-dação do MST, nosso Movimento ex-perimenta uma de suas maiores en-cruzilhadas históricas: a Reforma Agrá-ria está bloqueada!

A Reforma Agrária praticamentesaiu da agenda política e o agronegócioavança a passos largos, com bilionáriosrecursos governamentais e com o apoiototal da grande mídia. A opinião públi-ca, em sua maioria intoxicada pela pro-paganda do agronegócio, está satisfeitaou conformada com esse modelo, e as-siste a tudo sem entender ou se quer co-nhecer a disputa que existe entre os doisprojetos para o campo brasileiro: o agro-negócio e a agricultura camponesa.

As famílias Sem Terra dispostas alutar pela terra não são tantas quanto jáforam um dia, especialmente no centro-sul do Brasil. Nas regiões nordeste enorte, onde se concentra a maioria dessasfamílias, a luta pela terra ainda tem bom

fôlego, mesmo que tenha diminuído nosúltimos anos.

Neste contexto, complexo e adversopara o avanço da Reforma Agrária, oMST tem muitas tarefas e desafios pelafrente. E são desafios fundamentais,que dizem respeito à própria existênciae sentido de ser do MST. Assim comohá 30 anos o MST surgiu da crise eco-nômica, social e política, agora é a vez

do Movimento se superar para seguircomo um protagonista importante naslutas da sociedade brasileira.

O grande desafio do MST é sereinventar! Se reinventar e se recriarpara seguir seu caminho na luta pelaterra, pela Reforma Agrária e portransformações estruturais da sociedadebrasileira. Do contrário, corre o riscode ser mais um movimento que nasceu,cresceu e aos poucos foi enferrujandoaté ser superado por outras organi-zações mais eficazes para atender aosinteresses dos sem-terra e camponeses.

Percurso

Em 2011, analisando a luta de clas-ses no campo, os entraves postos à Re-forma Agrária e as dificuldades que vêm

enfrentando, o MST decidiu desencadearum grande processo coletivo de debatesem preparação ao seu 6° CongressoNacional, que será realizado em 2014.

O MST tem consciência da encruzi-lhada histórica em que está inserido eque, para sair dessa situação, será ne-cessário construir uma outra correlaçãode forças, favorável à Reforma Agráriaem contraposição ao agronegócio.Tudo indica que será um período longode lutas, de construção da unidade cam-ponesa e de estreitar alianças comamplos setores urbanos.

Internamente o MST busca fazeruma análise rigorosa de sua naturezae compreender-se como um fenômenohistórico, em permanente movimentode criação e reinvenção. A linhapolítica é potencializar essa

empreitada de preparação ao 6°Congresso, que já vem se constituindonos encontros, seminários, cursos,reuniões e trabalho de base,envolvendo milhares de Sem Terra.

O caminho se faz caminhando. Amarcha se organiza marchando. E oMovimento Sem Terra se faz em mo-vimento. Por isso é importante “beberdo próprio poço”, extrair lições eaprendizados com os erros e acertos dacaminhada já feita. Dessa raiz, que jáconta com seus 30 anos, temos queprojetar outros 30. Debater com a baseSem Terra sobre o que zelar e o quemudar na nossa organização. No ca-minho, ir tomando medidas para mu-danças necessárias na estrutura orga-nizativa, nas formas de luta, no métodode direção e em outras dimensões queos debates apontarem. Nesse processo,identificar nossos limites, avanços edesafios internos. E, também, os quedizem respeito ao conjunto da so-ciedade brasileira.

Reinventar o MST para continuar sendo o MSTRelembrando

Em 2007, no 5° CongressoNacional, o MST definiu suaatuação pela Reforma AgráriaPopular, entendida como:• amplo processo de

desapropriação das maiorespropriedades e distribuição para4 milhões de famílias sem-terra;

• instalação de agroindústriascooperativas nas comunidadesrurais, para agregar valor àsmatérias primas;

• implementação da agroecologiacomo matriz tecnológica capazde aumentar a produtividade daterra e do trabalho, e produziralimentos saudáveis emequilibro com a natureza;

• a defesa das sementes comopatrimônio da humanidade;

• democratização da educação,da educação infantil auniversidade, passando pelasuperação do analfabetismo;

• valorização das manifestaçõesculturais do meio rural: hábitosalimentares, músicas,cantorias, poesias, festas ecelebrações religiosas.

Tudo indica que seráum período longo delutas, de construção daunidade camponesa e deestreitar alianças comamplos setores urbanos

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Nossa visão de mundo e nossa con-cepção de conhecimento nos permi-tem compreender que os fenômenossociais não acontecem de forma linear,mas são frutos das contradições exis-tentes na sociedade. Por isso mesmoé que algo que está no auge hoje, nooutro estará em descenso, e assimsegue a história.

Nessa perspectiva, precisamos for-talecer nossa organização, manter aunidade interna, cultivar a identidadede lutadores e lutadores do povo e depertença ao MST. Para continuarpressionando pela construção de nossoprojeto de futuro, temos muitas tarefaspela frente. Algumas delas são centraisna conjuntura atual e se desdobramcomo nossos desafios.

Concretizarnosso ideário

Analisando nossas áreas percebemosuma grande distância entre a definiçãopolítica pela Reforma Agrária Popular esua implementação pelas famílias as-sentadas. Não são poucos os assentadosque priorizam monocultivos, plantamsementes transgênicas, usam agrotóxicos,enfim, reproduzem o pacote perverso doagronegócio que o MST combate.

E quantas são as famíliasassentadas que produzem de formaagroecológica? E qual têm sido oempenho do MST, em termos dedecisão política, recursos humanos emateriais, para concretizar nosassentamentos esta matriz tecnológica?

Colocar os assentamentos no centroda ação do MST é construí-los comoum exemplo de organização da produ-ção e do trabalho, de coerência na esco-lha da matriz produtiva e tecnológica.Fazer dos assentamentos um lugar dese viver bem, em equilíbrio com a na-tureza e em comunidade. E que sirvamde exemplo na disputa por hegemonianos mais de mil municípios em queestamos presentes neste país.

Estudo e cultura

O estudo, como esforço individuale coletivo para entender a realidade enela intervir é um princípio organizati-vo que acompanha o MST desde seunascimento. Também entendemos aeducação escolar como um direito e umdever de todos. Inclusive, em 2005,criamos o lema Todas e todos SemTerra estudando!.

No entanto, temos muitos jovens eadultos analfabetos e outros tantos quenão concluíram o ensino fundamental.Ainda há aqueles que passaram pelaescola, mas não têm o hábito da leiturae do estudo.

A falta de estudo e formação críticanos deixa expostos ao que a grande mí-dia apresenta, os seus valores individua-listas e consumistas, além da crimina-lização dos movimentos sociais. Por is-so, é necessário fazer frente a essa mídia.

Precisamos potencializar escolas,bibliotecas, pontos de cultura e demaisespaços dos assentamentos e acampa-mentos. É preciso pensar e construirdiferentes alternativas para elevar onível cultural do conjunto do MST.

Princípiosorganizativos

A crise ideológica que atinge aesquerda e as dificuldades em projetaro caminho rumo ao socialismo têmafetado também o MST. Issodiminuiu a vigilância sobre a práticade nossos princípios, que pode serpercebida no descuido em aplicarcom qualidade o método da direçãocoletiva, a crítica e autocrítica, adisciplina e o trabalho de base.

Ao longo dos anos criamos diferen-tes formas de organização de base, dasinstâncias e dos setores de atividades,mas hoje observamos que esses espaçospouco funcionam. Não podemos nosconformar com essa situação. Precisa-mos nos debruçar sobre o tema e tomarmedidas para ajustar ou reinventar asformas organizativas coletivas.

Nesse período de descenso da lutade massas é importante também res-

gatar a mística e os valores humanistase socialistas. Cultivar valores como otrabalho, o estudo, o espírito de sa-crifício, a humildade, a rebeldia é fun-damental para manter a disposição emseguir lutando.

Batalha das ideias

Boa parte do povo brasileiro estásatisfeita com o modelopredominante da agricultura no país.Porque pouco se sabe sobre osmalefícios do agronegócio, queentope os alimentos de agrotóxicos,destrói a natureza e o meio ambientee concentra terra, renda e riquezas.Ainda mais grave é que essa visãotambém predomina entre osassentados e em boa parte damilitância do MST.

Para confrontar o agronegócio nãobasta que as direções do Movimentosaibam sobre os projetos em disputano campo. É necessário que o conjuntodo MST compreenda porque a Re-forma Agrária está bloqueada, os meca-nismos e contradições do agronegócio,e também conheça o projeto da agri-cultura camponesa e sua missão deproduzir alimentos saudáveis.

Para essa socialização e para fazerpropaganda dos avanços da ReformaAgrária Popular, devemos potenciali-zar a imprensa alternativa: Jornal Brasilde Fato, Jornal Sem Terra, rádioscomunitárias, etc. Também as escolas,os institutos e as universidades dis-postos a debater esses temas.

Nossa tarefa principal é realizarlutas conjuntas para construir umanova correlação de forças nesseembate de projetos.

Lutas

Os inimigos da Reforma Agráriaforam se modificando ao longo dos anos.Dos latifundiários e órgãos de repressãodo Estado, lutar pela terra no Brasil hojeé enfrentar diretamente o capital e aaliança que compõe o agronegócio(grandes proprietários de terra, trans-nacionais, capital financeiro e grandemídia), mais o aparato do Estado.

As conquistas de terra têm diminuí-do drasticamente. No primeiro ano dogoverno Dilma (2011), apenas 22 mil

famílias foram assentadas. O mais baixoíndice dos últimos 16 anos. Esse ce-nário fez diminuir o número de ocu-pações e de famílias Sem Terra dis-postas a participarem de lutas.

Outro motivo que fez encolher as ocu-pações é o Bolsa Família e as alternativasde emprego nas cidades e no campo, frutoda economia que ainda cresce.

O que fazer diante desse cenário deabandono da Reforma Agrária pelo go-verno? Se conformar com a situaçãonão costuma ser a postura do MST. Nos-sos desafios são identificar os atuais eantigos aliados na luta contra o agro-negócio, além de ensaiar novas formasde luta pela terra. Exercitar os SemTerra no enfrentamento ao capital paraacumular experiências e manter abandeira da Reforma Agrária hasteada.

Temos que ter coerência na escolha da matriz produtiva e tecnológicaColocar os assentamentosno centro da ação do MSTé construí-los como umexemplo de organizaçãoda produção e dotrabalho, de coerência naescolha da matrizprodutiva e tecnológica

Para debater:• Que ações o MST deve fazer ouparticipar para construir uma novacorrelação de forças, favorável àReforma Agrária?

• O que fazer e como fazer para quetoda a base do MST participe dos debatesem preparação ao 6° Congresso?

de mil municípios em que estamos presentes

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Fortalecimento da comunicação continental dos movimentos é desafioINTERNACIONAL

RAUL AMORIM

COLETIVO NACIONAL DE JUVENTUDE

DA TERRA DE SANDINO, fortaleci-dos com o espírito de luta e resistênciatrazido pelo território nicaragüense, acon-teceu a 1° Assembleia Continental daCoordenação Latino-Americana de Orga-nizações do Campo (CLOC) Via Campe-sina, entre os dias 17 e 22 de outubro.

Neste momento de celebração denossa história, mas também de intensarepressão das lutas dos povos indígenase camponeses na Honduras, Guatemalae Panamá, decidimos continuar impul-sionando os processos de luta e organi-zação para avançarmos rumo à constru-ção de uma sociedade digna, solidáriae revolucionária, convocando as or-ganizações camponesas e populares daAmérica Latina a redobrarem a suasolidariedade de classe.

A atual ofensiva criminal do capitalna conquista do controle total e abso-luto dos povos, da terra, da água e daatmosfera, nos coloca num momentodelicado, com a humanidade e o nossoplaneta em perigo. O agronegóciocontinua apoderando-se de nossas

terras, expulsando massivamente os quenela trabalham e impondo seu modelode concentração pelo grande capital naagricultura e na natureza, aliados aosbancos, grupos financeiros, empresastransnacionais, burguesias locais, meiosde comunicação e aparatos repressivospúblicos e privados.

Ante toda esta situação, na Assembleiadecidimos continuar o avanço nasestratégias políticas e de luta para enfrentaros desafios presentes, ao consolidar nossaestrutura organizativa, reafirmar nossasarticulações nacionais e estrutura regional,aprovar a nova carta orgânica e dar ospassos necessários para continuar o processode fortalecimento da democraciaparticipativa nas organizações.

Uma das tarefas prioritárias defini-da na atividade foi o fortalecimento dasescolas e espaços para a formaçãosócio-política dos nossos dirigentes emilitantes, por meio do desenvolvi-mento de processos permanentes deformação de base com plena inclusãodas mulheres e jovens. Além do apri-moramento dos nossos próprios meiosde comunicação e a articulação comoutros veículos parceiros, com a finali-

dade de disputar o campo das ideias erepassar a nossa leitura da realidade.

Lutas

A memória dos companheiros Egí-dio Brunetto e Ramiro Tellez estevepresente durante toda a Assembleia,com o compromisso de continuar arti-culando mobilizações permanentes econjuntas em todos os níveis para en-frentar os interesses das empresas trans-nacionais e seus mecanismos de con-trole, ao mesmo tempo em que cons-truímos uma nova matriz tecnológicabaseada na agroecologia e controladapelos trabalhadores e trabalhadoras.

Neste processo, a CLOC-Via Cam-pesina tem constatado avanços garantidospela luta na Nicarágua, como também nospaíses que assumiram os compromissoscom as organizações camponesas e com asoberania alimentar. Dessa maneira, afir-mamos a importância do triunfo da Re-volução Bolivariana e da reeleição dopresidente Hugo Chávez, nos compro-metendo a apoiar os governos querespondam as necessidades do povo.

Reafirmamos nossa aliança com os

Cloc avança na organizaçãoe define priorizar formação

A CLOC-Via Campesinatem constatadoavanços na luta nospaíses que assumiramos compromissos comas organizaçõescamponesas e com asoberania alimentar

trabalhadores da cidade e populaçõesurbanas, entendendo a importância deimpulsionar com mais força a unidadede classe como condição imperativapara que as mudanças necessárias a todasociedade sejam realizadas.

20 anos depois

No encontro houve orientações denovas iniciativas e de como avançar-mos nas campanhas continentais einternacionais construídas ao longodesses 20 anos, como a Campanha dasSementes, Patrimônio de Nosso PovoIndígena e Camponês a serviço daHumanidade, Basta de Violência contraas Mulheres, Campanha contra os agro-tóxicos e pela Vida e Campanha Globalpela Reforma Agrária.

A 1° Assembleia Continental da CLOCtambém foi um momento para a transiçãoda Secretaria Operativa da organização,ao sair do Equador, sob a tarefa da Fede-ración Nacional de OrganizacionesCampesinas e Indígenas (Fenocin) duranteesses últimos quatro anos, e passar a respon-sabilidade ao Movimento NacionalCampesino Indígena, na Argentina.

Com grande animação apontamoso desafio de construir a 6° Conferênciada Via Campesina para 2013, em Ya-karta, na Indonésia, e celebrar seus 20anos de articulação internacional.

O encerramento culminou num grandeato de solidariedade e compromisso in-ternacional em apoio à resistência e lutados povos, em especial ao povo de Hondu-ras, Panamá, Guatemala e Paraguai.Representantes de diversos movimentos sociais participam da 1ª Assembleia Continental da Cloc sob a figura de Sandino

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Professor, teórico e militante deixa legado para entender o Brasil e a batalha das ideiasLUTADORES DO POVO

POR MAVI PACHECO RODRIGUES

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

VÍTIMA DE UM câncer pulmonarcontra o qual lutou bravamente, Car-los Nelson Coutinho, natural deItabuna (BA), faleceu em 20 de se-tembro de 2012, poucos meses apóscompletar 69 anos de idade, demons-trando uma capacidade de trabalhoespantosa e o quão enganosas são asafirmações sobre a preguiça baiana.

Escreveu mais de uma dezena delivros - a maior parte traduzida no exte-rior - quando ainda era muito jovem, entreo fim dos anos de 1950 e início de 1960.Realizou também um largo trabalho detradução, que tornou acessível em línguaportuguesa o pensamento de autoresrenomados como Claude Lévi-Strauss,Jürgen Habermas, Henri Lefebvre eHerbert Marcuse, e parte significativa daimportantíssima História do Marxismo,organizada por Eric Hobsbawm.

Carlito – como era chamado pelosmais próximos – pôde ainda em vidareceber da Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ) o título de ProfessorEmérito. Todavia, tal honraria, a maiorque a universidade pode conceder a umdocente, não traduz o exato significadoda sua produção.

Um militante nauniversidade

Muito embora tenha cumpridofielmente com suas responsabilidadesacadêmicas nos 25 anos de exercíciodocente na Escola de Serviço Social da

Carlos Nelson Coutinho:marxista indispensável

UFRJ, e conquistado o respeito e carinhode alunos e colegas de trabalho, CarlosNelson – como bem alertou seu camaradade longa data e muitas batalhas, JoséPaulo Netto - nem de longe pode seridentificado com um típico produto erepresentante da academia.

Ingressou tardiamente na universi-dade, quando já havia se tornado umintelectual, e não a utilizou como descul-pa para manter-se longe das lutas declasses ou encobrir suas posições teórico-políticas. Servindo à universidade, e nãose servindo dela, como marxistaconvicto e confesso, manteve-se coerentecom os compromissos societários queremontam a sua juventude: a opção pelocomunismo, feita à época da suamilitância no movimento estudantil, esua adesão ao marxismo, realizada pormeio da leitura direta e rigorosa dopróprio Marx.

Podendo ser considerado um dosmaiores intelectuais do país da segundametade do século 20 e primeira do 21,

Carlos Nelson ainda foi pioneiro naintrodução, na cultura brasileira, dospensamentos de dois autores marxistaseuropeus que se tornaram centrais no

Sua obra coloca nocentro da agendada esquerda brasileiraa problematizaçãoda relação entredemocracia e socialismo

Coutinho nos ensinou ariqueza do marxismocomo uma teoria viva,que deve renovar-se paradar conta da realidade

debate teórico filosófico do século 20:o húngaro György Lukács e o italianoAntonio Gramsci.

Ao buscar ser discípulo destes doispensadores e, especialmente, ao usarde forma criativa as suas categorias,Coutinho nos ensinou a riqueza domarxismo como uma teoria viva, quedeve renovar-se para dar conta da reali-dade. Indicando a importância do estu-

do dos clássicos da tradição marxista,mas também da investigação darealidade brasileira, das peculiaridadesda nossa formação histórica e social,Carlos Nelson deu uma efetiva contri-buição à renovação do marxismo.

E foi o exercício desse marxismorenovado, vivo e em movimento, quelhe permitiu compreender a parti-cularidade da revolução burguesa empaíses retardatários como o Brasil.Ele pesquisou como a revolução bur-guesa, de um modo profundamentedistinto dos modelos revolucionáriosclássicos, realizou-se por meio deacordos feitos pelo alto entre os dife-rentes setores da classe dominante,em especial a grande propriedadefundiária e a burguesia industrial.

Entretanto, nos deixou um preciosolegado ao colocar no centro da agendada esquerda brasileira a problematiza-ção da relação entre democracia esocialismo, construída sob o ponto devista dos subalternos. Seus anseios evalores se constitui como indispensávela todos aqueles que pretendem entendero Brasil contemporâneo e os desafiosatuais da luta revolucionária em nossopaís. É como marxista imprescindível,como um clássico da tradição marxistabrasileira, que Carlos Nelson Coutinhopermanecerá presente entre nós.

Carlos Nelson recebeu um quadro de presente em visita à ENFF em Guararema

Principais obras

• Literatura e Humanismo.Rio de Janeiro, Editora Paze Terra, 1967.

• Cultura e Sociedade no Brasil:ensaios sobre ideias eformas. São Paulo, ExpressãoPopular, 2011.

• O Estruturalismo e a Misériada Razão. São Paulo,Expressão Popular, 2010.

• Contra a corrente: ensaiossobre democracia e socialismo.São Paulo, Cortez, 2000.

• Intervenções: o marxismona batalha das ideias.São Paulo, Cortez, 2006.

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14 JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

Escritor é considerado um dos mais inovadores e originais de seu tempoLITERATURA

Um homem vendia gritos e palavrase ia bem, embora encontrasse muitagente que discutia os preços e pediaabatimento. O homem concordavaquase sempre, e assim pôde vendermuitos gritos de vendedores ambulantes,alguns suspiros que lhe foramcomprados por senhoras pensionistas epalavras para lemas,slogans, lembretese falsas ocorrências.

Afinal o homem percebeu que suahora havia chegado e pediu audiênciaao tiranete do país, que era parecidocom todos os seus colegas e o recebeucercado de generais e xícaras de café.

—Venho vender-lhe suas últimaspalavras — disse o homem. — São muitoimportantes porque nunca lhe vãoocorrer no momento e emcompensação lhe convém dizê-las noduro transe para configurar facilmenteum destino histórico retrospectivo.

—Traduza o que ele está dizendo —ordenou o tiranete a seu intérprete.

—Ele fala argentino, Excelência.—Argentino? E por que é que eu não

entendo nada?

—O senhor entendeu muito bem — disseo homem. — Repito que venho para vender-lhe suas últimas palavras.

O tiranete pôs-se de pé como é depraxe nestas circunstâncias e reprimindoum tremor mandou que prendessem ohomem e o metessem nos calabouçosespeciais que existem sempre nessesambientes de governo.

—É uma pena — disse o homemenquanto o levavam. —Na realidade osenhor desejará pronunciar suas últimaspalavras quando chegar o momento, eprecisará dizê-las para configurarfacilmente um destino histórico retrospec-tivo. O que eu ia vender-lhe é o que osenhor quererá dizer, de modo que não háfraude. Mas como o senhor não aceita onegócio, como não vai aprender essaspalavras por antecipação, quando chegaro momento em que elas quiserem brotarpela primeira vez, naturalmente o senhornão poderá dizê-las.

Por que não poderei dizê-las, se sãoas que eu quererei dizer? — perguntou otiranete, já diante de outra xícara de café.

Porque o medo não lhe permitirá — disse

tristemente o homem. — Como o senhorestará com uma corda no pescoço, decamisa e tremendo de terror e frio, osdentes se entrechocarão e não conseguiráarticular uma palavra. O carrasco e osassistentes, entre os quais estará algumdestes senhores, esperarão por decoroalguns minutos, mas quando brotar de suaboca somente um gemido entrecortado desoluços e súplicas de perdão (porque issosim o senhor articulará sem esforço) ficarãoimpacientes e o enforcarão.

Muito indignados, os presentes eem especial os generais cercaram otiranete para pedir-lhe que mandassefuzilar imediatamente o homem. Mas otiranete, que estava pálido-como-a-mor-te, expulsou-os aos empurrões e tran-cou-se com o homem para comprar-lhe suas últimas palavras.

Enquanto isso, os generais e ministros,humilhadíssimos pelo tratamento recebido,prepararam uma insurreição e na manhãseguinte prenderam o tiranete quando elecomia uvas em seu caramanchãopreferido. Para que ele não pudesse proferirsuas últimas palavras, mataram-no ali

JADE PERCASSI

SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

JULIO CORTÁZAR nasceu em Bruxe-las, Bélgica, em 26 de agosto de 1914,filho de pais argentinos. Cortázar erauma criança bastante enferma e passavamuito tempo na cama, lendo livros quesua mãe selecionava. Passou a infânciana Argentina, formou-se professor em1935 e começou seus estudos na Uni-versidade de Buenos Aires, mas teveque sair por dificuldades financei-ras. Trabalhou em diversas cidades dointerior e, em 1938, publicou sob opseudônimo de Julio Denis um livrinhode sonetos: Presença.

Em 1951, por não concordar coma ditadura na Argentina, afastou-se do paíse passou a trabalhar como tradutor daUnesco, em Paris. Ainda em 1951,publicou Bestiário – onde começaria aapresentar seus deslumbrantes mundos de

política na América Latina, em particularas violações dos Direitos Humanos.

É considerado um dos autores maisinovadores e originais de seu tempo,mestre do conto curto e da prosa poética,comparável a Jorge Luis Borges, de quemrecebeu influência. Inaugurou uma novaforma de fazer literatura na América Latina.Em 1983, com a volta da democracia naArgentina, Cortázar fez a última viagemà sua pátria, onde foi recebidocalorosamente por seus admiradores.

O refinamento literário de Julio Cor-tázar, sua leitura quase sem limites, o seufervor incansável pela causa social, fazemdele uma figura fantástica, constituída porpaixões e fervor genuínos. Julio Cortázarmorreu de leucemia em 1984, mas suapassagem pelo mundo continua a inspirara ousadia da criatividade de quem conhecesua vida e sua obra. De seus muitos livros,16 foram editados no Brasil, sendo o maisconhecido O Jogo da Amarelinha.

Julio Cortázar, o mestredo conto curto e da prosa poética

fantasia e críticas muito peculiares. Esteveem Cuba, no Chile, Costa Rica, Nicarágua.

Em 1974, foi membro do Tribunal reuni-do em Roma para examinar a situação

A principal característica da obra de Cortázar é o conto curto e a prosa poética

mesmo, com um tiro. Depois, puseram-sea procurar o homem que desaparecera dopalácio do governo, e não tardaram emencontrá-lo, pois perambulava nomercado, vendendo pregões aossaltimbancos. Metendo-o num carro dapolícia, conduziram-no à fortaleza etorturaram-no para que revelasse quaispoderiam ter sido as últimas palavras dotiranete. Como não conseguiram arrancar-lhe a confissão, mataram-no a pontapés.

Os vendedores ambulantes quehaviam comprado gritos continuaramapregoando-os pelas esquinas, e umdesses gritos serviu depois comocontrassenha da contrarrevolução queacabou com os generais e os ministros.Alguns deles, antes de morrer, pensaramconfusamente que na realidade tudoaquilo tinha sido uma infame corrente deequívocos, e que as palavras e os gritoseram coisas que, a rigor, se pode vender,mas não comprar, embora pareça absurdo.

E todos foram apodrecendo, o tira-nete, o homem e os generais e ministros,mas os gritos ressoavam de vez emquando pelas esquinas.

Fábula sem moral

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15JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

Para não esquecer

No dia 25 de novembro, realizou-se a 6° Cavalgada da Reforma Agráriano município de Itapeva, no interiorde São Paulo, para comemorar os 14anos da Rádio Camponesa.

Durante a atividade foram realizadasapresentações musicais, transmitidas aovivo pela Camponesa, com a participaçãode militantes dos setores de cultura ecomunicação do estado e da região.

A atividade contou com pessoasvindas de todos os assentamentos e dosbairros aos redores, culminando comuma grande confraternização, com

A rádio mantém um público fiel que sintoniza das 6h às 20h

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“Creio que conseguimosatingir o principal objetivo,de chegar às casas dasfamílias assentadas, depequenos produtores daregião e até mesmo àperiferia da cidade.”

IRIEL FAGUNDES,da Rádio Camponesa

almoço coletivo de arroz carreteiro,resgatando a cultura alimentar dostropeiros, presentes na história da região.

Rádio Camponesa celebra 14 anos com cavalgada em Itapeva

Um dos maiores historiadores do século 20 e

respeitado marxista, Eric Hobsbawm faleceu

no dia 1° de outubro em Londres, aos 95

anos. O estudioso deixou um amplo legado

de pesquisas e análises sobre a história do

mundo moderno a partir do viés marxista.

Hobsbawm é autor de algumas das mais

importantes obras acerca da história recente

da humanidade, como “A Era das Revoluções”

(sobre o período de 1789 a 1848), “A Era do

Capital” (1848-1875) , “A Era dos Impérios”

(1875-1914) e “A Era dos Extremos – O Breve

Janeiro01 Revolução Cubana, 195901 Levante popular em Chiapas,

México, 199401 Independência da República

Negra do Haiti, 180403 Nascimento de Luiz Carlos

Prestes, 189813 Morre o historiador marxista

Nélson Werneck Sodré, 199915 Nascimento de Martin

Luther King, 192915 Assassinato de Rosa Luxemburgo

e Karl Liebknecht, 191921 Morre Vladimir Lênin, 192422 Nascimento de Antonio Gramsci,

1891 e Leonel Brizola, 192222 Insurreição camponesa de inspiração

comunista em El Salvador, 193223 Nascimento de Sergei

Eisenstein, 1898

25 Criado o Jornal Brasil de Fato, 2003

O jornal Brasil de Fato foi lançado noFórum Social Mundial de Porto Alegre,em 25 de janeiro de 2003. Movimentossociais como o MST, a Via Campesina,a Consulta Popular e diversas pastoraissociais criaram o jornal Brasil de Fato,de circulação nacional. O objetivo écontribuir no debate e na análise dosfatos do ponto de vista da necessidadede mudanças sociais em nosso país apartir do olhar da classe trabalhadora.

28 Nascimento de José Martí, 1853

29 1° Congresso do MST, 1985

Serguei Mikhailovitch Eisensteinnasceu em 23 de janeiro de 1898,em Riga, e é considerado o maisimportante cineasta soviético.Participou da Revolução de 1917, aolado de Lênin, Trotski e Stalin, tendoatuado no campo das expressõesartísticas, emespecial nocinema. Nocinema, criouuma novatécnica demontagem defilmes,chamada de“montagemintelectual” ou “montagemdialética”. Conseguiu reunir artecinematográfica e política.Fez “O Encouraçado Potemkin”,um dos mais importantes domundo até hoje. Faleceu em 11 defevereiro de 1948, em Moscou.

Século 20”, lançado em 1994.

Em entrevista à Revista Sem Terra em 2009,

Hobsbawm comentou que de certezas, apenas

a de que, se a humanidade não mudar os

rumos da sua convivência mútua e com o

planeta, o futuro nos preserva maus agouros.

Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não

acreditava que uma nova ordem mundial

surgirá das cinzas do pós-crise, mas achava

que ainda existem forças capazes de propor

novas formas de organização e cultura

políticas e sociais, como o MST.

Eric Hobsbawm e a necessidade da luta

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