journal of democracy em português_vol2 primavera arabe

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  • Volume 1, Nmero 2, Outubro de 2012

    em Portugus

    Dossi Primavera rabe

    As Linguagens das Revolues rabesAbdou Filali-Ansary

    Por que no h Democracias rabes?Larry Diamond

    A Transio na Tunsia e a Mtua Tolerncia Alfred Stepan

    Dossi Sudeste Asitico

    Reforma Econmica e Autoritarismo no Vietn, Laos e Camboja

    Martin Gainsborough

    Estados Fortes e Democratizao na Malsia e Singapura

    Dan Slater

  • CONSELHO EDITORIAL

    Bernardo SorjSergio Fausto

    Diego Abente BrunMirian Kornblith

    CONSELHO ASSESSOR

    Fernando Henrique CardosoAntonio Mitre

    Larry DiamondMarc F. Plattner

    Simon Schwartzman

    TRADUO

    Elis Lavanholi

    REVISO TCNICA

    Rodrigo Brando

  • Apresentao

    Este segundo nmero do Journal of Democracy em Portugus traz dois conjuntos de artigos. O primeiro se refere s visveis mudanas polticas no convulsionado mundo rabe. O segundo, s praticamente invisveis perspectivas de mudana poltica em slidos regimes no democrticos do Sudeste Asitico.

    O interesse pela chamada Primavera rabe quase dispensa justificao. At dois anos atrs, quando protestos pr-democracia

    tomaram as praas de Tnis e do Cairo, ningum acreditava que as

    longevas autocracias da Tunsia e do Egito estivessem perto do fim.

    Hoje a pergunta se sero realmente democrticos os regimes que

    se esto erguendo naqueles dois pases, bem como na Lbia. E se as mudanas que se iniciaram no Norte da frica podero alastrar-se

    pelo Oriente Mdio.

    Essas questes so abordadas, respectivamente, por Alfred Ste-pan, em A Transio na Tunsia e a Mtua Tolerncia, e por Larry Diamond, em Por que no h Democracias rabes?. Stepan

    professor da Universidade de Columbia, em Nova York, e se des-tacou no estudo comparativo de transies para a democracia em pases do Ocidente, entre eles o Brasil. Faz dez anos, suas atenes se voltaram para o mundo rabe. Desde ento, Stepan sustenta o argumento de que a infrequncia de democracias no mundo rabe se explica menos pela existncia de populaes majoritariamente mulumanas e mais pelas estruturas sociais e polticas associadas ao controle familiar-estatal sobre fontes abundantes de petrleo.

    O autor encontra na Tunsia, pas de maioria mulumana e pobre em petrleo, mais um exemplo a sustentar sua tese. No artigo aqui publicado, ele reconstri a tessitura dos acordos que permitiram a deposio relativamente incruenta de Ben Ali e a transio pacfica

    CONSELHO EDITORIAL

    Bernardo SorjSergio Fausto

    Diego Abente BrunMirian Kornblith

    CONSELHO ASSESSOR

    Fernando Henrique CardosoAntonio Mitre

    Larry DiamondMarc F. Plattner

    Simon Schwartzman

    TRADUO

    Elis Lavanholi

    REVISO TCNICA

    Rodrigo Brando

  • para a democracia. A narrativa pontuada por referncias a entre-

    vistas por ele realizadas com lderes polticos da chamada Revo-luo de Jasmim ao longo de 2011.

    Stepan identifica nos acordos polticos da transio tunisiana a

    formao do que ele chama de uma tolerncia mtua. De um lado, a aceitao, por parte dos cidados religiosos, de que apenas as leis constitucionais - e no supostas leis divinas - podem limitar

    a liberdade de deciso dos chefes de governo e parlamentos de-mocraticamente eleitos. De outro, a aceitao, por parte do Estado laico, de que os cidados religiosos tm o direito de se organizar e manifestar politicamente com base nos valores de suas crenas reli-giosas. Para o autor, o desenvolvimento da mtua tolerncia seria indispensvel consolidao da democracia na Tunsia. Embora ainda em aberto, Stepan otimista em relao a essa possibilidade.

    Otimismo que no se repete em relao ao Egito, por razes que o leitor encontrar no artigo.

    Em Por que no h Democracias rabes?, Larry Diamond se-gue a mesma trilha de Stepan e se aprofunda nas causas da inexistn-cia de democracias em pases rabes com grande produo e exporta-o de petrleo. Embora esse artigo tenha sido escrito em 2010, antes portanto do incio da Primavera rabe, decidimos inclui-lo porque

    os Petroestados rabes continuam inclumes s mudanas desenca-deadas a partir da Tunsia e do Egito. Os pases da Pennsula Arbica, com a Arbia Saudita ao centro, constituem ainda uma fortaleza au-toritria aparentemente inexpugnvel. Se ampliarmos o mapa, surgi-r o Iraque, onde a ditadura de Saddam Hussein j no mais existe. Mas ali se tratou de uma transio at gun point, no bojo de uma ocupao militar estrangeira, cujos desdobramentos polticos, alis, so ainda muito incertos.

    O terceiro artigo do dossi sobre a Primavera rabe na ver-dade, o primeiro, por ordem de apresentao difere dos anteriores por trafegar no no mundo das instituies polticas, mas, sim, da linguagem poltica. Abdou Filali-Ansary o escreveu para a confe-

  • rncia The Seymour Martin Lipset Lecture on Democracy in the World, de 2012, ocasio em que anualmente o National Endowment for Democracy distingue destacados lderes polticos e intelectuais comprometidos com a democracia.

    Em seu texto, Filali-Ansary faz uma fascinante incurso pelos sen-

    tidos nem sempre nicos de palavras e slogans empregados por lderes e militantes da Primavera rabe. Para o autor, est em formao uma nova linguagem da poltica em pases como o Egito e a Tunsia. Ela se alimentaria de duas vertentes distintas: a apropriao de concei-tos e palavras da tradio poltica ocidental, como sociedade civil e di-reitos humanos, e a ressignificao de conceitos e palavras da tradio

    islmica. A depender do contexto, exemplifica, um apelo ao retorno

    da sharia pode significar tanto o desejo de imposio legal generali-zada de um cdigo de conduta pessoal severo e discriminatrio contra as mulheres como, alternativamente, a moralizao da vida pblica contra a corrupo e o abuso do poder. Filali-Ansary no desconhece

    o risco de que as revolues rabes produzam regimes polticos fun-damentalistas, embora seja otimista quanto s chances de que acabem por prevalecer fundamentos democrticos de legitimao do poder po-ltico. Seu artigo , na verdade, um alerta contra um secularismo de

    mente estreita, incapaz, segundo o autor, de perceber a ressignificao

    de parte do lxico religioso por novas prticas e aspiraes potencial-

    mente democrticas nas sociedades rabes.

    Passemos ao segundo conjunto de artigos deste nmero, referidos ao Sudeste Asitico. A regio uma pea cada vez mais importante

    do complexo quebra-cabea geopoltico e geoeconmico do mundo

    atual. Isso se d pela crescente integrao dos pases da regio ao sis-tema produtivo organizado em torno da China e pela contraofensiva econmica e militar dos Estados Unidos para contrabalanar o peso

    do gigante chins naquela parte do mundo. Alm disso, o Sudeste

    Asitico frequenta o debate global sobre modelos de desenvolvimen-to, com prestgio ascendente depois do colapso do socialismo e da crise do chamado Consenso de Washington.

  • Ali, parece haver-se estruturado uma frmula estvel de cresci-

    mento econmico, progresso social e autoritarismo, em que o forta-

    lecimento do primeiro e segundo termos da equao no resulta em enfraquecimento do terceiro, contrariando a crena de que o desenvol-vimento econmico e social acarretaria inevitavelmente a liberaliza-

    o poltica dos regimes autoritrios. O mesmo se passa na China, em escala ampliada, onde reformas capitalistas graduais desencadearam um processo de crescimento econmico e mobilidade social ascenden-

    te sem paralelo na histria, sem que isso tenha colocado em xeque o re-gime de partido nico. Esse modelo (desenvolvimentista, autoritrio e eficiente) encontra adeptos em outros lugares no mundo, em especial

    entre governantes africanos que buscam os benefcios do crescimento sem os riscos sobretudo para eles da liberalizao poltica e econ-

    mica. Mesmo na Amrica Latina h quem veja o modelo com bons

    olhos, como contraponto, quando no uma alternativa, aos modelos ocidentais de capitalismo liberal-democrtico.

    As semelhanas entre os pases do Sudeste Asitico escondem, porm, realidades distintas, mesmo entre os que se desenvolvem sob

    regimes no democrticos. dessas realidades distintas que tratam os artigos de Martin Gainsborough, sobre Vietn, Camboja e Laos, e de Dan Slater, da Universidade de Chicago, sobre Malsia e Singapura.

    O primeiro grupo de pases foi palco de um dos mais prolongados conflitos do perodo da Guerra Fria, no qual se envolveram direta

    ou indiretamente Estados Unidos, Unio Sovitica e China. Desses

    conflitos resultou a implantao de regimes comunistas a partir da

    segunda metade da dcada de 1970. J Malsia e Singapura se man-

    tiveram relativamente margem da Guerra Fria porque suas elites locais, em aliana com os antigos colonizadores ingleses, consegui-ram fazer frente aos movimentos sociais e sindicais de esquerda j na primeira etapa da vida poltica ps-colonial. Criaram-se ali ditaduras

    capitalistas amparadas por Estados com grande capacidade no ape-nas de reprimir opositores, mas tambm de orquestrar o crescimento

    econmico e distribuir a renda.

  • Nos ltimos vinte anos, Vietn, Laos e Camboja seguiram os passos da China, introduzindo reformas econmicas sem alterar o

    regime poltico, ao passo que Malsia e Singapura caminharam len-tamente na direo de uma democracia com eleies mais disputa-das, embora estejam ainda muito aqum de uma real alternncia no

    poder. A existncia de um Estado com alta capacidade de gesto da economia e da sociedade e de uma classe mdia ampla e interessada

    em conservar os ganhos obtidos sob o autoritarismo faz Slater prever uma transio estvel de Malsia e Singapura em direo a regimes mais plenamente democrticos. Eles faro, acredita o autor, percurso semelhante ao realizado por Taiwan e Coreia do Sul a partir do final

    dos anos 80. J Gainsborough mais ctico em relao a uma transi-

    o democrtica no Vietn, Laos e Camboja, pases no apenas mais pobres que Malsia e Singapura, mas tambm com classes mdias

    mais dependentes do Estado. Nos prximos anos, mudanas polti-cas mais significativas nesses trs pases s ocorreriam, na viso do

    autor, se provocadas por mudanas maiores na China.

    Com um dossi sobre a Primavera rabe e outro sobre pases no democrticos do Sudeste Asitico, este segundo nmero segue as pegadas do primeiro. Reafirmamos, assim, a linha editorial de ofere-

    cer ao pblico de lngua portuguesa informao e anlise de qualida-de sobre processos polticos que esto moldando o mundo multipolar e ampliando o leque de desafios prticos e tericos organizao

    democrtica da vida social e poltica.

    Bernardo Sorj e Sergio FaustoDiretores de Plataforma Democrtica

  • *Publicado originalmente como The Languages of the Arab Revolutions, Journal of Democracy, Volume 23, Nmero 2, Abril de 2012 2012 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press. O texto original no est publicado na ntegra. Apenas a seo inicial e o primeiro pargrafo da seo A Questo a partir do ponto de vista da Legitimidade Poltica referentes ao colquio The Seymour Martin Lipset Lecture on Democracy in the World foram suprimidos, o que no altera o contedo da verso orginal.

    Dossi Primavera rabe

    As LinguAgens dAs RevoLues RAbes*

    Abdou Filali-Ansary

    Abdou Filali-Ansary professor do Instituto para o Estudo das Civi-lizaes Muulmanas da Universidade de Aga Khan, em Londres, na qual atuou como diretor-fundador de 2002 a 2009. Ele trabalhou como diretor-fundador da Fundao Rei Abdul-Aziz para Estudos Islmicos e Cincias Humanas em Casablanca, Marrocos, e como secretrio--geral da Universidade Mohammed V, em Rabat (198084), onde tam-bm foi professor de filosofia moderna. Em 1993, foi co-fundador da publicao bilngue rabe-francs Prologues: revue maghrbine du livre, da qual foi editor at 2005.

    A Questo a partir do ponto de vista da Legitimidade Poltica

    nas ltimas dcadas, as atenes dedicadas aos acontecimentos na regio rabe focaram principalmente o legado cultural, assumindo um tipo de continuidade entre passado e presente, uma persistn-cia de caractersticas fundamentais presentes em qualquer pas ou sociedade da regio. Tentativas de explicaes marxistas acerca do passado da regio, bem como debates sobre questes de desenvolvi-mento econmico foram deixadas de lado ou ignoradas at desapa- recerem. Desde o abrupto crescimento do islamismo, pode-se afir-

  • 2 Journal of Democracy em Portugus

    Journal of Democracy em Portugus Volume 1, Nmero 2, Outubro de 2012 2012 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press

    mar que toda a ateno tem sido direcionada ao legado religioso da regio e aos importantes efeitos que ele teria sobre o presente.

    Aqui, a abordagem sugerida por Lipset nos ajuda a separar pre-missas implcitas e incontrolveis que no podem ser provadas ou falseadas, e a focar no que podemos observar e interpretar. Ele come-a com uma definio esclarecedora:

    A legitimidade envolve a capacidade de um sistema poltico criar e manter a convico de que as instituies polticas existentes so as mais adequadas para a sociedade. A extenso da legitimidade dos sistemas polticos democrticos depende em larga medida dos mo-dos pelos quais foram resolvidas as questes que, historicamente, dividiram a sociedade 1.

    A legitimidade poltica assim compreendida se aplica a todas as sociedades, atravessando clivagens culturais e histricas, e traz tona suas histrias e sistemas de valores de forma a nos permitir estudar seus efeitos sobre o presente. Em outras palavras, agora, o que deveria importar para ns no o passado reconstitudo por acadmicos, mas a memria do passado que sobrevive na consci-ncia das pessoas, a qual d forma s suas atitudes nos desafios que

    enfrentam hoje.

    necessrio acrescentar, no entanto, que memrias no so est-veis. Elas variam significativamente entre pocas e lugares diferen-

    tes, e a maior parte das sociedades no ligada por uma narrativa

    nica sobre seus passados. Um bom exemplo disso pode ser encon-trado na histria recente do mundo rabe, onde aparentemente dois discursos diferentes surgiram ao mesmo tempo, muitas vezes interagindo e algumas vezes at interligados, permanecendo, porm,

    como duas vertentes claramente distintas. Um desses discursos des-taca o papel do Isl e de suas tradies religiosas, enfatizando a influ-

    ncia massiva do passado remoto sobre as sociedades rabes atuais. O outro geralmente chamado de Renascimento rabe ou Nahda surgiu no sculo XIX, unindo cristos, muulmanos e judeus que

  • Abdou Filali-Ansary 3

    falavam a lngua rabe e que sentiam pertencer a uma nica cul-tura e compartilhar as mesmas aspiraes para o futuro. O Nahda era secular por definio e convergente com ideais do Iluminismo

    europeu. Participaram dele personalidades brilhantes, como Rifaa al-Tahtawi, Butros al-Bustani e Khalil Gibran, que deram grandes

    contribuies literatura, histria e ao pensamento poltico e cuja influncia continua forte.

    Atualmente, os acadmicos que estudam a histria moderna das sociedades muulmanas geralmente focam ou a restaurao islmica ou o Nahda (na verdade, mais o primeiro), embora ambos tenham se

    desenvolvido na mesma poca e se engajado em um debate intenso

    e mtuo, destacando diferentes momentos ou aspectos do passado e oferecendo pontos de referncia distintos que as sociedades poderiam escolher para moldar o futuro. Muito frequentemente, pensadores e ativistas pertencentes a um dos dois movimentos adotaram e utili-zaram ideias, conceitos e categorias do outro. Embora a impresso que prevalea hoje seja a de que a opinio pblica rabe se mostrou a favor da corrente que se transformou no fundamentalismo islmico ou no islamismo, h provas claras de que os ideais do Nahda tambm

    continuam a exercer uma influncia profunda. Em outras palavras,

    tendemos a pensar atualmente que h dois campos separados, um de fundamentalistas e outro de secularistas. Entretanto, a realidade

    mais matizada e complexa.

    As provas disso so substanciais e bvias quando observamos os modos como as pessoas falam, pensam e agem em relao pol-tica. Roger Scruton, autor de um dicionrio popular de pensamento poltico, nos pede para considerar o que aprenderamos de tivs-

    semos de extrair, tanto do debate ativo quanto das teorias e das intuies que o cercam, as principais ideias pelas quais as crenas polticas modernas se expressam2. Algo que imediatamente cha-maria nossa ateno a variedade e o ineditismo dos conceitos que

    esto sendo usados pelos povos rabes atualmente para expressar suas frustraes e aspiraes. Ainda existem por toda parte slogans

  • 4 Journal of Democracy em Portugus

    que transmitem a impresso de que invocar momentos gloriosos do passado ou um retorno religio (ou a tradies relacionadas re-ligio) a nica alternativa aos males do presente. Provavelmente,

    os mais conhecidos desses slogans so Retorno sharia e O Isl a soluo. No entanto, junto a eles, existem diversos novos

    termos ou expresses. Conceitos que, aparentemente, no possuem origens rastreveis no legado islmico tornaram-se comuns, como,

    por exemplo, direitos humanos e democracia. Portanto, pode-se

    dizer que, embora continuem a surgir chamados para um retorno a abordagens baseadas no passado ou construdas com base na reli-gio, os impactos desses chamados podem ser sobrestimados, prin-cipalmente por observadores que consideram as palavras em seu sentido literal e buscam seus significados em dicionrios ao invs

    de procura-los em contextos e prticas.

    Como afirmou o historiador alemo do mundo muulmano Rei-

    nhard Schulze, um discurso com termos e smbolos islmicos pode estar menos relacionado religio do que a uma certa abordagem cujo objetivo chegar a um acordo com o mundo moderno. Em ou-

    tras palavras, noes religiosas so usadas para enfrentar o grande desafio dos conceitos modernos. Schulze faz a seguinte descrio da

    situao no incio do sculo XX:

    Ambos os tipos de discurso [isso , o islmico e o europeu] se co-

    municam com as sociedades islmicas e permitem um processo de traduo cultural. Isso significa que os termos e smbolos islmicos

    podem constantemente ser traduzidos em termos e smbolos euro-peus, e vice-versa. Isso permite a mudana do cdigo, ou seja, o uso

    de uma ou outra linguagem cultural da modernidade, dependendo do contexto. Portanto, partidos islamitas interpretaram os principais temas do pblico poltico europeu com vocabulrio prprio, o que deu a impresso a observadores de fora que tais partidos eram grupos religiosos. Mas, de fato, os discursos islmicos e europeus tornaram-se

    muito parecidos, e foram separados apenas pela nfase em novos pontos de referncia. Isso conferiu um impulso dinmico poltica

  • Abdou Filali-Ansary 5

    em pases islmicos. O recurso a uma linguagem islmica tambm

    aprimorou a conscincia de pertencimento a uma nica e mesma comunidade cultural3.

    Assim, a oposio aparentemente irredutvel entre discursos isl-micos e modernos observada atualmente reflete uma virada recente

    resultado de uma polarizao que, pode-se afirmar, nunca chegou a

    ser completa ou definitiva. Quem prestou ateno ao discurso rabe

    em perodos anteriores percebeu nele uma forma de acomodar os ideais modernos ao fundament-los ou encapsul-los em um arca-

    bouo de marcos islmicos familiares.

    A Primavera rabe revela que, enquanto essa forma de apro-priao se mostrou mal sucedida e recuou face a uma intensa po-larizao, uma onda inesperada tomou fora e produziu uma nova linguagem poltica. Isso pode ser observado na formao e na dis-seminao de novos conceitos, que alinhados aos ideais polticos modernos e, ao mesmo tempo, ajustados s condies de cada popu-lao local capturam as aspiraes e esperanas das novas geraes do mundo rabe.

    Em alguns casos, h equivalncia total entre os termos originados em outros lugares como, por exemplo, democracia, direitos hu-manos ou sociedade civil e os termos correspondentes em rabe (dimukratiya, huquq al-insan e mujtama madani, respectivamente) que se tornaram parte da lngua comum. Em outros casos, h ajus-tes ou criaes completamente novas, como imprio da lei, que

    se tornou dawlat al-haq wa al-qanun (um Estado circunscrito pela lei e que respeita os direitos) ou dawlat al-muassassat (literalmente, um Estado formado por instituies, em contrapartida a um Estado formado por e para governantes individuais).

    Vale enfatizar aqui o impacto crucial da imprensa escrita, amplia-do pelas estaes de TV via satlite, como, por exemplo, a al-Jazee-

    ra. O papel da internet e das mdias sociais de estimular e apoiar os movimentos de protesto de 2011 recebeu a devida ateno, mas em

  • 6 Journal of Democracy em Portugus

    relao ao longo processo que levou emergncia de uma nova lin-guagem poltica o papel decisivo foi o da imprensa escrita.

    Entretanto, muitas lnguas continuam sendo faladas ao mesmo tempo. Conceitos como sharia, jihad e ijtihad foram incorporados s lnguas europeias, sendo utilizados com conotaes especficas.

    Em contextos muulmanos, esses termos se referem a perspectivas bem arraigadas na memria coletiva; em alguns crculos, eles so usados para expressar expectativas concretas, como, por exemplo, sharia, que se refere a conjuntos particulares de prescries relacio-nadas s leis da famlia e a questes penais. O alarme que tais ter-mos causaram nos ocidentais so justificveis em alguns casos. Isso

    requer ateno redobrada s formas como memrias coletivas (ou a conscincia histrica, como estamos propondo que essas memrias coletivas sejam designadas) so sustentadas e moldadas pela educa-

    o moderna e pela mdia.

    Porm, o acontecimento mais significativo pode ser precisamente

    o que tem sido negligenciado pela maioria dos estudos sobre a regio: o surgimento de um novo conjunto de noes, frases e expresses que so modernas, locais e representativas de aspiraes populares. Essas frases e expresses novas influenciaro a forma como as mais

    antigas so compreendidas, e expandiro o discurso sobre as normas e os ideais que deveriam guiar as polticas pblicas.

    Atualmente, h no mundo rabe uma nova linguagem da poltica. Ela inclui no apenas tradues de conceitos familiares aos falantes de ingls, mas tambm outras formulaes de vises sobre direitos

    populares e aspiraes claramente modernas. O fato marcante que

    essa nova linguagem agora o discurso comum de todos os partidos, inclusive o dos islmicos. Seus termos, portanto, adquiriram status de padro universal utilizado para avaliar ou medir todas as questes, inclusive conceitos arraigados na tradio e na religio. Pode-se at

    afirmar que hoje as vises religiosas esto sendo sustentadas e justi-

    ficadas por meio das normas modernas.

  • Abdou Filali-Ansary 7

    Eu afirmaria que, devido em grande parte influncia dessa nova

    linguagem poltica, a legitimidade democrtica est se tornando a nica forma de legitimidade poltica aceitvel nas sociedades ra-bes. Mas, se essa anlise est correta, como podemos entender a per-sistncia de chamados a um retorno sharia e o endosso que tais chamados parecem receber quando rabes podem exercer seu direito democrtico de votar em eleies livres?

    A Sharia no Contexto das Revolues rabes

    Wael Hallaq, um dos mais proeminentes acadmicos contempor-neos que pesquisa a lei islmica, afirma:

    No h dvidas de que a lei islmica hoje a pedra angular na reafir-

    mao da identidade islmica, no apenas no mbito da lei positiva, mas tambm, e ainda mais importante do que isso, como a base de

    uma singularidade cultural. De fato, para muitos dos muulmanos hoje em dia, seguir a lei islmica no apenas uma questo legal,

    mas sim de natureza nitidamente psicolgica4.

    O escopo dessa afirmao precisa ser considerado luz das obser-

    vaes que fizemos anteriormente sobre o surgimento de novos mo-

    delos de expresso da opinio pblica. Ele tambm reducionista ao

    tratar a piedade pessoal, a qual bastante evidente entre aqueles que

    buscam obedincia sharia em suas vidas e uma forte inclinao para muitos indivduos em todas as sociedades, como um fenmeno

    puramente psicolgico. No entanto, embora a afirmao de Hallaq

    seja exagerada, ela captura as impresses que prevalecem hoje em dia entre aqueles que estudam o mundo rabe.

    Para entender como memrias do passado moldam atitudes do presente em relao sharia, devemos prestar ateno forma como se desdobrou a histria dos muulmanos. Aps as divises que se se-guiram morte de Maom em 632 e.c., a ordem poltica que estabili-

    zou e persistiu por sculos na maior parte dos contextos muulmanos

    estava longe de um despotismo sem limites. Ao mesmo tempo, no

  • 8 Journal of Democracy em Portugus

    entanto, ela tambm estava longe dos conceitos de poder coletivo,

    compartilhado ou distribudo a que geraes antigas de muulmanos haviam aspirado e que havia sido santificado pela autoridade religio-

    sa amplamente aceita. Tendo ficado claro que o sistema islmico de

    poder inteiramente legtimo no poderia ser mantido ou restaurado, a maioria dos muulmanos estabeleceu um objetivo menos ambicioso: a aceitao dos governantes de facto, contanto que eles se compro-metessem a obedecer e a aplicar a lei, compreendida como o corpo de prescries elaboradas por acadmicos independentes do Estado a partir das escrituras sagradas. Nas palavras de Noah Feldman:

    Em sua essncia, a sharia pretende ser a lei aplicvel igualmente a to-dos os seres humanos, grandes ou pequenos, governantes ou governa-dos. Ningum est acima dela, e todos esto o tempo todo conectados

    por ela. Embora a estrutura constitucional desenvolvida historicamente para implementar a sharia tenha garantido a flexibilidade necessria inovao e a um governo eficaz, tal estrutura tambm manteve o ideal

    de legalidade. Nesse sentido, juzes devotos sharia so, portanto, devotos ao imprio da lei, e no ao imprio do Estado. A legitimidade

    de um Estado cujos representantes acatam essa estrutura de crenas dependeria de sua fidelidade em implementar a lei5.

    Tal disposio de fato protegeu o povo contra a arbitrariedade dos governantes e permitiu a ele viver a vida de acordo com os regulamentos considerados em conformidade com a vontade de Deus. Isso deixou consequncias duradouras, principalmente uma conscincia tica fortemente arraigada entre muulmanos que ul-

    trapassou as fileiras daqueles motivados por sentimentos de pie-

    dade pessoal ou por um compromisso com o que ficou conhecido

    como uma ordem islmica.

    Vale enfatizar tambm que chamados a um retorno sharia no possuem o mesmo significado em todas as situaes. Em alguns ca-

    sos, eles transmitem claramente uma aspirao moralizao da vida pblica. Em crculos populares, onde o analfabetismo ainda prevale-ce, bem como entre aqueles cuja educao baseou-se em habilidades

  • Abdou Filali-Ansary 9

    cientficas e tcnicas, com pouca abertura s humanidades, formu-

    laes religiosas tradicionais permanecem como a forma de expres-sar um desejo para o que seria descrito no Ocidente como decoro bsico (a ausncia de abuso exagerado de poder, de corrupo gene-ralizada ou de cinismo geral).

    isso que confere significado e fora a slogans como O Isl

    a soluo e que explica o sucesso de islamitas em tantos lugares. Aps permanecerem na oposio por tanto tempo, reprimidos e re-jeitados pelas elites governantes, eles encontraram palavras para ex-pressar o desgosto difundido pelo mau comportamento daqueles no poder, palavras que ressoam com pedidos populares de um retorno s regras bsicas da decncia. Os islamitas esto colhendo os frutos de falar com e para as pessoas em uma lngua que elas entendem.

    Ao mesmo tempo, no entanto, isso pode levar a diversos equvo-cos, como pode ser observado em tendncias e reviravoltas recen-tes. A sharia venerada pelas camadas populares, pois, alm de se referir ideia de ordem moral, possui o prestgio de um sistema que por muito tempo ajudou a proteger comunidades da arbitrariedade e do abuso de dspotas. A sharia ofereceu meios para refrear os ds-potas, pois invocava um imprio da lei absoluto e divino (uma lei

    conferida por Deus, que est alm do alcance do homem, inclusive

    dos ricos e poderosos).

    Entretanto, o absolutismo da sharia s vezes transferido de seus princpios a suas prescries, da regra geral que sustenta o im-prio da lei a regras particulares formuladas e implementadas por

    meio de interpretaes de contextos especficos. Essas regras so

    extradas de seus contextos sociais e histricos e utilizadas como elementos de um sistema jurdico moderno. Essa forma de codifi-

    cao da sharia teve incio no sculo XIX, e muitas vezes incluiu provises especficas de direito de famlia que discriminam mulheres

    ou punies severas totalmente inaceitveis luz dos princpios ti-

    cos modernos. Tais punies eram raramente implementadas, exceto quando dspotas pretendiam passar mensagens fortes s populaes

  • 10 Journal of Democracy em Portugus

    rebeldes. Mas, hoje, elas so consideradas caractersticas fundamen-tais da sharia por secularistas de mentalidade estreita.

    Como expus anteriormente, acredito que conceitos modernos da legitimidade poltica, formulados no que chamo de nova linguagem poltica dos muulmanos, devero prevalecer em debates polticos futuros. No entanto, muito cedo para excluir o risco apresentado

    pelas vises mais rgidas que consideram a sharia como um ca-tlogo de prescries, muitas das quais so incompatveis com o senso moral adquirido pelos seres humanos de diferentes culturas. Tais vises obtm sua resilincia contnua de uma educao religiosa tradicional acrtica e de mente fechada.

    A Poltica Weltanschauung Retornar?

    No devemos esquecer que processos de democratizao so fa-cilitados por combinaes de fatores (ou pr-requisitos), e que es-

    ses processos continuam ameaados por condies adversas mesmo quando tais pr-requisitos esto presentes. O extremismo aparece de

    formas variadas, algumas das quais so aceitas mais facilmente do que outras. Lipset afirma:

    A poltica Weltanschauung tambm mitigou as possibilidades de uma democracia estvel, j que partidos caracterizados por essas ideologias totalitrias tentaram com frequncia criar o que Sigmund Neumann designou como um ambiente integrado, um ambiente em que o mximo possvel das vidas de seus membros est encap-sulado por atividades ideologicamente relacionadas. Essas aes so baseadas na premissa de que importante isolar seus seguidores da

    falsidade expressa pelos que no creem nelas6.

    O que impediu a maioria dos pases europeus do incio do sculo

    XX de aderir democracia? Pode-se apontar, com poucas chances de

    erro, para o que Lipset chamou de poltica Weltanschauung (do-ravante PW), que na Europa assumiu as formas do fascismo, do

    comunismo e de nacionalismos diversos. Movimentos pertencentes a

  • Abdou Filali-Ansary 11

    essa categoria mantiveram forte controle do poder em alguns pases por dcadas, e no foram completamente superados at 1989, o ano

    da queda do Muro de Berlim, o que abriu os caminhos para o fim real

    e talvez definitivo da PW na Europa.

    No mundo rabe, a PW surgiu logo aps a criao dos Estados modernos. Ela tomou a forma de regimes nacionalistas (dos quais as variantes do bahasmo eram as mais violentas), que prevaleceram

    em muitos pases rabes, muitas vezes combinados a um compro-misso declarado com o socialismo7. As monarquias que restaram na regio foram poupadas desse destino, mas em muitos casos sofre-ram outra forma de extremismo, resultante do desencadeamento de foras tribais ou ultra-tradicionalistas. Agora, no entanto, a PW est

    arrefecendo na regio e as pessoas esto comeando a ter direito a se expressar na poltica, usando diferentes linguagens simultane-amente: uma delas a da sharia, compreendida como um quadro tico, uma linguagem de referncias morais compreensveis para a

    maioria da populao; outra uma nova linguagem moderna que,

    como j descrevemos, deixou sua marca no cenrio poltico.

    Deveramos apelar a um forte contraste e a uma clara distino entre essas duas formas de debater ideais polticos e polticas para evitar a ambiguidade e o risco que isso traz? Teoricamente, e de um ponto de vista puramente intelectual, nada que no seja completa-mente transparente deveria ser aceito. Na prtica, entretanto, quan-do a maioria da populao escolhe, por meio de um processo de-mocrtico, manter em sua constituio uma referencia sharia ou ao Isl, a vontade popular no deve ser aceita? Sabemos que, para aqueles educados aos moldes tradicionais, o conceito de imprio da

    lei equiparado supremacia da sharia, compreendida no como um catlogo de prescries especficas, mas sim como um arcabouo

    para a implementao de normas morais na ordem poltica e social.

    Dado que a sharia um tipo de bandeira um smbolo de iden-tidade e uma forma de expressar valores morais e a necessidade de

  • 12 Journal of Democracy em Portugus

    sustent-los na prtica poltica mais ou menos como a monarquia

    britnica considerada um smbolo de uma identidade especfica e

    de apego a estimadas tradies, no h motivos para se opor von-tade da maioria. Nenhuma democracia pode se desenvolver rejeitan-do as formas como foram solucionadas as principais questes que historicamente dividiram a sociedade. Uma abordagem meramen-te secularista, seguindo o modelo francs da lacit, pode por si s tornar-se uma forma de PW se imposta ao povo como uma ideologia

    externa. De fato, foi isso o que ocorreu na Sria sob o regime bahas-ta, que hoje revela seu verdadeiro carter desprezvel.

    Ao mesmo tempo, devemos continuar prevenidos contra a volta da PW pelo outro lado do espectro ideolgico, ou seja, pela forma de uma insistncia em restaurar o sistema islmico como se imagi-na que ele tenha sido no passado e pela implementao da sharia como um catlogo de prescries. Sabemos que tais conceitos derivam da ignorncia disfarada no traje de estudos religiosos islmicos, e hoje so sustentados principalmente por monarquias retrgradas. O perigo aqui vem de um gnero de pseudo-aprendi-

    zado, uma variedade de abordagens que usam a apologtica como

    forma de glorificar seu prprio legado em vez de explor-lo de for-

    ma honesta e acadmica.

    Devemos enfatizar que, no curto prazo, a melhor forma de enfren-tar o surgimento de tais atitudes deve incluir a aceitao de lderes polticos que sejam capazes de alcanar as sensibilidades morais de seus cidados ao abordar suas preocupaes em uma linguagem que possa ser compreendida por eles. No mdio e no longo prazo, porm,

    deve-se priorizar uma educao que ajude as pessoas a aprender so-

    bre seu legado religioso de forma a respeitar sua inteligncia ao invs

    de se beneficiar da falta de uma base slida de conhecimentos.

    Em concluso, parece que, agora, estamos em um momento em que grandes camadas das sociedades rabes (principalmente nos pa-ses em desenvolvimento) atingiram um grau de desencanto real com

    utopias, e a impresso de que esto prontas para outras formas de

  • Abdou Filali-Ansary 13

    participao poltica. Essa a grande notcia da Primavera rabe,

    e talvez sua lio mais importante. Essa convico de que h alter-nativas aos tipos de regimes que por tanto tempo se impuseram s sociedades rabes que a vida sob essa ou aquela forma de ditadura e poder incontrolvel no precisa ser o destino dos rabes parece ter tomado conta da imaginao coletiva. A abertura da conscincia histrica dos povos rabes aos ideais, modelos e experincias demo-crticas que emergiram em tempos modernos se tornou uma possi-bilidade distinta. Isso evidente para qualquer um que oua atenta-mente ao que as pessoas esto dizendo e pedindo.

    Mas a notcia dessas mudanas favorveis no curso dos eventos no deve nos fazer baixar a guarda. O debate continua, e apoiado-res da democracia ainda devem enfrentar grandes desafios. Slogans

    utpicos pedindo a restaurao da sharia como uma lista de pres-cries severas utilizadas h muitos sculos ainda atraem seguidores

    principalmente entre as muitas pessoas que no veem claramente a distino entre a sharia como uma determinao geral para promo-ver o imprio da lei e a sharia como a implementao de provises legais especficas.

    Nos confrontamos aqui com interpretaes equivocadas do lega-do islmico que no encontram apoio em uma avaliao histrica detalhada do desenvolvimento das sociedades muulmanas. As in-terpretaes equivocadas ganham alguma autoridade pelo apoio que recebem de estudos tradicionais que se recusam a aceitar qualquer forma de autocrtica. O outro aspecto de seu apelo vem do senti-mento, ainda arraigado em algumas camadas sociais, de que apenas o pleno retorno ao legado religioso pode ajudar a moralizar a ordem pblica. Sero necessrios esclarecimentos para disseminar um bom entendimento do passado e encontrar formas adequadas de aprender com ele. Esse processo pode se beneficiar do fato incontestvel de

    que a sociedade tomou conhecimento da fraqueza do despotismo e da possibilidade de encontrar e implementar alternativas teis que ofeream dignidade e esperana s massas.

  • 14 Journal of Democracy em Portugus

    Nestas pginas, em 1996, comentando um artigo de Robin Wright

    que discutia as duas vises da reforma islmica, a de Rachid Ghan-nouchi (o atual lder do partido Ennahda [ou Al-Nahda] na Tunsia)

    e do pensador iraniano exilado Abdul Karim Soroush, cheguei se-

    guinte concluso:

    H vozes, como a de Ghannouchi, que pedem o retorno da consti-tuio implcita que o Isl teria fornecido (e que pode no se opor democracia, ou que pode at encontrar nela uma boa expresso de

    algumas exigncias do Isl). Geralmente, esses chamados so para

    resistir ocidentalizao e para retomar a constituio islmica original (e nunca implementada por inteiro) por meio de uma refor-

    ma geral que normalmente envolve a moralizao de questes p-blicas e de relaes polticas e sociais. Apelos como esse so uma reminiscncia do reflexo natural e cclico da busca por uma verso

    purificada e mais convincente do Isl do que a observada pelo histo-

    riador rabe do sculo XIV Ibn Khaldun em sociedades muulmanas

    quando governantes ultrapassavam o limite do tolervel. Devido sua sinceridade e eficiente influncia sobre as massas, tais apelos

    surgem de atitudes que esto presas ao passado. De forma alguma eles podem levar real democratizao da sociedade 8.

    Hoje, eu mudaria essa avaliao. Ao escolher Seymour Martin Lipset como guia, reconheo a necessidade de reavaliar concluses antigas. Eu insistiria que pensadores como Soroush, Fazlur Rahman, Abdelmajid Charfi e muitos outros so necessrios para que se possa

    oferecer aos muulmanos uma educao que os permita recuperar uma conscincia histrica saudvel e, com ela, uma religiosidade centrada no indivduo e em sua perspectiva tica. Mas, nos dias de

    hoje, eu concordaria tambm que personalidades como Ghannouchi

    so importantes para facilitar a transio do despotismo ao governo constitucional. Considerando-se que o governo da Tunsia muito

    antes da Primavera rabe j havia implementado reformas que im-pedem qualquer recurso a interpretaes estreitas da sharia, Ghan-nouchi ter de encontrar meios de adaptar seu islamismo a leis, re-

  • Abdou Filali-Ansary 15

    gulamentos e procedimentos de um Estado moderno tudo isso sob o olhar atento das elites e dos cidados bem-educados que mostraram

    saber se livrar de dspotas.

    Como Lipset nos lembra, No se conquista a democracia apenas com atos; mas a vontade dos homens, por meio da ao, pode mol-dar instituies e acontecimentos de forma a reduzir ou a aumentar as chances de desenvolvimento e de sobrevivncia da democracia9. Os desafios enfrentados pelas sociedades rabes que aspiram ao

    autogoverno democrtico e ao imprio da lei (incluindo o respeito

    pelos direitos humanos) deveriam ser abordados de forma positiva

    em relao formao de instituies e aos processos de determina-o das aes do Estado e no buscando lutas quixotescas contra slogans e utopias.

    At mesmo as futuras lutas sobre o papel da sharia podem e devem ocorrer nas arenas da educao das massas e da poltica de-mocrtica. Entretanto, como essas lutas dirias continuam, tambm

    fundamental que pensadores e acadmicos crticos busquem esclare-cer os diversos significados que a sharia teve no passado e explorem como ela pode ser interpretada de forma a satisfazer as necessidades e aspiraes dos cidados modernos.

    noTAs

    1. Lipset, Some Social Requisites of Democracy, 86.

    2. Roger Scruton, Prefcio Terceira Edio, Palgrave Macmillan Dictionary of Political Thought, 3rd ed. (Londres: Palgrave Macmillan, 2007), xii.

    3. Reinhard Schulze, A Modern History of the Islamic World (Londres: I.B. Tau-ris, 2002), 10.

    4. Wael B. Hallaq, The Origins and Evolution of Islamic Law (Cambridge: Cam-bridge University Press, 2005), 1.

    5. Noah Feldman, The Fall and Rise of the Islamic State (Princeton: Princeton University Press, 2008), 149.

    6. Lipset, Some Social Requisites of Democracy, 94.

  • 16 Journal of Democracy em Portugus

    7. O Lbano a nica exceo aqui, dado que foi projetado para ser e permane-cer como um mosaico de comunidades fechadas.

    8. Abdou Filali-Ansary, Islam and Liberal Democracy: The Challenge of Secu-larizaltion, Journal of Democracy 7 (abril de 1996): 7980.

    9. Lipset, Some Social Requisites of Democracy, 103.

  • *Publicado originalmente como Why Are There No Arab Democracies?, Journal of Democracy, Volume 21, Nmero 1, Janeiro de 2010 2010 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press

    Dossi Primavera rabe

    Por que no h DemocrAciAs rAbes?*

    Larry Diamond

    Larry Diamond pesquisador snior do Instituto Hoover e do Instituto Freeman Spogli da Universidade de Stanford e diretor do Centro de Stanford para a Democracia, o Desenvolvimento e o Es-tado de Direito. Entre suas principais obras, est The Spirit of Democracy: The Struggle to Build Free Societies Throughout the World (2008) (O Esprito da Democracia: A Luta para Cons-truir Sociedades Livres pelo Mundo, em traduo livre). Ele coeditor fundador do Journal of Democracy.

    Durante a terceira onda de democratizao, a democracia deixou de ser um fenmeno primordialmente ocidental e tornou-se global.

    Quando a terceira onda comeou em 1974, havia apenas cerca de 40

    democracias no mundo, sendo que poucas estavam fora do Ocidente. Quando o Journal of Democracy comeou a ser publicado em 1990, existiam 76 democracias eleitorais (o que representava pouco menos da

    metade dos Estados independentes do mundo). Em 1995, esse nmero

    pulou para 117 trs em cada cinco Estados. Nessa poca, havia uma

    massa crtica de democracias em todas as principais regies do mundo, com exceo de uma o Oriente Mdio1. Alm disso, cada um dos prin-

    cipais centros culturais do mundo tornou-se anfitrio de uma significa-

    tiva presena democrtica, embora novamente com uma nica exceo o mundo rabe2. Quinze anos depois, essa exceo ainda existe.

  • 18 Journal of Democracy em Portugus

    Journal of Democracy em Portugus Volume 1, Nmero 2, Outubro de 2012 2012 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press

    A ausncia contnua de um regime democrtico no mundo rabe

    uma anomalia notvel a principal exceo globalizao da demo-cracia. Por que no h uma democracia rabe? De fato, por que, entre os 16 Estados rabes independentes do Oriente Mdio e da costa da

    frica do Norte, o Lbano o nico que j foi uma democracia?

    A suposio mais comum sobre a ausncia de uma democracia rabe que isso est relacionado religio ou cultura. Afinal, o

    nico aspecto que os pases rabes compartilham o fato de serem

    rabes. Eles falam a mesma lngua (ou pelo menos compartilham a lingua franca do rabe clssico), e acredita-se que existam cren-as culturais, estruturas e prticas mais ou menos comuns a todos os pases da regio. Alm disso, eles compartilham a mesma reli-

    gio predominante, o Isl embora, no Lbano, historicamente, cerca de metade da populao seja crist (atualmente, esse nmero inferior a isso) e outros locais, como o Egito, tambm possuam

    significativas minorias crists. Mas, como irei demonstrar, nem a

    cultura, nem a religio oferecem uma explicao convincente para a inexistncia de uma democracia rabe. Talvez pases como o Egi-to, a Jordnia, o Marrocos e o Imen no sejam democracias por ainda no serem economicamente desenvolvidos. No entanto, esse argumento no se sustenta quando se compara os nveis de desen-volvimento dos pases rabes e no-rabes, como farei de modo

    resumido. Talvez os efeitos sociopolticos perversos de ser um pas to abundante em reservas petroqumicas (a chamada maldio do petrleo) seja o motivo; mas como que esses efeitos explicam a

    falta de democracia nos pases que no so ricos em petrleo, como o Egito, a Jordnia, o Marrocos e a Tunsia?

    Como explicarei, responder o enigma da ausncia de democracia rabe envolve economia poltica, bem como geopoltica. E isso exi-ge uma anlise das estruturas polticas internas dos Estados rabes. Mas, primeiro, necessrio eliminar pressupostos incapazes de re-

    sistir ao teste das evidncias.

  • Larry Diamond 19

    religio e cultura

    Como Alfred Stepan e Graeme Robertson demonstraram nestas pginas, h uma grande lacuna democrtica entre os pases do mundo, mas trata-se de uma lacuna muito mais rabe do que mu-

    ulmana. Ao comparar os 16 pases de maioria muulmana que so

    predominantemente rabes com outros 29 pases de maioria muul-

    mana, Stepan e Robertson encontraram entre esses ltimos um n-mero de pases (incluindo Albnia, Bangladesh, Malsia, Senegal e Turquia) com registros significativos de concesso de direitos polti-

    cos democrticos aos seus cidados. Entre os pases rabes, o nico a se alinhar a essa descrio o Lbano anterior guerra civil que

    comeou em 1975. Alm disso, considerando-se o nvel de direitos

    polticos que se poderia prever a partir do nvel de renda per capita, eles encontraram diversos casos com desempenho eleitoral acima da mdia entre os Estados de maioria muulmana que no so pre-

    dominantemente rabes, e nenhum entre os estados rabes3.

    Minha mais profunda e recente anlise revela os seguintes pon-tos adicionais. Em primeiro lugar, se perguntarmos se regimes atendem ao teste mnimo de democracia eleitoral (eleies livres e justas para determinar quem governa), ento h, hoje, oito Esta-

    dos no-rabes de maioria muulmana classificados pela Freedom

    House como democracias, e nenhum Estado rabe4. Em segundo lugar, h uma vasta lacuna de liberdade entre os Estados de maio-ria muulmana rabes e no-rabes. No fim de 2008, os 16 Estados rabes do Oriente Mdio registraram uma pontuao mdia entre as

    duas escalas da Freedom House de 5,53 (a pior possvel sete, que

    indica menos livre). Os outros 30 Estados de maioria muulma-

    na tiveram uma pontuao mdia de liberdade de 4,75. A diferena entre dois grupos como esses de quase um ponto em uma escala de sete pontos significativa. Alm disso, enquanto 11 dos pases no-

    -rabes (cerca de um tero) esto no ponto mdio (4) ou em uma

    colocao melhor do que essa na escala mdia da liberdade, entre

  • 20 Journal of Democracy em Portugus

    os Estados rabes apenas o Kuwait apresenta uma pontuao to boa quanto essa.

    E em relao cultura, o que dizer? Pode-se argumentar, como

    o fez em 1992 o falecido historiador britnico Elie Kedourie, que

    no h nada nas tradies polticas do mundo rabe que so as tradies polticas do Isl capaz de tornar familiares, ou mesmo inteligveis, as ideias organizadoras de governo constitucional e representativo6. Mas, fora do mundo rabe, diversos pases com tradies polticas muulmanas tiveram experincias significativas

    com a democracia. E mesmo que se omitisse a equao de Kedourie sobre as tradies polticas rabes e islmicas, ainda seria preciso explicar por que as ideias organizadoras alheias da democracia moderna ganharam fora em uma srie de pases da frica e da sia

    nos quais no havia precedentes para elas, mas no o fizeram no

    mundo rabe. Se o problema, como postulado por Kedourie, que

    os pases rabes esto habituados [...] autocracia e obedincia passiva, por que isso permaneceu como um obstculo intranspon-vel no mundo rabe, embora no tenha impedido a democratizao em grandes reas do resto do mundo que outrora tambm conhece-

    ram apenas a dominao autoritria?

    Tambm possvel argumentar e assim tem sido feito em rela-

    o ao Iraque e ao Lbano que as divises sectrias e tnicas so

    profundas demais para permitir a democracia nesses pases. No en-tanto, o Iraque e o Lbano com todas as suas divises rebeldes e polarizadas so, hoje, os dois pases rabes mais prximos a uma completa democracia eleitoral, enquanto dois dos pases mais homo-gneos o Egito e a Tunsia so tambm dois dos mais autoritrios.

    Na verdade, as diferenas tnicas ou religiosas dificilmente represen-

    tam um obstculo mais grave para a democracia no mundo rabe do que em pases como Gana, ndia, Indonsia e frica do Sul. Nova-

    mente, algo mais deve estar ocorrendo.

    Talvez seja porque as populaes rabes simplesmente no quei-ram ou no valorizem a democracia eleitoral da mesma forma que os

  • Larry Diamond 21

    pblicos de massa de outras regies do mundo passaram a desejar e valorizar essa forma de autogoverno7. Mas, ento, como entender as significativas parcelas de populaes rabes bem mais de 80% na

    Arglia, na Jordnia, no Kuwait, no Marrocos, na Autoridade Pales-

    tina e at mesmo no Iraque que concordam que, apesar de seus

    inconvenientes, a democracia o melhor sistema de governo e que

    um sistema democrtico seria bom para o nosso pas8? O apoio democracia no apenas bastante amplo no mundo rabe; ele tam-

    bm no varia de acordo com o nvel de religiosidade. Na verdade,

    os muulmanos mais religiosos so to propensos quanto aqueles menos religiosos a acreditar que a democracia, apesar de seus incon-venientes, o melhor sistema poltico9. Repare como os iraquianos votaram trs vezes em 2005, em meio a riscos generalizados e ter-rveis para sua segurana fsica. Fica difcil concluir que os rabes no se preocupam com a democracia. Por outro lado, quando as eleies (como no Egito) oferecem pouca escolha significativa ou

    nas quais (como no Marrocos) so de pouca importncia na deter-

    minao de quem realmente vai governar, no de se estranhar que

    a maioria das pessoas se desiluda e opte por no votar.

    Apesar dos dados agregados sobre o apoio rabe democracia, existe uma histria mais complexa. Em cinco pases pesquisados entre 2003 e 2006 pelo Barmetro rabe, 56% dos entrevistados

    concordaram que os homens da religio devem ter influncia sobre

    as decises do governo10. Um levantamento feito em 2003 e 2004 tambm apurou que metade ou mais de quatro populaes rabes

    concordavam que o governo deveria implementar como lei nada mais do que a sharia islmica. Quando o apoio democracia e o apoio a algum tipo de forma islmica de governo so comparados entre si, o padro geral algo como: 40% a 45% de cada pblico

    apoia a democracia secular, enquanto aproximadamente a mesma proporo apoia uma forma islmica da democracia; enquanto isso,

    de 5% a 10% do pblico apoia o autoritarismo secular e a mesma

    proporo apoia o autoritarismo islmico11.

  • 22 Journal of Democracy em Portugus

    Aqui, onde a religio e as atitudes revelam-se como fatores

    significativos. Com base nos dados atuais do Barmetro rabe, no

    sabemos ainda entre aqueles que optam pela democracia e pela influncia islmica sobre o governo qual a proporo que interpreta

    a democracia no apenas como uma regra fundamental da maioria, mas tambm como algo que inclui os direitos de minorias incluindo

    o direito da minoria de tentar se tornar a maioria na eleio seguinte. Os dados analisados por Amaney Jamal e Mark Tessler sugerem que as posies dos defensores da democracia secular variam pouco em relao s de seus compatriotas que apoiam a democracia islmica quando se trata de valores democrticos, tais como abertura, tole-rncia e igualdade, com a diferena de que os democratas seculares parecem ligeiramente mais liberais quando se trata de tolerncia ra-cial e dos direitos das mulheres. Jamal e Tessler concluem que os rabes valorizam a democracia mesmo que a preocupao deles com a estabilidade os leve a querer que ela seja implementada gradu-almente e que nem a poltica religiosa, nem a religiosidade pessoal representam um grande obstculo democracia.

    Mas um problema ainda persiste. Entre os democratas seculares do mundo rabe esto intelectuais liberais da classe mdia, profissio-

    nais e empresrios que tm pressionado pela democracia em outros lugares do mundo. Muitos desses democratas seculares (alguns dos quais tambm so membros de minorias religiosas ou tnicas) no

    esto examinando de modo minucioso, a partir dos dados do Bar-

    metro rabe, em que acreditam os seus concidados. Em vez dis-so, eles imaginam qual seria a alternativa poltica subsequente ao regime autoritrio que desaprovam. Eles temem que essa alternativa no seja uma verso islmica atenuada de uma democracia decidida-mente constitucional, mas sim um regime dominado pela Irmandade Muulmana egpcia, pela jordaniana Frente de Ao Islmica ou por alguma outra fora poltica islamita radical e antidemocrtica uma hegemonia nova e mais ameaadora. Alm disso, eles temem que

    essa alternativa islmica produza a frmula uma pessoa, um voto,

  • Larry Diamond 23

    uma vez antes de desvirtuar uma revoluo eleitoral democrtica, assim como o fez o aiatol Khomeini com a Revoluo Iraniana em 1979. Ou temem que um esforo de ltima hora para impedir uma

    situao como essa mergulhe o pas no terrvel cenrio da Arglia de

    1991, quando o exrcito tomou o controle para impedir que a Frente

    Islmica de Salvao vencesse as eleies nacionais, desencadeando uma guerra civil de quase uma dcada de durao que custou prova-

    velmente cerca de 150.000 vidas. No preciso justificar a escolha

    feita pelas elites polticas e militares da Arglia poca e nos anos

    brutais que se seguiram para reconhecer o obstculo democrati-zao representado pelo medo de um islamismo radical como a al-ternativa espera nos bastidores no caso de um colapso do regime. Nas ltimas dcadas, houve apenas um paralelo em outros lugares:

    o medo de uma virada eleitoral radical de esquerda ou comunista. No coincidncia que nesses pases (na Amrica Latina e na fri-

    ca do Sul), onde esse medo tomou conta de governantes autoritrios

    e de alguns de seus adversrios liberais as elites tenham se mostra-do dispostas a negociar transies para a democracia apenas quando a perspectiva de conquista do poder pela esquerda antidemocrtica havia se dissipado como resultado de uma represso brutal ou do fim

    da Guerra Fria.

    Desenvolvimento econmico e estrutura social

    Como Seymour Martin Lipset afirmou h cinquenta anos, quanto

    mais rico for um pas, melhores sero suas perspectivas de ganhar e manter a democracia, e isso vale at hoje. Atualmente, no entanto,

    muitos pases rabes esto em uma tima situao. Se compararmos os nveis de renda per capita (de 2007, em paridade do poder de

    compra em dlares), o Kuwait quase to rico como a Noruega; o

    Bahrein est no mesmo nvel da Frana; a Arbia Saudita, da Coreia;

    o Om, de Portugal; e o Lbano, da Costa Rica. Apenas o Egito, a

    Jordnia, o Marrocos, a Sria e o Imen ficam na ponta inferior, mas

    ainda assim esses pases no so mais pobres em termos per capita

  • 24 Journal of Democracy em Portugus

    do que a ndia ou a Indonsia, onde a democracia funciona, apesar da

    falta de uma prosperidade ampla.

    claro que os dados de renda per capita podem enganar. A distri-buio de renda pode ser extremamente desigual e o no mundo

    rabe. Alm disso, os pases produtores de petrleo parecem ser mui-

    to mais desenvolvidos do que realmente so. A maioria deles clas-

    sificada muito abaixo na categoria desenvolvimento humano do

    que em renda per capita (a Arbia Saudita est 31 lugares abaixo e a Arglia, 19). Ainda assim, quando olhamos para os nveis de desen-

    volvimento humano (que levam em conta educao e sade), os pa-

    ses produtores de petrleo mais ricos esto no mnimo nos mesmos nveis de Portugal e Hungria, enquanto a Arbia Saudita se equipara Bulgria e ao Panam. Em relao aos Estados rabes que no ex-portam ou exportam pouco petrleo, vemos que o Egito equipara-se

    Indonsia, enquanto o Marrocos equipara-se frica do Sul. Em

    outras palavras, pode-se encontrar, em qualquer nvel de desenvol-

    vimento e por qualquer medida, diversas democracias que so to desenvolvidas quanto as respectivas no-democracias rabes.

    Se o problema no o nvel econmico, talvez seja a estrutura

    da economia. Dos 16 pases rabes, 11 so Estados rentistas no

    sentido de dependerem fortemente da renda do petrleo e do gs (ba-sicamente, ganhos espontneos) para se sustentar. Esses 11 estados

    obtm do petrleo e do gs mais de 70% (em alguns casos, mais de

    90%) de suas receitas de exportao. A maioria tem tanto dinheiro

    que no precisa tributar seus prprios cidados. E isso parte do pro-

    blema eles no conseguem desenvolver nem expectativas internas de prestao de contas, nem de responsividade e de responsabiliza-o dos governantes (accountability) que surgem quando os Estados cobram impostos dos cidados. Como Samuel P. Huntington obser-vou em The Third Wave:

    As receitas do petrleo vo para o Estado: elas aumentam, portan-to, o poder da burocracia estatal e, porque reduzem ou eliminam a

  • Larry Diamond 25

    necessidade de tributao, tambm reduzem a necessidade de o go-

    verno solicitar a aquiescncia de seus cidados tributao. Quan-to menor o nvel de tributao, menos razo para o pblico exigir representao. Nenhuma tributao sem representao foi uma demanda poltica; nenhuma representao sem tributao uma

    realidade poltica12.

    mais pujante a maldio do petrleo do que o fato de um Estado ser grande ou de seus cidados serem apticos. Pases produtores de petrleo no so apenas grandes eles tambm so fortemente cen-

    tralizados, uma vez que a riqueza do petrleo revertida para o Esta-

    do central. Alm disso, normalmente, eles so altamente policiados,

    pois h muito dinheiro para se esbanjar em um enorme e ativo apa-relho de segurana estatal. Eles so profundamente corruptos, por-que o dinheiro flui para os cofres estatais como renda, e realmente

    um dinheiro de ningum (certamente, o dinheiro de impostos de

    ningum), e, portanto no sentido de uma normativa deformada ,

    livre para o uso. Nesses sistemas, o Estado grande, centralizado

    e repressivo. Ele pode apoiar qualquer nmero de burocracias in-chadas, assim como programas de empregos de facto destinados a comprar a paz poltica com salrios do governo. A sociedade civil

    fraca e cooptada. E o que se passa economia de mercado est muito distorcido. O verdadeiro empreendedorismo pouco evidente, uma

    vez que a maioria das pessoas de negcios trabalha para o Estado ou para o setor petrolfero, ou alimenta-se de contratos com o gover-

    no ou representa empresas estrangeiras.

    Onde o petrleo domina, baixa a criao de riqueza por meio de

    investimentos e da tomada de risco; pois por que correr riscos quan-

    do h possibilidade de lucros estveis sem nenhum risco? H tam-bm as outras dimenses sombrias do paradoxo da abundncia,

    como os ciclos de expanso e retrao associados dependncia de commodities primrias, bem como a tendncia mais geral de ren-dimentos inesperados advindos de minerais para atenuar ou supri-mir o desenvolvimento da indstria e da agricultura (a chamada Do-

  • 26 Journal of Democracy em Portugus

    ena Holandesa). Essas consequncias so evitveis apenas quando

    economias de mercado fortes, assim como Estados e sistemas fis-

    cais bem desenvolvidos e transparentes, existem antes de o petrleo gerar receitas abundantes (como ocorreu, por exemplo, na Noruega e na Gr-Bretanha)13.

    H, portanto, uma base econmica para a falta de democracia no

    mundo rabe. Mas ela estrutural. Tem a ver com as formas como o

    petrleo distorce o Estado, o mercado, a estrutura de classes e toda a estrutura de incentivos. Principalmente em uma era de alta global nos preos do petrleo, os efeitos da maldio do petrleo so implac-veis: hoje, nenhum dos 23 pases cuja maior parcela da receita de ex-portao advm do petrleo e do gs uma democracia. E, para mui-

    tos pases rabes, a maldio do petrleo no ser eliminada to cedo: o Oriente Mdio rabe compreende cinco dos nove pases com as

    maiores reservas petrolferas, sendo que juntos esses cinco pases representam pouco mais de 46% das reservas mundiais confirmadas14.

    estatismo Autoritrio

    Os dois pilares-chave do autoritarismo rabe so polticos.

    Eles abrangem tanto os padres e instituies pelas quais os re-gimes autoritrios administram suas polticas e mantm o poder, quanto as foras externas que ajudam a sustentar seu domnio. Es-sas estruturas e prticas autoritrias no so exclusivas do mundo rabe, mas os governantes rabes as elevaram a um alto grau de refinamento e as utilizam com extraordinria habilidade. Embora

    o tpico Estado rabe no seja eficiente no dia a dia, sua mukha-barat (polcia secreta e aparelho de inteligncia) normalmente amplamente financiada, tecnicamente sofisticada, altamente pe-

    netrante, legalmente ilimitada e esplendidamente preparada para se beneficiar de uma extensa cooperao com instituies-pares

    da regio e com agncias de inteligncia ocidentais. Em termos mais gerais, esses Estados so os lderes mundiais em termos de proporo do PNB gasto em segurana15.

  • Larry Diamond 27

    No entanto, a maioria das autocracias rabes no confia na coer-

    o absoluta e no medo para sobreviver. Pelo contrrio: a represso seletiva e fortemente misturada com (e, portanto, muitas vezes es-

    condida por) mecanismos de representao, consulta e cooptao.

    Eleies pluralistas limitadas desempenham um papel importante em cerca de metade das 16 autocracias rabes. Como Daniel Brumberg

    escreveu nestas pginas sete anos atrs:

    A autocracia liberalizada se mostrou muito mais durvel do que se imaginava. A mistura tpica de pluralismo orientado, eleies con-troladas e represso seletiva no Egito, na Jordnia, no Marrocos, na Arglia e no Kuwait no apenas uma estratgia de sobrevivncia

    adotada pelos regimes autoritrios, mas sim um tipo de sistema po-ltico cujas instituies, regras e lgica desafiam qualquer modelo

    linear de democratizao.16

    De fato, em tais sistemas, mesmo a liberalizao no linear, mas

    sim cclica e adaptativa. Quando a presso aumenta, tanto de dentro quanto de fora da sociedade, o regime afrouxa suas restries e permite mais atividades cvicas e uma arena eleitoral mais aberta at que a opo-

    sio poltica comece a parecer muito sria e eficaz. Ento, o regime

    recupera os mtodos mais repressivos de manipulao de eleies, de

    diminuio do espao poltico e de deteno dos suspeitos de sem-pre. A arena eleitoral nesses Estados , portanto, algo semelhante a um

    enorme par de pulmes polticos, respirando (s vezes profundamente e com entusiasmo) e expandindo, e, em seguida, inevitavelmente expi-

    rando e se contraindo quando os limites so atingidos.

    A trajetria poltica que o Egito seguiu em 2004 e 2005 foi um

    exemplo perfeito dessa dinmica. O velho autocrata o Presidente Hosni Mubarak estava sofrendo crescente presso interna de uma coalizo de oposio surpreendentemente ampla conhecida como Kifaya (que significa basta a qual resumia sucintamente o humor

    do pas), bem como do presidente dos EUA George W. Bush, que

    tambm estava pressionando por eleies presidenciais e legislativas

    mais abertas e competitivas. Relutantemente, Mubarak concordou

  • 28 Journal of Democracy em Portugus

    em permitir que, em 2005, fosse realizada uma controvertida eleio

    presidencial e, em seguida, eleies legislativas mais transparentes. Mas a disputa presidencial foi grosseiramente injusta e trs me-ses aps a votao (que os nmeros oficiais apontam ter sido venci-

    da pelo detentor do poder, com 88,6%) o adversrio de Mubarak, Ayman Nour, foi condenado a cinco anos de priso. Naquela ocasio, o regime tambm havia intervindo nas segunda e terceira rodadas

    das eleies parlamentares para minar a contagem independente dos votos, para neutralizar os monitores da sociedade civil e tambm para

    interromper o ritmo de vitrias da oposio por parte dos candidatos da Irmandade Muulmana que concorriam como independentes de jure. No muito tempo depois, o partido governante iniciou uma campanha de reforma constitucional para garantir que nenhum acidente poltico ocorresse no futuro, enquanto uma oposio des-moralizada e dividida enfraquecida por prises e intimidaes assistia impotente o que se passava, com pouco apoio concreto do governo Bush. A manobra institucional foi parte de um padro geral rabe de reforma gerenciada, no qual autocracias rabes ou ado-tam a linguagem da reforma poltica a fim de evitar a realidade ou

    promovem reformas econmicas e sociais limitadas na busca pela

    modernizao sem democratizao17.

    Na medida em que so permitidas a competio poltica e o plu-ralismo nesses regimes rabes (que incluem a Arglia, a Jordnia, o

    Kuwait e o Marrocos, bem como o Egito), os oponentes do regime se

    veem em desvantagem e com seu poder enfraquecido graas a regras e parmetros cuidadosamente desenvolvidos para deixa-los em tal si-

    tuao. Prticas eleitorais (como o uso do Voto nico Intransfervel, ou VUI, na Jordnia) so escolhidas e enviesadas de modo a privile-

    giar relaes pessoais e candidatos tribais em detrimento dos partidos polticos organizados, especialmente os islmicos18. Parlamentos que resultam dessas eleies limitadas no tm poder real de legislar ou governar, j que a autoridade mais ou menos ilimitada continua nas mos de reis hereditrios e presidentes imperiais.

  • Larry Diamond 29

    No entanto, os partidos de oposio pagam um alto preo se boi-cotam essas semifarsas ou se participam delas. Se os opositores par-ticipam das eleies e do parlamento, eles correm o risco de serem cooptados ou, pelo menos, de serem vistos de tal maneira por um eleitorado cnico e descrente. Todavia, se boicotam o jogo inter-no da poltica eleitoral e parlamentar, o jogo externo de protesto e resistncia oferece pouca perspectiva realista de influncia, muito

    menos de poder. Presas nas encruzilhadas desses dilemas, as opo-sies polticas no mundo rabe se dividem, se tornam suspeitas e despedaadas por dentro. Elas esto em uma situao difcil tanto se boicotam, quanto se no o fazem. At mesmo os islmicos em pases

    como Egito, Kuwait e Marrocos esto fragmentados em diferentes campos, ao longo de linhas moderadas e militantes (e tambm de

    outras linhas tticas e de faces). Partidos islmicos que esto deci-

    didamente fora do sistema, enquanto constroem redes de bem-estar

    social e laos religiosos e ideolgicos junto a setores sociais, renem uma base de apoio popular de longo prazo. Em contraste, os partidos seculares parecem marginais, hesitantes e sem vigor. Presos entre regimes que garantem um espao legal estreito [...] e movimentos islmicos populares que esto claramente em ascendncia [...] eles esto lutando por influncia e relevncia, e, em alguns casos, at

    mesmo pela sobrevivncia.19.

    As Tenses da Geopoltica

    A situao geopoltica desfavorvel que confronta a democracia rabe se estende bem alm do notvel fator do petrleo, embora esse

    seja um dos principais motivos de interesse das grandes potncias na regio. O apoio externo aos regimes rabes, que historicamente vi-nha em parte da Unio Sovitica e que agora vem principalmente da

    Europa e dos Estados Unidos, confere s autocracias rabes recursos econmicos fundamentais, assistncia em matrias de segurana, e

    legitimidade poltica. Nessas circunstncias, para regimes no-petro-

    lferos como o Egito, a Jordnia e o Marrocos a ajuda externa

  • 30 Journal of Democracy em Portugus

    como o petrleo: outra fonte de renda que os regimes utilizam para a sobrevivncia. Como o petrleo, as ajudas externas vo para os cofres centrais do Estado e do-lhe meios tanto para cooptar quan-to para reprimir. Desde 1975, a ajuda para desenvolvimento dos EUA para o Egito somou mais de US$28 bilhes, excluindo-se os

    quase US$50 bilhes que chegaram ao pas em ajuda militar incon-

    dicional desde os Acordos de Paz de Camp David, de 197820. Menos conhecida a enorme ajuda financeira e militar dos EUA ao Estado

    muito menos populoso da Jordnia, que tem recebido uma mdia de

    US$650 milhes por ano desde 2001. A ajuda ocidental torna poss-

    vel a estratgia-chave do regime poltico de gastar enormes quantias

    em cargos pblicos sem a imposio de impostos altos. De 2001 a 2006, a assistncia estrangeira que a Jordnia arrecadou representou

    27% da receita domstica total21.

    Dois outros fatores externos reforam ainda mais a hegemonia interna das autocracias rabes. Um deles o conflito rabe-israe-

    lense, que paira como um miasma txico sobre a vida poltica do Oriente Mdio. Ela fornece um meio fcil e conveniente de desviar

    a frustrao pblica da corrupo e dos abusos de direitos huma-nos dos regimes rabes, fazendo com que cidados enraivecidos se concentrem no que as mdias rabes privada e estatal emotivamen-te retratam como opresso israelense contra os palestinos e, por extenso simblica, contra todo o povo rabe. Protestos contra as falhas dos regimes rabes a m qualidade da educao e dos servi-os sociais, a falta de empregos, de transparncia, de acolhimento de demandas populares por parte dos governantes e de liberdade so proibidos, mas as populaes rabes podem descarregar sua raiva na imprensa e nas ruas em um meio seguro: a condenao de Israel.

    O segundo fator externo so os outros Estados rabes, que re-foram um ao outro em seu autoritarismo e em suas tcnicas de

    controle, manipulao e represso, e que ao longo das dcadas

    transformaram a Liga rabe de 22 membros em um clube de auto-cratas sem remorso. De todas as grandes organizaes regionais, a

  • Larry Diamond 31

    Liga rabe a mais desprovida de normas democrticas e meios

    de promov-las ou incentiv-las. Na verdade, a sua Carta, que no

    foi alterada em meio sculo, no faz qualquer meno democracia

    ou a direitos individuais. Alm de tudo isso, existe a falta de um

    nico exemplo claro de democracia rabe, o que significa que no

    h nenhuma fonte de difuso ou de rivalidade democrtica em qual-quer lugar no mundo rabe. Mesmo em uma era globalizada, isso

    importante: ao longo da terceira onda de democratizao, os efeitos de demonstrao foram mais fortes entre os pases que eram geo-graficamente prximos e culturalmente semelhantes22.

    ser que Alguma coisa Vai mudar?

    Estaria o mundo rabe simplesmente condenado a um futuro in-definido de governo autoritrio? Eu acredito que no. Mesmo vest-

    gios de mudana na poltica externa dos EUA de 2003 a 2005 foram

    suficientes para encorajar a abertura poltica e pelo menos deram es-

    pao para a mobilizao democrtica popular em pases como Egito, Lbano e Marrocos, bem como para a Autoridade Palestina. Embora tenha sido parcial ou totalmente fechada a maioria dessas abertu-ras, pelo menos as oposies e as sociedades civis rabes puderam vislumbrar como pode ser a poltica em um regime democrtico. Pesquisas de opinio sugerem que eles obviamente querem mais, e novas ferramentas de mdia social, como o Facebook, o Twitter, a blogosfera, e a revoluo da telefonia mvel esto dando aos rabes novas oportunidades de expresso e de mobilizao.

    Trs fatores poderiam encorajar uma mudana democrtica na regio. Um deles seria o surgimento de ao menos um sistema po-ltico democrtico na regio, especialmente em um pas que possa ser visto como modelo. Para o Lbano, seria difcil desempenhar esse papel, dadas as suas faces extremamente complicadas e sua fragmentao consociacional de poder, bem como o forte envol-vimento contnuo da Sria em sua poltica. Mas, se o Iraque pro-gredisse politicamente elegendo, em primeiro lugar e de modo

  • 32 Journal of Democracy em Portugus

    democrtico, um novo governo neste ano (2010) e, em seguida,

    este novo governo funcionasse decente e pacificamente enquanto

    as foras americanas se retirassem , isso poderia mudar a percep-o na regio de forma gradual. O Egito tambm continua atento,

    com o sol lentamente se pondo nas trs dcadas de domnio pessoal de Hosni Mubarak, que hoje tem 81 anos. Quer seu filho Gamal

    de 46 anos de idade seja, ou no, o seu sucessor, o regime vai

    passar por novas tenses e necessidades de adaptao quando este fara moderno sair de cena.

    O segundo fator seria uma mudana na poltica dos EUA para retomar tanto um engajamento baseado em princpios, quanto uma assistncia prtica mais ampla com vistas a promover e pressionar por reformas democrticas no apenas na esfera eleitoral, mas tam-bm no que diz respeito ao reforo da independncia judicial, da

    transparncia governamental, da liberdade de imprensa e da socieda-de civil. Se se buscasse isso de forma mais moderada e se isso fosse reforado por uma presso europeia, poder-se-ia ajudar a rejuvenes-

    cer e proteger foras polticas internas que agora esto desanimadas e em desordem. Porm, para seguir esse caminho, os Estados Unidos

    e seus aliados europeus teriam de superar sua viso indiferenciada dos partidos islmicos e engajar os atores islmicos dispostos a se comprometer mais claramente com normas liberais-democrticas.

    O principal agente de mudana seria uma queda prolongada e acentuada nos preos mundiais do petrleo (digamos, para a metade dos nveis atuais). Mesmo o menor reinado do Golfo do petrleo con-

    tinuaria rico a qualquer preo concebvel do barril. Pases grandes como a Arbia Saudita (populao de 29 milhes) , no entanto,

    achariam necessrio abordar a questo de uma nova barganha polti-ca com as populaes crescentes (e muito jovens). A Arglia e o Ir

    enfrentariam presso ainda maior, e embora o Ir no seja um estado rabe, ele tem uma minoria rabe, mas isso no deve ser subestima-do, pois alm de ser um grande pas do Oriente Mdio o Ir o

    nico exemplo da regio de um regime inteiramente islmico. Por

  • Larry Diamond 33

    isso, mudanas no pas apresentariam um impacto positivo nas pers-pectivas democrticas da regio. Quando se olha para o que aconte-ceu com a democracia na Nigria, na Rssia e na Venezuela aps o

    forte aumento no preo do petrleo nos ltimos anos, a ideia de que

    politicamente imperativo reduzi-lo torna-se ainda mais atraente. An-

    tes que seja tarde, no entanto, uma acelerao da mudana climtica dever conduzir a uma resposta muito mais radical para este desafio.

    Quando a revoluo global da tecnologia relacionada energia atin-gir sua fora plena quebrando, finalmente, o cartel do petrleo , a

    excepcionalidade da poltica rabe ter um fim definitivo.

    noTAs

    Sou grato por todos os valiosos comentrios que recebi quando foram apresen-tadas verses desse artigo em 2009 na Universidade de Stanford, na Universidade de Indiana e no Instituto Ash para Governana Democrtica e Inovao da Univer-sidade de Harvard.

    1. Por Oriente Mdio, designo os 19 Estados do Oriente Mdio e a frica do Norte. Quando me refiro ao mundo rabe, incluo os 16 Estados rabes dessa regio: Arglia, Bahrein, Egito, Iraque, Jordnia, Kuwait, Lbano, Lbia, Marrocos, Om, Qatar, Arbia Saudita, Sria, Tunsia, Emirados rabes Unidos e Imen.

    2. A Liga rabe possui 22 membros, embora um deles (a Palestina) ainda no seja um Estado. Dos outros 21, mais fcil analisar cinco no contexto da frica subsaariana: Comores, Djibuti, Mauritnia, Somlia e Sudo. Desses, Comores , atualmente, a nica democracia. A Mauritnia foi uma democracia por um breve perodo h no muito tempo e o Sudo passou por duas tentativas frustradas de democratizao.

    3. Alfred Stepan e Graeme B. Robertson, An Arab More Than a Muslim Democracy Gap, Journal of Democracy 14 (Julho de 2003): 3044.

    4. Os oito democracias so a Albnia, Bangladesh, Comores, Indonsia, Mali, Senegal, Serra Leoa e Turquia.

    5. Dos 47 pases que Stepan e Robertson listam como de maioria muulmana, eu excluo da minha anlise apenas a Nigria, onde ningum sabe realmente o que a populao geral ou o qual o equilbrio entre os grupos religiosos. Tambm inclu dois pases (Brunei e Maldivas), dos quais eles no tm dados.

    6. Elie Kedourie, Democracy and Arab Culture (Washington, D.C.: Instituto de Washington para Poltica do Oriente Prximo, 1992), 56.

  • 34 Journal of Democracy em Portugus

    7. Ns documentamos esses altos nveis de apoio em diversos artigos do Journal of Democracy na ltima dcada, alguns dos quais foram recentemente reunidos na obra de Larry Diamond e Marc F. Plattner, How People View Democracy (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2008).

    8. Mark Tessler e Eleanor Gao, Gauging Arab Support for Democracy, Jour-nal of Democracy 16 (Julho de 2005): 8297, e Amaney Jamal e Mark Tessler, The Democracy Barometers: Attitudes in the Arab World, Journal of Democracy 19 (Janeiro de 2008): 97110.

    9. Jamal e Tessler, Attitudes in the Arab World, 101.

    10. Jamal e Tessler, Attitudes in the Arab World, 102.

    11. Consulte, por exemplo, a tabela em Tessler e Gao, Gauging Arab Support for Democracy, 91.

    12. Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twen-tieth Century (Norman: University of Oklahoma Press, 1991), 65.

    13. Terry Lynn Karl, The Paradox of Plenty: Oil Booms and Petro-States (Berke-ley: University of California Press, 1997), 56, 1517, 21321, e 23642.

    14. Os pases rabes com maiores reservas de petrleo so a Arbia Saudita, o Iraque, o Kuwait, os Emirados rabes Unidos, a Lbia e a Arglia, nesta ordem. A Arbia Saudita possui o maior nmero mundial de reservas confirmadas de petrleo, que totalizam cerca de 267 bilhes de barris, ou quase 20% do total mundial. O Ir fica em terceiro lugar no mundo, com aproximadamente 140 bilhes de barris de reservas confirmadas.

    15. Eva Bellin, Coercive Institutions and Coercive Leaders, em Marsha Prip-stein Posusney e Michele Penner Angrist, eds., Authoritarianism in the Middle East: Regimes and Resistance (Boulder, Colo.: Lynne Rienner, 2005), 31. Os pases do Oriente Mdio gastaram em mdia 6,7% do PNB em defesa em 2000, comparado mdia global de 3,8%. Bellin enxerga os regimes rabes no Oriente Mdio como extraordinariamente robustos no sentido de serem excepcionalmente capazes de e abertos a reprimir iniciativas de reformas das bases (p. 27). Mas isso vale tambm para muitos regimes autoritrios. As autocracias rabes tambm tm se mostrado mais flexveis e hbeis do que outras.

    16. Daniel Brumberg, Democratization in the Arab World? The Trap of Libera-lized Autocracy, Journal of Democracy 13 (Outubro de 2002): 56.

    17. Michele Dunne e Marina Ottaway, Incumbent Regimes and the Kings Dilemma in the Arab World: Promise and Threat of Managed Reform, em Marina Ottaway e Amr Hamzawy, eds., Getting to Pluralism: Political Actors in the Arab World (Washington, D.C.: Carnegie Endowment for International Peace, 2009): 1340.

    18. Julia Choucair, Illusive Reform: Jordans Stubborn Stability, Carnegie Pa-pers No. 76, Democracy and Rule of Law Project, Carnegie Endowment for Inter-national Peace, Dezembro de 2006, 7. Disponvel em www.carnegieendowment.org/files/cp76_chou- cair_final.pdf.

  • Larry Diamond 35

    19. Marina Ottaway e Amr Hamzawy, Fighting on Two Fronts: Secular Parties in the Arab World, em Ottaway e Hamzawy, Getting to Pluralism, 41.

    20. Consulte www.usaid.gov/our_work/features/egypt e www.fas.org/asmp/pro-files/egypt.htm. Essa fonte relata ajuda militar de US$38 bilhes at 2000, mas a cada ano adicional aportou US$1 bilho a mais.

    21. Sean Yom, Jordan: Ten More Years of Autocracy, Journal of Democracy 20 (Outubro de 2009): 163.

    22. Huntington, Third Wave, 102.

  • * Publicado originalmente como Tunisias Transition and the Twin Tolerations, Journal of Democracy, Volume 23, Nmero 2, Abril de 2012 2012 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press

    Dossi Primavera rabe

    A TRANSIO NA TUNSIA E A mTUA TOLERNCIA*

    Alfred Stepan

    Alfred Stepan Professor de Governo da cadeira Wallace S. Sayre, da Universidade de Colmbia, e diretor do Centro de Estudos da Democracia, Tolerncia e Religio na mesma instituio. O presente artigo baseia-se em seu texto Religion, Democracy, and the Twin Tolerations (Religio, Democracia e a Mtua Tolerncia, em traduo livre), publicado na edio de outubro de 2000 do Journal of Democracy.

    Para muitos dos mais influentes tericos do secularismo e da mo-dernizao, a religio era algo tradicional e irracional uma fora para o autoritarismo e um obstculo busca da modernidade e ra-cionalidade que por si s levariam democracia1. Estaria correta tal percepo? Meu estudo dos esforos atuais de democratizao em diversos pases, como Brasil, Chile, ndia e Indonsia, passando por

    Senegal, Espanha, Turquia e agora a Tunsia, mostram o contrrio. As experincias desses pases nas ltimas dcadas sugerem que o

    secularismo severo, aos moldes da Terceira Repblica Francesa ou da Turquia ps-otomana de Mustafa Kemal Atatrk, no necessrio

    para a democratizao e pode at criar problemas para ela.

    Uma anlise da transio da Tunsia ajuda a ilustrar o ponto. No ano passado, fiz trs viagens de pesquisa a esse pequeno pas pre-

    dominantemente muulmano sunita da frica do Norte, onde teve

  • Alfred Stepan 37

    Journal of Democracy em Portugus Volume 1, Nmero 2, Outubro de 2012 2012 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press

    incio a Primavera rabe. A histria recente da Tunsia complexa,

    e consigo cobrir apenas parte dela aqui mas uma parte importante

    que observadores, principalmente no Ocidente, devem tomar cuida-do para no ignorar ou subestimar.

    Em 2011, a Tunsia alcanou uma bem sucedida transio demo-crtica, embora ainda no tenha atingido a consolidao da democra-cia. Isso foi possvel ao aderir a uma relao entre religio e poltica que segue o padro do que chamo aqui e em outros artigos de mtua tolerncia. Em que consiste essa mtua tolerncia? A primeira a de

    cidados religiosos para com o Estado. Ela exige que eles confiram

    a funcionrios do Estado eleitos democraticamente a liberdade de legislar e governar sem ter de enfrentar negaes de sua autoridade baseadas em afirmaes religiosas como, por exemplo, Apenas

    Deus, e no o homem, pode estabelecer leis.

    A segunda diz respeito tolerncia do Estado em relao a cida-dos religiosos. Esse tipo de tolerncia exige que leis e representan-tes do Estado permitam que cidados religiosos, por uma questo de direito, expressem livremente suas vises e valores na sociedade ci-vil, bem como participem livremente da poltica, contanto que ativis-tas e organizaes religiosas respeitem os direitos constitucionais e a lei. Em uma democracia, a religio no precisa estar fora da ordem do dia, e, de fato, forar sua retirada violaria a segunda tolerncia2. Adotar essa mtua tolerncia dar um passo rumo democracia li-

    beral, pois envolve a rejeio no apenas de uma teocracia, mas tam-bm do iliberalismo que inseparvel das verses do secularismo

    que se pautam na agressividade, na abordagem de cima para baixo, no controle da religio, como o kemalismo turco ou o lacit avesso religio associado Terceira Repblica Francesa e sua Lei da Separao entre a Igreja e o Estado, de 1905.

    Antes de explorar como a mtua tolerncia ganhou espao na Tunsia o que contribuiu para o promissor incio do pas como uma democracia , vale revisar a transio da prpria Tunsia. Em 23 de outubro de 2011, aps a Revoluo de Jasmim, que em janeiro

  • 38 Journal of Democracy em Portugus

    destituiu do poder o ditador de longa data Zine al-Abidine Ben Ali,

    a Tunsia conduziu sua primeira eleio livre aps tornar-se inde-

    pendente da Frana em 1956. Eleitores formaram uma Assembleia

    Constituinte formada por 217 membros, cujo partido com maior re-

    presentatividade (41% dos assentos) o movimento islmico conhe-

    cido como Ennahda (tambm chamado de al-Nahda). Desde ento,

    a Assembleia elegeu um primeiro-ministro, o antigo secretrio geral

    do Ennahda, Hamadi Jebali, e um presidente, o ativista de direitos humanos Moncef Marzouki. Juntamente com os outros membros do governo, eles tomaram posse e iniciaram seus trabalhos em 23 de dezembro de 2011, marcando a conquista de uma bem sucedida tran-sio na Tunsia. Cerca de doze a quinze meses aps a concluso da constituio, sero realizadas novas eleies para esses cargos.

    Em minha opinio, pode-se afirmar que a Tunsia conquistou tal

    transio e, agora, enfrentar o desafio mais complexo de consoli-

    dao democrtica por ter atendido aos quatro requisitos que Juan J. Linz e eu defendemos, com base em nosso estudo envolvendo di-versos casos, serem cruciais para tal mudana3. O primeiro desses requisitos acordo suficiente sobre procedimentos para criar um

    governo eleito. O segundo um governo que chegue ao poder como

    resultado direto do voto livre e popular. O terceiro a posse de fac-to pelo governo da autoridade para criar novas polticas, e o quarto que os poderes executivo, legislativo e judicirio resultantes da

    nova democracia no devem compartilhar poder com outros rgos de jure (como lderes militares ou religiosos).

    claro que nada disso certo. A democracia sempre um mero

    governo transitrio, e sempre enfrenta perigos que devem ser com-batidos por uma constituio com protees contra a tirania da maioria, um judicirio independente cauteloso, uma sociedade civil crtica e ro-busta, e uma imprensa livre. Embora a Tunsia precise de reformas e de consolidao institucional, ela j conta com um nmero considervel de constrangimentos crveis que devero ajudar a tornar a democracia mais segura e a oferece-la uma chance de criar razes e consolidar-se.

  • Alfred Stepan 39

    Uma limitao importante que o Ennahda perdeu a maioria na

    Assembleia Constituinte. Ele ganhou seus 89 assentos ao conseguir

    37% dos votos populares. Portanto, teve de formar uma coalizo

    com dois partidos seculares: o Congresso pela Repblica (CPR), de

    Marzouki, que ganhou 29 assentos, e o Ettakatol, que ganhou 20 assentos. Se o Ennahda sucumbir presso de militantes islmicos em sua base, seus parceiros seculares podero se afastar neces-

    srio um total de 109 assentos para formar e sustentar um governo

    com o objetivo de ameaar seu controle na Assembleia. De fato, de acordo com os procedimentos parlamentares da Assembleia, o Ennahda poderia at ser submetido a um voto de desconfiana que

    poderia garantir acesso a uma nova maioria dominante naquele rgo.

    Outra limitao sugerida pelo acordo sobre o carter livre e justo

    da votao de outubro de 2011 por praticamente todos os partidos de oposio e pelos lderes de governo com quem falei principalmente Ahmed Nejib El Chebbi, do Partido Democrata Progressivo (PDP),

    o principal partido secular de oposio, cujo desempenho ficou abai-

    xo das expectativas. Ao mesmo tempo em que afirma a integridade

    da votao, Chebbi exprimiu sua certeza de que outra eleio ser realizada de um ano a dezoito meses aps a concluso dos trabalhos da Assembleia Constituinte. Quando perguntei por que seu partido teve desempenho to insatisfatrio, ele afirmou que falhou ao seguir

    os conselhos de consultores eleitorais norte-americanos de priorizar

    anncios de campanha na TV. Ele contou que, da prxima vez, o Partido Democrata Progressista adotar uma organizao