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Jovens e adultos na sala de aula: sujeitos e aprendizagens na EJA

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Jovens e adultos na sala de aula: sujeitos e aprendizagens na EJA

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Fundação Vale

Conselho Curador

PresidenteVania Somavila

ConselheirosLuiz Eduardo LopesMarconi ViannaZenaldo OliveiraAntonio PadoveziAlberto NinioRicardo MendesLuiz Fernando LandeiroLuiz Mello

Conselho Fiscal

PresidenteMurilo Muller

ConselheirosCleber SantiagoBenjamin MoroFelipe PeresLino BarbosaVera Schneider

Conselho Consultivo

PresidenteMurilo Ferreira (CEO Vale)

ConselheirosDanilo Santos da Miranda (Diretor do SESC SP)Dom Flávio Giovenale (Bispo de Abaetetuba)Luis Phelipe Andrés (Conselheiro do IPHAN)Paula Porta Santos (Historiadora e Doutora pela USP)Paulo Niemeyer Filho (Chefe do Centro de Neurologia Paulo Niemeyer)Silvio Meira (Presidente do Conselho Administrativo do Porto Digital)

Diretora PresidenteIsis Pagy

Diretor ExecutivoLuiz Gustavo Gouvêa

Gerência de Relações IntersetoriaisAndreia Rabetim

Gerência de EducaçãoMaria Alice SantosAndreia PrestesAnna Cláudia D’AndreaCarla VimercateMariana Pedroza

Ação Educativa

DiretoriaMaria Machado Malta CamposLuciana GuimarãesMichele Prazeres

Coordenação GeralVera Masagão Ribeiro

Coordenação Unidade Educação de Jovens e AdultosRoberto Catelli Jr.

Produção editorialEdnéia GonçalvesFernanda BotalloMichele EscouraRoberto Catelli Jr.

Projeto gráfico e diagramaçãoAeroestúdio

Dezembro de 2014

A área de Educação da Fundação Vale busca contribuir para a melhoria da educação básica, com foco na promoção de uma prática docente pautada nos princípios da pluralidade cultural e do respeito às diferenças.

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A Fundação Vale tem a educação como um dos principais pilares de sua atuação social, com base na premissa de que o ensino gratuito e de qualidade é um direito de todos os cidadãos.

No âmbito da Educação de Jovens e Adultos (EJA), o Brasil passou nas últimas décadas por um processo de amadurecimento que provocou uma transformação na compreensão sobre as questões centrais que envolvem essa modalidade de ensino. Dentre elas, estão na linha de frente das ações a defesa do direito de todos à educação ao longo da vida e a construção das identidades de jovens e adultos como sujeitos de conhecimentos e aprendizagens.

Por isso, a Fundação Vale considera fundamental contribuir para a estruturação da Educação de Jovens e Adultos nos municípios localizados nas áreas próximas às operações da Vale. Com isso, aumentam-se as chances de retorno aos estudos de pessoas que, por diversas questões sociais, evadiram da escola regular. Além disso, educar para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e democrática fazem parte dos objetivos da Fundação.

Este material, fruto de um projeto desenvolvido nos municípios de Itabira e São Gonçalo do Rio Abaixo, em Minas Gerais, construído em parceria com a Ação Educativa, integra os esforços para o fortalecimento da EJA e se propõe a oferecer subsídios aos professores e gestores na estruturação dessa modalidade de ensino. São temas e conteúdos escolhidos por sua relevância e adequação ao público ao qual se destina; refletem, de maneira abrangente, assuntos que podem ser trabalhados pelos docentes, respeitando-se as características locais e as demandas de cada território.

Esperamos que o conteúdo aqui apresentado contribua para a ampliação do entendimento sobre as especificidades da Educação de Jovens e Adultos e, consequentemente, ajude no processo de fortalecimento dessa modalidade de ensino em nosso país. Desejamos também que este material seja fonte de apoio e inspiração para gestores e educadores na busca por novas estratégias que levem à redução da evasão escolar e à desconstrução de estereótipos, por meio de metodologias que valorizem sempre os saberes e as trajetórias pessoais desses alunos.

Boa Leitura!Fundação Vale

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Sumário

Parte 1 Pressupostos e sujeitos da EJA

Fundamentos para a Educação de Jovens e Adultos 11

Relações de gênero no currículo da EJA 21

Educação de Jovens e Adultos e relações raciais 43

Os jovens no cotidiano da Educação de Jovens e Adultos (EJA): desafios e possibilidades 65

Formação profissional na Educação de Jovens e Adultos 75

Parte 2 As áreas de conhecimento na EJA

Letramento e os contextos de Educação de Jovens e Adultos 85

Numeramento como uma nova forma de ensinar e aprender matemática na EJA 95

Ciências da Natureza pela perspectiva do letramento na EJA 103

Ciências Humanas: por uma educação que fortaleça a igualdade e os direitos humanos na EJA 125

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Desafios da EJA no contexto atual

A Educação de Jovens e Adultos no Brasil vem enfrentando desde meados dos anos 2000 um contínuo movimento de redução de matrículas em quase todo o país. Parte disso se explica pelo baixo investimento dos governos estaduais e locais na modalidade. Entretanto, é necessário considerar que se instalou também uma crise relacionada ao modelo curricular instituído para a EJA no país, que, em grande parte, mostra-se como uma simplificação descabida dos currículos para jovens e crianças.

Sabemos também que nesse período vem ocorrendo uma grande mudança de perfil dos educandos da EJA. Cada vez mais os jovens surgem como alunos dessa modalidade. Em parte, impulsionados por um sistema educacional que promove a exclusão dos jovens que por alguma razão não tiveram sucesso na escola. Nos anos 2010, observamos na maioria das salas de EJA grandes contingentes de jovens junto a pessoas com mais de 30 anos e outras acima dos 60. Esse contexto tem sido motivo de discussões e de conflitos também. Há aqueles que criminalizam os jovens, julgando que são hoje o problema da EJA. No entanto, para não contribuir ainda mais com a lógica de exclusão de jovens que ocorre no país, é preciso ter uma outra compreensão desse sujeito que ainda parece pouco compreendido em sua pluralidade, até porque não podemos falar somente em juventude,

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devemos nos referir às várias juventudes, levando em conta toda a heterogeneidade presente entre estes.

Mas não só os jovens se apresentam como tema relevante no que se refere aos sujeitos da EJA. Temos que considerar também a grande presença negra na EJA, que em muitos municípios chega a ser mais de 80% do público matriculado. Trata-se de um grupo também marginalizado e excluído do sistema escolar ao longo da história.

Também podemos fazer referência às pessoas LGBTs, em relação às quais as violências simbólicas e físicas sofridas no ambiente escolar são muitas vezes naturalizadas e impulsionam o abandono escolar. Discriminadas diariamente nas escolas, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são empurrados para a margem do sistema escolar e têm seu direito à educação subtraído de modo silencioso, sem que se discutam ou se busquem caminhos para a manutenção desses grupos na escola. Muitos desses que abandonam os estudos na infância ou na adolescência acabam por retornar para a escola por meio da modalidade EJA. No entanto, até o presente não sabemos onde estão, quantos são e o que pensam, pois quase inexistem estudos e dados estatísticos relacionados a esse grupo.

A presença desses diferentes sujeitos na EJA tem em comum a forte exclusão que sofreram no sistema escolar, fazendo com que procurassem novos caminhos para retornar aos estudos quando jovens e adultos.

Cabe, então, perguntar qual currículo e modelo de organização do trabalho escolar seria adequado a esse público diverso e historicamente excluído que tem que dividir a vida escolar com o trabalho e as demandas familiares. Uma das grandes dificuldades dos jovens e adultos para retornar aos estudos é a dificuldade em conciliar família, trabalho e escola. Por isso, coloca-se a tarefa de refletir e criar currículos que atendam de fato às expectativas e necessidades de jovens e adultos que retornam à escola. Trata-se de pensar em modelos que não tenham como base a escola de crianças e jovens, mas as particularidades dos sujeitos que recorrem à EJA.

Além da redução ano a ano das matrículas da EJA no Brasil, observamos a evasão de mais da metade dos estudantes ao longo do período letivo. Isso ocorre pelas dificuldades que já indicamos de frequentar a escola, mas também pela decisão pessoal daqueles que

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não querem permanecer em um espaço que pouco pode contribuir com as suas reais necessidades e expectativas.

Os textos que se seguem foram criados com base na experiência de formação de educadores de jovens e adultos em dois municípios de Minas Gerais em parceria com a Fundação Vale. Eles procuram trazer elementos para que se reflita sobre as possibilidades de construir currículos próprios à educação de jovens e adultos tendo em conta também a própria especificidade de sua realidade. É importante ressaltar que não pode existir um único ou melhor modelo para a EJA. Deve-se criar tantos modelos quantos forem necessários com base em cada uma das realidades existentes. Populações rurais, comunidades ribeirinhas, trabalhadores urbanos, jovens e adultos das periferias, enfim, para cada contexto e grupo social pode ser necessário criar uma EJA diferente. Assim, precisamos de tantas EJAs quantas forem necessárias para atender os 65 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais que não concluíram o ensino fundamental e outros 22 milhões com 18 anos ou mais que não concluíram o ensino médio.

Esperamos que esses textos sejam um estímulo para criar mais uma EJA adequada para algum público específico. Na primeira parte, foram incluídos textos que fazem referência aos fundamentos e aos sujeitos da EJA. Na segunda parte, incluímos textos que discutem perspectivas para as áreas de conhecimento na EJA, fazendo já uma escolha por propostas de trabalho menos fragmentadas que o trabalho por disciplinas.

Roberto Catelli Jr.

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Parte 1

Pressupostos e sujeitos da EJA

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Fundamentos para a Educação de Jovens e AdultosEdnéia Gonçalves

Uma primeira conversa sobre a especificidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA)

Não é possível pensar uma prática de EJA adequada às necessidades atuais das pessoas jovens e adultas sem considerar os fundamentos que a embasam. Por isso, iniciaremos este caderno apresentando um breve histórico do debate sobre a EJA no Brasil e no mundo, acompanhado de alguns dos principais fundamentos dessa modalidade de ensino.

No Brasil, as modalidades básicas a serem seguidas para a Educação Básica da EJA estão pautadas no parágrafo único do artigo 5o das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos:

Artigo 5o – Os componentes curriculares consequentes ao modelo pedagógico próprio da educação de jovens e adultos e expressos nas propostas pedagógicas das unidades educacionais obedecerão aos princípios, aos objetivos e às diretrizes curriculares (…).Parágrafo único – Como modalidade destas etapas da Educação Básica, a identidade própria da Educação de Jovens e Adultos considerará as situações, os perfis dos estudantes, as faixas etárias e se pautará pelos princípios de equidade, diferença e proporcionalidade na apropriação e contextualização das diretrizes curriculares nacionais e na proposição de um modelo pedagógico próprio, de modo a assegurar:

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I – quanto à equidade, a distribuição específica dos componentes curriculares a fim de propiciar um patamar igualitário de formação e restabelecer a igualdade de direitos e de oportunidades face ao direito à educação;II – quanto à diferença, a identificação e o reconhecimento da alteridade própria inseparável dos jovens e dos adultos em seu processo formativo, da valorização do mérito de cada qual e do desenvolvimento de seus conhecimentos e valores; III – quanto à proporcionalidade, a disposição e alocação adequadas dos componentes curriculares face às necessidades próprias da Educação de Jovens e Adultos com espaços e tempos nos quais as práticas pedagógicas assegurem aos seus estudantes identidade formativa comum aos demais participantes da escolarização básica. (CNE/CEB n. 1, de 05.07.2000)

O processo de construção da identidade da Educação de Jovens e Adultos contemporânea é fortemente marcado pelos fóruns e conferências internacionais promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a partir dos anos 1990 do século XX. As discussões e metas estabelecidas nesse contexto contribuíram bastante para o desenvolvimento de marcos legais e conceituais da EJA no Brasil e no mundo.

Dentre os vários avanços produzidos nesse contexto, destacamos três fundamentos indispensáveis para a compreensão da EJA como modalidade específica do ensino básico e manifestação do direito humano à educação:

• o direito à educação ao longo da vida (do nascimento ao fim da vida), que amplia o conceito de educação básica;

• o foco central na aprendizagem dos alunos e alunas da EJA; • o processo educativo direcionado à satisfação das necessidades

básicas de aprendizagem dos jovens e adultos.

Este texto tem por objetivo apresentar as implicações desses fundamentos na consolidação da EJA no Brasil, assim como discutir os desafios impostos para a construção de propostas adequadas às especificidades dessa modalidade de educação.

Contextualizando a discussão: o local e o global [as Conferências Internacionais e a prática pedagógica]

A despeito dos avanços legais direcionados ao reconhecimento dos direitos educativos de todas as pessoas em todas as etapas de sua vida, a

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garantia de educação pública, gratuita e adequada às singularidades das trajetórias pessoais e ao processo de ensino e aprendizagem dos jovens e adultos permanece como imenso desafio para grande parte das redes públicas brasileiras.

Os compromissos assumidos pelo Brasil nas diferentes conferências internacionais organizadas pela Unesco a partir da década de 1990 impulsionaram de maneira inquestionável o processo iniciado nos anos 1960 por Paulo Freire1, pois visavam superar os paradigmas da educação compensatória e assistencialista historicamente vinculados à educação de jovens e adultos em nosso país.

Os participantes da Conferência Internacional sobre Educação para Todos, realizada em 1990 em Jomtien, na Tailândia, registraram, em sua Declaração Final, conceitos e compromissos que contribuíram significativamente para a consolidação da EJA como expressão do direito de todos à educação.

Dos vários aspectos inovadores presentes na “Declaração Mundial de Educação para Todos”2, destacamos três:

(I)“A educação básica é mais do que uma finalidade em si mesma. Ela é a base para a aprendizagem e o desenvolvimento humano permanentes, sobre a qual os países podem construir, sistematicamente, níveis e tipos mais adiantados de educação e capacitação.”

Este conceito amplo de educação básica coloca a educação escolar diante do fato de que o desenvolvimento humano é permanente e que a oferta educativa deve qualificar-se para o acolhimento a crianças, jovens, adultos e idosos.

1 Paulo Freire nasceu em 1921 em Recife, em uma família de classe média. Formou-se em direito, mas não seguiu carreira, encaminhando a vida profissional para o magistério. Com base na observação da cultura dos alunos – em particular o uso da linguagem – e do papel elitista da escola, Paulo Freire começou a formular suas ideias pedagógicas. Em 1963, em Angicos (RN), chefiou um programa que alfabetizou 300 pessoas. No ano seguinte, o golpe militar o surpreendeu em Brasília, onde coordenava o Plano Nacional de Alfabetização do presidente João Goulart. Freire passou 70 dias na prisão antes de se exilar. Em 1968, no Chile, escreveu seu livro mais conhecido, Pedagogia do Oprimido. Também deu aulas nos Estados Unidos e na Suíça, e organizou planos de alfabetização em países africanos. Com a anistia, em 1979, voltou ao Brasil, integrando-se à vida universitária. Foi nomeado doutor honoris causa de 28 universidades em vários países.2 Unicef Brasil. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10230.htm>. Acesso em: 25 nov. 2014.

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A implicação desse fundamento para a formulação de uma proposta educativa adequada às demandas da EJA é o reconhecimento da necessidade de diagnóstico.

Conhecer, valorizar, dialogar e construir novos saberes a partir do contexto e das pessoas reais é parte do aprendizado da superação dos preconceitos e da construção de uma educação comprometida com a qualidade da aprendizagem, equidade e superação das desigualdades.

(II)“Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo.”

Identificada como a educação dos “carentes, marginalizados e excluídos”, as propostas de EJA assimilaram por muito tempo o papel de “educação mínima” direcionada àqueles com “possibilidades também precárias de desenvolvimento e aprendizagem”. A superação dos preconceitos e o reconhecimento dos jovens e adultos pouco escolarizados como sujeitos de aprendizagem, produtores e disseminadores de conhecimentos é um ponto de partida importante para avançarmos em direção a uma EJA adequada às demandas específicas de articulação e construção de novos saberes significativos para educadores e educandos, demandas estas que se expandem para a satisfação de necessidades básicas (e não mínimas) de aprendizagem; básicas porque consideram as especificidades dos grupos, a diversidade de experiências dos indivíduos e dos coletivos.

Essa prática educativa fundada no acolhimento às diferenças e especificidades é potencialmente transformadora da relação professor-aluno e escola-comunidade, pois se por um lado amplia a responsabilidade coletiva pela aprendizagem, por outro é libertadora do ponto de vista da ampliação do diálogo entre os saberes locais e globais.

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(III)“A tradução das oportunidades ampliadas de educação em desenvolvimento efetivo para o indivíduo ou para a sociedade dependerá, em última instância, de, em razão dessas mesmas oportunidades, as pessoas aprenderem de fato, ou seja, apreenderem conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e valores.”

As experiências vivenciadas na família, na comunidade, na participação social e no trabalho conferem ao ser humano saberes fundamentais que influenciam seu meio, sua cultura e permitem a construção de biografias únicas, ricas, complexas e completas. O reconhecimento da singularidade e do potencial transformador dos conhecimentos construídos nas trajetórias não escolares é ponto de partida para a construção de novos saberes potencialmente transformadores da escola e dos conhecimentos por ela produzidos.

Historicamente, o centro do processo educativo eram os conteúdos transpostos das ciências para a sala de aula. Com isso, os professores se preocupavam antes em transmitir esses conteúdos do que garantir aprendizagens significativas, ou seja, a construção de conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e valores. O deslocamento da aprendizagem para o centro do processo educativo faz com que educadores e educandos se comprometam com a construção de bases realistas para uma ação política baseada na articulação de saberes escolares e locais em prol da aprendizagem dos jovens e adultos.

A visão da “Declaração Mundial de Educação Para Todos” foi expressa também em metas que representaram o compromisso dos países signatários, dentre eles o Brasil, com a implementação de políticas públicas para efetivação e universalização dos princípios acordados. O prazo inicial de 10 anos para o cumprimento das metas de Educação para Todos (EPT) não foi cumprido e, no ano de 2000, a Conferência de Dakar (Senegal), convocada com o objetivo de realizar um balanço do cumprimento dessas metas, reafirmou os compromissos e prorrogou o prazo de cumprimento para 2015.

Para tratar especificamente da EJA, a Unesco promove a cada 10 anos – desde 1949 – a Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea).

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Em 1997, foi realizada em Hamburgo (Alemanha) a V Confintea3, que envolveu de maneira inédita organizações representativas da sociedade civil, as quais – por meio de consultas preparatórias e da participação de cerca de 500 ONGs durante a Conferência – contribuíram para que esse encontro se tornasse indiscutível referência no processo de consolidação dos direitos educativos dos jovens e adultos.

A “Agenda para o Futuro” e a “Declaração de Hamburgo”, documentos de referência da V Confintea, reafirmaram os conceitos de aprendizagem ao longo da vida e educação como direito humano como centrais para o desenvolvimento socioeconômico, cultural e para a construção da paz e cooperação entre os povos. As “Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação de Jovens e Adultos” de 2000 (MEC/CNE) dialogam com esses princípios, assim como com os demais temas indicados como prioritários pela Conferência:

• a melhoria das condições e da qualidade da aprendizagem de adultos;

• a aprendizagem de adultos e a democracia: os desafios do século XXI;

• a garantia do direito universal à alfabetização e à educação básica;

• a aprendizagem de adultos, igualdade e equidade de gênero e o empoderamento das mulheres;

• a aprendizagem de adultos e as transformações no mundo do trabalho;

• a aprendizagem de adultos em relação ao meio ambiente, à saúde e à população;

• a aprendizagem de adultos, cultura, meios de comunicação e novas tecnologias de informação;

• a aprendizagem para todos os adultos: os direitos e aspirações dos diferentes grupos;

• os aspectos econômicos da aprendizagem de adultos; • a promoção da cooperação e da solidariedade internacionais.

3 Anualmente a Unesco publica o Relatório de Monitoramento Global de EPT (Educação para Todos). “A educação de adultos torna-se mais que um direito: é a chave para o século XXI; é tanto consequência do exercício da cidadania como condição para uma plena participação na sociedade. Além do mais, é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de ser um requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça”. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001911/191186por.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.

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Fundamentos da EJA para contextos específicos

Construir uma proposta de Educação de Jovens e Adultos à altura dos desafios atuais da modalidade exige das redes municipais de ensino o aprofundamento do conhecimento acerca das características de cada localidade, dos grupos que ali residem e das relações estabelecidas entre a comunidade, a escola, a cultura, a oferta e a demanda de EJA.

Exige também que os pressupostos dessa nova proposta estejam em consonância com os princípios que inspiraram a política pública da EJA no Brasil.

Ou seja, para construir o processo de reorganização curricular de EJA, é necessário que a comunidade escolar das localidades desenvolva propostas que dialoguem com os marcos conceituais e legais da EJA no país e com as especificidades locais. Para tanto, faz-se necessário garantir uma série de fundamentos.

Assegurar a equidade educativa, o que implica:

• considerar a diversidade de percursos escolares dos jovens e adultos;

• identificar jovens, adultos e idosos como sujeitos de aprendizagem e portadores de conhecimentos válidos;

• adotar uma perspectiva contextualizada para a organização do ensino e seleção de conteúdos;

• abordar temas relevantes para as pessoas jovens e adultas das comunidades atendidas;

• identificar a EJA como espaço de relações intergeracionais e de diálogo entre saberes, preparando-se para acolher estudantes jovens, adultos e idosos.

Considerar o mundo do trabalho como temática central, o que implica:

• aprofundar o conhecimento relativo ao universo e às relações de trabalho na história da humanidade e suas peculiaridades locais;

• acolher as biografias e o histórico profissional na organização dos conteúdos curriculares;

• ampliar as oportunidades de realização de vocações e projetos profissionais dos alunos e alunas;

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• ampliar o conhecimento acerca do mercado de trabalho, sua dinâmica e funcionamento.

Garantir a qualidade da aprendizagem dos adultos, o que implica:

• satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem dos alunos e alunas;

• construir processo de formação inicial e continuada específico para educadores e gestores da EJA;

• considerar os diferentes procedimentos adotados pelos estudantes na solução de situações-problema;

• elaborar e adotar materiais didáticos específicos para jovens e adultos;

• construir processos contínuos de avaliação de aprendizagem e de atendimento a demandas por apoio individual;

• adequar equipamentos, espaço físico e rotina escolar às necessidades dos jovens e adultos.

Abordar temas significativos para o universo juvenil e adulto, o que implica discutir:

• meio ambiente, qualidade de vida e desenvolvimento sustentável;

• tendências atuais do mundo do trabalho; • cidadania e participação; • relações étnico-raciais; • relações de gênero e direitos da mulher; • meios de informação e comunicação; • cidadania e participação.

Considerar o direito humano à educação, o que implica:

• oferecer educação a pessoas privadas de liberdade; • eliminar as barreiras físicas, atitudinais e pedagógicas para

atendimento a alunos com deficiências físicas ou transtornos globais do desenvolvimento;

• promover aprendizagens que permitam aos jovens e adultos a participação plena na sociedade.

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A construção de processos educativos coerentes com as exigências da cidadania moderna e com as necessidades de aprendizagem das pessoas jovens e adultas exige que as redes públicas municipais construam um processo coletivo de discussão e revisão crítica das bases que sustentam a EJA em sua localidade.

Esperamos que os fundamentos contidos neste caderno contribuam na ampliação do diálogo entre os vários atores envolvidos no fortalecimento das políticas públicas de EJA locais que se inicia com o processo de reorganização curricular da modalidade.

ReferênciasANDRADE, Eliane Ribeiro. Os sujeitos educandos da EJA. Revista Eletrônica Cereja, set. 2004. Disponível em: <http://www.cereja.org.br/arquivos_upload/saltofuturo_eja_set2004_progr3.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.

FREIRE, Paulo. Ensinar, aprender: leitura do mundo, leitura da palavra. Estudos Avançados v. 15, n. 42, p. 259-268, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v15n42/v15n42a13.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.

GHANEM, Elie. Ensino, educação, aprendizagem e necessidades. Uma nova EJA para São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação, p. 19-23, Caderno 2. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/legislacao/parecer_11_2000.pdf>. Acesso em: 7 maio 2013.

HADDAD, Sérgio. Educação continuada e as políticas públicas no Brasil. Revista Reveja, n. 0, 2007, p. 27-38. Disponível em: <http://cappf.org.br/tiki_index.php?page=2009+EDF0289 +EDF0113+GHANEM+ate+KANITZ.pdf>. Acesso em: 7 maio 2013.

IRELAND, Timothy Denis; OZÓRIO, Patrícia; PIRES, Thaís Versiani Venancio. Educação e aprendizagem para todos: olhares dos cinco continentes. Brasília: Unesco/MEC, 2009.

Incentivo à leitura na Educação de Jovens e Adultos – Natura. Ação Educativa, Alfasol e CENPEC, 2006.

IRELAND, Timothy D. Educação de Jovens e Adultos no Brasil: uma retrospectiva à luz do contexto internacional recente. Disponível em: <http://www.sintricomjp.com.br/downloads/educacao_jovens_adultos.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014.

TORRES, Rosa Maria. Educação para todos: tarefa por fazer. Tradução de Madza Ednir. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Documento Nacional Preparatório à VI Conferencia Internacional de Jovens e Adultos. Brasília: MEC, 2009.

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Relações de gênero no currículo da EJAMichele Escoura

Diferenças e diferenciações

Cada sociedade se organiza ao longo da história e constrói para si um conjunto de normas e expectativas. Nem sempre essas normas são escritas, como as leis, mas mesmo assim todo mundo na sociedade as conhece e costuma segui-las. Em nenhum lugar está escrito que não se pode levar uma roupa cor-de-rosa para um menino recém-nascido, não é? Do mesmo modo não está escrito em nenhum lugar que cor-de-rosa é cor de menina. Mas mesmo assim nem passa pela nossa cabeça a ideia de levar um macacão cor-de-rosa de presente para um menino que acabou de nascer.

O corpo humano sempre foi uma grande fonte de inspiração para regras e normas sociais e durante muito tempo, por exemplo, tinha gente que acreditava que mulher quando menstruada não podia lavar os cabelos durante o banho, ou que não se podia comer manga e depois tomar leite. Essas normas estabelecidas socialmente sobre o corpo nem sempre têm fundamento científico para existirem e também não sabemos ao certo quem as inventou. Mas, conforme as pessoas acreditaram nelas e as ensinam para as gerações seguintes, nós passamos a acreditar que elas são verdades inquestionáveis. Nesses exemplos que vimos, muita coisa já

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mudou e hoje poucas pessoas continuam seguindo essas regras. Mas há outras que ainda são seguidas.

Por exemplo: qual a conexão natural entre bebês com vaginas e roupas cor-de-rosa? Ou qual a relação entre bebês com pênis e carrinhos? Uma vez disseram que estava na genética dos meninos gostar de carrinhos, mas aí vem a pergunta: mas os carros não são uma invenção de fins do século XIX? Como então uma invenção com pouco mais de um século está relacionada com os cromossomos da nossa espécie, que se supõe ter cerca de 100 mil anos?

Acontece que muitas dessas normas que a sociedade cria acabam por se reproduzir por tanto tempo que acreditamos que elas são “naturais”, como se sempre tivessem existido e fosse lógico que continuassem existindo. Isso é o que chamamos “naturalização”.

Assim foi com as convenções de gênero. Aquele costume da nossa sociedade de criar normas e convenções sobre nossos corpos agiu de modo muito profundo em uma das diferenças que portamos: as diferenças sexuais. Em algum momento da nossa história estabelecemos que cor-de-rosa era coisa de menina e essa associação foi tão compartilhada e repetida pelas pessoas que a entendemos como algo natural. E essas ideias aos poucos vão sendo tão aceitas que podemos chegar ao ponto em que vivemos hoje: quando vamos a uma loja de roupas infantis, por exemplo, e quase não encontramos roupas paras as meninas que não sejam cor-de-rosa ou tenham algo da cor em algum detalhe, não é mesmo?

Foi por conta dessa relação de arbitrariedade entre as conexões que fazemos entre o sexo das pessoas com cores, roupas, comportamentos, sentimentos e expectativas que se criou o termo “gênero”.

O que é gênero?

Lembra-se que nas aulas de língua portuguesa nós aprendemos que as palavras têm um “gênero”? Que cada substantivo em português é masculino ou é feminino? Mas se cada palavra tem um gênero, quem determinou o que é feminino ou o que é masculino? O que tem de feminino em uma parede, por exemplo, para classificarmos que a palavra

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“parede” é feminina? E o ventilador? O que tem de masculino em um ventilador para que seu nome tenha esse gênero? Você sabia que “árvore” em espanhol é uma palavra masculina? Ou que no inglês existe um gênero neutro? Ou seja, um gênero indefinido que não é masculino nem feminino?

Na língua portuguesa, a classificação de gênero das palavras é dada arbitrariamente, de modo que não existe nenhuma relação entre a forma dos objetos em si e o gênero de seus nomes. Ou seja, em algum momento foi decidido que “parede” seria feminina e que “ventilador” seria masculino, mas isso não tem a ver com a matéria ou a forma de que são feitas a parede ou o ventilador, mas sim com uma convenção que ficou conhecida na sociedade e foi se espalhando ao longo dos tempos.

Foi por conta desse caráter arbitrário sobre as classificações entre feminino e masculino e o modo como essa classificação se naturaliza (apesar de ser criada socialmente) que as teorias começaram a chamar de “gênero” também os padrões de feminilidade e de masculinidade que eram criados socialmente e esperados das pessoas.

A ideia de “gênero”, nesse sentido, enfatiza o caráter social de muitas das diferenciações que produzimos e seguimos entre homens e mulheres.

Isso quer dizer que existe uma educação de gênero por trás de nossa socialização e que se achamos “natural” dar uma roupa cor-de-rosa para uma menina, por exemplo, é porque em algum momento aprendemos que essa era a ação correta e esperada.

Em nosso processo de sociabilização, nós aprendemos como andar, como usar talheres nas refeições ou quando precisamos ir ao banheiro. Do mesmo modo, aprendemos a nos comportar como menina ou como menino. A partir do momento em que nossa família descobre qual é o nosso sexo, uma imensa variedade de estímulos é feita para que a gente aprenda a se comportar segundo o gênero que a sociedade espera de nós.

Isso é o que chamamos “educação cultural”, ou seja, aquilo que a cultura nos ensina como uma norma social, mas que, de tanto repetirmos, esses comportamentos acabam parecendo “naturais”, como se fossem regras da natureza. Uma mulher não nasceu com um gene que a condiciona a sentar de pernas fechadas quando está de saia, por exemplo. Essa não é uma postura “natural”, como se a natureza a tivesse imposto

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sobre ela, mas é um comportamento que ela aprendeu desde muito pequena que era o certo a se fazer.

Figura 1. Matriz de Gênero

Fonte: Elaboração textual de Michele Escoura.

Nas pesquisas que realizei com crianças de cinco anos na pré- -escola, diversas vezes presenciei as professoras fazendo uma espécie de “pedagogia de gênero”, ou seja, ensinando como as meninas e os meninos deviam de comportar. Quando as meninas se espalhavam pelas carteiras para conversar, ela pedia para que se “sentassem como meninas” e quando os meninos brigavam e alguém se machucava, eram proibidos de chorar: “para de chorar e fala grosso que nem homem”, era o que se dizia.

Nossa cultura nos exige um comportamento “coerente” de gênero. Isso quer dizer que é esperado que sigamos um modelo de comportamento, ações, reações e até mesmo de desejos a partir do sexo biológico com o qual nascemos. Isso é o que chamamos “Matriz de Gênero” (Figura 1).

A matriz de gênero exige uma articulação entre o sexo da pessoa, sua identidade e seus desejos e orientações sexuais. É como se essas

Identidade de Gênero

Feminina Andrógina Masculina

É como uma pessoa se vê e como ela se mostra para o mundo: pensar, se vestir, sonhar ou agir.

Desejo afetivo e sexual

Homossexual Bissexual Heterossexual

É como a pessoa se classifica em relação a quem se sente mais atraído afetiva e sexualmente: se alguém de seu mesmo sexo, de sexo diferente ou dos dois.

Sexo biológico

Genitália feminina Intersexo Genitália Masculina

Se refere ao que pode ser identificado como referencial do corpo da pessoa: seja seu órgão genital, sua combinação genética ou hormonal.

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três coisas aparecessem sempre conectadas e, principalmente, como se uma fosse automaticamente dependente da outra. Por essa lógica de coerência, nos é exigido, por exemplo, que se uma pessoa nasce com uma vagina, que se identifique com todas as coisas, ações e trejeitos considerados “femininos” e que, ainda, só deseje se relacionar afetiva ou sexualmente com pessoas consideradas “masculinas”. Do lado inverso da matriz, se uma pessoa nasce com um pênis, é exigida a construção de uma “identidade” masculina e que a pessoa apenas se relacione afetiva e sexualmente com pessoas “femininas”.

Mas a existência de pessoas que nem sempre se enquadram nessas regras acaba nos mostrando que a variedade humana extrapola os modelos que a sociedade criou e impôs. Pode ser que você já tenha conhecido alguém que tenha nascido com um pênis, por exemplo, mas se via e se identificava com as representações que a sociedade classificou como “femininas”. Ou, então, alguma pessoa que nasceu com uma vagina, tinha uma identidade feminina, mas não desejava ter relacionamentos afetivos e sexuais com homens. Muitas combinações são possíveis entre sexo biológico, identidade e desejo. Um problema surgido daí é que muita gente acaba não só exigindo que todo mundo siga a matriz de gênero, como também marginalizando quem não se encaixa nela. Dessa cobrança social para que todo mundo se enquadre na matriz de gênero nasce um conjunto de práticas excludentes: homofobia (em relação a homossexuais), lesbofobia (contra lésbicas), transfobia (referente a travestis e transexuais) são alguns exemplos dessas discriminações ainda tão comuns em nossa sociedade.

Outro ponto que é importante lembrar é que quando falamos em “gênero” não estamos falando apenas em “mulheres”. Esse é um equívoco cometido muitas vezes. Gênero pressupõe a relação entre feminino e masculino e, por isso, o nosso foco deve estar na complexidade de representações entre esses dois polos. Do mesmo modo em que as mulheres são submetidas a um conjunto de regras que devem seguir (como sentar com a perna sempre fechada), os homens também sofrem muita cobrança para se construírem como alguém reconhecidamente masculino.

Falar em gênero é falar nesse conjunto de regras sociais que são ensinadas e cobradas entre as pessoas desde quando elas nascem e de acordo com o sexo biológico delas. Assim, se uma pessoa nasceu com

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um pênis, sua família, suas/seus professoras/es, suas/seus amigas/os e os “desenhos de menino” que assistiu na infância vão ensinar que ele não pode chorar, que tem que gostar de futebol, que a agressividade é a reação esperada dele nos momentos de conflito e que deve sempre tentar seduzir o maior número de mulheres.

Ao mesmo tempo, não são apenas as palavras e as pessoas que são classificadas segundo as divisões de gênero. Há comportamentos, objetos ou até mesmo lugares que são considerados femininos ou masculinos. Por exemplo: entendemos que salão de beleza é um ambiente feminino, enquanto um boteco sujo à noite como masculino; achamos que gostar de fazer compras ou demonstrar muito afeto são comportamentos femininos, enquanto não gostar de cozinhar todos os dias ou limpar a casa, comportamentos masculinos. Inclusive, essas diferenciações provocam divisões até mesmo em áreas de conhecimento e profissões, como no próprio caso da docência: é comum a profissão de educador/a estar associada a um imaginário de feminilidade. Isso está relacionado com a história da própria profissão e com a forma como ela foi majoritariamente ocupada pelas mulheres, uma vez que, em uma sociedade mais conservadora como aquela do início do século XX, ser professora era visto como uma aproximação naturalizada entre mulher e maternidade.

Conhecer homens que são emotivos ou mulheres que detestam cozinhar são exemplos de que essas conexões entre o sexo biológico da pessoa e as classificações de gênero são arbitrárias, pois se fossem da ordem da natureza, ninguém teria um comportamento diferente daquele esperado. Quando falamos em “gênero” realçamos o caráter social dessas diferenças, ou seja, o modo como nossa sociedade percebeu historicamente as diferenças entre os sexos. E se essas construções foram produzidas historicamente pela nossa sociedade elas poderiam também ser desconstruídas.

Mas por que desconstruí-las?

Diferença e desigualdade

Além de investir em diferenças percebidas entre os corpos, nossa cultura elegeu algumas diferenciações para criar também hierarquias e posições de poder: dentre elas, o gênero. Assim como acontece com

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as diferenças de cor de pele, que durante muitos séculos basearam a escravidão e o racismo, as diferenças entre os sexos viraram base para o que chamamos “sexismo”, ou seja, a crença na superioridade de um sexo sobre o outro.

É comum encontrarmos reportagens de jornais e revistas falando sobre descobertas científicas sobre a mente humana, as diferenças do lado direito ou esquerdo do cérebro, ou os efeitos dos hormônios em homens e mulheres. Muitas pesquisas buscam a origem das diferenças entre a feminilidade e masculinidade e não podemos negar a possibilidade de haver interferências não apenas sociais, mas também biológicas e psicológicas sobre nossas identidades.

Entretanto, mesmo que consigamos identificar a origem dessas diferenças em aspectos biológicos, por exemplo, a biologia não explica a criação das desigualdades a partir dessas diferenças. Isto é, mesmo que acreditemos que as mulheres são comandadas mais pelo lado esquerdo do cérebro enquanto os homens dominem o lado direito, o que justificaria o fato de os homens receberem salários mais altos que as mulheres mesmo quando elas desempenham as mesmas profissões? Ou por que há mais mulheres desempregadas do que homens, mesmo quando sabemos que as mulheres tendem a ser mais escolarizadas do que os homens?

Vejamos alguns dados para ilustrar essas desigualdades:

Gráfico 1. Média salarial no Brasil, 2010

Fonte: IBGE, Censo Demográfico – 2010.

R$ 2.000,00

R$ 1.800,00

R$ 1.600,00

R$ 1.400,00

R$ 1.200,00

R$ 1.000,00

R$ 800,00

R$ 600,00

R$ 400,00

R$ 200,00

R$ 0,00homens brancos mulheres brancas homens

pretos/pardosmulheres

pretas/pardas

R$ 1.817,70

R$ 1.251,87

R$ 952,00

R$ 702,17

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No gráfico anterior, percebemos a desigualdade de salários entre homens e mulheres brancas e negras no país. Enquanto os homens brancos ganhavam em média salários de R$ 1.817,00 no ano de 2010, as mulheres brancas ganhavam salários em média 32% mais baixos. Para piorar, quando olhamos a diferença da média salarial entre os homens brancos e as mulheres negras (pretas e pardas) a desigualdade é ainda maior: eles recebem em média 62% a mais que elas! Enquanto os homens brancos ganham em média R$ 1.817,70, as mulheres negras ganham apenas R$ 702,17. Esses dados mostram que vários fatores de desigualdade podem ser somados e aumentar a vulnerabilidade social de uma pessoa: em média mulheres ganham menos que homens, mas ganham ainda menos as mulheres que são também pretas ou pardas.

A desigualdade de gênero é uma hipótese também para entendermos até mesmo a desvalorização da profissão docente. Como é vista enquanto uma profissão de mulheres, muita gente, há até pouco tempo, defendia que professora podia ganhar um salário baixo, pois a renda seria complementada por seu marido, o sujeito socialmente esperado para ocupar o cargo de chefe da família.

Quando nossa sociedade decidiu quais eram as ações, trejeitos ou representações ligadas ao que se considera masculino ou feminino, ela decidiu também que o lado masculino dessa equação teria mais vantagens e seria o mais valorizado. Por mais que hoje muita gente já questione essa ideia e acredite que homens e mulheres devem ter direitos iguais, a crença perdurou por tantas gerações que ainda há muitos resquícios dela baseando as desigualdades de gênero na nossa cultura.

Homens e mulheres sempre estão em relações de poder. Isso não quer dizer que estão o tempo todo em conflito. Mas, uma vez que a sociedade elegeu o polo masculino como o mais poderoso, automaticamente quem for considerado “homem” estará com algumas vantagens, dentre elas a vantagem de ter os maiores salários, como as pesquisas ainda demonstram.

Muitas outras situações servem de exemplos dessa desigualdade criada a partir da diferença entre os sexos. Se você é mulher: alguma vez você já sentiu como se não pudesse fazer algo só porque era mulher? E se você é homem: você já viu alguma situação em que alguém proibiu alguma mulher de fazer algo ou ir a algum lugar com o argumento de que “não é coisa de mulher”?

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Um exemplo muito comum que ouvimos de amigas é o quanto seus esposos, mesmo “sem querer”, reparam e as desencorajam de sair de casa com alguma roupa mais curta ou justa. Ou, então, quando uma família tem um casal de filhos e somente a menina é que fica responsável em ajudar a mãe nos afazeres domésticos. Ou, ainda, quando um casal chega junto em casa depois de um longo dia de trabalho e a mulher vai ainda fazer o jantar, lavar a roupa e ajeitar a casa, enquanto seu marido apenas assiste aos telejornais da noite.

Se a relação entre masculinidade e feminilidade baseia relações de poder e hierarquias, elas podem também ser fonte para muitos conflitos. Os exemplos citados trazem cenas que se repetem tanto que as consideramos “normais” em muitas famílias e nem percebemos que elas podem ser fonte de conflito. Mas há casos em que as mulheres percebem essas posições de poder e se unem para reivindicar condições de igualdade: são os movimentos de mulheres por igualdade.

Ao menos desde a Revolução Francesa de 1789 as mulheres se organizam em movimentos para reivindicar igualdade de direitos em relação aos homens. Olympe de Gouges era uma revolucionária francesa que foi condenada à morte depois de escrever a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, denunciando o quanto seus amigos homens tinham se esquecido de igualar as mulheres no Estado de direito recém-criado. No final do século XIX e início do século XX, as mulheres se organizaram para conquistar o direito ao voto: eram as feministas sufragistas. No Brasil, a entrada das mulheres no processo de participação política é algo ainda muito recente. Foi só em 1932 que a Constituição Brasileira permitiu o voto feminino e, em 1934, Carlota Pereira de Queirós tornou-se a primeira mulher deputada federal. Ao longo do século XX muitos outros movimentos de mulheres foram se formando para reivindicar direitos específicos. Com a repercussão do assassinato de Ângela Diniz por seu companheiro Doca Street em 1976, ressoou o movimento “quem ama não mata”, que colocava em pauta os índices de violência contra a mulher. Nos anos 1960, nos Estados Unidos, um grupo de mulheres negras, no qual se destacou a militante Angela Davis, reivindicava que o machismo tinha que ser combatido ao lado do racismo, uma vez que elas sofriam as desigualdades vindas de ambos os lados. No início dos anos 1980, grupos de mulheres lésbicas começaram

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a se formar e a dar visibilidade aos temas do feminismo também dentro dos movimentos por igualdade sexual LGBT. Atualmente, um movimento feminista com grande expressão nos meios de comunicação é a “Marcha das Vadias”: surgido após um policial canadense afirmar que as mulheres deveriam deixar de se vestir como “vadias” para não serem estupradas, mulheres em diversos países saíram às ruas reivindicando que nenhuma mulher seja estuprada, independentemente de suas roupas. Retomando ideias que também se encontram nos movimentos por direitos reprodutivos, as “vadias” reivindicam que a sociedade reconheça que o corpo da mulher é dela, que somente ela pode decidir sobre si e que ninguém tem o direito de invadi-lo. Esses coletivos de mulheres em busca de direitos e condições de igualdade nos levam a pensar nas possibilidades de mudanças em nossa sociedade. E dentre os campos de ação em que é possível mudar muitos dos pensamentos naturalizados, está a educação.

Gênero e educação

Quando falamos em “educação de gênero” e em como nossa sociedade nos ensina a ser homens ou mulheres, falamos em uma dimensão cotidiana de aprendizagem. Não temos notícia de nenhuma escola que tenha como conteúdo disciplinar “aprender a ser menina ou menino”, entretanto, sabemos que as escolas ensinam mais conteúdos do que aqueles que estão previstos nas matrizes curriculares, não é?

A escola também ensina valores, regras sociais e comportamentos. E já que a escola não é um lugar descolado da sociedade, ela também é um lugar de socialização da cultura compartilhada para além de seus muros. Isso quer dizer que, se estamos em uma sociedade que discrimina homossexuais, como apontamos anteriormente, é previsível que essas discriminações se reproduzam na escola também. As mesmas pessoas que estão na escola são aquelas que estão na sociedade e, por isso, carregam consigo todos os valores compartilhados fora dela.

Entretanto, a escola é uma das instituições que nossa cultura elegeu como espaço para guardar, ensinar e instrumentalizar os conhecimentos produzidos pela sociedade ao longo de sua história. Diferentemente dos museus e bibliotecas, que apenas conservam esses conhecimentos

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acumulados, a escola adiciona um outro ingrediente em sua concepção: é onde esses conhecimentos acumulados são ensinados e também instrumentalizados para a criação de novos conhecimentos.

A escola não deve ser apenas um espaço de reprodução de práticas vigentes, mas também de criação de novos aprendizados, novas convivências, novos saberes e valores. É o lugar onde o novo pode ser construído e espalhado para a sociedade. Desse modo, por mais que muitos dos valores sociais sejam reproduzidos na escola, extrapolando seus muros, cabe a esse espaço levantar questões sobre a viabilidade ou não desses valores continuarem a se reproduzir.

Toda inovação é consequência de um questionamento, uma dúvida e uma curiosidade. Para que um novo conhecimento social se produza, é necessário, antes, que um antigo seja questionado. Dentre aqueles que têm se mostrado como importantes fontes de dúvidas estão os ligados às desigualdades de gênero. Falar em levar para a escola o tema da diversidade e do enfrentamento às discriminações, sejam elas de gênero, raça, sexualidade, religião ou classe, é assumir esse compromisso inovador da escola: é nela que novos valores podem ser criados.

Do mesmo modo como a escola é o espaço que pode garantir que uma pessoa aprenda o cálculo de circuitos elétricos, não só porque este é um tema do vestibular, mas também porque é importante saber para sua vida cotidiana, a escola pode garantir o aprendizado sobre as desigualdades que nossa sociedade criou e possibilitar discussões sobre como poderemos superá-las, tendo em vista que os sujeitos da escola também estão submetidos a tais desigualdades. Além dos conteúdos curriculares, ter acesso às discussões sobre os conflitos da nossa sociedade também faz parte da formação para a autonomia que a escola pode oferecer.

Com isso, os conflitos sociais podem se tornar fontes potentes de discussão e aprendizado no contexto escolar. À primeira vista, pode parecer que todas as diferenças na verdade nos trazem problemas, mas quem disse que problemas da convivência não podem se transformar em problemas para impulsionar novas questões para a escola? Por que não trazer a discriminação contra travestis, transexuais, gays ou os assédios sexuais sobre as meninas para a roda de conversa e debate no âmbito escolar? Será que, ao invés de escondermos os conflitos de gênero, não

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podemos evidenciá-los para buscar a superação das relações de poder que estão atreladas a eles?

E na Educação de Jovens e Adultos, onde o gênero entra?Uma das grandes especificidades da EJA é justamente a

necessidade constante de revisar o currículo escolar e buscar algo que concilie os conteúdos escolares com os interesses reais de jovens e adultos1. Nesta estratégia está também o reconhecimento das experiências de vida desses sujeitos como gancho para a aprendizagem. Sabemos que, historicamente, os sujeitos da EJA são aqueles que encontraram muitos obstáculos em suas vidas e acabaram por priorizar outros campos da vida ao invés de concluir os estudos na idade esperada. Nas pesquisas de perfil das/os estudantes da EJA em diferentes cidades, algumas das questões ligadas às desigualdades de gênero são destacadas.

É comum percebermos que há uma grande diferença geracional entre a maioria das mulheres e dos homens na EJA. Em Itabira, cidade do interior de Minas Gerais, por exemplo, 50% das mulheres que estão na EJA têm entre 30 e 49 anos.

O retorno das mulheres nessa faixa etária mais velha levanta uma importante indicação: muitas meninas afastam-se da escola quando têm filhas/os ainda na adolescência e só conseguem voltar depois de muitos anos, quando suas crianças adquirem maior autonomia. Principais responsáveis pelo cuidado das crianças, elas abrem mão da escola para se dedicarem à rotina de maternidade e, assim, é somente com suas/eus filhos mais velhos e mais independentes que elas conseguem retornar à escola e concluir a educação básica. Essa situação reafirma o quanto nossa cultura associa o cuidado das crianças às mulheres (enquanto há culturas em que o cuidado é dividido igualmente entre homens e mulheres). Além disso, coloca uma questão para a própria escola: se a EJA fosse oferecida também em horários diurnos, quando as creches e pré-escolas estão abertas, será que muitas mães não poderiam retornar à escola antes do previsto, conciliando seus horários de estudos com os estudos de suas/eus filhas/os?

1 A equipe da Ação Educativa elaborou um artigo discutindo a necessidade de revisão do currículo para a Educação de Jovens e Adultos como forma de renovar a modalidade. O artigo poder ser gratuitamente acessado em Cadernos Cenpec. Disponível em: <http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/view/231>. Acesso em: 25 nov. 2014.

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Em contrapartida, os dados sobre os homens também revelam desigualdades de gênero sofridas socialmente por eles. Como apontamos desde o início de nossas discussões, “gênero” não é sinônimo de “mulheres”. Gênero é o conjunto de referenciais que classifica pessoas, coisas e comportamentos como femininos ou masculinos e já vimos que, no meio dessas classificações, posições de poder também são distribuídas. Quando falamos em educação básica, os últimos índices nacionais apontam que as mulheres superaram os homens em quantidade de anos de estudo. Isso significa dizer que, na educação básica, as mulheres têm encontrado mais condições de estudo que os homens e, assim, os homens é que estão em desvantagem.

Esse dado, quando colocado ao lado dos dados do perfil dos alunos da EJA, apresenta duas nuances dessa desigualdade que recai sobre os homens. Em primeiro lugar, sabemos que trabalhar e prover economicamente a família é responsabilidade social masculina. Os homens são muito cobrados, não apenas a ingressar cedo no mercado de trabalho como, também, são cobrados para sempre ter sucesso profissional. Em se tratando de sujeitos que muitas vezes vêm de camadas mais pobres da sociedade, os homens na EJA tendem sempre a ter começado a trabalhar muito cedo, muitas vezes antes dos 16 anos de idade, e terem abandonado os estudos para se dedicar mais à carreira profissional.

Mesmo que o trabalho seja muito mais valorizado entre os homens, iniciar a carreira profissional assim tão cedo é algo característico de homens de classes sociais mais pobres que, desde muito cedo, precisam se ocupar para conseguir ajudar suas famílias. Desse modo, a desigualdade de gênero, somada à desigualdade econômica, cria desvantagens para esses homens que ainda tão novos são afastados da escola.

Outro dado muito importante a ser considerado do lado dos homens é em relação à faixa etária. Grande parte dos homens que estão cursando EJA tem entre 15 a 19 anos. Eles são os mais jovens da EJA. Esse fenômeno não é exclusividade de municípios específicos, mas faz parte de um contexto nacional que se costumou chamar “juvenização da EJA”: quando os mais jovens predominam na modalidade. Mas é importante destacar que não é qualquer jovem que está na EJA: é o adolescente masculino e negro.

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Muitas pesquisas têm sido feitas para entender melhor esse fenômeno e uma das principais hipóteses levantada está relacionada com os valores escolares. Marília Pinto de Carvalho (2007) mostra como o cotidiano da escola regular costuma não dialogar com as representações de masculinidade que os meninos constituem para si e mostra como esse é um importante fator para que eles sejam continuamente expulsos das escolas.

Disciplina e capricho são valores escolares muito difundidos e que encontram muitos ecos em relação ao que consideramos “feminino”. As meninas tendem a ser mais disciplinadas e ter seus cadernos coloridos e bem desenhados mais valorizados pelas/os professoras/es. Em contrapartida, a representação de masculinidade difundida entre as classes mais populares e periféricas, onde estão muitos dos meninos negros, pouco se respalda no valor da disciplina e do capricho. Ao contrário, é muitas vezes sendo indisciplinados e desleixados na escola que os meninos conseguem afirmar sua masculinidade.

Somada a isso, existe uma baixa expectativa em relação aos meninos negros e seus estudos. É como se, desde o início, as pessoas não tivessem qualquer expectativa de que esses meninos se destaquem na escola. Esse é um tipo de estereótipo que reforça ainda mais o desânimo deles: em geral, eles não acham que poderão ser reconhecidos como pessoas de destaque na escola e acabam abrindo mão de se esforçar mais no ambiente escolar.

Essa questão está muito ligada às desigualdades raciais que discutíamos no tópico sobre desigualdades salariais: os sistemas de discriminação e desigualdade (de gênero, raça, cor ou classe social) podem ser somados e aumentar cada vez mais o grau de vulnerabilidade de uma pessoa. Mas o que é importante destacar, de todo modo, é que, geralmente, avaliações negativas sobre os alunos, classes de reforço, reprovações e expulsões não acontecem aleatoriamente, mas tendem a ser muito mais presentes entre os meninos negros do ensino regular, que, aos poucos, vão se tornando maioria na Educação de Jovens Adultos. Com um histórico de marginalização nas escolas, são os adolescentes masculinos negros que vão dando a cara da EJA na atualidade e é sobre eles que devemos manter boa parte de nosso foco de construção de currículos contra a desigualdade. Muitos deles chegam na EJA porque

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perceberam que o mercado de trabalho exige que eles tenham seus estudos completos para conseguir melhores empregos, não porque eles se sentem acolhidos no ambiente escolar. Porque não nos empenhamos para fazer da EJA uma nova oportunidade para que essa relação entre escola e meninos seja mais proveitosa e prazerosa?

Outro campo de questão que pode ser aprofundado na escola a partir das discussões de gênero é o da sexualidade. Perguntemos: se as diferentes manifestações de sexualidade e de identidade, como é o caso de pessoas homossexuais ou transexuais, são continuamente discriminadas na sociedade, sabemos que muitas pessoas assim identificadas acabam desistindo da escola por sofrer muito preconceito no ambiente escolar. Será que essas pessoas também não são aquelas que mais tarde voltam para a EJA? E se essas pessoas voltam para a escola mais velhas, será que as estamos acolhendo na EJA como precisam para concluir seus estudos? Há estudantes homossexuais ou transexuais na EJA de sua cidade? Como podemos fazer para que esses alunos tenham garantidos seus direitos à educação e consigam encontrar acolhimento para terminar seus estudos?

As diferenças, muitas vezes, colocam em evidência conflitos na sala de aula e é muito comum que, às vezes, não saibamos como lidar com elas. Como dissemos, a escola também é lugar das novidades e dos questionamentos sobre as morais já estabelecidas.

Mais do que construir um ambiente acolhedor para as pessoas que historicamente são marginalizadas e discriminadas pela sociedade, é preciso criar no espaço escolar condições para que tais desigualdades sejam questionadas e colocadas no meio daqueles conhecimentos que precisam ser revistos e transformados.

Você já teve alguma aluna que era violentada pelo companheiro? Tem estudante travesti ou transexual na sua turma? Ou um adolescente negro que foi expulso continuamente do ensino regular? Por que não fazer do tema da desigualdade de gênero em suas variadas manifestações um conteúdo para ser debatido e transformado em sala de aula?

Quando falamos em gênero, falamos em uma desigualdade de raiz profunda em nossa cultura e na qual não há ninguém que não seja vítima de alguma de suas redes de poder e discriminação. Seja enquanto professoras/es que fazem parte de uma classe profissional desvalorizada

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por conta de sua constituição como “profissão feminina”, ou como mulheres que encaram no dia a dia o peso das jornadas dobradas de trabalho dentro e fora de casa, ou como homens que carregam o peso da cobrança em serem os provedores da família e se desdobram em mais de um emprego, ou como travestis e transexuais que seguem como trabalhadoras do sexo, pois essa se torna uma das poucas oportunidades que lhes resta em uma sociedade que as exclui.

Estamos todas e todos imersos nessas relações que não só nos diferenciam, mas também nos desigualam. Abraçar a causa de uma ou um de nós, é abraçar também a de todas/os e um primeiro passo, talvez, seja justamente colocando essa questão na nossa pauta: seja na escola ou na vida.

Como podemos ajudar?

Do ponto de vista da gestão ou de quem está na sala de aula, algumas medidas tomadas na escola podem ser muito importantes para se construir um ambiente com mais igualdade de gênero.

Se você está na Gestão Se você está na sala de aula

Proponha palestras sobre os temas que discutimos no caderno para as/os estudantes; inclusive, proponha uma parceria com a Polícia Civil de sua cidade para promover uma palestra sobre a Lei Maria da Penha, informando as/os estudantes sobre as proteções garantidas pela Lei e sobre como as mulheres violentadas podem pedir proteção.

Não invista em diferenciações na turma a partir do gênero: tente se esquivar de julgamentos sobre os comportamentos de estudantes, como “isso é coisa de menino”, “isso é coisa de menina”, “seja homem” ou “comporte-se como mulher”. Do mesmo modo, se for dividir as/os estudantes da turma para alguma atividade, use outros critérios para diferenciá-las/os que não seja o gênero: use a ordem alfabética dos nomes ou sorteios.

Inclua debates sobre desigualdade de gênero no currículo da sua escola: tanto entre seu corpo docente como entre estudantes de todos os níveis.

Se você também dá aula para turmas de crianças, ao invés de formar filas de meninos e meninas na entrada da aula, forme filas a partir dos nomes das crianças, como, por exemplo, fila de nomes que começam de A até L e fila de nomes que começam de M até Z.

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Se você está na Gestão Se você está na sala de aula

Caso perceba algum comentário discriminatório entre estudantes ou docentes, aproveite a oportunidade para questionar as posturas cotidianas que reproduzem a desigualdade: seja xingamentos, fofocas ou piadas.

Dê tarefas iguais para homens e mulheres na sala de aula, peça para que pessoas de ambos os gêneros ajudem no cotidiano da sala.

Procure em sua rede de ensino como agir para permitir que estudantes possam se matricular na escola com nome social. Em muitos estados, as secretarias escolares são obrigadas a matricular seus/suas estudantes com o nome social, ou seja, o nome com o qual a própria pessoa se identifica. Essa medida garante o respeito às pessoas transexuais ou travestis, que têm uma identidade diferente do seu sexo de nascimento: assim você garante que sua/seu estudante seja tratada/o na escola de acordo com sua identificação e garante sua dignidade.

Se alguma aluna da escola estiver sendo agredida em casa por seu companheiro atual ou ex, explique como funciona a Lei Maria da Penha e indique como ela pode procurar proteção. Aproveite para incluir palestras sobre a Lei e informar às demais mulheres os direitos que elas têm para se defender da violência doméstica: em briga de marido e mulher, a escola tem que colocar a colher.

Procure abrir turmas da Educação de Jovens e Adultos em período diurno, possibilitando que as mulheres mães possam estudar no mesmo período que seus/suas filhos/as estiverem também nas escolas e creches.

Combata o preconceito. Se presenciar algum momento de discriminação entre estudantes, aproveite a oportunidade para chamar um debate sobre o tema, explique as desigualdades que estão por trás das discriminações e peça para que as pessoas que sofrem a desigualdade relatem seus pontos de vista e sugiram como os outros podem respeitá-las/os.

Procure não diferenciar estudantes a partir do gênero e nem criar regras específicas para as mulheres, diferentes das válidas para os homens. Não estimule filas organizadas a partir do gênero: ao invés de “filas de meninas e meninos”, sugira filas a partir da divisão dos nomes: filas de nomes que começam com A até L e filas com nomes que começam com M até Z, por exemplo.

Atenção às “brincadeiras e piadas” que se utilizam do humor para xingar e diminuir as pessoas consideradas diferentes na escola. Puxe rodas de conversas e inclua nas suas aulas o tema da desigualdade, em todas as disciplinas é possível falar sobre a desigualdade de gênero.

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Se você está na Gestão Se você está na sala de aula

Não obrigue meninas a fazer algo só porque são mulheres e nem os meninos a fazer algo só porque são homens. Nem crie proibições por conta do gênero da pessoa. Algumas escolas obrigam somente as meninas a usar uniformes para não chamar a atenção dos meninos com roupas mais decotadas. Mas essa obrigação só reforça a desigualdade de gênero, pois restringe a liberdade das meninas para “controlar” os meninos, como se elas fossem culpadas pelos atos deles. Se casos desse tipo acontecem na sua escola, tente antes promover um amplo debate entre estudantes sobre as desigualdades e tente construir um ambiente pedagógico em que os meninos aprendam que não têm o direito de abusar das meninas, independentemente das roupas que elas usam.

Se você é docente da área de Ciências Humanas, inclua a história dos movimentos de mulheres em suas aulas e debates; estude com suas turmas a Lei Maria da Penha; peça às/aos estudantes que façam pesquisas sobre as reivindicações dos movimentos sociais de mulheres; sugira aulas em formato de fóruns em que cada grupo apresente argumentos diferentes sobre os temas pesquisados; nas aulas de história, busque mostrar as mulheres que marcaram a história do Brasil e do mundo; nas aulas de geografia, traga discussões sobre os trabalhos considerados “femininos” ou “masculinos” e as desigualdade entre eles, e, em filosofia, busque dialogar sobre desigualdade e poder. Use filmes para exemplificar essas questões.

Se houver algum caso de abuso sexual em sua escola (seja abuso físico ou verbal), cuidado para não justificar o abuso culpando a vítima, ou seja: se um homem/menino assediar uma mulher/menina dentro da escola, cuidado para não argumentar que ela “deixou acontecer” ou que a situação aconteceu porque “ela fez alguma coisa”. Situações como essas demonstram o grau de urgência com que o tema da igualdade para as mulheres precisa ser tratado na escola. Não deixe passar a oportunidade de transformar esse caso em um impulso para debater a questão na sua escola e promover mudanças de atitudes entre as pessoas da comunidade escolar. Isso vale também para casos de discriminação contra homossexuais e transexuais.

Se você é docente da área de Matemática, mostre para suas alunas que as mulheres também podem ser boas na matemática; muito do desinteresse feminino pelas ciências exatas vem de um preconceito de que mulheres não são boas em contas. Mas todas podem melhorar com mais estímulo e vendo que há exemplos de outras mulheres boas na área: sugira pesquisas sobre mulheres que foram grandes matemáticas. Aproveite as pesquisas que indicamos aqui sobre desigualdade de gênero (Retratos da Desigualdade e Informe Brasil de Gênero e Educação) para usar os dados em suas aulas: proponha cálculos, gráficos e análises de dados a partir dos dados sobre as desigualdades de gênero, pois isso contribui para informar sua turma sobre as relações de gênero e incentivar as discussões das outras disciplinas.

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Se você está na Gestão Se você está na sala de aula

Se na sua escola há estudantes com diferentes manifestações da sexualidade ou identidade de gênero (como homossexuais, travestis e transexuais), invista em campanhas pedagógicas sobre a igualdade de direitos e, caso necessário, promova rodas de conversas com estudantes e deixe-as/os falarem sobre suas experiências de discriminação. Quando as pessoas compreendem as situações de desigualdade que conhecidas/os passam no dia a dia, tendem a se sensibilizar com as questões e aumentar a postura de respeito.

Se você é docente da área de Ciências Naturais, inclua pesquisas sobre mulheres nas ciências para as/os estudantes; peça pesquisas sobre as biólogas, físicas e químicas que foram grandes pesquisadoras: mostrar que as mulheres também podem ser cientistas é um passo importante para valorizar as estudantes da escola; inclua também em suas aulas sobre saúde o tema da violência que muitas mulheres sofrem quando são gestantes nos hospitais: a “violência obstétrica” é um dos temas que podem estabelecer relações entre a ciência, que é majoritariamente masculina, e o desrespeito com as mulheres, peça pesquisas.

Se na sua escola há alunas/os travestis ou transexuais, ou seja, que se reconhecem como de uma identidade de gênero diferente do sexo biológico, a busca de um ambiente acolhedor para elas/es passa também pela autorização para usarem o banheiro em que se sintam mais confortáveis, seja o masculino ou o feminino. Não obrigue uma travesti feminina a usar o banheiro masculino se ela não desejar, pois ela pode estar com medo de ser hostilizada ou violentada entre os homens.

Se você é docente da área de Linguagens, inclua em suas aulas a contribuição de mulheres em sua área: seja na literatura, nas artes ou nos esportes. Esses campos contam também com grandes nomes de pessoas que declaradamente se assumem homossexuais ou transexuais. É possível sugerir pesquisas sobre autoras/es gays que marcaram a história. Sugira pesquisas sobre a história da grande cartunista brasileira Laerte Coutinho, por exemplo. Inclua, nas propostas de redações, o tema: Como se vestiam e como era a divisão do trabalho entre os homens e as mulheres brasileiras no século XX? O que mudou e o que precisa mudar? E, na Educação Física, incentive as mulheres se dedicar também ao futebol ou atletismo, mostrando que elas são capazes de ser boas jogadoras ou atletas. Use o exemplo da jogadora Marta!

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Referências

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Educação de Jovens e Adultos e relações raciaisEdnéia Gonçalves

Relações raciais no Brasil: o fio da memória...

Se puxarmos o fio de nossa memória escolar provavelmente encontraremos episódios envolvendo manifestações racistas e preconceituosas protagonizadas por alunos, professores, famílias ou gestores negros. Como traço comum, normalmente essas histórias trazem o silenciamento diante de situações de constrangimento e estigmatizações protagonizadas ou presenciadas na escola.

Romper a barreira do silêncio é o pontapé inicial para refletirmos sobre as conexões entre as relações raciais contemporâneas e a história dos africanos e seus descendentes brasileiros sem tropeçar nos erros do passado.

Dar vez e voz à história das negras e negros brasileiros é também condição indispensável para o desenvolvimento de uma educação assumidamente antirracista e direcionada ao enfrentamento dos preconceitos nos ambientes escolares e fora deles.

O reconhecimento da escola como espaço de discussão e superação do racismo implica na necessidade de apropriação dos mecanismos que operam na reprodução das desigualdades raciais em nosso país e, nesse sentido, elaboramos este texto que tem por objetivo contribuir para o

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aprofundamento da reflexão e desenvolvimento de ações antirracistas nas redes de educação, especificamente na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Raça, etnia, racismo... Afinal, do que se trata?Em primeiro lugar é importante esclarecer que ser negro no Brasil não se limita às características físicas. Trata-se também de uma escolha política. Por isso, o é quem assim se define. Em segundo lugar, cabe lembrar que preto é um dos quesitos utilizados pelo IBGE para classificar, ao lado dos outros - branco, pardo e indígena – a Cor da população brasileira. Pesquisadores de diferentes áreas, inclusive da educação, para fins de seus estudos, agregam dados relativos a pretos e pardos sob a categoria negros, já que ambos reúnem, conforme alerta o Movimento Negro, aqueles que reconhecem sua ascendência africana. (DCN – ERER – CNE/CP 003/2004)

Transitar pelo universo das relações raciais exige clareza na utilização de diversos termos, tendo em vista a evolução histórica de conceitos e abordagens nesse campo.

Neste texto, optamos pela utilização das referências indicadas pelas Diretrizes Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana1, que conjuga os avanços no campo da pesquisa acadêmica no trato das relações raciais e na ação politica do Movimento Negro brasileiro, que ao longo de sua história contribuiu diretamente para superação da herança escravista pautada na superioridade de raças e culturas.

Assim, aqui, Raça é a construção social baseada nas relações entre brancos e negros, diferentemente do conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje superado. O termo raça é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras para informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.

Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro brasileiro que, em várias situações, o utiliza com um sentido político e de valorização

1 DCN ERER – CNE/ CP 003/2014 – RELATORES: Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (Relatora), Carlos Roberto Jamil Cury, Francisca Novantino, Marília Ancona-Lopez. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf>. Acesso em: 3 dez. 2014.

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do legado deixado pelos africanos. É importante também esclarecer que o emprego do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para frisar que essas relações não se referem apenas a diferenças físicas, mas também se referem a diferenças relacionadas à cultura, que, no caso dos negros, foi plantada na ancestralidade africana e que difere, em visão de mundo, valores e princípios, das de origem indígena, europeia e asiática.

Racismo, preconceito e discriminação racial

RACISMO

É um modo hierárquico de classificação dos seres humanos que os distingue com base nas propriedades

físicas e nos marcos culturais.

DISCRIMINAÇÃO RACIAL

É o racismo e o preconceito materializados em ações e condutas

que desqualificam e desvalorizam um grupo em detrimento de outro. No Brasil, temos legislação que proibe

a discriminação racial, ou seja, o ato de discriminar o outro

por conta de suas caracteristicas étnico-raciais.

PRECONCEITO RACIAL

Opinião que se emite com base em informações acerca de pessoas, grupos

e sociedades, em geral infundadas ou baseadas em

estereótipo, que se transforma em julgamento prévio

negativo.

Eu quero ver quando Zumbi chegar...

A construção da educação antirracista passa necessariamente pela análise do papel do povo negro no processo de formação da sociedade brasileira.

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Iniciaremos esta reflexão abordando o processo de chegada dos

africanos ao Brasil, tendo em vista que analisar criticamente esse período

é importante para o empoderamento e fortalecimento das referências

identitárias da comunidade escolar, sobretudo dos descendentes de

africanos.

A partir do século XVI, as populações negras que chegaram

ao Brasil foram distribuídas em grande quantidade pelo litoral do

país, principalmente do Nordeste e Sudeste, em função do crescente

desenvolvimento das lavouras de cana de açúcar, que até o século XIX

favoreceram o enriquecimento dos senhores de engenho e latifundiários

dessas regiões.

Esse período é caracterizado tanto pelo fortalecimento da elite

agrária quanto pelas precárias condições de vida do povo negro, que

resistiu por 300 anos à violência da escravidão, desenvolvendo estratégias

de proteção de seus valores e cultura.

As manifestações de inconformidade e resistência foram constantes

durante todo o período em que perdurou o sistema escravocrata. As

principais formas de insubordinação coletiva utilizadas eram a greve,

a fuga, a insurreição e o estabelecimento de espaços autônomos

denominados quilombos. Todas as formas de insubordinação tinham

como objetivo central a afirmação do direito à liberdade e à identidade

cultural violentamente negados à população negra2.

2 “(...) Perto do Rio de Janeiro, morei em frente a uma velha senhora que guardava tarraxas para esmagar os dedos de suas escravas. Fiquei em uma casa onde um jovem mulato era diariamente e a cada hora maltratado, espancado e atormentado, de um modo suficiente para aniquilar o espírito do animal mais miserável. Vi um garotinho de seis ou sete anos de idade ser atingido três vezes na cabeça por um chicote de açoitar cavalos (antes que eu pudesse interferir) simplesmente por ter me alcançado um copo de água que não estava bem limpo. Vi seu pai tremer apenas com um relance do olhar de seu mestre. (...) Vi, no Rio de Janeiro, um negro forte temeroso de se proteger de um golpe direcionado, como ele pensou, a seu rosto. Estive presente quando um homem de bom coração estava prestes a separar para sempre homens, mulheres e crianças de um grande número de famílias que por muito tempo haviam vivido juntas. Em verdade, nem teria mencionado tais revoltantes detalhes, se não tivesse encontrado tantas pessoas cegas pela alegria de viver associada ao negro, a ponto de falarem da escravidão como um mal tolerável. Tais pessoas normalmente frequentam as casas das classes superiores, onde os escravos domésticos são em geral bem tratados, e não testemunharam, como eu, o que são as condições nas classes mais baixas. Esses inquiridores perguntam aos escravos sobre suas condições. Esquecem que somente um escravo muito estulto não considera a probabilidade de sua resposta chegar aos ouvidos de seu dono. (...)”. Ver em Diário do Meio – Olhar de Darwin sobre o Brasil. Disponível em: <http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2013/05/053442.html>. Acesso em: 26 nov. 2014.

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Quilombos, quilombolas... Valeu Zumbi!

Na língua banto, quilombo significa “povoação”. No Brasil denominamos quilombo o território estabelecido por negros que reagiam ao sistema escravocrata.

Formado por núcleos habitacionais, os quilombos contavam com relativo grau de organização e desenvolvimento social, econômico e político.

A estrutura dos quilombos era bastante complexa e contava com uma entrada principal guardada por vigias, ruas, casas, Casa do Conselho (destinada à administração), templo, cisternas, oficinas de ferreiro e olarias, plantações e roças.

A ideia falsa do quilombo como “refúgio de negros escravos fugitivos” é herança dos preconceitos que embasaram o período escravista. De acordo com o historiador Clóvis Moura, em 1740, o Conselho Ultramarino, órgão colonial responsável pelo controle central patrimonial, considerava quilombo “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles3.”

O reconhecimento dos quilombos como espaço de resistência é resposta contundente à crença na naturalidade da escravidão ou da resignação dos negros diante da opressão do regime.

Do século XVI ao XIX, o Brasil conviveu com centenas de quilombos, espalhados principalmente pelos atuais estados da Bahia (BA), Pernambuco (PE), Goiás (GO), Mato Grosso (MT), Minas Gerais (MG) e Alagoas (AL).

O mais famoso quilombo brasileiro foi Palmares, fundado no século XVI pela princesa congolesa Aqualtune, mãe do lendário Ganga-Zumba, e instalado na Serra da Barriga, no município de União dos Palmares (AL). Ele integra, ao lado dos quilombos de Ambrósio (MG) e Campo Grande (SP/MG), o grupo dos maiores núcleos de resistência à escravidão no período colonial.

3 MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global: Ação Educativa Assessoria Pesquisa e Informação, 2004, p. 70. (Coleção Viver, Aprender).

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Criado por volta de 1590, o Quilombo dos Palmares organizou-se como um estado autônomo, resistindo por mais de cem anos aos ataques holandeses, luso-brasileiros e de bandeirantes paulistas. Palmares chegou a reunir em torno de 30 mil pessoas em território equivalente a um terço de Portugal.

Foi totalmente destruído em 1695, um ano após a morte de seu líder Zumbi, assassinado por Domingos Jorge Velho, bandeirante contratado com a incumbência de sufocar Palmares e outros quilombos próximos a ele.

A memória de Zumbi, o último comandante do Quilombo de Palmares, é celebrada no Brasil anualmente em 20 de novembro (dia de sua morte), Dia da Consciência Negra.

As comunidades remanescentes dos antigos quilombos são denominadas “quilombolas”. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Fundação Cultural Palmares (órgão do Ministério da Cultura), comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Até agosto de 2014 a Fundação Cultural Palmares indicava 2.394 comunidades quilombolas certificadas no Brasil.4

Como a própria comunidade se autorreconhece como “remanescente de quilombo”, o amparo legal é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujas determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e pelo Decreto Nº 5.051/2004.5

Fim da escravidão oficial... ou Pra que discutir com madame?

As marcas da escravidão dos negros no Brasil são profundas e determinantes para o entendimento das relações raciais em nosso país hoje. Refletir sobre nossa história numa perspectiva racial contribui para a construção de uma pedagogia baseada na valorização da diversidade

4 Relação de comunidades quilombolas certificadas até 20.08.14. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/crqs/lista-das-crqs-certificadas-ate-20-08-2014.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2014.5 Incra. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/estrutura-fundiaria/quilombolas>. Acesso em: 26 nov. 2014.

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e no engajamento em prol de práticas pedagógicas condizentes com o enfrentamento do racismo e suas representações ao longo da formação da sociedade brasileira.

A segunda metade do século XIX foi um período bastante controverso da história brasileira, pois, concomitante às rebeliões, insurgências e campanha abolicionista, a partir de 1870 o governo brasileiro incentivou a vinda de imigrantes, sobretudo europeus, para trabalharem principalmente nas lavouras do sudeste do país. Esse incentivo é representativo do projeto de modernização conservadora que buscava preservar o latifúndio e o poder econômico da elite vigente e de uma tentativa de “embranquecimento” da população.

Nesse período, escravos e assalariados trabalharam lado a lado.O 1º Censo demográfico do Brasil foi realizado em 1872 e indicou

uma população de 10 milhões de pessoas, com 3,8% de estrangeiros e 15,24% de escravos.6

Esse censo foi realizado um ano após a promulgação da Lei do “Ventre Livre”, que tornou livres as crianças filhas de escravas.

O pesquisador do IBGE José Luís Petrucelli atenta para o fato de que em 350 anos de tráfico negreiro, entraram no país cerca de 4 milhões de africanos e, entre 1870 e 1930, o país recebeu praticamente a mesma quantidade de imigrantes europeus.7

Após a abolição oficial da escravidão, em 13 de maio de 1888, o racismo permaneceu como importante traço das relações sociais no país o que impediu avanços em direção a reparações ou a ampliação das oportunidades de educação e integração da população negra na crescente parcela de trabalhadores assalariados.

A desagregação do regime escravocrata ocorreu no Brasil sem assistência ou garantias que protegessem e preparassem os anteriormente escravizados para a transição para a condição de trabalhadores livres e assalariados. Os antigos proprietários de escravos foram eximidos de qualquer responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos,

6 Portal Brasil. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2013/01/censo-de-1872-e-disponibilizado-ao-publico>. Acesso em: 26 nov. 2014. 7 Portal Brasil. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/01/populacao-escrava-do-brasil-e-detalhada-em-censo-de-1872/>. Acesso em: 26 nov. 2014.

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sem que o Estado ou qualquer outra instituição assumisse a preparação para o novo regime de organização da vida e do trabalho.

Essas características imprimiram ao processo da Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel, conforme análise de Florestan Fernandes.

O florescimento dos negócios ligados à exportação de café influenciaram fortemente as transformações no mercado de trabalho e nas relações sociais nesse período, pois, para a elite da época, que almejava a transição para formas mais modernas de comércio internacional, esse momento também se caracterizou pelo desejo de ocultação das marcas da escravidão fortemente criticadas na Europa. Não podemos esquecer que o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão.

Outro forte argumento para a transição do trabalho escravo para assalariado é puramente econômico, pois a elite brasileira se viu forçada a considerar opções mais rentáveis nas relações de trabalho, tendo em vista que o escravo correspondia a um capital fixo, cujo ciclo tinha a duração de uma vida. Dessa maneira, sua aquisição correspondia a um adiantamento a longo prazo do trabalho eventual que produziria, um negócio de risco. O assalariado, por sua vez, fornecia trabalho (e lucro) sem adiantamento ou risco algum. Nessas condições, o capitalismo se mostrava incompatível com a escravidão, conforme análise de Prado Jr.

Podemos concluir que as condições para a abolição da escravidão no Brasil foram muito mais econômicas que humanitárias.

Relações raciais no Brasil após 1888Apesar de reconhecermos que, pelo menos no nível do discurso, a construção social, cultural e histórica das diferenças, ou seja, diversidade, é algo de belo e que dá sentido a nossa existência, sabemos que na prática, no jogo de relações de poder, as diferenças socialmente construídas e que dizem respeito aos grupos sociais e étnico-raciais menos favorecidos foram naturalizadas e transformadas em desigualdades. (GOMES, 2006a, p. 21)

Tendo em vista que a Lei Áurea não garantiu os mesmos direitos para negros e brancos e que nem o Estado, nem os antigos senhores de escravos assumiram qualquer responsabilidade pela concessão de terra para o início da nova etapa ou inserção dos libertos no novo regime de trabalho que foi destinado prioritariamente aos trabalhadores imigrantes

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brancos, podemos afirmar que, após a abolição oficial da escravatura em 13 de maio de 1888, os desafios enfrentados pela população negra no Brasil eram diferentes, mas não menores que os anteriores.

Muitos direitos foram conquistados desde então, mas a luta por igualdade de oportunidades permanece intensa até hoje.

Segundo o Censo 2010 (IBGE), 50,7% da população brasileira é negra (pretos + pardos). Registrou-se uma redução da proporção daqueles que se declaram brancos, que em 2000 eram 53,7% da população e em 2010 passaram para 47,7%; e um crescimento de pretos (de 6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para 43,1%).

Sendo assim, a população negra passou a ser considerada maioria no Brasil.

A luta foi grande, mas os avanços na promoção da cidadania para a população negra foram bastante lentos no século XX. Em seus anos iniciais, consolidou-se no país o mito da “democracia racial”, segundo o qual o Brasil seria uma nação “mestiça”, orgulhosamente fruto da mistura de varias raças que conviveriam em harmonia.

Esse mito é decorrente da imensa dificuldade de enfrentamento da violência e dos desdobramentos da escravidão e adiou por muitos anos o avanço de políticas públicas direcionadas à defesa dos direitos de igualdade de oportunidade reivindicados pela população negra brasileira.

Somente em 1951, por meio da Lei Afonso Arinos, a discriminação racial tornou-se contravenção penal em nosso país.

Na segunda metade do século passado, os trabalhos de Abdias Nascimento, Clóvis Moura, Florestan Fernandes e Lélia Gonzalez, entre outros, questionaram fortemente a crença na democracia racial brasileira e contribuíram diretamente para a consolidação das pautas contemporâneas da luta por igualdade de direitos da população negra, principalmente no campo da educação.

Novos campos: laicidade e intolerância religiosa

Introduzidas no Brasil com a chegada dos africanos, as religiões de matriz africana (candomblé, umbanda, batuque, tambor de minas, quimbanda etc.) sofreram, ao longo de sua história, desqualificações e discriminações que culminaram em repressão e criminalização de suas práticas em diferentes momentos da história do Brasil.

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Consideradas como “primitivas”, “seitas”, “feitiçaria” e outras representações negativas, [...] as religiões de matriz africana foram responsáveis pela preservação de importantes línguas, cultura e valores ancestrais.No início do século XX, o pensamento higienista começava a influenciar a sociedade brasileira. A partir da antiga capital federal, desencadeiam-se campanhas “civilizatórias” que têm a higiene como base. Então, as práticas religiosas de origem africana, tidas como poluidoras e anti-higiênicas, começam a ser duramente reprimidas. Em 1927, cria-se uma comissão policial para repressão ao chamado “baixo espiritismo”; em 1934, amplia-se a repressão com uma delegacia policial especialmente voltada para a questão; e, em 1937, dá-se a criação, dentro dessa delegacia, de uma “Seção de Tóxicos e Mistificações”, especializada no combate às práticas de religiosidade tidas como delituosas. (MUNANGA; GOMES, 2004, p. 143)

Em 2010, a Relatoria do Direito Humano à Educação Plataforma Dhesca8 pesquisou a intolerância religiosa contra estudantes, famílias e profissionais de educação vinculados ao candomblé, à umbanda e a outras religiões de matriz africana. A investigação explicitou casos de discriminação religiosa que culminaram em violência física, humilhações recorrentes, isolamento social de estudantes, em negação da identidade religiosa por medo de represálias, na demissão ou afastamento de profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africana ou profissionais que abordaram conteúdos dessas religiões em classe e na proibição do uso de livros e do ensino/prática da capoeira e de danças afro-brasileiras em espaços escolares.

A intolerância religiosa no Brasil, portanto, deve ser compreendida como manifestação do fenômeno do racismo.

A investigação identificou o crescimento de casos de intolerância religiosa na escola e na sociedade, ainda pouco registrados e/ou denunciados, porém, a abordagem desse tema permanece invisível no debate e nos currículos escolares.

Proporcionalmente à intolerância religiosa direcionada à religiões de matriz africana, cresce a presença das religiões hegemônicas nas

8 A Plataforma Dhesca Brasil é uma articulação nacional de 36 movimentos e organizações da sociedade civil que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, visando o fortalecimento da cidadania e a radicalização da democracia. Seu objetivo geral é contribuir para a construção e o fortalecimento de uma cultura de direitos, desenvolvendo estratégias de exigibilidade e justiciabilidade dos Dhesca, bem como incidindo na formulação, efetivação e controle de políticas públicas sociais. Disponível em: <http://www.dhescbrasil.org.br/>. Acesso em: 26 nov. 2014.

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escolas públicas brasileiras, impulsionadas por profissionais adeptos de diferentes religiões.

Esse fenômeno é um grande obstáculo à implementação integral da Lei 10.639, tendo em vista que, no ambiente escolar, os temas racismo, intolerância religiosa, e laicidade estão fortemente correlacionados.9

Educação e relações raciaisO racismo e as práticas discriminatórias disseminadas no cotidiano brasileiro não representam simplesmente uma herança do passado. O racismo vem sendo recriado e realimentado ao longo de toda a nossa história. Seria impraticável desvincular as desigualdades observadas atualmente dos quase quatro séculos de escravismo que a geração atual herdou. (Documento Oficial Brasileiro para a III Conferência Mundial contra o racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância – Durban, 2001)

Uma das primeiras experiências de educação da população negra data de 18 de maio de 1888, apenas cinco dias após a abolição, com a fundação da Sociedade Beneficente Luís Gama, em Campinas.

Focada na assistência social, essa entidade ofereceu cursos de educação de adultos no período noturno, e para jovens, no diurno. A experiência durou apenas dois anos.

Desde então, várias experiências de curta duração buscaram enfrentar a desigualdade educacional no Brasil oferecendo educação formal à população negra.

A década de 1930 do século XX foi especialmente polarizada politicamente em função das implicações do golpe de estado que levou Getúlio Vargas ao poder em outubro de 1930. Porém, nem as forças politicas que se posicionaram mais à direita ou à esquerda incluíram em suas pautas as reivindicações da população negra.

9 Laicidade do Estado: a laicidade pressupõe a neutralidade confessional do Estado e das instituições para um tratamento igualitário entre os cidadãos. As diferenças não são negadas, mas respeitadas. Na legislação brasileira, o princípio da laicidade está expresso no Art. 19 da Constituição Federal de 1988: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Liberdade religiosa: a liberdade religiosa refere-se à esfera privada e afirma a liberdade de escolha dos cidadãos de alguma ou nenhuma religião.

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A fundação da Frente Negra Brasileira (1931-1937) foi uma resposta ao descaso com as reivindicações dessa parcela significativa da população brasileira.

Mais importante organização política negra do século XX, em 1934 tornou-se o único partido político negro brasileiro registrado na Justiça Eleitoral10.

Com representação nacional, a FNB11 chegou a contar com 200 mil filiados e organizou escolas noturnas, cursos profissionalizantes, além de promover bailes e outras atividades culturais e uma milícia com o objetivo de proteger a população negra de violências.

Grande parte da história dos “frente-negrinos”, como eram chamados os militantes da Frente Negra Brasileira, está disponível no Arquivo Público Mineiro (APM)12. São documentos, jornais e correspondências trocadas entre integrantes da FNB e órgãos de repressão que acompanhavam de perto a atuação da organização.

Minas Gerais foi a segunda maior representação da Frente Negra Brasileira, perdendo apenas para São Paulo em número de associados e extensão de suas ações. A educação era vista pela FNB como principal forma de reação ao preconceito racial e suas experiências nesse campo contribuíram para o fortalecimento da resistência da população negra à exclusão social e o fortalecimento de suas reivindicações.

Diversidade e Direito à Educação

A superação das desigualdades raciais e a defesa do direito à educação ao longo da vida permaneceram como pauta constante na agenda social brasileira, chegando ao século XXI como elemento indissociável do exercício da cidadania.

Segundo o censo 2010, a raça permanece como um dos principais componentes da desigualdade social brasileira. Um exemplo disso é que

10 Revista Brasileira de Educação. Um “Templo de Luz”: a Frente Negra Brasileira. Disponível em: <anped.org.br/rbe/numeros_rbe/revbrased39.htm>. Acesso em: 26 nov. 2014. 11 Vídeo – CULTNE – Frente Negra Brasileira – Parte 1: entrevista com frente-negrinos. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=j4H-dqC4Kug#t=31>. Acesso em: 26 nov. 2014.12 Arquivo público. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=4643>. Acesso em: 26 nov. 2014.

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enquanto entre todos os homens que recebem até ¼ de salário mínimo, 28% deles são brancos, outros 70% são pretos e pardos, indicando que é a população negra que ocupa os postos com mais baixos salários.

Para além do reconhecimento da responsabilidade histórica assumida na conferência de Durban em 2001, o governo brasileiro apresentou um plano de ação com especial destaque para ações no campo da educação, visando acatar as orientações da Conferência.

Dentre os compromissos assumidos pelo Brasil na Conferência destacam-se:

• igual acesso à educação para todos e todas na lei e na prática; • adoção e implementação de leis que proíbam a discriminação

baseada em raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica em todos os níveis de educação tanto formal quanto informal;

• apoio aos esforços que assegurem ambiente escolar seguro, livre da violência e de assédio motivados por racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata;

• estabelecimento de programas de assistência financeira desenhados para capacitar todos os estudantes, independentemente de raça, cor, descendência, origem étnica ou nacional, a frequentarem instituições educacionais de ensino superior.

O principal avanço conquistado pós-Durban é a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino da História e cultura Afro-brasileiras e africanas no currículo oficial da Educação Básica e inclui no calendário escolar o Dia da Consciência Negra.

A proposição de novas práticas pedagógicas que dialoguem com a realidade social brasileira proposta pela Lei 10.639 corresponde ao reconhecimento e valorização dos saberes, memórias e enfrentamentos cotidianos de todos os sujeitos presentes na comunidade escolar, principalmente os negros, diante da desigualdade social, econômica e racial.

Um dos grandes desafios à implementação da Lei 10.639 é a defesa da liberdade religiosa e laicidade na educação pública presente na legislação.

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Alvo preferencial de violência, perseguições e desrespeito gerados pelo racismo, as religiões de matriz africana contribuíram diretamente para a preservação da memória ancestral africana materializada nas línguas, tradições, conhecimentos e valores trazidos do continente africano.

Em 2010, a Relatoria do Direito Humano à Educação da Plataforma Dhesca investigou casos de intolerância religiosa em escolas públicas brasileiras. A pesquisa explicita a contundência da intolerância religiosa contra estudantes, famílias e profissionais de educação vinculados ao candomblé, à umbanda e a outras religiões de matriz africana e a necessidade das escolas posicionarem-se na defesa da liberdade religiosa e laicidade na educação pública.

Entre as denúncias que chegaram à Relatoria, de diversas regiões do país, encontram-se casos de violência física (socos e até apedrejamento) contra estudantes; demissão ou afastamento de profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africana ou que abordaram conteúdos dessas religiões em classe; proibição de uso de livros e do ensino da capoeira em espaço escolar; desigualdade no acesso a dependências escolares por parte de lideranças religiosas, em prejuízo das vinculadas à matriz africana; omissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de professores e diretores etc. Essas situações, muitas vezes, levam estudantes à repetência, evasão ou solicitação de transferência para outras unidades educacionais, comprometem a autoestima e contribuem para o baixo desempenho escolar.(Relatoria do Direito Humano à Educação – Informe Preliminar – Missão Educação e Racismo no Brasil, 2010 – Eixo: Intolerância Religiosa na Educação)

A lei 10.639 é uma das ações que reagem ao ocultamento da discriminação religiosa ainda presente no ambiente escolar e afirmam a necessidade de reconhecimento das diferentes presenças e trajetórias culturais e sociais no amplo leque que compõe a diversidade da sociedade brasileira. Como ação afirmativa, ela propõe a ruptura com a ideia de homogeneidade e uniformização que fortemente influenciou a educação escolar em nosso país.

Mas o que são ações afirmativas?

Denominamos ação afirmativa qualquer medida, além da simples interrupção de uma prática discriminatória, adotada com a finalidade de

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corrigir ou compensar a discriminação passada ou presente e evitar que a discriminação ocorra no futuro (REIS e SOUZA, 2005)13.

No âmbito da promoção da diversidade, são politicas públicas ou programas privados direcionados à neutralização dos efeitos da discriminação de raça, gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física (GOMES, 2006a).

Para superar essas discriminações, definitivamente é necessário reafirmar a escola como direito social e espaço de acolhimento e afirmação da diversidade de classe, gênero, etária, étnica e racial. E está implicado também o reconhecimento do espaço escolar como ambiente de construção de debates, saberes e práticas de afirmação de identidades e enfrentamento dos preconceitos presentes na sociedade brasileira14.

EJA e relações raciais

Retomando a função social da escola, localizamos no centro do processo de ensino e aprendizagem a afirmação da identidade racial e cultural como elemento essencial para a construção do mosaico de conhecimentos potencialmente transformadores das relações de poder que se desenrolam na escola e fora dela.

A educação não é o único elemento da superação das desigualdades sociais e raciais no Brasil, mas é um direito humano e constitucional que contribui diretamente no enfrentamento dos demais fatores de exclusão.

Composto majoritariamente por negros, o público da EJA é também portador de bagagem cultural e vivências no campo das relações raciais indispensáveis para o aprimoramento das propostas político-pedagógicas comprometidas com uma pedagogia antirracista.

Em um universo heterogêneo como o da EJA, os principais pontos de conexão na trajetória dos estudantes referem-se normalmente à

13 Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/%3C?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=817&revista_caderno=9>. Acesso em: 26 nov. 2014.14 Para saber mais: Coleção educação para Todos – Ações Afirmativas nas Américas – SECAD MEC. Organização: Sales Augusto dos Santos. Disponível em: <http://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/publicacoes/acoes_afirm_combate_racismo_americas.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2014.

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exclusão e preconceito educacional, racial, social, de gênero e geracional que permeia suas histórias de vida.

A análise das taxas de analfabetismo e de acesso ao ensino superior nos diz muito sobre as oportunidades de permanência da população negra em processos de escolarização contínuos no Brasil.

13,9 milhões de pessoas com 15 anos ou mais são analfabetas

67% dos analfabetos são negros (pretos

ou pardos)

13% das pessoas brancas completaram

o ensino superior

4% das pessoas negras completaram

o ensino superior

As expectativas referentes ao processo de aprendizagem na EJA também são variáveis e vinculadas à constante superação de obstáculos relativos à inclusão da escola em uma rotina construída em torno de oportunidades de trabalho, elemento central no universo juvenil e adulto.

Construir processos educativos tendo como ponto de partida os saberes e experiências dos sujeitos reais da EJA é a base sobre a qual

Fonte: IBGR, Censo Demográfico 2010.

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possibilitamos aprendizagens significativas e viabilizamos a inclusão da escola na dinâmica cotidiana dos alunos e alunas da modalidade.

A temática das relações raciais na modalidade emerge como resposta ao anseio de atendimento às reais necessidades de aprendizagem de um público com majoritária presença de negros e negras e coloca como desafios às redes públicas o reconhecimento, a valorização e o acolhimento de suas identidades nas propostas curriculares, organização escolar e na ação educativa.

Fundamentos da EJA e Pedagogia antirracistaPara obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer a mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isto não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência de ser inferiorizado vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas. (DCN – ERER – CNE/ CP 003/2005)

No primeiro texto desta coletânea, sobre os Fundamentos para a Educação de Jovens e Adultos, indicamos a necessidade de diálogo entre propostas curriculares e cinco fundamentos da educação de jovens e adultos.

Os mesmos fundamentos são a base para a construção de uma prática pedagógica assumidamente antirracista na Educação de Jovens e Adultos.

Observe os desdobramentos que indicamos para essa conexão e exercite a proposição de outros:

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Fundamento da EJA

Implicações Desdobramentos na perspectiva racial

Assegurar a equidade educativa

• Adotar uma perspectiva contextualizada para a organização do ensino e seleção de conteúdos.

• Abordar temas relevantes para as pessoas jovens e adultas das comunidades atendidas.

• Afirmação do caráter multirracial e pluriétnico da sociedade brasileira.

• Reconhecimento da presença negra nas salas de aula e no território.

• Aprofundamento do conhecimento acerca das diferentes culturas presentes nas salas de aula da EJA e no território.

• Desconstrução da ideia de hierarquia entre culturas.

• Proposição de processos pedagógicos que privilegiam a interação, reflexão e valorização das diferenças.

Considerar o mundo do trabalho como temática central.

• Aprofundar o conhecimento relativo ao universo e relações de trabalho na história da humanidade e nas suas peculiaridades locais.

• Reflexão acerca do processo de transição do trabalho escravo para remunerado, destacando as implicações históricas para as relações raciais e indicadores sociais no Brasil atual.

Garantir a qualidade da aprendizagem dos adultos

• Construir um processo de formação inicial e continuada específico para educadores e gestores da EJA.

• Adequar equipamentos, espaço físico e rotina escolar às necessidades dos jovens e adultos.

• Inclusão, no processo de formação dos professores, de reflexões acerca das diferentes trajetórias e de enfrentamentos cotidianos vivenciados por alunos e alunas no tocante a relações raciais dentro e fora da escola.

• Atenção constante à representação equilibrada e livre de estigmatizações das diferentes raças no ambiente escolar, materiais didáticos e atividades propostas.

• Promoção do conhecimento sobre a África e africanidades brasileiras em suas múltiplas abordagens.

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Fundamento da EJA

Implicações Desdobramentos na perspectiva racial

Abordar temas significativos para o universo juvenil e adulto

• Tendências atuais do mundo do trabalho.

• Relações étnico-raciais.

• Relações de gênero e direitos da mulher.

• Meios de informação e comunicação.

• Cidadania e participação.

• Manutenção de acervo e recursos adequados para a abordagem das questões étnico-raciais, incluindo livros, periódicos, filmes e jogos... para alunos e professores.

• Organização de debates e atividades direcionadas ao enfrentamento do racismo e desigualdades sociais no Brasil e na localidade.

• Abordagem da cultura negra em suas múltiplas manifestações, como patrimônio histórico, ambiental, econômico, político e cultural.

• Análise crítica e constante da representação das diferentes raças nos meios de informação e comunicação.

Considerar o direito humano à educação

• Promover aprendizagens que permitam aos jovens e adultos a participação plena na sociedade.

• Incentivo à participação da comunidade escolar nas lutas antirracistas.

• Promover reflexão coletiva sobre o papel do racismo na construção das desigualdades educacionais no Brasil.

• Reconhecimento de todos os alunos e alunas da EJA como sujeitos de conhecimento e aprendizagem, rompendo o estigma histórico dos estudantes negros como menos capacitados.

• Reconhecimento da EJA como espaço de reivindicação de direitos educativos, problematização de experiências, valorização, construção e transformação de conhecimentos.

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Os jovens no cotidiano da Educação de Jovens e Adultos (EJA): desafios e possibilidadesRaquel Souza

Embora a modalidade de Educação de Jovens e Adultos contenha já em seu nome a indicação do público ao qual ela se dirige, nossa reflexão teórica e os acúmulos no campo da EJA têm se dado, sobretudo, a partir de preocupações concernentes aos desafios para atuar com homens e mulheres adultos que, por uma série de razões, não tiveram acesso à educação básica na idade considerada adequada. Também a nossa subjetividade como professores e professoras que atuam nessa modalidade de ensino está, muitas vezes, capturada por certo “ideal” de quem é esse estudante adulto.

Esperamos encontrar em nossa sala de aula homens e mulheres com mais de 30 anos, com nenhuma ou remota trajetória de escolarização, trabalhadores da construção civil, donas de casa, vigias, seguranças, mecânicos, porteiros e outros trabalhadores. Projetamos depararmo-nos com indivíduos que, por dilemas sociais e trajetórias biográficas difíceis, não tiveram acesso à escolaridade básica e procuram, quando adultos, as salas e turmas de EJA para satisfazer o desejo de retomar os estudos e tomar contato com os conhecimentos escolares. Tendo em vista essas expectativas, esperamos acolher nas turmas de EJA pessoas que, a priori, possuem uma relação positiva com a escola e com o educador, ainda que suas dificuldades para lidar com o

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conhecimento escolar sejam grandes e, muitas vezes, desafiadoras para professores.

De fato, durante muito tempo, ainda que as turmas de EJA sempre tenham sido marcadas pela heterogeneidade, a presença de indivíduos que satisfaziam esse imaginário foi predominante. Todavia, desde o final da década de 1990, esse perfil de estudantes tem dado espaço para outro que, de certo modo, tem afetado o cotidiano e o trabalho dos profissionais que atuam na educação de jovens e adultos. Trata-se de um número crescente de moças e rapazes, às vezes bastante jovens, que nunca sequer abandonaram a escola regular, mas que tiveram nela uma trajetória acidentada, cujas principais marcas são a reprovação e a desistência.

A presença dessa população tem sido mobilizadora de muitas inquietações e também de queixas de educadores e educadoras. Nos fóruns e espaços de discussão sobre educação de jovens e adultos, é comum o diagnóstico de que esse grupo tem alterado substancialmente a rotina das turmas de EJA, notadamente em função de características avaliadas como indesejáveis e capazes de tornar a sala de aula um espaço de tensão e conflito. Nessas avaliações, moças e rapazes são descritos como desinteressados, apáticos, indisciplinados, incivilizados, alienados, hedonistas e, em versões extremas, violentos, e, por essas características, tratar-se-ia de uma população para a qual o trabalho educativo se constituiria numa ação pouco fecunda.

É necessário reconhecer que a presença de moças e rapazes na EJA tem, de fato, se constituído num dilema para muitos educadores e educadoras. No entanto, propomos aqui, no curto espaço deste texto, uma reflexão acerca do fenômeno do que podemos denominar “juvenilização” da educação de jovens e adultos e, principalmente, das possibilidades de reorganização do trabalho educativo no sentido de atender às demandas e necessidades educativas dessa população.

Uma primeira questão que gostaríamos de problematizar diz respeito ao paradoxo que a presença de jovens na EJA representa para a história recente da educação brasileira. Afinal, estamos falando de uma geração que, diferentemente de outras, nasceu e cresceu num contexto marcado por uma progressiva expansão e massificação da escolarização básica. É preciso pensar o que tem acontecido para que esse grupo, a despeito dessa história recente, se converta, cada vez mais, na “cara” da

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EJA. Se esses jovens tiveram oportunidade de acesso à educação básica regular, por que se dirigem a essa modalidade de ensino?

Essa questão nos remete, necessariamente, ao modo como foi realizado o processo de expansão da educação básica, primeiramente, do ensino fundamental e, mais recentemente, do ensino médio, para amplos segmentos da população brasileira, especialmente para aqueles que historicamente foram alijados da possibilidade de construir uma trajetória mais longilínea de educação: crianças e jovens pobres, segmentos negros da população brasileira, moradores de bairros da periferia e de contextos rurais, filhos de trabalhadores com pouca ou nenhuma escolarização.

A esse respeito, não há grande discordância entre pesquisadores de que o processo de expansão da oferta escolar se realizou sem que fossem feitos investimentos adequados para acolher uma ampla e heterogênea população, que passa a frequentar a escola na condição de estudante. Tal regime de expansão se traduziu no sucateamento das escolas, na precarização das condições de trabalho docente, no déficit de materiais e equipamentos necessários para promoção de atividades educativas distintos do tradicional giz e apagador. Ao mesmo tempo, manifestou-se pela ausência de uma reflexão sistemática sobre qual escola, currículo e práticas educativas seriam capazes de responder às expectativas de aprendizagem e de sociabilidade escolar almejada pelos novos estudantes. Como consequência, os estabelecimentos que abrigam as classes populares:

(...) têm se caracterizado como espaço de improvisação e precariedade: professores que trabalham com regime de contratação precária em lugares sem bibliotecas, laboratórios, computadores, ginásios ou auditórios e funcionários em número insuficiente para atender à demanda. Este tipo de escola que se expandiu de maneira degradada para abrigar as crianças e jovens das classes populares parece fazer da contenção da pobreza sua função principal. (CARRANO, 2009, p.161)

É evidente que, se comparada a uma escola na qual apenas uma pequena parcela privilegiada da população tinha acesso, a escola pública que temos hoje é de muito melhor qualidade do que a do passado. Ou seja, do ponto de vista quantitativo, temos uma escola qualitativamente melhor (BEISIEGEL, 2006). Mas não podemos deixar de avaliar que essa escola, mesmo que acolhendo amplos segmentos da população, continua a produzir processos sistemáticos de exclusão, evidenciados pelo número

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substantivo de moças e rapazes brasileiros que ingressam no ensino fundamental, mas não o concluem. Em outras palavras, seja porque é ofertada em regime de precariedade, seja porque é incapaz de reconhecer as especificidades e dialogar com as necessidades educativas dessa população, continua a produzir exclusão.

Por exemplo, o estudo de Cavalleiro (2000), assim como outros, mostra como o racismo, desde muito cedo (na educação infantil, mais precisamente), atravessa as experiências escolares de crianças negras. Recentemente, diferentes canais de comunicação noticiaram com entusiasmo o fato de Luma Andrade ter se tornado a primeira travesti com título de doutora no Brasil. A surpresa gerada pela notícia desvela o contexto generalizado de exclusão de travestis do sistema escolar. Afinal, por que nos surpreendermos com uma travesti alcançando um dos mais altos graus de escolaridade?

Evidentemente, não são apenas os fatores internos à escola que tiram de crianças e jovens a possibilidade de que estabeleçam uma relação profícua com seus estudos. Não são quaisquer crianças e jovens que não concluem seus estudos, mas, sobretudo, os mais pobres, que desde muito cedo precisam articular em suas vidas demandas que podemos avaliar como difíceis de serem encaradas até mesmo por um adulto: mundo do trabalho, dilemas na vida familiar, conflitos no bairro, entre outros. Muitas vezes, esses dilemas são enfrentados sem amparo de uma rede de proteção social adequada e eficiente.

É uma parcela desses jovens – e é importante frisar que é apenas uma parcela – que persiste em permanecer na escola ou retornar, em algum momento de suas vidas, à instituição escolar, a partir da frequência a turmas de EJA. Nesse sentido, parece-nos que um dos desafios consiste em não repetir a trajetória que tiveram na educação básica, permitindo- -lhes que vivenciem experiências mais positivas de relação com a escola e com o conhecimento produzido em seu interior. Certamente, parte dessa empreitada relaciona-se à estruturação de uma política educacional que, de fato, traduza o compromisso em ofertar uma educação de qualidade para essa população, mas também aos esforços pedagógicos, da parte de educadores e educadoras, que lhes permitam construir práticas educativas conectadas às demandas e necessidades dos jovens. Mas, por onde começar?

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Diálogo com o mundo juvenil

Parafraseando Rubem Alves (2003), acreditamos que gestores e educadores comprometidos com a educação desses sujeitos devem desenvolver sua capacidade “escutatória”. Isso porque muitas experiências de políticas educacionais nascem carregadas de boas intenções, mas são gestadas no gabinete, muitas vezes sem sequer estabelecer diálogo com os professores e tampouco com os jovens. Em outras palavras, o esforço dos educadores em compreender os sentidos de ser jovem no tempo presente e os desafios que estes encontram para pensar/delinear seus projetos de futuro pode resultar em práticas e políticas que possibilitem que os jovens encontrem sentido nos tempos e espaços escolares.

Sem a pretensão de esgotar o tema, gostaríamos de relatar brevemente uma experiência realizada no âmbito de um projeto da Ação Educativa. A iniciativa, apelidada de Jovens Agentes pelo Direito à Educação (Jade), foi implementada entre os anos de 2007 e 2014, em parceria com professores de escolas de ensino médio da Zona Leste da cidade de São Paulo. Em linhas gerais, o projeto visou construir com as comunidades escolares propostas educativas que estivessem mais conectadas aos interesses e demandas dos estudantes jovens, que são maioria nesse nível de ensino.

Para tanto, em seu primeiro ano de realização, o projeto buscou realizar um amplo processo de escuta dos jovens, orientado por duas grandes questões: considerando os desafios do presente e as perspectivas e projetos de futuro de moças e rapazes, o que eles precisam aprender? E, tendo em vista essas necessidades, que aprendizagens podem ser promovidas pela escola, através de suas atividades educativas? Com o intuito de responder a essas questões, professores, com apoio de estudantes, mobilizaram-se na realização de uma pesquisa quantitativa que sondou a percepção de 880 estudantes das cinco escolas parceiras e também na realização de oito grupos de diálogo, que reuniram mais de uma centena de pessoas1.

1 Os resultados desse processo foram publicados em Que ensino médio queremos? Relatório Final, publicado pela Ação Educativa, em 2008. A versão on-line desse material encontra-se disponível no link: <http://www.bdae.org.br/dspace/bitstream/123456789/2296/1/queensinomedioqueremos1.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2014.

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O resultado desse diagnóstico foi amplamente discutido pelas equipes escolares e também pelos jovens estudantes. Num segundo momento, com o intuito de construir diretrizes para o currículo do ensino médio, capazes de orientar uma ação pedagógica das escolas, foi estruturada uma oficina, que reuniu, além de diferentes segmentos das escolas parceiras, técnicos da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEE-SP) e professores de três universidades estaduais paulistas que se dedicam a estudos e pesquisas sobre ensino médio, juventude e inovação curricular. Nesse encontro, surgiu a demanda dos jovens para que suas escolas ofertassem um espaço de reflexão sobre as possibilidades de continuidade dos estudos quando findado o ensino médio, bem como informações sobre o mundo do trabalho, demanda que também encontrava eco no posicionamento das comunidades escolares, e que mobilizou a atenção dos participantes.

Os estudantes pediam uma formação que tivesse como base informações e conhecimentos sobre o mundo do trabalho, as diferentes profissões, suas características, informações sobre cursos técnicos e universitários e as diferentes carreiras, enfim, informações e reflexões que permitissem estabelecer uma escolha e um percurso profissional. Parte importante dessa demanda se relaciona à escolha do curso universitário e ao conhecimento das oportunidades existentes para o acesso dos adolescentes pobres ao ensino superior.

A demanda dos jovens mobilizou a atenção dos participantes da referida oficina porque acenava para articulações que os jovens estabeleciam entre o ensino médio e suas perspectivas de futuro, tenham eles como horizonte a perspectiva de inserção profissional ou de continuidade dos estudos. Além disso, ela indicava a necessidade de diálogo entre o currículo do ensino médio e a preparação para o mundo do trabalho, estabelecendo uma conexão distinta daquela mais comumente realizada pelas políticas públicas educacionais: a oferta de qualificação profissional como apêndice da formação básica.

Por essas razões, sem desconsiderar a pertinência de outras propostas aventadas pelos estudantes, a implementação de uma proposta que visasse atender a essa demanda foi avaliada pelos participantes da oficina como um caminho profícuo de inovação pedagógica. Uma vez eleita como prioritária a demanda dos estudantes por aquilo que

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denominamos “orientação profissional”, incitamos jovens e professores a construir uma proposta com vistas a atendê-la. Um grupo de estudos foi constituído, em 2008, por jovens – estudantes e egressos do ensino médio – e professores, sendo que todos tinham participado ativamente do processo de diagnóstico. Para contribuir com a reflexão do grupo, um especialista no tema da orientação profissional foi convidado a participar dos encontros do grupo, apresentando diferentes perspectivas sobre o tema e mediando as discussões desses estudantes e profissionais. Ao longo de quatro meses, esse grupo reuniu-se uma vez por semana para elaborar uma proposta, que foi apelidada de Tô No Rumo: Jovens e Escolha Profissional.

O Tô No Rumo consistiu na proposição de um conjunto de atividades que buscavam satisfazer os seguintes objetivos:

a) disponibilizar aos estudantes um conjunto de informações sobre os caminhos de continuidade dos estudos, quando findado o ensino médio, e de inserção profissional;

b) permitir uma reflexão dos jovens sobre a realidade educacional, especialmente no que concerne ao acesso de jovens pobres ao ensino técnico e superior, bem como sobre o mundo do trabalho no Brasil contemporâneo;

c) problematizar diferentes dimensões (culturais, sociais, econômicas) que afetam nos processos de escolha e de inserção educativa e profissional dos jovens. Em outras palavras, tratou-se de um programa de encontros, que buscavam animar os estudantes de ensino médio na reflexão sobre suas expectativas de estudos e trabalhos, à luz de informações sobre a realidade brasileira nesses domínios2.

Uma das preocupações desse grupo foi considerar outras demandas também diagnosticadas a partir da pesquisa, como por exemplo, aquelas que diziam respeito à realização de atividades mais dinâmicas na sala de aula, capazes de promover tanto diálogos entre os jovens quanto

2 Com o intuito de disseminar essa metodologia, em 2014, a Ação Educativa publicou o Guia Tô No Rumo: Jovens e Escolha Profissional. A versão on-line desse material encontra-se disponível no site do projeto, cujo endereço é www.tonorumo.org.br.

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o engajamento de cada um na busca e construção de conhecimentos. Como consequência, mais do que um conjunto de aulas, na qual o professor apresentava conteúdos simultaneamente a um grupo de alunos enfileirados, as atividades propostas prezavam situações em que se realizavam – em sala de aula ou fora dela – dinâmicas, pesquisas, debates etc., sendo o professor responsável pela animação, moderação e supervisão das atividades. Além disso, a proposta distanciou-se da perspectiva de orientação profissional que está orientada pela ideia de diagnósticos ou prognóstico. Ao contrário, foi intuito do grupo construir uma proposta capaz de favorecer o autoconhecimento por parte dos estudantes e, ao mesmo tempo, a compreensão dos diferentes fatores que interferem e podem vir a interferir em suas trajetórias de futuro.

Entre 2009 e 2014, o desafio das escolas participantes do projeto consistiu em implementar as oficinas Tô No Rumo, incorporando-as ao currículo do segundo ou do terceiro ano do ensino médio. Vale destacar alguns aspectos mencionados por professores e jovens sobre essa experiência, obtidos a partir de avaliação da proposta. Do lado dos professores, verifica-se a constatação de que, por meio das atividades, foi possível construir uma relação diferenciada em sala de aula com os jovens e, mais do que isso, repensar as relações de poder que animam a relação entre professor e estudantes no interior da sala de aula. O depoimento de duas professoras, que reproduzimos a seguir, são exemplos dessa percepção:

(...) a avaliação que eu faço – claro que sempre tem um ou outro que tem menos interesse, que tem uma dificuldade maior em entender o objetivo e participar –, mas, no geral, quando começa, desde o primeiro instante, eles colaboram bastante para acontecer as oficinas. Como eu disse, as oficinas são diferentes das aulas, do dia a dia das aulas, a gente já começa a montagem da sala de uma forma diferente, que é num movimento de círculo, organizá-los em círculo, e eles resistem um pouco no início, mas depois eles adoram e aí todos participam e acham interessante, não só o assunto, mas a metodologia, a forma como a gente apresenta isso para eles, e começa a ter diálogos entre eles. Isso é algo que vai entusiasmando. E eu acho que tem alunos que mudam muito durante as oficinas. Eles, aliás, modificam até a sua postura no dia a dia das aulas, a gente já teve algumas experiências nesse sentido, de aluno que não estava muito interessado nas aulas, era aquele aluno indisciplinado que vivia causando certo problema e depois ele começa, com o decorrer das oficinas, a se interessar pelo que está sendo colocado, até busca outras informações e, a partir daí, muda a sua postura

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na sala de aula, dia a dia, quando já terminamos as oficinas, ele tem uma postura diferente do que ele tinha no início. Não foi apenas um, foram vários – não todos, obviamente –, mas eu acho que o envolvimento dos alunos é muito positivo. Muito. Eles aceitam bem, eles participam bastante e ficam, depois, durante um tempo ainda, falando sobre as oficinas. Eu acho que, durante esses três anos, numa avaliação geral, seria isso, um envolvimento bom. – V., professora parceira, escola Jardim Planalto (depoimento coletado para confecção do Guia Tô No Rumo – 2011).

Então eu acho, uma coisa que eu queria colocar... a minha postura diferente também. E aí, eu pude perceber o quanto a ação provoca reação. Porque, no formato das oficinas, eu também não era aquela professora da sala de aula. Era mais descontraída, mais tolerante. Então, eu acho que isso foi importante para mim também. – G., professora parceira, escola Jardim Planalto (depoimento coletado para confecção do Guia Tô No Rumo – 2011).

Os relatos indicam também uma resistência inicial dos jovens em participar de atividades que se distinguem de aulas, a preferência deles por uma ou outra dinâmica, as dificuldades para lidar com uma proposta fortemente assentada no diálogo e escuta dos jovens, num contexto ainda marcado por tempos e espaços fortemente engessados pela “grade” disciplinar, de aulas cadenciadas pela duração de 50 minutos. No entanto, em nenhum dos relatos é questionado o fato de que a construção de uma proposta educativa que parte do reconhecimento das demandas dos jovens abre possibilidades de romper com certa incomunicabilidade entre o mundo da escola e o mundo juvenil.

Da parte dos jovens, a avaliação também é positiva, visto que não só destacam terem tido acesso a informações que outrora não possuíam, mas também a pertinência de questões, abordadas no âmbito das atividades que afetam suas vidas, como os desafios no mundo do trabalho, as relações de gênero e seus efeitos na divisão do trabalho e os possíveis caminhos para prosseguir com os estudos. Mais do que isso, os estudantes destacam a possibilidade de, na escola, envolverem-se em atividades que, não só demandavam deles a leitura de textos, mas também a resolução de problemas, o engajamento em debates, a participação em dinâmicas e brincadeiras que os faziam movimentar o corpo.

O exemplo do projeto Jade não se constitui numa fórmula mágica a ser seguida por escolas e redes de ensino preocupadas com a presença de jovens nas turmas de EJA, até porque trata-se de uma iniciativa pensada considerando as demandas e especificidades do ensino médio e de

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um determinado público. Ao relatar essa experiência, o que queremos destacar é que a escuta atenta dos jovens pode se constituir num ponto de partida interessante para a construção de uma escola atenta às suas necessidades de aprendizagem e aos desafios que enfrentam no cotidiano. Trata-se de um exercício e de um empreendimento que cada educador e cada escola pode realizar de maneiras muito distintas daquelas que descrevemos aqui, a partir de perguntas e de estratégias condizentes com suas realidades e condições de trabalho. É importante afirmar que esse exercício de escuta não nega a responsabilidade docente no planejamento pedagógico e tampouco de gestores na administração escolar ou de um sistema de ensino, mas busca lançar a aposta acerca dos pontos de partida para esses compromissos e responsabilidades.

ReferênciasALVES, Rubens. O amor que ascende a lua. São Paulo: Papirus, 2003.

BEISIEGEL, Celso de Rui. A qualidade do ensino na escola pública. São Paulo: Liber Livro, 2006.

CARRANO, Paulo César. Identidades culturais juvenis e escolas: arenas de conflitos e possibilidades. In: Diversia, nº. 1, Cidpa, Valparaíso, abril, 2009, p. 159-184. Disponível em: <http://www.cidpa.cl/wp-content/uploads/2013/05/Revista-Diversia-01.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2014.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Editora Contexto, 2000.

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Formação profissional na Educação de Jovens e AdultosRoberto Catelli Jr.

Em 2011 o governo federal criou o Programa Nacional de Acesso

ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) que, conforme o seu portal de

informações, tem como objetivo “expandir, interiorizar e democratizar a

oferta de cursos de educação profissional técnica de nível médio e de cursos

de formação inicial e continuada ou qualificação profissional presencial e a

distância” (http://pronatec.mec.gov.br/institucional-90037/objetivos-e-

iniciativas).

A criação do programa aqueceu o debate sobre o significado

da educação profissional recolocando também em cena velhas

questões. Em passado recente, há menos de duas décadas, programas

de educação profissional como o Plano Nacional de Qualificação do

Trabalhador (Planfor) criado pelo governo federal em 1996, procuraram

investir na formação rápida, em cursos de curta duração com a

finalidade de desenvolver habilidades especificas. Esta diretiva, que em

parte se repete no PRONATEC, já foi largamente criticada por realizar

uma proposta desfocada do problema real: o baixo letramento da

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população1. Isso significa que os trabalhadores não precisariam apenas uma formação técnica restrita, mas sim de educação básica, ou seja, mais do que capacidade técnica faltaria aos trabalhadores nível de letramento e numeramento adequado para lidar com as tarefas profissionais e com as demandas do mundo letrado no cotidiano (BARTOLOZZI, p. 11).

Além disso, a formação técnica divorciada da elevação de escolaridade condena o trabalhador ao universo do trabalho manual treinado para poucas tarefas. Sem a possibilidade de ampliar a sua escolaridade e restrito à realização de cursos técnicos rápidos, poucas oportunidades de crescimento pessoal e profissional lhe serão oferecidas. Gaudêncio Frigotto considera que “as políticas de formação profissional para grande massa de jovens e adultos estão na lógica da improvisação, da precarização e do adestramento” (FRIGOTTO, 2013, p. 29).

A questão que se abre então para nós é: o que seria uma educação profissional adequada às demandas de jovens e adultos? A ênfase deve se situar no campo técnico ou na formação básica com a perspectiva de ampliar o letramento e o numeramento dos trabalhadores? Ou ainda: como conciliar formação técnica e elevação de escolaridade?

O desafio de alinhar a educação básica na EJA à educação profissional justifica-se primeiramente pelos sujeitos demandantes pela educação de jovens e adultos. São pessoas que estão inseridas ou desejam se inserir no mercado de trabalho e, para isso, precisam de uma formação escolar adequada aos seus propósitos. No entanto, não se pode realizar o propósito da formação técnica sem ter como pressuposto básico a elevação da escolaridade, das competências necessárias para que jovens e adultos circulem em uma cultura letrada.

Coloca-se ainda neste contexto, o desafio de alinhar as necessidades de jovens e adultos com as demandas do mercado de trabalho. Criar escolas integradas à educação profissional obriga desenvolver modelos escolares inovadores que permitam a um jovem ou adulto conciliar a vida familiar e profissional aos estudos. Além disso, a formação profissional não

1 Conforme o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), em 2011, apenas 26% da população brasileira com 15 anos ou mais tinha nível de letramento e numeramento considerado pleno, ou seja, que conseguiam utilizar a leitura, a escrita e a capacidade de fazer cálculos para resolver satisfatoriamente problemas da vida cotidiana. Mesmo considerando aqueles que já tinham concluído o ensino médio, o índice ficou em 35%.

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pode perder o foco em um dos pilares da educação brasileira: a formação de cidadãos.

Em 2005, o governo federal lançou o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), procurando dar respostas a essa necessidade de ampliação da educação profissional sem perder o foco na elevação de escolaridade. Conforme o documento-base do PROEJA:

Uma das finalidades mais significativas dos cursos técnicos integrados no âmbito de uma política educacional pública deve ser a capacidade de proporcionar educação básica sólida, em vínculo estreito com a formação profissional, ou seja, a formação integral do educando. A formação assim pensada contribui para a integração social do educando, o que compreende o mundo do trabalho sem resumir-se a ele, assim como compreende a continuidade de estudos. Em síntese, a oferta organizada se faz orientada a proporcionar a formação de cidadãos-profissionais capazes de compreender a realidade social, econômica, política, cultural e do mundo do trabalho, para nela inserir-se e atuar de forma ética e competente, técnica e politicamente, visando à transformação da sociedade em função dos interesses sociais e coletivos especialmente os da classe trabalhadora. (PROEJA. Documento-base. Brasília, MEC, 2005. p. 26-27)

O PROEJA está vinculado à rede federal de educação, mantendo escolas de educação básica na modalidade de educação de jovens e adultos em nível fundamental e médio por todo o país.

Em 2009, surgiu também o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, Formação Inicial e Continuada com o Ensino Fundamental (PROEJA FIC), com a finalidade de ampliar a oferta de formação para trabalhadores. O programa prevê que os cursos tenham carga horária mínima de 1400 horas, sendo 1200 para formação geral, equivalente ao ensino fundamental, e 200 para a qualificação profissional.

A experiência do PROEJA nos permite fazer referência à criação de propostas articuladas de formação profissional e educação básica, não limitando o estudante e trabalhador a um domínio técnico restrito.

Mais recentemente, em 2013, o governo anunciou a criação do Pronatec-EJA, programa que pretende oferecer a possibilidade de uma

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formação integrada entre formação técnica e elevação de escolaridade no âmbito do programa Pronatec. Ele permite a criação de parcerias entre municípios, Sistema S, secretarias estaduais e rede federal para a constituição de cursos de ensino médio com carga horária de 2400 horas, sendo pelo menos metade dessa dedicada à elevação de escolaridade.

Aspectos relacionados ao currículo com foco na educação profissional na EJA

Já definimos que em muitos casos, a real necessidade dos trabalhadores se relaciona menos com o domínio técnico do que com o desenvolvimento do nível de letramento dos trabalhadores para que possam efetivamente fazer uso da leitura, da escrita e da capacidade de fazer cálculos em sua vida pessoal e profissional. Nos deparamos, por exemplo, com trabalhadores que têm dificuldades de ler placas de orientação em serviço, de manipular planilhas em computadores, de fazer cálculos, de preencher formulários e de colocar o conhecimento a serviço das tarefas que desempenha.

Essas dificuldades surgem tanto no âmbito profissional quanto da vida pessoal, uma vez que na sociedade da informação e de grande desenvolvimento das formas de comunicação é fundamental ser capaz de acessar e fazer uso dos variados suportes em que é exigida a leitura, escrita e cálculo.

Mas em que medida estas considerações podem se traduzir em uma proposta de organização curricular na educação de jovens e adultos?

Uma primeira dificuldade para arriscar qualquer formulação acerca de uma organização curricular é o fato de que sabemos muito pouco sobre as expectativas de jovens e adultos no que se refere à formação profissional. Qual a demanda pela universidade? Em que medida um curso técnico de qualidade poderia ser uma alternativa pessoal e profissional? Que oportunidades de trabalho são oferecidas a técnicos e a universitários? Que diferenças salariais existem entre estas duas formações? Que oportunidades de trabalho existem na região em que estas pessoas estão inseridas?

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Durante muitos anos verificamos a presença de insistentes cursos técnicos em secretariado, assistente administrativo, contabilidade, técnicos em eletrônica e outros que eram oferecidos sem que de fato se avalie se no local em que são ofertados existem reais oportunidades de emprego para as pessoas que realizam esses cursos. Era até de se supor que não, uma vez que estaríamos formando um grande número de secretarias, por exemplo, para um provável restrito número de vagas. Em outros setores, por sua vez, observa-se uma falta de técnicos para exercer funções para as quais ninguém está sendo preparado.

Estas observações nos fazem refletir que a criação de um currículo com foco na educação profissional exige ir além das fronteiras do campo educacional. É preciso criar um fórum de diálogo reunindo empresários locais, jovens e adultos estudantes da EJA, gestores públicos e educadores para definir coletivamente a melhor estratégia de desenvolvimento da educação profissional na localidade.

Enfim, enquanto não nos dedicarmos a refletir seriamente sobre quais são as formações possíveis e desejadas para jovens e adultos, o que deve ser necessariamente no plural, continuaremos a defender princípios correndo o risco de ver as matrículas se reduzem a cada dia.

Uma vez estabelecido o diálogo entre todos os atores envolvidos com o tema da educação profissional em uma localidade e definido o que se denomina de um catálogo de cursos e especialidades a serem desenvolvidas no campo educacional vêm o desafio ainda mais complexo. Como criar um curso de educação profissional que atenda às demandas e às condições de jovens e adultos trabalhadores?

A Diretrizes Operacionais de EJA formuladas em 2010 pelo Conselho Nacional de Educação definem que

Para o Ensino Médio, a duração mínima deve ser de1.200 (mil e duzentas) horas.Parágrafo único. Para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada com o Ensino Médio, reafirma-se a duração de 1.200 (mil e duzentas) horas destinadas à educação geral, cumulativamente com a carga horária mínima para a respectiva habilitação profissional. (DIRETRIZES, 2010, p. 1)

Isto quer dizer, que os cursos de educação de jovens e adultos de nível médio articulados à educação profissional terão sempre uma carga horária bastante superior a dos cursos convencionais.

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Teremos então um novo problema: uma dificuldade ainda maior dos jovens e adultos trabalhadores frequentarem estes cursos, uma vez que já é difícil frequentar a escola regular, trabalhar e dar a atenção necessária à família.

Enfrentar 2400 horas de curso de formação média articulada à educação profissional significa se manter estudando por pelo menos 6 semestres com 20 horas por semana. Sabemos que para jovens e adultos que desejam voltar à escola, estudar 4 horas diárias, 5 vezes por semana durante 6 semestres pode-se transformar em um imenso peso no interior de uma sociedade que ainda mantém longas jornadas de trabalho e oferece poucas condições para que pessoas de baixa escolaridade retornem aos estudos. Ainda há as dificuldades com relação a transporte e a necessidade de cuidar e estar com a família, que podem dificultar a longa permanência na escola. Deve-se mencionar também que jovens e adultos querem ter tempo para se divertir, estar com os amigos e poder conviver socialmente.

Qual se torna o maior desafio da área de educação: inovar. Ou seja, como criar o espaço de formação profissional na escola fazendo com que seja viável e adequado para o público jovem e adulto frequentar a escola?

Uma possibilidade é optar por modelos de curso de maior duração ou abrir horários flexíveis na escola. Muitos trabalhadores talvez precisem de mais tempo mesmo para concluir a sua formação ao invés de frequentar uma escola 5 dias por semana. Esse pode ser um caminho adotado por parte dos jovens e adultos. Para outros pode ser adequado frequentar a escola durante o dia ou em diferentes dias e horários da semana, quer dizer, é preciso criar uma escola flexível, na qual a agenda de frequência à escola possa ser construída também pelos jovens e adultos e não atendendo apenas à organização da administração da escola. Parece mais complexo, mas nem tanto, trata-se de tornar a escola de jovens e adultos um modelo mais próximo das universidades, onde jovens e adultos, por já não serem mais crianças, tem a liberdade qual cursos desejam e podem fazer durante um semestre considerando os seus afazeres e disponibilidade.

Além disso, é evidente que precisamos criar cursos atraentes a jovens e adultos, deixando de oferecer propostas de cursos infantilizadas e preparadas para crianças. Por último, é preciso levar a experiência

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profissional e pessoal de jovens e adultos para dentro da escola, permitindo que estes conhecimentos façam parte de seu percurso de aprendizagem. Um passo a mais, que ainda depende, de legislação específica no Brasil, é o processo de reconhecimento de saberes, que permite que os conhecimentos já adquiridos pelos jovens e adultos ao longo da vida se transformem em créditos para a sua certificação em nível profissional.

Uma possibilidade efetiva que se pode realizar na escola, independente do que está na legislação atual, é estabelecer planejamentos compartilhados com os estudantes, ou seja, conhecendo as suas experiências profissionais e profissionais, os educandos podem contribuir com o curso desenvolvendo projetos em que suas aprendizagens anteriores possam ser utilizadas e compartilhadas com os colegas. Pode-se imaginar quanto um pedreiro não pode contribuir para o estudo de solução de problemas que envolvam geometria. Ou ainda como alguém que trabalha na agricultura pode ajudar no estudo de fenômenos naturais e sua relação com a produção de alimentos.

Assim, cabe, no contexto em que vivemos, discutir com profundidade qual escola de EJA pode atender às demandas reais dos jovens e adultos do século XXI. Já sabemos que a expansão da matrícula na EJA depende de uma escola mais flexível, o que não quer dizer necessariamente precarizada. Sabemos que há uma maior procura da EJA pelo público jovem, em parte, empurrado pelo próprios sistemas de ensino que empurram estes para fora da chamada escola regular. No que se refere à educação profissional se soma o desafio de conhecer as demandas dos próprios jovens e adultos para formular propostas adequadas a esse público, não limitando a oferta apenas a uma hipotética demanda do mercado de trabalho que muitas vezes nem se confirma.

ReferênciasBRASIL. MEC/CNE. Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Resolução n. 3, de 15 de julho de 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2008/pceb023_08.pdf>. Acesso em: 13/01/2015.

BRASIL. MEC/PRONATEC. Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Disponível em: <http://pronatec.mec.gov.br/>. Acesso em: 13/01/2015.

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BRASIL. Setec/MEC. Documento referência do Pronatec EJA, 2013, 35 pgs.

FERREIRA, Eliza Bartolozzi. A EJA integrada a educação profissional no Cefet: avanços e Contradições. ANPED/GT18, s.d., 17 pgs. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT09-3196-Int.pdf>. Acesso em: 13/01/2015.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Ensino Médio e técnico profissional: disputa de concepções e precariedade. Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2013.

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Parte 2

As áreas de conhecimento na EJA

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Letramento e os contextos de Educação de Jovens e AdultosLuiz Henrique Magnani

Quando se discute a noção de letramento no Brasil, é interessante ter em mente que o termo em questão foi se estabelecendo no debate público sobre educação há pouco tempo e sua definição não é consensual. Em situações de ensino, a noção de “letramento” tende a se relacionar com práticas sociais que envolvem usos de linguagens, com destaque às articulações entre leitura, escrita e oralidade. Um exemplo disso é o modo como o conceito é utilizado nos Parâmetros Curriculares Nacionais para se falar de práticas sociais ligadas à escrita de alunos e às comunidades onde eles circulam:

Apesar de apresentadas como dois sub-blocos, é necessário que se compreenda que leitura e escrita são práticas complementares, fortemente relacionadas, que se modificam mutuamente no processo de letramento – a escrita transforma a fala (a constituição da “fala letrada”) e a fala influencia a escrita (o aparecimento de “traços da oralidade” nos textos escritos). São práticas que permitem ao aluno construir seu conhecimento sobre os diferentes gêneros, sobre os procedimentos mais adequados para lê-los e escrevê-los e sobre as circunstâncias de uso da escrita. (p. 40)1

1 Parâmetros Curriculares Nacionais. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2014.

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Contudo, como o significado sobre “letramento” é um campo em disputa, muitas vezes pode surgir uma lacuna entre exigências externas que recaem sobre educadores e sobre suas práticas de sala de aula de um lado, e, de outro, a falta de uma sistematização mínima sobre como se pensar a relação entre o letramento e o ensino escolar. Sendo um conceito disputado e debatido entre diversos estudiosos, cada entendimento do que é “letramento” vincula-se a um conjunto de pressupostos que não necessariamente coincidem. Isso não pode ser ignorado, pois diferentes perspectivas sobre o termo resultam em modos distintos de se agir politicamente no mundo.

Uma visão ainda comum de letramento é aquela que o entende como um conjunto abstrato de habilidades a ser dominada pelo sujeito. Nesse caso, aprender a ler seria “um problema técnico” e “o leitor de sucesso” seria “um leitor hábil” (BARTON, 1994). Pensar “letramento” em sala de aula a partir disso tende a ter como objetivo central a assimilação de visões dominantes por parte do estudante, bem como seu encaixe na ordem social vigente. Aqui, a pergunta a ser feita seria algo como: o que a sociedade exige para se obter sucesso ou inserção e que está em “falta” nesse sujeito? Essa resposta normalmente encontra eco nos conteúdos e nas práticas já valorizadas no contexto escolar regular.

Há outras visões, no entanto, que veem nessa primeira perspectiva uma maneira simplista e inadequada de tratar a complexidade com que um sujeito concreto lida com a linguagem em seu cotidiano também concreto. Uma alternativa a esse caminho consistiria em enfatizar a linguagem em uso e as práticas sociais que ocorrem na vida cotidiana das pessoas. Nessa visão, a chave é “situar”, ou seja, considerar que as práticas de linguagem dos sujeitos possuem uma relação estreita com o contexto no qual ele se insere e com as comunidades onde ele transita. Escrita e linguagem não seriam necessariamente transferíveis de uma esfera a outra e o sucesso em práticas específicas de seu dia a dia – como fazer uma lista de compras ou escrever um bilhete – não resultaria em uma habilidade em ler ou escrever que possa ser medida em termos gerais.

É interessante, ainda, ressaltar que a primeira visão converge com uma lógica escolar tradicional, e que tem bastante força e repercussão social. Nesse caso, os conhecimentos tendem a ser pensados como se pudessem operar de maneira abstrata (ou seja, como se houvesse,

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por exemplo, uma “capacidade de leitura” ou de “escrita” que pudesse ser pensada de modo desvinculado do que se está escrevendo, para quem, por qual razão etc.). A segunda, por sua vez, está em linha com um conjunto de teóricos que, desde os anos 80, têm pensado em “uma mudança na perspectiva, no estudo e na aquisição do letramento, de modelo cognitivo dominante, com sua ênfase na leitura, para uma compreensão mais ampla das práticas de letramento em seus contextos sociais e culturais” (STREET, 2005). Dentro dessa visão, inclusive, alguns estudos pontuam, por exemplo, que sujeitos de comunidades cujas práticas letradas são divergentes das exigidas em sala de aula podem vir a ter mais dificuldade em prosseguir na educação formal (HEATH, 1983).

Os exemplos referidos são apenas duas maneiras particulares, entre outras possíveis, de se pensar o significado de letramento. Sendo um conceito em debate e em constante atualização pelos mais diversos pesquisadores, talvez o desafio não esteja tanto em pensar se é possível refletir sobre EJA a partir de estudos do letramento, mas, sobretudo, compreender qual visão de letramento pode ajudar a lidar com a prática educacional nesse contexto. Dentre as visões aqui apresentadas, o segundo modo de se pensar letramento parece mais adequado para se pensar na realidade da EJA. É um olhar que converge para uma busca ao respeito das especificidades e das trajetórias dos sujeitos dessa modalidade. Isso, sem contar com a possibilidade que se abre para pensar a educação partindo desse contexto de sala de aula, desvinculando-o, tanto quanto necessário, de sua histórica dependência das demandas e das expectativas próprias da educação regular.

Essa sensibilidade à trajetória do sujeito e sua relação com práticas sociais de um mundo letrado é bem apresentada no olhar de Barton (1994): “[...] letramento tem uma história. Nossas histórias de vida individuais contêm muitos eventos de letramento desde a infância em diante, em cima dos quais o presente é construído”. Para o autor, ainda, deve-se destacar que toda pessoa (ao menos em sociedades em que, como grande parte dos casos contemporâneos, incluindo a sociedade brasileira, a prática da leitura e da escrita assume funções relevantes ou centrais, como validar um contrato, permitir ou impedir a certificação de um sujeito como apto a trabalhar em alguma função, produzir e manter leis a serem cumpridas por todos etc.) possui uma história de letramento

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e que as atividades de letramento nas quais as pessoas se engajam possuem algum propósito na vida delas.

Em suma, o cenário da sala de aula da EJA pode se favorecer de um olhar como o do letramento quando este é entendido como essa atividade social local e contextualizada. Não é difícil notar que o espaço da EJA tem como uma de suas características a heterogeneidade de seu público. Convivem em uma mesma sala de aula, por exemplo, pessoas de diversas gerações, o que elimina qualquer possibilidade de se pensar em relações diretas entre idade e série ou grau de escolaridade. Além dessa grande variedade no que diz respeito à faixa etária, o motivo pelos quais cada sujeito retorna para o contexto escolar varia bastante, em contraponto ao ingresso compulsório e exigido por lei da criança na escola. Dessa maneira, as trajetórias e as vivências que cada sujeito traz como conhecimento prévio ganham grande peso e relevância: esse conjunto de saberes e práticas formam a base do educando em sua rotina fora da escola e se configuram como base para seu entendimento do mundo. Ou seja, dentro de uma visão que vincule os usos da linguagem ao contexto concreto em que ela ocorre, parece claro que o conhecimento extraescolar desses sujeitos não pode ser ignorado.

Ao menos em contextos minimamente urbanizados, o uso da língua materna desse jovem ou adulto tende a estar em contato rotineiro com a leitura e com a escrita. Caso precise fazer uso do transporte público de sua cidade, esse sujeito irá lidar com letreiros de ônibus, placas contendo rotas dos veículos, avisos a respeito do valor da tarifa ou da preferência de passageiros em certos assentos, por exemplo. Diferentemente, se fizer uso de um veículo privado, o sujeito precisará ler indicações em placas e avisos de trânsito, sabendo onde deve parar, dar a preferência, fazer retorno, virar à direita ou à esquerda. A simples compra de um produto no supermercado implica o uso de cédulas ou cartões repletos de informações verbais. Aliás, vale lembrar que há um conjunto diverso de símbolos e textos não verbais que também precisa ser entendido e interpretado a partir de convenções que são e necessitam ser aprendidas: nas cédulas, destacam-se números que indicam o valor da nota e as cores que auxiliam sua distinção. No trânsito, podemos pensar nas luzes dos semáforos ou nos sinais luminosos que os veículos dão quando freiam, viram ou emitem um alerta de que o carro está parado.

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Em tais sociedades urbanas contemporâneas, também chama a atenção o maior contato que esse transeunte da cidade possui com uma cultura estrangeira e palavras de outros idiomas, em especial o inglês. É algo que se verifica nas estampas de roupa, nas marcas de produto, em acessórios de computador (como o mouse que, em inglês, significa, literalmente, rato) ou até mesmo em alguns serviços prestados, que preferem usar termos de outro idioma (como alguns serviços de entrega, que se anunciam como delivery, em uma tradução direta e literal para o inglês). É nesse contexto, que articula o global e o local, que se apresenta, também, o cenário artístico e cultural das cidades e dos interesses estéticos presentes na vida do cidadão. Nos ambientes públicos, por exemplo, o letramento se dá no contato com monumentos, quadros, arquitetura e pinturas históricas. E esse mesmo sujeito pode ser aquele que, diante de uma televisão, interpreta filmes, seriados, programas jornalísticos e outras atrações, as quais acabam servindo de referência para pensar o mundo ao seu redor.

Para além desses exemplos mais abrangentes, provavelmente reconhecíveis por grande parte das pessoas que transitam por uma cidade, há um conjunto de práticas sociais e de uso da língua que dizem respeito à inserção desse sujeito em suas comunidades e grupos específicos. É até difícil de imaginar a quantidade de textos, símbolos e saberes que envolvem a rotina de alguém que joga um futebol semanal com os amigos (em que camisas diferentes simbolizam diferentes times, cartões representam penalidades específicas de acordo com sua cor – amarelo ou vermelho), frequenta alguma igreja (nas quais ritos devem ser seguidos e textos são lidos). Isso, sem contar, ainda, demandas próprias do ambiente de trabalho do sujeito: a prática de um garçom em anotar pedidos não será útil a um operário que precisa identificar visualmente, em um maquinário estrangeiro, quais botões ele deve ou não apertar para executar a operação desejada sem riscos de acidente – e vice-versa.

Há, ao menos, duas implicações relevantes para a visão de letramento até aqui apontada: em primeiro lugar, não há como se pensar em um sujeito “iletrado” se esse sujeito faz parte de uma sociedade letrada. Conforme os próprios PCN concebem:

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nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas. (p. 21)

Deste modo, o que se coloca em pauta, então, não é se o estudante de EJA é ou não letrado. Ao contrário, a postura apresentada combate o estigma de “iletrado” que muitos jovens e adultos com pouca ou nenhuma escolarização carregam. Considera-se que esse estigma, não só apaga os saberes e as práticas do sujeito como, muitas vezes, consolida-se injustamente como fruto de uma confusão entre letramento, escola, saberes e certificação. Em vez de se pensar que um sujeito pouco ou nada escolarizado apenas não obteve uma certificação relacionada a uma forma (particular, embora politicamente prestigiada) de saber – o saber escolar – lê-se erroneamente esse sujeito como alguém destituído de saberes. Porém, como já se ressaltou, o convívio social e as interações cotidianas em uma sociedade letrada garantem que alguma(s) de suas práticas esteja(m) forçosamente ligadas à presença de letras e demais símbolos socialmente convencionais.

Em segundo lugar, não se deve pensar em sujeitos mais letrados ou menos letrados – mas apenas em sujeitos com práticas letradas diferentes. Essa ideia pode ser ilustrada a partir de alguns exemplos. Colocando lado a lado o conhecimento de que a cor vermelha indica expulsão em uma partida de futebol e significa “pare” em um semáforo, não é possível dizer, em termos abstratos, qual conhecimento é mais avançado, importante ou complexo que o outro. Os dois são importantes e necessários no contexto em que eles ocorrem. E o aprendizado de um não necessariamente auxilia no entendimento do outro. Assim, o que se costuma pensar como um sujeito com maior grau de letramento normalmente tende a ser, apenas, um sujeito com maior familiaridade com práticas privilegiadas pela escola (e por outras instituições que regulam a sociedade), como ler ou redigir um texto escrito.

Por tudo isso, é central para a EJA um olhar que valide os saberes e a relação com a linguagem que o estudante já possui, reconhecendo-os como prática existente, funcional e voltada a propósitos legítimos. Porém, se não podemos medir o letramento em grau e devemos considerar os conhecimentos prévios do estudante como válidos, qual o papel da escola nessa situação?

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De início, entende-se que compreender e valorizar as práticas letradas dos jovens e dos adultos nesse contexto não deve se confundir com abster-se de proporcionar a eles novos aprendizados. Mais que isso: considerar válidos os saberes dos educandos não deve resultar em um movimento simplista de ignorar demandas sociais vinculadas a saberes dos quais esse público foi apartado quando não frequentou a escola regular. Apropriar-se de modos prestigiados de interpretação e produção de textos correntes em seu entorno sociocultural mais amplo configura-se, muitas vezes, como necessidade ou perspectiva de conseguir maior trânsito e respaldo social – e a escola tem força política e institucional para colaborar com o estudante nessa busca.

Uma alternativa para lidar com a complexidade dessa situação reside em articular informações e conhecimentos socialmente acumulados (e, por vezes, canônicos na escola) com conhecimentos prévios dos estudantes na construção de um saber novo, próprio dessa relação e – com isso, ou, mesmo, por isso – um saber transformador. A heterogeneidade constitutiva da EJA faz da modalidade um ambiente propício para articular diferentes saberes e trajetórias, de modo dinâmico e continuado, com saberes públicos, institucionalizados e de prestígio no entorno social do sujeito. Um olhar como esse não deve procurar encarar apenas o estudante como alguém incompleto e sempre passível de transformação. A escola também deve ser pensada por esse mesmo viés. Uma escola, portanto, sujeita a mudanças e transformações a partir do constante contato com diferentes pessoas, cada qual com olhares e perspectivas frente ao mundo que não podem ser ignorados.

Acima de tudo, portanto, uma visão de letramento na EJA deve resgatar o olhar analítico e curioso do professor, rompendo com respostas prontas a respeito do que deve ser prioritário no ensino das linguagens. Talvez, por isso, seja uma perspectiva que se beneficia muito pouco da aplicação de modelos prontos de ensino. De outro modo, entender o sujeito da EJA como uma pessoa que traz sua própria experiência como ponto de partida para entender a linguagem e o mundo é uma maneira de despertar esse olhar curioso não de maneira aleatória, mas institucionalmente programada, como parte ou base do currículo da área. Dentro disso, revelam-se importantes outras formas de questionamentos,

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como: que trajetos e memórias estão em jogo em uma sala de EJA? Que tratos e vivências com a linguagem?

Essa forma de instigar a curiosidade como base de um projeto pedagógico possui paralelo e tradição na educação popular e, em particular, na proposta de Paulo Freire (2003) de uma “Pedagogia da Autonomia”:

Boa tarefa para um fim de semana seria propor a um grupo de alunos que registrasse, cada um por si, as curiosidades mais marcantes por que foram tomados, em razão de que, em qual situação emergente de noticiário da televisão, propaganda, de videogame, de gesto de alguém, não importa. Que “tratamento” deu à curiosidade, se facilmente foi superada ou se, pelo contrário, conduziu a outras curiosidades. Se no processo curioso consultou fontes, dicionários, computadores, livros, se fez perguntas a outros. Se a curiosidade enquanto desafio provocou algum conhecimento provisório de algo, ou não. O que sentiu quando se percebeu trabalhando sua mesma curiosidade. É possível que, preparado para pensar a própria curiosidade, tenha sido menos curiosa ou curioso. A experiência se poderia refinar e aprofundar a tal ponto, por exemplo, que se realizasse um seminário quinzenal para o debate das várias curiosidades bem como dos desdobramentos das mesmas. (p. 97)

Mas como estabelecer relações entre práticas como a proposta deste excerto e os problemas concretos de língua, linguagem e letramento na EJA? Após os exemplos e as reflexões apresentadas no decorrer do texto, não é difícil perceber que a própria condição de vivermos em uma sociedade letrada já faz da proposta de Paulo Freire uma experiência possível para o letramento em sala de aula: despertar a curiosidade do aluno sobre sua condição, o mundo à sua volta e sua leitura de mundo como ponto de partida para discutir questões que articulem linguagem e sociedade. Indo além, entende-se que o professor pode partir dos textos e das práticas letradas que os estudantes já possuem e prosseguir na direção de uma reflexão sobre o que todo esse material explicita sobre as condições sociais dos envolvidos e, ainda, em relação às comunidades nas quais eles se inserem ou das quais eles são excluídos.

Dentro desse viés, a curiosidade opera como um modo de o estudante se perceber dentro e fora de sala de aula. É possível, por exemplo, instigá-lo a perceber se há diferença entre seus modos de falar e pensar e suas práticas com a linguagem em relação aos demais colegas.

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Em caso afirmativo, um segundo passo pode ser dado: investigar se essas diferenças possuem alguma razão histórica ou social. Dentro disso, é possível estimulá-los a perceber se há usos da língua mais bem vistos que outros, estabelecendo, assim, relações com o contexto político e cultural mais amplo no qual os sujeitos envolvidos se inserem. Procurar manter a curiosidade para tentar investigar se há razões sociais para isso, se há maneiras já estudadas de mudar esse quadro. Junto a isso, pode-se refletir sobre usos prestigiados de leitura e escrita no contexto local desses sujeitos e pensar o quanto o domínio desses usos modifica o trânsito social de cada um.

Há uma tradição em se valorizar como “leitura” apenas um conjunto restrito de práticas letradas: a que envolve textos literários canônicos, jornais, revistas, textos científicos, por exemplo. Em vez de apenas apostar na assimilação desses saberes por parte dos alunos, é possível problematizar, em sala de aula, se todos os estudantes possuem práticas letradas que se relacionam com tais textos, qual o valor socialmente atribuído a pessoas que leem cotidianamente esses tipos de textos, quais são os limites e possibilidades desses tipos de saberes: em que eles ajudam? Eles seriam úteis àquele aluno? O que o domínio desses saberes mede? Pode-se tentar descobrir as práticas de leituras que os alunos possuem fora desse conjunto mais canônico e, coletivamente, tentar descobrir por que razão essas outras leituras (seja a leitura da marca de um produto no mercado, de um letreiro de ônibus, de uma placa, de um bilhete deixado por um familiar) não são igualmente vistas como “leitura”.

Em suma, o foco estaria em se pensar o letramento como uma ferramenta de reflexão sobre o mundo que o rodeia e, em conjunto, como uma ferramenta a favor de uma mudança social. Qualquer situação em que fique claro que a falta de domínio de certos usos da linguagem coloca o estudante em uma desvantagem política e social é objeto de interesse dos estudos do letramento: desde a falta de domínio da norma padrão como um impeditivo em uma entrevista de emprego até algum preconceito social causado pela forma como o sujeito fala ou lê. Assumindo a língua e o letramento como objetos de investigação, assume-se que situações, e especialmente situações explicitamente conflitivas – de uso concreto da língua, da leitura e da escrita – são pontos

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de partida para se pesquisar: qual o significado de ler, escrever e agir no mundo para o sujeito; como esses usos são interpretados em um contexto mais amplo; que ferramentas, caminhos ou estratégias são possíveis de escolher para repensar, de modo crítico, a relação com a linguagem de modo que o estudante possa gozar de respeito e trânsito social quando as interpretações que estão dadas são problemáticas, desrespeitam ou limitam o campo de ação desse estudante?

O conjunto de exemplos e sugestões listado neste texto não esgota as possibilidades de se pensar a relação entre EJA e letramento – nem na teoria, nem na prática. Ainda assim, espera-se que os encaminhamentos apresentados possam ser um ponto de partida para auxiliar o estudante a ampliar seu trânsito social – fazendo com que esse sujeito tenha mais propriedade para lidar com práticas de prestígio que antes o excluía. Além disso, a percepção de que as práticas letradas do sujeito, além de variadas, são dinâmicas, pode ajudar a pensar na educação como algo que inicia com o nascimento e segue até o fim da vida. Em última instância, essa perspectiva – centrada em despertar a curiosidade e o olhar investigativo do estudante em relação às linguagens, seus usos e implicações sociais – deve ter como horizonte uma prática na qual o estudante seja protagonista em reflexões e discussões sobre o próprio modelo de educação a ele proposto.

ReferênciasBARTON, David. Literacy: An introduction to the ecology of written language. Oxford: Blackwell, 1994.

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

HEATH, Shirley Brice. Ways with Words: Language, Life and Work in Communities and Classrooms. Cambridge, England: Cambridge University Press, 1983.

STREET, Brian. At last: Recent Applications of New Literacy Studies in Educational Contexts. In: Research in the Teaching of English, v. 39, n. 4, maio 2005.

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Numeramento como uma nova forma de ensinar e aprender matemática na EJASandra Regina Correa Amorim

Matemática – Ensinar e aprender

O que é matemática? Para que serve? Qual a sua importância na sociedade? Como aprender? Como ensinar? Estas são questões que afligem tanto aqueles que ensinam quanto aqueles que aprendem. Teóricos, pesquisadores, estudiosos, entre outros, estão em consonância quando enfatizam que definir matemática não é algo fácil.

O termo “matemática” tem origem na palavra grega máthema, que significa conhecimento ou aprendizado, derivando daí a mathematikós, que, por sua vez, denota prazer de aprender. Considerando o sentido prazer de aprender, verificamos que não é bem esse o significado atribuído pelas pessoas em geral. Para muitos, matemática significa “contas”, “números”, “teoremas”, “problemas”, “fórmulas”, “dificuldades”, “frustrações”, “incapacidades” e está geralmente associada a uma situação abstrata, que nem sempre é suficiente para “atingir” aqueles que questionam para que aprender matemática.

Diferentes meios de comunicação, como jornais, revistas, televisão, rádio, internet etc., corroboram com alguns dos significados apontados, quando noticiam o baixo desempenho da população brasileira nos índices

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educacionais relacionados à matemática. Esta é tratada como a disciplina mais difícil de ser aprendida e, por consequência, de ser ensinada.

Diante desse fato, compreendemos que a matemática está entre as responsáveis pelas dificuldades de aprendizagem, reprovação e exclusão (escolar e social). Tais exclusões não se referem somente àquela em que o aluno interrompe seus estudos (deixa de estudar para trabalhar, assumir outras responsabilidades, ou por ter dificuldades de acesso à escola), mas também àquela em que o processo de escolarização foi abandonado (ausência de saberes matemáticos do currículo escolar).

Sendo assim, entendemos que lecionar a disciplina matemática torna-se um desafio para os docentes em todos os segmentos e modalidades de ensino e, em especial, na EJA – Educação de Jovens e Adultos.

Nessa modalidade, analisar o ensino e a aprendizagem da matemática significa conhecer todos os atores envolvidos nesse processo – aluno, professor e conhecimento matemático – e as relações que se estabelecem entre eles.

Carrano (2007) salienta que os educadores têm o desafio de trabalhar numa modalidade de educação em que a homogeneidade (faixas etárias, tempo de aprendizagem, conhecimentos) dos sujeitos não é a tônica dominante. Com relação às pessoas jovens e adultas (discentes), é essencial considerar suas experiências prévias, suas vivências e suas interações sociais, para que sejam entendidas como sujeitos culturais e não apenas aprendizes de uma instituição. Já o conhecimento não pode ser circunscrito àquilo que os alunos devem aprender, ele também é a provocação para que educadores aprofundem seus conhecimentos – suas compreensões – sobre os sujeitos da aprendizagem.

Algumas experiências negativas vivenciadas pelos alunos nas escolas revelam que a matemática ensinada parte de situações descontextualizadas, mecânicas e isentas de valores. Segundo Schmitz (2002, p. 4-5), os conteúdos matemáticos são vistos como independentes, assumindo um status de serem os únicos corretos.

Nas palavras de Paulo Freire:

no momento em que você traduz a naturalidade da matemática como uma condição de estar no mundo, você trabalha contra um certo elitismo dos matemáticos [...] Você democratiza a possibilidade da naturalidade da matemática: isso é cidadania. (1996, apud Fantinato 2003, p. 111)

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D’Ambrósio (2005) afirma que um dos maiores erros praticados em educação é desvincular a matemática das outras atividades humanas. As ideias da matemática apresentam-se em toda a evolução da humanidade, buscando explicações sobre fatos e fenômenos da natureza e para a própria existência.

Fonseca (1999) enfatiza a necessidade de se aprender matemática para poder aplicá-la em diferentes situações que exigem esse tipo de conhecimento.

Rocha (2001) ressalta que a matemática deveria ser ensinada “como um instrumento para a interpretação do mundo em seus diferentes contextos”. Isto é, formar para a criticidade, para a indignação, para a cidadania e não para a memorização, para a alienação, para a exclusão.

Diante das ideias de D’Ambrósio (2005), Fonseca (1999) e Rocha (2001) e das palavras de Paulo Freire, entendemos que compreender matemática nos dias atuais não é uma tarefa fácil, contudo, é uma necessidade de todos. Saber calcular, raciocinar, argumentar, interpretar dados, comparar, estimar e analisar informações são atributos mais que necessários para exercer a cidadania, o que mostra a relevância da matemática na formação de pessoas jovens e adultas.

O trecho a seguir ilustra o que pessoas jovens e adultas pensam quando se referem a situações que envolvam a matemática.

Quando os jovens e adultos pedem para “aprender os números e as contas” eles estão certamente pensando em números e contas ligados ao mundo em que vivem, números e contas encharcados de vida, dentro de um contexto. Eles sabem que precisam dos números e das contas para resolver problemas reais, verdadeiros de sua vida diária, e também para entender dos fatos e dos problemas que acontecem no seu município, estado, no Brasil e no mundo. Portanto, números e contas que têm sentido ganham significado dentro das diferentes situações em que estão sendo utilizados. [...] É por isso que afirmamos que estudar, por exemplo, o número 2 solto, fora de um contexto, de uma situação de vida concreta vai ajudar muito pouco na alfabetização matemática dos alunos, pois estamos entendendo que se alfabetizar em matemática é mais do que simplesmente conhecer os números e saber fazer contas “secas”, sem vida: a alfabetização matemática busca dar condições para que os jovens e adultos possam entender, criticar e propor modificações para situações de sua vida pessoal, da vida coletiva do assentamento e do mundo mais distante, onde esses números e contas “vivem” e têm significado. É para melhor compreender a vida,

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e assim, ter instrumentos para transformá-la, que os jovens e adultos querem e precisam aprender matemática. (MST, 1996, p. 2)

Perante o exposto, inferimos que aprender matemática não significa memorizar e aplicar fórmulas, nem somente resolver expressões e equações por meio dos algoritmos. Compreender matemática refere-se a um trabalho do pensamento de cada indivíduo que constrói conceitos para resolver situações, problematiza novas situações a partir de conceitos já construídos, generaliza e justifica suas escolhas.

São esses os pressupostos deste texto, que tem como objetivo estabelecer um diálogo com você, professor, buscando apoiar, subsidiar e ampliar as possibilidades de construção do conhecimento, por meio de uma proposta pedagógica que reconheça as especificidades do público jovem e adulto, considerando seus conhecimentos e suas vivências.

Numeramento?

Alfabetização Matemática, Numeracy, Numeracia, Numeramento, Materacia, Literacia Estatística e Letramento Matemático são alguns dos termos que têm aparecido com frequência cada vez maior em nosso país.

Para a pesquisadora Fonseca (2009):

A adoção de um termo antes inexistente ou pouco casual, em geral, reflete a necessidade de caracterizar um novo fenômeno ou de destacar certas dimensões de um fenômeno que precisa ser analisado de maneira diferente daquela pela qual até então vinha sendo considerado. (p. 47)

O termo Numeramento, tema deste caderno, origina-se da tradução da palavra inglesa numeracy, mais adotada no Brasil do que a tradução portuguesa numeracia.

Neill (2001), em oposição a uma perspectiva que restringe o termo ao domínio de técnicas operatórias ou conceitos muito básicos de número, apresenta algumas definições de numeracy.

A capacidade de identificar, compreender e, ainda, engajar-se em matemática e de fazer juízos bem fundamentados sobre o papel que a matemática desempenha, como necessária para a vida atual e futura, a vida profissional, a vida social com os

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pares e familiares, e a vida como um cidadão construtivo, preocupado e reflexivo. (Pisa, 2000)

Ser numerado é ter a capacidade e inclinação para usar matemática eficazmente em casa, no trabalho e na comunidade. (Fancy, 2001)

O termo numeracy descreve a agregação de competências, conhecimentos, crenças, disposições e hábitos da mente, bem como habilidades gerais e comunicativas para resolver problemas, competências que as pessoas necessitam para gerir eficazmente situações do mundo real ou tarefas interpretativas com elementos de matemática ou elementos quantificáveis. (Gal, 1995)

Comportamento numerado exige um elemento importante do que é chamado coloquialmente “inteligência”. Algumas dessas inteligências são matemáticas, algumas são situacionais (ou relativas a um contexto), e algumas são estratégicas. (Willis, 1998)

“Numerado” deverá implicar a posse de dois atributos. O primeiro, com todas as facetas da matemática, que permite a uma pessoa lidar com as exigências práticas da vida cotidiana. O segundo é a capacidade de compreender informações apresentadas em termos matemáticos. Tomados em conjunto, esses atributos implicam que uma pessoa numerada deve compreender algumas das formas com que a matemática pode ser utilizada para a comunicação. (Cockcroft, 1982)1

Una O’Rourke e Jonh O’Donoghue (1997) também fazem uma síntese das diferentes abordagens que são dadas ao conceito de numeracy, ao apontar diretrizes para o desenvolvimento de materiais no trabalho com adultos. Enfatizam que esse termo, inicialmente, estava ligado ao alfabetismo e elencam três categorias distintas: aquelas que relacionam numeracy com as exigências sociais; as que apontam para a conexão forte entre numeracy e matemática e as que associam a definição de numeracy ao letramento.

Diante das definições de numeramento (numeracy), entendemos que é preciso repensar o papel da escola e do ensino de matemática, principalmente no âmbito da Educação de Jovens e Adultos. Nessa modalidade de ensino, contamos com alunos que procuram a escola não só para obter uma certificação, mas também para conhecer e entender as transformações ocorridas na sociedade, na ciência e na tecnologia,

1 Nas definições apresentadas, todos os autores referem-se a NEILL, A. The essentials of numeracy. Disponível em: <http://www.nzcer.org.nz/pdfs/10604.pdf>. Acesso em: 8 jul. 2013.

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para construir novas compreensões sobre o mundo em que vivem, para aprender novas formas de se comunicar e de participar de diferentes grupos e comunidades (diversidade de experiências culturais) e novos modos de inserção social.

Com relação ao ensino da matemática, concordamos com Ubiratan D’Ambrósio (1993), quando o defende como “um fator de progresso social, como fator de liberação individual e política, como instrumento para a vida e para o trabalho”.

Nesse sentido, Fonseca (2005) recomenda que, ao considerarmos os saberes dos alunos e das alunas da EJA, construídos em outras instâncias da vida social, não devemos desprezar a aquisição de toda e qualquer técnica, mas, sim, “buscar ampliar a repercussão que o aprendizado daquele conhecimento matemático que estamos abordando, inclusive nos seus aspectos ‘sintático’ e ‘semântico’, pode ter na vida social, nas opções, na produção e nos projetos daquele que o aprende” (p. 54).

Assim, cabe ao educador da disciplina matemática assumir seu papel como mediador e dar oportunidade aos educandos de construir estratégias para o exercício da cidadania, apropriando-se do conhecimento escolar (científico/específico) em confronto e também em articulação com os conhecimentos do cotidiano.

Referências CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues. Educação de Jovens e Adultos e Juventude: o desafio de compreender os sentidos da presença dos jovens na escola da “segunda chance”, 2007. Disponível em: <http://www.emdialogo.uff.br/sites/default/files/educacao_de_jovens_e_adultos_e_juventude_-_carrano.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2014.

D’AMBRÓSIO, U. Educação matemática: da teoria à prática. Campinas: Papirus, 2005.

D’AMBRÓSIO, U. Etnomatemática: um programa. A Educação Matemática em Revista, Blumenau, v. 1, n. 1, p. 5-11, 1993.

FANTINATO, M. C. C. B. Identidade e sobrevivência no Morro de São Carlos: representações quantitativas e espaciais entre jovens e adultos. 2003. 198 p. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo.

FONSECA, M. C. F. R. Conceito(s) de numeramento e relações com o letramento. In: LOPES, Celi E.; NACARATO, A. M. (Org.). Educação Matemática, leitura e escrita: armadilhas, utopias e realidades. Campinas: Mercado das Letras, 2009.

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FONSECA, M. C. F. R. Estudos sobre numeramento: conceitos e indagações. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 8, Seminário de Educação Matemática 2, 2005, Campinas. Resumos do 8º Congresso de Leitura no Brasil. Campinas: ALB, 2005.

FONSECA, M. C. F. R. O caráter evocativo da matemática e suas possibilidades educativas. Revista Zetetiké, Campinas, v. 7, n. 11, p. 51-65, jan./jun., 1999a.

FONSECA, M. C. F. R. O ensino da Matemática e a Educação Básica de jovens e adultos. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 5, n. 27, p. 29-37, maio/jun., 1999b.

MST – MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Alfabetização de jovens e adultos: educação Matemática. Caderno de Educação. n. 5. São Paulo: MST, 1996.

NEILL, A. The essentials of numeracy. In: 23rd NZARE ANNUAL CONFERENCE, Christchurch, 2001. Disponível em: <http://www.nzcer.org.nz/system/files/10604.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2014.

O’ROURKE, U.; O’DONOGHUE, J. Guidelines for the development of adult numeracy materials. In: COBEN, D.; O’DONOGHUE, J. (Eds.). Adults learning mathematics – 4: Proceedings of ALM 4: THE FOURTH INTERNATIONAL CONFERENCE AT THE UNIVERSITY OF LIMERICK, Ireland. London: Goldsmiths College, 1997. p. 173-191.

ROCHA, I. C. B. Ensino de matemática: formação para a exclusão ou para a cidadania? In: Educação Matemática em Revista, Sociedade Brasileira de Educação Matemática, n. 9-10, ano VIII, p. 22-31. 2001.

SCHMITZ, C. C. Caracterizando a matemática escolar. In: Reunião ANPED, 25. Unisinos, 2002. Disponível em: <http://25reuniao.anped.org.br/excedentes25/carmenceciliaschmitzt19.rtf>. Acesso em: 8 jul. 2013.

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Ciências da Natureza pela perspectiva do letramento na EJAMaria Cecília Guedes Condeixa

O propósito deste texto é apresentar informações sobre as atuais tendências da reestruturação curricular e algumas orientações para a prática pedagógica de Ciências da Natureza na EJA, tendo em vista o letramento científico, além da aprendizagem significativa, em contexto de reformulação curricular.

Inicialmente, são expostas questões de ensino e aprendizagem relevantes na EJA do ponto de vista interdisciplinar, em relação às quais argumentamos por que o professor de ciências também é professor de leitura. Depois, discutimos algumas sugestões curriculares, relativas a conteúdos e métodos de ensino, derivadas do conceito de letramento científico. Breves exposições sobre os temas e eixos temáticos da área e as etapas de desenvolvimento de uma sequência didática, em percurso de investigação, completam o artigo.

Ciências da natureza integradas ao letramento e ao numeramento

Em primeiro lugar, é necessário destacar que o papel do professor de ciências é, em parte, compartilhado com os demais professores da EJA

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do Ensino Fundamental, pois todos necessitam trabalhar necessidades básicas do estudante no campo da alfabetização e do letramento, ou seja, devem favorecer conhecimentos em língua portuguesa oral e escrita nas diversas situações de uso.

Retomamos, assim, um diagnóstico comum trazido pela prática pedagógica e por nossos referenciais: muitos alunos da EJA, com sua escolarização truncada em repetidas ocasiões, precisam usar o tempo escolar para ampliar sensivelmente a capacidade de ler e de produzir textos em diversas linguagens e em diferentes gêneros.

Esses estudantes, frequentemente, já são usuários das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e sabem participar da cultura de massa nas redes sociais, onde comparecem, inclusive, temas de interesse científico. É nessa perspectiva que o ensino de todas as disciplinas, aliado à alfabetização e ao letramento, precisa ser observado pelo professor e por sua equipe, tendo em vista o mundo real dos estudantes, as demandas da sociedade e do trabalho.

Para tanto, todos os professores do Ensino Fundamental deveriam destinar parte de suas iniciativas para ensinar a ler e a escrever, fazendo uso de conteúdos e materiais de cada área e realizando possíveis relações com o mundo do trabalho e as manifestações da cultura. Nesse sentido, seriam trabalhados tanto o letramento como a aprendizagem específica da área, quando os estudantes interagem com as propostas de ampliação cultural e de aquisição de conhecimentos planejadas por seus professores.

Teoria e prática vêm demonstrando que é possível realizar um trabalho inovador no campo do letramento a partir de textos de interesse para as Ciências da Natureza, nas diferentes modalidades de representação do conhecimento e da cultura mais ampla, tais como artigos de divulgação científica, matéria jornalística oral ou escrita sobre meio ambiente e saúde; ou mesmo, filmes de ficção, documentários, entrevistas ou literatura com tema de interesse científico. Explorar diversos textos e contextos, para além do habitual texto escolar de ciências, promove a contextualização das Ciências da Natureza com a vida cotidiana, o meio ambiente local, o trabalho e a cultura. A partir dessas leituras, os alunos devem ser convidados a produzir observações, comentários, questionamentos. Desse modo, destaca-se que o aluno não aprende a escrever primeiro para depois dar sentido à escrita. Não há

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aprendizagem de estrutura sem conteúdo e sem significado. Aprender a ler e a escrever acontece junto à aprendizagem dos conteúdos de todas as áreas, também de ciências, em conjunto com todas as modalidades de interação social.

No passado, a escola mantinha-se sob a conduta única da cultura letrada ou erudita, ignorando outras formas da cultura. Hoje, em busca de uma escola mais significativa e interessante, é preciso promover espaços escolares para a cultura popular local e também para a cultura de massa. Também nesse sentido, é importante os professores ficarem atentos às noções de cultura que permeiam o dia a dia escolar e sua comunidade, para melhor promover as aprendizagens, observando, igualmente, os conhecimentos prévios que influenciam a aquisição de conhecimentos.

Recorde-se que o segmento da Educação Fundamental mantém compromisso com a ampliação de visão de mundo e de cidadania do estudante. Além de conhecer conceitos básicos, o aluno deve saber aplicá-los a situações específicas, em contextos da vida real. Mas a atitude de contextualizar e associar o conhecimento científico às demais áreas da cultura humana precisa ser construída pelo professor por meio de práticas e tentativas com essa finalidade, pois a prática corrente, muito ao contrário, mostra as Ciências Naturais como conjunto de definições, fórmulas e nomenclatura específica e, mais raramente, procura suas aplicações.

A linguagem científica se expressa em diversos modos de tratar o conhecimento sobre os fenômenos naturais, suas transformações e os usos que fazemos da natureza. Para isso, as ciências, no contexto de produção ou na escola, fazem uso de textos para relatar observações ou debates, para defender ou explicar hipóteses e conceitos etc. Na escola, um guia de observação ou de experimentação, um relatório de atividades, um texto de opinião são, por exemplo, modalidades que integram o rol de gêneros necessários à aprendizagem de ciências.

De fato, as diferentes esferas de atividade humana (seja cotidiana, científica, religiosa, burocrática etc.) criam gêneros de texto correspondentes às necessidades de comunicação inerentes a elas. Esses gêneros são organizados e chegam a ganhar uma formulação tida como definitiva, mas também se transformam com o tempo, de acordo com as mudanças que vão ocorrendo nessas esferas.

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Por sua vez, a alfabetização matemática é requerida em muitos estudos de Ciências da Natureza, que demandam do aluno a capacidade de compreender os números, as formas, as relações entre quantidades (as contas, as estatísticas etc.). Comparecem em estudos de ciências as tabelas, os gráficos, as fórmulas e outros algoritmos, fornecendo contextos relevantes para o aluno desenvolver competências de numeramento de modo interdisciplinar com as Ciências da Natureza. Vejamos alguns exemplos: estudos sobre condições de saúde e qualidade de vida, que permitem o estudo dos sistemas do corpo humano relacionados às trocas que o organismo realiza com o ambiente, e podem ser trabalhados junto com análises de dados ou tratamento de informação sobre condições ambientais ou de saúde. Figuras, dados e medições de tamanhos de animais e de plantas dão campo para estudos do sistema métrico, estimativas e comparações. Estudos de formas geométricas podem ser associados à observação de padrões entre os seres vivos.

Os professores de ciências, portanto, podem planejar sua aula pensando em apoiar o letramento e o numeramento de seus estudantes de EJA por meio de orientações de leitura e de produção de textos em linguagens e gêneros diversos. Ainda mais importante é o planejamento compartilhado entre professores das áreas, selecionando-se quais os objetivos e materiais de estudos que os alunos trabalham com mais de um professor, em um mesmo período escolar.

Concluímos essa introdução lembrando que, para o professor, preparar uma aula com atividades para aprender matemática, ler e escrever em ciências significa ampliar sua formação como leitor e escritor da língua portuguesa, sempre, e da matemática, em muitos casos. Por meio dessa prática pedagógica, o professor também ganha mais proficiência com diversas linguagens e supera a valorização exclusiva do conhecimento científico dissociado de outros saberes, uma tendência das práticas de ensino de Ciências da Natureza, há muito confrontada com outras possibilidades indicadas nas didáticas das ciências. Na atualidade, a vertente que discute o significado teórico e prático do letramento científico tem bastante destaque em diversas publicações e debates.

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Alfabetização ou letramento científico

Sabemos que, para língua portuguesa e para matemática, há diferenças importantes entre “alfabetização” e “letramento”. E em ciências, como isso se dá?

Há mais de 20 anos a noção de alfabetização científica vem sendo debatida por educadores em ciências, como Attico Chassot, que nos diz:

[…] poderíamos considerar a alfabetização científica como o conjunto de conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura de mundo onde vivem. Amplio mais a importância ou as exigências de uma alfabetização científica. Assim como se exige dos alfabetizados em língua materna que sejam cidadãs e cidadãos críticos, […] seria desejável que os alfabetizados cientificamente não apenas tivessem facilitada a leitura do mundo em que vivem, mas entendessem a necessidade de transformá-lo, e transformá-lo para melhor. (2001, p. 38)

Pode-se aventar que, de início, a maior aceitação e uso do termo “alfabetização científica” e não de “letramento científico” prenda-se a nossa tradição freiriana. Como é do domínio dos educadores brasileiros, Paulo Freire foi o grande defensor da ampliação do conceito da “alfabetização”, para que seja entendida como ato de conhecimento de um sujeito que extrapola o manejo dos códigos, pois a leitura só ganha sentido na formação da consciência crítica de si e do mundo.

Por sua vez, o termo “letramento científico”, uma tradução do termo em inglês science literacy, foi bastante debatido e adotado pelos especialistas no país. O pesquisador em educação química Wildson Pereira dos Santos, professor da Universidade de Brasília, revisita vários autores nacionais e internacionais e traça paralelos entre as concepções de letramento perante as tendências de currículo e a educação científica. É nesse contexto que ele afirma:

O conceito de letramento no sentido da prática social está muito presente na literatura de educação científica. Shamos (1995) considera que um cidadão letrado não apenas sabe ler o vocabulário científico, mas é capaz de conversar, discutir, ler e escrever coerentemente em um contexto não-técnico, mas de forma significativa. Isso envolve a compreensão do impacto da ciência e da tecnologia sobre a sociedade em uma dimensão voltada para a compreensão pública da ciência dentro do propósito da educação básica de formação para a cidadania. (SANTOS &

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SCHNETZLER, 1997). […] O letramento como prática social implica a participação ativa do indivíduo na sociedade, em uma perspectiva de igualdade social, em que grupos minoritários, geralmente discriminados por raça, sexo e condição social, também pudessem atuar diretamente pelo uso do conhecimento científico (ROTH & LEE, 2004). Isso requer também o desenvolvimento de valores (SANTOS & SCHNETZLER, 1997), vinculados aos interesses coletivos, como solidariedade, fraternidade, consciência do compromisso social, reciprocidade, respeito ao próximo e generosidade. Eles estão relacionados às necessidades humanas e deveriam ser vistos como não subordinados aos valores econômicos. (SANTOS, 2007, p. 479)

De modo geral, independentemente do pesquisador usar o termo “alfabetização” ou “letramento científico”, ambos são derivados de posturas a favor de uma aprendizagem científica que associa a ciência e o mundo, para raciocinar sobre ele e dele participar. Assim, os dois termos são equivalentes. Verifica-se, ainda, que em língua inglesa, o termo “alfabetização de adulto”, de Paulo Freire, é vertido de adult literacy. Mais um motivo para considerarmos ociosa uma possível disputa entre os termos “letramento” ou “alfabetização”, pois remetem ao mesmo conjunto de significados.

Um importante incentivo para o uso do termo “letramento científico” reside na centralidade de seu emprego no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), único exame em larga escala que averigua, em nível nacional, a aprendizagem em ciências. Além disso, o Pisa é destacado no Plano Nacional de Educação (PNE, 2014-2024) como referência internacional para o monitoramento da qualidade da educação.

O Pisa, sigla do Programme for International Student Assessment, é um programa internacional de avaliação comparada, aplicado a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. A maior parcela dos participantes cursam o 9º ano do Ensino Fundamental e o 1º Ano do Ensino Médio regular. Então, alunos em EJA não são convocados para fazer o exame. Esse programa é desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), havendo em cada país participante uma coordenação nacional. No Brasil, o Pisa é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). As avaliações do Pisa acontecem a cada três anos e abrangem três áreas do conhecimento: leitura, matemática e ciências, havendo, a cada edição

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do programa, maior ênfase em cada uma dessas áreas. Em 2000 e 2009 o foco foi em leitura; em 2003 e 2012, matemática; e, em 2006 e 2015, ciências, e assim sucessivamente.

A avaliação do Pisa baseia-se no conceito de letramento científico, definido como até que ponto cada indivíduo:

• possui conhecimento científico e utiliza esse conhecimento para identificar questões, adquirir novos conhecimentos, explicar fenômenos científicos e tirar conclusões baseadas em evidência científica sobre questões relacionadas a ciências;

• compreende os traços característicos da ciência como uma forma de conhecimento humano e de investigação;

• demonstra consciência de como a ciência e a tecnologia moldam nosso ambiente material, intelectual e cultural;

• demonstra engajamento em questões relacionadas a ciências como um cidadão consciente.

Pode-se notar que o foco principal da noção de letramento científico está em atitudes, valores e formas de pensar, não em conteúdos específicos – o que deve trazer mais conflitos do que facilidades para o trabalho do professor habituado a ensinar conceitos específicos, por meio de definições e terminologia.

Buscando incentivar os professores a ampliar suas práticas de letramento científico, cabem alguns comentários sobre os saberes característicos do cidadão dotado de letramento científico a partir dos 15 anos, considerando-se os destaques do Pisa.

Possuir conhecimento científico para identificar questões vai muito além de saber nomenclatura, definições de conceitos e de sistemas naturais. Mesmo alunos com conhecimentos restritos do campo científico, caso de nossos alunos na EJA, podem se interessar em distinguir quais temas são passíveis de pesquisa científica. Por exemplo, pode-se refletir com os alunos a partir de uma questão ampla: quais os conhecimentos necessários para entender o meio ambiente local? A questão coloca em jogo iniciativas de pesquisa que enlaçam as ciências naturais e humanas, apoiando o estudante a se interessar pelo espaço que habita e pelos fenômenos da natureza de que participa. As ciências da natureza participam com estudos sobre as transformações da água em seu ciclo; as características do solo e alterações em seu uso; a utilização de seres vivos, e as regras de sua preservação, aliadas a estudos sobre os ciclos de vida, por exemplo.

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Compreender a Ciência como conhecimento humano e produto de investigação é um objetivo importante na EJA, significa mostrar a presença das ciências no cotidiano e na história. Por exemplo, pode-se adotar a prática de colecionar, junto com os alunos, ou mesmo para eles, notícias de internet ou outras fontes. Essas notícias dão subsídio para questionamentos sobre os processos de produção das Ciências da Natureza, novas descobertas ou embates de ideias, conforme o caso. São frequentes na mídia notícias sobre questões de saúde, novidades tecnológicas e problemas ambientais, que podem ser relevantes para o aluno se interessar por conhecer ciências a partir de suas próprias questões. Além disso, cabe questionar o uso do conhecimento científico e tecnológico na sociedade a partir de aspectos éticos, considerando quais são os interesses que definem a exploração de recursos naturais e a manutenção do meio ambiente, conforme as relações sociais e seus determinantes, refletindo-se sobre a necessária sustentabilidade do meio ambiente.

Reorganização curricularA educação científica na perspectiva do letramento como prática social implica um desenho curricular que incorpore práticas que superem o atual modelo de ensino de ciências predominante nas escolas. Entre as várias mudanças metodológicas que se fazem necessárias, três aspectos vêm sendo amplamente considerados nos estudos sobre as funções da alfabetização/letramento científico: natureza da ciência, linguagem científica e aspectos sociocientíficos. (SANTOS, 2007, p. 483)

O trecho em destaque aponta para os aspectos ou os campos de estudos que necessitamos empreender na reorganização curricular para o letramento científico: a natureza da ciência, a linguagem científica e os aspectos sociocientíficos. Conforme veremos, esses campos suprem indicações de conteúdos para a escolarização básica, inclusive, na EJA.

Natureza da ciência

As ciências podem ser entendidas como manifestações culturais que promovem renovação de visões de mundo, tanto por ocasião da concepção de novas ciências quanto por novos conhecimentos científicos, pensando-se em grupos sociais mais amplos. A aprendizagem de ciências e a renovação de visão de mundo que ela provoca tem igualmente papel importante na formação dos indivíduos.

Estudos sobre a natureza da ciência, sobre a origem, a história e as transformações dos conceitos comportam aperfeiçoamento de nossa

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visão filosófica do pensamento científico. Nesse caso, é importante pesquisar a teoria do conhecimento ou a epistemologia, ramo da filosofia que examina a elaboração e as mudanças no pensamento científico.

A aventura do conhecimento, a curiosidade científica, para além da curiosidade corriqueira e ingênua, também são componentes da natureza das ciências naturais, assim como seus métodos de rigor e compartilhamento de informações, e outros que promovem a investigação científica ou tecnológica.

Identificar relações entre ciência e tecnologia, ao longo da história da humanidade, também é propício à compreensão da natureza da ciência. Grosso modo, tanto tecnologia como ciência pesquisam os fenômenos naturais. A primeira, com o sentido de uso; a segunda, em busca de explicações. Contudo, a cisão entre ciência e tecnologia, na atualidade, é mais teórica do que real, pois há contribuições recíprocas.

Linguagem científica

Velocidade, aceleração, substância, vitamina, biodiversidade e muitos outros termos transitam entre as falas do dia a dia e o discurso da ciência. Ora é a ciência que empresta um termo do cotidiano e lhe confere novos significados, ora é o senso comum que passa a usar os termos da ciência. Assim, é importante lembrar que o termo ou a palavra não é seu conceito, é apenas sua representação. Os termos podem ser portadores de diferentes ideias ou conceitos, conforme o discurso em que se inserem. Reconhece-se amplamente que, em ciências, a aprendizagem conceitual segue por aproximações ao longo da escolaridade.

Aprender ciências também é estar atento a esses termos e aos usos que deles são feitos, procurando-se fazer uma distinção entre eles. Esse movimento faz parte da evolução do vocabulário e do discurso, em processos de ensino e de aprendizagem.

Afinal, o que são conceitos científicos? Eles sempre estão presentes nos planejamentos das ciências. Vale destacar que:

• a vivência da natureza proporciona a observação e a formação de um conceito. Esses são conhecimentos prévios com que os alunos podem contar, ou ainda, formar, mediante experimentações e atividades oferecidas pelo professor;

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• os conceitos científicos têm origem entre os filósofos gregos, que separam a natureza dos mitos. A teoria dos quatro elementos é uma tentativa de explicar a natureza sem deuses. Mas só na época do renascimento, com Copérnico, Kepler e Galileu, a observação e a experimentação dos fenômenos, bem como sua quantificação, passam a ter importância. Está nascendo a ciência moderna. Os conceitos elaborados passam a ser científicos, podendo mudar se não resistem às provas.

Na EJA do Ensino Fundamental, o estudante necessita ampliar seu vocabulário sobre os fenômenos naturais e suas transformações, bem como os modos de explicá-los, pois é preciso ir além do simples uso de palavras-chave. Nesse segmento, espera-se que o aluno desenvolva seu próprio discurso explicativo, com habilidade para justificar, argumentar, apresentar revisões e comparações. Assim, é esperado que o aluno, ao longo de seus estudos:

• ganhe habilidade em descrever fenômenos observados e manipulados em experimentos, sendo capaz de escrever e desenhar sobre relações de causa e consequência e sequência de eventos;

• produza relatórios enriquecidos com esquemas, desenhos, fotos e tabelas;

• ganhe autonomia para a leitura e a produção de tabelas de dupla entrada e gráficos simples;

• seja capaz de expressar suas curiosidades ou dúvidas, de forma oral e escrita, e de buscar informação correspondente;

• torne-se crescentemente mais hábil para compreender conceitos apresentados em textos e aplique-os em situações diversas;

• busque informações em múltiplas fontes, precisando ser orientado inicialmente para comparar informações e sendo crescentemente mais autônomo;

• torne-se crescentemente capaz de discutir problemas enquanto hipóteses e de distingui-los de fatos comprováveis; e

• possa distinguir entre opiniões embasadas ou não em informações.

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As habilidades mencionadas dão um repertório básico para o professor produzir atividades diversificadas de leitura e produção de texto, tendo em vista os processos de investigação, debates pontuais e questões de avaliação. Na avaliação, conforme acompanha o desenvolvimento e aquisição de habilidades dos alunos, o professor é um orientador que estimula a formação da linguagem científica, indo além do uso dos termos ou palavras-chave das ciências naturais.

Aspectos sociocientíficos

Historicamente, mesmo antes da tendência didática do letramento científico, com a tendência curricular chamada Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) destacou-se a importância de se trabalhar o conhecimento científico de forma contextualizada, estabelecendo-se relações entre ciências e cultura, procurando interação com as ciências humanas e sociais. Desse modo, propõe-se que o ensino de ciências não se faça alheio aos contextos de vida pessoal, comunitária ou global, mas, sim, trabalhando essas relações para tornar a aprendizagem mais facilmente significativa e relevante.

Diferentes temas do cotidiano, com importância sociocientífica, servem como contexto e ponto de partida para estudos em CN, como a alimentação, os transportes, a água no cotidiano, as práticas de saúde e prevenção de doenças, entre outros. Ao mesmo tempo em que descobrem e estudam ciências, os estudantes podem explorar as relações entre tecnologias e a sociedade, considerando valores humanos e éticos, todos eles compreendidos como aspectos sociocientíficos.

Objetivos Gerais de Ciências da Natureza na EJA

Para a reestruturação curricular que visa aos propósitos discutidos, é interessante tomar um conjunto consistente de objetivos que possam nortear e equilibrar as seleções de conteúdos e métodos. Com essa finalidade, retomamos os objetivos gerais presentes na Proposta Curricular do 2º segmento do Ensino Fundamental da EJA (MEC, 2002), identificada como uma referência pioneira pelos pesquisadores da área.

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(1) Compreender a ciência como um processo de produção de conhecimento e uma atividade humana, histórica, associada a aspectos de ordem social, econômica, política e cultural.

(2) Identificar relações entre conhecimento científico, produção de tecnologia e condições de vida, no mundo de hoje, sua evolução histórica, e compreender a tecnologia como meio para suprir necessidades humanas, sabendo elaborar juízo sobre riscos e benefícios das práticas científico-tecnológicas.

(3) Saber utilizar conceitos científicos básicos, associados tanto à energia, à matéria, à transformação, como a espaço, tempo, sistema, equilíbrio e vida.

(4) Formular questões, diagnosticar e propor soluções para problemas reais a partir de elementos das Ciências Naturais, colocando em prática conceitos, procedimentos e atitudes desenvolvidos no aprendizado escolar.

(5) Saber combinar leituras, observações, experimentações e registros para coleta, comparação entre explicações, organização, comunicação e discussão de fatos e informações.

(6) Compreender a natureza como um todo dinâmico, e o ser humano, em sociedade, como agente de transformações do mundo em que vive, com relação essencial com os demais seres vivos e outros componentes do ambiente.

(7) Compreender a saúde pessoal, social e ambiental como bem individual e coletivo que deve ser promovido pela ação de diferentes agentes.

Analisando-se esses objetivos, vemos que os objetivos (1) e (2) remetem a conhecimentos da natureza da ciência, enquanto os itens (3), (4) e (5) mostram maior preocupação com as questões de linguagem, embora também sejam próximos aos aspectos de natureza da ciência. Por sua vez, os objetivos (6) e (7) guardam maior compromisso com os aspectos sociocientíficos.

Com essa menção, fica sugerida a leitura integral desse documento, uma vez que preserva atualização diante dos propósitos do letramento científico e, sendo bem mais amplo do que este artigo, poderá dar mais sugestões aos educadores, principalmente, para o desenvolvimento de conteúdos organizados por temas.

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Temas e Eixos temáticos

Faz parte da tradição do ensino de ciências ensinar sobre solo, água, ar e ecologia, no ciclo da EJA correspondente ao 6º ano; botânica e zoologia, correspondendo ao 7º ano, corpo humano, ao 8º ano; física e química, ao 9º ano. Essa separação de conteúdos, na EJA, repete sem revisão ou crítica o que se apresenta no ensino fundamental habitual. O problema a destacar, face às demandas do letramento científico, é que essa separação de conteúdos dá foco muito forte nas definições científicas, nas terminologias, nas fórmulas da física, nas representações da química, sem, contudo, dar destaque para os aspectos de contextualização, ao desenvolvimento das linguagens e do letramento. Conforme foi discutido na introdução do artigo, apresentar situações e textos do mundo real para o aluno não é estratégia exclusiva do letramento, mas também da ampliação do significado da aprendizagem de ciências, como parte da formação mais ampla do estudante.

Como alternativa à divisão tradicional dos conteúdos conforme as disciplinas científicas, as propostas e diretrizes curriculares atuais têm mencionado a organização de conteúdos a partir de temas ou problemas relevantes. Alguns livros didáticos já trazem a divisão dos conteúdos por temas, desenvolvendo linguagem científica e contextos sociocientíficos dentro de uma mesma sequência de atividades.

É desejável que temas específicos sejam organizados pelo professor, considerando as demandas de sua classe frente às questões sociocientíficas de ambiente, saúde, tecnologia, cultura e trabalho mais importantes para eles.

Consideramos que são inúmeros os temas que possibilitam trabalhar os campos do letramento científico e podemos mencioná-los reunidos em eixos temáticos. A seguir, apresentamos comentários e sugestões para os quatro eixos estruturantes indicados no documento de Inclusão de Ciências no Sistema de Avaliação de Educação Básica – SAEB (INEP, 2013), de forma comparativa à proposta curricular de 2º segmento.

Terra e universo

O funcionamento da Terra como planeta, os movimentos de rotação e de translação relacionados aos ciclos diário e anual e outros

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conhecimentos básicos da astronomia podem ser vivenciados pelos estudantes por meio de observações diretas e estudos em planetários e observatórios, pela internet ou em livros. Esse eixo temático tem sido apontado como espaço de grande valor para trabalhar temas da história da ciência e, portanto, da natureza das ciências. Um tema como “Fases da Lua” pode ser desenvolvido com observação direta, uso de modelos e estudos sobre conceitos atuais e históricos sobre a Lua, sugerindo-se também a história da corrida espacial, em conexão com a história da Guerra Fria, se houver possibilidade de estabelecer interdisciplinaridade com as ciências humanas.

Esse eixo também está presente na Proposta Curricular de EJA, 2º segmento.

Vida e ambientes

No Ensino Fundamental, chama-se atenção para a valorização de estudos do ambiente local, associado à formação de atitudes. Temas de valor específico como “poluição do ar e da água”, para alunos que vivem nas cidades, “defensivos agrícolas, controle de pragas e poluição”, para alunos em áreas rurais, são exemplos. A partir de problemas específicos, os conceitos habitualmente tratados nos disciplinas de ecologia, botânica e zoologia ganham contexto e favorecem a aprendizagem significativa.

A questão da sustentabilidade pode ser objeto de estudo em temas como “animais em risco de extinção”, “desmatamento na Amazônia”, “pesca predatória”, para estudos de ambiente local ou regional (biomas brasileiros).

Ser humano e saúde

Esse eixo temático reúne assuntos que geralmente suscitam o interesse de jovens e adultos, abordando-se temas como “etapas da vida humana” e “sexualidade e saúde”, destacando-se aspectos de saúde da família; ou o tema “doenças relacionadas à água”, onde haja incidência delas, ou ainda “doenças relacionadas ao trabalho”, selecionando-se estudos que sejam relevantes para a classe. Há muito o que compreender do funcionamento do corpo e suas relações com o ambiente e a sociedade, com foco em temas como os citados.

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Este eixo, Ser humano e saúde, também está presente na Proposta Curricular de EJA, 2º segmento.

Materiais: constituição, propriedades e transformações

O aluno jovem e adulto detém diversos conhecimentos sobre os materiais no cotidiano, que devem ser considerados e problematizados pelo professor. A constituição dos materiais pode ser investigada pensando-se nas origens (mineral ou orgânica), na disposição nas esferas terrestres (litosfera, atmosfera, biosfera), até considerar aspectos químicos – elementos constituintes, constituição molecular (predominância do carbono ou não).

Para contextualizar estudos sobre a matéria, é interessante recorrer a temas em que os materiais sejam de uso familiar pelo estudante jovem e adulto. Por exemplo: “materiais da casa”, “materiais da cozinha”, “materiais de uma oficina” (marcenaria, elétrica, conforme haja interessados na classe), “transformações dos resíduos sólidos” (investigando-se os materiais recicláveis e os persistentes), entre outros. Realizar levantamentos, planejar e executar experimentos encontram-se entre os métodos indicados.

Todos esses estudos remetem para pesquisas sobre tecnologia e sobre energia, associando fortemente o eixo “Materiais” com o eixo “Energia: conservação e transformação”. Na Proposta Curricular de EJA, 2º segmento, esses dois eixos encontravam-se reunidos no eixo “Tecnologia e sociedade”.

Energia: conservação e transformação

O aluno pode ganhar repertório de novos conhecimentos, para além do difuso emprego do termo “energia” no cotidiano, aprendendo a interpretar as manifestações e transformações associadas à gravidade, à eletricidade, ao calor e ao magnetismo.

A presença fundamental da energia elétrica no cotidiano eleva a importância de temas como “eletricidade: de onde vem, para onde vai?”, ao alcance de alunos adultos de qualquer ciclo. Estudar, por exemplo, a matriz energética nacional e suas mudanças, ao longo do tempo, dá oportunidade para averiguar tendências e opções de certos usos, em detrimento de outros, considerando-se a abundância dos recursos naturais e efeitos de seu uso no meio ambiente.

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Estudos sobre máquinas, seu emprego, as fontes de energia empregadas, podem ser associados aos demais eixos temáticos, trabalhando-se também aspectos do corpo humano e da saúde dos operadores de máquinas.

De modo geral, os temas desenvolvidos com foco nesse eixo temático e no anterior são propícios ao trabalho com o conceito de tecnologia, propiciando ao aluno compreender que as tecnologias, assim como as linguagens, as artes e as religiões são manifestações de diferentes culturas.

Didática da investigação

Para completar esta breve apresentação das Ciências da Natureza na EJA, desenvolvemos tópicos sobre o planejamento e a condução de sequências didáticas em percurso investigativo.

Geralmente, as sequências são planejadas para durar algumas semanas de aula, considerando-se os seus momentos de introdução, desenvolvimento e conclusão. Se o tema escolhido é mais complexo, ou se há interesse e proposta adicional dos alunos, amplia-se o desenvolvimento da sequência, com novas fontes, modos de buscar informações e novas análises.

Planejamento e execução de uma sequência didática

Algumas sugestões para o planejamento e realização de sequência didática, conforme as demandas do letramento científico:

• definição de tema e recorte conceitual, com apoio de material impresso, ou outras fontes de informação, previamente selecionadas;

• o tema é a estratégia que traz os conceitos e teorias para um contexto interessante, da vida pessoal ou social, do meio ambiente, da história etc. A definição do tema pode ser feita com a equipe e/ou com os estudantes, conforme os objetivos da etapa de trabalhos. Com a maior participação dos estudantes, compreende-se que as sequências se aproximam da ideia de projeto escolar, como temos utilizado nas escolas, de modo geral;

• identificação das habilidades e dos conceitos que serão trabalhados e as expectativas de aprendizagem, ou seja, que nível de aprofundamento espera-se atingir no letramento científico dos estudantes;

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• seleção de estratégia de sensibilização, que pode ser um filme, um texto literário, de jornal, ou outro recurso de contextualização dos conceitos. Essa escolha se completa com a problematização adequada para a EJA e dá mostras sobre os conhecimentos prévios dos alunos;

• para o desenvolvimento do tema: trabalhar com atividades diversificadas e adequadas aos alunos. Planejar questões problematizadoras para dialogar sobre os experimentos e demais atividades;

• são atividades pertinentes à etapa de desenvolvimento do tema: experimentos, saídas a campo, leitura de imagens, pesquisa bibliográfica, organização de ideias comuns nos grupos de trabalho, interpretação de relatos ou de situações-problema, preparação de mostras ou seminários. Pode-se também trabalhar com entrevistas ou palestras de especialistas, sendo recomendável planejar com os alunos as perguntas que serão feitas ao entrevistado ou palestrante;

• para os momentos de sistematização de informações e conceitos: planejar atividades que proporcionem o aumento de repertório, o estabelecimento de relações entre informações, como em uma busca na internet, seguida de debate e/ou aula expositivo-dialogada, ou a elaboração em texto coletivo de conceitos e noções mais complexas do que aquelas que os alunos já possuem. Conforme o caso, a produção de coleções, seminários, livros, maquetes acompanhadas de textos são exemplos de sistematização de conhecimentos explorados anteriormente. Os diferentes temas são mais bem pesquisados usando-se diferentes suportes de informação.

A importância da problematização já se encontrava destacada no Referencial de EJA para o Segundo Segmento do Ensino Fundamental.

A problematização dos conteúdos pelo professor deve ser frequente e é sempre bem-vinda para despertar o interesse dos alunos e para ajudá--los no desenvolvimento do raciocínio. Nela, o professor mantém uma atitude que instiga, questiona, contrapõe respostas, avalia hipóteses e ajuda os alunos a raciocinar e a chegar a conclusões. Como se trata de

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uma atitude, de uma postura, o professor deve exercitá-la no cotidiano da vida escolar.

Uma das características da problematização é o incentivo à atitude investigativa do aluno, o que promove o desenvolvimento da sua autonomia intelectual. Ela implica que, diante de uma pergunta, em vez de dar uma resposta pronta, o professor procure levantar hipóteses, ajude a recordar situações relevantes em relação ao assunto, conduza o debate antes de chegar às conclusões ou à resposta. (Referencial de EJA para o Segundo Segmento do Ensino Fundamental, p. 109)

Posturas do professor

Para o aluno construir novos saberes e habilidades, é preciso que ele mesmo, como sujeito do conhecimento, reelabore e reavalie conhecimentos prévios, assimile informações, aplique conceitos.

Nesse percurso, é fundamental que o professor seja um orientador de estudos, e não apenas um transmissor de conhecimentos. A nosso ver, o professor não perde esse papel. Só que, na atualidade, o acesso a informações está muito fácil, em buscas na internet, cabendo ao professor dar sentido ao uso das TIC, apoiando a seleção e trazendo questões relevantes para alcançar os objetivos delineados.

A partir dessas considerações, são apresentadas as sugestões para o professor diversificar sua atuação como orientador de estudos. As sugestões foram organizadas em tópicos para as etapas de introdução, desenvolvimento e conclusão da investigação de um tema já planejado.

Durante a introdução, o professor: • apresenta ou define o tema, com a participação dos estudantes.

Incentiva o começo das discussões, com ajuda de debate ou de produto cultural (filme, poema, notícia, por exemplo). Desse modo, aciona e organiza conhecimentos prévios, ajuda a estipular as hipóteses a serem testadas, pesquisadas, ampliadas e retomadas durante a sequência investigativa;

• evita explicações sistematizadas, pois os alunos precisam ter dúvidas, curiosidades, hipóteses que os levem a pesquisar o tema;

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• pode organizar esquema ou quadro com tudo o que foi levantado e está relacionado ao tema a ser estudado, possibilitando uma primeira visão de conjunto.

Durante o desenvolvimento, o professor: • orienta atividades em pequenos grupos e, em seguida, propõe a

troca de informações abreviadas para toda a classe, reservando parte do tempo para essa troca;

• pontua, elabora questionamentos, fomenta as discussões e contradições entre as diferentes posições dos alunos e lança dúvidas;

• apoia a produção de sistematizações parciais, na forma de coleção de rascunhos ou esboços de textos nas linguagens compatíveis com o tema, podendo também palestrar sobre suas próprias investigações.

Na síntese final ou conclusão da sequência didática, o professor: • pode solicitar a elaboração de síntese individual, que pode ser

discutida em pequenos grupos e, finalmente, no coletivo; • coordena a apresentação de trabalhos de grupo, quando for

o caso; • responde às dúvidas que ainda existem, em momento de

exposição dialogada; • orienta os alunos a organizar seu produto final de projeto,

quando há. Na opção por seminários, os alunos expõem suas pesquisas, elaboradas com suas próprias palavras, organizadas com seus próprios títulos e/ou chamadas, com apoio em meio digital ou cartazes;

• promove atividades de metacognição, após um percurso investigativo: os estudantes trabalham novos problemas e tomam consciência do que e como aprenderam, explicitando a diferença que fez o estudo em relação a suas concepções e ideias iniciais;

• pondera o avanço dos estudantes em habilidades e objetivos destacados no planejamento do tema.

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Em resumo

A área de Ciências da Natureza na EJA: • deve contribuir para o cidadão identificar, nomear, explicar e

atribuir valor com significado pessoal e social aos diferentes componentes e fenômenos da natureza e suas transformações promovidas pelo ser humano;

• abrange vários campos específicos, isto é, as várias ciências particulares – biologia, física, química, geociências etc. – cada uma delas com sua própria história, métodos e teorias. As ideias científicas são apresentadas em linguagens muito variadas, inclusive, a língua materna, as linguagens matemáticas, as imagens e outras modalidades. As ideias científicas mudam ao longo do tempo, mas algumas duram muito;

• as várias ciências estão associadas a diferentes tecnologias, com grande representatividade no cotidiano, em certos casos, maior do que o próprio conhecimento científico;

• ciência e tecnologia têm significados éticos e políticos para a sociedade contemporânea, considerando-se os usos que se faz desses conhecimentos e as diretrizes de sua produção.

Assim, é preciso desenhar o currículo de Ciências de modo a criar oportunidades para trabalhar todos esses objetos de estudo:

• os fenômenos naturais e suas transformações, bem como os conceitos e teorias científicas que os explicam;

• os tópicos da história da ciência, para compreender a construção social dos conceitos;

• as linguagens científica, artística e matemática, que dão suporte às informações e proporcionam os registros;

• a associação entre ciência, sociedade, ética e tecnologia.

ReferênciasBRASIL. Conselho Nacional de Educação. Processo nº: 23001.000196/2005-41, despacho do Ministério da Educação, aprovado em 7 de abril de 2010, regulamentando as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Diário Oficial da União. Brasília, 9 jul. 2010.

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Ciências Humanas: por uma educação que fortaleça a igualdade e os direitos humanos na EJARoberto Catelli Jr.

O Brasil do século XXI ainda tem como marca a desigualdade e o desrespeito aos direitos humanos. Após duas décadas de ditadura militar, na qual os direitos humanos foram constantemente violados, o Brasil retomou a vida democrática e foi criada a chamada “Constituição Cidadã”, em 1988, na qual muitos direitos fundamentais seriam garantidos. Mas sabemos, agora, mais de 25 anos depois, que ainda não foi o suficiente. Seria possível preencher muitas páginas deste texto com os sucessivos casos de violação aos direitos humanos ocorridos no Brasil que se relacionam fortemente com a raça e a classe social. Os muitos assassinatos de jovens negros, o tratamento desigual a pobres e ricos que cometem um mesmo crime, enfim, as prisões ficaram muito mais lotadas, mas nela só encontramos um perfil que se repete, a maioria dos presos são de baixa renda, jovens e negros. Conforme os dados oficiais organizados pelo Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen)1, 51% dos presos em 2012 eram jovens entre 18 e 29 anos. Quanto à raça, predominam os presos pardos e pretos, que juntos representavam 57% dos presos no país. Verifica-se também que 63,8% dos encarcerados eram pessoas que não concluíram o ensino fundamental.

1 BRASIL. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D89 2E 444B5943A0AEE5DB94226PTBRIE.htm>. Acesso em: 15 dez. 2014.

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Quando incluímos os analfabetos, verificamos que 71,5% dos encarcerados eram pessoas analfabetas ou que não concluíram o ensino fundamental. Apesar disso, apenas 8,8% dos encarcerados exerciam alguma atividade educacional no espaço prisional em 2012 (INFOPEN, 2012).

Para não ficar apenas no caso das prisões, entre 2002 a 2010, enquanto a morte de jovens brancos no país caía 25,5%, a de negros crescia 29,8% (WAISELFSZ, 2012, p. 10). Apenas em 2010, 19,8 mil negros foram assassinados no Brasil, enquanto o mesmo ocorreu com 6,5 mil brancos (WAISELFSZ, 2012, p. 10).

Podemos ainda fazer referência à violação dos direitos das terras indígenas, ao trabalho escravo, à violação aos direitos ambientais, às terras quilombolas, à tortura, aos direitos relacionados às questões de gênero e às crianças e adolescentes.

Mas o que tudo isso tem a ver com o ensino e aprendizagem na área de ciências humanas da educação de jovens e adultos?

Primeiramente, é preciso ter claro que os educandos da EJA são sujeitos que tiveram um importante direito violado, que é o direito à educação. Grande parte dos estudantes da EJA é formada por pessoas negras ainda vítimas da discriminação. Em algumas redes estaduais e municipais, observamos que mais de dois terços dos estudantes da EJA são pardos ou pretos. Essas pessoas são aquelas que, por não terem conseguido avançar nos estudos, não conseguiram se inserir no mercado de trabalho ou ocuparam os postos de trabalho de menor remuneração e prestígio social. Há também aqueles jovens que infringiram a lei e cumprem medida socioeducativa. Todos eles são brasileiros que ao longo de sua vida tiveram direitos negados e agora buscam ou são obrigados a buscar um caminho para poder avançar profissional e economicamente, bem como enquanto pessoas que procuram vislumbrar outras possibilidades pessoais.

Considerando que as ciências humanas estão essencialmente ligadas à análise dos processos histórico-sociais, torna-se evidente a necessidade de, no caso da educação de jovens e adultos, fortalecer o estudo de temas que dizem respeito diretamente ao contexto vivido por esses sujeitos. Trata-se de um campo privilegiado para trazer os temas da igualdade, dos direitos humanos e também da diversidade na vida social.

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Assim, devemos nos perguntar também qual é o currículo adequado para essas pessoas. O que devemos ensinar para um aluno da EJA na área de ciências humanas? Que conteúdos devemos selecionar? Que atividades e estratégias devemos utilizar? O que deve ser um espaço de aprendizagem na EJA? Sem fazer essas perguntas e sem construir um percurso para chegar a uma resposta, corremos o risco de ignorar a possibilidade de criar um percurso de aprendizagem que de fato permita que esse sujeito avance em sua trajetória educacional.

Muitos estudos e também a experiência de diversos professores indicam que não se pode reproduzir na educação de jovens e adultos os mesmos modelos da educação chamada regular. Os caminhos pelos quais as crianças aprendem não são os mesmos que os percorridos pelos adultos. Estes já passaram por etapas de desenvolvimento que as crianças ainda estão por atravessar. Além disso, como afirma Marta Kohl de Oliveira:

O adulto está inserido no mundo do trabalho e das relações de um modo diferente daquele da criança e do adolescente. Traz consigo uma história mais longa (e provavelmente mais complexa) de experiências, conhecimentos acumulados e reflexões sobre o mundo externo, sobre si mesmo e sobre as outras pessoas. Com relação à inserção na aprendizagem, essas peculiaridades da etapa da vida em que se encontra o adulto fazem com que ele traga consigo diferentes habilidades e dificuldades (em relação à criança) e, provavelmente, maior capacidade de reflexão sobre o conhecimento e seus próprios processos de aprendizagem. (OLIVEIRA, 2001, p.18)

Ao referir-se à construção de currículos para a educação de jovens e adultos, Inês Barbosa de Oliveira chama a atenção ainda para a importância de criar currículos em rede para esse público. Segundo ela:

A ideia da tessitura do conhecimento em rede pressupõe [...] que as informações às quais são submetidos os sujeitos sociais só passam a constituir conhecimento quando se enredam a outros fios já presentes nas redes de saberes anteriores de cada um, ganhando, nesse processo, um sentido próprio, não necessariamente aquele que o transmissor da informação pressupõe. Ou seja, dizer algo a alguém não provoca aprendizagem nem conhecimento, a menos que aquilo que foi dito possa entrar em conexão com os interesses, crenças, valores ou saberes daquele que escuta. [...] Não faz sentido pressupor um trajeto único e obrigatório para todos os sujeitos em seus processos de aprendizagem. Cada um tem uma forma própria e singular de tecer conhecimentos através dos modos como atribui sentido às informações recebidas, estabelecendo conexões entre os fios e tessituras anteriores

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e os novos. No caso da EJA, outro agravante se interpõe e se relaciona com o fato de que a idade e vivências sociais e culturais dos educandos são ignoradas, mantendo-se nestas propostas a lógica infantil dos currículos destinados às crianças que frequentam a escola regular. (OLIVEIRA, 2009, p. 98-99)

Conforme indica também Citolin:

O conhecimento é concebido como fruto de um processo construtivo em que a aprendizagem dos sujeitos não está dada a priori e nem mesmo resulta do acúmulo de informações vindas do meio exterior. Para aprender, o sujeito coloca em jogo suas hipóteses sobre a realidade, interage com o real e com os outros, reconstruindo estas hipóteses e avançando na compreensão desta realidade. (CITOLIN, 2007, p. 5)

Ainda é necessário considerar que o currículo em uma escola se constitui também como uma construção social que tem implícita uma visão política e cultural daqueles que o criam e lhe dão vida no cotidiano. Ele não é apenas um documento técnico, mas um conjunto de intenções que vão se materializar e se transformar com a prática de todos aqueles que atuam no dia a dia da escola.

Para que a escola, conforme afirmou Paulo Freire, em 1990, não aumente ainda mais a distância entre as palavras que lemos e o mundo em que vivemos, é fundamental que se leve em conta essas considerações, que enfatizam a necessidade de criar currículos feitos especialmente para adultos, levando em conta suas aprendizagens formais e também suas experiências de vida, além de suas demandas relativas ao mundo do trabalho.

Não se pode conceber a seleção de conteúdos a serem ensinados na escola com os mesmos critérios e estratégias que se faz para as crianças. Não necessariamente se aprende do mesmo modo e nem é necessário repetir as mesmas etapas, uma vez que jovens e adultos já passaram por outras vivências e não estão mais no contexto de vida das crianças.

Há também a necessidade de constituir currículos flexíveis, que possam resolver tanto as dificuldades práticas de frequentar a escola todos os dias nos mesmos horários, como criar outras formas de construção da aprendizagem que aproveite de forma criativa os saberes constituídos na sua vida pessoal e profissional. Isso não significa ignorar o conhecimento científico e as bases do conhecimento das disciplinas, mas estabelecer uma mediação entre o mundo vivido e o conhecimento produzido na escola.

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No caso das ciências humanas, propomos aqui um currículo da educação de jovens e adultos que tenha forte vínculo com uma educação para os direitos humanos. Esses jovens e adultos são pessoas inseridas em um mundo de direitos que precisam ser conhecidos, debatidos e exigidos pelos seus principais agentes: os cidadãos.

Assim, quando nos perguntamos sobre o que ensinar, podemos começar respondendo que uma possibilidade é criar currículos para jovens e adultos para o fortalecimento da igualdade e dos direitos humanos. Isso não significa ignorar conceitos essenciais para a área de ciências humanas, como tempo, espaço, sociedade, poder, cidadania e tantos outros. Ao contrário, trata-se de colocar esses conceitos a serviço de uma educação que leve ao diálogo sobre os direitos humanos e sobre os direitos de cada um na sociedade em que vivem. Ou, ainda mais, que estejam relacionadas com as práticas sociais efetivas desses sujeitos. Os alunos da EJA são, na sua maioria, esses brasileiros excluídos de muitos direitos que lutam por conquistar alguma possibilidade de inserção social. Vale relembrar, como vimos anteriormente, que 71,5% das pessoas encarceradas no Brasil não concluíram o ensino fundamental ou são analfabetos; por isso, são potenciais alunos da EJA.

Também não significa abrir mão de conteúdos consagrados da história e da geografia, por exemplo, mas definir uma seleção de conteúdos com foco em aprendizagens significativas para jovens e adultos inseridos no mundo do trabalho que enfrentam também as questões da vida social de seu tempo. O fato é que os conteúdos não devem ser os mesmos necessariamente que os da escola regular. É preciso inovar. Se jovens e adultos não aprendem do mesmo modo que crianças, eles não devem ser submetidos aos mesmos conteúdos e estratégias para que os objetivos pedagógicos estabelecidos se cumpram.

Tampouco não se pode deixar de levar em conta que se trata de pessoas com ricas histórias de vida e experiências no campo pessoal e profissional. Ou seja, estas devem ser trazidas para a sala de aula, não apenas como narrativa, mas como conteúdo a ser parte de um processo mais amplo de aprendizagem. Jovens e adultos possuem muito mais saberes do que imaginam e têm medo de não saberem nada. Deve haver um esforço para mostrar que sua experiência de vida ensinou

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muitas coisas, mas que nem sempre esses saberes são convergentes com a maneira como o conhecimento é formalizado na escola. Alunos da EJA podem, por exemplo, saber muito sobre formas de medir, regime de águas, clima, formas de cálculo, preservação ambiental, estratégias políticas etc. Mas, em geral, pouco aprenderam sobre esses assuntos da maneira como se ensina na escola, pois esses conhecimentos vieram da prática da vida. Pior, a escola assusta, impõe regras, realiza provas e, supostamente, esses estudantes têm de enfrentar um professor que, teoricamente, sabe muito mais. Para grande parte deles, a escola foi uma experiência traumática, um divórcio litigioso, um lugar do qual se saiu e dificilmente se quer voltar.

Ao propor alguns possíveis caminhos para o ensino na área de ciências humanas, a historiadora e educadora Circe Bittencourt defende que, na educação de jovens e adultos, pelo menos três eixos deveriam ser considerados: a formação humanística, que inclui a problematização das questões sociais e seu enfrentamento por parte dos diferentes setores sociais; a relação ser humano-natureza, aproximando as ciências humanas das ciências da natureza, colocando em destaque os temas ambientais, os quais precisam ser discutidos em conjunto com as propostas de desenvolvimento econômico, ou seja, é preciso refletir sobre modelos sociais e econômicos sustentáveis, nos quais, a vida econômica, social e os aspectos ambientais são considerados como um conjunto inseparável. O terceiro eixo refere-se ao desenvolvimento tecnológico e suas implicações para a vida social e para o emprego. Trata-se de debater criticamente sobre o sentido do desenvolvimento tecnológico e suas implicações em diferentes espaços e contextos históricos (BITTENCOURT, 2002).

Poderíamos ainda fazer referência a outros temas fundamentais para jovens e adultos imersos na vida social e no mundo do trabalho. Há as questões de gênero, o tema da diversidade e também a maneira como podemos compreender e enfrentar temas como a violência presente nos centros urbanos, praticada contra mulheres, negros, homossexuais e minorias.

Retomando o tema dos direitos humanos na perspectiva para o ensino na área de ciências humanas na EJA, vale mencionar o jurista Dalmo Dallari, que afirma:

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Todas as pessoas nascem iguais em dignidade, e nada justifica que não sejam dados os mesmos direitos a todos. Todos têm igual direito ao respeito das outras pessoas, e nada justifica que não tenham, desde o começo, as mesmas oportunidades.2

Assim, tratar dos eixos e temas mencionados na área de ciências humanas na EJA significa fazer referência ao próprio sentido de dignidade e liberdade dos indivíduos que vivem em sociedade, já que, por exemplo, toda forma de discriminação e opressão atenta contra a dignidade do indivíduo e, portanto, viola os direitos humanos.

Ainda é preciso considerar que desenvolver propostas nessa direção implica em abandonar o modelo estritamente disciplinar tão difundido na escola brasileira. A lógica fragmentada de construção do conhecimento no âmbito escolar dificulta o desenvolvimento de propostas que levem, de fato, os educandos a refletir sobre as práticas sociais no âmbito dos temas e conceitos das ciências humanas.

Os conhecimentos relacionados à disciplina de história, por exemplo, relacionam-se aos outros campos das ciências humanas, como a antropologia, a sociologia, a política, à geografia e à filosofia. Há também a possibilidade de criar propostas conjuntas com as disciplinas de artes, ciências e língua portuguesa. Considerando que a realidade e os conhecimentos são inevitavelmente interdisciplinares, não se pode limitar a construção dos conhecimentos escolares apenas aos estudos por disciplina, sob o risco de criar visões fragmentadas e artificiais sobre o mundo vivido que não são aplicáveis à realidade.

Trabalhar por área de conhecimento, ampliando, se possível, o trabalho para outras áreas, permite que se desenvolvam projetos em que são construídos problemas relacionados à vida social que exigem o envolvimento direto dos estudantes como pesquisadores e agentes sociais que devem estudar, refletir, produzir argumentos e, se possível, intervir na realidade. Assim, podemos, por exemplo, estudar o mundo do trabalho fazendo referência às várias formas de organização do trabalho em diferentes tempos e espaços, mas sem perder de vista o estudo do tema na sociedade e espaço em que vivem. A partir daí pode-se estudar

2 Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos. Pessoa, Sociedade e Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/dallari2.htm>. Acesso em: 28 nov. 2014.

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o sistema capitalista, as propostas socialistas, o sentido do trabalho no campo e na cidade, o papel da tecnologia, o conceito de exploração, a luta de classes, enfim, temas essenciais da história, geografia e sociologia.

Ao estudar o tema do trabalho, é evidente também que as próprias experiências profissionais dos educandos devam ser um ponto de partida e motivo de reflexão. Em que trabalham? Que relações se constituem? Como se inserem no contexto da sociedade capitalista? Em que sua experiência contribui para que se compreenda e se reflita sobre os conhecimentos da área sobre o tema?

Para concluir, vale mencionar o ocorrido nas eleições presidenciais de 2014, quando ocorreram manifestações de grupos minoritários em prol de uma intervenção militar que depusesse o governo democraticamente eleito. Muitos dos que defendiam tal posição pareciam efetivamente ignorar a história da ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1984. O sentido da repressão, a impossibilidade da liberdade de expressão, a tortura e tudo o mais que afrontou os direitos humanos e a liberdade não se colocaram como empecilho para defender uma intervenção militar golpista que se voltasse contra a própria Constituição do país. Em parte, essa visão decorre de uma suposta defesa anticomunista que ameaçaria o país; por outro lado, de um grupo, para quem, talvez os direitos humanos não sejam mesmo algo a ser defendido apesar de todo o discurso já construído ao longo das últimas décadas e registrado em documentos internacionais como a Declaração Universal de Direitos Humanos.

Diante disso, cabe àqueles que acreditam na necessidade da defesa dos direitos humanos, considerando o direito à vida e à liberdade de expressão, fazer com que nossos programas escolares, em especial para jovens e adultos inseridos no mundo do trabalho e na vida cidadã, tenham como perspectiva o enfrentamento das questões efetivamente relacionadas com as práticas sociais dos cidadãos. Assim, torna-se vital recuperar a memória de episódios como a ditadura militar em um contexto em que parte da população parece ignorar a perversidade do governo ditatorial que dominava o poder naquele momento histórico. Do mesmo modo, precisam ser valorizados os estudos relacionados aos conflitos e às contradições sociais presentes na sociedade, permitindo a reflexão sobre as escolhas a serem feitas por cada cidadão na sua vida pessoal e coletiva.

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Vale mencionar ainda que a área de ciências humanas possibilita que os estudantes desenvolvam capacidade crítica. Para que os cidadãos sejam capazes de tomar posição e fazer escolhas como pessoas ativas na sociedade, é essencial que saibam conduzir suas escolhas com base em posições sustentadas em argumentos. Os estudos desenvolvidos na área de ciências humanas permitem que se coloque em destaque os diferentes projetos de sociedade e posicionamentos de grupos sociais em determinados períodos, sendo necessário realizar a crítica para analisar o significado dessas posições em diferentes tempos e espaços.

Cria-se também a oportunidade de constituir o que se denomina pensamento histórico, ou seja, os estudantes devem desenvolver a capacidade de analisar a vida social com base na leitura do passado, ou seja, podem ser capazes de pensar historicamente, compreendendo as especificidades dos períodos históricos. Construir um pensamento histórico nos permite reconhecer que não vivemos em um eterno presente, mas que estamos em alguma medida vinculados a um passado, que compreender quem somos hoje significa olhar para trás e descobrir os elos que nos ligam a esse passado. Reconhecer esses elos é também o caminho para que se estabeleça a crítica e se construa um caminho de transformação de um passado que se quer esquecer, mas insiste em permanecer.

Referências

ABREU, Ana Rosa; CATELLI Jr., Roberto. A ditadura militar no Brasil e o ensino de História. Revista Pátio: ensino fundamental. Porto Alegre, v. 18, n. 70, p. 6-9, maio-jul. 2014.

BITTENCOURT, Circe. Ciências Humanas e suas tecnologias: ensino médio. In: MURRIE, Zuleika de Felice (Coord.). História e geografia, ciências humanas e suas tecnologias: livro do professor: ensino fundamental e médio. Brasília: MEC/INEP, 2002.

FÁVERO, Osmar. Cad. Cedes, Campinas, v. 27, n. 71, p. 39-62, jan./abr. 2007.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Pessoa, Sociedade e Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/dallari2.htm>. Acesso em: 28 nov. 2014.

MAYBURY, Biorn Lewis; RANINCHESKI, Sonia (Orgs.). Desafios aos Direitos Humanos no Brasil Contemporâneo. Brasília: CAPES/VERBENA, 2011. Disponível em: <http://www.social.org.br/desafios.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2014.

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OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Organização curricular e práticas pedagógicas na EJA: algumas reflexões. In: PAIVA, Jane; OLIVEIRA, Inês B. de (Orgs.). Educação de Jovens e Adultos. Petrópolis: De Petrus et Alli Editora, 2009.

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org.). Educação de jovens e adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

WAISELFISZ, Júlio Acobo. Mapa da violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO. Brasília: SEPPIR, 2012. Disponível em: <http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2014.

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Quem escreve

Ednéia Gonçalves Bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Assessora da Unidade de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa. Foi consultora da Artemis Information Management AS (Luxemburgo) e tem experiência em avaliação de projetos socioeducacionais. É educadora, elaborou formações para formadores, professores e gestores e também coordenou projetos de cooperação internacional Sul-Sul pela AlfaSol.

Luiz Henrique Magnani Doutor pela Universidade de São Paulo em Letras. Atualmente trabalha na ONG Ação Educativa como assessor da Unidade de Educação de Jovens e Adultos. Tem suas principais experiências nos seguintes temas: multimodalidade, hipermodalidade, videogames, novos letramentos, Educação de Jovens e Adultos, construção de sentidos.

Maria Cecília Guedes Condeixa Bacharel e licenciada em Biociências (USP), também estudou Filosofia e Psicologia da Educação, em nível e pós-graduação (PUC-SP). Atua na elaboração de currículos e formação de professores em serviço. É autora de livros educativos.

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Michele Escoura Mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. É assessora da Unidade de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa e pesquisadora na área de relações de gênero do Núcleo Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da USP. Tem atuação nas áreas de relações de gênero, desigualdades sociais, educação e mídia.

Raquel Souza Possui graduação em Pedagogia (FE-USP), mestrado em Educação (FE-USP) e é doutoranda em Educação (FE-USP). Tem atuado em projetos com foco na educação de jovens, especialmente no ensino médio, e realizado estudos e pesquisas com foco em questões como juventude, educação e relações de gênero.

Roberto Catelli Jr. Mestre em História Econômica e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo. É coordenador da unidade de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa, consultor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e Informação (Inep) para avaliações de larga escala e consultor em redes públicas de ensino.

Sandra Regina Correa Amorim Especialista em Educação Matemática: Fundamentos Teóricos e Metodológicos e Mestre Profissional em Ensino de Matemática, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integra o Núcleo Pedagógico da Diretoria de Ensino da Região de Mogi das Cruzes, na função de Professor Coordenador do Núcleo Pedagógico (PCNP), disciplina Matemática. Atua ainda como docente na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e é formadora na área de numeramento.

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A área de Educação da Fundação Vale busca contribuir para a melhoria da educação básica, com foco na promoção de uma prática docente pautada nos princípios da pluralidade cultural e do respeito às diferenças.Fundação ValeConselho Curador

PresidenteVania Somavila

ConselheirosLuiz Eduardo LopesMarconi ViannaZenaldo OliveiraAntonio PadoveziAlberto NinioRicardo MendesLuiz Fernando LandeiroLuiz Mello

Conselho Fiscal

PresidenteMurilo Muller

ConselheirosCleber SantiagoBenjamin MoroFelipe PeresLino BarbosaVera Schneider

Conselho Consultivo

PresidenteMurilo Ferreira (CEO Vale)

ConselheirosDanilo Santos da Miranda (Diretor do SESC SP)Dom Flávio Giovenale (Bispo de Abaetetuba)Luis Phelipe Andrés (Conselheiro do IPHAN)Paula Porta Santos (Historiadora e Doutora pela USP)Paulo Niemeyer Filho (Chefe do Centro de Neurologia Paulo Niemeyer)Silvio Meira (Presidente do Conselho Administrativo do Porto Digital)

Diretora PresidenteIsis Pagy

Diretor ExecutivoLuiz Gustavo Gouveia

Gerência Geral de Relações IntersetoriaisAndreia Rabetim

Gerência de EducaçãoMaria Alice SantosAndreia PrestesAnna Cláudia D´AndreaCarla VimercateMariana Pedroza

Ação Educativa

Diretoria

Maria Machado Malta Campos

Luciana Guimarães

Michele Prazeres

Coordenação Geral

Vera Masagão Ribeiro

Coordenação da Unidade de EJA

Roberto Catelli Jr.

Concepção e texto

Ednéia Gonçalves

Michele Escoura

Roberto Catelli Jr.

Produção Editorial

Fernanda Bottallo

Projeto gráfico e diagramação

Aeroestúdio