josineide francisco sampaio

162
O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de Maceió - Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos humanospor Josineide Francisco Sampaio Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências na área de Saúde Pública. Orientador principal: Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos Segunda orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Machado de Albuquerque Rio de Janeiro, setembro de 2013.

Upload: others

Post on 15-Nov-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

“O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de Maceió

- Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos

humanos”

por

Josineide Francisco Sampaio

Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências

na área de Saúde Pública.

Orientador principal: Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos

Segunda orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Machado de Albuquerque

Rio de Janeiro, setembro de 2013.

Esta tese, intitulada

“O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de Maceió

- Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos

humanos”

apresentada por

Josineide Francisco Sampaio

foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof.ª Dr.ª Cecília Paiva Neto Cavalcanti

Prof.ª Dr.ª Fátima Sueli Neto Ribeiro

Prof.ª Dr.ª Maria Helena Barros de Oliveira

Prof. Dr. Renato José Bonfatti

Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos – Orientador principal

Tese defendida e aprovada em 20 de setembro de 2013.

Catalogação na fonte

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica

Biblioteca de Saúde Pública

S192 Sampaio, Josineide Francisco

O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de

Maceió - Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos humanos. / Josineide Francisco Sampaio. -

- 2013.

160 f. : tab. ; mapas

Orientador: Vasconcellos, Luiz Carlos Fadel de

Albuquerque, Maria de Fátima Machado de Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio

Arouca, Rio de Janeiro, 2013.

1. Direito à Saúde. 2. Direitos Humanos. 3. Executoriedade da

Lei. 4. Acesso aos Serviços de Saúde - legislação &

jurisprudência. I. Título.

CDD – 22.ed. – 344.0321098135

José Francisco dos Santos

(Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Correntes, em Pernambuco, assassinado no dia 15 de

agosto de 1980).

Havia uma revoada de abelhas

Esmorecendo a germinação do tempo

E um poema feito ao rouxinol

Antes que o dia esculpisse o mundo.

Havia um fóssil solto de abandono

Carregando a tristeza para longe.

Formigas inertes tomavam a feição da noite

Nos interditos locais da carne.

Havia uma palavra baldia num caixote

Um sossego azul beirando as borboletas.

Havia uma água perfumosa

Transbordando para o outono.

Havia o teu nome e a santidade

Que a terra assinala em muitas faces.

E havia também a maldade peneirando

As digitais nos fuzis. E houve o tiro.

E houve a morte por um instante.

Jelson Oliveira

A Deus, porque ele é bom, porque o seu amor é para

sempre! Ele é minha força e energia, ele é a minha

salvação.

Ao meu pai, José Francisco, que se imortalizou em meu

coração por sua integridade, coragem e perseverança.

Aos meus filhos, João Marcos e Júlia, fonte de força e

coragem para prosseguir, sempre!

AGRADECIMENTOS

Deus, eu te agradeço por teu infinito amor e sabedoria. Tu és minha luz e salvação.

Ao meu pai, minha eterna admiração, pelos valores que testemunhou.

A minha mãe, pelo apoio.

Aos meus filhos, pelo apoio, partilha, compreensão, carinho e proteção.

A todos os meus familiares, por contribuírem para que esse sonho se realizasse,

especialmente, meu irmão Djalma, pelo apoio e proteção.

Aos meus orientadores, que me conduziram durante toda essa caminhada, pois, propiciaram

condições para que eu avançasse e perseverasse até o fim.

Aos professores, por contribuírem para meu amadurecimento profissional.

À coordenação do programa, pela compreensão, confiança e solidariedade.

Àqueles que encontrei no decorrer dessa caminhada e se tornaram amigos, um dos maiores

presentes que recebi, como Cristina, Nilza, Jorge, Gigliola, Waglânia, Aurilene, Ana Luiza,

Ana Suerda, Cristiane, Suelma, Ana Cláudia, Anubes, Ângela, Liza, Bianca, José da Paz e

Climério.

Aos participantes da banca examinadora, por sua disponibilidade e contribuição.

A Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ e às demais universidades participantes do

projeto DINTER-PB, pela oportunidade de nos permitir consolidar e evoluir

profissionalmente, especialmente, à Universidade Federal de Alagoas e à Faculdade de

Medicina, por terem me dado todas as condições de participar desse doutorado.

Ao Juiz da 28ª Vara Civil da Infancia e Juventude da Capital, pelo apoio institucional à

execução desse estudo.

À Promotoria da Infância e Juventude da Capital, pelo apoio e disponibilidade.

A todos que contribuíram, concedendo informações valiosas que permitiram a consecução

desse estudo: representantes da gestão municipal, das ONGs, do poder judiciário e das

comunidades da orla lagunar.

Ao meu amigo Antônio Lima, pela amizade, partilha e colaboração na construção desse

trabalho.

Àqueles que me acolheram e me sustentaram no decorrer dessa caminhada, como o Dr.

Fernando Caldas.

A todos que, de algum modo, contribuíram para que pudesse alcançar essa vitória, MUITO

OBRIGADA!

RESUMO

A presente tese resulta de um estudo que teve como objetivo analisar a efetivação do direito à

saúde em comunidades empobrecidas brasileiras, por meio de um estudo de caso sobre um

processo de exigibilidade de direitos humanos em comunidades da orla lagunar de Maceió-

AL. Para alcançarmos o objetivo proposto, foi realizada a análise documental dos autos do

processo judicial para identificar o caminho jurídico-administrativo percorrido e os principais

desdobramentos para o cumprimento da sentença. Também foram realizadas entrevistas com

os principais atores sociais para identificar as representações socias concernentes tanto ao

processo de exigibilidade de direitos como as políticas públicas que foram desenvolvidas nas

comunidades. Para análise das evidências, recorreu-se a abordagem baseada no direito,

principalmente do direito à saúde, utilizando proposições como indivisibilidade de direitos,

responsabilização e participação. Com a análise, percebeu-se a importância da identificação

das violações de direitos humanos e da integração dos titulares de direitos no processo de

exigibilidade junto ao Estado. Verificou-se que o poder Executivo adotou estratégias para

eximir-se da responsabilidade de garantir os direitos fundamentais. Viu-se que há restrições à

participação dos titulares de direito nas decisões. Evidenciou os limites do Poder Judiciário

para garantir a execução das decisões e a necessidade de criação de mecanismos institucionais

que assegurem a efetivação dos direitos sociais. Demonstrou a importância da utilização dos

instrumentos de exigibilidade para o fortalecimento da luta política, para a conquista da

cidadania, para a realização dos diretos assegurados e, desse modo, para garantia de uma vida

digna para todos.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à saúde; direitos humanos; instrumentos de exigibilidade de

direitos; judicialização.

ABSTRACT

This thesis results from a study that aimed to examine the effectiveness of the right to health

in impoverished communities in Brazil, through a case study of a lawsuit for enforceability of

human rights in communities from Orla lagunar de Maceió-AL. To achieve the proposed

objective, documentary analysis was carried from court proceedings to identify the path

traversed legal-administrative and major ramifications for the judgment. Interviews were

conducted with key social actors to identify the social representations concerning as the

process of enforceability of rights as the public policies that have been developed in the

communities. For analysis of the evidences, we used the approach based on the right,

especially the right to health, using propositions as indivisibility of rights, accountability and

participation. With the analysis, we realized the importance of identifying violations of human

rights and the integration of the rights holders in the process of enforceability by the State. It

was found that the Executive has adopted strategies to evade the responsibility of

guaranteeing fundamental rights. We have seen that there are restrictions to participation of

rights holders in decisions. Showed the limits of the judiciary to ensure implementation of the

decisions and the need for institutional mechanisms to ensure the fulfillment of social rights.

Demonstrated the importance of using instruments of accountability for the strengthening of

the political struggle for the conquest of citizenship, to the attainment of direct insured and

thus to guarantee a dignified life for everybody.

Key words: Right to health; human rights; instruments to enforceability of rights;

judicialization.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRANDH Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos

AIDS Síndrome de Deficiência Imunológica Adquirida

ANS Agência Nacional de Saúde

CÁRITAS Confederação de Organizações Humanitárias da Igreja Católica

CEPA Centro Educacional de Pesquisa Aplicada

CF/88 Constituição Federal de 1988

CMDSS Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde

CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

CRAS Centro de Referência de Assistência Social

CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social

DSS Determinantes Sociais da Saúde

DST Doença Sexualmente Transmissível

DUDH Declaração Universal dos Diretos Humanos

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura

FIAN Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar

GLBT Gays Lésbicas Bissexuais e Transexuais

HIV Vírus da Imunodeficiência Humana

IML Instituto Médico Legal

LGBT Lésbicas Gays Bissexuais e Travestis

MDM Metas de Desenvolvimento do Milênio

OIT Organização Internacional do Trabalho

OMS Organização Mundial de Saúde

ONG Organização Não Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil

PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PSF Programa Saúde da Família

RECID Rede de Educação Cidadã

SAMU Serviço Ambulatorial Móvel de Urgência

SEINFRA Secretaria de Estado da Infraestrutura

SUS Sistema Único de Saúde

TAC Termo de Ajustamento de Conduta

UFAL Universidade Federal de Alagoas

UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12

1.1 Metodologia ............................................................................................................. 16

2 POLÍTICAS PÚBLICAS: MARCO TEÓRICO E METODOLÓGICO ......... 20

2.1 Políticas públicas e a abordagem de direito ............................................................. 27

2.2 Direitos humanos e a saúde ..................................................................................... 30

2.3 Exigibilidade de direitos .......................................................................................... 35

2.4 Instrumentos de exigibilidade de direitos ................................................................ 37

3 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL .................................................................. 40

3.1 Respostas públicas às demandas para realização do direito à saúde ....................... 43

4 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA: EM BUSCA DA GARANTIA DE DIREITOS .. 49

4.1 Percurso jurídico-administrativo: desdobramentos da sentença .............................. 52

4.2 A participação dos atores sociais no processo de judicialização ............................. 55

4.3 O direito à saúde no processo de judicialização ...................................................... 57

5 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO DE

EXIGIBILIDADE DE DIREITOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

IMPLEMENTADAS NAS COMUNIDADES ORIUNDAS DA ORLA

LAGUNAR DE MACEIÓ-AL ..............................................................................

61

5.1 O processo de exigibilidade de direitos sob a perspectiva dos atores sociais ......... 63

5.2 A implementação das políticas públicas nas comunidades beneficiadas pela

decisão judicial ........................................................................................................

71

5.3 Exigibilidade de direitos: limites e possibilidades para efetivação do direito à

saúde ........................................................................................................................

81

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 93

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 95

ANEXOS ................................................................................................................ 103

ANEXO I: Instrumentos de coleta e de análise dos dados ...................................... 104

ANEXO II: Capítulo de livro em vias de publicação .............................................. 108

ANEXO III: Artigo submetido para publicação ...................................................... 125

ANEXO IV: Artigo para apreciação da banca examinadora ................................... 143

12

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, o cenário de exclusão social, de pobreza e miséria demonstra que as

políticas públicas não têm sido eficientes e nem suficientes para alterar, substancialmente,

esse quadro. Nesse sentido, nas comunidades em que vivem a população pobre e miserável, os

direitos humanos, sejam civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, são sempre violados

em graves proporções; e os agentes públicos do Estado nem sempre estão aptos a realizarem

esses direitos, seja por questões concretas ou ideológicas (ALBUQUERQUE; BURITY,

2008).

Apesar de os movimentos de resistência e de luta pela garantia dos direitos sociais

serem significativos e influentes na história do Brasil, na sua cultura política têm

predominado tradições centralizadoras e patrimonialistas, permeadas por relações

clientelistas, meritocráticas e de interesses articulados entre determinados grupos socias e o

Estado (JACOBI, 1999). Isso faz com que a cidadania seja marcada pela forte presença da

tutela e submissão do povo aos ditames do Estado, numa tendência ao neoliberalismo, que

focaliza políticas públicas de baixa qualidade para os pobres (PIRES; DEMO, 2006).

Nesse contexto, muitos são os desafios enfrentados para garantir a efetivação dos

direitos sociais, especialmente das camadas mais empobrecidas da sociedade. Isso faz emergir

as questões norteadoras desta pesquisa: de quais instrumentos de exigibilidade a sociedade

dispõe para a realização dos direitos assegurados? Quão eficazes são esses instrumentos?

Nesse sentido, a presente tese resulta de um estudo que teve como objetivo analisar a

efetivação do direito à saúde em comunidades empobrecidas brasileiras, por meio de um

estudo de caso sobre um processo de exigibilidade de direitos humanos em comunidades da

orla lagunar de Maceió-AL.

Essas comunidades estão situadas na região periférica de Maceió, mas precisamente

as margens da Lagoa Mundaú, ocupando uma extensão de 2,5 km. No início do processo de

exigibilidade a área era ocupada por cerca de 1600 famílias que viviam em condições de

extrema vulnerabilidade social (ver Mapa I).

13

MAPA I- Área das comunidades da Orla Lagunar beneficiadas pela Ação Civil.

Maceió-2005.

Fonte: Imagens de Satélite: Secretaria de Planejamento de Maceió, 2005.

O processo de exigibilidade instaurado nessas comunidades foi impulsionado a partir

de uma iniciativa da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) que

executou, entre 2004 e 2007, projetos pilotos em duas comunidades localizadas em áreas

urbanas de ocupação1 nas cidades de Maceió-AL e Teresina-PI, nas quais a população vivia

em situação de extrema pobreza.

1O termo refere-se à ocupação de área urbana pública, com objetivo de reivindicar a regularização fundiária, ou

seja, o título de concessão para fins de moradia.

14

Segundo Albuquerque & Burity (2008, p.159), os resultados do inquérito realizado

nessas comunidades revelou “o quanto a pobreza é resultado e causa de violações graves de

direitos humanos que põem em risco ou eliminam, de forma violenta, a dignidade humana.”

Além disso, esse resultado representa a realidade de tantas outras comunidades existentes no

país, nas quais as condições de vida da população e o ambiente onde vivem são bastante

deteriorados.

A apresentação das violações identificadas no inquérito junto às comunidades

permitiu que fossem definidas as demandas prioritárias e as metas a serem alcançadas para

que fossem traçadas ações de exigibilidade. Isso estimulou a participação e a articulação de

parcerias com outros setores da sociedade civil organizada e do próprio Estado e engendrou

um processo de negociação para a exigibilidade dos direitos junto aos órgãos públicos, através

de petição de direito, reuniões e audiências públicas.

Como a correção das violações existentes e as metas negociadas não foram

cumpridas pelas autoridades públicas, o Ministério Público Estadual de Alagoas, juntamente

com a Procuradoria Regional do Trabalho, propôs, junto ao Poder Judiciário, uma Ação Civil

Pública, exigindo a responsabilização do município de Maceió para que fosse assegurada a

correção das violações dos direitos das crianças e adolescentes nas comunidades Sururu de

Capote, Torre, Mundaú e Muvuca, localizadas na orla lagunar.

Por terem sido consideradas procedentes as denúncias e reivindicações impetradas

pela Ação Civil Pública, pois tinham como base tratados de direitos humanos e normas

nacionais, particularmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi determinado

pelo Juiz de Direito da 28ª vara Cível da Capital (Infância e Juventude) que a prefeitura de

Maceió implementasse ações para realização dos direitos das crianças e adolescentes dessas

comunidades através da elaboração e execução de políticas públicas.

É importante ressaltar que essa Ação Civil Pública foi a primeira no país que,

fundamentada nos princípios dos direitos humanos, exigiu a implementação conjunta de

vários direitos constitucionais fundamentais, como educação, saúde, alimentação adequada e

vida digna para crianças e adolescentes (ALBUQUERQUE; BURITY, 2008). Desse modo, a

sentença considerou os direitos como uma unidade indissolúvel, permitindo que as famílias e

toda a comunidade fossem beneficiadas com a decisão.

15

Entretanto, a decisão judicial não se encerra em si mesma, pois tal processo integra

uma correlação de forças entre os atores sociais envolvidos. De um lado, a prefeitura de

Maceió, que desrespeitou e utilizou os recursos jurídicos e administrativos para não realizar as

políticas públicas determinadas pela Ação Civil Pública e, do outro, as comunidades,

enquanto titulares de direitos, organizadas com seus parceiros para cobrarem dos portadores

de obrigações, inclusive o Poder Judiciário, o cumprimento da decisão.

Esse processo de exigibilidade de direitos – e entre eles está à saúde – no qual se

determinou que as violações fossem corrigidas por meio de políticas públicas (sociais e

econômicas) demonstra a existência de uma relação intrínseca entre saúde pública e direitos

humanos, pois a promoção e a proteção à saúde exigem esforços concretos para promover e

proteger tais direitos, do mesmo modo que o maior cumprimento dos direitos humanos requer

especial atenção à saúde e aos determinantes sociais nela envolvidos. Também, com esse

caso, ilustra-se a complementaridade entre as metas em saúde pública e as normas de direitos

humanos na condução das políticas e programas de saúde mais eficazes.

Desse modo, esse estudo sobre esse processo de exigibilidade de direitos bem como

análise de como estão sendo formuladas e implementadas as políticas públicas de atenção à

saúde das crianças e adolescentes empobrecidas da Orla Lagunar de Maceió requereu que se

recorresse à abordagem de direito sobre o processo de produção de políticas públicas,

principalmente o direito à saúde e os instrumentos de exigibilidade de direitos disponíveis em

nosso país, cujas reflexões compõem a segunda seção.

Na terceira seção, expõem-se as reflexões resultantes da revisão de literatura sobre o

direito à saúde e a sua judicialização no Brasil, para nos auxiliar na análise do contexto da

constituição do processo exigibilidade, bem como do papel e da atuação dos atores sociais

envolvidos e das ações governamentais desenvolvidas para o cumprimento da sentença.

Na quarta seção, analisou-se a fundamentação da Ação Civil Pública, as

determinações da sentença e o caminho jurídico-administrativo percorrido para sua execução,

identificando os principais desdobramentos, os limites e o alcance desse instrumento de

exigibilidade para garantir a realização dos direitos prescritos, entre os quais, o direito à

saúde.

Na quinta seção, analisou-se a constituição do processo de exigibilidade e as ações

governamentais desenvolvidas nas comunidades beneficiadas pela decisão judicial,

16

identificando limites e possibilidades a partir da atuação e da percepção dos atores sociais

envolvidos.

Por fim, apresentam-se as considerações finais sobre o caso, à luz dos elementos

teóricos e empíricos que embasaram o seu estudo.

1.1 Metodologia

Este estudo constituiu-se numa análise sobre o processo de exigibilidade de direitos

humanos – entre esses, do direito a saúde – e de como foram implementadas as políticas

públicas nas comunidades da orla lagunar de Maceió – AL, beneficiadas por uma Ação Civil

Pública.

Segundo Oliveira (2007), o estudo de caso se propõe a revelar fundamentalmente as

especificidades do fenômeno social estudado, embora possa oferecer, no seu desenho e

resultados finais, conclusões generalizáveis. Quanto à sua utilização, Yin (2001) afirma que

esse tipo de estudo é recomendável quando se pretende estudar eventos contemporâneos que

permitam observações diretas e entrevistas sistemáticas, além de utilizar documentos escritos,

registros, dados pessoais arquivados, artefatos e informações gerais.

Nessa perspectiva, este estudo baseou-se na análise documental dos autos do

processo judicial e entrevistas dos principais atores sociais concernentes tanto ao processo de

exigibilidade de direitos como as políticas públicas que foram desenvolvidas nas

comunidades.

Foram analisados os documentos que constituíram o processo de judicialização

iniciado a partir da Ação Civil Pública impetrada em favor da proteção dos direitos das

crianças e adolescentes residentes nas comunidades Mundaú, Sururu de Capote, Torre e

Muvuca em Maceió-AL.

Assim, foram identificados e sistematizados os documentos ajuntados aos autos do

Processo Nº 4830/07, disponibilizados pelo Juiz de Direito da 28ª vara Cível da Capital

(Infância e Juventude), correspondentes ao período de setembro de 2007 a julho de 2012,

distribuídos em sete volumes, totalizando 2072 páginas, organizados segundo critério de

arquivamento cartorial. Esse arquivo é composto por 1 relatório base da Ação Civil Pública, 1

relatório da sentença, 2 recursos, 45 ofícios, 28 despachos do juiz, 14 requerimentos e

17

petições, 24 mandados e certidões, 13 pronunciamentos da promotoria, 5 decisões

complementares, 5 alvarás e termos de compromisso de fiel depositário e 1 projeto de

pesquisa, com respectivo relatório, além de outros documentos anexados de variada natureza.

Para efeito de sistematização, a análise foi disposta em forma de tabela, na qual

puderam ser vistas as decisões e ações concretas relacionadas ao processo de exigibilidade de

direitos humanos, identificando os principais atores (poder judiciário, prefeitura, entidades da

sociedade civil e comunidade), datas, tipos de documentos, decisões/encaminhamentos e

ações concretas. A partir dessa organização, foi elaborada uma descrição do caminho

percorrido pela Ação Civil Pública em defesa dos direitos humanos das famílias oriundos das

comunidades da orla lagunar de Maceió/AL.

As entrevistas foram realizadas com atores-chave que participaram e/ou que estão

envolvidos no processo tanto de exigibilidade de direitos como de implementação de políticas

públicas relacionadas à efetivação do direito à saúde nas citadas comunidades. Considerando

o aspecto qualitativo desse estudo, optou-se por entrevistar três representantes da gestão

pública municipal, três representantes do poder judiciário estadual, incluindo os

representantes do Ministério Público, três representantes de organizações não governamentais

e/ou dos movimentos sociais e três representantes das comunidades da orla lagunar.

No entanto, foram entrevistados nove atores-chave, pois concederam entrevista

apenas dois representantes do Município de Maceió, porque o então secretário de saúde

remarcou por diversas vezes a entrevista, deixando clara a sua indisposição em conceder seu

depoimento. Também foram entrevistados apenas dois representantes do Poder Judiciário,

visto que, o juiz que deferiu e acompanha a sentença se negou a conceder o seu depoimento,

alegando que seu posicionamento estava explícito nos autos que disponibilizou para esse

estudo e por esse processo ainda estar em execução. Do mesmo modo, foram entrevistados

apenas dois representantes das organizações não governamentais, por seus depoimentos terem

sido suficientes, semelhantes entre si e pelo fato de outro ator-chave identificado não mais se

encontrar no estado. Em relação aos representantes das comunidades oriundas da orla lagunar,

todos os representantes foram entrevistados.

Essas entrevistas foram abertas, subsidiadas por um roteiro e conduzidas de forma

espontânea. Elas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados depois de terem sido

prestados os devidos esclarecimentos quanto aos objetivos da pesquisa e ao uso dos

depoimentos. Isso nos permitiu obter informações sobre como se constituiu o processo de

18

exigibilidade de direitos nessas comunidades, a partir da percepção desses atores sociais

envolvidos. Também, foi possível identificar as políticas públicas, traduzidas em ações,

programas e prestação de serviços relacionados à saúde nas comunidades.

As entrevistas foram transcritas integralmente. Porém, para fins de análise, foram

extraídas as unidades naturais dos depoimentos, o que corresponde à identificação de suas

expressões-chave para identificar o que é passível de ser analisado. Isso possibilitou a

elaboração de uma síntese interpretativa das descrições essenciais dos depoimentos segundo a

técnica de condensação de significados (MINAYO, 1996; GIBBS, 2009).

Os depoimentos foram descritos no texto de forma a preservar a identidade dos

sujeitos da pesquisa, omitindo-se seus nomes, cuja substituição se deu pelo termo

“representante do poder executivo”, “representante do poder judiciário”, “representante da

sociedade civil organizada” e “representante da comunidade”. Portanto, as falas foram

identificadas por esses termos representativos de cada sujeito, ou seja, uma pessoa ligada ao

governo local, seja da prefeitura, seja de uma das secretarias municipais, a fala foi identificada

como “representante do poder executivo - RPE”, se a fala foi do representante do ministério

público, foi identificada como fala do “representante do poder judiciário - RPJ”, se a fala foi

do representante de algum movimento social organizado, foi identificada como fala do

“representante da sociedade civil organizada - RSCO”, e se a fala foi de algum morador ou

liderança comunitária, foi identificada como fala do “representante da comunidade - RC”.

As citações das entrevistas foram apresentadas em estilo escrito, utilizando-se o

símbolo [...] para indicar a supressão de digressões, seguindo as orientações de Gibbs (2009),

numa adaptação de Kvale (1996).

Os procedimentos da análise documental e das entrevistas permitiram entrecruzar os

dados e elaborar uma síntese interpretativa, estabelecendo um diálogo com referencial teórico

adotado e a literatura pertinente para atender aos objetivos desse estudo.

Para esse procedimento de análise, recorreu-se à abordagem teórica sobre políticas

públicas sob a perspectiva dos direitos humanos, utilizando proposições como indivisibilidade

de direitos, responsabilização e participação.

Segundo Hansen e Sano (2006), a abordagem baseada no direito pressupõe que a

análise do problema seja feita a partir da ligação do problema com a rede de direitos,

19

empoderamento, participação proativa dos titulares nas reivindicações, não discriminação,

atenção aos grupos vulneráveis e prestação de contas.

Esta pesquisa teve seu Projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de

Saúde Pública - FIOCRUZ, CAAE: 01288112.3.0000.5240. O acesso à documentação que

compôs o processo judicial em análise foi permitido mediante Termo de Livre Acesso

Institucional assinado pelo Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da Infância e Juventude da

Capital e as entrevistas realizadas mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

20

2 POLÍTICAS PÚBLICAS: MARCO TEÓRICO E METODOLÓGICO

O campo de estudos conhecido como análise de políticas públicas, que se propõe

analisar as relações entre governo, governantes e cidadãos, vem crescendo significativamente

a partir da década de 1980 (VIANA; BAPTISTA, 2008). Tal campo comporta diversas

definições e formalizações teórico-metodológicas que foram desenvolvidas para apreender a

dinâmica e a complexidade que o processo acelerado de mudanças vem imprimindo nos

sistemas políticos e nas sociedades em âmbito nacional e internacional (PIOVESAN, 2009).

Como políticas públicas, Gelinski e Seibel (2008) as definem como ações

governamentais destinadas a atender determinadas necessidades públicas, que podem ser

sociais (como as políticas de saúde, educação e assistência), macroeconômicas (como a

política cambial, fiscal e monetária) ou outras (como de ciência e tecnologia, cultura e

agrícola). Já Rua (1997, p. 2), compreende essas políticas como um “conjunto de

procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à

resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos”.

Nesse mesmo sentido, para Saravia (2006), a política pública consiste num fluxo de

decisões políticas para manter o equilíbrio social, ou mesmo causar desequilíbrios, com a

finalidade de modificar a realidade. Essas decisões são condicionadas pelo seu próprio fluxo,

pelas reações e modificações que elas provocam no tecido social e pelos valores, ideias e

visões dos que incorporam ou influenciam na decisão. No entanto, sob uma perspectiva

operacional, a política pública se constitui em um sistema de decisões públicas relacionadas a

ações e omissões, preventivas ou corretivas, para manter ou alterar setores da vida social,

através da definição de objetivos, estratégias de atuação e alocação de recursos para alcançar

os resultados desejados.

Como síntese dessas definições de políticas públicas, Souza (2006) as concebe como

um campo de conhecimento que visa colocar o governo em ação, analisar essa ação e propor

mudanças na direção dessas ações, quando for necessário.

Geralmente, o processo de constituição das políticas públicas se estabelece numa

trilogia que se inicia no processo de formulação – que se desdobram em planos, programas e

projetos – passando para a fase de implementação, seguida de acompanhamento e avaliação

(GELINSKI; SEIBEL, 2008; SOUZA, 2006). Embora essa concepção seja usual, Saravia

(2006) adverte quanto à necessidade de maior especificação, no caso do contexto latino-

21

americano, sugerindo que seja feita uma distinção entre elaboração, que consiste na fase de

preparação da decisão política, e formulação, na qual ocorre a decisão política e a sua

formalização jurídica. O autor também propõe uma distinção entre implementação, que

consiste na elaboração de planos, programas e projetos, e execução, onde se põe em prática a

decisão política.

Entretanto, na prática, o processo de constituição de políticas públicas nem sempre

obedece a essa sequência, por tratar-se de uma dinâmica não linear e descontínua, as

articulações, disjunções e relações de causa e efeito entre uma etapa e outra não são

totalmente evidentes, pois ocorrem várias mudanças no decorrer do processo, podendo ser

transformadas até chegar à fase de execução. Isso faz com que alguns autores aceitem essa

perspectiva conceitual apenas para fins heurísticos (PIOVESAN, 2009).

Identificamos na literatura que trata das políticas públicas um consenso em torno da

formulação de Lowi (1972) sobre seus diferentes formatos, configurando-se como

distributivas, redistributivas, regulatórias e constitutivas, segundo seus objetivos, arenas,

processos e formas de apoio e rejeição. As políticas distributivas envolvem decisões tomadas

pelo governo que privilegiam determinados grupos sociais e desconsideram o limite de

recursos. Apesar de privilegiarem determinados grupos, essas políticas não geram maiores

conflitos em suas arenas, pois seus impactos são geralmente individuais. As políticas

redistributivas envolvem grande número de pessoas, causando, em curto prazo, perdas para

alguns grupos sociais e ganhos incertos, no futuro, para outros. Por essa razão, essas políticas

são de difícil negociação e suas arenas, permeadas por conflitos. Por sua vez, as políticas

regulatórias envolvem burocracia, políticos e grupos de interesse. Possuem visibilidade

pública por seu caráter normativo ao se referirem a ordens e a proibições. Nesse sentido, o

nível de conflitos em suas arenas depende da natureza das questões postas em pauta. Por fim,

as políticas constitutivas envolvem os procedimentos e as regras que estruturam os processos

e as condições gerais de negociação para constituição das demais políticas (SOUZA, 2006;

FREY, 2006; PIOVESAN, 2009).

A partir das várias definições e modelos desenvolvidos, Souza (2006) identifica três

elementos principais da política pública, a possibilidade de se estabelecer a diferença entre o

que o governo pretende fazer e o que realmente faz, o envolvimento de uma variedade de

atores e níveis de decisão, que abrange participantes formais e informais, e o caráter de longo

22

prazo, que envolve processos subsequentes a partir de sua formulação, como sua

implementação, execução, acompanhamento e avaliação.

A partir da definição de política pública e considerando-a como objeto de estudo,

Frey (2006) propõe uma análise que considere a integração de vários elementos, tais como: a)

a própria política pública com seus programas, questões técnicas e conteúdo das decisões

políticas; b) os seus processos políticos, geralmente de caráter conflituoso relacionado à

definição de objetivos, conteúdos e distribuição de recursos; c) as instituições políticas, a

ordem do sistema político, principalmente o seu sistema jurídico, e a estrutura institucional

político-administrativa, que constituem uma sociedade política e; d) as instituições que

direcionam as decisões, formulação e implementação das políticas que se entrelaçam e sofrem

influencias recíprocas. Essas perspectivas de análise oferecem categorias analíticas para a

estruturação de pesquisas no campo de políticas públicas, por meio de modelos

representativos e tipos ideais que permitem apreender e explicar possíveis articulações entre

elas.

Saravia (2006) alerta sobre o quão é importante o ponto de vista do analista em um

estudo de política pública, pois esse campo aglutina diferentes formas de análise. Além disso,

elenca, a partir de Hogwood e Gunn (1984), várias perspectivas para estudo de uma política.

Algumas dessas perspectivas se assemelham às acima citadas, principalmente quanto aos

estudos de conteúdos, processos decisórios, alocação e distribuição de recursos. O autor

também apresenta outras perspectivas, como os estudos de avaliação, que podem ser

descritivos ou prescritivos, os de levantamento de informações para subsidiar a elaboração de

políticas, os de análise de processo para qualificar os sistemas de elaboração de políticas e os

estudos em que o analista exerce influência no processo de constituição da política para

defender ideias ou posições específicas.

O estudo de Faria (2003) sobre as principais vertentes formuladas recentemente na

área de políticas públicas identifica que, desde o seu início, predominam como foco de análise

os processos de formação das políticas, com especial destaque para os processos decisórios.

Posteriormente, a definição da própria política passou a ser uma importante unidade de

análise, com destaque para os processos políticos e para os diversos atores envolvidos.

Atualmente, há uma grande diversificação de abordagens que tentam dar conta da dinâmica e

da complexidade dos processos de formação e gestão das políticas públicas e que dão ênfase

ao papel do conhecimento.

23

Diante da diversidade de formulações teóricas que se abrigam no campo de análise

sobre políticas públicas, algumas vertentes merecem destaque, entre as quais a pluralista, a

estrutural-funcionalista, a neocorporativista, a neopluralista, a neoinstitucionalista e a

abordagem de direito. Vale ressaltar que muitas dessas abordagens, embora elaboradas em

certa sequência temporal, convergem-se em vários aspectos. Por essa razão, serão descritas

sucintamente, com ênfase na relação entre política pública e direito, especialmente direito à

saúde, que é o objeto de estudo deste trabalho.

Na perspectiva pluralista, o Estado é visto como produto da interação entre os grupos

livremente formados, sendo, assim, permeável às pressões e aos interesses desses grupos.

Nesse sentido, o poder é difuso e distribuído igualmente entre os diversos atores e/ou grupos

sociais, dependendo da capacidade e disposição de cada um de articular estratégias e recursos

na disputa por seus interesses para garantir a vitória sobre os demais. Por isso, é considerada

uma teoria normativa capaz de examinar e explicar o poder nas democracias liberais (RUA,

1997; OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, seus principais argumentos foram contestados por seus opositores, ao

afirmarem que não há equivalência de poder entre os grupos e atores sociais, e sim, um

domínio político exercido por determinados grupos, como os militares, os de grandes

corporações comerciais e as agências estatais (OLIVEIRA, 2007).

Como resposta às críticas recebidas, os seguidores dessa perspectiva recorreram à

teoria econômica para defender a semelhança existente entre a política e o mercado. Desse

modo, as lideranças políticas através dos partidos políticos competem por votos e concorrem

entre si para ganhar poder e, à medida que atendem às demandas dos grupos de pressão,

fortalecem o poder do Estado, acirrando a disputa com o mercado (OLIVEIRA, 2007).

Segundo Souza (2006), essa perspectiva adota um viés cético quanto à capacidade

governamental de formular políticas públicas, pois demonstra desconfiança nos mecanismos

políticos de decisão e defendem a lógica decisória do mercado e a visão de que interesses são

mobilizados apenas pelo auto-interesse, quando também são acionados por processos

institucionais, ideias e processos históricos de cada sociedade.

Já a vertente estrutural-funcionalista busca evidenciar o modo como as instituições se

articulam entre si para manter o status quo, cujo processo é permeado por crises sociais e

transformações subsequentes. Suas teorias indicam que há uma supremacia da estrutura na

24

ação política e que a divisão social do trabalho em classes, o modo de produção capitalista, o

estado e a ideologia seus propulsores, por isso, é considerada uma perspectiva de análise

determinista (OLIVEIRA, 2007).

Em reação a essas duas primeiras correntes, as teorizações neocorporativistas

enfatizam a representação de interesses através de organizações formais, legalmente

reconhecidas pelo Estado, que atuam nas arenas decisórias. Nesse sentido, o Estado assume

um papel de direção, pois faz a mediação entre os principais grupos econômicos e sociais e

detém o poder jurídico e organizacional, conferindo-lhe certa autonomia (OLIVEIRA, 2007).

Segundo essa mesma autora, os neopluralistas contestam tanto as teses que atribuem

domínio aos grupos de pressão quanto às organizações de representação monopólica, sob a

argumentação de que elas não dão conta da complexidade dos processos políticos

relacionados à produção de políticas públicas nas modernas sociedades. Para isso, propõem a

metáfora do funil como representação do processo de produção de políticas. Em sua abertura,

há maior espaço para atores e grupos sociais se expressarem e articularem seus interesses,

porém, à medida que o processo se afunila, a participação se reduz às organizações que

representam interesses de grande contingente de afiliados. Tais organizações são autorizadas a

propor, influenciar e escolher, entre as alternativas disponíveis, aquelas que melhor se

acomodam aos seus interesses. Na saída do funil, encontram-se apenas um grupo reduzido

que compõe as arenas institucionais e que tomam as decisões finais na produção de uma

política. Embora na prática, a maioria dos eventos não obedeça totalmente essa sequência,

essa perspectiva contribui para visualização do processo de formação de uma política.

Tanto os neopluralistas quanto os neocorporativistas enfocaram a intermediação de

interesses veiculados pelas redes ou comunidades políticas fortemente organizadas e

vinculadas formalmente às arenas estatais de decisão (PIOVESAN, 2009). Entretanto, a

análise do poder político como algo estático ou relativo à especificidade de determinados

grupos ou atores não permite explicar como semelhantes grupos organizados e poderosos

alcançaram resultados bem diferentes em diversos contextos políticos (IMMERGUT, 1992).

O neoinstitucionalismo tem exercido forte influência no campo de políticas públicas

por fornecer instrumentos analíticos que possibilitam apreender o papel das instituições e das

regras formais e informais que regem, inclusive, o comportamento dos atores no processo de

produção das políticas (SOUZA, 2006). Porém, essa vertente teórica não se constitui em uma

corrente de pensamento unificada, pois segundo Hall e Taylor (2003), ela integra, no mínimo,

25

três vertentes analíticas, as quais designam como institucionalismo histórico,

institucionalismo da escolha racional e institucionalismo sociológico.

Entretanto, para fins dessa exposição, faremos apenas uma breve exposição das

escolas do institucionalismo histórico e da escolha racional, pela sua crescente utilização em

estudos do campo da saúde pública, pois o institucionalismo sociológico possui maior

inserção no campo das ciências sociais.

O institucionalismo histórico enfatiza o papel que desempenha a evolução histórica

das instituições e a conjuntura política no processo de produção de uma política pública.

Atribui especial atenção às relações de poder assimétricas, evidenciando como o poder é

distribuído desproporcionalmente entre os grupos sociais, conferindo acesso desigual a atores

que representam certos interesses no processo decisório (HALL; TAYLOR, 2003). Também

defende que a formulação e a implementação de uma política “depende da trajetória

percorrida pelos atores, cuja força se modifica em função das características de cada contexto

e de seu legado” (OLIVEIRA, 2007, p. 17).

Essa vertente analítica procura situar as instituições em uma cadeia causal que

possibilita explicar como elas produzem seus trajetos e estruturam suas respostas às

demandas, além de permitir a inclusão de fatores como o desenvolvimento socioeconômico e

a difusão de ideias em sua análise. Nesse sentido, as decisões políticas resultam de uma

sequência de decisões tomadas por diferentes atores em distintos postos de decisão que

representam os interesses das diversas arenas políticas, cuja definição depende de pontos de

veto ou janelas de oportunidade que se constituíram ao longo do processo de produção de uma

política.

Esse processo é construído a partir de regras e mecanismos estabelecidos

institucionalmente que circunscrevem o alcance de cada instância de decisão e permite a

análise das propostas e a definição de alternativas resultantes da correlação de forças dos

atores e dos interesses envolvidos e não necessariamente do mérito social ou econômico.

A partir do reconhecimento dos mecanismos, atores e relações inerentes à

constituição de uma política pública, o institucionalismo histórico focaliza a origem histórica

das instituições, as regras do jogo e os elos da cadeia decisória, identificando as posições

assumidas pelos atores, seus interesses e formas de pressão (OLIVEIRA, 2007). Isso decorre

da compreensão de que um dado contexto institucional, ao consolidar-se ao longo do tempo,

26

pode estabelecer visões de mundo que, ao serem propagadas por organizações formais,

modelam a imagem de si e as preferências dos atores envolvidos. Nesse sentido, essa

perspectiva apresenta um universo complexo sobre as preferências e as instituições. Porém,

ela não refinou, de forma precisa, a compreensão sobre como as instituições influenciam o

comportamento (HALL; TAYLOR, 2003).

Segundo esses mesmos autores, o institucionalismo da escolha racional desenvolveu

uma formulação mais precisa sobre as relações entre as instituições e o comportamento dos

atores, fornecendo um arcabouço conceitual para uma elaboração teórica consistente, pois

essa escola busca apreender, em sua análise, o comportamento dos atores no interior das

instituições, em particular, como os interesses dos próprios atores são maximizados no

processo político, destacando-se o papel da interação estratégica na determinação das políticas

(HALL; TAYLOR, 2003).

Para os teóricos dessa escola, o comportamento de um ator é definido por um cálculo

estratégico fortemente influenciado pelas expectativas que o ator possui em relação ao

provável comportamento dos demais e não por forças históricas impessoais. Nesse sentido,

atribuem às instituições a estruturação dessa interação bem como a definição de

possibilidades e alternativas, à medida que fornecem informações e mecanismos que reduzem

as incertezas relativas ao comportamento dos outros atores, do mesmo modo que possibilitam

aos atores envolvidos visualizarem oportunidades de ganhos, e, assim, orientarem suas ações

com maior precisão e racionalidade.

Isso faz com que a vida política possa ser vista como um conjunto de dilemas da

ação coletiva, em que os indivíduos envolvidos podem vir a produzir resultados abaixo do

possível para a coletividade. No caso de uma política pública, isso pode fazer com que seus

objetivos não sejam alcançados ou não satisfaça às necessidades para qual foi criada, devido à

busca por um resultado que satisfaça os interesses dos atores envolvidos sem que nenhum saia

perdendo (HALL; TAYLOR, 2003).

Na vertente do institucionalismo da escolha racional, o processo de criação e

manutenção de uma determinada instituição assenta-se no acordo voluntário entre os atores

interessados e, se esta estiver submetida a um processo de seleção competitiva, sua

sobrevivência depende dos benefícios a mais que oferece para os atores interessados do que às

suas concorrentes (HALL; TAYLOR, 2003; PIOVESAN, 2009).

27

Podemos observar que as escolas neo-institucionalistas revelam aspectos importantes

sobre o comportamento dos atores e o impacto que as instituições exercem sobre eles. Nesse

sentido, suas vertentes elucidam dimensões do processo de produção de políticas públicas

como a luta por poder e por recursos entre os grupos sociais, ou seja, a teoria da escolha

racional enfatiza os interesses dos atores e o institucionalismo histórico, o papel das ideias, da

estrutura, da história e das instituições (SOUZA, 2006).

2.1 Políticas públicas e a abordagem de direito

Embora política pública seja uma temática oriunda da ciência política, recentemente

vem se constituindo no campo do direito um movimento de interdisciplinaridade que busca

definir essa temática como campo de estudo jurídico. Isso com o objetivo de superar a

distância que foi estabelecida, em sua trajetória positivista, das outras áreas de conhecimento

e assim, enfrentar o problema da esterilização do direito, principalmente do direito público,

em sua função de organizar as relações sociais (BUCCI, 2001).

Entretanto, a relação entre política pública e direito é intrínseca, como nos diz

Willian Clune na tradução de Bucci (2001):

Por definição, todo direito é política pública, e nisso está a vontade coletiva da

sociedade expressa em normas obrigatórias; e toda política pública é direito; nisso

ela depende das leis e do processo jurídico para pelos menos algum aspecto da sua

existência (p. 06).

É importante salientar que essa definição está ancorada na observação do contexto

norte americano, no qual é antigo o vínculo do sistema jurídico com a temática das políticas

públicas, diferentemente de países como o Brasil, onde essa questão é ainda pouco definida,

visto que a discussão sobre o que é público ou privado em direito está longe de ser

equacionada. Tomemos, por exemplo, o conceito de público-não-estatal como forma de

organização social paralela ao Estado e o lugar da participação popular nas instituições

jurídico-políticas que ainda não se encontram devidamente consolidadas, apesar de serem

dimensões privilegiadas na produção de políticas públicas (BUCCI, 2001). Porém, de modo

geral, há um consenso relativo à compreensão de que a política pública integra a dimensão

jurídica e que esta se auxilia dos insumos que as análises de política pública lhe proporcionam

(SARAVIA, 2006).

A necessidade de análises de políticas públicas sob a perspectiva do direito se

evidencia à medida que se buscam formas para sua concretização, principalmente dos direitos

28

humanos, mais precisamente dos direitos sociais, por cumprirem a função de garantir que toda

pessoa tenha condições de usufruir dos direitos individuais que consistem em direitos de

liberdade, cujo exercício implica que o Estado e os concidadãos se abstenham de impedir o

seu gozo. Desse modo, um cidadão não pode usufruir plenamente do direito à liberdade de

expressão e de pensamento se não for alfabetizado. Por isso, o direito à educação, entre outros

direitos sociais, foram instituídos nas normas jurídicas. Nesse mesmo sentido, foram

concebidos os direitos transgeracionais para ampliar a garantia dos direitos individuais em

relação às gerações futuras como o direito ao meio ambiente equilibrado, à biodiversidade e

ao desenvolvimento (BUCCI, 2001).

Podemos perceber que o conteúdo jurídico sobre a dignidade humana tem se

ampliado no decorrer do processo histórico, no qual novos direitos foram agregados e

reconhecidos como direitos fundamentais. Isso torna cada vez mais complexa a fruição dos

direitos humanos à proporção que demanda medidas concretas do Estado no sentido de

disciplinar o processo social para impedir a desagregação e a exclusão gerada pela economia

capitalista, garantindo, assim, o desenvolvimento da pessoa humana.

A partir dessa perspectiva, a política pública se constitui em ação governamental e,

em determinado plano, assume um caráter operacional do direito. O caminho de efetivação de

um direito geralmente integra a produção de uma ou mais política pública desde o seu

nascimento e instituição como norma, até a sua execução, depois de ter sido incorporado em

um programa de ação governamental. Nesse caso, o processo de realização do direito perpassa

todas as fases de produção da política, desde a definição da agenda, a formulação de

alternativas, a decisão, a implantação, a execução, até a avaliação. Assim, as políticas públicas

podem ser vistas como programas de ação governamental voltados à concretização de direitos

(BUCCI, 2001).

Entretanto, devemos ressaltar que nem toda norma se constitui necessariamente em

uma política pública, a exemplo da emenda constitucional que estabelece o direito à reeleição

aos governantes no Brasil, pois as normas, como produção legislativa, são geralmente

associadas à generalidade e à abstração, diferentemente das políticas, que são criadas para

realização de objetivos determinados, atuando de forma complementar na concretização dos

princípios e regras. Em outras palavras, os princípios são proposições que descrevem direitos

e as políticas públicas são proposições que descrevem objetivos (BUCCI, 2001).

29

Nesse sentido, os direitos humanos são mais considerados princípios do que regras,

por serem valores que devem compor o espírito das demais normas e que vêm desde a

Declaração de 1948, conferindo lastro axiológico e unidade valorativa a esse campo do

Direito. Eles postulam a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência como suas

dimensões. Universalidade porque defende a extensão universal dos direitos humanos ao

afirmar a condição humana como requisito único para a titularidade de direitos e também por

considerar a essência moral do ser humano, sua unicidade existencial e a sua dignidade.

Indivisibilidade porque conjuga os direitos civis e políticos aos direitos econômicos, sociais e

culturais. E interdependência porque defende que a violação ou o não atendimento de um

direito afeta a plena realização dos demais direitos (PIOVESAN, 2005).

A ampliação dos direitos humanos, através de sucessivos pactos internacionais, com

sua ratificação e sua incorporação nos ordenamentos jurídicos nacionais, torna o seu campo

de análise e de atuação cada vez mais complexo. Isso requer o desenvolvimento de

instrumentos que propiciem a efetividade na tutela e a concretização dos direitos

fundamentais, conjugando medidas repressivas e punitivas com estratégias promocionais.

Nesse sentido, os sistemas globais e regionais de proteção dos direitos humanos têm se

complementado e interagido na defesa dos indivíduos protegidos (PIOVESAN, 2005).

Em função de sua legitimidade, os direitos humanos são frequentemente invocados,

de diferentes formas, para justificar políticas econômicas, sociais e culturais, pois são

consagrados como obrigações dos Estados-Membros da ONU. A legitimidade desses direitos

tem sido fortalecida pelo reconhecimento do importante papel desempenhado na formação de

políticas públicas, programas e práticas que visam melhorar o bem-estar individual e social.

(TARANTOLA et al., 2008).

A abrangência dos direitos humanos, além de fortalecer o vínculo entre o direito e as

políticas públicas, tem estimulado aqueles que trabalham na sua implementação a se

aproximarem das demais áreas que partilham de aspirações para melhoria do bem-estar

humano, das relações entre as pessoas e dos ambientes em que vivemos, visando aprofundar a

compreensão da realidade e desenvolver ferramentas analíticas para identificar e gerenciar o

potencial oferecido por uma abordagem de direitos (TARANTOLA et al., 2008).

O direito à saúde pode ser considerado um caso ilustrativo da maior aproximação dos

direitos humanos com outras áreas, como a saúde pública, a epidemiologia social e a medicina

social e com áreas mais abrangentes, como a de desenvolvimento e meio ambiente

30

(VENKATAPURAM; BELL; MARMOT, 2010). Essa articulação tem procurado avançar na

compreensão da interdependência entre saúde e direitos humanos, buscando a maximização

de sinergias na orientação e acompanhamento das políticas para melhorar as condições de

vida e saúde, principalmente daqueles mais vulneráveis ou submetidos à violação de seus

direitos (TARANTOLA et al., 2008).

2.2 Direitos humanos e a saúde

Historicamente, há uma inter-relação entre saúde e direitos humanos, visto que o

direito de todos ao gozo do mais alto nível possível de saúde física e mental é mencionado em

muitos documentos internacionais e regionais de direitos humanos e da saúde.

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, o

direito à saúde é proclamado entre os direitos fundamentais do ser humano. Em seu Art. 25, §

1, esta declaração afirma que

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua

família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao

alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e

tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na

velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias

independentes da sua vontade.

Entretanto, o direito à saúde só se consolidou no Art.12 do Pacto Internacional de

Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), de 1976, que vinculou definitivamente o

direito à saúde ao direito à vida e o caracterizou como um direito humano nos seguintes

termos.

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar

do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir.

2. As medidas que os Estados Partes tomarem para garantir o pleno exercício deste

direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar:

a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o

desenvolvimento são da criança;

b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene

industrial;

31

c) A profilaxia, o tratamento e o controle das doenças epidêmicas, endêmicas,

profissionais e outras;

d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e

ajuda médica em caso de doença.

Em 2000, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais discutiu questões

substantivas sobre a aplicação do PIDESC pelos Estados Membros, entre essas questões

estavam o direito ao mais alto nível de saúde possível. Em seu Comentário Nº 14, além de

reafirmá-lo, ressaltou a sua importância para o exercício de outros direitos. Segundo esse

comentário, a realização desse direito pode ser desenvolvida através de inúmeras abordagens

complementares, tais como a formulação de políticas de saúde ou a implementação de

programas desenvolvidos pala Organização Mundial de Saúde (OMS), entre outros

instrumentos jurídicos específicos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), por sua vez, desde a sua constituição em

1946, afirmou que a saúde é um direito fundamental de todo ser humano. Em 1978, a

Declaração de Alma Ata sobre os cuidados primários de saúde reafirmou, de forma enfática,

que a saúde é um direito humano fundamental e que alcançar o mais alto nível possível de

saúde é a meta social mundial mais importante. Entretanto, sua realização exige a ação

conjunta de outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde. Também reafirmou a

importância do desenvolvimento econômico e social para a plena realização da meta saúde

para todos, do direito e do dever de garantir a participação individual e coletiva dos povos no

planejamento e na execução de seus cuidados de saúde. Do mesmo modo, ressaltou a

responsabilidade dos governos mediante a realização de medidas sanitárias e sociais.

Da mesma forma, a Carta de Ottawa (1986), seguida de diversos documentos sobre a

promoção da saúde, ressaltou a saúde como um requisito para o desenvolvimento dos países e

importância da participação e da capacitação das pessoas para fazer escolhas adequadas ao

seu bem-estar. Além disso, identificou a paz, a habitação, a educação, a alimentação, a renda,

o ecossistema estável, os recursos sustentáveis, a justiça social e a equidade como requisitos

básicos e a importância da intersetorialidade para promoção da saúde.

A agenda estabelecida para o desenvolvimento mundial, com a determinação das

Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM), reafirmou a interdependência entre as

condições sociais e as condições de saúde e a importância das políticas de saúde para

32

enfrentar as raízes sociais do sofrimento humano, considerado injusto e evitável (PNUD,

2003). Isso influenciou a OMS a criar, em 2005, uma comissão sobre os Determinantes

Sociais da Saúde (DSS) para se debruçar sobre as causas das desigualdades de saúde e doença

e melhorar a saúde nas comunidades mais pobres e vulneráveis do mundo. Essa comissão

apresentou, em seu relatório, recomendações que foram discutidas e aprovadas na Assembleia

Mundial da Saúde de 2009, defendendo a inserção da saúde em todas as políticas, o

compromisso com as ações intersetoriais, a implementação da abordagem dos determinantes

sociais em programas de saúde pública e o fortalecimento da mensuração das desigualdades

de saúde e de monitoramento do impacto das políticas sobre os determinantes sociais da saúde

na população (CMDSS, 2011).

Alguns autores, afirmam que grande número dos problemas econômicos, sociais,

psicológicos e ambientais, muitas vezes referidos como determinantes sociais de saúde podem

também ser identificados como violações de direitos humanos, tal como são definidos nos

estatutos internacionais. Desse modo, a abordagem de direito pode ser uma aliada e um

mecanismo importante para enfrentar os determinantes sociais da saúde e as desigualdades na

luta por justiça social. Isso baseando-se nas funções de proteger, promover e fazer cumprir os

direitos envolvidos na superação dos problemas de saúde da população. Esses autores também

ressaltam que os direitos humanos, além de seu poder normativo, possuem valor moral e ético

subjacentes que podem orientar as ações sociais e promover ajustes, constituindo uma rede de

segurança que capacita os que sofrem na luta para avançar na diminuição do abismo da

desigualdade e da privação (TARANTOLA et al., 2008; MARKS, 2008; YAMIN, 2008;

VENKATAPURAM; BELL; MARMOT, 2010).

A partir do reconhecimento da intrínseca relação existente entre os direitos humanos

e a saúde, tem-se buscado a aproximação entre várias áreas de conhecimento com o objetivo

de atingir o mais alto nível possível de saúde. Nesse contexto também se evidencia a

interdependência e a indivisibilidade com os demais direitos civis, políticos, econômicos,

socias e culturais ao demonstrar empiricamente que o descumprimento desses direitos causa

impacto negativo sobre o estado de saúde das pessoas, do mesmo modo que problemas de

saúde podem condicionar o cumprimento de todos os direitos, pois a capacidade das pessoas

de reivindicar e usufruir dos seus direitos humanos depende de sua integridade física, mental e

bem estar social (TARANTOLA et al., 2008).

33

Entretanto, isso não implica que qualquer política de caráter interdependente incidirá

positivamente sobre todos os direitos, pois programas de desenvolvimento podem ter impacto

negativo sobre a saúde ou ao ambiente, do mesmo modo que ações de proteção à saúde, sem a

devida atenção aos demais direitos humanos, podem ser prejudiciais para indivíduos ou

comunidades. Por outro lado, defende-se que, para avançar na realização do direito à saúde é

preciso a ampliação da articulação com os direitos humanos e o desenvolvimento, resultando

em benefícios substancialmente maiores do que a soma das partes. Desse modo, as políticas e

programas devem considerar as implicações para o desenvolvimento, para a saúde e para

realização dos direitos humanos, maximizando os benefícios e minimizando os possíveis

danos (TARANTOLA et al., 2008).

Considerando que as necessidades de saúde são atendidas por meio de políticas

econômicas e sociais, a questão dos direitos, do acesso ao poder e aos recursos tem fortalecido

a aproximação entre os direitos humanos e a saúde pública para enfrentar o desafio de

transformar as estruturas políticas de distribuição e serviços para realização do direito à saúde.

Isso tem criado oportunidades para uma maior compreensão de como os direitos humanos e

diversos determinantes do progresso e do bem estar social interagem, e assim, melhorar as

políticas e as agendas de ação.

Segundo Gruskin et al. (2007), a ancoragem de estratégias de saúde pública em

matéria de direitos humanos pode enriquecer os conceitos e os métodos utilizados para atingir

os objetivos relativos à saúde, elucidando questões jurídicas das políticas e do contexto em

que as intervenções de saúde ocorrem. Além disso, trazem os princípios de direitos humanos

como a não discriminação e a participação para envolver as comunidades afetadas na

formulação, execução, acompanhamento e avaliação dos programas e intervenções de saúde,

contribuindo para assegurar a transparência e a responsabilização por meio de mecanismos

que viabilizem a prestação de contas a partir de parâmetros e metas bem definidas que

permitam relacionar as decisões tomadas com os resultados alcançados.

O reconhecimento da sinergia existente entre saúde pública e direitos humanos é

fundamental para enfrentar o desafio de garantir a efetivação do direito à saúde, pois a

promoção e a proteção à saúde requerem esforços concretos para promover e proteger os

direitos humanos, do mesmo modo que o maior cumprimento desses direitos demanda

especial atenção à saúde e aos determinantes sociais aí implicados. Essa relação ilustra a

complementaridade entre as metas em saúde pública e as normas de direitos humanos na

34

condução das políticas e programas de saúde mais eficazes, além de reorientar as políticas

públicas de saúde atualmente fragmentadas e baseadas na lógica burocrática e profissional

(OLIVEIRA, 2006).

Como, de um modo geral, as políticas públicas relacionadas à saúde são formuladas e

controladas pelo Estado, sua operacionalização se dá no contexto das suas obrigações de

respeitar, proteger e realizar os direitos relativos à saúde de acordo com os tratados

internacionais de direitos humanos e as normas constitucionais dos países.

No entanto, o papel do Estado no desenvolvimento e na prestação de serviços para

garantir as necessidades básicas para a saúde é contestado e, muitas vezes prejudicado, pois o

setor privado e outros atores não estatais atuam como prestadores de cuidados relacionados à

saúde, dentro de uma estrutura econômica e ideológica, como se fosse mais um produto do

mercado.

Considerando o contexto de crescente globalização e atual crise econômica,

Venkatapuram, Bell e Marmot (2010), chamam a atenção para a necessidade de se observar

não só como os governos estão cumprindo as suas responsabilidades de assegurar um

progresso adequado, como também se estão retrocedendo em suas obrigações perante as leis

já instituídas, visto que muitos problemas de saúde são causados mais por atores poderosos do

que alguns governos, ressaltando, assim, a importância dos direitos humanos como um

instrumento disponível para tentar colocar limites, tanto no cansaço público como na ganância

privada, através de mecanismos de responsabilização.

Esses autores ressaltam ainda que o principal valor de um quadro de direitos

humanos aplicado para o desenvolvimento, especialmente aos aspectos relacionados ao

desenvolvimento da saúde, reside precisamente na identificação de indivíduos como titulares

de direitos assegurados, Estados e demais atores como portadores de deveres que podem ser

responsabilizados de acordo com a ordem jurídica e não somente como obrigações morais.

Isso implica que seja identificado o que o Estado está fazendo, o quanto está investindo e

como o Estado se encontra no processo de realização dos direitos relacionados à saúde,

utilizando como parâmetro jurídico as normas internacionais e nacionais. Ou seja, se os

portadores de obrigações estão prestando assistência adequada, se estão investindo o

suficiente no fornecimento da assistência e se essa assistência está promovendo a igualdade, a

participação significativa e se constitui um sistema de saúde que atende as necessidades da

população.

35

A abordagem de direitos aplicada à saúde preconiza o acompanhamento e a

fiscalização tanto dos agentes do governo como daqueles que são afetados pelas políticas,

garantindo a transparência, o acesso à informação e a participação popular ativa. Isso significa

que a aplicabilidade do princípio de responsabilização exige a capacitação e a mobilização de

pessoas comuns para que se engajem na ação política e social, assegurando que os objetivos

das políticas de saúde sejam atingidos. E no caso de violação de direitos, ressalta-se a

importância da existência de mecanismos acessíveis e eficazes de reparação, por meio dos

quais os marginalizados ou comunidades de excluídos possam ser ouvidos, não apenas no

diagnóstico de falhas institucionais, mas também nas negociações de políticas sociais e

orçamentos da saúde que lhes dizem respeito. Para isso, considera-se a criação de coalizões e

de redes de entidades, movimentos sociais e ONGs, fundamentais para garantir êxito no

processo de responsabilização e na prestação de contas (YAMIN, 2008).

Essa abordagem também enfatiza que o mapeamento das responsabilidades é inútil

se não houver consequências por falhas no cumprimento das obrigações. Isso significa que a

os mecanismos jurídicos de responsabilização internacionais e nacionais exercem um

importante papel para assegurar a realização dos direitos relacionados à saúde, como

tribunais, orgãos quase-judiciais e organismos internacionais de monitoramento de tratados

autorizados a acompanhar a situação dos países e receber queixas individuais ou coletivas de

violações (YAMIN, 2008).

Nesse sentido, a responsabilização implica que os Estados e outros atores são

portadores de obrigações legais e não de gestos de boa vontade, cuja aplicação exige a criação

de ferramentas para discernir o que é evitável do que não é, sem aceitar as falhas da vontade

política sob o disfarse da escassez de recursos para, assim, avançar na efetivação dos direitos.

Desse modo, é interessante considerar que a realização do direito à saúde envolve instiuições

públicas que devem prestar distribuição igualitária de serviços, garantindo privacidade e

confidencialidade, permitindo o direito à informação, participação, promoção da dignidade e a

criação de mecanismos eficazes de prestação de contas que assegurem a exigibilidade de

direitos através de parâmetros, metas, ações desenvolvidas, monitoradas e avaliadas em seus

resultados.

2.3 Exigibilidade de direitos

36

O processo de realização dos direitos humanos deve acontecer numa rede dinâmica

de ações desenvolvidas por e entre os atores desse cenário, isto é, o Estado, com suas

obrigações de garantir o respeito, a proteção, a promoção e o provimento dos direitos a todos

os indivíduos habitantes de seu território; os titulares de direitos, com sua força de exigir e

cobrar a realização de seus direitos e os demais atores sociais, com suas corresponsabilidades

na realização destes direitos.

A palavra exigibilidade, que significa aquilo que pode ser exigido, tem um caráter

impositivo de reivindicação. No Brasil, em matéria de saúde, aquilo que pode ser exigido, por

estar garantido constitucionalmente, deve ser exigido, acompanhando esse caráter impositivo.

Exigir, desse modo, significa reclamar, requerer, ou mesmo ordenar, em função do direito

legítimo.

Nesse sentido, exigir é uma ação/processo resultante da conscientização do titular de

direito da efetiva existência de seu(s) direito(s) e da certeza do direito de sua cobrança.

Enquanto prerrogativa da cidadania, “é a possibilidade de exigir o respeito, a proteção, a

promoção e o provimento de direitos, perante os órgãos públicos competentes

(administrativos, políticos ou jurisdicionais) para prevenir as violações a esses direitos ou

repará-las” (VALENTE et al., 2007ª, p. 5).

O processo de exigibilidade só existe se o direito estiver sendo violado e/ou negado.

Piovesan, Gotti e Martins (2009, p. 94) alertam que “há que se propagar a ideia de que os

direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e,

por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade.”

Portanto, qualquer sociedade que busque se construir numa perspectiva ética e socialmente

justa deve se comprometer com uma agenda de inclusão voltada para um modelo de

desenvolvimento sustentável que combata todas as formas de discriminação e avance na

promoção da igualdade.

É no avanço da construção desse novo paradigma que o processo de exigibilidade

ganha força. Nesse sentido, Bucci (2001, p. 9) diz que, mesmo sendo a fruição dos direitos

humanos uma questão complexa, é preciso haver uma mudança nos contextos das políticas

públicas, pois

não basta uma Constituição bem escrita para que ela seja cumprida e obedecida – há

possibilidade de se travar pelas vias do direito e com base na Constituição, uma

batalha própria, capaz de melhorar as condições sociais, por meio da garantia do

37

exercício de direitos individuais e de cidadania a todos, da forma mais abrangente

possível.

De acordo com Burity et al. (2010, p. 70), “a exigibilidade dos direitos humanos tem

como base legal as Declarações e Tratados Internacionais de Direitos Humanos”, bem como

as “normas previstas na Constituição Federal, em leis e em regras administrativas”.

A exigibilidade de direitos é o mote que sustenta os processos judiciais na área da

saúde (judicialização)2. Contudo, a judicialização é apenas um de seus instrumentos.

Consideramos a exigibilidade como um processo político deflagrador de um novo

comportamento entre o Estado e a sociedade civil, para dar conta dos direitos violados e/ou

não atendidos, que se traduz em políticas públicas mais resolutivas e mais abrangentes,

mesmo que essas políticas possam ser focalizadas em grupos, territórios e demandas

específicas, seus resultados não são pontuais e individualizados como nos processos judiciais

comuns.

Embora a judicialização da saúde seja fundamental no processo da exigibilidade de

direitos, a resposta se concentra no Poder Judiciário e se encerra no atendimento específico e

pontual da demanda. Já o processo da exigibilidade de direitos, apesar de ter como um de seus

recursos a esfera judiciária, focaliza sua ação na política pública mais duradoura, com a

interveniência dos demais poderes do Estado de Direito.

2.4 Instrumentos de exigibilidade

Na perspectiva do Direito, o Estado tem a obrigação de garantir o direito e também

os mecanismos para que as pessoas possam exigi-lo. Assim, é de se esperar que a proposição

de metas a serem estabelecidas visando à correção de suas violações possa ser item concreto

de qualquer planejamento de política pública (ALBUQUERQUE, 2009). Nesse sentido, para

o exercício da exigibilidade, é necessário que o Estado crie e disponibilize, de maneira

acessível, instrumentos e instituições (âmbito federal, estadual e municipal), necessárias para

que todos os seus habitantes possam reclamar seus direitos. Além disso, utilizando a

perspectiva de responsabilidade social, pode-se citar também as iniciativas da sociedade civil

como instrumento de pressão sobre o Estado no processo de cobrança da realização dos

direitos humanos (BURITY et al., 2010).

2 Entende-se como judicialização da saúde, o processo de reivindicação da concretização do direito à saúde

através de ação judicial (ASENSI, 2010).

38

Podemos considerar que as instituições participantes dos processos de exigibilidade

são de duas ordens: organizações da sociedade civil, tais como movimentos instituídos,

sindicatos, associações, ONGs etc. e organizações públicas, como o Ministério Público, os

Conselhos de Direitos Humanos, a Defensoria Pública, os Conselhos Tutelares, os Conselhos

de Saúde regidos pela Lei 8.142/1990, entre outras.

Com a perspectiva de garantir a efetivação dos direitos humanos, o Brasil ratificou o

PIDESC em 1992. Esse pacto é o principal instrumento internacional de garantia dos direitos

que intenta comprometer os Estados signatários na prestação de contas de como o processo de

realização de direitos e correção de suas violações têm acontecido e avançado. Pode-se dizer,

portanto, que é um importante instrumento de pressão e monitoramento.

Os termos do Artigo 12 e o Comentário Geral nº 3 do PIDESC (1990) mostram que,

em sendo seu signatário, o Brasil obriga-se a adotar publicamente no cenário internacional

uma postura de portador de obrigações, isto é, de respeitar, proteger, promover e prover o

direito à saúde de forma diligente e eficaz, sendo essa responsabilidade compartilhada por

todos: toda pessoa, toda organização social, e de modo particular, o poder público. Assim, a

responsabilidade da realização dos direitos humanos deve estar estabelecida nos desenhos das

políticas públicas e também nas possibilidades de garantia de mecanismos para exigência

destes direitos via instituições e instrumentos.

Segundo Valente, Franceschini e Burity (2007), no contexto brasileiro, os

instrumentos de exigibilidade podem ser utilizados em nível individual ou coletivo podendo

ser variados, tais como administrativos, políticos, quase-judiciais e judiciais. Esses autores

afirmam que a exigibilidade administrativa é viabilizada junto aos organismos públicos

responsáveis pela garantia, promoção e prevenção, correção ou reparação das ameaças ou

violações de direitos humanos específicos. Também mostram como exemplo o caso do

Benefício da Prestação Continuada, cuja solicitação deve ser feita junto a um posto ou agência

da Previdência Social.

Já a exigibilidade política pode ser requerida através dos organismos de gestão de

programas e políticas públicas (Poder Executivo), junto aos organismos de gestão

compartilhada responsáveis pela proposição e fiscalização de políticas e programas públicos

(Conselhos de Políticas Públicas), junto aos Conselhos de Direitos Humanos ou junto aos

representantes do Poder Legislativo. Como exemplo, os autores citam um movimento

39

comunitário que se organiza e cobra à Secretaria Municipal de Saúde a criação de uma

Unidade Básica de Saúde bem como a seleção de Agentes Comunitários.

A exigibilidade quase judicial é a possibilidade de utilização de instrumentos tais

como o Termo de Ajustamento de Conduta e o Inquérito Civil, para a averiguação de

violações de direitos humanos ou para fazer com que os agentes públicos possam se adequar

às normas que preveem os direitos. Por exemplo, uma comunidade faz o levantamento de suas

demandas relativas à moradia tais como, falta de luz elétrica local, falta de sistema de água

potável, falta de saneamento e, através do Ministério Público, propõe um Termo de

Ajustamento de Conduta ao município, para que este, em determinado prazo, execute a

correção dessas violações.

Por fim, a exigibilidade judicial acontece quando a cobrança do direito é feita junto

ao Poder Judiciário, através de ação civil pública, ações populares ou mesmo ações políticas.

Um exemplo pioneiro de exigibilidade no Brasil, e que é objeto de estudo do

presente trabalho, diz respeito a uma Ação Civil Pública interposta pelo Ministério Público

Estadual de Alagoas contra o município de Maceió, pelo não cumprimento de seu dever

constitucional de proteger, respeitar e promover diversos direitos de crianças e adolescentes

de comunidades residentes na Orla Lagunar. Essa ação torna-se especialmente importante

pela sua abrangência, pois considerando a tese da indivisibilidade dos direitos, clama pela

correção de várias violações e, entre essas, o direito à saúde.

40

3 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

No Brasil, a saúde é declarada, na Constituição Federal de 1988, como um direito

fundamental que deve ser assegurada a todo cidadão. Isso confere ao Estado o dever de

respeitar, proteger, e realizar (promover e prover) esse direito, permitindo ao cidadão exigir

dele que lhe seja garantido, em acesso universal e igualitário, seu atendimento integral.

Mas foi a partir da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), através da Lei

Federal No 8.080/90, que o estado Brasileiro passou a viabilizar o provimento do direito à

saúde para a sua população, estabelecendo no art.3º da referida lei, que a saúde tem como

fatores determinantes alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, educação e o acesso

aos bens e serviços essenciais. Outro mecanismo para viabilizar o direito à saúde foi a Lei

8.142/90, que tem como princípios a universalidade, a integralidade, a equidade, o controle

social, a hierarquização da assistência, entre outros, com o objetivo de conjugar ações

direcionadas para que a prevenção, a reabilitação e a promoção da saúde se materializem.

O direito à saúde também é reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA) em seus Art. 4º e 7º, estabelecendo que é dever de toda a sociedade e do poder público

assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, a realização dos direitos

referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade e ao respeito, mediante a

efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e

harmonioso em condições dignas de existência. No Art. 11º dessa lei, assegura-se o

“atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único

de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção,

proteção e recuperação da saúde”.

Com a normatização do direito à saúde, ou seja, sua positivação, o Estado brasileiro

se constituiu como portador da obrigação de prover, progressivamente, por meio de políticas

públicas econômicas e sociais, a realização desse direito para toda população, especialmente

para os indivíduos, grupos e camadas sociais marginalizadas, os quais são mais afetados pela

violação de seus direitos (ALBUQUERQUE, 2009). Nesse sentido, os cidadãos brasileiros se

constituem como titulares de direitos, detentores da prerrogativa de poder exigir do Estado a

efetivação de seus direitos, inclusive com a possibilidade de acionar o Poder Judiciário em

relação ao descumprimento de qualquer princípio jurídico ou ao desatendimento a algum

direito (BUCCI, 2001).

41

Considerando os grandes problemas sociais existentes em um país em

desenvolvimento como o Brasil e os esforços empreendidos pelo Estado para a superação

desses problemas, é possível que a realização plena do direito à saúde não aconteça ainda em

curto prazo e de forma igualitária para todos os seus cidadãos. Entretanto, as dificuldades

existentes não extinguem a responsabilidade do Estado de sua tutela protetiva, nem de seu

papel pró-ativo de determinar princípios para um núcleo mínimo de obrigações a serem

executadas para realização adequada do direito à saúde (JONES; STOKKE, 2005;

PIOVESAN; GOTTI; MARTINS, 2009). É nesse contexto que o cidadão pode exigir a

realização ou a reparação da violação do direito à saúde.

Desse modo, a justiciabilidade do direito à saúde, isto é, sua transformação em

“objeto de apreciação judicial” (CUNHA, 2003, p. 147), constitui-se num grande desafio para

que seja efetivada sua aplicação por meio de mecanismos jurídicos de exigibilidade, pois a

exigibilidade de um direito aparece nas várias fases de organização temporal da política

pública, que vão desde o estabelecimento da agenda, formulação de alternativas, decisão,

implementação da política, execução até a avaliação (BUCCI, 2011).

Nesse sentido, o Estado detém o papel primordial, enquanto órgão público

administrativo, de executar as políticas públicas de forma plena, sem ser necessário que os

cidadãos tenham que recorrer frequentemente à proteção jurídica, pois um direito não deve

estabelecer condicionalidades, mas que sejam estabelecidas as condições plenas de seu

exercício (COSTA, 2008).

Isso significa dizer que o Estado, além de ter que garantir o provimento dos direitos

sociais positivados em sua legislação, deve criar e disponibilizar instrumentos e instituições

(nos âmbitos federal, estadual e municipal) para que todos os seus habitantes possam reclamar

seus direitos. Além disso, sob a perspectiva da responsabilidade social, deve reconhecer a

legitimidade das iniciativas da sociedade civil como instrumento de pressão sobre ele no

processo de cobrança da realização dos direitos humanos (BURITY et al., 2010).

Apesar de existirem esses diferentes instrumentos de exigibilidade, no caso do direito

à saúde, a judicialização tem sido o meio mais utilizado para garantir o atendimento das

necessidades individuais para assegurar o acesso a medicamentos e a procedimentos de

diagnósticos e terapêuticos (BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009; BORGES; UGA, 2010;

VENTURA et al., 2010; MACHADO, et al., 2011; SANT'ANA, et al. 2011).

42

No entanto, não podemos ignorar que as diversas necessidades de saúde da

população, principalmente das mais empobrecidas, são decorrentes do modelo de

desenvolvimento adotado e da ausência ou insuficiência de políticas públicas, o que constitui

um quadro de graves violações de direitos humanos, especialmente dos direitos sociais.

No campo da efetivação dos direitos sociais, o Ministério Público tem se destacado

como protagonista, especialmente através de intervenções que tentam garantir o provimento

dos direitos violados. No caso da saúde, por sua vinculação ao direito à vida, sua atuação tem

sido importante por levar ao Poder Judiciário questões e problemas sociais de cunho jurídico

que geralmente não são levados, por razões culturais, econômicas e institucionais.

Entre os instrumentos de exigibilidade utilizados pelo Ministério Público para

correção de violações de direitos sociais, a Ação Civil Pública3 tem se destacado por sua

relevância na tutela de direitos difusos4 e coletivos

5 como saúde, meio-ambiente, consumo,

ordem urbanística, entre outros, especialmente quando os acordos firmados com os gestores

públicos não são cumpridos (ASENSI, 2010).

Entretanto, observa-se que a positivação do direito no Brasil constitui-se em um

grande desafio, uma vez que sua realidade é atravessada por iniquidades que precisam ser

enfrentadas com ações que proponham reverter quadros de exclusão e de violação de direitos

humanos fundamentais, não só na perspectiva da promoção da equidade para distintos grupos

sociais, como pela garantia de direitos objetivos e subjetivos da cidadania.

Apesar disso, a efetivação do direito à saúde no Brasil tem avançado bastante em sua

trajetória sociohistórica, graças à luta empreendida, inicialmente, pelo próprio Movimento

Sanitário. Outros movimentos em prol dos direitos humanos têm empreendido distintas lutas

que vêm agregando novos direitos no campo da saúde, inclusive apontando estratégias de

mobilização e argumentação, no tocante à exigibilidade de direitos que criam novas frentes de

luta num movimento contínuo de renovação e afirmação da cidadania.

Nesse sentido podemos identificar, a partir de um estudo de Baptista, Machado e

Lima (2009), algumas das conquistas para efetivação do direito a saúde no Brasil, tais como:

3 A Ação Civil Pública é uma ação judicial que o MP pode propor ao Judiciário para a garantia de um direito

que se encontra violado (ASENSI, 2010, p. 45). 4 Direitos difusos possuem natureza indivisível, vez que só é considerado como um todo, não sendo possível

individualizar a pessoa atingida pela lesão gerada da violação desse direito, o qual nasce de uma circunstância de

fato, comum a toda comunidade (OLIVEIRA, 2013). 5 Direitos coletivos dizem respeito a grupo, classe ou categoria de pessoas determinadas ou determináveis,

ligadas pela mesma relação jurídica entre si (Ibid.).

43

O reconhecimento, na Constituição Federal, da saúde como direito social de cidadania

e dever do Estado, que definiu diretrizes voltadas para o restabelecimento do processo

democrático no âmbito político e institucional;

Promulgação da Lei Orgânica da Saúde, em 1990, que instituiu as bases institucionais

do SUS como política nacional para efetivação do direito à saúde, que reafirmou as

diretrizes de universalidade e integralidade e definiu as responsabilidades do poder

executivo nas três esferas de governo;

Avanço nas leis de controle sanitário e de produção de ambientes saudáveis, como

iodação do sal, controle de asbesto/amianto, uso e propaganda de fumígeros, sistema

de vigilância sanitária;

Leis de regulamentação de áreas estratégicas da atenção à saúde, como controle de

infecção hospitalar, remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano;

Leis que atendem a demandas de áreas específicas da atenção, como planejamento

familiar, subsistema indígena, modelo de atenção psiquiátrica e garantia de

medicamentos para AIDS;

Lei de regulamentação dos planos de saúde, de criação da Agência Nacional de Saúde

Complementar (ANS) e a de medicamentos genéricos;

A ampliação da atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público na efetivação dos

direitos sociais, entre eles o da saúde, por serem juridicamente protegidos e exigíveis

ao Estado.

Apesar de diversas conquistas, que são oriundas da legitimidade, garantidas por lei,

da saúde como um direito, há muito que ser feito, especialmente se considerarmos que o

modelo de desenvolvimento adotado no país ainda acompanha o atendimento dos interesses

econômicos, em detrimento das necessidades humanas e sociais. Assim, percebe-se que a

desigualdade e a exclusão sociais se expressam nas precárias condições de saúde e nos

processos de adoecimento das pessoas, bem como nas dificuldades e diferenças no acesso e

no consumo dos serviços de saúde pela população.

3.1 Respostas públicas às demandas para realização do direito à saúde

44

A análise de políticas sociais em um país marcado por contradições como o Brasil

não nos parece tarefa fácil, visto que o país sequer conseguiu atingir o bem-estar social dos

países centrais, pois possui enormes desigualdades, com fossos de miséria e exclusão social.

Em nosso país, o governo tem como agenda prioritária e estratégica a fome e a miséria,

embora o tráfico de drogas e a violência nas grandes metrópoles se institucionalizem com a

conivência do poder público (PIRES; DEMO, 2006), evidenciando a insuficiente realização

dos direitos sociais.

As políticas de proteção social, entre essas as da saúde, se instituíram com a

Constituição de 1988, sob uma perspectiva universalista, para responder à necessidade de

resgate da dívida social do país e atender os anseios da sociedade. No entanto, o que se

observou na implementação das públicas sociais brasileiras foi à ausência de foco e a evidente

ineficiência do governo, decorrentes da decisão de investir na política de transferência de

renda direta aos pobres não contemplada na constituição. Essa agenda foi influenciada pelo

ajuste macroeconômico que tinha como objetivo a redução do gasto público e a focalização

nos grupos mais pobres e vulneráveis (COSTA, 2009).

O Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto política de saúde formulada para

assegurar a atenção universal baseada na concepção da saúde como direito de cidadania e

dever do Estado, nasceu na década de1990, em um contexto contraditório no qual os

constrangimentos macroeconômicos relativos à dinâmica mundial transformaram o Brasil em

um dos países com menores índices de investimento público no setor de saúde do continente

americano, contrapondo-se, assim, à construção de um sistema público de caráter universal

(GERSCHMAN; SANTOS, 2006).

Segundo esses autores, é nesse momento que se intensifica a interferência das

agências internacionais na formatação de políticas nacionais de saúde, por acreditarem que os

governos seriam incapazes de financiar tudo para todos, recomendando que os sistemas de

saúde nacionais ofereçam um pacote clínico essencial como cobertura universal de atenção

básica, que focalizem os gastos públicos nas camadas pobres da população e fortaleçam

setores não governamentais ligados à prestação de serviços, uma vez que os serviços não

cobertos pelo pacote essencial deveriam ficar a cargo do mercado. Nesse sentido, afirmam

que

O “novo universalismo” propõe prioridade para a Atenção Básica e o fortalecimento

da iniciativa privada no mesmo pacote. Essas propostas simultaneamente

contemplam discursos históricos do Movimento Sanitário, vão ao encontro de

45

interesses do empresariado nacional e internacional da saúde, ao propiciar a

expansão do mercado privado, e atendem as elites políticas subnacionais, que

vislumbraram na universalização do atendimento e no SUS formas de garantir o

financiamento setorial na saúde para seus colégios eleitorais (GERSCHMAN;

SANTOS, 2006, p. 186).

Considerando a restrição macroeconômica e as escolhas estratégicas do governo

brasileiro para efetivação da proteção social que marcaram a constituição do SUS, podemos

constatar que ele assumiu formatos condicionados por arranjos institucionais que pretendia

suplantar, atendendo aos diversos grupos de interesses que gravitam em torno da saúde do

país. Isso significa dizer que desde a sua constituição, o sistema de saúde não corresponde

integralmente ao caráter público e universal proposto, mas aglutina interesses do setor

privado, dos atores políticos e das agencias internacionais.

Apesar das contradições e embates inerentes à política de saúde brasileira,

observamos um relativo consenso sobre a preservação do SUS. No entanto, o sistema enfrenta

vários desafios, tais como a qualificação da gestão e do controle social, a melhoria e a

qualificação da atenção básica como estratégia organizadora da rede de atendimento através

da regionalização e a hierarquização de ações e serviços de saúde. Todos esses desafios

precisam ser superados para que seja garantido o acesso universal da população aos cuidados

em saúde (SOUZA; COSTA, 2010).

Ao consideramos a legitimidade da saúde como direito fundamental, a partir de

acordos internacionais, da CF/88, da legislação subsequente, das precárias condições

socioeconômicas em que vive grande parte da população e dos desafios enfrentados para

implantação do SUS no Brasil, observou-se, no decorrer dos anos 1990 e 2000, um

progressivo crescimento do número de mandatos judiciais com reivindicações relacionadas ao

direito à saúde (BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009).

Esse processo de encaminhamento das reivindicações nos tribunais contra os Poderes

Públicos para a garantia de medicamentos e exames para o controle de doenças foi inaugurado

no Brasil pelo movimento dos portadores do vírus HIV/Aids, ressaltando-se o dever estatal de

prestar assistência à saúde individual de forma integral, universal e gratuita sob a

responsabilidade conjunta da União Federal, dos estados e dos municípios (BAPTISTA;

MACHADO; LIMA, 2009). Esse segmento, além de estabelecer uma relação entre a justiça e

a efetividade do direito à saúde, contribuiu para o avanço das políticas de assistência às

pessoas com HIV/Aids, para motivar outros movimentos sociais e a população em geral a

46

utilizar a reivindicação judicial como mecanismo de garantia de direitos e para ampliar as

políticas públicas e a atuação do Ministério Público no âmbito da saúde (VENTURA et al.,

2010).

Nesse contexto, o processo de exigibilidade dos direitos sociais no Brasil,

especialmente do direito à saúde, tem como foco a judicialização da saúde, embora não se

restrinja à questão jurídica e de gestão de serviços públicos. Desse modo, o poder judiciário

tem desempenhado um papel significativo no processo de resolução de conflitos políticos e

sociais na implementação de políticas públicas e na efetivação de direitos (BORGES; UGÁ,

2009; ASENSI, 2010).

Esse processo de judicialização da saúde se consolidou, principalmente, com o

aumento de ações judiciais individuais para a garantia do acesso a medicamentos. Esse

fenômeno pode estar relacionado à tardia regulamentação da assistência farmacêutica, que se

deu só após dez anos da criação do SUS, com a Política Nacional de Medicamentos e com a

aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, em 2004 (CHIEFFI; BARATA,

2009).

Segundo Messeder, Osorio-de-Castro e Luiza (2005), a partir de 1997, com a

estruturação do Programa Nacional DST/AIDS, houve uma redução do número de processos

judiciais, devido à distribuição gratuita dos medicamentos antirretrovirais. Também observa

que há uma relação entre o aumento de pleitos judiciais por medicamentos e sua inclusão nas

listas oficiais, o que leva à diminuição da incidência de mandados judiciais para esses

medicamentos.

Isso pode ser um indicativo de que as ações judiciais são movidas, pelo menos em

parte, nas áreas em que a política e a administração pública apresentam maiores lacunas e

deficiências. Do mesmo modo, indica-se que a atuação do poder judiciário pode ter efeito

positivo na responsabilização do Estado, estimulando-o a incorporar, na rede pública,

procedimentos terapêuticos que melhor atendam às necessidades de saúde da população e

contribuam para realização dos seus direitos.

A partir da análise de Ventura et al. (2010) sobre os estudos que discutem a

judicialização da saúde no Brasil, podemos destacar: a) os que dão ênfase aos seus efeitos

negativos na governabilidade e na gestão das políticas de saúde e aqueles em que a

judicialização privilegia grupos e indivíduos com maior poder de reivindicação; b) os que

47

enfatizam as deficiências e insuficiências no sistema de saúde e no poder judiciário para

atender às demandas de saúde devido à amplitude das obrigações do Estado; e, ainda, c) os

que identificam questões que perpassam transversalmente as discussões, como a influência do

setor farmacêutico para incorporação de seus produtos pelo Estado, a alocação de recursos

públicos para pesquisa e assistência e o uso racional de novas tecnologias e medicamentos.

Na discussão sobre as instituições jurídicas, no contexto da efetivação dos direitos

sociais, a atuação do Ministério Público tem se destacado como mediadora na garantia e

defesa do direito à saúde por adotar estratégias de pactuação e negociações céleres na

resolução de conflitos antes de chegarem aos tribunais. Assim, cria-se um espaço institucional

de diálogo no qual os problemas são discutidos sob o ponto de vista jurídico, especialmente

nos momentos pré-processuais com os principais atores que compõem o processo de

formulação, gestão e fiscalização das políticas públicas de saúde, aproximando o mundo do

direito do mundo dos fatos (ASENSI, 2010).

Segundo esse mesmo autor, as diversas estratégias utilizadas pelas instituições

jurídicas para efetivação de direitos e implementação de políticas públicas, que vão além da

simples judicialização, constitui o que ele denomina de juridicização da saúde. Isso tem

ampliado a participação de vários atores sociais no estabelecimento de consensos e na

definição de estratégias de execução proativa de políticas públicas para satisfação das

demandas de acordo com o contexto em que estão inseridas no cotidiano.

Pode-se perceber que essa caracterização se coaduna com os instrumentos de

exigibilidade de direitos administrativos, políticos e quase-judiciais, já discutidas

anteriormente. No Brasil, a funcionalidade desses mecanismos de exigibilidade de direitos

evidencia-se, particularmente no campo da saúde, na resolução de problemas como a falta de

medicamentos nos postos de atendimento, a insuficiência de leitos hospitalares, a falta de

profissionais qualificados, entre outros, que requerem vários procedimentos administrativos.

Isso envolve a articulação política entre diversos atores no processo de pactuação, geralmente,

mediado pelo Ministério Público, que consolida o consenso estabelecido entre os atores

através de instrumentos quase-judiciais como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

Um exemplo de que a exigibilidade de direitos comporta tanto a judicialização

quanto a juridicização foi a construção da norma do Processo Transexualizador no SUS, uma

conquista resultante da demanda pela inclusão dos procedimentos de transgenitalização na

tabela de procedimentos do SUS, através da Ação do Ministério Público Federal, em 2001.

48

Isso, juntamente com a abertura institucional do Ministério da Saúde para participação social,

estimulando o debate e acolhendo propostas oriundas do Seminário Nacional Saúde da

População GLBT na Construção do SUS, realizado em 2007 e da Conferência Nacional

LGBT, realizada em 2008 (LIONCO, 2009).

Observa-se, então, que no contexto brasileiro, há uma pluralidade de instituições,

atores e intérpretes que interagem de forma legítima e decisiva para garantia de direitos, seja

sob a perspectiva da judicialização das relações sociais para resolução de conflitos, seja da

juridicização, onde são utilizados vários instrumentos de exigibilidade de direitos, por meio

dos quais as demandas são discutidas sob o ponto de vista da sua institucionalidade jurídica,

embora evitando-se levá-las aos tribunais.

Entretanto, verifica-se, no Brasil, que os estudos sobre a efetivação dos direitos

sociais, particularmente o da saúde, tem priorizado a análise sobre os fins e não sobre os

meios que são utilizados pelos diversos atores e instituições que atuam no processo de

efetivação do direito à saúde na implementação de políticas públicas.

A trajetória do reconhecimento e da efetivação da saúde como direito humano no

Brasil comporta tensões, disputas, contradições e conflitos de interesses relacionados à

concepção de saúde-doença e às responsabilidades dos cidadãos e do Estado, que vão além da

esfera jurídica e se expressam no processo de normatização, na formulação e implementação

de políticas públicas e no aparato jurídico-institucional. Desse modo, a judicialização não

deve ser considerada como principal instrumento de exigibilidade de realização do direito à

saúde. Embora seja legítima, deve estar articulada com outros mecanismos, como a

juridicização, outros instrumentos de exigibilidade e a luta política, por meio dos quais se

busque implementar as garantias constitucionais para o alcance da justiça e da cidadania.

49

4 AÇÃO CIVIL PÚBLICA: EM BUSCA DA GARANTIA DE DIREITOS

A Ação Civil Pública instaurada contra o município de Maceió foi movida pelo

Ministério Público de Alagoas em 12 de março de 2007, através da Promotoria de Justiça da

Infância e Juventude da Capital e do Ministério Público do Trabalho em Alagoas, pela lesão

aos direitos difusos e coletivos das crianças e adolescentes residentes na Orla Lagunar de

Maceió. Foi julgada e deferida em 10 de setembro de 2007, pelo então Juiz de Direito da 28ª

Vara Cível - Infância e da Juventude da Capital.

Essa Ação foi impulsionada a partir de informações de lideranças e depoimentos de

mães e de crianças e adolescentes dessas comunidades e também a partir de um estudo

realizado, em 2005, pela Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos – ABRANDH

(ALBUQUERQUE E BURITY, 2008). O estudo constatou diversas violações de direitos

humanos, tais como: a) do direito à educação, constatando que grande parte das crianças e

adolescentes da comunidade encontrava-se fora da escola, que não havia programas de

formação profissionalizante nem de atividades de cultura, esporte e lazer; b) do direito à

alimentação adequada, uma vez que, para não morrerem de fome, crianças e adolescentes

eram levadas a se prostituir, a comer e a catar lixo, a trabalhar em tarefas de alto risco e a

praticar atos ilícitos; d) do direito à saúde, ao apresentarem problemas severos como

desnutrição, verminose, dependência química, sexualidade precoce e a falta de assistência às

necessidades de saúde; e) do direito à proteção institucional e familiar, pois muitas crianças

eram vítimas da agressividade e da negligência de alguns pais, não dispondo de um Conselho

Tutelar que funcionasse de modo adequado.

A partir dessa constatação, a Ação responsabilizou e exigiu reparos à prefeitura da

cidade, por sua omissão, enquanto governo local, de proteger, promover e realizar os direitos

das crianças e adolescentes residentes em comunidades da citada orla lagunar.

Para respaldar sua garantia institucional, o texto base da Ação Civil, além de utilizar

o arcabouço legal internacional, também se valeu da legislação nacional.

Assim, fundamentou-se no art. 7º do ECA, que assegura a proteção à saúde às

crianças e adolescentes, onde se registra que cabe ao Estado a efetivação de políticas públicas

voltadas para o desenvolvimento sadio e harmonioso de crianças e adolescentes. Valeu-se,

ainda, do art. 227, § 3º, da CF/88, que confere preferência no atendimento, no sistema de

saúde, às crianças e adolescentes, devido à sua condição de prioridade absoluta. Essa

50

prioridade estende-se também à elaboração de projetos de prevenção e atendimento

especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

Também foi utilizado como fundamento legal a Lei Orgânica da Saúde (8080/90),

em seu art. 3º, que estabelece que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes,

entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a

renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Essa proposta da Ação Civil Pública respaldou-se no fato de ser o Poder Judiciário

tão obrigado à realização dos direitos fundamentais quanto os Poderes Executivo e

Legislativo. Portanto, uma vez diagnosticada a violação omissiva ou comissiva a um direito

humano, resta às instituições vinculadas ao Poder Judiciário exigir a sua implementação.

Desse modo, reafirma-se a legitimidade do Ministério Público em propor Ação Civil Pública

para correção de violação de direitos.

Assim, por intermédio da Promotoria da Infancia e da Juventude e do Ministério

público do Trabalho em Alagoas, o Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da Infância e da

Juventude da Capital determinou que a prefeitura implementasse ações para correção das

violações dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais de crianças e adolescentes na

Orla Lagunar de Maceió.

No Relatório da Sentença, o juiz discutiu o mérito da ação e rechaçou os argumentos

apresentados na contestação do Município de Maceió, estabelecendo medidas a serem

providenciadas, com prazos fixados para retirar as crianças e adolescentes das condições de

miserabilidade em que viviam nessas comunidades.

Para assegurar o resultado prático da ação, foi determinado o bloqueio de

R$1.500.000,00 da rubrica de contingência6 do Município, além de multas aplicadas nos

seguintes termos: multa diária de R$10.000,00 em desfavor do Município, de R$ 300,00, por

dia, para o então prefeito e de R$200,00 para o secretário de assistência social, no caso de não

comprovarem o efetivo cumprimento da sentença num prazo máximo de 30 dias.

Em reação a essa decisão, ainda no mês em que foi proferida a sentença, a Prefeitura

de Maceió, através da Procuradoria, interpôs Recurso na 28ª Vara Civil da Capital da Infância

6 Reserva de Contingência: É uma dotação alocada no orçamento destinada a atender àquelas obrigações

imprevistas ou riscos que podem estar ou já estão influenciando a execução de uma ação qualquer que o governo

tenha planejado para o período (REIS, 2004, p.177).

51

e Juventude além de protocolá-lo no Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, solicitando à

presidência a suspensão de execução da sentença até seu julgamento.

Esse recurso foi analisado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, o qual

considerou improcedentes os argumentos de que a decisão exarada teria lesado a ordem e a

economia públicas. Também foram questionados pela prefeitura os prazos estabelecidos na

sentença, sob a alegação de que as políticas públicas determinadas eram complexas, de longo

prazo e que o município já vinha cumprindo a decisão liminar. Apesar disso, o juiz indeferiu o

pedido de suspensão de execução da sentença a fim de evitar graves e irreparáveis danos à

saúde e à vida dos moradores das comunidades beneficiadas pela Ação.

Entretanto, há pouco mais de um mês da determinação dessa sentença, a prefeitura

interpôs Recurso de Apelação junto ao Tribunal de Justiça de Alagoas, argumentando

inadequação da via eleita, impossibilidade jurídica do pedido e falta de interesse processual.

Além disso, solicitou denunciação à lide do Estado de Alagoas e da União. O julgamento

desse recurso ocorreu quase três anos após a sua interposição. Na ocasião, foi rejeitada a

maioria dos argumentos e das solicitações, porém, foram revogadas as determinações que

obrigavam o município apresentar propostas de políticas públicas, definir recursos na lei

orçamentária e a utilizar a reserva de contingência.

Ainda nesse mesmo período, a prefeitura entrou com um Embargo de Declaração do

julgamento do Recurso de Apelação, pedindo que o desembargador relator do julgamento se

pronunciasse acerca da manutenção, ou não, das multas aplicadas ao Município. Três meses

depois, foi determinada a diminuição do valor da multa ao município de R$10.000,00 para

R$500,00, mantendo-se, entretanto, o valor estabelecido na primeira instancia das multas ao

prefeito e ao secretário de assistência social do município.

Em fevereiro de 2011, a prefeitura entrou com Recurso Especial de Apelação,

solicitando que o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas encaminhasse o

processo ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento. Em julho de 2011, tal recurso foi

encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça.

O Superior Tribunal de Justiça não reconheceu o recurso especial da prefeitura.

Dessa forma, a decisão foi encaminhada ao Ministério Público Federal, que reiterou a decisão

e, posteriormente, acionou o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, que enviou os autos

para a vara de origem. Em julho de 2012, o juiz da 28ª Vara converteu a execução provisória

52

em definitiva e determinou que o processo recebido fosse ajuntado aos autos. Isso significa

que a sentença deixou de ter caráter liminar, devendo ser cumprida pelo município, sem

possibilidade de interpor recursos para sua revogação.

4.1 Percurso jurídico-administrativo: desdobramentos da sentença

A fim de compreender como se deu a execução da sentença e visualizar a atuação

dos atores em relação à efetivação dos direitos sociais, faz-se necessário analisar a trajetória

da ação, o que pode revelar limites e possibilidades da judicialização de um direito.

Quadro: Acompanhamento da sentença. Maceió (AL), Brasil, período de 10/09/2007 a

31/07/2012.

Sentença Realização Data

1. Formação de uma equipe multidisciplinar para realizar um levantamento

do perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes das referidas

comunidades, num prazo de 90 dias, para identificação dos riscos aos

quais estão expostos;

Parcialmente

07/05/2009

2. Oferecimento, num prazo de 60 dias, de condições adequadas para o

funcionamento do Conselho Tutelar das Regiões I e II, além de

disponibilização, em caráter ininterrupto, de um número de telefone

gratuito (0800) para o recebimento de denúncias;

Parcialmente 19/01/2011

3. Apresentação, em 30 dias, de um cronograma de ampliação da rede

municipal de proteção, além da abertura de abrigos para as crianças e

adolescentes em situação de risco, devendo funcionar no prazo máximo de

180 dias a partir do diagnóstico;

Não

4. Oferta, em 30 dias, de creche em horário integral e Educação Infantil

para atender todas as crianças de 0 a 6 anos, além da abertura de outras

unidades educacionais, de acordo com a necessidade, em até 180 dias, a

partir do diagnóstico;

Não

5. Garantia de matrícula de todas as crianças e adolescentes em idade

escolar de Ensino Fundamental, a partir do diagnóstico inicial;

Não

6. Apresentação de propostas de políticas públicas a serem implementadas

pelo Município, com abrangência suficiente, ofertando soluções a curto,

médio e longo prazo para a referida população no prazo de 90 dias após o

resultado do perfil apresentado;

Revogada 25/08/2010

7. Inclusão no Projeto de Lei Orçamentária de 2008, de verbas necessárias

para implementação das políticas públicas a serem executadas no ano

corrente, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais

necessidades da população infanto-juvenil;

Revogada 25/08/2010

8. Utilização da reserva de contingência do Município, caso esse não

apresentasse rubrica orçamentária diversa para fazer face às despesas no

cumprimento das medidas liminares, ora concedidas;

Revogada 25/08/2010

9. Expedição de certidão de nascimento das crianças e adolescentes e pais

residentes na região para inclusão em Programas Sociais;

Sim 24/03/2011

10. Promoção de campanha permanente de conscientização, através dos

mais diversos meios de comunicação, acerca da proibição do trabalho

Não

53

infantil, inclusive o doméstico, da prostituição infantil e dos males à saúde

causados por drogas, além da importância do papel da sociedade na

denúncia desses temas ao Conselho Tutelar da Região; Fonte: Elaboração realizada a partir do Processo n° 4.830/07 - Relatório da Sentença

Para que se realizasse o primeiro item da sentença, a promotoria solicitou ao juiz que

determinasse a sua execução por terceiro à custa do devedor, visto que já teriam se passado

sete meses sem que o município de Maceió tivesse cumprido a medida determinada. Dessa

forma, o levantamento – que se constituiu de um diagnóstico do perfil sócio-econômico das

crianças e adolescentes das citadas comunidades – foi realizado pela Universidade Federal de

Alagoas- UFAL.

Esse diagnóstico foi apresentado em audiência pública em junho de 2009, passados

quase dois anos da tramitação do processo de execução. Nele foi evidenciada a situação a que

estavam expostos os moradores das comunidades, tais como precariedade de acesso ao

trabalho e à renda, à moradia, aos serviços básicos de energia, água e esgoto e à assistência à

saúde. Também se evidenciou baixo nível de escolaridade e alto índice de crianças e

adolescentes fora da escola, além de altas taxas de insegurança alimentar, de violência e de

uso drogas.

Quanto à realização do item II, que trata da estruturação do Conselho Tutelar das

Regiões I e II e da disponibilidade de telefone gratuito (0800) para atender às denúncias da

população, constatou-se uma realização parcial, pois a reforma do prédio Dom Adelmo

Machado, onde funcionaria o referido Conselho, durou mais de três anos para ser concluída.

Quanto à disponibilidade do telefone gratuito (0800), foram instalados apenas nos Conselhos

Tutelares III, IV e V, os quais não são responsáveis pelo atendimento e proteção das crianças

e adolescentes das comunidades beneficiadas pela sentença.

Em relação ao terceiro item, referente à apresentação de um cronograma de

ampliação da rede municipal de proteção e à abertura de abrigos para as crianças e

adolescentes em situação de risco, nenhuma menção a esse respeito foi identificada nos autos.

No caso dos itens IV e V, que tratam da garantia do direito à educação das crianças e

adolescentes, observou-se que o município, através da Secretaria Municipal de Educação, foi

interpelado reiteradas vezes sobre o cumprimento desses itens. Como não obtivera resposta, a

promotoria promoveu, junto à comunidade, um levantamento das crianças e adolescentes que

ainda não estavam matriculados na Educação Infantil e Ensino Fundamental e, a partir de

audiências públicas junto às escolas privadas, solicitou que autorizasse a matrícula, no ano

54

letivo de 2010, de 163 crianças nas escolas privadas que indicara, utilizando parte do recurso

bloqueado do município para viabilizar a efetivação desse direito assegurado. Entretanto, o

juiz indeferiu o pedido sob a alegação de que feriria a prerrogativa de garantia da Proteção

Integral e da Igualdade, visto que não atenderia todas as crianças e adolescentes acobertadas

pela sentença.

Quanto ao cumprimento do item VI, que determinou a apresentação de propostas de

políticas públicas para correção dos direitos violados, identificou-se nos autos que, em maio

de 2008, há quase oito meses do deferimento da sentença, o município apresentou uma lista

de ações a serem desenvolvidas, como construção de unidades habitacionais, creche, CRAS,

mini pronto-socorro, unidade de saúde da família, entre outras. Porém, ainda segundo os

autos, foram desenvolvidas apenas algumas dessas ações, como o atendimento a 180 crianças

e adolescentes pelo PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), em funcionamento

no prédio anexo à Igreja Virgem dos Pobres; a estruturação de um Centro de Referência

Especializado de Assistência Social (CREAS), que funcionaria no prédio Dom Adelmo

Machado; a habilitação, cadastramento e acompanhamento de famílias em programas sociais

e oferta de cursos de capacitação profissional.

Entretanto, essa determinação foi revogada no julgamento do Recurso de Apelação

pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, juntamente com o sétimo item, que trata da inclusão, no

Projeto de Lei Orçamentária, de verbas para implementação das políticas públicas, e com o

oitavo, referente à utilização da reserva de continência do município.

Acerca do nono item, observou-se que foi providenciada a documentação por meio

de ações conjuntas com o Tribunal Estadual de Justiça e com a Secretaria Municipal de

Assistência Social.

Em relação à décima determinação, referente à promoção permanente de campanhas

de conscientização sobre a proteção dos direitos das crianças e adolescentes, nenhuma

informação a respeito foi identificada nos autos.

Considerando-se a sentença e a execução provisória, pode-se constatar que, em cinco

anos de tramitação jurídico-administrativa, apenas uma das medidas indicadas foi realizada,

três foram parcialmente realizadas, sendo uma dessas, juntamente com outras duas, revogada

posteriormente. Em relação às demais, não foram identificadas nos autos informações sobre

sua execução.

55

Considerando que as medidas determinadas estão, de certo modo, relacionadas ao

direito à saúde, é importante destacar que, embora esse direito não tenha sido diretamente

relacionado nos itens da sentença, foi ressaltado em diversos momentos nesse processo de

exigibilidade. Além disso, o cumprimento dos direitos sociais assegurados na sentença incide

nos fatores determinantes e condicionantes à saúde das crianças e adolescentes. Isso significa

que o não cumprimento dos itens da sentença contribui para a não realização do direito à

saúde na sua plenitude, visto que a sua efetivação pressupõe a indivisibilidade em seu

provimento e não se restringe, por exemplo, a abertura de mini-pronto-socorro ou unidade de

saúde da família.

4.2 A participação dos atores no processo de judicialização

Ao se observar a atuação dos atores que participaram diretamente do processo de

judicialização, pode-se identificar que as entidades da sociedade civil organizada, em parceria

com as lideranças da comunidade e em articulação com o Ministério Público, exerceram

importante papel para desencadear a Ação Civil Pública. Esse contexto evidencia o

empoderamento dos titulares de direitos, que podem se mobilizar para desenvolver estratégias

para exigir dos agentes públicos, portadores de obrigações, o provimento dos direitos que se

encontram violados.

Esse momento constituiu-se como um importante instrumento de exigibilidade

política, como o direito de petição e de audiências públicas para exigir a correção das

violações (ABRANDH/FAO, 2007). Isso se constituiu em um processo político deflagrador

de um comportamento mais interativo que o habitual entre o Estado e a sociedade civil ao

rediscutir as políticas públicas em sua resolutividade e abrangência, diferentemente dos

processos judiciais individualizados, comuns no âmbito da saúde (ASENSI, 2010).

Nesse sentido, reafirma-se a importância da participação ativa dos diversos atores

sociais para realização de direitos humanos, pois os agentes do Estado e da sociedade civil

devem ser acionados para garantir que as pessoas atingidas tenham oportunidade adequada

para participar das decisões que lhes dizem respeito (YAMIN, 2008; ARZABE, 2001).

No entanto, nesse processo de judicialização, observou-se que os atores que

passaram a atuar foram os do poder judiciário, do executivo e as entidades civis

56

(universidade, empresas, etc.), essas acionadas apenas para atender diretamente às demandas

concernentes ao processo jurídico-administrativo em curso.

Isso demonstra que esse processo de judicialização não comportou a interação e a

participação dos demais atores sociais que a desencadearam, tais como lideranças das

comunidades e das organizações da sociedade civil, como demonstrado num único documento

identificado nos autos: o despacho do juiz da 28ª Vara da Capital, determinando que intimasse

e informasse a uma liderança de uma das comunidades citadas na Ação Civil, que os

documentos por ela enviados serviriam apenas como informação. Essa atitude do juizado

também demonstra que é necessário avançar no sentido de assegurar a efetivação do princípio

da participação, da não discriminação e da igualdade e, consequentemente, reconhecer os

sujeitos de direitos como atores legítimos nas diversas instâncias de poder do Estado

(YAMIN, 2008; ARZABE, 2001).

Já em relação à atuação do Ministério Público, esse se destacou por sua capacidade

de se articular com os demais atores sociais desde o início desse processo de exigibilidade, o

que reafirma o pensamento de Asensi (2010) que diz que o Ministério público se constitui em

um ator privilegiado na defesa da sociedade e desempenha papel fundamental em promover

uma reflexão que situa os direitos como práticas concretas que atendam a critérios

substanciais de justiça e cidadania.

No que diz respeito à atuação do juizado da 28ª Vara da Infância e da Juventude da

Capital, verificou-se que teve destaque no deferimento da Ação Civil Pública, sobretudo na

manutenção da sentença em execução diante das demais instâncias do poder judiciário e no

enfrentamento da resistência jurídico-administrativa interposta pela Prefeitura de Maceió.

Nesse sentido, a decisão do juizado produziu o mesmo efeito que a lei, constituindo-

se como concretização da norma ao determinar seu cumprimento pelas partes envolvidas. Ao

mesmo tempo, pode servir como referência para outras decisões semelhantes, promovendo

assim, inovação no padrão de atuação do Poder Judiciário na resolução de conflitos coletivos

e de relacionamento entre os Poderes (BORGES; UGÁ, 2009; MACHADO, et al., 2011).

Apesar disso, não se verificou a eficácia do Poder Judiciário em garantir o

cumprimento de sua decisão, embora a Prefeitura de Maceió não tenha logrado o êxito

esperado em suas interposições junto às instâncias do poder judiciário.

57

Esse contexto evidencia o conflito entre os poderes e os limites quanto à capacidade

de efetivação das normas por parte do Estado. Nesse caso, do Poder Judiciário em impedir as

omissões ou violações de direitos fundamentais por parte do Poder Executivo que, por sua

vez, atuou como se a justiciabilidade fosse uma intervenção indevida do Poder Judiciário.

Alguns estudos afirmam que isso ocorre devido à ampliação das garantias

constitucionais dos direitos sociais e dos mecanismos de controle que conferem ao Poder

Judiciário um papel mais ativo e uma tarefa mais complexa em relação à resolução de

conflitos, especialmente de cunho coletivo. Além disso, a ampliação de suas atribuições não

foi acompanhada do devido aparelhamento das instâncias jurídicas para que possa garantir a

execução de decisões judiciais que consistem em implementação de políticas públicas

(YAMIN, 2008; BORGES; UGÁ, 2009; CHIEFFI; BARATA, 2009; ASENSI, 2010;

PINHEIRO; ASENSI, 2010; VENTURA et al., 2010).

É o que se evidencia nesse processo de judicialização, onde, como ator social, o

Poder Judiciário passou a lidar com uma pluralidade de instituições, atores e intérpretes que

também atuam decisiva e legitimamente na construção e garantia dos direitos sociais.

Diante desse contexto, podem ser observados alguns limites relativos a esse processo

de judicialização, devido à complexidade inerente a realização dos direitos sociais,

principalmente, por consistir em uma demanda coletiva e não individual, como a maioria das

ações judiciais. Num processo dessa natureza, evidencia-se, portanto, dificuldades de articular

vários elementos e estabelecer os acordos necessários entre os Poderes sobre a forma de

garantir a realização desses direitos, embora possua um arcabouço legal – nacional e

internacional – que dispõe de mecanismos de controle e de prestação de contas acerca da

implementação das políticas públicas para garantir a sua realização.

Apesar desses limites, a judicialização demonstrou ser um canal legítimo e um

instrumento de defesa dos direitos fundamentais quando o Estado não cumpre as suas

obrigações.

4.3 O Direito à saúde no processo de judicialização

A falta de acesso aos bens e serviços de saúde bem como as precárias condições de

vida em que se encontravam crianças e adolescentes da comunidade Sururu de Capote em

Maceió-Al foi evidenciada a partir de um diagnóstico das condições nutricionais que utilizou

58

recursos da epidemiologia e da abordagem de direito, evidenciado a violação de vários

direitos humanos. Isso reafirma a interdependência intrínseca existente entre eles, legitimando

os princípios da universalidade, da indivisibilidade e da indissociabilidade (PIOVESAN,

2005; ALBUQUERQUE, 2009; TARANTOLA et al., 2008).

Essa abordagem possibilitou a ampliação da capacidade de visualização de como se

encontrava a garantia de direitos da comunidade estudada, oferecendo evidências empíricas

do impacto da falta de cumprimento desses direitos para saúde da população. Também

contribuiu para a criação de mecanismos de acompanhamento e de avaliação, além de revelar

as deficiências das políticas públicas. Tudo isso para melhorar a prestação de contas dos

portadores de obrigações, através da incorporação dos princípios da dignidade humana, da

responsabilização, da não discriminação e da participação ativa, o que contribuiu para

empoderar os titulares de direitos na luta pela realização de seus direitos (TARANTOLA et

al., 2008; YAMIN, 2008).

Nesse sentido, a abordagem de direitos humanos na qual se ancorou a constituição do

processo de exigibilidade em análise, que culminou em uma judicilização fundamentada em

Tratados Internacionais e na Legislação Nacional, também contribuiu para responsabilizar e

exigir que o Estado (município de Maceió) assegurasse a realização dos direitos humanos das

crianças e adolescentes de comunidades da orla lagunar. Esse processo demonstrou que há

um consenso considerável quanto às reivindicações de direitos humanos a serem realizados

em contextos específicos que, enriquecidas por novas perspectivas, podem desempenhar um

papel importante na luta para melhorar o bem-estar individual e social (YAMIN, 2008).

Entretanto, no processo de judicialização, pode-se observar que o direito à saúde foi

identificado como um direito que se encontrava violado, porém, entre as medidas propostas na

Ação e deferidas na sentença, nenhuma medida foi diretamente indicada para reparar a

violação desse direito.

Embora o direito à saúde não tenha sido explicitamente contemplado na sentença,

verificou-se sua relevância quando o diagnóstico realizado como cumprimento da primeira

determinação identificou várias necessidades de atenção à saúde tais como: falta de acesso aos

serviços de saúde de atenção básica, urgência e especialmente, de atenção à saúde mental,

devido aos transtornos mentais e psicológicos que acometem as famílias por causa da

violência e da dependência do uso de álcool e drogas nas comunidades, evidenciando assim a

manutenção da violação do direito humano à saúde.

59

Desse modo, percebe-se que o cumprimento desse item da sentença deu visibilidade

às vulnerabilidades sociais da comunidade, mas não dispôs de mecanismos que viabilizasse a

participação de todos os titulares de direitos junto ao poder público municipal na formulação e

implementação das ações para atender as necessidades identificadas pelo diagnóstico.

Esse contexto se contrapõe à realização dos princípios de responsabilização e

prestação de contas, pois segundo Yamin (2008), a promoção da responsabilização dos

portadores de obrigações em prover a efetivação do direito humano á saúde, por meio das leis

e políticas públicas, exige a definição clara das obrigações normativas e requer uma variedade

de estratégias para o acompanhamento da evolução e garantia de reparação.

Quanto ao princípio de participação e empoderamento dos titulares de direitos, a

configuração em que se constituiu a dimensão da judicialização nesse processo de

exigibilidade permitiu visualizar que há ainda um longo caminho a percorrer para que o

Estado incorpore, de fato, a sociedade civil como interlocutora capaz de exercer sua cidadania

e participar das decisões estatais na formulação e gestão partilhada das políticas públicas

sociais. Isso, apesar de existirem leis impondo esse compartilhamento, como a Lei Orgânica

da Saúde, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação ambiental e da assistência

social, entre outras (BUCCI, 2001; ARZABE, 2001).

Considerando o alcance limitado do processo de judicialização analisado pode-se

concluir que é necessário aprimorar os mecanismos de exigibilidade existentes e criar novas

arquiteturas institucionais que promovam a responsabilidade legal, política e social que

viabilizem a aproximação entre o direito público-administrativo e o direito privado, para

assim, garantir a participação ativa da população nas instituições jurídico-políticas,

principalmente na geração e execução de políticas públicas. Isso reduziria o fosso das

desigualdades, da pobreza e da exclusão social e impediria a falta de controle, de fiscalização

e impunidade existente na área dos direitos econômicos, sociais e culturais (YAMIN, 2008).

Nesse sentido, sob a perspectiva da abordagem de direito, conclui-se, com a análise

da judicialização nesse processo de exigibilidade, que, mais importante do que identificar as

disposições legais e institucionais a partir dos princípios dos direitos humanos, é analisar o

contexto da violação dos direitos, inclusive do direto á saùde. Assim, para que um direito seja

atendido, precisam ser atendidos os demais direitos básicos das pessoas. Isso a depender de

formas institucionais e estruturais que promovam a igualdade de direitos.

60

Para tanto, é fundamental a ampliação e a consolidação de esferas públicas

democráticas que garantam o direito de todos os membros da sociedade participar ativamente

dos assuntos da comunidade em que vivem na adoção de políticas públicas em todos os

níveis. Isso implica ter como estratégia o desenvolvimento de capacitação das comunidades

locais no que diz respeito à cidadania, direitos humanos e políticas públicas e que envolva a

participação de diversos atores sociais, conferindo, assim, credibilidade a uma ampla

variedade de lutas, iniciativas, movimentos sociais e organizações, em âmbito local, nacional

ou internacional.

61

5 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO DE EXIGIBILIDADE

DE DIREITOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS IMPLEMENTADAS NAS

COMUNIDADES ORIUNDAS DA ORLA LAGUNAR DE MACEIÓ-AL

As conquistas constitucionais no campo dos direitos sociais no Brasil têm sido

acompanhadas de forte mobilização de vários atores sociais no processo de formulação e

implementação de políticas públicas para viabilizar a efetivação desses direitos. Tudo isso por

meio de conferencias, fóruns e conselhos setoriais.

Em Alagoas, por exemplo, por ser um estado que apresenta os piores índices

socioeconômicos do país, foram desenvolvidas várias dessas ações, inclusive as de

aproximação da situação de miséria e exclusão social que vivia a população, especialmente

daquelas que se encontrava em maior vulnerabilidade social, como as comunidades da orla

lagunar de Maceió.

Entre as ações desenvolvidas destacaram-se, no período de 2004 a 2005, dois

projetos pilotos, um desenvolvido pela ABRANDH/FIAN, que realizou um inquérito

nutricional e de saúde, e outro, pela OIT – em parceria com o Fórum Nacional e Estadual de

Erradicação do Trabalho Infantil – para atender às crianças catadoras de sururu da orla

lagunar. Nesse período, também foi desenvolvido pelo Ministério Público Estadual e Federal

um projeto de promoção da cidadania e combate à corrupção.

Essas iniciativas promoveram a interação entre segmentos organizados, o poder

público e a comunidade, permitindo que, no decorrer do período entre 2006 e início de 2007,

fosse instaurado um processo de negociação, junto aos órgãos públicos, para correção dos

direitos violados.

Como a correção das violações existentes e as metas negociadas não foram

cumpridas pelas autoridades públicas, o Ministério Público Estadual de Alagoas e a

Procuradoria do Trabalho interpuseram, em 2007, junto ao Poder Judiciário, uma Ação Civil

Pública, exigindo a responsabilização do município de Maceió para garantir a efetivação dos

direitos das crianças e adolescentes, dentre eles o direito à saúde, nas comunidades localizadas

na orla lagunar.

62

Assim, em setembro de 2007, a Ação Civil Pública foi julgada e deferida,

determinando que a prefeitura de Maceió desenvolvesse ações para realização dos direitos das

crianças e adolescentes dessas comunidades.

No entanto, após a determinação da sentença, a prefeitura interpôs recursos junto às

instâncias do poder judiciário para suspender a liminar e revogar suas determinações. Isso fez

com que a comunidade se mobilizasse junto às entidades parceiras para que fosse mantida a

decisão judicial e para exigir o cumprimento da sentença.

Como reflexo da decisão judicial e da mobilização da comunidade, em 2009 foi

realizada a remoção de 500 famílias para moradias construídas, pelo município, para a

comunidade Cidade Sorriso, localizada numa região distante do centro da cidade e da orla

lagunar.

Em 2010, foram removidas pelo governo estadual mais 821 famílias da orla lagunar

para a comunidade Santa Maria, também distante do centro e da orla. Outras 240 unidades

habitacionais foram entregues na Vila São Pedro, localizada nas proximidades das antigas

residências. Isso para as famílias que viviam de atividades relacionadas com a pesca.

Ocorreram em 2011 a reestruturação do Conselho Tutelar Região II, a instalação do

Centro de Referência Especializada em Assistência Social e a expedição de documentos para

atender as comunidades da orla lagunar.

No decorrer de 2012 até meados de 2013, foram construídos e instalados, na

comunidade Santa Maria, um posto policial, uma escola (que ainda não entrou em

funcionamento) e está em construção um posto de saúde e um prédio para a associação de

moradores. Na comunidade Cidade Sorriso, foi instalada uma equipe do PSF para atender as

famílias.

Essas ações evidenciam que esse processo de exigibilidade integra uma correlação de

forças entre os atores socias envolvidos. De um lado, a Prefeitura de Maceió, tentando

neutralizar os efeitos da judicialização, ao utilizar os recursos jurídicos e administrativos para

não realizar as políticas públicas determinadas pela Ação Civil Pública e, do outro, as

comunidades, enquanto Titulares de Direitos, tentando se organizar com seus parceiros para

cobrar dos Portadores de Obrigações, inclusive do Poder Judiciário, o cumprimento da

decisão judicial.

63

5.1 O processo de exigibilidade de direitos sob a perspectiva dos atores sociais

As conquistas constitucionais no campo dos direitos sociais, como já dito,

provocaram uma movimentação dos setores públicos nos vários níveis de gestão e das

organizações da sociedade civil, como ONGs e movimentos sociais, no sentido de redesenhar

e implementar políticas que atendessem às prerrogativas legais em curso no país.

Nesse contexto, a partir de 2003, de acordo com o depoimento do representante da

comunidade da orla lagunar, os órgãos públicos, principalmente aqueles vinculados à gestão

municipal, iniciaram um trabalho de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil junto

às mães das crianças dessa orla. Isso levou as mães a se mobilizarem para reivindicar a

garantia dos direitos junto ao poder público em reação às acusações que recebiam.

Segundo o representante, o processo de exigibilidade

Começou quando a gente começou ser repudiado, [...] pelo município

principalmente. Eles achavam um absurdo, as crianças tá mergulhando na lagoa, tá

indo catar sururu com a gente e ir no mercado vender. [...] Acusando as mães de colocar, aliciar as crianças pra o lado errado, pra trabalhar. E muitas iam parar na

prostituição infantil. [...] Então a gente também começou a mobilizar, que além

deles repudiar a gente, eles tinha que dar a ação pelo direito da gente, uma escola,

uma creche e direito à saúde. (RC)

Assim, esse depoimento revela que a situação de pobreza e miséria, a baixa cobertura

assistencial, a baixa qualidade ou mesmo ausência dos serviços públicos e o autoritarismo que

permeiam a gestão pública em Alagoas fizeram com que vários atores sociais se

aproximassem dessas comunidades, com a finalidade de conhecer, mobilizar e estimular o

empoderamento dos moradores para estabelecerem parcerias internas e externas para que

fossem implementadas as políticas públicas necessárias para efetivação dos direitos sociais

conquistados constitucionalmente, como demonstra essa afirmação:

Vários movimentos viram a situação da gente e começou a se agregar com a gente, a

fazer oficina, ajudar a gente correr atrás dos direitos. Então começaram a mostrar

que a gente tinha que ir no ministério público, que a gente tinha a defensoria pública

e que a gente não tinha que procurar só a imprensa. (RC)

A situação em que se encontrava a comunidade em questão também era objeto de

discussão de organizações não governamentais, movimentos sociais e setores da esfera

pública envolvidas na garantia dos direitos sociais assegurados.

Assim, nesse período tinha se organizado, em nível estadual, um fórum público para

discutir a questão do trabalho infantil e definir estratégias para resolução de problemas junto

ao poder público, que contava com a participação de representantes de diversos segmentos da

64

sociedade civil e do próprio Estado, contribuindo, assim, para fortalecer as iniciativas que

buscavam viabilizar a efetivação dos direitos sociais. É o que afirma um dos seus

participantes:

Surgiu com a iniciativa do fórum pra se discutir o trabalho infantil, pra se discutir a

situação das crianças do lixo [...] aí surgiu nesse período, outras favelas como a

Sururu de Capote. Era um fórum ativo, dinâmico, com participação muito boa, a

gente trabalhou muito. Foram muitos anos nessa caminhada e aí a gente já não aguentava mais de encontrar soluções, chamava os gestores, as comunidades, as

pessoas pra discutir e o poder público não fazia nada. (RSCO)

Essa movimentação em torno da resolução dos problemas sociais em nível local,

regional e nacional, motivou entidades de cunho internacional e nacional, em parceria com

entidades locais, para desenvolverem ações junto às comunidades da orla lagunar. De acordo

com um dos representantes da comunidade:

Foram 20 mães [...] que tinham os filhos acorrentados, [...] chegou a FIAN Brasil, a ABRANDH, chegou o pessoal da Pastoral da Terra, [...] que apoiou a nossa

comunidade, chegou à universidade também, a UFAL, [...] chegou pessoas dos

direitos humanos, chegou uma instituição de idoso que viu a situação da gente, se

mobilizou, chegou a RECID, chegou a Cáritas chegou a Pastoral da Criança. Foram

muitas instituições que eu nem lembro mais.

Entre essas ações, destacou-se, em 2005, o inquérito sócio-econômico, nutricional e

de saúde realizado na comunidade Sururu de Capote pela Ação Brasileira pela Nutrição e

Direitos Humanos (ABRANDH) em parceria com a FIAN (Food First Information & Action

Network – Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar). Nesse inquérito, foram

diagnosticadas graves violações de direitos humanos, como afirma um dos representantes da

sociedade civil organizada:

Antes de surgir a sentença, a ABRANDH realizou um trabalho piloto, [...] onde fez

um diagnostico da questão nutricional e da saúde. Nos fóruns mais nacionais,

CONSEAS, [...] era importante dizer que naquela situação de extrema pobreza,

tantas crianças tinham anemia, tantas crianças tinham verme. Então, isso foi caracterizando uma radiografia de como essa miséria se instala no corpo desses

sujeitos de direitos. Então isso foi impactante. No corpo de quem? Das crianças e

adolescentes. (RSCO)

Nesse período, o Ministério Público Federal e Estadual e a Procuradoria do Trabalho

também desenvolveram um projeto para promover a conscientização da população sobre as

consequências do descumprimento das obrigações, por parte do Estado e para garantir os

direitos fundamentais. Nesse projeto, foram identificadas várias violações de direitos

existentes na comunidade, como informa um representante do Ministério Público:

A gente tinha um projeto chamado A Corrupção Mata. [...] Era um projeto de

audiência pública, conscientização e formação de cidadania. Então, a gente fez cinco

audiências, [...] porque a comunidade era maior, os problemas eram maiores. [...]

65

Como tinha o espaço da urna, espaço para denúncia anônima, [...] as pessoas vão

falando, assim, nos bastidores. Foi na época descoberto um grupo de extermínio,

então uma colega que é do crime denunciou doze policiais militares, foi até

ameaçada. (RPJ)

Em 2005, também foi desenvolvido nessa comunidade um projeto piloto chamado

Catavento, numa articulação entre a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o Fórum

Nacional e Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil. Tal projeto visava atender às

crianças catadoras de sururu da orla lagunar em situação de risco relacionado ao trabalho

infantil.

Chegou uma convocação pra um projeto da OIT, [...] o projeto era o Catavento, que era pra tirar os meninos que foram encontrados na lagoa fazendo aquele trabalho

horroroso. (RSCO)

Na execução do projeto, tomou-se conhecimento da existência de um outro, realizado

pelo Ministério Público Estadual, que também tinha identificado graves violações de direitos

humanos naquela comunidade, como mostra o depoimento a seguir:

Nós tomamos conhecimento que a promotoria também estava com um estudo a

respeito da garantia de direitos humanos, [...] tinha encontrado inúmeras outras

situações de exposição daquelas crianças. A gente tinha focado somente o trabalho

na cata do sururu, mas vários problemas relacionados à falta de proteção à infância

tinham sido estudados e verificados. (RPJ)

A confluência dessas atividades envolvendo as comunidades da orla lagunar,

aglutinou diversos atores sociais propiciando que desencadeasse um processo de negociação

junto aos órgãos públicos para reparação das violações identificadas, segundo o depoimento

abaixo:

Foi um processo de atuação tanto do Ministério Público como da própria

comunidade. E aí, se tentou vários anos, audiências públicas, TAC. (RSCO)

Apesar da aglutinação dos diversos atores sociais para que fossem reparadas as

violações de direitos nessas comunidades, as negociações não avançaram; os poderes públicos

municipal e estadual não atenderam às demandas o que desencadeou num processo de

judicialização.

Alguns fatores contribuíram para que o processo de exigibilidade se encaminhasse

para a judicialização, tais como: a) o não cumprimento, por parte da gestão municipal e

estadual, das metas e acordos pactuados intermediados pelo do Ministério Público; b) o fato

do governo estadual ter se negado a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta, depois de

um longo processo de negociação; c) a ocorrência de perseguições e de ameaças a agentes do

Ministério Público e à liderança das comunidades; d) a necessidade de dar uma resposta à

66

comunidade e; e) os estudos que deram visibilidade as violações existentes na comunidade,

servindo de fundamentação para Ação Civil Pública, como demonstra os depoimentos a

seguir:

A Ação veio quando nós sentimos que o Estado, o Município, aliás, não estava

comprometido, não estava fazendo os atendimentos da forma como deveria. Falta de

compromisso mesmo! Afinal, vontade política faltou aqui em Maceió. (RPJ)

[...] quando a gente viu que não tinha mais para onde ir, que chegou a um acordo em

tudo que tinha que fazer, o governador disse: Não assino. Bom, então não dá pra dar

ré, não dá pra não dar uma resposta à comunidade, vamos entrar com uma Ação.

(RPJ)

Tinha um grupo de liderança que dava respaldo. A liderança [...] sofreu muito nisso

e a gente tinha que dar um apoio. Nesse período, eu sofri ameaças de outra liderança

comunitária que tinha lá. (RPJ)

A importância de a saúde ter sido caracterizada como uma violação, [...] foi um

subsídio a mais, importante para fundamentar a Ação Civil Pública. (RSCO)

Assim, iniciou-se o processo de judicialização e em 2007, o Ministério Público

Estadual e a Procuradoria do Trabalho em Alagoas, interpuseram a Ação Civil Pública contra

o município de Maceió na 28ª Vara Cível - Infância e da Juventude da Capital, por considerar

a atuação o juizado da infância mais favorável ao pleito, excluindo assim, o Ministério

Público Federal em Alagoas, por ter uma postura conservadora, como indica o depoimento a

seguir:

O Ministério Público Federal a gente excluiu, porque na época tinha um perfil extremamente conservador e a gente ia perder a Ação, não ia conseguir liminar, não

ia conseguir bloqueio e os juízes da infância que a gente tinha aqui, sempre foram

excelentes. (RPJ)

Por terem sido consideradas procedentes as denúncias e reivindicações impetradas

pela Ação Civil Pública, com base em tratados de direitos humanos e normas nacionais,

particularmente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi determinado, em

setembro de 2007, que a prefeitura de Maceió implementasse ações para realização dos

direitos das crianças e adolescentes dessas comunidades através da elaboração e execução de

políticas públicas.

E o que é surpreendente, o juiz [...] dar o deferimento da Ação Civil Pública e

concordar com a concepção construída e traduzida, seja no marco legal doméstico,

que a gente chama Constituição Brasileira, Estatuto da Criança, tanto no marco

internacional que fundamenta na Ação Civil Pública, que reconhece que a miséria, a

pobreza e a fome, naquela localidade, se deve a omissão e deve ser penalizada pelo

gestor do poder executivo [...] Quando ele dá essa sentença, ele cria um novo paradigma, que a pobreza não é um processo natural. Há uma responsabilidade que

aquela pobreza, que ela seja considerada uma violação de direito. (RSCO)

67

No entanto, o poder executivo apresentou uma percepção diferente, a qual

considerou a decisão judicial inadequada, por responsabilizar apenas o poder municipal,

argumentando que a maioria dos serviços públicos disponibilizados aos moradores da orla

lagunar são vinculados ao governo estadual e que funcionam insastisfatoriamante. Conforme

depoimento,

O estado fez um conjunto lá, tem um CAIC que é do estado, tem a rede de educação

que é do estado. E os aparelho do estado, eles nunca funcionaram a contento para a comunidade e ficou durante muito tempo só a cobrança na prefeitura. (RPE)

O poder executivo também apresentou uma percepção diferente quanto ao papel da

liderança comunitária no decorrer desse processo de exigibilidade, considerando a sua atuação

prejudicial, por vincular seus interesses pessoais e políticos aos da comunidade e denunciar

excessivamente ao poder central. Assim,

Quem ganhou mais destaque nessa ação durante muito tempo foi [...] uma liderança

comunitária. E por outro lado, ela atrapalhou bastante o processo. Ela passou a juntar uma questão política e pessoal dela com as questões de interesse da

comunidade. Tudo ela faz denúncia para o poder central em Brasília. Ela manipula

muito aquela comunidade também com relação a isso. (RPE)

Em relação ao direito à saúde, os depoimentos demonstram certa ambiguidade sobre

a forma como ele foi apresentado no processo judicial em si, embora alguns indiquem que

vários aspectos desse direito se encontravam violados, sendo uma das principais

reivindicações da comunidade. Essas violações foram utilizadas na fundamentação da Ação

Civil Pública, mas não foram indicadas entre as determinações na sentença.

Eu não me lembro, acho que na peça a gente redigiu no fundamento e no pedido a

gente deixou de fora. (RPJ)

Quando a gente moveu essa ação diante do poder judiciário, eu não tenho conhecimento. Foram dez ou mais de 10 itens que a gente exigiu, mas os principais

itens que a gente exigiu pra nossa comunidade foi educação, saúde e a segurança.

(RC)

Na sentença tem uma exigência que é a instalação de um Programa de Saúde da

Família. (RPE)

A partir da decisão judicial, houve uma redefinição da correlação de forças entre os

atores sociais envolvidos, de acordo com o modo como cada segmento passou a interagir no

processo. A prefeitura de Maceió, além de interpor vários recursos junto às instâncias do

poder judiciário para suspender e revogar a decisão, utilizou diversas estratégias políticas e

administrativas para neutralizar os seus efeitos e não realizar as políticas públicas

determinadas. A comunidade, fortalecida e organizada com as entidades que estabeleceram

parceria, mobilizou-se para cobrar dos Portadores de Obrigações, inclusive do Poder

68

Judiciário, o cumprimento da decisão. E o Ministério Público se constituiu como interlocutor

entre o juizado, a prefeitura e a comunidade.

Para os representantes da prefeitura, o processo de judicialização também se

constituiu numa intervenção indevida das instâncias do Poder Judiciário por tomar decisões

sem conhecer a realidade, como indicam os depoimentos a seguir:

A justiça não conhece a realidade. Muitas vezes eles tomam uma decisão trancados

num gabinete sem conhecer a realidade. (RPE)

Para mim, foi o grande erro do Ministério Público, foi não colocar o Estado, também

no polo passivo, pra fazer com que os dois entes trabalhassem em conjunto, como

realmente trabalhou, só que [...] o Município trabalhou em cima da Ação e o Estado

trabalhou em cima do seu cronograma. (RPE)

Essa visão de que esse processo de judicialização não foi de todo positivo abrangeu

diversos atores; o poder executivo considera a Ação Civil Pública apenas uma formalidade,

embora afirme que o município cumpriu todas as determinações da sentença através da

realização de políticas públicas de educação, saúde e assistência social. Defende, desse modo,

que o processo de judicialização seja finalizado para que os recursos financeiros sejam

desbloqueados e deixe de prejudicar a gestão do município, além de alegar que muitas

famílias beneficiadas pela Ação saíram da comunidade:

Desde a construção de um PETI, a instalação de uma escola, a instalação de uma

creche, posto de saúde, retirada de documentação, inserção dessas famílias no

mercado de trabalho. [...] A Ação, ela é meramente formal. A ação tá cumprida, os

dez pontos da ação, o município atendeu. (RPE)

O que a gente tem defendido é que é necessário deixar de judicializar essa questão,

porque tem recursos do município bloqueados por conta disso. [...] Não ficar

correndo atrás de uma ação, porque muitas famílias que eram de lá, não são mais. E

fica aquela discussão sempre em cima da ação, e o município sendo penalizado por

isso. (RPE)

Em relação à intersetorialidade, os depoimentos indicam que esse processo de

judicialização contribuiu para que as secretarias trabalhassem conjuntamente na gestão

municipal. Em relação a parcerias com a esfera estadual, verificou-se certa contradição,

quando se propõe o fim da judicialização e o estabelecimento de parcerias entre os níveis de

governo para atender as necessidades das comunidades. Segundo depoimentos,

[...] a parte mais significativa da Ação foi exatamente o engajamento da máquina pública, que antes cada secretaria tinha uma forma diferente, não havia aquele

conjunto, cada um fazia por si, cada um fazia individualmente. Com a ação, juntou

todas as secretarias. Então, a gente percebe que todas as secretarias terminaram

trabalhando em conjunto para aquela comunidade. (RPE)

O Município não conseguiu conversar com o Estado. Não conseguiu avançar nessa

relação de intersetorialidade. [...] A nossa defesa é: acabar essa ação, desbloquear os

69

recursos da Prefeitura de Maceió, a gente sentar numa mesa de discussão, o estado e

o município e com o governo federal, fazer uma nova pesquisa, fazer um novo

retrato social dessa realidade e olhar para a questão da habitação, da saúde, da

educação, da geração de emprego e renda. (RPE)

Apesar dessa visão de certo modo negativa da judicialização, o Poder Executivo

reconhece seu mérito, pois exerceu pressão sobre a gestão pública municipal, estimulou a

participação da comunidade e melhorou significativamente as condições das crianças e

adolescentes beneficiados pela decisão judicial:

E através disso, o engajamento da comunidade foi muito importante, porque o poder

público precisa de um beliscão, às vezes um beliscão meio árduo, que dói. Foi o

caso dessa ação. Pra mim foi um marco em relação eu saiba, realmente, não teve

nenhuma ação coletiva que tenha, assim, uma mexida muito grande. (RPE)

Aquelas crianças e os adolescentes daquela comunidade houve, realmente, um

ganho excepcional. (RPE)

Para os representantes das entidades da sociedade civil organizada que atuavam junto

à comunidade, a ação judicial também foi considerada uma conquista significativa que

fortaleceu e empoderou a comunidade na luta para que os direitos sociais assegurados na

sentença fossem efetivados.

O juiz disse, vai ser assim. Vai ter que pagar se o prefeito não cumprir em tantos

dias. Mas aí, o tempo foi correndo, [...] e ai, a gente fez passeata no dia do grito dos

excluídos. Botamos os meninos da Sururu, todos na rua. A gente botou os meninos,

botou pai, mãe, foi uma festa! Botamos todo mundo na porta do Tribunal de Justiça,

na porta da prefeitura que era pra ver se as coisas que eram de responsabilidade do

município saíam, e as coisas que eram do estado, também. Saiu nada. (RSCO)

Afirmam ainda que a decisão judicial também contribui para que mudasse a visão de

muitos moradores com relação aos seus direitos e as suas expectativas sobre o futuro dos

filhos, passando a acreditar que poderiam ter uma vida melhor.

A gente conseguiu mudar um pouco a visão deles. [...] No final, aquelas pessoas

idosas indo para alfabetização de jovens e adultos. [...] Essa decisão, ela veio favorecer muito isso. Eles sabiam quais eram os direitos deles garantidos. Agora,

faltavam esses direitos [...] chegarem na sua totalidade pra eles. [...] Eles tinham

uma visão mais esclarecedora das coisas, da melhoria de vida para os filhos. [...] E

isso, eu tenho certeza que mudou mesmo. (RSCO)

Embora esses atores considerem que a decisão fortaleceu o processo de negociação

com o poder público, reconhecem que não houve avanço na realização das determinações, ao

afirmar que

[...] a gente vive um paradoxo. E a gente não conseguiu avançar. Se você pega o

relatório do projeto você vai ver que tem alguns resultados da assistência social, da

educação, [...] que trás essa complexidade de setores, da saúde, da alimentação,

conseguia-se dialogar, mas não conseguiu avançar nas reparações. (RSCO)

70

Também como ator social nesse processo, o Ministério Público considera a

judicialização insuficiente, devido à estrutura de funcionamento do poder judiciário, embora

sua maior contribuição consista no fortalecimento da luta política, por estimular a mobilização

e a participação ativa da comunidade para lutar pela realização dos seus direitos, atribuindo à

luta política a manutenção da decisão judicial e a visibilidade que comunidade passou a ter,

como indica as afirmações a seguir:

Porque, [...] tem inúmeros limites, tanto que você tem, desde 2007, um milhão e

meio bloqueado, e não consegue fazer nada, porque juridicamente, [...] tem

inúmeros limites. A principal e única luta verdadeira, ali, é a política, de participação

de luta da comunidade. Tanto que o Tribunal manteve liminar e manteve sentença

porque a comunidade foi pra porta. (RPJ)

[...] Na verdade as pessoas viraram o olho para comunidade. Teve um Jornal

Nacional, teve um Fantástico, então na hora que você dá um real empoderamento a

comunidade, a comunidade começa a andar com as próprias pernas. E o que aconteceu foi isso, eles começaram a lutar mais pelos direitos deles, que tem uma

efetividade muito maior que uma Ação Civil. (RPJ)

Esses atores também identificam que essas comunidades ampliaram a sua capacidade

de luta, mas a estrutura socioeconômica e político-cultural de miserabilidade e de exclusão

social em que se encontra a cidade de Maceió e o Estado de Alagoas impedem que as

transformações ocorram e que o processo avance rapidamente. Segundo eles,

No caso da comunidade, [...] elas travam lutas muito mais fortes que inúmeras

outras comunidades daqui de Maceió. Agora tem uma série de complicadores, num estado miserável, numa cidade miserável, de exclusão social. E isso, você não

resolve. A gente está vivendo um processo histórico. Então, você não resolve de um

dia pra noite, nem em três anos, nem em quatro anos, nem em cinco anos. (RPJ)

Sobre o processo de negociação junto ao poder executivo, um dos representantes do

Ministério Público afirma que a hipocrisia e o não cumprimento das obrigações por parte do

gestor público inviabilizaram o prosseguimento das negociações e, consequentemente, a

concretização dos direitos. No dizer do representante,

O discurso do Prefeito era algo maravilhoso! Eu fui a duas reuniões com ele e

depois me recusei. Não vou nunca mais. Ele era incapaz de dar um não. Agora, era

incapaz de cumprir uma palavra. (RPJ)

Entretanto, este considera legítima a intervenção do Poder Judiciário e a

judicialização, por sua vez, uma forma de combater o desrespeito do poder executivo aos

direitos da população.

O gestor público acha que tem essa liberdade de eleger as prioridades e o que é

conveniente para ele. E não é para a população responder. E essa decisão foi bem

nesse sentido. Não, o Poder Judiciário pode, sim, intervir quando o Poder Público

não está cumprindo sua obrigação. (RPJ)

71

Pode-se constatar, portanto, que os depoimentos evidenciam que os atores socias

envolvidos no processo de judicialização possuem percepções diferentes e até opostas entre si,

dependendo da posição que ocupam e dos interesses dos segmentos sociais que representam

no contexto de interação em relação ao processo de exigibilidade.

5.2 A implementação das políticas públicas nas comunidades beneficiadas pela decisão

judicial

A concretização dos direitos sociais perpassa todo um processo de produção de uma

política pública, que vai desde a identificação das demandas, negociação, determinação legal,

até a execução e a avaliação. Nesse sentido, para analisar o alcance desse processo de

exigibilidade, identificou-se, a partir dos depoimentos dos atores sociais envolvidos, quais

eram as demandas relacionadas à saúde e quais foram as principais ações, serviços e

programas que foram desenvolvidos nas comunidades para atender às determinações da

sentença.

De acordo com os depoimentos dos representantes das comunidades e dos

representantes da sociedade civil organizada, as condições de vida eram extremamente

precárias e as necessidades de saúde eram gerais:

Porque as condições de vida ali, [...] é de apavorar, porque não é um probleminha, [...] são todos os problemas, muita coisa. (RSCO)

Em alguns depoimentos, destaca-se a violação do direito à saúde, que está

relacionado à falta de acesso ao trabalho e à renda, à educação e à alimentação adequada:

[...] a gente que não tinha onde buscar um dinheiro, nem nada. [...] Não tinha um

emprego, não tinha nada. Então agora eles têm que dar melhora pra mim e pro meu

filho, porque eu não tenho condições de pagar uma escola particular se falta escola

na comunidade, se falta saúde na comunidade, não tem uma boa alimentação. (RC)

Também foi informado que faltava acesso ao atendimento psicológico e psiquiátrico

para dar assistência às vitimas do uso de drogas e da prostituição infantil. Nas escolas, esse

tipo de atendimento também era uma necessidade, devido ao clima de tensão e violência que

permeia comunidade.

A gente exigiu a saúde também porque as crianças ficam debilitadas, quando eles se

envolvem muito cedo na prostituição, se envolvem na droga, [...] mentalmente,

também bole no psicológico. [...] Em uma comunidade com essa, [...] deveria ter um

posto médico bem avançado. (RC)

Porque a área da gente é uma área de violência. [...] Quando veem os filhos da gente

que está no trafico, mete o pé na porta, de madrugada. (RC)

72

Tem mãe que como o menino mora em favela, [...] que [...] diz logo: olha não se

misture com aquele seu coleguinha. A gente pediu que, pra cada escola que o nossos

filhos estudam, tivesse [...] um psicólogo pra acompanhar nossos filhos. (RC)

Segundo um dos representantes da comunidade, o Conselho Tutelar não tinha

condições de funcionamento e não oferecia atendimento adequado, embora atuasse na

fiscalização em relação ao trabalho infantil:

Então, ele começou a mover o conselho tutelar contra nossa comunidade, contra as

mães. [...] E porque o conselho não tem um carro pra socorrer a gente, quando a

gente precisa. Quando nossos filhos estavam dois, três dias fora, na rua, agente que

ia a pé, nas ruas no mercado, arriscando a nossa vida, porque quando a gente queria

um conselho 24 horas, não existia? Só até as 05:00 horas da tarde. E os filhos da

gente sumiam a noite. (RC)

A gente só estava sendo julgado. [...] Era um absurdo a mãe colocar uma criança de

4 anos, 5 anos [...] do lado dela, dispinicando sururu, trabalhando, se acordando

cedo, enquanto a criança deveria está em uma escola [...]. Chegou o conselheiro

conversando com a gente. E fora que algumas crianças da gente que estavam muito

rebeldes, a gente começou a acorrentar, nisso recebemos denúncia. (RC)

Esses relatos indicam que as condições de saúde e os serviços públicos essenciais na

às necessidades de atenção básica, pois não se tinha acesso a um Programa de Saúde da

Família próximo da comunidade tampouco acesso à assistência hospitalar adequada:

Há, não pode. Porque aqui é a unidade de saúde da família. Essa área aqui é fechada

e a gente já tem as famílias cadastradas. [...] Daqui, pra ir pra trás, eu não posso

atender ninguém. [...] Tem que ir para o pronto socorro. [...] Não eram cadastradas

porque as unidades básicas do PSF que existem são pouquíssimas. (RSCO)

Ela disse, [...] é a SAMU que levou uma senhora e tá trazendo de volta porque não

tem onde enternar. E me levou lá pra dentro. [...] O primeiro barraco que eu entrei, o

barraco só tinha a coberta, você chegava já via tudo por dentro, que eram só as

tirinhas de madeira. A mulher com um barrigão deste tamanho, com os olhos

abertos, a casa fedia tanto no mundo. Aí, eu olhei o fogo apagado, o chão todo

molhado. Aí, ela disse, [...] o neto sai para pedir esmola e ela fica só. (RSCO)

O que eu morria mais de medo ali era pegar um germe por causa das fezes, coco de

cachorro e de criança tudo misturado. E aquela fiação de energia, tudo debaixo

daquelas terras. (RSCO)

Além disso, afirmou-se também que a comunidade era discriminada pela sociedade e

pelos prestadores de serviços públicos:

O povo tem medo, jogava os pacotes de brinquedos. Foi no natal e no dia das

crianças. Não parava, ninguém descia. (RSCO)

O que eu faço? Aquela mulher que você visitou, morreu. E o IML não quer vim

porque não tá acreditando. [...] Tome o telefone e ligue daí pra o IML, pra ver se

eles vêm. (RSCO)

Os depoimentos dos representantes do Ministério Público ratificaram as informações

sobre como eram as condições de vida e de acesso aos serviços públicos na comunidade, onde

73

as necessidades de saúde eram gerais e o atendimento prestado, desqualificado,

principalmente sob a perspectiva dos direitos humanos. Segundo esses representantes,

Não tinha uma necessidade não, era de A a Z. Porque, [...] na hora que você já nasce sem acesso à maternidade, a mãe não tinha um pré-natal adequado, grande parte era

usuária de álcool e de outras drogas. Então, [...] quando vem pra casa não tem acesso

a saneamento, a mãe precisa trabalhar e não tem acesso à creche. Tudo isso, no meu

ponto de vista se trata diretamente de Direitos Humanos, [...] como uma coisa

interligada. [...] Não tinha um direito mais violado do que o outro. (RPJ)

E o que tinha lá, era assistencialismo, do pior e do mais barato, do mais vulgar e do

mais safado. Não tinham nem acesso a Bolsa Família, porque eles não tinham endereço, nem comprovante de residência e o carteiro não vai entregar o cartão ali.

(RPJ)

[...] como sempre, a questão de desestrutura familiar, a família impulsionando seus

filhos a trabalharem e naquela situação que era, assim, uma das piores formas, [...]

em ambiente insalubre, de risco, [...] as crianças mergulhavam. (RPJ)

Além da natureza dos serviços existentes na comunidade, também foi informado que

a falta de documentação das famílias impedia o acesso aos programas públicos de assistência

social, aprofundando a marginalização e a discriminação da comunidade:

[...] porque muitas daquelas famílias não tinham documentos, [...] não podiam

ingressar num programa de assistência, [...] eles ficavam a margem de tudo. O

governo não conseguia atendê-los. (RPJ)

[...] a gente achava interessante, porque tinha o conjunto Virgem dos Pobres que era

só do outro lado da avenida, que é também uma comunidade extremamente carente,

mas que já tinha preconceito com o pessoal da favela. (RPJ)

Com isso, percebe-se que os moradores das comunidades da orla lagunar tinham sua

cidadania negada, pois muitas famílias não tinham documentação de identificação civil e, por

viveram numa área de ocupação irregular, não tinham endereço. Por essa razão, o Estado não

os reconhecia como sujeitos de direitos, consequentemente, não se reconhecia como portador

de obrigação no provimentos dos diretos perante a população que vivia nessas comunidades.

Desse modo, observou-se que essas comunidades eram discriminadas por parte da

sociedade e dos órgãos públicos, que as condições de vida eram precárias, pois não tinham

acesso ao trabalho e à renda, à moradia, ao saneamento básico, à alimentação adequada, à

educação, à assistência social e à segurança, ou seja, as necessidades de saúde eram

generalizadas, seja pelos determinantes socias existentes na comunidade, seja pela falta de

acesso aos serviços de atenção básica, de assistência médica e hospitalar.

A demanda referente à falta de documentação das famílias da orla lagunar foi

atendida pela Secretaria Municipal de Assistência Social, como afirmam os depoimentos:

74

Os que diziam que não tinham registro, [...] essa ação a Secretaria de Assistência

fez. [...] Não ficou ninguém sem registro de nascimento, que eu tenha conhecimento,

não. A não ser que alguém tenha se omitido. (RSCO)

[...] foi feito um mutirão para tirar documentos. [...] A prefeitura teve que de alguma

forma propiciar, proporcionar pra que eles tivessem esse documento, assim, um

endereço. (RPJ)

Em relação à educação, os relatos indicam que essa demanda foi atendida

parcialmente por causa resistência das mães, devido às escolas não serem na comunidade.

A gente tentou também inserir a comunidade na escola, a gente conseguiu vagas

específicas para a comunidade e teve uma resistência muito grande das mães porque

não era na comunidade. Você tem, assim, uma doença familiar muito grande. (RPJ)

O representante da comunidade alega que, em 2010, foi instalada uma creche para

atender crianças de 2 a 5 anos de idade, além de serem disponibilizadas vagas em bairros

próximos da orla lagunar. No entanto, foi assegurado o transporte escolar apenas para as

crianças da creche, sendo permitido que as crianças que estudam em escolas próximas da

creche pudessem utilizar o transporte escolar de acordo com a compatibilidade de horário.

[...] falta transporte para as crianças maiorzinha, porque o ônibus é pra criançinhas

da creche e a creche funciona de 8:00 hs e a escola de 7:00 hs. Aí muitas crianças deixa de ir pra escola porque alguém tem que levar ou procura outra mais perto da

comunidade, mas a tarde o ônibus trás as pequenas e leva e trás as crianças da escola

que fica perto da creche. Meu filho adora a escola. (RC)

Tão falando que a creche vai entrar em reforma, aí a gente vai ter que levar as crianças na escola. Já comprei uma bicicleta velhinha, senão os vagabundos tomam,

pra levar meu filho, mas o trânsito da Siqueira Campos é perigoso, é longe. (RC)

Os depoimentos também indicam que, apesar de ter sido garantido o acesso à escola,

a falta de atividades de esporte, cultura e lazer e de capacitação profissional para as crianças e

adolescentes na comunidade tem contribuído para a manutenção do trabalho infantil.

Todo mundo estuda, mas falta atividade para os adolescentes, um esporte, alguma

coisa pra não ficar na rua quando não tão na escola. Os meus irmãos tão aqui com a

minha mãe despinicando sururu, pra não tá solto na rua, mas minha sabe que se

verem eles aqui, ela pode ser presa, mas fazer o que? (RC)

Há dois anos fizeram matrícula pros meus dois irmãos, um com treze e a outra com

quatorze anos, pra um curso de computação e até agora, nada. (RC)

Esse contexto fez com que Ministério Público considerasse a decisão judicial

ineficaz no que diz respeito à questão do trabalho infantil. Do mesmo modo considerou que as

modificações ocorridas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) tinham

contribuído para sua manutenção na comunidade.

[...] A ação não conseguiu surtir efeito, em absoluto, com relação à questão

trabalhista. Ainda permanecem crianças trabalhando. [...] O trabalho infantil ainda

permanece, porque, um dia desses saiu outra reportagem nacional. (RPJ)

75

Seria uma escola o dia inteiro, para a criança ficar sossegada, porque a criança tava

na escola o dia inteiro e hoje não tem mais isso. O PETI [...] foi diminuindo,

diminuindo e agora, parece que, onde tem PETI. só são duas horas de jornada de

segundo turno, jornada ampliada, duas horas não é nada. (RPJ)

Identificou-se que, em 2010, foi instalado um Centro de Referência Especializada de

Assistência Social para combater a exploração sexual, embora sua atuação fosse considerada

restrita, devido o receio dos servidores de entrar na comunidade.

A questão da violência, exploração sexual, [...] a gente levou lá pra dentro o

CREAS. O CREAS, eu visitei várias vezes, não senti... há a gente não pode. A gente

tem medo de chegar lá. (RSCO)

Já em relação ao CRAS, sua atuação foi considerada positiva na visão dos

moradores:

O CRAS é bom, funciona, tem cursos, palestra, bolsa família. (RC)

Outra necessidade atendida nesse processo de exigibilidade diz respeito à moradia. O

poder público, para atender a essa necessidade, distribuiu várias famílias em residências

localizadas em diferentes comunidades. A primeira remoção ocorreu em 2009, onde cerca de

500 famílias passaram a residir no conjunto habitacional Cidade Sorriso, no Benedito Bentes,

construído pela prefeitura e em 2010, foram transferidas 240 famílias para apartamentos

próximos a orla lagunar – Vila São Pedro – construída pelo governo estadual para atender às

famílias que viviam da pesca e 820 famílias para o conjunto habitacional Santa Maria, no

Eustáquio Gomes.

Veio toda a equipe da prefeitura, da secretaria de planejamento, da habitação do

município. Eles fizeram um trabalho de preparação quando [...] houve muita

pressão. Uma coisa que foi cumprida por parte, que eu não sei quanto eram, mais ou

menos, as casas. [...] Eu só sei que o restante daquele pessoal ficou lá. (RSCO)

Identificou-se também que a manutenção dos barracos propiciou o distanciamento

entre seus moradores e os das famílias que passaram a morar nos apartamentos, do outro lado

da avenida, contribuindo para desmobilizar os moradores e as lideranças comunitárias.

Eu fui a umas reuniões que [...] me mandava, mas não vou mais, porque a gente fica

visado pelo povo que continua do outro lado, porque a gente ganhou nosso

apartamento. Não vou perder o meu canto. (RC)

Apesar disso, identificou-se que as famílias que tiveram acesso à moradia, melhoram

a sua condição de vida e saúde.

E lá o pessoal da comunidade, inclusive, mudou-se. Mudaram para novas

residências. [...] Encontro uma vez ou outra com os meninos todos já gordinhos, que

conseguiram morar nos apartamentos. Que já estavam trabalhando num emprego

76

doméstico. Para algumas pessoas houve uma melhoria de vida. Eu sei. Que eu

percebo. (RSCO)

Já em relação à saúde, os depoimentos indicam que essa demanda não foi atendida, e

que a decisão judicial não alterou as condições de acesso e de atendimento dos serviços de

saúde disponíveis para as comunidades da orla lagunar, inclusive para as famílias da Vila São

Pedro.

A saúde, não aconteceu nada, nada. A Ação na saúde, nem municipal e nem estadual, nada. (RSCO)

Horrível, horrível! E ainda continua horrível. [...] Uma mãe teve aqui só pra trazer

uma criança de lá pra mostrar. Eu chorei, o pé da criança como tava de bicho de pé.

(RC)

Acho que precisa de saneamento básico, tem muita violência e falta atendimento

médico. Pra a gente conseguir uma consulta pra mim ou pro meu filho a gente tem

que dormir no posto do Dique Estrada. (RC)

Segundo os depoimentos, a Secretaria Municipal de Saúde se esquivou de participar

das negociações para implementação das ações a serem desenvolvidas para atender às

necessidades de saúde da comunidade, pois

Com a Secretaria Municipal de Saúde foi a que menos se posicionou, a gente não

teve reunião, não respondia aos nossos chamados de estratégias e de políticas de

saúde. [...] A saúde foi muito difícil. A gente teve pouca interlocução e não foi por

motivo da gente não tentar, ou melhor, assim, a gente não ter acionado. (RSCO)

Na fala dos atores sociais da sociedade civil, pode-se perceber que nas comunidades

da orla lagunar a decisão judicial foi ineficaz em relação à manutenção do trabalho infantil e

ao atendimento das necessidades de saúde. Já em relação à educação, moradia e assistência

social as determinações foram atendidas de modo parcial.

Entretanto, esses depoimentos se contrapõem ao relato do representante do Poder

Executivo, quando é dito que na comunidade da orla lagunar, as determinações relacionadas à

educação, à saúde e à assistência social foram atendidas.

A questão do PETI, do CREAS, a reorganização do Conselho Tutelar, creches foram

feitas, escolas foram construídas exatamente nesse período de 2008 a 2012. [...] Foi

construído um colégio para crianças e adolescentes, foi construída uma creche só

para aquela orla. Centro de Saúde que tá condicionado com o CREAS que é o centro

de saúde, que não tinha centro de saúde lá, [...] inclusive recebi recentemente

documentos da Secretaria de Educação e da Secretaria de Assistência Social

informando exatamente isso, quer dizer, aquelas crianças em vulnerabilidade, 90%

delas, acredito que hoje estão na escola e em algum programa de atenção à criança e

ao adolescente. (RPE)

Quando se teve a ação de remover as famílias para outras comunidades,

inevitavelmente, as ações para atender às determinações da sentença passaram a ser

77

distribuídas para atender também a essas comunidades. É interessante analisar o processo de

judicialização do ponto de vista desses moradores.

No conjunto habitacional Cidade Sorriso, os moradores reconhecem a importância de

terem tido acesso à moradia, mas afirmam que não têm acesso a trabalho, tendo como renda o

recurso do Programa Bolsa Família, o que afeta as relações familiares.

Bem, eu te falo e repito, a doença maior de nossa comunidade é miséria, não é nem a

miséria do alimento. [...] Uma estrutura digna. Não importa essas casinhas de tijolos

se a gente não tem emprego, a gente não tem um curso pra tirar renda pra ajudar

nossos filhos. [...] A gente dá graças a Deus, essa casa, mas agora todo mundo tá no

SERASA. [...] porque a gente deve a luz, [...] aí, a justiça, já encaminharam junto com a justiça com uma historia que vai tomar a casa. Quer dizer, “bole” com o

psicológico da gente. (RC)

O marido se debanda logo, se desgraça, começa beber cachaça, se entrega a cachaça

[...] ou o vicio da droga [...]. E tudo fica a mulher na responsabilidade. (RC)

Alguém que tenha condições melhores que a gente, que vê a miséria e chega lá [...] e

diz, meu amigo eu te dou isso, isso e isso. Tu tira tua parte, vê se tu não vai ganhar

dinheiro? Agora tu fica aí se matando. Tem muitos pais de família de mente fraca

que cai nessa, cai nessa besteira. Vê dinheiro rolar, quando é depois que é preso ou

humilhado. (RC)

Quanto à atuação do município em relação a essas questões, eles dizem que tiveram

apenas uma reunião junto ao CRAS da comunidade, mas as reivindicações que apresentaram

ainda não foram atendidas.

Foi dada só a casa, diante da casa, mais nada, depois disso começou só demanda, só

violação. [...] Na comunidade qual é a violação? Trafico, prostituição infantil, [...]

meninas envolvidas aí, de 12, 15 anos, tanto homem como mulher se prostituindo.

[...] Essa comunidade vai pra Cidade Sorriso I, mas tem um CRAS? Tem conselho

dentro dessa comunidade, um conselho tutelar dentro da comunidade? (RC)

A gente foi pro CRAS e fizemos somente uma reunião em 2010. [...] Nesse

acompanhamento, a gente adiantou algumas coisas e exigiu o curso de renda, um

curso de costura, um curso de pintura para as mulheres. E até agora, nada. (RC)

Em relação ao provimento do direito à educação, os moradores informam que nem

todas as crianças tiveram acesso à escola, à creche e a atividades de esporte, cultura e lazer.

[...] até hoje, ainda temos crianças fora da escola. Nem todas as crianças

conseguiram ser matriculadas, porque o conjunto aumentou, [...] poucas escolas e

muitas crianças, nossa comunidade principalmente, (...) é difícil ter uma mãe que

tenha um filho só. É de dois acima. [...] Creche nem se fala, tem mãe que até hoje

está correndo atrás de creche por ai. (RC)

Porque a partir do momento que a comunidade tem uma educação, tem cultura, tem

trabalho social, eu acho que a demanda de ter roubo, de ter tráfico vai ser muito

pequena. Porque esses nossos filhos vão estar ocupado, vão está estudando, vão está

tendo aquilo que eles precisam, uma cultura. O que ele quer um caratê, uma luta de

judô ou uma capoeira. Uma coisa que tenha na comunidade, um futebol ou um

dança de coco, uma dança de hip-hop. Isso que a comunidade quer, uma dança de

78

reggae ou uma dança africana. É isso que a comunidade quer e esses meninos não

tem. (RC)

Também se afirma que a escola e a creche deveriam ser ofertadas em tempo integral

e que fosse garantido o direito à educação em todas as fases de ensino.

Tinha que ter uma creche em tempo integral, a criança entrava de manhã e saia de

cinco e meia da tarde. Tinha quer ter uma escola também em tempo integral. [...] A

criança saindo da creche, [...] ia pra escola, da escola já ia pra uma universidade

fazer alguma coisa. (RC)

No entanto, identificou-se que existe uma discussão sobre a impossibilidade de se

construir uma escola nessa comunidade, porque o relevo da área é considerado inadequado .

É tão absurdo, porque tem uma legislação que impede de construir uma escola num

território que não tenha segurança. [...] Você percebe que pra dar uma moradia, foi

num dos piores locais. Ali, não era pra ser construído nada, foram construidas as

casas pra essas pessoas e no lugar das casas dessas pessoas não tem nenhum terreno

para construir uma escola. (RSCO)

Em relação ao atendimento das necessidades de saúde, afirma-se que as famílias têm

acesso à unidade básica de saúde e que está sendo instalada uma equipe do PSF, mas

consideram o atendimento precário e insuficiente.

Era unidade mista, atendia várias pessoas da comunidade, não atendia

especificamente só Sorriso I. Quando a gente ia pegar uma ficha lá, tinha que

dormir. (RC)

Pra conseguir o PSF foi discussão no posto medico. [...] Botaram em novembro de

2012. Fizeram o mapeamento em janeiro, [...] e agora ele estão começando a

trabalhar. (RC)

Bem, a única ação que eles desenvolvem, na verdade, é vir na comunidade dizer

assim, tal dia, [...] a gestante e as criança têm que ir para posto, chega lá procura as meninas do PSF [...] e faz o encaminhamento que nem a gente fazia antes, normal,

pegando uma ficha e tudo. [...] Não de mede a criança, acompanha a criança de mês

em mês, se ela aumentou de peso ou ela diminui, se essa criança esta desnutrida.

Nada disso tem aqui, não. [...] Eu pensava que vinha um médico, a enfermeira e um

agente pra acompanhar dentro da comunidade. (RC)

Também foi informado que pessoas foram a óbito na comunidade devido à

precariedade ou mesmo falta de atendimento adequado, demonstrando que as violações dos

direitos humanos, nesse caso do direito à saúde e à vida, não estão sendo corrigidas.

Sim, morreram 5 pessoas dentro desse posto medico, de umas doenças muito

simples. O primeiro foi uma criança por causa de verminose, botando verme pelo

nariz e pela boca. [...] Depois morreu 4 idoso, de pressão alta. Chegou lá fulminante,

a pressão subia, não se tem uma ambulância, se tem um PSF, porque não coloca

dentro dessa comunidade uma ambulância com UTI móvel? Não se tem. (RC)

Os relatos dos representantes da comunidade Cidade Sorriso afirmam que as casas

foram doadas, mas faltam condições dignas para viver, pois falta acesso a trabalho e à renda e

aos demais direitos como saúde, educação, cultura, esporte, lazer e assistência social.

79

Já o poder executivo alega, por meio dos depoimentos de seus representantes, que a

comunidade foi dotada de toda infraestrutura e serviços públicos para atender às famílias

beneficiadas pela judicialização.

Então, todos os secretários relacionados a essa ação estavam lá e a informação que

nos foi passada é que, tanto aqui na orla lagunar tá sendo feito todo esse

aparelhamento de assistência, como na Cidade Sorriso estão sendo implementadas,

apesar de ter divergências com relação à própria comunidade que diz que não. [...] Mas quando foi feito a Cidade Sorriso, que é um projeto novo, já foi feito com toda

infraestrutura, já foi feito com colégio, centro de saúde, inclusive da questão da

segurança, que tem um centro de referência da guarda municipal junto com a PM,

foi feito toda essa infraestrutura. (RPE)

Entretanto, afirma que uma comissão vinculada ao Poder Executivo Federal e a

Organizações de Sociedade Civil esteve em Maceió e na comunidade para verificar se as

determinações da sentença estão sendo cumpridas pelo poder público. Para isso, estão se

dispondo a realizar um levantamento na comunidade Cidade Sorriso.

[...] tem um pessoal de São Paulo, de Brasília, [...] do Ministério da Ação Social eles

estão aqui, [...] em Maceió, fazendo esse levantamento e ficamos de nos reunir, [...]

em janeiro, o Ministério Público, a Prefeitura e esse grupo, que é um grupo

independente, digamos assim uma Organização que é vinculada a UNESCO. [...]

Eles queriam ver exatamente o que foi que a Ação trouxe de beneficio para aquela

comunidade. [...] Nos reunirmos, ficou definido que eles vão fazer uma pesquisa de

campo para ver quais são as demandas que a comunidade tem hoje e o que a

prefeitura e o estado, [...] estão, realmente, realizando. (RPE)

Pode-se perceber que os relatos dos moradores da comunidade se contrapõem aos

dos representantes do poder executivo, pois afirmam que pouco se avançou na implementação

de políticas públicas para realização dos direitos indicados na determinação da sentença, além

do acesso à moradia.

Na comunidade Santa Maria, os relatos indicam que foi instalado e se encontra em

funcionamento um posto de segurança. Uma escola foi construída, mas ainda não se encontra

em funcionamento. Também estão sendo construídos um posto de saúde e a sede da

associação de moradores.

Eu vou ser franca, aqui saúde tá precária, educação tá precária, a única coisa que tem

no momento, é a segurança. A gente já tem aqui dentro. (RC)

Eu tendo um colégio, bem dizer, já devia tá funcionando dentro da área, que é

principalmente pras crianças que veio da orla lagunar. [...] E o colégio tá aí e não

funciona. (RC)

O posto de saúde que tá sendo construído, é lindo! Não vi ainda na cidade um posto bacana desse. Também tá em construção a sede da associação, enorme! (RC)

Em relação ao atendimento ao direito à educação, essa comunidade afirma que o

atendimento encontra-se precário porque as escolas que atendem a crianças e adolescentes

80

localizam-se fora da comunidade, dificultando o acesso e expondo os estudantes a riscos de

acidente. Além disso, faltam vagas.

[...] Tem criança matriculadas em colégios fora da comunidade e tem crianças que não tão estudando. Eu chego na casa da mãe, porque essa criança não tá estudando?

Não tem vaga. O outro é longe demais. [...] Tá com dois ou três meses que eu perdi

duas crianças da comunidade Santa Maria. [...] Saiu do Santa Maria pra estudar lá no

Cruzeiro do Sul e foi atravessar essa pista [...] e o carro atropelou. Então eu me sinto

mal. Que tem mãe de família que não pode trabalhar. (RC)

[...] É muita criança que estuda no CEPA, como a minha menina. [...] A prefeitura

cedeu o ônibus, eles pega de manhã a turma de manhã e a turma da tarde e leva pro CEPA e entrega no local que ele pega. (RC)

Quanto às necessidades de saúde, é dito que a comunidade tem encontrado

dificuldade de atendimento na unidade de saúde do bairro, vendo-se obrigada a recorrer à rede

privada.

[...] já tá com um ano que eu fui ao médico e marquei quatro exames e até agora não

consegui. [...] E a reclamação é muita. Essa aí, [...] a família teve que suar, puxar R$

150.00 reais pra marcar uma consulta pra ela ir ao médico, porque ou ela ia ao

médico pra saber o que ela tinha ou ela morria. (RC)

Segundo relatos, os moradores de uma das comunidades da orla lagunar chegou a

invadir as casas antes de serem concluídas, devido à demora em serem entregues.

Porque foi entregue 510 casas [...] ficou 310 pra ser entregue. Então, eles me

prometero que iam me entregar primeiro pra minha favela. [...] Eu envadi o

Conjunto Santa Maria, a primeira vez. Aí, conversou comigo, disse que eu levasse a

comunidade pra favela, que depois de cinco meses a seis meses me entregava a

minha moradia. [...] O que aconteceu foi que entregaram à Sururu de Capote, à Torre

e à Muvuca primeiro e não a minha que eles tinham combinado. Aí, [...] eu procurei saber como é que tava o movimento dessas casa. [...] aí eu disse: bom, as casa já tão

de pé, tão coberta, só tão faltando porta e janela, [...] então, procurei minha

comunidade, aqueles que era cadastrado por direito, [...] desde 2007. [...] A

secretaria, ela procurou, investigou, disse não, eu só vou dar a casa, na verdade, a

aquele que tem direito. (RC)

Apesar de todo esse contexto, a questão do acesso à moradia foi indicada como uma

conquista importante para a comunidade.

Pra mim, o que mudou foi a gente sair de um lugar precário, que era a orla lagunar, a

gente simples pra uma casinha simples, mas uma moradia digna. [...] Nós temos

água, nós temos luz, nós temos sanitário e lá, a gente não tinha. [...] Nós saímos de

um lugar, humilde mesmo, precário e hoje nós estamos numa moradia digna. (RC)

Afirma ainda que na comunidade estão sendo desenvolvidos cursos de capacitação

para geração de emprego e renda.

[...] o Estado ema parceria com a Caixa Econômica Federal, já colocou curso aqui

dentro. Tão fazendo curso, [...] Muitos que veio de lá de baixo, não sabia de nada. [...] Hoje, tem gente que já sabe enfeitar uma sandália, já colocou pra vender, já tá

fazendo e coloca ali, é uma renda. (RC)

81

Evidenciou-se nos relatos dos moradores que as políticas públicas desenvolvidas não

estão vinculadas a uma decisão judicial, mas a uma iniciativa do governo estadual.

Foi um planejamento lá de dentro, que saiu de lá de dentro da SEINFRA pra comunidade da favela. (RC)

Também ficou evidente que a prefeitura também não vincula a comunidade Santa

Maria a Ação Civil Pública, indicando que a construção do conjunto resulta de um acordo

entre o governo estadual e municipal para desocupação e reestruturação da orla lagunar.

No caso da Cidade Sorriso, sim. As outras comunidades não são objetos da Ação.

[...] Com relação à Ação em si, o pessoal que foi removido para Cidade Sorriso, foi

exatamente esse acordo entre Estado e Município, a retirada, a liberação da orla.

(RPE)

Essa comunidade está sendo dotada de uma estrutura de moradia e de serviços de

educação, saúde, assistência social e segurança mais qualificada que as outras que foram

beneficiadas pela Ação. No entanto, o governo estadual, municipal e a própria comunidade

não vincula essas ações que estão sendo implementadas à decisão judicial.

5.3 Exigibilidade de direitos: limites e possibilidades para efetivação do direito à saúde

Para ampliar a compreensão desse processo de exigibilidade, além de analisar os

autos do processo judicial em que consistiu a Ação Civil Pública e o seu percurso jurídico-

administrativo para o cumprimento da sentença, foi realizada a análise da percepção dos

atores sociais envolvidos nesse processo e na implementação das políticas públicas traduzidas

em ações, programas e serviços para as famílias das comunidades beneficiadas pela decisão

judicial, especialmente aquelas relacionadas ao direito à saúde.

Como podemos observar na descrição desse caso de exigibilidade de direitos, alguns

fatores contribuíram para o seu surgimento e fortalecimento, tais como: a) a mobilização das

mães em reação à intervenção autoritária do governo municipal, que as responsabilizou pela

inserção das crianças na atividade pesqueira e na prostituição; b) a situação de pobreza e de

miséria a que estava submetida a comunidade; c) a existência de um fórum público estadual,

com a participação ativa de diferentes atores socias da sociedade civil e do Estado, que

catalisava as discussões sobre os problemas sociais e as estratégias de implementação de

políticas públicas para efetivação dos direitos sociais; d) a atuação das ONGs, dos

movimentos sociais e do Ministério Público junto à comunidade e; e) a falta de compromisso

e o desrespeito do poder executivo em relação aos direitos assegurados.

82

A partir da análise desse processo, pode-se considerar que o poder municipal agiu

como se os direitos sociais os quais dizia estar protegendo fossem indissociáveis dos direitos

políticos que estava deixando de garantir, reforçando uma configuração distorcida dos direitos

sociais, constituindo, assim, um lugar em que a igualdade prometida pela lei reproduz e

legitima as desigualdades, reproduzindo uma cidadania restrita, onde os direitos sociais são

dissociados dos direitos políticos (TELLES, 1999).

Ao responsabilizar as mães, os agentes públicos não reconhecem que as condições de

vida das pessoas daquelas comunidades são resultantes de um desenvolvimento econômico

perverso e excludente, que as tornaram marginalizadas, sendo-lhes negada a dignidade

humana e o respeito em nome de um crescimento econômico, com a conivência do próprio

Estado (SANTOS, 2003).

Desse modo, o Estado naturaliza a exclusão social, responsabilizando os próprios

indivíduos por se encontrarem na pobreza e na miséria, eximindo-se de sua responsabilidade

histórica de descumprimento de suas obrigações no provimento dos direitos assegurados,

apesar de ser o principal regulador das relações sociais. Além disso, insiste em reconfigurar as

conquistas sociais para manter velhas dinâmicas de gerir a coisa pública.

No entanto, as contradições se acirraram nesse contexto de redefinição política em

curso no Brasil. De um lado, apresenta-se um cenário global de desconstrução de direitos

sociais e de avanço do neoliberalismo que promove rearranjos econômicos para a

consolidação do mercado e reestruturação produtiva (VASCONCELLOS; OLIVEIRA, 2011).

Do outro, tem-se a mobilização social e política para formulação das políticas públicas que

viabilizariam os direitos sociais assegurados.

Esse cenário que se encontram as comunidades da orla lagunar de Maceió –

situação de pobreza e miséria; cidadania restrita ou mesmo ignorada pelo Estado – tornou-se

um caso ilustrativo resultante desse rearranjo econômico e da reestruturação produtiva, onde o

trabalho deixou de ser suporte a cidadania, e vice-versa. Essas comunidades se constituíram

numa subclasse de pessoas que passaram a viver em espaços socialmente isolados, vítimas do

desemprego e detentoras de baixa escolaridade e qualificação profissional, com tendência a

cair na atividade criminal, formando uma sociedade civil incivil habitada pelos totalmente

excluídos (SANTOS, 2003).

83

Desse modo, essas comunidades atraíram vários atores sociais que se articularam

formando uma rede social de informação e mobilização, constituindo um mecanismo de

pressão para defesa dos direitos humanos, isto é, de uma vida digna, da democracia, contra a

desigualdade e a discriminação. Isso fortaleceu a sociedade civil para transformar a sociedade

política e garantir os direitos assegurados constitucionalmente (SCHERER-WARREN, 1993).

Essa articulação dos atores sociais em rede foi potencializada por meio do fórum

público estadual que articulava as demandas e estimulava a negociação, sendo o Ministério

Público o intermediador junto ao governo estadual e municipal.

Nesse sentido, o processo de exigibilidade em análise se inseriu nesse contexto de

mobilização social, com a organização de fóruns públicos temáticos articulados por diversos

atores sociais da sociedade civil e do Estado, tendo em vista a construção de alternativas e

uma gestão partilhada e negociada dos bens públicos (TELLES, 1999; COHN, 1998, 2003;

SCHERER-WARREN,1993; PIRES; DEMO, 2006).

A análise desse caso exigibilidade evidenciou que um processo dessa natureza se

constituiu numa movimentação que permitiu reinventar a política a partir da participação de

diferentes atores, desencadeou um processo de negociação para garantir a efetivação dos

direitos sociais, buscou alternativas efetivas, inovadoras e inusitadas de ação política e

intervenção pública. Nesse processo, os conflitos foram expostos e foram colocadas em

discussão as responsabilidades envolvidas na situação de pobreza e miséria em que se

encontravam as comunidades da orla lagunar de Maceió, o que culminou com a

judicialização, de caráter coletivo, dos direitos humanos e sociais das crianças e adolescentes

dessas comunidades, uma Ação Civil Pública.

Essa Ação Civil Pública foi a primeira no país que, fundamentada nos princípios dos

direitos humanos, exigiu que fosse implementado, conjuntamente, vários direitos

constitucionais fundamentais, cuja sentença reafirmou o papel do Estado como principal

provedor dos direitos assegurados.

Do ponto de vista do direito à saúde, até então, as demandas e decisões judiciais

teriam se restringido a tratamentos, concessão de medicamentos ou acesso às tecnologias não

incorporadas pelo SUS, limitando esse direito por desconsiderar as outras ações de promoção,

prevenção e reabilitação (GONTIJO, 2010).

84

Nesse sentido, a decisão judicial em análise concebeu a saúde como um direito

humano fundamental, cuja promoção pressupõe outros requisitos básicos, que exige a ação

conjunta de outros setores sociais e econômicos e dos governos mediante a realização de

medidas que promovam a efetivação dos direitos sociais.

De certo modo, a judicialização coletiva para correção da violação dos direitos

sociais inovou na forma de abordar as questões sociais, tendo em vista a indissolubilidade e a

interdependência que lhes são inerentes; tornou-se mais integralizadora, pois evocou a

intersetorialidade como elemento fundamental no planejamento, execução e controle da

prestação de serviços, com a finalidade de garantir o acesso positivamente desigual aos

desiguais, num universo o mais totalizador possível do conjunto da população (BARCELOS;

VASCONCELLOS; COHEN, 2010).

No entanto, apesar do direito à saúde ter sido identificado como um direito violado

na fundamentação da Ação Civil Pública, ele não foi prescrito diretamente na sentença,

enquanto ações no campo da saúde. Isso fez com que a prefeitura e a própria secretaria

municipal de saúde não se sentisse compelida a atuar diretamente no atendimento das

determinações, prevalecendo a visão setorial e fragmentada na formulação e implementação

das políticas públicas providas pelo Estado à população. Esse comportamento do poder

executivo se alinha ao projeto hegemônico de desconstrução de direitos sociais e de avanço

do neoliberalismo, que “tem como premissa concepções individualistas e fragmentadoras da

realidade, em contraposição às concepções coletivas e universais do projeto contra-

hegemônico” (BRAVO, 2006, p.15).

Essa conduta do município desrespeita o que prescrevem os princípios e as normas

que fundamentam o direito à saúde, pois os direitos relativos à educação, alimentação e

nutrição, à liberdade de associação, à igualdade, à participação e a não discriminação são

elementos integrantes e indivisíveis da realização do mais alto nível possível de saúde da

população (TARANTOLA et al., 2008).

Do mesmo modo, a prefeitura se distancia da concepção de saúde quando desenvolve

ações no campo da assistência médica nas comunidades de forma pontual, desarticulada das

demais ações, como moradia e educação, sem planejamento intersetorial e sem estabelecer um

canal de diálogo e de participação dos sujeitos de direitos nas decisões, que apesar de serem

crianças e adolescentes são inseridos num contexto familiar, no qual os pais e responsáveis

partilham intrinsecamente dos direitos assegurados. Portanto, ela não considera o

85

levantamento realizado para subsidiar a formulação das políticas para atender às

determinações da sentença.

Esse contexto demonstra que diversas concepções e interesses se encontram em

disputa. De um lado, tem-se a ideia implícita do Ministério Público e do juizado de que o

direito à saúde seria contemplado por se inserir no rol do direito à vida, pressupondo que, nas

condições em que se encontravam as comunidades, a decisão judicial e as ações prescritas

teriam incidência sobre ele. De outro, a visão do poder executivo de que, por não ter sido

claramente indicado nas determinações de sentença, as ações realizadas no setor da saúde

serviriam apenas como legitimação da boa vontade do município, seja em cumprir a sentença,

seja para neutralizar os seus efeitos jurídicos e políticos.

Para evitar que os portadores de obrigações se eximam de cumpri-las, a abordagem

de direitos humanos defende que a responsabilização não pode prescindir do seu poder

normativo para orientar a ação social, identificando as obrigações legais e morais da

sociedade e do Estado para que as ações não sejam confundidas com gestos de boa vontade

que podem ser abandonados a qualquer tempo (YAMIN, 2008).

Nessa perspectiva, observou-se que, com a determinação da sentença, ocorreu um

reposicionamento dos atores sociais envolvidos, considerando a forma como cada segmento

social passou a atuar em relação ao cumprimento da decisão judicial.

Verificou-se, assim, que a Prefeitura de Maceió interpôs vários recursos junto às

instâncias do poder judiciário para suspender e revogar a decisão, utilizando diversas

estratégias políticas e administrativas para neutralizar os seus efeitos e não realizar as políticas

públicas determinadas. Essas estratégias podem ser identificadas como: a) tentativa de

corresponsabilizar a União e o Estado pela precariedade dos serviços disponibilizados para as

comunidades; uma forma de se eximir de suas obrigações na implementação das políticas

públicas que concretizariam os direitos assegurados; b) entendimento de que a atuação do

Ministério Público e do Juizado foi uma intervenção indevida e que a decisão judicial uma

mera formalidade, embora se contradiga ao afirmar reiteradamente o seu cumprimento; c)

reconhecimento da importância das lideranças comunitárias, mas desqualificação da atuação

política daquelas que vincula as suas demandas ao processo de exigibilidade e d)

desenvolvimento de ações de forma fragmentada e desarticuladas entre si.

86

A análise da percepção do poder executivo municipal nesse processo de exigibilidade

evidenciou a forma como o poder político se comporta diante do seu dever de garantir os

direitos e de como formula e implementa as políticas públicas para sua concretização.

Surpreende o modo como os governantes lidam com a precariedade dos serviços públicos dos

quais dependem a qualidade de vida da maioria da população. Isso deixa claro que as

consequências adversas do desenvolvimento econômico não são explicações suficientes para

a manutenção do caráter predatório predominante na sociedade brasileira, na qual o exercício

do poder político e econômico não tem encontrado limites, logo os direitos não são

respeitados, mesmo consagrados em lei ou corporificados em instituições. Daí a permanente e

tranquila transgressão como parte da cultura política brasileira, porque nela está ausente o

critério de responsabilidade, cuja noção de bem público se confunde com o Estado, com os

interesses daqueles que representa ou com a boa vontade dos governantes (TELLES, 1999).

Desse contexto, depreende-se que é importante haver mecanismos institucionais que

visem promover a responsabilização legal, política e social, estabelecendo, de fato, a

prestação de contas como um dever a ser cumprido pelos governantes e demais atores sociais

envolvidos. No entanto, também se percebeu que esses mecanismos precisam ser aprimorados

em sua aplicação. Ou seja, precisamos de mecanismos e ferramentas institucionais que

indiquem se os governos e a sociedade estão cumprindo com o dever de empreender todos os

esforços para garantir a realização progressiva dos direitos assegurados. Da mesma forma,

faz-se necessário que se criem instâncias públicas que promovam o pleno exercício da

cidadania, por meio da conscientização, da participação e ação social efetiva que, mobilizadas

e articuladas em conjunto ou independente das estratégias legais, atuem para garantir o direito

a uma vida digna para todos (YAMIN, 2008).

Nesse caso, a instância pública instituída no Brasil para garantir o cumprimento dos

direitos assegurados na Constituição que mais se destaca é o Ministério Público, o qual tem

como função primordial zelar pelo efetivo respeito pelos poderes públicos e dos serviços de

relevância pública, promovendo as medidas necessárias para a sua garantia, sobretudo, na

defesa dos direitos sociais como à saúde, à educação, os direitos das crianças e dos

adolescentes, entre outros, podendo agir extrajudicialmente ou perante o Judiciário

(FRISCHEISEN, 2001).

87

Observou-se, no caso em análise, que o Ministério Público se constituiu como um

importante ator social, por intermediar a interação entre a comunidade, as entidades que a

apoiavam, o poder executivo e com o juizado.

Sua atuação permeou todo o processo de exigibilidade. Iniciou-se ao se aproximar

das comunidades, estabelecendo um diálogo que permitiu a identificação das violações de

direitos e seguiu com a articulação com a comunidade e com as entidades organizadas da

sociedade civil e do próprio Estado e intermediou o processo de negociação junto ao poder

executivo, no sentido de garantir a efetivação dos direitos socias que se encontravam violados.

Após esgotarem as possibilidades de negociação extrajudiciais, enveredou, então,

para judicialização, ao interpor a Ação Civil Pública para exigir do poder executivo municipal

o provimento dos direitos sociais das crianças e adolescentes, beneficiando praticamente todas

as comunidades por meio do atendimento às suas famílias.

A atuação do Ministério Público no processo de exigibilidade demonstra a

importância do fortalecimento dos mecanismos de controle do poder estatal e de prestação de

contas, ampliando a visão de que a legitimidade do poder político não se restringe à

representatividade, mas está diretamente relacionada à transparência e a responsabilização

referente às políticas públicas.

Nesse sentido, a ampliação do poder judiciário evidencia também a necessidade de

ampliação dos mecanismos de participação e garantia de direitos, por meio dos quais se

garanta formalmente a igualdade, em resposta à insuficiência ou deficiências dos canais

tradicionais de controle social e de participação popular, principalmente, se for um fenômeno

historicamente no processo de construção democrática da sociedade brasileira (VENTURA et

al., 2010).

A atuação do Ministério Público demonstrou, desse modo, a sua capacidade

institucional de criar um espaço de interlocução, o que possibilita a interação entre os

principais atores que compõem o processo de formulação, gestão e fiscalização das políticas

públicas, o que corresponde à sua atribuição e posição de destaque na defesa e efetivação dos

direitos sociais. Isso porque ele pode promover uma reflexão que situa os direitos como

práticas concretas que atendam a critérios substanciais de justiça e cidadania (ASENSI, 2010).

Com a judicialização e o deferimento da sentença, o Ministério Público passou a

intermediar a interação com os demais atores sociais envolvidos por meio do Poder Judiciário,

88

acompanhando o processo, fiscalizando se a decisão judicial estaria sendo cumprida pelos

poderes constituídos (Judiciário e o Executivo), interpelando-os sobre o andamento das

determinações e propondo alternativas para viabilizar o seu cumprimento. Também passou a

ser o canal pelo qual as comunidades, por meio de suas lideranças e das entidades da

sociedade civil envolvidas, pudessem recorrer para acompanhar e fazer denúncias, além de

tentar garantir a sua participação junto aos poderes públicos nas decisões e na implementação

das ações relacionadas à sentença.

No entanto, a análise dos autos desse processo evidenciou os limites das instâncias

do Poder Judiciário em garantir o cumprimento da decisão judicial, pois o próprio Ministério

Público reconheceu, por meio do depoimento de seus representantes, que a estrutura jurídica e

institucional disponível não é suficiente para garantir a realização dos direitos assegurados

constitucionalmente. Isso apesar de afirmar que esses mecanismos, especificamente essa Ação

Civil Pública, constituíram-se num importante instrumento para fortalecer a luta política dos

moradores das comunidades beneficiadas e para pressionar o poder executivo em relação ao

cumprimento de suas obrigações de realizar as políticas públicas que garante os direitos da

população.

Nesse sentido, ressalta-se a importância das instituições jurídicas, especialmente

daquelas que protegem os direitos humanos constitucionais e internacionais, pelo fato de

contribuirem na forma de abordar diversas questões sociais, políticas e até mesmo jurídicas

para realização desses direitos, à medida que se debruçam sobre a dimensão fática desses

direitos, produzindo efeitos concretos no cotidiano das práticas dos atores sociais (YAMIN,

2008). Isso amplia o alcance da norma constitucional, que incorpora caracteres sociais e de

cidadania em seu conteúdo e no estabelecimento de estratégias de efetivação que possam

refletir na formulação e execução das políticias públicas (ASENSI, 2010).

O conflito que se estabeleceu com a judicialização entre os poderes, intermediado

pelo Ministério Público, também nos remete a uma reflexão sobre uma movimentação que

vem ocorrendo no interior do próprio Estado em torno da legalidade e da cidadania e que tem

promovido alterações na forma de regulação dos bens públicos, os quais tem sido objeto de

permanente disputa e de uma árdua negociação entre os diversos atores sociais (SANTOS,

2003). Nessa configuração política emergente, o Estado, por meio de suas instâncias

institucionais, assume o papel de coordenar diferentes interesses, organizações, redes e

89

movimentos sociais, inserindo-se na luta política pela democratização das tarefas de

coordenação.

No entanto, os limites identificados na estrutura jurídico-institucional nos quais

esbarrou a atuação do Ministério Público para garantir o cumprimento da decisão judicial, por

parte do Poder Executivo, demonstra que o êxito da luta política pela democratização da

esfera estatal deva ser articulada à luta pela democratização da sociedade civil por meio da

garantia do execício pleno da cidadania, para que de fato se garanta a reconstrução da esfera

pública e se avance na construção de um sistema democrático de carater emancipatório

(SANTOS, 2003).

Nesse sentido, a decisão judicial fortaleceu a luta política dos moradores das

comunidades beneficiadas e a parceria com as entidades organizadas. Por terem formalmente

reconhecidas as suas demandas e ampliada a possibilidade de ter seus direitos efetivados,

esses moradores passaram a se mobilizar para cobrar do Poder Judiciário a sua manutenção e

do município o seu cumprimento.

Verificou-se, assim, que, embora a participação da comunidade tenha sido

importante para manutenção da decisão judicial, sua atuação poderia ter sido ampliada no

decorrer do processo se existissem espaços de interlocução junto ao Poder Judiciário e ao

poder executivo.

Isso foi evidenciado tanto nos depoimentos dos atores sociais como na análise dos

autos do processo judicial, demonstrando que as esferas públicas do Estado não dispõem de

mecanismos que funcionem como canais de interlocução permanente entre a sociedade civil e

o Estado, um fator limitante da participação ativa dos moradores nas decisões relacionadas às

políticas públicas que seriam implantadas para garantia de seus direitos.

Essa realidade indica que o lugar da participação popular nas instituições jurídico-

políticas ainda não se encontra devidamente consolidada em nosso país, apesar de ser

considerada fundamental na produção das políticas públicas e de já ser reconhecida

legalmente no Estado como na regulamentação dos diretos da criança e do adolescente (Lei

Nº 8.069/90) e o regulamento da saúde (Lei Nº 8142/90), cuja finalidade é garantir a

participação da sociedade civil na gestão pública, precisamente na formulação das políticas e

no controle das ações governamentais (JACOBI, 1999; BUCCI, 2001; SAULE JÚNIOR,

2001).

90

Na perspectiva de direitos humanos, a participação se configura como um

engajamento ativo dos sujeitos de direitos da sociedade civil na defesa de seus interesses,

cujas ações são direcionadas ao Estado, por meio de ações judiciais e de articulações políticas

com diversos atores sociais como o governo e parlamentares parceiros, a mídia, etc., com o

objetivo de influenciar nas decisões políticas (OLIVEIRA, 2006).

Nesse sentido, a participação se torna um meio fundamental de institucionalizar

relações mais diretas, flexíveis e transparentes que reconheçam os direitos dos cidadãos e para

reforçar os laços de solidariedade na direção de uma cidadania ativa que disponha de

instrumentos para o questionamento permanente da ordem social estabelecida (JACOBI,

1999).

Porém, o caso em análise indica que há ainda um longo caminho a ser percorrido

para que o Estado reconheça, de fato, a sociedade civil como interlocutora capaz de exercer o

seu papel nas decisões estatais, na formulação e na gestão compartilhada das políticas

públicas (SAULE JÚNIOR, 2001), pois o que se observa é que “as propostas participativas

ainda permanecem mais no plano da retórica do que no da prática” (JACOBI, 1999, p. 32).

Desse modo, percebe-se que a participação contribui para a verdadeira realização dos

direitos humanos e sociais, inclusive o da saúde. Portanto, tanto o Estado como outros atores

sociais da sociedade civil como entidades classitas, movimentos sociais e ONGs devem ser

responsabilizados para que se garanta que as pessoas que são alvo das ações públicas tenham

oportunidade adequada para participar das decisões que lhes dizem respeito (YAMIN, 2008;

SAULE JÚNIOR, 2001).

Isso implica que deve haver um maior esforço para ampliar as vozes dos

marginalizados ou comunidades de excluídos não apenas nos diagnósticos de falhas

institucionais ou violações de seus direitos, mas também nas negociações de políticas sociais

para a sua correção (YAMIN, 2008). Para isso, é preciso que os governos garantam o direito

de todos os membros da sociedade de participar ativamente dos assuntos da comunidade em

que vivem, garantindo a sua participação na adoção de políticas em todos os níveis da

administração pública (SAULE JÚNIOR, 2001), visto que, como geralmente as políticas

públicas são formuladas e controladas pelo Estado, elas também se inserem no âmbito de suas

obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos, incluindo o direito de

participar nos assuntos públicos, a igualdade, a não discriminação e a dignidade

(TARANTOLA et al., 2008).

91

Nesse caso de exigibilidade de direitos, esses princípios, que se traduzem em

direitos, deveriam ter sido incorporados no decorrer do processo e na implementação das

políticas públicas desenvolvidas para cumprimento da sentença, tornando-as mais ajustadas às

demandas dos moradores das comunidades, enquanto titulares de direitos, respeitando-os

como cidadãos, logo contribuindo para construção de um sistema mais democrático.

A análise do processo de exigibilidades de direitos da orla lagunar de Maceió nos

mostrou que, apesar dos limites que dificultaram a efetivação dos direitos assegurados, a

atuação conjunta dos diferentes atores sociais da sociedade civil e do próprio Estado podem se

articular em defesa dos direitos sociais para que avancem na conquista da cidadania dos

moradores para o redimensionamento da cultura política dos agentes públicos e para

realização do direito a uma vida digna.

Embora a maioria das determinações da sentença não tenham sido cumpridas, o

processo de exigibilidade permitiu que o poder executivo fosse responsabilizado e prestasse

contas de suas obrigações em relação ao provimento dos direitos daquelas comunidades,

ficando claro que as ações desenvolvidas, apesar de insuficientes e inadequadas, não teriam

sido realizadas se a decisão judicial não existisse.

Também como atores socias, os moradores dessas comunidades, além de terem

acesso a alguns bens e serviços públicos, foram reconhecidos e se reconheceram como

sujeitos de direitos e ampliaram as suas perspectivas referentes à luta por uma vida digna e a

um futuro melhor para os seus filhos.

Nesse processo também foi permitido perceber que as instâncias jurídicas envolvidas

enfrentaram o desafio de utilizar os mecanismos jurídicos disponíveis para garantir a

realização dos direitos assegurados, bem como reconhecer os limites a serem superados para

que avancem no cumprimento de suas prerrogativas institucionais.

Já no tocante ao direito à saúde, evidenciou-se o quanto, na prática, está-se distante

da sua efetivação, como preconizam os princípios e normas dos direitos humanos em relação

à igualdade, não discriminação, empoderamento e participação ativa dos titulares de direitos e

o respeito à sua natureza intrínseca de indissolubilidade e interdependência dos demais

direitos. Também não se assegura o que preconizam os organismos e normas da saúde em

relação ao atendimento às necessidades de saúde e a intersetorialidade das ações como uma

92

das condições necessárias para garantia de que todos possam alcançar o mais alto nível

possível de bem-estar social, físico e mental.

93

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo de caso do processo de exigibilidade de direitos das comunidades da orla

lagunar de Maceió nos permitiu identificar alguns limites e possibilidades da utilização da

judicialização como um instrumento de luta para garantir a efetivação de direitos sociais,

entre esses, do direito à saúde.

A análise dos autos do processo judicial e dos depoimentos dos atores sociais

envolvidos possibilitou evidenciar a importância da atuação das entidades da sociedade civil e

do próprio Estado junto aos moradores dessas comunidades na identificação qualificada das

violações de direitos humanos para dar visibilidade às vulnerabilidades de grupos sociais

específicos.

Esse estudo também permitiu identificar a indivisibilidade e a indissociabilidade

inerentes aos direitos sociais. Esse contexto pode ser caracterizado, dessa forma, como uma

das possibilidades trazidas por esse processo de exigibilidade.

Outro fato bastante significativo trazido por esse estudo foi a constatação da

viabilidade da integração dos titulares de direitos no processo de execução, discussão dos

resultados e definição das demandas prioritárias para promover a participação proativa e o

empoderamento dos titulares de direitos em reivindicações de políticas públicas junto ao

Estado para correção das violações de direitos identificadas.

O estudo da trajetória desse caso permitiu, assim, que fossem visibilizados o papel e

as atribuições dos atores sociais e instituições que detêm a obrigação de respeitar, proteger e

realizar (promover e prover) os diretos sociais.

Do mesmo modo, o estudo expôs as dificuldades do poder judiciário em garantir a

execução das suas decisões e a necessidade de avançar na criação de mecanismos

institucionais que assegurem a responsabilização, a prestação de contas e a participação dos

diversos atores sociais envolvidos na resolução do conflito para a efetivação dos direitos

sociais em questão.

Também revelou as estratégias do poder executivo para se eximir da

responsabilidade de garantir os direitos fundamentais assegurados na legislação internacional

e nacional, como dos titulares de direitos, devido às barreiras existentes que os impedem de

participar ativamente das decisões e encaminhamentos que lhes dizem respeito.

94

Além desses limites, esse estudo permitiu evidenciar que as organizações da

sociedade civil e o próprio Estado devem atuar de forma diligente e permanente junto aos

grupos sociais vulneráveis, promovendo o empoderamento e a participação ativa dos titulares

de direitos para que possam exercer, de fato, sua condição de cidadão e possam interagir no

processo de decisões que lhes dizem respeito, principalmente na formulação, execução e

avaliação das políticas públicas para que se garanta a concretização dos seus direitos.

Isso se constituiria numa correlação de força mais horizontalizada entre os diversos

atores e instituições que compõem a esfera pública, na qual os interesses coletivos não

ficassem submetidos aos interesses individuais e que fosse garantida a efetivação progressiva

dos direitos assegurados, o que propiciaria a criação de mecanismos mais eficazes para uma

participação ativa e uma responsabilização efetiva dos atores sociais envolvidos, seja como

portadores de obrigação e/ou como titulares de direitos. Tudo em prol da construção de um

sistema social cada vez mais democrático e que respeite os direitos civis, políticos,

econômicos, sociais e culturais inerentes à sociedade.

Nesse sentido, é necessário que as instituições que zelam pela efetivação dos direitos

constituídos como as instancias do Poder Judiciário e o Ministério Público sejam fortalecidos

e dotados de infraestrutura para que possam cumprir adequadamente as suas atribuições na

defesa e garantia dos direitos assegurados. Do mesmo modo, deve-se ampliar e serem criados

espaços nessas instâncias que permitam a participação dos titulares de direitos envolvidos nos

conflitos sociais e coletivos em questão.

Também se deve fortalecer e ampliar os mecanismos de identificação e de

acompanhamento para que as ações governamentais e as políticas públicas sejam monitoradas

e possam ser visualizadas em seu desenvolvimento e direcionamento, garantindo a

transparência e o acesso às informações que permitam a sociedade civil atuar junto ao Estado

e exercer o seu papel de acompanhar, propor e fiscalizar os bens públicos, impelindo assim,

os agentes públicos a cumprirem com o seu dever de proteger e prover os diretos assegurados

a todos os cidadãos.

Conclui-se, então, que é importante a utilização dos instrumentos de exigibilidade

para o fortalecimento da luta política, a conquista da cidadania, a realização dos diretos

assegurados e, desse modo, para garantia de uma vida digna para todos.

95

REFERÊNCIAS

AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS – ABRANDH.

Relatório Peraí, é nosso direito! - promovendo a realização do Direito Humano à

Alimentação Adequada em comunidades urbanas vulnerabilizadas - ABRANDH/FAO,

Dezembro/2007. Disponível em: <http://www.abrandh.org.br.> Acessado em: 20 de jun.

2012.

ALBUQUERQUE, F. A. segurança alimentar e nutricional e o uso da abordagem de direitos

humanos no desenho das políticas públicas para combater a fome e a pobreza. Revista de

Nutrição, Campinas, vol.22, n.6, p. 895-903, 2009. ISSN 1415-5273.

ALBUQUERQUE, F.; BURITY, V. A exigibilidade do direito humano à alimentação

adequada através de estratégias de populações urbanas empobrecidas. In: BEZERRA, C. V;

COSTA, S. M. A. (Org.). Exigibilidade do direito humano à alimentação adequada:

experiências e desafios. Passo Fundo: IFIBE, 2008. p.145 - 171.

ARZABE, P. H. M. Conselhos de Direitos e Formulação de Políticas Públicas. In: BUCCI,

M. P. D; SAULE JÚNIOR N.; ARZABE P. H. M; FRISCHEISEN, L.C.F. (org.). Direitos

Humanos e Políticas Públicas. São Paulo: Polis, 2001. p. 32-43.

ASENSI, F. D. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na

saúde. Revista Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p. 33-55, 2010. ISSN 0103-7331.

BAPTISTA, T. W. F.; MACHADO, C. V.; LIMA, L. D. Responsabilidade do Estado e

direito à saúde no Brasil: um balanço da atuação dos Poderes. Ciência Saúde Coletiva, Rio de

Janeiro, vol.14, n.3, p. 829-839, 2009. 829-839. ISSN 1413-8123.

BARCELOS, M. R. B.; VASCONCELLOS; L. C. F.; COHEN, S. C. Políticas públicas para

adolescentes em territórios vulneráveis. Revista Brasileira de Promoção de Saúde, Fortaleza,

vol. 23, n. 3, p. 288-294, 2010.

BORGES, D. C. L.; UGA, M. A. D. Conflitos e impasses da judicialização na obtenção de

medicamentos: as decisões de 1a instância nas ações individuais contra o Estado do Rio de

Janeiro, Brasil, em 2005. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.26, n.1, p. 59-69,

2010. ISSN 0102-311X.

BORGES, D. C. L; UGÁ, M. A. D. As ações individuais para o fornecimento de

medicamentos no âmbito do SUS: características dos conflitos e limites para a atuação

judicial. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, vol.10, n.1, p. 13-38, 2009. ISSN 1516-

4179.

96

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituição.htm.> Acessado em: 12 de

fev. 2013.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do

Adolescente e dá outras providências. Disponível

em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acessado em: 23 de jun. 2013.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes e dá outras providências. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm> Acessado em junho de 2013.

BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências

intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm> Acessado em: 26 de

jun. 2013.

BRAVO, M. I. S. Políticas públicas de saúde no Brasil - Serviço Social e Saúde: Formação e

Trabalho Profissional. Cortez, 2006. Disponível em:

<http://www.servicosocialesaude.xpg.com.br/texto1-5.pdf> Acesso em: 22 de jun. 2013.

BUCCI, M. P. D. Buscando conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos

humanos. In: BUCCI, M. P. D.; SAULE JÚNIOR, N.; ARZABE, P. H. M.; FRISCHEISEN,

L. C. F. (org.). Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Polis, p. 5-15, 2001.

BURITY, V. et al. Direito Humano à Alimentação Adequada no contexto da Segurança

Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: ABRANDH, 2010. Disponível em:

<http://www.abrandh.org.br/download/20101101121244.pdf.> Acesso em: 22 de mar. 2011.

CHIEFFI, A. L; BARATA, R. B. Judicialização da política pública de assistência

farmacêutica e equidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.25, n.8, p. 1839-

1849, 2009. ISSN 0102-311X.

COHN, A. Estado e sociedade e as reconfigurações do direito à saúde. Ciência Saúde

Coletiva, Rio de Janeiro, vol.8, n.1, p. 09-18, 2003. ISSN 1413-8123.

COHN, A. Permanência e reestruturação das políticas sociais nos anos 90. Observatório da

Cidadania, Montevidéu, v. 2, p. 102-110, 1998.

97

Comentário Geral Número 14 (2000): Sobre o direito ao mais alto nível de saúde possível.

Disponível em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(symbol)/E.C.12.2000.4.En.> Acesso em:

16 de fev. 2013.

Comentário Geral Número 3: a natureza das obrigações dos Estados-partes. Disponível em:

http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/2/c3.html. Acessa em: 27 de fev.

2012.

Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde (CMDSS-2011). Documento

técnico/Primeiro rascunho. Disponível em: <http://cmdss2011.org/site/wp-

content/uploads/2011/08/Primeira_versao_documento_tecnico_CMDSS.pdf.> Acesso em: 23

de mar. 2013.

COSTA, N. R. A proteção social no Brasil: universalismo e focalização nos governos FHC e

Lula. Ciência Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol.14, n.3, pp. 693-706, 2009.

COSTA, S. M. A. O direito humano à alimentação adequada e a dignidade da pessoa humana.

In: BEZERRA, C. V.; COSTA, S. M. A. (Org.). Exigibilidade do direito humano à

alimentação adequada: experiências e desafios. Passo Fundo: IFIBE, p. 69-94, 2008.

CUNHA, S. S. Dicionário compacto do direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

Declaração de Alma Ata. Disponível em: <http://cmdss2011.org/site/wp-

content/uploads/2011/07/Declara%C3%A7%C3%A3o-Alma-Ata.pdf.> Acesso em: 23 de

mar. 2013.

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em:

<http://www.imprensaoficial.com.br/PortalIO/download/pdf/Constituicoes_declaracao.pdf.>

Acesso em: 23 de mar. 2013.

FARIA, C. A. Ideias, conhecimento e políticas públicas: um inventário sucinto das principais vertentes

analíticas recentes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 18, n. 51, p. 22-29, 2003.

FREY, K. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise

de políticas públicas no Brasil. 2006. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br > Acesso em:

10 de jan. 2006.

FRISCHEISEN, L. C. F. Políticas públicas: planejamento, desenvolvimento e fiscalização

conselhos gestores e democracia participativa. In: BUCCI, M. P. D.; SAULE JÚNIOR, N.;

98

ARZABE, P. H. M.; FRISCHEISEN, L. C. F. (org.). Direitos humanos e políticas públicas.

São Paulo: Polis, 2001, p. 44-52.

GELINSKI, C. R. G; SEIBEL, E. J. Formulação de políticas públicas: questões

metodológicas relevantes. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, vol. 42, n.

1 e 2, p. 227-240, Abr./Out. 2008.

GERSCHMAN, S.; SANTOS, M. A. B. O Sistema Único de Saúde como desdobramento das

políticas de saúde do século XX. Revista Brasileira Ciências Sociais, São Paulo, vol.21, n.61,

p. 177-190, 2006.

GIBBS, G. Análise de dados qualitativos. Trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre:

ARTMED, 2009. 198 p. (Coleção Pesquisa qualitativa/coordenada por Uwe Flick).

GONTIJO, G. D. A judicialização do direito à saúde. Revista Médica de Minas Gerais, Belo

Horizonte, vol.20, n.4, p.606-611, 2010.

GRUSKIN, S. et al. History, principles, and practice of health and human rights. The Lancet,

vol. 370, p. 449-455, 2007. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/sofia-

gruskin/publications/> Acesso em: 10 de fev. 2013.

HALL, P. A.; TAYLOR, R. R. C. As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova, São Paulo, n.

58, p.194-323, 2003.

HANSEN, J.K.; SANO, H. The implications and value added of a rights-based approach. In:

ANDREASSEN, B. A.; MARKS, S. P. Development as a Human Right: legal, political, and

economic dimensions. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press. 2006,

p.36-56.

HOGWOOD, B.; GUNN, L.A. Policy Analysis for the Real World. Oxford: Oxford University Press. 1984.

I Conferência Internacional sobre a Promoção de Saúde, Carta de Ottawa, 1986.

Disponível em: <http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Ottawa.pdf.> Acesso em: 13

de mai. 2013.

IMMERGUT, E. Health Politics: Interbests and Institutions in Western Europe. Cambridge:

Cambridge University Press. 1992.

99

JACOBI, P. Poder local, políticas sociais e sustentabilidade. Revista Saúde Sociedade, São

Paulo, vol.8, n.1, p. 31-48, 1999. ISSN 0104-1290.

JONES, P.; STOKKE, K. Democratising Development: the politics of socio-economic rights.

In: _____. Democratising Development: the politics of socio-economic rights in South Africa.

Leiden, Boston: MARTINUS NIJHOFF PUBLISHERS, p.1-38, 2005.

LIONCO, T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no processo transexualizador do

SUS: avanços, impasses, desafios. Physis, Rio de Janeiro, vol.19, n.1, p. 43-63, 2009. ISSN

0103-7331.

MACHADO, M. A. Á. et al. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas

Gerais, Brasil. Revista de Saúde Pública.São Paulo, vol.45, n.3, p. 590-598, 2011. ISSN0034-

8910.

MARKS, S. Health Development and Human Rights. Proof, p.120-135, 2008. Disponível em:

<http://www.wcfia.harvard.edu/sites/default/files/Marks_Health.pdf.> Acesso em: 24 de mar.

2013.

MESSEDER, A. M; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S; LUIZA, V. Mandados judiciais como

ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado

do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.21, n.2, p. 525-534,

2005. ISSN 0102-311X.

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4. ed. São

Paulo – Rio de Janeiro: HUCITEC/ABRASCO, 1996. 132 p.

OLIVEIRA, E. A. Política de produção pública de medicamentos no Brasil: o caso do

Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (LAFEPE). Tese (Doutorado em

Ciências). Fundação Oswaldo Cruz – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Rio

de Janeiro. 2007.

OLIVEIRA, M. H. M. Considerações sobre os direitos transindividuais. Revista Jurídica

Cognitio Juris, João Pessoa, 2013. Disponível em: <http://www.cognitiojuris.com.> Acesso

em: 03 de mar. 2013.

OLIVEIRA, R. M. R. Gênero, direitos humanos e impacto socioeconômico da Aids no

Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, vol.40, supl., p. 80-87, 2006. ISSN 0034-8910.

100

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em:

<http://www.agende.org.br/docs/File/convencoes/pidesc/docs/PIDESC.pdf.> Acesso em: 30

de jan. 2011.

PINHEIRO, R.; ASENSI, F. D. Desafios e estratégias de efetivação do direito à saúde.

Physis. Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p.15-17, 2010. ISSN 0103-7331.

PIOVESAN, F. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de

Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, p. 43-55, jan./abr. 2005.

PIOVESAN, F.; GOTTI, A. P.; MARTINS, J. S. A proteção internacional dos direitos

econômicos sociais e culturais. In: PIOVESAN, F (org.). Temas de direitos Humanos. 3. ed.

São Paulo: Saraiva, p. 79-94. 2009.

PIOVESAN, M. F. A trajetória da implementação da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária (1999-2008). Tese (Doutorado em Ciências). Fundação Oswaldo Cruz – Escola

Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro. 2009.

PIRES, M. R. G. M.; DEMO, P. Políticas de saúde e crise do Estado de Bem-Estar:

repercussões e possibilidades para o Sistema Único de Saúde. Revista Saúde Sociedade, São

Paulo, vol.15, n.2, p. 56-71, 2006. ISSN 0104-1290.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Metas

de Desenvolvimento do Milênio (MDM). Relatório do Desenvolvimento Humano 2003.

Disponível em: <http://www.pnud.org.br.> Acesso em: 23 de mar. 2013.

REIS, H. C. Contabilidade e gestão governamental: estudos especiais. Rio de Janeiro: IBAM,

2004.192 p.

RUA, M. G. Análise de políticas públicas: conceitos básicos. Washington, Indes/BID, 1997,

mimeo.

SANT'ANA, J. M. B. et al. Racionalidade terapêutica: elementos médico-sanitários nas

demandas judiciais de medicamentos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, vol.45, n.4, p.

714-721, 2011. ISSN 0034-8910.

SANTOS, B. S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais,

Coimbra: Portugal, vol.65, maio, p. 3-76, 2003.

101

SARAVIA, E. Introdução à teoria da política pública. In: SARAVIA, E.; FERRAREZI, E.

(org.). Políticas Públicas. Brasília: ENAP, 2006.

SAULE JÚNIOR, N. Políticas Públicas Locais: Município e Direitos Humanos. In: BUCCI,

M. P. D.; SAULE JÚNIOR, N.; ARZABE, P. H. M.; FRISCHEISEN, L. C. F (orgs.). Direitos

humanos e políticas públicas. São Paulo: Polis, 2001, p. 19-31.

SCHERER-WARREN, I. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

(Coleção Estudos Brasileiros).

SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, vol.16, p. 20-45,

jul/dez, ano 8º. 2006.

SOUZA, G. C. A.; COSTA, I. C. C. O SUS nos seus 20 anos: reflexões num contexto de

mudanças. Revista Saúde Sociedade, São Paulo, vol.19, n.3, p. 509-517, 2010.

TARANTOLA, D. et al. Human Rights, Health and Development. Technical Series Paper

Sydney: The UNSW, 2008. Disponível em:

<http://www.ihhr.unsw.edu.au/publications/papers.html> Acesso em: 10 de fev. 2013.

TELLES, V. S. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: UFMG, 1999. 193 p.

VALENTE, F. L. et al. Curso Formação em Direito Humano à Alimentação Adequada.

Módulo III. Brasília: ABRANDH. 2007a. Disponível em: <http:// www.abrandh.org.br>

Acesso em: 10 de mar. 2012.

VALENTE, F; FRANCESCHINI, T; BURITY, V. A Exigibilidade do Direito Humano à

Alimentação Adequada. Dezembro/2007. Disponível em: < http:// www.abrandh.org.br>

Acessado em: 10 de mar. 2011.

VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. B. O sujeito sanitário na perspectiva do

direito. In: VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. B; GUILAM, M. C.; SCHUTZ,

G. E.; SILVA, A. T. M. C. (Org.). Direito e saúde – cidadania e ética na construção de

sujeitos sanitários. Maceió: EDUFAL, 2011, p. 13-38.

VENKATAPURAM, S.; BELL, R.; MARMOT, M. The right to sutures: social

epidemiology, human rights, and social justice. Creative Commons Attribution, vol. 12, n. 2.

Health and human rights, 2010. Disponível em: < http:// www.hhrjournal.org > Acesso em 10

de ago. 2013.

102

VENTURA, M. et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à

saúde. Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, pp. 77-100, 2010. ISSN 0103-7331.

VIANA, A. L. D.; BAPTISTA, T. W. F. Análises de Políticas de Saúde. In: GIOVANELLA,

L.; ESCOREL, S.; LOBATO, L. V. C.; NORONHA, J. C.; CARVALHO, A. I. (Org.).

Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 65-105. 2008.

YAMIN, A. E. Beyond compassion: the central role of accountability in applying a human

rights framework to health. Creative Commons Attribution, volume 10, no. 2. Health and

human rights, 2008. Disponível em: <http:// www.hhrjournal.org.> Acesso em: 10 de fev.

2013.

YIN, R. K. Estudo de Caso Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.

103

ANEXOS

104

ANEXO I: INSTRUMENTOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Diante da constituição de um processo de exigibilidade de direitos humanos em

comunidades da orla lagunar de Maceió-Al, que exigiu que a prefeitura de Maceió implementasse

ações para realização dos direitos das crianças e adolescentes dessas comunidades através da

elaboração e execução de políticas públicas, solicito a gentileza de responder às questões a seguir.

1) O Sr./Srª sabe dizer como surgiu a decisão judicial de cobrar do poder público (prefeitura) a implementação de políticas para a correção de violações de direitos das crianças adolescentes residentes na orla lagunar?

2) O Sr./Srª saberia dizer quem ou quais instituições estavam envolvidas nesse processo?

3) O Sr./Srª saberia dizer se foram tomadas decisões relacionadas às necessidades de atenção à saúde? Poderia dizer quais foram essas decisões?

4) Na sua opinião, considerando as condições de vida das crianças e adolescentes pertencentes ao processo citado, seriam necessárias ações relacionadas à proteção da saúde? Quais seriam essas ações?

5) O Sr./Srª saberia dizer se foi(ram) desenvolvida(s) alguma(s) ação/ações no sentido de atender às necessidades de saúde do grupo em cada comunidade?

6) Como o Sr/Srª analisaria a situação atual de atenção à saúde das crianças e adolescentes que foram sujeitos da ação civil pública e que estão vivendo em diferentes comunidades?

105

Quadro de Análise das Entrevistas - Condensação de Significados

Entrevista:

Questão de Pesquisa 1: Como se deu o processo de exigibilidade de direitos?

Como surgiu a decisão judicial de cobrar da prefeitura a implementação de políticas para a correção de

violações de direitos das crianças adolescentes residentes na orla lagunar?

Quem ou quais instituições estavam envolvidas nesse processo?

Foram tomadas decisões relacionadas às necessidades de atenção à saúde? Quais?

Unidades Naturais Extraídas do Entrevistado Tema Central

1-

1-

2-

2-

3-

3-

Descrições Essências/ Interpretações do Entrevistador

106

Questão de Pesquisa 2: Quais e como estão sendo implementadas as políticas públicas relacionadas à

saúde nas comunidades beneficiadas pela sentença?

Seriam necessárias ações relacionadas à proteção da saúde? Quais seriam essas ações?

Foram desenvolvidas ações para atender às necessidades de saúde do grupo em cada comunidade? Quais?

Qual a situação atual de atenção à saúde das crianças e adolescentes que foram sujeitos da ação civil pública

nas diferentes comunidades?

Unidades Naturais Extraídas do Entrevistado Tema Central

1-

1-

2-

2-

3-

3-

Descrições Essências/ Interpretações do Entrevistador

107

Estrutura do Banco de Dados – Análise Documental

Tabela: Decisões e ações concretas relacionadas ao Proc. Nº 4830/07 - Ação Civil Pública em face do

Município de Maceió para garantia dos direitos sociais por meio de implementação de políticas

públicas

(VOLUME – Período)

Setembro/2007

Principais Atores

Data Documento Decisões/Encaminhamentos

Poder

Judiciário

Prefeitura

Sociedade

Civil

Comunidade

108

ANEXO II: CAPÍTULO DE LIVRO EM VIAS DE PUBLICAÇÃO

SAMPAIO, J. F.; ALBUQUERQUE, M. F. M.; VASCONCELLOS, L. C. F. Estado e diretos

humanos no Brasil: respostas públicas à exigibilidade do direito humano à saúde. In:

VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. B; GUILAM, M. C.; SCHUTZ, G. E.;

SILVA, A. T. M. C. (Org.). Direito e saúde – cidadania e ética na construção de sujeitos

sanitários. Maceió: EDUFAL, 2011, p. 39-59.

Estado e direitos humanos no Brasil: respostas públicas à exigibilidade do direito

humano à saúde

Josineide Francisco

Maria de Fátima Machado de Albuquerque

Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos

Introdução

As atrocidades vividas no decorrer da Segunda Guerra Mundial impuseram à

comunidade internacional o resgate da noção de direitos humanos, em função do

reconhecimento de que as relações entre as nações deveriam ser baseadas no respeito aos

princípios de igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos. Tal fato exigiu medidas

para o fortalecimento da paz universal, a exemplo da cooperação internacional para resolver

os problemas de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo o respeito

aos direitos humanos e às liberdades fundamentais indistintamente para todos (TRINDADE,

2002). Esses princípios estão expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

Entre os direitos fundamentais do ser humano proclamados na Declaração Universal

dos Direitos Humanos, encontra-se o direito à saúde, em seu Art. 25, § 1, que diz:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua

família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao

alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e

tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na

velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias

independentes da sua vontade.

Essa Declaração passou a ser o ideal comum a ser atingido por todos os povos e

nações, devendo ser reconhecida e aplicada de forma efetiva entre as populações tanto dos

109

Estados-Membros, como entre as nações dos territórios sob sua jurisdição, através da

promoção de medidas progressivas de ordem nacional e internacional.

Os direitos humanos, na atualidade, são frequentemente invocados de diferentes

formas para justificar políticas econômicas, sociais e culturais em função de sua legitimidade

consagrada como obrigações dos Estados-Membros da ONU e que tem sido fortalecida pelo

reconhecimento do importante papel desempenhado na formação de políticas públicas,

programas e práticas que visam melhorar o bem-estar individual e social. Nesse sentido, é

fundamental a relação entre indivíduo ou grupo que é titular de direitos e o Estado, pois é na

compreensão dessa relação que se define a natureza e o âmbito das obrigações do Estado,

inclusive no tocante às ações dos agentes privados (TARANTOLA et al., 2008).

No Brasil, o direito de todos à saúde como dever do Estado é declarado na

Constituição Federal de 1988, constituindo-se em direito humano fundamental que deve ser

assegurado a todo cidadão. Portanto, tendo o Estado o dever, por meio de políticas

econômicas e sociais, de garantir a saúde para todos. O cidadão, por sua vez, passa a ter o

direito subjetivo de exigir do Estado que esta lhe seja garantida, consideradas todas as

variáveis que compõem o significado da saúde consignada na lei.

O acesso universal e igualitário às ações e serviços, o atendimento integral, o bem

estar físico, mental, social e ambiental, a atenção com equidade, a hierarquização da

assistência, o direito à participação no sistema de saúde passam a conjugar ações direcionadas

para que a saúde se materialize como direito, por meio das ações e serviços, a despeito da

extrema dificuldade de implementação num país sem tradição de cidadania efetiva

(PINHEIRO, 2004; MATTOS JÚNIOR, 2009).

Além de o Brasil reconhecer o direito à saúde como fundamental e o inscrever no

Art. 6º da CR/88 como um direito social, também assinou, em 1992, o Pacto Internacional de

Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), que reafirma em seu Art.12 que “Os

Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor

estado de saúde física e mental possível de atingir”.

O Estado brasileiro, ao conceber o direito à saúde como um direito humano, obriga-

se a assegurar, progressivamente, a realização desse direito através de ações que respeitem,

protejam, facilitem e possam prover os direitos econômicos, sociais, culturais para toda a

110

população, especialmente aos indivíduos, grupos e camadas sociais marginalizadas, os quais

são mais afetados pela pobreza e violação de seus direitos (ALBUQUERQUE, 2009).

Os indicadores sobre o perfil da população brasileira denunciam, através das taxas de

desemprego, níveis de pobreza, violência, criminalidade, entre outros, que a desigualdade e

exclusão sociais estão sendo mantidas no país. Isso demonstra que as ações desenvolvidas

pelas políticas públicas não têm sido eficientes nem suficientes para alterar a situação e a

condição de vida da população. Esses índices também demonstram que o Estado tem falhado

na sua obrigação de prover os direitos e, por isso, na perspectiva do direito, pode-se dizer que

o próprio Estado tem violado os direitos humanos, sejam os civis, os políticos, os econômicos,

os sociais e os culturais, principalmente das populações empobrecidas e marginalizadas em

seu exercício de cidadania, pela restrição de acesso aos bens, aos serviços e políticas públicas

adequadas (ALBUQUERQUE; BURITY, 2008).

A desigualdade e a exclusão sociais também se expressam nas precárias condições de

saúde e nos processos de adoecimento das pessoas, bem como nas dificuldades e diferenças

no acesso e no consumo dos serviços de saúde pela população.

O presente capítulo parte da premissa de que o dever do Estado em prover a saúde,

em todos os seus significados garantidos legalmente, é exigível pela cidadania universalizada

no âmbito do direito à saúde, no caso brasileiro. A exigibilidade do direito à saúde, assim

eleita como tema central do presente debate, pode se apresentar de diversas formas, tais como

as vias individual ou coletiva, pública ou privada, pessoal ou institucional. Partindo do tema

central – a exigibilidade de direitos – especialmente do direito humano à saúde, as questões

que nortearam a presente discussão foram o conceito de exigibilidade, seus instrumentos e os

caminhos utilizados para sua efetivação no Brasil. A despeito de já haver na atualidade uma

vasta literatura acadêmica e processual sobre a chamada judicialização da saúde, cuja

demanda concretizada exibe uma face tangível da exigibilidade, é ainda escasso o debate

sobre os mecanismos instituintes e instituídos da exigibilidade de direitos. Para subsidiar a

elaboração desse trabalho, foi realizado um levantamento bibliográfico nas principais bases de

dados eletrônicas nacionais e internacionais, livros, periódicos, jornais e sites especializados

sobre saúde e direitos humanos. O objetivo foi abordar a questão da saúde sob a perspectiva

dos direitos humanos, identificar os caminhos trilhados na luta pela garantia e efetivação dos

direitos sociais e o papel dos instrumentos de exigibilidade para realização do direito humano

à saúde no Brasil.

111

Direito Humano à Saúde

Historicamente, há uma inter-relação entre saúde e os direitos humanos, visto que o

direito de todos ao gozo do mais alto nível possível de saúde física e mental é mencionado em

muitos documentos internacionais e regionais de direitos humanos e da saúde. Entretanto, o

direito à saúde só se consolida no Art.12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos

Sociais e Culturais (PIDESC) de 1976, que vinculou definitivamente o direito à saúde ao

direito à vida e o caracterizou como um direito humano nos seguintes termos:

3. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar

do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir.

4. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o

pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para

assegurar:

a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são

desenvolvimento da criança;

b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene

industrial;

c) A profilaxia, tratamento e controle das doenças epidêmicas, endêmicas,

profissionais e outras;

d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e

ajuda médica em caso de doença.

Desde a constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) em1946, que a saúde

é reafirmada como um direito fundamental de todo ser humano. Entretanto, só em 1988, a

OMS iniciou a tomada de decisões mais efetivas voltadas para o direito humano à saúde, com

a proteção dos direitos das pessoas portadoras do HIV/Aids.

Em 2000, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais discutiu questões

substantivas sobre a aplicação do PIDESC pelos Estados membros, entre as quais, o direito ao

mais alto nível de saúde possível. Em seu Comentário Nº 14, além de reafirmá-lo, ressalta a

sua importância “para o exercício de outros direitos humanos”.

112

Segundo Tarantola et al. (2008), no contexto do direito à saúde, a obrigação do

governo não se restringe a evitar que o direito individual à saúde seja violado, mas garantir

políticas e prestação de serviços de saúde a todos os grupos populacionais com base na

igualdade, na liberdade e na não-discriminação, com especial atenção aos grupos vulneráveis

e marginalizados. Essa obrigação de proteger significa que os governos devem regular

adequadamente os agentes públicos não-estatais como a indústria de cuidados em saúde, para

que não possam alterar significativamente o estilo de vida, trabalho e a saúde dos indivíduos e

comunidades, como é o caso de empresas produtoras de energia, de produtos agrícolas,

indústrias alimentícias e a mídia, pois esses atores possuem a capacidade de promover e

proteger ou negligenciar e violar o direito à saúde e outros direitos no desempenho de suas

funções. Finalmente, a obrigação de satisfazer o direito à saúde inclui dar atenção devida à

saúde e às políticas relacionadas que asseguram a promoção e a proteção dos direitos

humanos com foco imediato nos grupos vulneráveis e marginalizados.

No Brasil, por ser o direito à saúde declarado na Constituição Federal de 1988 como

um direito fundamental que deve ser assegurado a todo cidadão, este tem o direito subjetivo

de exigir do Estado que lhe seja garantido, em acesso universal e igualitário, o atendimento

integral à sua saúde. Além disso, assinou, em 1992, o PIDESC, tornando-se um Estado que

reafirmou seu dever de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos.

A política do Estado brasileiro para a saúde – Sistema Único de Saúde (SUS) – foi

instituída pelas Leis Federais Nos

8.080 e 8.142, ambas de 1990. Tem como princípios a

universalidade, integralidade, equidade, controle social e, entre outros, a hierarquização da

assistência, com o objetivo de conjugar ações direcionadas para que a prevenção, a

reabilitação e a promoção da saúde se materializassem como direito positivado.

A passagem da letra da lei para a materialidade no mundo dos fatos é determinada

pela organização das ações e serviços que atendem (ou deveriam atender) às demandas

objetivas da população em matéria de atenção à sua saúde. Todavia, as determinações

objetivadas da atenção à saúde são acompanhadas no mesmo corpo das legislações citadas,

especialmente na Lei 8.080/1990, por princípios garantidores de necessidades subjetivas da

cidadania, como é o caso, por exemplo, do direito à informação e à preservação da autonomia.

Observa-se, que a positivação do direito constitui-se em um grande desafio, pois a

realidade brasileira é atravessada por iniquidades que precisam ser enfrentadas com ações que

proponham reverter quadros de exclusão e de violação de direitos humanos fundamentais, não

113

só na perspectiva da promoção da equidade para distintos grupos sociais, como pela garantia

de direitos objetivos e subjetivos da cidadania.

Não obstante, a efetivação do direito à saúde no Brasil tem avançado bastante em sua

trajetória sociohistórica, graças à luta empreendida, inicialmente pelo próprio Movimento

Sanitário que desencadeou o processo da Reforma Sanitária, com todo o legado atual que ora

discutimos. Chegar até aqui é a prova cabal de que é possível aglutinar intelectuais,

profissionais de saúde, sindicalistas, movimentos sociais e outros setores organizados da

sociedade que, desde a década de 1970, lutaram pela redemocratização do país e tiveram

vários êxitos na mudança do modelo de saúde. De lá até hoje, outros movimentos por direitos

humanos empreenderam distintas lutas que vêm agregando novos direitos no campo da saúde,

inclusive aportando estratégias de mobilização e argumentação, no tocante à exigibilidade de

direitos que criam novas frentes de luta num movimento contínuo de renovação e afirmação

da cidadania.

A partir de um estudo de Baptista et al. (2009), podemos identificar algumas

conquistas que merecem ser destacadas:

O reconhecimento, na Constituição Federal, da saúde como direito social de cidadania e

dever do Estado, que definiu diretrizes voltadas para o restabelecimento do processo

democrático no âmbito político e institucional;

Promulgação da Lei Orgânica da Saúde, em 1990, que instituiu as bases institucionais do

SUS como política nacional para efetivação do direito à saúde, que reafirmou as diretrizes

de universalidade e integralidade e definiu as responsabilidades do poder executivo nas

três esferas de governo;

Avanço nas leis de controle sanitário e de produção de ambientes saudáveis, como

iodação do sal, controle de asbesto/amianto, uso e propaganda de fumígeros, sistema de

vigilância sanitária;

Leis de regulamentação de áreas estratégicas da atenção à saúde, como controle de

infecção hospitalar, remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano;

Leis que atendem a demandas de áreas específicas da atenção, como planejamento

familiar, subsistema indígena, modelo de atenção psiquiátrica e garantia de medicamentos

para AIDS;

114

Lei de regulamentação dos planos de saúde, de criação da Agência Nacional de Saúde

Complementar (ANS) e a de medicamentos genéricos;

A ampliação da atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público na efetivação dos

direitos sociais, entre eles o da saúde, por serem juridicamente protegidos e exigíveis ao

Estado.

Apesar desses que são oriundos da legitimidade, garantida por lei, da saúde como um

direito, há muito que ser feito, especialmente se considerarmos que o modelo de

desenvolvimento adotado no país ainda acompanha o atendimento dos interesses econômicos,

em detrimento das necessidades humanas e sociais, pois a desigualdade e a exclusão sociais se

expressam nas precárias condições de saúde e nos processos de adoecimento das pessoas, bem

como nas dificuldades e diferenças no acesso e no consumo dos serviços de saúde pela

população.

O reconhecimento da sinergia existente entre saúde pública e direitos humanos é

fundamental para enfrentar o desafio de garantir a efetivação do direito à saúde, pois a

promoção e a proteção à saúde requerem esforços concretos para promover e proteger os

direitos humanos, do mesmo modo que o maior cumprimento dos direitos humanos demanda

especial atenção à saúde e aos determinantes sociais aí implicados. Esta relação ilustra a

complementaridade entre as metas em saúde pública e as normas de direitos humanos na

condução das políticas e programas de saúde mais eficazes, além de reorientar as políticas

públicas de saúde, atualmente fragmentadas e baseadas na lógica burocrática e profissional

(OLIVEIRA, 2006).

Isso requer que o Estado, por meio de políticas públicas (sociais e econômicas)

assegure os direitos fundamentais à dignidade humana, que consiste em garantir a proteção

pública dos indivíduos através da garantia da igualdade de oportunidades e da promoção das

diversas condições para que todas as pessoas realizem completamente seu potencial de saúde,

garantindo a exigibilidade de seus direitos através de parâmetros, metas, ações desenvolvidas,

monitoradas e avaliadas em seus resultados.

Exigibilidade de Direitos

O processo de realização dos direitos humanos acontece numa rede dinâmica de

ações desenvolvidas por e entre os atores deste cenário, isto é, o Estado, com suas obrigações

115

de garantir o respeito, a proteção, a promoção e o provimento dos direitos a todos os

indivíduos habitantes de seu território, os titulares de direitos, com sua força de exigir e cobrar

a realização de seus direitos e os demais atores sociais, com suas co-responsabilidades na

realização destes direitos.

A palavra exigibilidade, que significa aquilo que pode ser exigido, tem um caráter

impositivo de reivindicação. No Brasil, em matéria de saúde, aquilo que pode ser exigido, por

estar garantido constitucionalmente, deve ser exigido, acompanhando esse caráter impositivo.

Exigir, desse modo, significa reclamar, requerer, ou mesmo ordenar, em função de direito

legítimo.

Ainda, na perspectiva do direito, exigir é uma ação/processo resultante da

conscientização do titular de direito da efetiva existência de seu(s) direito(s) e da certeza do

direito de sua cobrança. Enquanto prerrogativa da cidadania, “é a possibilidade de exigir o

respeito, a proteção, a promoção e o provimento de direitos, perante os órgãos públicos

competentes (administrativos, políticos ou jurisdicionais) para prevenir as violações a esses

direitos ou repará-las” (VALENTE et al., 2007ª p. 5).

O processo de exigibilidade só existe se o direito estiver sendo violado e/ou negado.

Piovesan et al. (2009, p. 94) alertam que “há que se propagar a ideia de que os direitos sociais,

econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e, por isso, devem

ser reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade.” Portanto, qualquer

sociedade que busque se construir numa perspectiva ética e socialmente justa deve se

comprometer com uma agenda de inclusão voltada para um modelo de desenvolvimento

sustentável, que combata todas as formas de discriminação e avance na promoção da

igualdade.

É no avanço da construção deste novo paradigma que o processo de exigibilidade

ganha força. Nesse sentido, Bucci (2001, p. 9) diz que, mesmo sendo a fruição dos direitos

humanos uma questão complexa, é preciso haver uma mudança nos contextos das políticas

públicas, pois

não basta uma Constituição bem escrita para que ela seja cumprida e obedecida – há

possibilidade de se travar pelas vias do direito e com base na Constituição, uma

batalha própria, capaz de melhorar as condições sociais, por meio da garantia do

exercício de direitos individuais e de cidadania a todos, da forma mais abrangente

possível.

116

E, ainda, de acordo com Burity et al. (2010, p. 70), “a exigibilidade dos direitos

humanos tem como base legal as Declarações e Tratados Internacionais de Direitos

Humanos”, bem como “em normas previstas na Constituição Federal, em leis e em regras

administrativas”.

A exigibilidade de direitos é o mote que sustenta os processos judiciais na área da

saúde (judicialização). Contudo, a judicialização é apenas um de seus instrumentos.

Consideramos a exigibilidade como um processo político deflagrador de um novo

comportamento entre o Estado e a sociedade civil, para dar conta dos direitos violados e/ou

não atendidos, que se traduz em políticas públicas mais resolutivas e mais abrangentes.

Embora essas políticas possam ser focalizadas em grupos, territórios e demandas específicas,

seus resultados não são pontuais e individualizados como nos processos judiciais comuns.

Os processos de exigibilidade tendem a gerar respostas antecipatórias do Estado, ao

contrário de respostas que cumprem determinações judiciais individualizadas. Segundo

Brígido (2011), reportando-se a números do Conselho Nacional de Justiça, existem hoje, no

Brasil, 240.980 processos judiciais na área da saúde. Embora a grande maioria seja de acesso

a medicamentos, existem demandas de inúmeras ordens.

Ano após ano os números vêm crescendo e não parece haver perspectiva de mudança

dessa tendência. Em 2009, o Ministério da Saúde foi citado em 3.200 ações judiciais com

pedido de medicamentos não fornecidos pelo SUS e em 2010 foram 3.400 ações. Nos últimos

nove anos, o gasto foi de R$ 346 milhões com essas ações (BRÍGIDO, 2011).

Embora a judicialização da saúde seja fundamente no processo da exigibilidade de

direitos, a resposta se concentra no Poder Judiciário e se encerra no atendimento específico e

pontual da demanda. Já, o processo da exigibilidade de direitos ou juridicização, embora

tenha como um de seus recursos a esfera judiciária, o foco da sua ação primordial é a política

pública mais duradoura, com a interveniência dos demais poderes do Estado de Direito.

Instrumentos de Exigibilidade

Na perspectiva do Direito, o Estado tem a obrigação de garantir o direito e também

os mecanismos para que as pessoas possam exigi-lo. Assim, é de se esperar que a proposição

de metas a serem estabelecidas visando à correção de suas violações, pudesse ser item

concreto de qualquer planejamento de política pública (ALBUQUERQUE, 2009). Neste

117

sentido, para o exercício da exigibilidade é necessário que o Estado crie e disponibilize de

maneira acessível, instrumentos e instituições (âmbito federal estadual e municipal),

necessários para que todos os seus habitantes possam reclamar seus direitos. Além disso,

utilizando a perspectiva de responsabilidade social, pode-se citar também as iniciativas da

sociedade civil como instrumento de pressão sobre o Estado no processo de cobrança da

realização dos direitos humanos (BURITY et al., 2010).

Podemos considerar que as instituições participantes dos processos de exigibilidade

são de duas ordens: organizações da sociedade civil, tais como movimentos instituídos,

sindicatos, associações, ONGs etc. e organizações públicas, como o Ministério Público, os

Conselhos de Direitos Humanos, a Defensoria Pública, os Conselhos Tutelares, os Conselhos

de Saúde regidos pela Lei 8.142/1990, entre outras.

Com a perspectiva de garantir a efetivação dos direitos humanos, o Brasil ratificou o

PIDESC em 1992. Esse pacto é o principal instrumento internacional de garantia dos direitos

que intenta comprometer os Estados signatários na prestação de contas de como o processo de

realização de direitos e correção de suas violações têm acontecido e avançado. Pode-se dizer,

portanto, que é um importante instrumento de pressão e monitoramento, apesar de não ser

dotado de força legal.

Os termos do seu Artigo 12 e o Comentário Geral nº 3 (1990) mostram que, em

sendo signatário do PIDESC, o Brasil obriga-se a adotar publicamente no cenário

internacional uma postura de portador de obrigações, isto é, de respeitar, proteger, promover e

prover o direito à saúde de forma diligente e eficaz, sendo essa responsabilidade

compartilhada por todos: toda pessoa, toda organização social, e de modo particular, o poder

público. Assim, a responsabilidade da realização dos direitos humanos deve estar estabelecida

nos desenhos das políticas públicas e também nas possibilidades de garantia de mecanismos

para exigência destes direitos via instituições e instrumentos.

Segundo Valente et al. (2007), no contexto brasileiro, os instrumentos de

exigibilidade podem ser utilizados a nível individual ou coletivo e podem ser variados tais

como: administrativos, políticos, quase-judiciais e judiciais. Os autores referem que a

exigibilidade administrativa é viabilizada junto aos organismos públicos responsáveis pela

garantia, promoção, e prevenção, correção ou reparação das ameaças ou violações de direito

humano específico e mostram como exemplo o caso do Benefício da Prestação Continuada,

cuja solicitação deve ser feita junto a um posto ou agência da Previdência Social.

118

Já a exigibilidade política pode ser requerida através dos organismos de gestão de

programas e políticas públicas (Poder Executivo); junto aos organismos de gestão

compartilhada responsáveis pela proposição e fiscalização de políticas e programas públicos

(Conselhos de Políticas Públicas); junto aos Conselhos de Direitos Humanos; ou junto aos

representantes do Poder Legislativo. Um dos exemplos citados é relativo a um movimento

comunitário que se organiza e cobra à Secretaria Municipal de Saúde a criação de uma

Unidade Básica de Saúde bem como a seleção de Agentes Comunitários.

A exigibilidade quase judicial é a possibilidade de utilização de instrumentos tais

como o Termo de Ajustamento de Conduta e o Inquérito Civil, para a averiguação de

violações de direitos humanos ou para fazer com que os agentes públicos possam se adequar

às normas que preveem os direitos. Por exemplo, uma comunidade faz o levantamento de suas

demandas relativas à moradia tais como, falta de luz elétrica local, falta de sistema de água

potável, falta de saneamento e, através do Ministério Público, propõe um Termo de

Ajustamento de Conduta ao município, para que este, em um determinado prazo, execute a

correção destas violações. Por fim, os autores explicam que a exigibilidade judicial acontece

quando a cobrança do direito é feita junto ao Poder Judiciário através de ação civil pública,

ações populares, ou mesmo ações políticas.

Um exemplo pioneiro no Brasil diz respeito a uma Ação Civil Pública interposta pelo

Ministério Público Estadual de Alagoas contra o município de Maceió, pelo não cumprimento

de seu dever constitucional de proteger, respeitar e promover diversos direitos de crianças e

adolescentes de comunidades residentes na Orla Lagunar. Essa ação torna-se especialmente

importante pela sua abrangência pois, considerando a tese da indivisibilidade dos direitos,

clama pela correção de várias violações e dentre estas, o direito à Saúde.

O Estado e as respostas públicas às demandas para efetivação do direito humano à

saúde

A análise de políticas sociais em um país marcado por contradições como o Brasil

não nos parece tarefa fácil, visto que o país não atingiu o bem-estar social dos países centrais

e possui enormes desigualdades, com fossos de miséria e exclusão social. Em nosso país, o

governo tem como agenda prioritária e estratégica a fome, embora o tráfico de drogas e a

violência nas grandes metrópoles se institucionalizem com a conivência do poder público

(PIRES; DEMO, 2006), evidenciando a insuficiente realização dos direitos sociais.

119

No que se refere à política de saúde, embora a consolidação do SUS seja uma

realidade, o sistema enfrenta vários desafios tais como a qualificação da gestão e do controle

social, a melhoria e a qualificação da atenção básica como estratégia organizadora da rede de

atendimento, através da regionalização e hierarquização de ações e serviços de saúde, de

modo a superar as dificuldades de acesso da população aos cuidados em saúde (SOUZA;

COSTA, 2010).

Ao consideramos a legitimidade da saúde como direito fundamental, a partir de

acordos internacionais, da CF/88, da legislação subsequente e das precárias condições

socioeconômicas em que vive grande parte da população e dos desafios enfrentados para

implantação do SUS no Brasil, observou-se, no decorrer dos anos 1990 e 2000, um

progressivo crescimento do número de mandatos judiciais com reivindicações relacionadas ao

direito à saúde, em sua maioria, individuais, para garantir o acesso das pessoas a

medicamentos, procedimentos diagnósticos e terapêuticos (BAPTISTA et al., 2009).

Esse processo de encaminhamento das reivindicações nos tribunais contra os Poderes

Públicos para garantia de medicamentos e exames para o controle de doenças, foi inaugurado

no Brasil pelo movimento dos portadores do vírus HIV/Aids (Baptista et al, 2009),

ressaltando o dever estatal de prestar assistência à saúde individual, de forma integral,

universal e gratuita, sob a responsabilidade conjunta da União Federal, estados e municípios.

Esse segmento, além de estabelecer uma relação entre a justiça e a efetividade do direito à

saúde, contribuiu para o avanço das políticas de assistência às pessoas com HIV/Aids, para

motivar outros movimentos sociais e a população em geral a utilizar a reivindicação judicial

como mecanismo de garantia de direitos, para ampliar as políticas públicas e para a atuação

do Ministério Público no âmbito da saúde (VENTURA et al., 2010).

Nesse sentido, o processo de exigibilidade dos direitos sociais no Brasil,

especialmente do direito à saúde, tem como foco a judicialização da saúde, que se traduz

como garantia de acesso a bens e serviços por meio de ações judiciais, embora não se restrinja

à questão jurídica e de gestão de serviços públicos, visto que o poder judiciário tem

desempenhado um papel significativo no processo de resolução de conflitos políticos e sociais

na implementação de políticas públicas e na efetivação de direitos (BORGES; UGÁ, 2009;

ASENSI, 2010).

Esse processo de judicialização da saúde se consolidou, principalmente, com o

aumento de ações judiciais individuais para a garantia do acesso a medicamentos. Esse

120

fenômeno pode estar relacionado à tardia regulamentação da assistência farmacêutica, que se

deu só após dez anos da criação do SUS com a Política Nacional de Medicamentos e com a

aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, em 2004 (CHIEFFI; BARATA,

2009).

Segundo Messeder e colaboradores (2005), a partir de 1997, com a estruturação do

Programa Nacional DST/AIDS, houve uma redução do número de processos judiciais, devido

à distribuição gratuita dos medicamentos anti-retrovirais. Também observa que há uma

relação entre o aumento de pleitos judiciais por medicamentos e sua inclusão nas listas

oficiais, o que leva à diminuição da incidência de mandados judiciais para esses

medicamentos.

Isso pode ser um indicativo de que as ações judiciais são movidas, pelo menos em

parte, nas áreas em que a política e a administração pública apresentam maiores lacunas e

deficiências. Do mesmo modo, indica-se que a atuação do poder judiciário pode ter efeito

positivo na responsabilização do Estado, estimulando-o a incorporar na rede pública

procedimentos terapêuticos que melhor atendam às necessidades de saúde da população e

contribuam para realização dos seus direitos.

A partir da análise de Ventura et al. (2010), sobre os estudos que discutem a

judicialização da saúde no Brasil, podemos destacar: a) os que dão ênfase aos seus efeitos

negativos na governabilidade e na gestão das políticas de saúde e aqueles em que a

judicialização privilegia grupos e indivíduos com maior poder de reivindicação; b) os que

enfatizam as deficiências e insuficiências no sistema de saúde e no judiciário para atender as

demandas de saúde devido à amplitude das obrigações do Estado; e, ainda, c) os que

identificam questões que perpassam transversalmente as discussões, como a influência do

setor farmacêutico para incorporação de seus produtos pelo Estado, a alocação de recursos

públicos para pesquisa e assistência e o uso racional de novas tecnologias e medicamentos.

Na discussão sobre as instituições jurídicas, no contexto da efetivação dos direitos

sociais, a atuação do Ministério Público tem se destacado como mediadora na garantia e

defesa do direito à saúde, por adotar estratégias de pactuação e negociações céleres na

resolução de conflitos antes de chegarem aos tribunais. Assim, cria-se um espaço institucional

de diálogo no qual os problemas são discutidos sob o ponto de vista jurídico, especialmente

nos momentos pré-processuais, com os principais atores que compõem o processo de

121

formulação, gestão e fiscalização das políticas públicas de saúde, aproximando o mundo do

direito do mundo dos fatos (ASENSI, 2010).

Segundo o mesmo autor, as diversas estratégias utilizadas pelas instituições jurídicas

para efetivação de direitos e implementação de políticas públicas, que vão além da simples

judicialização, constitui o que ele denomina de juridicização da saúde. Isso tem ampliado a

participação de vários atores sociais no estabelecimento de consensos e na definição de

estratégias de execução pró-ativa de políticas públicas para satisfação das demandas, de

acordo com o contexto em que estão inseridas no cotidiano.

O que caracteriza a juridicização da saúde se coaduna com os instrumentos de

exigibilidade de direitos administrativos, políticos e quase-judiciais. No Brasil, a

funcionalidade desses mecanismos de exigibilidade de direitos evidencia-se, particularmente

no campo da saúde, na resolução de problemas como a falta de medicamentos nos postos, a

insuficiência de leitos hospitalares, a falta de profissionais qualificados, entre outros, que

requer vários procedimentos administrativos, envolvendo articulação política entre diversos

atores no processo de pactuação, geralmente, mediado pelo Ministério Público, que consolida

o consenso estabelecido entre os atores através do instrumento quase-judicial do Termo de

Ajustamento de Conduta (TAC). Nesse Termo, os compromissos são firmados, as ações

indicadas e os prazos para correção dos problemas são determinados.

Um exemplo de que a exigibilidade de direitos comporta tanto a judicialização

quanto a juridicização foi a construção da norma do Processo Transexualizador no SUS, uma

conquista resultante da demanda pela inclusão dos procedimentos de transgenitalização na

tabela de procedimentos do SUS, através da Ação do Ministério Público Federal, em 2001,

juntamente com a abertura institucional do Ministério da Saúde para participação social,

estimulando o debate e acolhendo propostas oriundas do Seminário Nacional Saúde da

População GLBT na Construção do SUS, realizado em 2007 e da Conferência Nacional

LGBT, realizada em 2008 (LIONCO, 2009).

Observa-se, então, que no contexto brasileiro, há uma pluralidade de instituições,

atores e intérpretes que interagem de forma legítima e decisiva para garantia de direitos, seja

sob a perspectiva da judicialização das relações sociais para realização de conflitos, seja da

juridicização, na qual as demandas são discutidas sob o ponto de vista da sua

institucionalidade jurídica, embora evitando-se levá-las aos tribunais, ou, através da utilização

dos diversos instrumentos de exigibilidade de direitos para sua plena realização.

122

Entretanto, verifica-se, no Brasil, que os estudos sobre a efetivação dos direitos

sociais, particularmente o da saúde, tem priorizado a análise sobre os fins e não sobre os

meios que são utilizados pelos diversos atores e instituições que atuam no processo de

efetivação do direito à saúde e implementação de políticas públicas.

A trajetória do reconhecimento e da efetivação da saúde como direito humano no

Brasil, comporta tensões, disputas, contradições e conflitos de interesses relacionados à

concepção de saúde-doença e às responsabilidades dos cidadãos e do Estado, que vão além da

esfera jurídica, expressando-se no processo de normatização, na formulação e implementação

de políticas públicas e no aparato jurídico-institucional. Desse modo, a judicialização não

deve ser considerada como principal instrumento de exigibilidade de realização do direito à

saúde. Embora seja legítima, deve estar articulada com outros mecanismos como a

juridicização e outros instrumentos de exigibilidade, por meio dos quais se busque

implementar as garantias constitucionais para o alcance da justiça e da cidadania.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Maria de Fátima Machado de. A segurança alimentar e nutricional e o uso

da abordagem de direitos humanos no desenho das políticas públicas para combater a fome e

a pobreza. Revista de Nutrição, Campinas, vol.22, n.6, p. 895-903, 2009.

ASENSI, Felipe Dutra. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas

estratégias na saúde. Revista Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p. 33-55, 2010.

BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria; MACHADO, Cristiani Vieira; LIMA, Luciana Dias

de. Responsabilidade do Estado e direito à saúde no Brasil: um balanço da atuação dos

Poderes. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol.14, n.3, p. 829-839, 2009.

BORGES, Danielle da Costa Leite; UGÁ, Maria Alicia Dominguez. As ações individuais

para o fornecimento de medicamentos no âmbito do SUS: características dos conflitos e

limites para a atuação judicial. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, vol.10, n.1, p. 13-38,

2009.

BRÍGIDO, Carolina. Processos na área de saúde passam de 240 mil. O GLOBO, Rio de

Janeiro, p. 4, 25 abr. 2011.

BUCCI, MPD. Buscando conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos

humanos. In: BUCCI MPD, SAULE JÚNIOR N, ARZABE PHM, FRISCHEISEN LCF

(orgs.). Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Polis, p. 5-15, 2001.

123

BURITY, V. et al. Direito Humano à Alimentação Adequada no contexto da Segurança

Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: ABRANDH, 2010. Disponível em:

<http://www.abrandh.org.br/download/20101101121244.pdf> Acessado em: 22 mar.2011.

CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Judicialização da política pública de

assistência farmacêutica e equidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.25, n.8,

p. 1839-1849, 2009.

Comentário Geral Número 3: A natureza das obrigações dos Estados-partes. Disponível em:

<http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/2/c3.html> Acessado em: 27 fev.

2011.

Comentário Geral Número 14 (2000): Sobre o direito ao mais alto nível de saúde possível.

Disponível em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(symbol)/E.C.12.2000.4.En.> Acessado

em: 16 fev. 2010.

LIONCO, Tatiana. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo

Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Revista Physis, Rio de Janeiro, vol.19,

n.1, p. 43-63, 2009.

MATTOS JÚNIOR, Ruy Ferreira. O direito à saúde e a vigilância sanitária. Disponível em:

<http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br> Acessado em: 25 mar. 2010.

MESSEDER, Ana Márcia; OSORIO-DE-CASTRO, Claudia Garcia Serpa; LUIZA, Vera

Lucia. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor

público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio

de Janeiro, vol.21, n.2, p. 525-534, 2005.

OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. Gênero, direitos humanos e impacto socioeconômico

da Aids no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, vol.40, supl., p. 80-87, 2006.

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em:

<http://www.agende.org.br/docs/File/convencoes/pidesc/docs/PIDESC.pdf> Acessado em: 30

jan. 2010.

PIOVESAN F, GOTTI AP, MARTINS JS. A proteção internacional dos direitos econômicos,

sociais e culturais. In: PIOVESAN, F (org.). Temas de direitos Humanos. São Paulo: Saraiva,

p. 79-94. 3ª Edição. 2009.

PIRES, Maria Raquel Gomes Maia; DEMO, Pedro. Políticas de saúde e crise do Estado de

Bem-Estar: repercussões e possibilidades para o Sistema Único de Saúde. Revista Saúde e

Sociedade, São Paulo, vol.15, n.2, p. 56-71, 2006.

124

SOUZA, Georgia Costa de Araújo; COSTA, Iris do Céu Clara. O SUS nos seus 20 anos:

reflexões num contexto de mudanças. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, vol.19, n.3, p.

509-517, 2010.

TARANTOLA D, et al. Human Rights, Health and Development .Technical Series Paper

Sydney: The UNSW, 2008. Disponível em:

<http://www.ihhr.unsw.edu.au/publications/papers.html> Acessado em: 10 fev. 2011.

TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. São Paulo:

Petrópolis, 2002.

VALENTE, Flávio; FRANCESCHINI, Thaís; BURITY, Valéria. A Exigibilidade do Direito

Humano à Alimentação Adequada. Dezembro/2007. Disponível em: <www.abrandh.org.br>

Acessado em: 10 mar. 2011.

VALENTE FLS; BURITY V; FRANCESCHINI T; CARVALHO MF. Curso Formação em

direito humano à alimentação adequada. Módulo III. Brasília: ABRANDH. 2007a.

__________. Curso Formação em direito humano à alimentação adequada. Módulo IV.

Brasília: ABRANDH. 2007b.

VENTURA, Miriam; SIMAS, Luciana; PEPE, Vera Lúcia Edais; SCHRAMM, Fermin

Roland. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Revista

Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p. 77-100, 2010.

Dicionário:

AURÉLIO. Disponível em: < http://www.dicionariodoaurelio.com/Exigir> Acessado em: 20

fev. 2011.

125

ANEXO III: ARTIGO SUBMETIDO À REVISTA PHYSIS, EM 13 DE JULHO DE 2013.

Direito à saúde no Brasil: a judiciabilidade em um caso de exigibilidade de direitos

Josineide Francisco Sampaio

Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos

Maria de Fátima Machado de Albuquerque

Resumo: Os autores analisam a efetivação do direito à saúde a partir da Ação Civil Pública

movida, em 2007, responsabilizando o município de Maceió pela lesão dos direitos das

crianças e adolescentes da Orla lagunar de Maceió. Utilizaram a abordagem de direito e a

metodologia estudo de caso para analisar os autos do processo judicial, descrever o caminho

jurídico-administrativo percorrido e identificar os principais desdobramentos para o

cumprimento da sentença. Com a análise, percebeu-se a importância de identificar as

violações de direitos humanos e a pertinência de integrar os titulares de direitos no processo

de exigibilidade, junto ao Estado. Verificou-se que o poder Executivo adotou estratégias para

eximir-se da responsabilidade de garantir os direitos fundamentais. Viu-se que há restrições à

participação dos titulares de direito nas decisões. Evidenciou os limites do Poder Judiciário

para garantir a execução das decisões e a necessidade de criação de mecanismos institucionais

que assegurem a efetivação dos direitos sociais.

Palavras-chave: Direito à saúde; direitos humanos; instrumentos de exigibilidade de direitos;

judicialização.

Abstract: The authors analyze the effectiveness of right to health from the Public-interest

Civil Action sued, in 2007, charging the city of Maceió for the lesion of the rights of the

children and adolescents from the Orla Lagunar de Maceió. They used the law approach and

the methodology of case study to analyze the files of the lawsuit, describe the path legal-

administrative followed and identify the main deployments to the fulfillment of the sentence.

Analyzing, realize the importance of identify the lesions of human rights and the relevancy to

integrate the right holders on the process of enforceability, beside the State. Ascertained that

the Executive adopted strategies to evade of the responsibility to ensure the fundamental

rights. Perceived that there are restrictions to the participation of the right holders in the

decisions. Evidenced the limits of the Judiciary to ensure the execution to the decisions and

the need to create institutional instruments which ensure the effectiveness of social rights.

Key words: Right to health; human rights; instruments to enforceability of rights;

judicialization.

Introdução

O direito à saúde foi reconhecido como um direito humano desde a Declaração de

1948, em seu artigo 25. Entretanto, somente em 1976, no Art. 12 do Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, esse direito foi vinculado ao direito à vida.

Isso significa dizer que a efetivação dos direitos econômicos e sociais tais como à

126

educação, à alimentação e nutrição, à igualdade, à participação ativa e à não discriminação,

entre outros, tem impacto sobre o estado de saúde da população. Por isso, esses outros direitos

são considerados elementos integrantes e indivisíveis para realização do mais alto nível

possível de saúde (YAMIN, 2008).

No Brasil, o direito à saúde é declarado na Constituição Federal de 1988 como um

direito fundamental que deve ser assegurado a todo cidadão. Isso confere ao Estado o dever

de respeitar, proteger, e realizar (promover e prover) esse direito, permitindo ao cidadão

exigir do Estado que lhe seja garantido, em acesso universal e igualitário, o atendimento

integral à sua saúde. Mas, foi a partir da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) que o

estado Brasileiro passou a viabilizar o provimento do direito à saúde para a sua população

através das Leis Federais No 8.080/90 e 8.142/90, que estabelecem que a saúde tem como

fatores determinantes alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, educação, entre

outros. O direito à saúde também é reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA), Lei Nº 8.069/90, em seus Art. 4º e 7º, que diz ser dever de toda a sociedade e do poder

público assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, a realização dos

seus direitos.

Com a normatização do direito à saúde, ou seja, sua positivação, o Estado brasileiro

se constituiu como portador da obrigação de prover progressivamente, por meio de políticas

públicas econômicas e sociais, a realização desse direito para toda população

(ALBUQUERQUE, 2009). Nesse sentido, seus cidadãos constituem-se titulares de direitos,

detentores da prerrogativa de poder exigir do Estado a efetivação de seus direitos, inclusive

com a possibilidade de acionar o Poder Judiciário em relação ao descumprimento de qualquer

princípio jurídico ou ao desatendimento a algum direito (BUCCI, 2001). As dificuldades

existentes no país não extinguem a responsabilidade do Estado de sua tutela protetiva, nem de

seu papel pró-ativo de determinar princípios para um núcleo mínimo de obrigações a serem

executadas (JONES; STOKKE, 2005; PIOVESAN; SILVA; CAMPOLI, 2009).

Desse modo, a judiciabilidade do direito à saúde, isto é, sua transformação em

“objeto de apreciação judicial” (CUNHA, 2003, p. 147), constitui-se num grande desafio para

que seja efetivada sua aplicação por meio de mecanismos jurídicos de exigibilidade de um

direito (BUCCI, 2011).

O Estado detém o papel primordial, enquanto conjunto de órgãos públicos

administrativos, de executar as políticas públicas de forma plena, sem ser necessário que os

127

cidadãos tenham que recorrer frequentemente à proteção jurídica (COSTA, 2008). Porém, o

Estado deve não somente criar e disponibilizar instrumentos e instituições (nos âmbitos

federal, estadual e municipal) para que todos os seus habitantes possam reclamar seus direitos,

mas também reconhecer a legitimidade das iniciativas da sociedade civil como instrumento de

pressão sobre ele no processo de cobrança da realização dos direitos humanos (BURITY et

al., 2010).

No Brasil, segundo Valente et al. (2007), existem diferentes instrumentos de

exigibilidade, tais como administrativos, políticos, quase-judiciais e judiciais, que podem ser

requeridos em nível individual ou coletivo. No caso do direito à saúde, a judicialização tem

sido o meio mais utilizado para garantir o atendimento das necessidades individuais para

assegurar o acesso a medicamentos e a procedimentos de diagnósticos e terapêuticos

(BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009; BORGES; UGA, 2010; VENTURA et al., 2010;

MACHADO et al., 2011; SANT'ANA et al., 2011).

O Ministério Público tem se destacado como protagonista, especialmente através de

intervenções que tentam garantir o provimento dos direitos violados. Entre os instrumentos de

exigibilidade utilizados pelo Ministério Público, a Ação Civil Pública tem se destacado por

sua relevância na tutela de direitos difusos e coletivos especialmente quando os acordos

firmados com os gestores públicos não são cumpridos (ASENSI, 2010).

Podemos citar como exemplo desse instrumento, uma Ação Civil Pública movida

pela Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital e do Ministério Público do

Trabalho em Alagoas, em 2007, responsabilizando o município de Maceió pela lesão dos

direitos difusos e coletivos das crianças e adolescentes residentes em comunidades da Orla

Lagunar de Maceió.

Considerando que a judicialização da saúde no Brasil está vinculada, na maioria das

vezes, às demandas individuais, essa Ação Civil Pública constitui-se num caso inédito no

país, por ter caráter coletivo e por sua sentença considerar os diversos direitos como unidade

indivisível, permitindo que as famílias e toda a comunidade fossem beneficiadas com a

decisão.

Este estudo se propõe a analisar a judiciabilidade em face do direito à saúde, a partir

de um processo de exigibilidade de direitos, descrevendo o caminho percorrido pela Ação

Civil Pública em defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes oriundos da orla

128

lagunar de Maceió/AL, identificando os principais atores, as decisões e as ações

desenvolvidas.

Metodologia

Para a realização deste estudo, recorreu-se à abordagem teórica sobre direitos

humanos, principalmente o direito à saúde e também à metodologia qualitativa de estudo de

caso.

A abordagem baseada no direito pressupõe que a análise do problema seja feita à luz

dos seguintes princípios: ligação do problema estudado com a rede de direitos,

empoderamento dos titulares, participação proativa dos titulares nas reivindicações para

correção das violações identificadas, não discriminação dos titulares de direito, atenção aos

grupos vulneráveis e estabelecimento do processo de prestação de contas (HANSEN; SANO,

2006).

O estudo de caso se propõe a revelar fundamentalmente as especificidades do

fenômeno social estudado, embora possa oferecer, no seu desenho e resultados finais,

conclusões generalizáveis (OLIVEIRA, 2007). Quanto à sua utilização, afirma-se que esse

tipo de estudo é recomendável quando se pretende estudar eventos contemporâneos que

permitam observações diretas e entrevistas sistemáticas, além de utilizar documentos escritos,

registros, dados pessoais arquivados, artefatos e informações gerais (YIN, 2001).

Dessa forma, o presente estudo corresponde à análise dos documentos que

constituíram o processo de judicialização, iniciado a partir da Ação Civil Pública, impetrada

em favor da proteção dos direitos das crianças e adolescentes residentes nas comunidades

Mundaú, Sururu de Capote, Torre e Muvuca (Maceió). É importante registrar que, sem perder

de vista a indissociabilidade, a indivisibilidade e a inter-relação intrínseca para a realização

dos direitos humanos, a presente análise enfatizará os desdobramentos relativos ao direito à

saúde.

Assim, foram identificados e sistematizados os documentos ajuntados aos autos do

Processo Nº 4830/07, disponibilizados pelo Juiz de Direito da 28ª vara Cível da Capital

(Infância e Juventude), correspondentes ao período de setembro de 2007 a julho de 2012,

distribuídos em sete volumes e organizados segundo critério de arquivamento cartorial, o que

totalizou 2072 páginas. Esse arquivo é composto por 1 relatório base da Ação Civil Pública, 1

129

relatório da sentença, 2 recursos, 45 ofícios, 28 despachos do juiz, 14 requerimentos e

petições, 24 mandados e certidões, 13 pronunciamentos da promotoria, 5 decisões

complementares, 5 alvarás e termos de compromisso de fiel depositário e 1 projeto de

pesquisa, com respectivo relatório, além de outros documentos anexados de variada natureza.

Para efeito de sistematização, a análise foi disposta em forma de tabela, na qual

podem ser vistas as decisões e ações concretas relacionadas ao processo de exigibilidade de

direitos humanos, identificando os principais atores (poder judiciário, prefeitura, entidades da

sociedade civil e comunidade), datas, tipos de documentos, decisões/encaminhamentos e

ações concretas. A partir desta organização, foi elaborada uma descrição, para analisar o

caminho percorrido no decorrer do processo judicial.

A pesquisa da qual se originou este artigo teve seu Projeto aprovado pelo Comitê de

Ética da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ, processo nº 01288112.3.0000.5240.

O acesso à documentação que compôs o processo judicial em análise foi permitido mediante

Termo de Livre Acesso Institucional assinado pelo Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da

Infância e Juventude da Capital.

Resultados e discussão

A Ação Civil Pública: em busca da garantia de direitos

A Ação Civil Pública instaurada contra o município de Maceió foi movida pelo

Ministério Público em 12 de março de 2007, através da Promotoria de Justiça da Infância e

Juventude da Capital e do Ministério Público do Trabalho em Alagoas pela lesão aos direitos

difusos e coletivos das crianças e adolescentes residentes na Orla Lagunar de Maceió. Foi

julgada e deferida em 10 de setembro de 2007, pelo então Juiz de Direito da 28ª Vara Cível -

Infância e da Juventude da Capital.

Essa Ação foi impulsionada a partir de informações de lideranças, depoimentos de

mães e de crianças e adolescentes dessas comunidades e também a partir de um estudo

realizado, em 2005, pela Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos – ABRANDH,

que constatou diversas violações de direitos humanos, tais como educação, alimentação

adequada, saúde, proteção institucional e familiar (ALBUQUERQUE; BURITY, 2008).

A Ação responsabilizou e exigiu reparos à prefeitura da cidade, por sua omissão,

130

enquanto governo local, de proteger, promover e realizar os direitos das crianças e

adolescentes residentes nas comunidades da citada orla lagunar. Para respaldar sua garantia

institucional, o texto base da Ação Civil, além de utilizar o arcabouço legal internacional,

também se valeu da legislação nacional.

Essa proposta da Ação Civil Pública respaldou-se no fato de ser o Poder Judiciário

tão obrigado à realização dos direitos fundamentais quanto os Poderes Executivo e

Legislativo.

Assim, por intermédio da Promotoria da Infância e da Juventude e do Ministério

público do Trabalho em Alagoas, o Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da Infância e da

Juventude da Capital determinou que a prefeitura implementasse ações para correção das

violações dos direitos humanos encontradas.

No Relatório da Sentença, o juiz discutiu o mérito da ação e rechaçou os argumentos

apresentados na contestação do Município de Maceió, estabelecendo medidas a serem

providenciadas, com prazos fixados para retirar as crianças e adolescentes das condições de

miserabilidade em que viviam nessas comunidades.

Para assegurar o resultado prático da ação, foi determinado o bloqueio de R$1 500

000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) da rubrica de contingência do Município, além de

multas aplicadas nos seguintes termos: multa diária de R$10 000,00 (dez mil reais) em

desfavor do Município, de R$300,00 (trezentos reais) por dia para o então prefeito e de

R$200,00 (duzentos reais) para o secretário de assistência social, no caso de não

comprovarem o efetivo cumprimento da sentença num prazo máximo de 30 dias, contados a

partir da data da sentença.

Em reação a essa decisão, em 20 de setembro de 2007, a Prefeitura de Maceió,

através da Procuradoria, interpôs Recurso na 28ª Vara Civil da Capital da Infancia e

Juventude além de protocolá-lo no Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, solicitando à

presidência, a suspensão de execução da sentença até seu julgamento.

Esse recurso foi analisado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, em 14

de outubro de 2007, o qual considerou improcedentes os argumentos de que a decisão exarada

teria lesado a ordem e a economia públicas. Também foram questionados pela prefeitura os

prazos estabelecidos na sentença, sob a alegação de que as políticas públicas determinadas

eram complexas, de longo prazo e que o município já vinha cumprindo a decisão liminar.

131

Apesar disso, o juiz indeferiu o pedido de suspensão de execução da sentença a fim de evitar

graves e irreparáveis danos à saúde e à vida dos moradores das comunidades beneficiadas

pela ação.

Entretanto, imediatamente após a determinação dessa sentença, a prefeitura interpôs

Recurso de Apelação junto ao Tribunal de Justiça de Alagoas, argumentando inadequação da

via eleita, impossibilidade jurídica do pedido, falta de interesse processual. Além disso,

solicitou denunciação à lide do Estado de Alagoas e da União. O julgamento desse recurso

ocorreu em 26 de agosto de 2010, quase três anos após a sua interposição. Na ocasião, foi

rejeitada a maioria dos argumentos e das solicitações, porém, foram revogadas as

determinações que obrigavam o município apresentar propostas de políticas públicas, definir

recursos na lei orçamentária e a utilizar a reserva de contingencia.

Em setembro de 2010, a prefeitura entrou com um Embargo de Declaração do

julgamento do Recurso de Apelação, pedindo que o desembargador relator do julgamento se

pronunciasse acerca da manutenção, ou não, das multas aplicadas ao Município. Três meses

depois, foi determinada a diminuição do valor da multa ao município de R$10 000,00 (dez

mil reais) para R$500,00 (quinhentos reais), mantendo-se, entretanto, o valor estabelecido na

primeira instancia das multas ao prefeito e ao secretário de assistência social do município.

Em fevereiro de 2011, a prefeitura entrou com Recurso Especial em Apelação,

solicitando que o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas encaminhasse o

processo ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento. Em julho de 2011, tal recurso foi

encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça.

O Superior Tribunal de Justiça não reconheceu o recurso especial da prefeitura.

Dessa forma, a decisão foi encaminhada ao Ministério Público Federal, que reiterou a decisão

e, posteriormente, encaminhou ao Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, que enviou os

autos para a vara de origem. Em julho de 2012, o juiz da 28ª Vara converteu a execução

provisória em definitiva e determinou que o processo recebido fosse ajuntado aos autos. Isso

significa que a sentença deixou de ter caráter liminar, de urgência, devendo ser cumprida pelo

município, sem possibilidade de interpor recursos para sua revogação.

Percurso jurídico-administrativo: desdobramentos da Sentença

A fim de compreender como se deu a execução da sentença e visualizar a atuação

132

dos atores em relação à efetivação dos direitos sociais, faz-se necessário analisar a trajetória

da ação, o que pode revelar limites e possibilidades da judicialização de um direito.

O quadro abaixo traz uma síntese das medidas determinadas ao Município na sentença

deferida em 10 de setembro de 2007, indicando seu respectivo cumprimento, ilustrando assim,

uma linha do tempo.

Acompanhamento da sentença. Maceió (AL), Brasil, período de 10/09/2007 a 31/07/2012.

Sentença Realização Data

1. Formação de uma equipe multidisciplinar para realizar um levantamento

do perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes das referidas

comunidades, num prazo de 90 dias, para identificação dos riscos aos

quais estão expostos;

Parcialmente

07/05/2009

2. Oferecimento, num prazo de 60 dias, de condições adequadas para o

funcionamento do Conselho Tutelar das Regiões I e II, além de

disponibilização, em caráter ininterrupto, de um número de telefone

gratuito (0800) para o recebimento de denúncias;

Parcialmente 19/01/2011

3. Apresentação, em 30 dias, de um cronograma de ampliação da rede

municipal de proteção, além da abertura de abrigos, para as crianças e

adolescentes em situação de risco, devendo funcionar no prazo máximo de

180 dias a partir do diagnóstico;

Não

4. Oferta, em 30 dias, de creche em horário integral e Educação Infantil para

atender todas as crianças de 0 a 6 anos, além da abertura de outras

unidades educacionais, de acordo com a necessidade, em até 180 dias, a

partir do diagnóstico;

Não

5. Garantia de matrícula de todas as crianças e adolescentes em idade escolar

de Ensino Fundamental, a partir do diagnóstico inicial;

Não

6. Apresentação de propostas de políticas públicas a serem implementadas

pelo Município, com abrangência suficiente, ofertando soluções a curto,

médio e longo prazo para a referida população no prazo de 90 dias após o

resultado do perfil apresentado;

Revogada 25/08/2010

7. Inclusão no Projeto de Lei Orçamentária de 2008, de verbas necessárias

para implementação das políticas públicas a serem executadas no ano

corrente, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais

necessidades da população infanto-juvenil;

Revogada 25/08/2010

8. Utilização da reserva de contingência do Município, caso esse não

apresentasse rubrica orçamentária diversa para fazer face às despesas no

cumprimento das medidas liminares, ora concedidas;

Revogada 25/08/2010

9. Expedição de certidão de nascimento das crianças e adolescentes e pais

residentes na região para inclusão em Programas Sociais;

Sim 24/03/2011

10. Promoção de campanha permanente de conscientização, através dos mais

diversos meios de comunicação, acerca da proibição do trabalho infantil,

inclusive o doméstico, da prostituição infantil e dos males à saúde

Não

133

causados por drogas, além da importância do papel da sociedade na

denúncia desses temas ao Conselho Tutelar da Região;

Fonte: Elaboração a partir do Processo nº 4.830/07 - Relatório da Sentença da Ação Cívil Pública

Para que se realizasse o primeiro item da sentença, a promotoria solicitou ao juiz que

determinasse a sua execução por terceiro à custa do devedor, visto que já teriam se passado

sete meses sem que o município de Maceió tivesse cumprido a medida determinada. Dessa

forma, o levantamento – que se constituiu de um diagnóstico do perfil sócio-econômico das

crianças e adolescentes das citadas comunidades – foi realizado pela Universidade Federal de

Alagoas- UFAL. Esse diagnóstico foi apresentado em audiência pública em junho de 2009,

passados quase dois anos da tramitação do processo de execução.

Quanto à realização do item II, que trata da estruturação do Conselho Tutelar das

Regiões I e II e da disponibilidade de telefone gratuito (0800) para atender as denúncias da

população, constatou-se uma realização parcial, pois a reforma do prédio onde funcionaria o

referido Conselho durou mais de três anos para ser concluída. Quanto à disponibilidade do

telefone gratuito (0800), este foi instalado apenas nos Conselhos Tutelares III, IV e V, os

quais não eram responsáveis pelo atendimento e proteção das crianças e adolescentes, sujeitos

da sentença.

Em relação ao terceiro item, referente à apresentação de um cronograma de

ampliação da rede municipal de proteção e à abertura de abrigos para as crianças e

adolescentes em situação de risco, nenhuma menção a esse respeito foi identificada nos autos.

No caso dos itens IV e V, que trata da garantia do direito à educação das crianças e

adolescentes, observou-se que o município, através da Secretaria Municipal de Educação, foi

interpelado reiteradas vezes sobre o cumprimento desses itens. Como o levantamento

realizado pela Ufal para cumprimento do primeiro item da sentença identificou 670 crianças e

adolescentes fora da escola e o município não dera resposta, a promotoria promoveu, junto à

comunidade, um levantamento das crianças e adolescentes que ainda não estavam

matriculadas na Educação Infantil e Ensino Fundamental e, a partir de audiências públicas

junto às escolas privadas, solicitou que autorizasse a matrícula, no ano letivo de 2010, dos 163

referidos alunos nas escolas privadas que indicara, utilizando parte do recurso bloqueado do

município para viabilizar a efetivação desse direito assegurado. Entretanto, o juiz indeferiu o

pedido sob a alegação de que feriria a prerrogativa de garantia da Proteção Integral e a da

Igualdade, visto que não atenderia todas as crianças e adolescentes acobertadas pela sentença.

134

Quanto ao cumprimento do item VI, que determinou a apresentação de propostas de

políticas públicas para correção dos direitos violados, identificou-se nos autos que, em maio

de 2008, a quase oito meses do deferimento da sentença, o município apresentou uma lista de

ações que seriam desenvolvidas, como construção de unidades habitacionais, creche, CRAS,

mini pronto-socorro, unidade de saúde da família, entre outras. Ainda segundo os autos, foram

desenvolvidas apenas algumas dessas ações, como o atendimento a 180 crianças e

adolescentes pelo PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), em funcionamento

no prédio anexo à Igreja Virgem dos Pobres; a estruturação de um Centro de Referência

Especializado de Assistência Social (CREAS), que funcionaria no prédio Dom Adelmo

Machado; a habilitação, cadastramento e acompanhamento de famílias em programas sociais

e oferta de cursos de capacitação profissional.

Entretanto, essa determinação, foi revogada no julgamento do Recurso de Apelação

pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, juntamente com o sétimo item, que trata da inclusão, no

Projeto de Lei Orçamentária, de verbas para implementação das políticas públicas, e com o

oitavo, referente à utilização da reserva de contingência do município.

Acerca do nono item, observou-se que foi providenciada a documentação por meio

de ações conjuntas com o Tribunal Estadual de Justiça e com a Secretaria Municipal de

Assistência Social.

Em relação à décima determinação, referente à promoção permanente de campanhas

de conscientização sobre a proteção dos direitos das crianças e adolescentes, nenhuma

informação a respeito foi identificada nos autos.

Considerando-se a sentença e a execução provisória, pode-se constatar que, em cinco

anos de tramitação jurídico-administrativa, apenas uma das medidas indicadas foi realizada,

três foram parcialmente realizadas, sendo uma dessas, juntamente com outras duas, revogadas

posteriormente. Em relação às demais, não foi identificado nos autos informações sobre sua

execução.

As medidas determinadas estão de certo modo relacionadas ao direito à saúde e é

importante destacar que, embora esse direito não tenha sido diretamente relacionado nos itens

da sentença, foi ressaltado em diversos momentos nesse processo de exigibilidade. Além

disso, o cumprimento dos direitos sociais assegurados na sentença incide nos fatores

determinantes e condicionantes à saúde das crianças e adolescentes. Isso significa que o não

135

cumprimento dos itens da sentença, contribui para a não realização do direito à saúde na sua

plenitude, visto que a sua efetivação pressupõe a indivisibilidade em seu provimento e não se

restringiria, por exemplo, a abertura de mini-pronto-socorro e unidade de saúde da família.

A participação dos atores sociais no processo de judicialização

As entidades da sociedade civil organizada, em parceria com as lideranças da

comunidade e em articulação com o Ministério Público, exerceram importante papel para

desencadear a Ação Civil Pública. Esse contexto contribuiu para o empoderamento dos

titulares de direitos e para mobilizá-los no desenvolvimento de estratégias para exigir dos

agentes públicos, portadores de obrigações, o provimento dos direitos que se encontravam

violados.

Tais fatos foram importantes catalisadores do processo de exigibilidade política

instalado, pois propiciaram o exercício do uso do direito de petição e de audiências públicas

para exigir a correção das violações (ABRANDH/FAO, 2007). E, nesse sentido, pode-se dizer

que isso se constituiu em um processo político deflagrador de um comportamento mais

interativo que o habitual entre a sociedade civil e o Estado ao rediscutir as políticas públicas

em sua resolutividade e abrangência, diferentemente de processos judiciais individualizados,

comuns no âmbito da saúde (ASENSI, 2010).

No entanto, esse processo de judicialização não efetivou a participação dos diversos

atores sociais que a desencadearam, tais como lideranças das comunidades e das organizações

da sociedade civil, sendo os atores que passaram a atuar, os do poder judiciário, do executivo

e entidades civis (universidade, empresas comercias, de serviços e construção civil, etc.),

essas acionadas apenas para atender diretamente às demandas concernentes ao processo

jurídico-administrativo em curso.

Já em relação à atuação do Ministério Público, esse se destacou por sua capacidade

de se articular com os demais atores sociais desde o início desse processo de exigibilidade,

constituindo-se ator privilegiado na defesa da sociedade (ASENSI, 2010).

O juizado da 28ª Vara da Infância e da Juventude da Capital teve destaque no

deferimento da Ação Civil Pública, sobretudo na manutenção da sentença em execução diante

das demais instâncias do poder judiciário e no enfrentamento da resistência jurídico-

administrativa interposta pela Prefeitura de Maceió em cumprir suas determinações.

136

Nesse sentido, a decisão do juizado produziu o mesmo efeito que a lei, constituindo-

se como concretização da norma ao determinar seu cumprimento pelas partes envolvidas. Ao

mesmo tempo, pode servir como referência para outras decisões semelhantes, promovendo

assim, inovação no padrão de atuação do Poder Judiciário na resolução de conflitos coletivos

e de relacionamento entre os Poderes (BORGES; UGÁ, 2009; MACHADO et al., 2011).

Apesar disso, não se verificou a eficácia do Poder Judiciário em garantir o

cumprimento de sua decisão, pois se por um lado a Prefeitura de Maceió não logrou o êxito

esperado em suas interposições junto às instâncias do poder judiciário, por outro conseguiu

neutralizar os efeitos da Ação Civil quanto ao cumprimento das determinações da sentença na

sua fase de execução.

A Prefeitura, apesar de seu status constitucional de portador de obrigações,

questionou a forma como o Poder Judiciário interferiu no processo, responsabilizando-a pelas

violações encontradas e manifestou sua insatisfação pelo estabelecimento dos prazos

definidos para implementação das políticas públicas, pelo bloqueio de recursos do município

e pela não inclusão dos poderes estadual e federal. No entanto, na perspectiva dos direitos

humanos, o Estado, independentemente do nível de execução, se municipal, estadual ou

federal, tinha o dever de atuar de forma diligente e eficaz no provimento dos direitos.

Apesar dessa prerrogativa, o Poder Executivo municipal não reconheceu sua

responsabilidade e demonstrou uma baixa mobilização para atuar de forma diligente e eficaz,

quando tentou desvincular ações governamentais da Ação Civil Pública e da sentença, sob a

alegação de que diante da escassez de recursos e dos graves problemas sociais que acomete a

maioria da população, não poderia privilegiar algumas comunidades em detrimento de outras

em situação semelhante no município.

Por outro lado, o Poder Judiciário, especificamente do Tribunal de Justiça de

Alagoas, contribuiu para essa atuação do executivo, atendendo alguns dos pleitos do

município, por exemplo, quando revogou, as determinações da sentença que garantiria os

recursos financeiros para execução das políticas públicas, dificultando a viabilização do

cumprimento das determinações da sentença. Outra situação identificada refere-se às multas

aplicadas diretamente aos gestores, pois não foi identificada a sua cobrança nos autos.

Isso demonstra que o Poder Judiciário precisa avançar em seu protagonismo em

relação à dimensão política que compõe os direitos sociais. Nesse mesmo sentido, os gestores

137

públicos carecem se conscientizar de seu papel decisório em relação à implementação das

políticas públicas no Brasil, especialmente para aquelas direcionadas às populações mais

empobrecidas do tecido social (MACEDO; LOPES; BARBERATO-FILHO, 2011).

Esse conflito entre os poderes evidencia os limites do Estado quanto à capacidade de

efetivação das normas. Nesse caso, do Poder Judiciário de impedir as omissões ou violações

de direitos fundamentais por parte do Poder Executivo que, por sua vez, atuou como se a

justiciabilidade fosse uma intervenção indevida do Poder Judiciário. Estudos afirmam que

isso ocorre devido à ampliação das garantias constitucionais dos direitos sociais e dos

mecanismos de controle que conferiu ao Poder Judiciário um papel mais ativo e uma tarefa

mais complexa em relação à resolução de conflitos, especialmente de cunho coletivo. Além

disso, a ampliação de suas atribuições não foi acompanhada do devido aparelhamento das

instancias jurídicas para que pudesse garantir a execução de decisões judiciais que consistiam

em implementação de políticas públicas (YAMIN, 2008; BORGES; UGÁ, 2009; CHIEFFI;

BARATA, 2009; ASENSI, 2010; PINHEIRO; ASENSI, 2010; VENTURA et al., 2010).

Diante desse contexto, podem ser observados alguns limites relativos a esse processo

de judicialização devido à complexidade inerente a realização dos direitos sociais.

O direito à saúde na perspectiva da judicialização

A falta de acesso aos bens e serviços de saúde, bem como as precárias condições de

vida em que se encontravam crianças e adolescentes da comunidade Sururu de Capote em

Maceió-Al evidenciaram a violação de vários direitos humanos, reafirmando a

interdependência intrínseca existente entre eles, legitimando os princípios da universalidade,

da indivisibilidade e da indissociabilidade (TARANTOLA et al., 2008; ALBUQUERQUE,

2009).

A abordagem de direitos humanos na qual se ancorou a constituição do processo de

exigibilidade em análise, que culminou em uma judicilização, também contribuiu para

responsabilizar e exigir que o Estado (município de Maceió) assegurasse a realização dos

direitos humanos das crianças e adolescentes de comunidades da orla lagunar. Esse processo

demonstrou que há um consenso considerável quanto às reivindicações de direitos humanos a

serem realizados em contextos específicos que, enriquecidas por novas perspectivas, podem

desempenhar um papel importante na luta para melhorar o bem-estar individual e social

(YAMIN, 2008).

138

Entretanto, no processo de judicialização pode-se observar que o direito à saúde foi

identificado como um direito que se encontrava violado, porém nenhuma medida foi

diretamente indicada para reparar a violação desse direito entre as medidas propostas na Ação

e deferidas na sentença, ainda que fosse vinculado ao direito à vida.

Embora o direito à saúde não tenha sido explicitamente contemplado na sentença,

verificou-se sua relevância quando o diagnóstico realizado como cumprimento da primeira

determinação identificou vários problemas que poderiam impactar a saúde, tais como:

insalubridade ambiental no local de moradia, falta de acesso à educação, falta de acesso aos

serviços de saúde de atenção básica, urgência e especialmente, de atenção à saúde mental.

Desse modo, percebe-se que o cumprimento desse item da sentença deu visibilidade às

vulnerabilidades sociais da comunidade, mas não dispôs de mecanismos que viabilizassem a

participação de todos os titulares de direitos junto ao poder público municipal na formulação e

implementação das ações para atender as necessidades identificadas pelo diagnóstico, nem a

correção das violações apontadas.

Esse contexto se contrapõe à realização dos princípios de responsabilização e

prestação de contas, pois a promoção da responsabilização dos portadores de obrigações em

prover a efetivação do direito humano à saúde, por meio das leis e políticas públicas, exige a

definição clara das obrigações normativas e requer uma variedade de estratégias para o

acompanhamento da evolução e garantia de reparação (YAMIN, 2008).

Quanto ao princípio de participação e empoderamento dos titulares de direitos, a

configuração em que se constituiu a dimensão da judicialização nesse processo de

exigibilidade permitiu visualizar que há ainda um longo caminho a percorrer para que o

Estado incorpore, de fato, a sociedade civil como interlocutora capaz de exercer sua cidadania

e participar das decisões estatais na formulação e gestão partilhada das políticas públicas

sociais, exercendo dessa forma o controle social (BUCCI, 2001; ARZABE, 2001).

Considerando o alcance limitado do processo de judicialização analisado pode-se

concluir que é necessário aprimorar os mecanismos de exigibilidade existentes e criar novas

arquiteturas institucionais que promovam a responsabilidade legal, política e social que

viabilizem a aproximação entre o direito público-administrativo e o direito privado, para

assim garantir a participação ativa da população nas instituições jurídico-políticas,

principalmente na geração e execução de políticas públicas que garantam o direito à saúde.

139

Para tanto, é fundamental a ampliação e a consolidação de esferas públicas

democráticas que garantam o direito de todos os membros da sociedade participar ativamente

dos assuntos da comunidade em que vivem na adoção de políticas públicas em todos os

níveis. Isso implica ter como estratégia o desenvolvimento de capacitação das comunidades

locais no que diz respeito à cidadania, direitos humanos e políticas públicas e que envolva a

participação de diversos atores sociais, conferindo, assim, credibilidade a uma ampla

variedade de lutas, iniciativas, movimentos sociais e organizações, em âmbito local, nacional

ou internacional.

Considerações Finais

O estudo da trajetória desse caso permitiu que fossem visibilizados o papel e as

atribuições dos atores sociais e instituições que detêm a obrigação de respeitar, proteger e

realizar (promover e prover) os diretos sociais.

Também revelou estratégias adotadas na resolução dos conflitos, tanto do poder

executivo, para se eximir da responsabilidade de proteger e prover os direitos fundamentais

assegurados na legislação internacional e nacional, como dos titulares de direitos devido às

barreiras existentes que os impedem de participarem ativamente das decisões e

encaminhamentos que lhes dizem respeito.

Do mesmo modo, expôs as dificuldades do poder judiciário em garantir a execução

das suas decisões e avançar na criação de mecanismos institucionais que assegurem a

responsabilização, a prestação de contas e a participação dos diversos atores sociais

envolvidos na resolução do conflito para a efetivação dos direitos sociais em questão.

Referências

ALBUQUERQUE, F. A segurança alimentar e nutricional e o uso da abordagem de direitos

humanos no desenho das políticas públicas para combater a fome e a pobreza. Revista de

Nutrição, Campinas, vol.22, n.6, p. 895-903, 2009.

ALBUQUERQUE, F.; BURITY, V. A exigibilidade do direito humano à alimentação

adequada através de estratégias de populações urbanas empobrecidas. In: BEZERRA, C. V;

COSTA, S. M. A. (Org.). Exigibilidade do direito humano à alimentação adequada:

experiências e desafios. Passo Fundo: IFIBE, 2008. p.145 - 171.

140

ARZABE, P. H. M. Conselhos de Direitos e Formulação de Políticas Públicas. In: BUCCI,

M. P. D; SAULE JÚNIOR N.; ARZABE P. H. M; FRISCHEISEN, L.C.F. (org.). Direitos

Humanos e Políticas Públicas. São Paulo: Polis, 2001. p. 32-43.

ASENSI, F. D. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na

saúde. Revista Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p. 33-55, 2010.

BAPTISTA, T. W. F.; MACHADO, C. V.; LIMA, L. D. Responsabilidade do Estado e direito

à saúde no Brasil: um balanço da atuação dos Poderes. Ciência Saúde Coletiva, Rio de

Janeiro, vol.14, n.3, p. 829-839, 2009. 829-839.

BORGES, D. C. L.; UGA, M. A. D. Conflitos e impasses da judicialização na obtenção de

medicamentos: as decisões de 1a instância nas ações individuais contra o Estado do Rio de

Janeiro, Brasil, em 2005. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.26, n.1, p. 59-69,

2010.

BORGES, D. C. L; UGÁ, M. A. D. As ações individuais para o fornecimento de

medicamentos no âmbito do SUS: características dos conflitos e limites para a atuação

judicial. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, vol.10, n.1, p. 13-38, 2009.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituição.htm.> Acesso em: 12 fev.

2013.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do

Adolescente e dá outras providências. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 23 jun. 2013.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes e dá outras providências. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm> Acesso em: 13 jun. 2013.

BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências

intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm> Acesso em: 26 jun.

2013.

141

BUCCI, M. P. D. Buscando conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos

humanos. In: BUCCI, M. P. D.; SAULE JÚNIOR, N.; ARZABE, P. H. M.; FRISCHEISEN,

L. C. F. (org.). Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Polis, p. 5-15, 2001.

BURITY, V. et al. Direito Humano à Alimentação Adequada no contexto da Segurança

Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: ABRANDH, 2010. Disponível em:

<http://www.abrandh.org.br/download/20101101121244.pdf.> Acesso em: 22 mar. 2011.

CHIEFFI, A. L; BARATA, R. B. Judicialização da política pública de assistência

farmacêutica e equidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.25, n.8, p. 1839-

1849, 2009.

COSTA, S. M. A. O direito humano à alimentação adequada e a dignidade da pessoa humana.

In: BEZERRA, C. V.; COSTA, S. M. A. (Org.). Exigibilidade do direito humano à

alimentação adequada: experiências e desafios. Passo Fundo: IFIBE, p. 69-94, 2008.

CUNHA, S. S. Dicionário compacto do direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em:

<http://www.imprensaoficial.com.br/PortalIO/download/pdf/Constituicoes_declaracao.pdf.>

Acesso em: 23 mar. 2013.

HANSEN, J.K.; SANO, H. The implications and value added of a rights-based approach. In:

ANDREASSEN, B.A.; MARKS, S.P. Development as a Human Right: legal, political, and

economic dimensions. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press. 2006,

p.36-56.

Inquérito Nutricional e Sócio-antropológico: Peraí, é nosso direito! - Promovendo a

realização do Direito Humano à Alimentação Adequada em comunidades urbanas

vulnerabilizadas. ABRANDH/FAO; 2007. Disponível em:

<http://www.abrandh.org.br/download/20100702210259.pdf > Acessado em 09 dezembro

2012.

JONES, P.; STOKKE, K. Democratising Development: the politics of socio-economic rights.

In: _____. Democratising Development: the politics of socio-economic rights in South Africa.

Leiden, Boston: MARTINUS NIJHOFF PUBLISHERS, p.1-38, 2005.

MACEDO, E. I.; LOPES, L. C.; BARBERATO-FILHO, S. Análise técnica para a tomada de

decisão do fornecimento de medicamentos pela via judicial. Rev. Saúde Pública. 2011, vol.45,

n.4, p. 706-713.

142

MACHADO, M. A. Á. et al. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas

Gerais, Brasil. Revista de Saúde Pública.São Paulo, vol.45, n.3, p. 590-598, 2011.

OLIVEIRA, E. A. Política de produção pública de medicamentos no Brasil: o caso do

Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (LAFEPE). Tese (Doutorado em

Ciências). Fundação Oswaldo Cruz – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Rio

de Janeiro. 2007.

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em:

<http://www.agende.org.br/docs/File/convencoes/pidesc/docs/PIDESC.pdf.> Acesso em: 30

jan. 2011.

PINHEIRO, R.; ASENSI, F. D. Desafios e estratégias de efetivação do direito à saúde.

Physis. Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p.15-17, 2010.

PIOVESAN, F.; SILVA, B. P.; CAMPOLI, H. B. P. A proteção dos direitos das pessoas com

deficiência no Brasil. In: PIOVESAN, F. Temas de Direitos Humanos. São Paulo:

SARAIVA, p.297-316, 2009.

SANT'ANA, J. M. B. et al. Racionalidade terapêutica: elementos médico-sanitários nas

demandas judiciais de medicamentos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, vol.45, n.4, p.

714-721, 2011.

TARANTOLA, D. et al. Human Rights, Health and Development. Technical Series Paper

Sydney: The UNSW, 2008. Disponível em:

<http://www.ihhr.unsw.edu.au/publications/papers.html> Acesso em: 10 fev. 2013.

VALENTE, F; FRANCESCHINI, T; BURITY, V. A Exigibilidade do Direito Humano à

Alimentação Adequada. Dezembro/2007. Disponível em: < http://www.abrandh.org.br.>

Acesso em: 10 mar. 2011.

VENTURA, M. et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à

saúde. Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p. 77-100, 2010.

YAMIN, A. E. Beyond compassion: the central role of accountability in applying a human

rights framework to health. Creative Commons Attribution, volume 10, no. 2. Health and

human rights, 2008. Disponível em: <http://www.hhrjournal.org.> Acesso em: 10 fev. 2013.

YIN, R. K. Estudo de Caso Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.

143

ANEXO IV: ARTIGO PARA APRECIAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA

A efetivação do direito à saúde e a percepção dos atores sociais em um caso de

exigibilidade de direitos

Josineide Francisco Sampaio

Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos

Maria de Fátima Machado de Albuquerque

Resumo: Neste artigo, analisa-se o processo de efetivação do direito à saúde a partir da

percepção dos atores sociais envolvidos em um processo de exigibilidade de direitos para

implementação de políticas públicas em comunidades oriundas da orla lagunar de Maceió-AL

beneficiadas por uma ação civil pública. A análise foi feita a partir de entrevistas que fizeram

parte de um estudo de caso sobre esse processo de exigibilidade e foram analisadas à luz da

abordagem de direito, principalmente do direito à saúde, utilizando proposições como

indivisibilidade de direitos, responsabilização e participação. Com a análise, percebeu-se a

importância da atuação da sociedade civil organizada e dos titulares de direitos, junto ao

Estado, na luta pela realização dos direitos sociais, evidenciando de que forma como o poder

político se comporta diante do seu dever de garantir os direitos e de como formula e

implementa as políticas públicas para sua concretização. Identificaram-se também os limites

do Poder Judiciário para garantir a execução das decisões e a necessidade de criação de

mecanismos institucionais que assegurem a efetivação dos direitos sociais. Constatou-se que

há restrições à participação dos titulares de direito nas decisões, o que revela a importância da

utilização dos instrumentos de exigibilidade para o fortalecimento da luta política, a conquista

da cidadania e para garantia de uma vida digna para todos.

Palavras-chave: Direito à saúde, direitos humanos, instrumentos de exigibilidade de direitos.

Abstract: This article analyzes the process of effectiveness of the right to health from the

perception of the social actors involved in a lawsuit for enforceability for implementation of

public policies in communities from the Orla Lagunar de Maceió-AL benefited by a public-

interest civil action . The analysis was based on interviews that were part of a case study on

the process of enforceability and were analyzed from an approach based on right, especially

the right to health, using propositions as indivisibility of rights, accountability and

participation. With the analysis, we realized the importance of the role of civil society

organizations and rights holders, with the State, the struggle for the realization of social

rights, showing that how political power behaves before his duty to ensure the rights and how

to formulate and implement public policies to achieve them. It was also identified the limits of

the judiciary to ensure implementation of the decisions and the need for institutional

mechanisms to ensure the fulfillment of social rights. It was found that there are restrictions

on the participation of rights holders in decisions, which reveals the importance of the use of

instruments of enforceability for the strengthening of the political struggle, the conquest of

citizenship and to guarantee a dignified life for everybody.

Key words: Right to health; human rights; instruments to enforceability of rights.

144

Introdução

O modelo de desenvolvimento socioeconômico e político-cultural adotado no Brasil

tem sido marcado por contradições gritantes que o distanciam da condição de Estado de bem-

estar social alcançada pelos países centrais. Isso pela persistente exclusão e desigualdade

social, onde o desenvolvimento econômico convive com a miséria, o tráfico de drogas e a

violência, com a anuência do poder público. Além disso, o país teve um processo de

redemocratização tardio, numa conjuntura de avanço do neoliberalismo mundial que trouxe

sérias restrições para a construção de um Estado democrático e para a efetivação da cidadania.

Apesar dos movimentos de resistência e de luta pela garantia dos direitos sociais

serem significativos e influentes na história do Brasil, na sua cultura política têm

predominado tradições centralizadoras e patrimonialistas, permeadas por relações

clientelistas, meritocráticas e de interesses articulados entre determinados grupos socias e o

Estado (JACOBI, 1999). Isso faz com que a cidadania seja marcada pela forte presença da

tutela e submissão do povo aos ditames do Estado, numa tendência ao neoliberalismo, que

focaliza políticas públicas de baixa qualidade para os pobres (PIRES; DEMO, 2006).

Assim, esse cenário de exclusão social, de pobreza e miséria demonstram que as

políticas públicas não têm sido eficientes e nem suficientes para alterar, substancialmente,

esse quadro. Nesse sentido, nas comunidades em que vivem a população pobre e miserável, os

direitos humanos, sejam civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, são sempre violados

em graves proporções; e os agentes públicos do Estado nem sempre estão aptos a realizarem

esses direitos, seja por questões concretas ou ideológicas (ALBUQUERQUE; BURITY,

2008).

No entanto, não podemos perder de vista os compromissos assumidos,

internacionalmente, pelo Brasil, por meio da assinatura de vários tratados de direitos humanos

para atender e prover os direitos econômicos, sociais e culturais para toda a população, como

preconizado pela Constituição Federal. Entre esses direitos assegurados por lei, destaca-se a

saúde, uma vez que ela consiste num bem-estar global que requer condições e requisitos para

sua efetivação, como a igualdade de oportunidades e a promoção das diversas condições para

que todas as pessoas realizem completamente seu potencial de saúde (OTTAWA, 1986).

Ao conceber o direito à saúde como direito humano, o Estado se obriga a assegurar

sua realização, por meio de políticas públicas que garantam à população – especialmente aos

145

indivíduos, grupos e camadas sociais marginalizadas mais afetadas pela pobreza e violação de

seus direitos – o acesso universal, equânime e integral à saúde.

A partir dessa concepção, propõe-se, neste artigo, analisar o processo de efetivação

do direito à saúde a partir da percepção dos atores sociais envolvidos em um processo de

exigibilidade de direitos para implementação de políticas públicas em comunidades oriundas

da orla lagunar de Maceió-AL beneficiadas por uma ação civil pública.

Metodologia

O presente estudo é a análise de um recorte de um estudo de caso sobre um processo

de exigibilidade de direitos humanos – entre esses, do direito a saúde – e de como foram

implementadas as políticas públicas nas comunidades da orla lagunar de Maceió – AL, por

meio de uma Ação Civil Pública.

Esse estudo baseou-se na análise das entrevistas dos principais atores sociais

concernentes tanto ao processo de exigibilidade de direitos como as políticas públicas que

foram desenvolvidas nas comunidades. Foram entrevistados a maioria dos atores-chave que

representavam os segmentos envolvidos nesse processo, tais como da gestão pública

municipal; do poder judiciário estadual; das organizações não governamentais e das

comunidades da orla lagunar. As entrevistas foram abertas, subsidiadas por um roteiro e

conduzidas de forma espontânea. Após transcritas, foram extraídas as unidades naturais do

depoimento e identificados os temas centrais, elaborando-se uma síntese interpretativa das

descrições essenciais dos depoimentos, segundo a técnica de condensação de significados

(MINAYO, 1996; GIBBS, 2009).

Para a análise das evidências, recorreu-se à abordagem dos direitos humanos,

especialmente do direito à saúde, utilizando proposições como indivisibilidade de direitos,

responsabilização e participação. Segundo Hansen e Sano (2006), essa abordagem pressupõe

que a análise seja feita a partir da ligação do problema com a rede de direitos, empoderamento

e participação proativa dos titulares nas reivindicações, não discriminação, atenção aos grupos

vulneráveis e prestação de contas.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública -

FIOCRUZ, CAAE: 01288112.3.0000.5240. As entrevistas realizadas mediante Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido.

146

Resultados e discussão

As conquistas constitucionais no campo dos direitos sociais provocaram uma

movimentação dos setores públicos nos vários níveis de gestão e das organizações da

sociedade civil, como ONGs e movimentos sociais, no sentido de redesenhar e implementar

políticas que atendessem às prerrogativas legais em curso no país.

Nesse contexto, a partir de 2003, de acordo com o depoimento de um representante

da comunidade da orla lagunar, os órgãos públicos, principalmente aqueles vinculados à

gestão municipal, iniciaram um trabalho de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil

junto às mães das crianças da orla. Isso levou a uma e mobilização para reivindicar a garantia

dos direitos junto ao poder público em reação às acusações que recebiam.

Segundo esse representante, o processo de exigibilidade...

começou quando a gente começou ser repudiado, [...] pelo município

principalmente. Eles achavam um absurdo, as crianças tá mergulhando na lagoa, tá

indo catar sururu com a gente e ir no mercado vender. [...] Acusando as mães de

colocar, aliciar as crianças pra o lado errado, pra trabalhar. (RC)

A situação de pobreza e miséria, a baixa cobertura assistencial, a baixa qualidade ou

mesmo a ausência dos serviços públicos e o autoritarismo que permeiam a gestão pública em

Alagoas fizeram com que vários atores sociais se aproximassem dessas comunidades com a

finalidade de conhecer, mobilizar e estimular o empoderamento dos moradores para

estabelecerem parcerias internas e externas para que fossem implementadas as políticas

públicas necessárias para efetivação dos direitos sociais conquistados constitucionalmente:

Vários movimentos viram a situação da gente e começou a se agregar com a gente, a

fazer oficina, ajudar a gente correr atrás dos direitos. Então começaram a mostrar

que a gente tinha que ir no ministério público, que a gente tinha a defensoria pública

e que a gente não tinha que procurar só a imprensa. (RC)

Nesse período se organizou, em nível estadual, um fórum público para discutir a

questão do trabalho infantil e definir estratégias para a resolução de problemas junto ao poder

público. Contava com a participação de representantes de diversos segmentos da sociedade

civil e do próprio Estado, contribuindo, assim, para fortalecer as iniciativas que buscavam

viabilizar a efetivação dos direitos sociais. Assim,

Surgiu com a iniciativa do fórum pra se discutir o trabalho infantil, pra se discutir a

situação das crianças do lixo [...] aí surgiu nesse período, outras favelas como a

Sururu de Capote. Era um fórum ativo, dinâmico, com participação muito boa, a

147

gente trabalhou muito. [...] E o poder público não fazia nada. (RSCO)

Essa movimentação em torno da resolução dos problemas sociais, em nível local,

regional e nacional, motivou entidades de cunho internacional e nacional, em parceria com

entidades locais, para desenvolverem ações junto às comunidades da orla lagunar.

Foram 20 mães [...] que tinham os filhos acorrentados, [...] chegou a FIAN Brasil, a

ABRANDH, chegou o pessoal da Pastoral da Terra, [...] que apoiou a nossa

comunidade, chegou à universidade também, a UFAL, [...] chegou pessoas dos

direitos humanos, [...] que viu a situação da gente, se mobilizou, chegou a RECID,

chegou a Cáritas, chegou a Pastoral da Criança. (RC)

Apesar da aglutinação desses diversos atores sociais, as negociações não avançaram;

o poder público municipal e o estadual não atendeu às demandas, o que desencadeou num

processo de judicialização.

A Ação veio quando nós sentimos que o Estado, o Município, aliás, não estava

comprometido, não estava fazendo os atendimentos da forma como deveria. Falta de

compromisso mesmo! Afinal, vontade política faltou aqui em Maceió. (RPJ)

[...] quando a gente viu que não tinha mais para onde ir, que chegou a um acordo em

tudo que tinha que fazer, o governador disse: Não assino. Bom, então não dá pra dar

ré, não dá pra não dar uma resposta à comunidade, vamos entrar com uma Ação.

(RPJ)

Em 2007, o Ministério Público Estadual e a Procuradoria do Trabalho em Alagoas,

interpuseram uma Ação Civil Pública na 28ª Vara Cível Infância e da Juventude da Capital,

com base em tratados de direitos humanos e normas nacionais, particularmente no Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA), cujo deferimento determinou que a prefeitura de Maceió

implementasse ações para realização dos direitos das crianças e adolescentes dessas

comunidades através da elaboração e execução de políticas públicas.

No entanto, o poder executivo considerou a decisão judicial inadequada por

responsabilizar apenas o poder municipal, argumentando que a maioria dos serviços públicos

disponibilizados aos moradores da orla lagunar são vinculados ao governo estadual e que

funcionam insastisfatoriamante.

O estado fez um conjunto lá, tem um CAIC que é do estado, tem a rede de educação

que é do estado. E os aparelho do estado, eles nunca funcionaram a contento para a

comunidade e ficou durante muito tempo só a cobrança na prefeitura. (RPE)

Esse representante considera a Ação Civil Pública apenas uma formalidade, embora

afirme que o município cumpriu todas as determinações da sentença através da realização de

políticas públicas de educação, saúde e assistência social. Ele defende que o processo de

148

judicialização seja finalizado para que os recursos financeiros sejam desbloqueados e deixe de

prejudicar a gestão do município, além de alegar que muitas famílias beneficiadas pela Ação

saíram da comunidade:

Desde a construção de um PETI, a instalação de uma escola, a instalação de uma

creche, posto de saúde, retirada de documentação, inserção dessas famílias no

mercado de trabalho. [...] A Ação, ela é meramente formal. A ação tá cumprida, os

dez pontos da ação, o município atendeu. (RPE)

O que a gente tem defendido é que é necessário deixar de judicializar essa questão,

porque tem recursos do município bloqueados por conta disso.

Em relação à intersetorialidade, os depoimentos indicam que esse processo de

judicialização contribuiu para que as secretarias trabalhassem conjuntamente na gestão

municipal. Em relação a parcerias com a esfera estadual, verificou-se certa contradição,

quando se propõe o fim da judicialização e o estabelecimento de parcerias entre os níveis de

governo para atender as necessidades das comunidades.

[...] Com a Ação, juntou todas as secretarias. Então, a gente percebe que todas as

secretarias terminaram trabalhando em conjunto para aquela comunidade. (RPE)

O Município não conseguiu conversar com o Estado. Não conseguiu avançar nessa

relação de intersetorialidade. [...] A nossa defesa é: acabar essa ação, desbloquear os

recursos da Prefeitura de Maceió, a gente sentar numa mesa de discussão, o estado e

o município e com o governo federal e olhar para a questão da habitação, da saúde,

da educação, da geração de emprego e renda. (RPE)

Para os representantes das entidades da sociedade civil organizada que atuavam junto

à comunidade, a ação judicial foi considerada uma conquista significativa que fortaleceu e

empoderou a comunidade na luta para que os direitos sociais assegurados na sentença fossem

efetivados.

O juiz disse, vai ser assim. Vai ter que pagar se o prefeito não cumprir em tantos

dias. [...] A gente botou os meninos, botou pai, mãe, foi uma festa! Botamos todo

mundo na porta do Tribunal de Justiça, na porta da prefeitura que era pra ver se as

coisas que eram de responsabilidade do município saíam. (RSCO)

Afirmam ainda que a decisão judicial também contribui para que mudasse a visão de

muitos moradores com relação aos seus direitos e às suas expectativas sobre o futuro dos

filhos, passando a acreditar que poderiam ter uma vida melhor.

A gente consegue mudar um pouco a visão deles. [...] No final, aquelas pessoas

idosas indo para alfabetização de jovens e adultos. [...] Essa decisão, ela veio

favorecer muito isso. Eles sabiam quais eram os direitos deles garantidos. Agora,

faltavam esses direitos [...] chegarem na sua totalidade pra eles. (RSCO)

149

Embora esses atores considerem que a decisão fortaleceu o processo de negociação

com o poder público, reconhecem que não houve avanço na realização das determinações.

[...] a gente vive um paradoxo. E a gente não conseguiu avançar. Se você pega o

relatório do projeto você vai ver que tem alguns resultados da assistência social, da

educação, [...] que trás essa complexidade de setores, da saúde, da alimentação,

conseguia-se dialogar, mas não conseguiu avançar nas reparações. (RSCO)

Como ator nesse processo, o Ministério Público (MP) considera a judicialização

insuficiente, devido à estrutura de funcionamento do Poder Judiciário, embora sua maior

contribuição consista no fortalecimento da luta política, por estimular a mobilização e a

participação ativa da comunidade para lutar pela realização dos seus direitos. O MP atribui à

luta política a manutenção da decisão judicial e a visibilidade que a comunidade passou a ter.

Porque, [...] tem inúmeros limites, tanto que você tem, desde 2007, um milhão e

meio bloqueado, e não consegue fazer nada, porque juridicamente, [...] tem

inúmeros limites. A principal e única luta verdadeira, ali, é a política, de participação

de luta da comunidade. (RPJ)

As comunidades ampliaram a sua capacidade de luta, mas a estrutura

socioeconômica e político-cultural de miserabilidade e de exclusão social em que se encontra

a cidade de Maceió e o Estado de Alagoas impedem que as transformações ocorram e que o

processo avance rapidamente.

No caso da comunidade, [...] travam lutas muito mais fortes que outras comunidades

de Maceió. Agora tem uma série de complicadores, num estado miserável, numa

cidade miserável, de exclusão social. E isso, você não resolve. A gente está vivendo

um processo histórico. (RPJ)

Sobre o processo de negociação junto ao poder executivo, um dos representantes do

MP afirma que a hipocrisia e o não cumprimento das obrigações por parte do gestor público

inviabilizaram o prosseguimento das negociações e, consequentemente, a concretização dos

direitos.

O discurso do Prefeito era algo maravilhoso! Eu fui a duas reuniões com ele e

depois me recusei. Não vou nunca mais. Ele era incapaz de dar um não. Agora, era

incapaz de cumprir uma palavra. (RPJ)

Em relação ao direito à saúde, os depoimentos demonstram certa ambiguidade sobre

como ele foi apresentado no processo judicial em si, embora alguns indiquem que vários

aspectos desse direito se encontravam violados, sendo uma das principais reivindicações da

comunidade. Essas violações foram utilizadas na fundamentação da Ação Civil Pública, mas

não foram indicadas entre as determinações na sentença.

150

Quando a gente moveu essa ação diante do poder judiciário, eu não tenho

conhecimento. Foram dez ou mais de 10 itens que a gente exigiu, mas os principais

itens que a gente exigiu pra nossa comunidade foi educação, saúde e a segurança.

(RC)

De acordo com os depoimentos dos representantes das comunidades e dos

representantes da sociedade civil organizada, as condições de vida eram extremamente

precárias e as necessidades de saúde eram gerais:

Porque as condições de vida ali, [...] é de apavorar, porque não é um probleminha,

[...] são todos os problemas, muita coisa. (RSCO)

Também foi informado que faltava acesso à assistência psicológica e de saúde

mental para dar assistência às vitimas do uso de drogas e da prostituição infantil. Nas escolas,

esse tipo de atendimento também é uma necessidade, devido ao clima de tensão e violência

que permeia comunidade.

A gente exigiu a saúde também porque as crianças ficam debilitadas, quando eles se

envolvem muito cedo na prostituição, se envolvem na droga, [...] mentalmente,

também bole no psicológico. [...] Em uma comunidade com essa, [...] deveria ter um

posto médico bem avançado. (RC)

A gente pediu que, pra cada escola que o nossos filhos estudam, tivesse [...] um

psicólogo pra acompanhar nossos filhos. (RC)

Os relatos indicam que as necessidades relacionadas às condições de saúde e aos

serviços públicos essenciais na comunidade eram precários ou inexistentes. Faltava

atendimento às necessidades de atenção básica, pois não se tinha acesso a um Programa de

Saúde da Família próximo da comunidade nem acesso à assistência hospitalar adequada:

Há, não pode. Porque aqui é a unidade de saúde da família. Essa área aqui é fechada

e a gente já tem as famílias cadastradas. (RSCO)

Ela disse, [...] é a SAMU que levou uma senhora e tá trazendo de volta porque não

tem onde enternar. E me levou lá pra dentro. [...] O primeiro barraco que eu entrei, o

barraco só tinha a coberta, você chegava já via tudo por dentro, que eram só as

tirinhas de madeira. A mulher com um barrigão deste tamanho, com os olhos

abertos, a casa fedia tanto no mundo. Aí, eu olhei o fogo apagado, o chão todo

molhado. Aí, ela disse, [...] o neto saiu para pedir esmola e ela fica só. (RSCO)

Além disso, afirmou-se também que a comunidade era discriminada pela sociedade e

pelos prestadores de serviços públicos:

O que eu faço? Aquela mulher que você visitou, morreu. E o IML não quer vim

porque não tá acreditando. [...] Tome o telefone e ligue daí pra o IML, pra ver se

eles vem. (RSCO)

Desse modo, observou-se que essas comunidades eram discriminadas por parte da

151

sociedade e dos órgãos públicos, que as condições de vida eram precárias, pois não tinham

acesso ao trabalho e à renda, à moradia, ao saneamento básico, à alimentação adequada, à

educação, à assistência social e à segurança, ou seja, as necessidades de saúde eram

generalizadas, seja pelos determinantes socias existentes na comunidade, seja pela falta de

acesso aos serviços de atenção básica, de assistência médica e hospitalar.

Em relação à educação, houve resistência por partes de algumas mães, devido às

escolas não serem na comunidade.

A gente tentou também inserir a comunidade na escola, a gente conseguiu vagas

específicas para a comunidade e teve uma resistência muito grande das mães porque

não era na comunidade. Você tem, assim, uma doença familiar muito grande. (RPJ)

O representante da comunidade alega que, em 2010, foi instalada uma creche para

atender crianças de 2 a 5 anos de idade, além de serem disponibilizadas vagas em bairros

próximos da orla lagunar. No entanto, foi assegurado o transporte escolar apenas para as

crianças da creche, permitindo que as crianças que estudassem em escolas próximas da creche

pudessem utilizar o transporte escolar condicionando-se à compatibilidade de horário.

[...] falta transporte para as crianças maiorzinha, porque o ônibus é pra criancinhas

da creche e a creche funciona de 8:00 hs e a escola de 7:00 hs (RC)

Os depoimentos também indicam que, apesar de ter sido garantido o acesso à escola,

a falta de atividades de esporte, cultura e lazer e de capacitação profissional para as crianças e

adolescentes na comunidade contribui para a manutenção do trabalho infantil.

Todo mundo estuda, mas falta atividade para os adolescentes, um esporte, alguma

coisa pra não ficar na rua quando não tão na escola. Os meus irmãos tão aqui com a

minha mãe despinicando sururu, pra não tá solto na rua, mas minha mãe sabe que se

verem eles aqui, ela pode ser presa, mas fazer o que? (RC)

Outra necessidade atendida como reflexo da decisão judicial e da mobilização da

comunidade diz respeito à moradia. O poder público, para atender a essa necessidade,

distribuiu várias famílias em residências localizadas em diferentes comunidades. A primeira

remoção ocorreu em 2009, onde 500 famílias passaram a residir no conjunto habitacional

Cidade Sorriso, construído pelo município e localizado numa região distante do centro da

cidade e da orla lagunar.

Em 2010, foram removidas pelo governo estadual mais 821 famílias da orla lagunar

para a comunidade Santa Maria, também distante do centro e da orla. Outras 240 unidades

habitacionais foram entregues na Vila São Pedro, nas proximidades das antigas residências.

152

Isso para as famílias que viviam de atividades relacionadas à pesca.

Com a remoção das famílias para outras comunidades, inevitavelmente as ações para

atender às determinações da sentença passaram a ser distribuídas para as comunidades

receptoras.

Entretanto, essa ação não atendeu plenamente às demandas da comunidade; a falta de

acompanhamento na remoção das famílias e a não destruição dos barracos permitiu a sua

continuidade na orla lagunar. O que se depreende dos depoimentos é que essa ação deveu-se

ao momento de judicialização, embora não estivesse diretamente nela contemplada.

Veio toda a equipe da prefeitura, da secretaria de planejamento, da habitação do

município. Eles fizeram um trabalho de preparação quando [...] houve muita

pressão. Uma coisa que foi cumprida por parte, que eu não sei quanto eram, mais ou

menos, as casas. [...] Eu só sei que o restante daquele pessoal ficou lá. (RSCO)

Identificou-se também que a manutenção dos barracos propiciou o distanciamento

entre seus moradores e os das famílias que passaram a morar nos apartamentos, do outro lado

da avenida, contribuindo para desmobilizar os moradores e as lideranças comunitárias.

Eu fui a umas reuniões que [...] me mandava, mas não vou mais, porque a gente fica

visado pelo povo que continua do outro lado, porque a gente ganhou nosso

apartamento. (RC)

No entanto, identificou-se que as famílias que tiveram acesso à moradia, melhoram a

sua condição de vida e saúde.

Encontro uma vez ou outra com os meninos todos já gordinhos, que conseguiram

morar nos apartamentos. Que já estavam trabalhando num emprego doméstico. Para

algumas pessoas houve uma melhoria de vida. (RSCO)

Já em relação à saúde, os depoimentos indicam que essa demanda não foi atendida e

que a decisão judicial não alterou as condições de acesso e de atendimento dos serviços de

saúde disponíveis às comunidades da orla lagunar, inclusive para as famílias da Vila São

Pedro.

A saúde, não aconteceu nada, nada. A Ação na saúde, nem municipal e nem

estadual, nada. (RSCO)

Pra a gente conseguir uma consulta pra mim ou pro meu filho a gente tem que

dormir no posto do Dique Estrada. (RC)

Segundo os depoimentos, a Secretaria Municipal de Saúde se esquivou de participar

das negociações para implementação das ações a serem desenvolvidas para atender às

153

necessidades de saúde da comunidade, pois...

a Secretaria Municipal de Saúde foi a que menos se posicionou, não teve reunião,

não respondia aos nossos chamados de estratégias e de políticas de saúde. [...]. A

gente teve pouca interlocução e não foi por motivo da gente não tentar, ou melhor,

assim, a gente não ter acionado. (RSCO)

Na fala dos atores sociais da sociedade civil, pode-se perceber que, nas comunidades

da orla lagunar, a decisão judicial foi ineficaz em relação ao trabalho infantil e na atenção à

saúde. Em relação à educação, moradia e assistência social as determinações foram atendidas

de modo parcial.

No conjunto habitacional Cidade Sorriso, os moradores reconhecem a importância de

terem tido acesso à moradia, mas afirmam que não têm acesso a trabalho, tendo como renda o

recurso do Programa Bolsa Família, o que afeta as relações familiares.

Bem, eu te falo e repito, a doença maior de nossa comunidade é miséria, não é nem a

miséria do alimento. [...] Uma estrutura digna. Não importa essas casinhas de tijolos

se a gente não tem emprego, a gente não tem um curso pra tirar renda pra ajudar

nossos filhos. (RC)

Em relação ao provimento do direito à educação, os moradores informam que nem

todas as crianças tiveram acesso à escola, à creche e a atividades de esporte, cultura e lazer.

[...] até hoje, ainda temos crianças fora da escola. Nem todas as crianças

conseguiram ser matriculadas, porque o conjunto aumentou. (RC)

Porque a partir do momento que a comunidade tem uma educação, tem cultura, tem

trabalho social, eu acho que a demanda de ter roubo, de ter tráfico vai ser muito

pequena. (RC)

Em relação ao atendimento das necessidades de saúde, afirma-se que as famílias têm

acesso à unidade básica de saúde e que está sendo instalada uma equipe do PSF, mas

consideram o atendimento precário e insuficiente.

Era unidade mista, atendia várias pessoas da comunidade, não atendia

especificamente só Sorriso I. Quando a gente ia pegar uma ficha lá, tinha que

dormir. (RC)

No entanto, o poder executivo alega que a comunidade foi dotada de toda

infraestrutura e serviços públicos para atender às famílias beneficiadas pela judicialização.

Então, todos os secretários relacionados a essa ação estavam lá e a informação que

nos foi passada é que na Cidade Sorriso, que é um projeto novo, já foi feito com

toda infraestrutura, já foi feito com colégio, centro de saúde, inclusive da questão da

segurança, que tem um centro de referência da guarda municipal junto com a PM,

foi feito toda essa infraestrutura. (RPE)

154

Pode-se perceber que os relatos dos moradores dessa comunidade também se

contrapõem aos dos representantes do poder executivo, pois afirmam que pouco se avançou

na implementação de políticas públicas para realização dos direitos indicados na determinação

da sentença, além do acesso à moradia.

Na comunidade Santa Maria, os relatos indicam que foi instalado, e se encontra em

funcionamento, um posto de segurança. Uma escola foi construída, mas ainda não se encontra

em funcionamento. Também estão sendo construídos um posto de saúde e a sede da

associação de moradores.

Aqui saúde tá precária, educação tá precária, a única coisa que tem no momento, é a

segurança. A gente já tem aqui dentro. (RC)

Tem um colégio, bem dizer, já devia tá funcionando dentro da área, que é

principalmente pras crianças que veio da orla lagunar. [...] E o colégio tá aí e não

funciona. (RC)

O posto de saúde que tá sendo construído, é lindo! Não vi ainda na cidade um posto

bacana desse. Também tá em construção a sede da associação, enorme! (RC)

Em relação ao atendimento ao direito à educação, essa comunidade afirma que o

atendimento encontra-se precário porque as escolas que atendem a crianças e adolescentes

localizam-se fora da comunidade, dificultando o acesso e expondo os estudantes a riscos de

acidente. Além disso faltam vagas.

[...] Tem criança matriculadas em colégios fora da comunidade e tem crianças que

não tão estudando. Eu chego na casa da mãe, porque essa criança não tá estudando?

Não tem vaga. O outro é longe demais. (RC)

Quanto às necessidades de saúde, é dito que a comunidade tem encontrado

dificuldade de atendimento na unidade de saúde do bairro.

[...] já tá com um ano que eu fui ao médico e marquei quatro exames e até agora não

consegui. [...] E a reclamação é muita. (RC)

Apesar de todo esse contexto, a questão do acesso à moradia foi indicada como uma

conquista importante para a comunidade.

Pra mim, o que mudou foi a gente sair de um lugar precário, que era a orla lagunar, a

gente simples pra uma casinha simples, mas uma moradia digna. (RC)

Evidenciou-se nos relatos dos moradores que as políticas públicas desenvolvidas não

estão vinculadas a uma decisão judicial, mas a uma iniciativa do governo estadual.

Foi um planejamento lá de dentro, que saiu de lá de dentro da SEINFRA pra

155

comunidade da favela. (RC)

Também ficou evidente que a prefeitura não vincula a comunidade Santa Maria à

Ação Civil Pública, indicando que a construção do conjunto resulta de um acordo entre o

governo estadual e o municipal, com o intuito de desocupar e reestruturar a orla lagunar.

No caso da Cidade Sorriso, sim. As outras comunidades não são objetos da Ação.

[...] Com relação à Ação em si, o pessoal que foi removido para Cidade Sorriso, foi

exatamente esse acordo entre Estado e Município, a retirada e a liberação da orla.

(RPE)

Essa comunidade está sendo dotada de uma estrutura de moradia e de serviços de

educação, saúde, assistência social e segurança mais qualificada que as outras que foram

beneficiadas pela Ação. No entanto, o governo estadual, municipal e a própria comunidade

não vincula essas ações que estão sendo implementadas à decisão judicial.

Exigibilidade de direitos: limites e possibilidades para efetivação do direito à saúde

Pode-se observar, nessa descrição desse caso de exigibilidade de direitos, que o

poder municipal, ao responsabilizar as mães pelo trabalho infantil e exploração sexual, agiu

como se os direitos sociais os quais dizia estar protegendo fossem indissociáveis dos direitos

políticos que estava deixando de garantir, reforçando uma configuração distorcida dos direitos

sociais, constituindo, assim, um lugar em que a igualdade prometida pela lei reproduz e

legitima as desigualdades, reproduzindo uma cidadania restrita, onde os direitos sociais são

dissociados dos direitos políticos (TELLES, 1999).

Desse modo, o Estado naturaliza a exclusão social, responsabilizando os próprios

indivíduos por se encontrarem na pobreza e na miséria, eximindo-se de sua responsabilidade

histórica de descumprimento de suas obrigações no provimento dos direitos assegurados,

apesar de ser o principal regulador das relações sociais, contribuindo para a conjuntura

neoliberal. Além disso, insiste em reconfigurar as conquistas sociais para manter velhas

dinâmicas de gerir a coisa pública.

Nessas comunidades constituiu-se uma subclasse de pessoas que passam a viver em

espaços socialmente isolados, vítimas do desemprego, detentoras de baixa escolaridade e

qualificação profissional, com tendência a cair na atividade criminal, formando uma

sociedade civil incivil habitada pelos totalmente excluídos (SANTOS, 2003).

Por outro lado, essas comunidades atraíram vários atores sociais que se articularam,

156

formando uma rede social de informação e mobilização, constituindo um mecanismo de

pressão para a defesa dos direitos humanos, de uma vida digna e da democracia, contra a

desigualdade e a discriminação. Isso fortaleceu a sociedade civil para transformar a sociedade

política e garantir os direitos assegurados constitucionalmente (SCHERER-WARREN, 1993).

A análise desse caso de exigibilidade evidencia que um processo dessa natureza se

constitui numa movimentação que permite reinventar a política a partir da participação de

diferentes atores, desencadeando um processo de negociação para garantir a efetivação dos

direitos sociais, buscando alternativas efetivas, inovadoras e inusitadas de ação política e

intervenção pública.

De certo modo, a judicialização coletiva para correção da violação dos direitos

sociais inovou na forma de abordar as questões sociais, tendo em vista a indissolubilidade e a

interdependência que lhes são inerentes. Nesse sentido, tornou-se um dispositivo mais

integralizador, pois evocou a intersetorialidade como elemento fundamental no planejamento,

execução e controle da prestação de serviços, com a finalidade de garantir o acesso

positivamente desigual aos desiguais, num universo o mais totalizador possível do conjunto

da população (BARCELOS; VASCONCELLOS; COHEN, 2010).

Nesse sentido, a decisão judicial em análise concebeu a saúde como um direito

humano fundamental, cuja promoção pressupõe outros requisitos básicos, que exige a ação

conjunta de outros setores sociais e econômicos e dos governos mediante a realização de

medidas que promovam a efetivação dos direitos sociais.

No entanto, apesar do direito à saúde ter sido identificado como um direito violado

na fundamentação da Ação Civil Pública, ele não foi prescrito diretamente na sentença. Isso

fez com que a prefeitura e a própria secretaria municipal de saúde não se sentisse compelida a

atuar diretamente no atendimento das determinações, prevalecendo a visão setorial e

fragmentada na formulação e implementação das políticas públicas providas pelo Estado à

população. Esse comportamento do poder executivo se alinha ao projeto hegemônico de

desconstrução de direitos sociais e de avanço do neoliberalismo que “tem como premissa

concepções individualistas e fragmentadoras da realidade, em contraposição às concepções

coletivas e universais do projeto contra-hegemônico” (BRAVO, 2006, p.15).

Essa conduta do município desrespeita o que prescrevem os princípios e as normas

que fundamentam o direito à saúde, pois os direitos relativos à educação, alimentação e

157

nutrição, à liberdade de associação, a igualdade, a participação e a não discriminação são

elementos integrantes e indivisíveis da realização do mais alto nível possível de saúde da

população (TARANTOLA et al., 2008).

Do mesmo modo, a prefeitura se distancia da concepção de saúde quando desenvolve

ações no campo da assistência médica nas comunidades de forma pontual, desarticulada das

demais ações, como moradia e educação, sem planejamento intersetorial e sem estabelecer um

canal de diálogo e de participação dos sujeitos de direitos nas decisões.

A análise da percepção do poder executivo municipal nesse processo de exigibilidade

evidenciou a forma como o poder político se comporta diante do seu dever de garantir os

direitos e de como formula e implementa as políticas públicas para sua concretização.

Surpreende o modo como os governantes lidam com a precariedade dos serviços públicos dos

quais dependem a qualidade de vida da maioria da população. Isso deixa claro que as

consequências adversas do desenvolvimento econômico não são explicações suficientes para

a manutenção do caráter predatório predominante na sociedade brasileira, na qual o exercício

do poder político e econômico não tem encontrado limites, logo os direitos não são

respeitados, mesmo aqueles consagrados em lei ou corporificados em instituições. Daí a

permanente e tranquila transgressão como parte da cultura política brasileira, porque nela está

ausente o critério de responsabilidade, onde o bem público se confunde com o Estado, com os

interesses daqueles que representa ou com a boa vontade dos governantes (TELLES, 1999).

Desse contexto, depreende-se que é importante haver mecanismos institucionais que

visem promover a responsabilização legal, política e social, estabelecendo, de fato, a

prestação de contas como um dever a ser cumprido pelos governantes e demais atores sociais

envolvidos.

Nesse sentido, a atuação do MP no processo demonstrou a importância do

fortalecimento dos mecanismos de controle do poder estatal e a capacidade institucional de

interlocução, possibilitando a interação entre os principais atores que compõem o processo de

formulação, gestão e fiscalização das políticas públicas, correspondendo à sua atribuição e

posição de destaque na defesa e efetivação dos direitos sociais (ASENSI, 2010).

Os limites na estrutura jurídico-institucional, nos quais esbarrou a atuação do MP

para garantir o cumprimento da decisão judicial por parte do Poder Executivo, demonstram

que o êxito da luta política pela democratização da esfera estatal deve ser articulada à luta

158

pela democratização da sociedade civil por meio da garantia do exercício pleno da cidadania,

para que de fato se garanta a reconstrução da esfera pública e se avance na construção de um

sistema democrático de caráter emancipatório (SANTOS, 2003).

Nesse sentido, a decisão judicial fortaleceu a luta política dos moradores das

comunidades beneficiadas e a parceria com as entidades organizadas. Por terem formalmente

reconhecidas as suas demandas e ampliada a possibilidade de ter seus direitos efetivados,

passaram a se mobilizar para cobrar do Poder Judiciário a sua manutenção e do município o

seu cumprimento.

No entanto, verificou-se que a participação da comunidade ficou restrita a algumas

mobilizações à porta do Tribunal e da Prefeitura, ao pronunciamento nas poucas audiências

públicas coordenadas pelo Ministério Público e em reuniões nas quais os representantes do

poder executivo apresentavam as ações e os serviços que seriam desenvolvidos e

disponibilizados nas comunidades.

Isso foi evidenciado nos depoimentos dos atores sociais sobre esse processo judicial,

demonstrando que as esferas públicas do Estado não dispõem de mecanismos que funcionem

como canais de interlocução permanente entre a sociedade civil e o Estado, um fator limitante

da participação ativa dos moradores nas decisões relacionadas às políticas públicas que seriam

implantadas para garantia de seus direitos.

Desse modo, é preciso que os governos garantam o direito de todos os membros da

sociedade de participar ativamente dos assuntos da comunidade em que vivem, garantindo a

sua participação na adoção de políticas em todos os níveis da administração pública, visto

que, como geralmente as políticas públicas são formuladas e controladas pelo Estado, elas

também se inserem no âmbito de suas obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos

humanos, incluindo o direito de participar nos assuntos públicos, a igualdade, a não

discriminação e a dignidade (TARANTOLA et al., 2008).

Considerações finais

A análise do processo de exigibilidades de direitos da orla lagunar de Maceió nos

mostrou que, apesar dos limites que dificultaram a efetivação dos direitos assegurados,

inclusive à saúde, a atuação conjunta dos diferentes atores sociais da sociedade civil e do

próprio Estado podem se articular em defesa dos direitos sociais para que avancem na

159

conquista da cidadania, no redimensionamento da cultura política dos agentes públicos e na

realização do direito a uma vida digna.

Embora a maioria das determinações da sentença não tenham sido cumpridas, o

processo de exigibilidade permitiu que o poder executivo fosse responsabilizado e prestasse

contas de suas obrigações em relação ao provimento dos direitos daquelas comunidades,

ficando claro que as ações desenvolvidas, apesar de insuficientes e inadequadas, não teriam

sido realizadas se a decisão judicial não existisse.

Também como atores socias, os moradores dessas comunidades, além de terem

acesso a alguns bens e serviços públicos, foram reconhecidos e se reconheceram como

sujeitos de direitos e ampliaram suas perspectivas referentes à luta por uma vida digna e um

futuro melhor para os seus filhos.

Nesse processo também se percebeu que as instâncias jurídicas envolvidas

enfrentaram o desafio de utilizar os mecanismos jurídicos disponíveis para garantir a

realização dos direitos assegurados, bem como reconhecer os limites a serem superados para

que avancem no cumprimento de suas prerrogativas institucionais.

Também se demonstrou que se deve fortalecer e ampliar os mecanismos de

identificação e de acompanhamento para que as ações governamentais e as políticas públicas

sejam monitoradas e possam ser visualizadas em seu desenvolvimento e direcionamento, o

que garante a transparência e o acesso às informações que permitem a sociedade civil atuar

junto ao Estado e exerça o seu papel de acompanhar, propor e fiscalizar os bens públicos,

impelindo assim, os agentes públicos a cumprirem com o seu dever de proteger e prover os

diretos assegurados a todos os cidadãos.

Já no tocante ao direito à saúde, evidenciou-se o quanto, na prática, estar-se distante

a sua efetivação, considerando os princípios e normas dos direitos humanos em relação à

igualdade, não discriminação, empoderamento e participação ativa dos titulares de direitos.

Também se identificou que o direito à saúde não foi assegurado segundo preconizam os

organismos e as normas da saúde em relação ao atendimento das necessidades de saúde e a

intersetorialidade das ações como uma das condições necessárias para garantia de que todos

possam alcançar o mais alto nível possível de bem-estar social, físico e mental.

Referências

160

ALBUQUERQUE, F.; BURITY, V. A exigibilidade do direito humano à alimentação

adequada através de estratégias de populações urbanas empobrecidas. In: BEZERRA, C. V;

COSTA, S. M. A. (Org.). Exigibilidade do direito humano à alimentação adequada:

experiências e desafios. Passo Fundo: IFIBE, 2008. p.145 - 171.

ASENSI, F. D. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na

saúde. Revista Physis, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p. 33-55, 2010.

BARCELOS, M. R. B.; VASCONCELLOS; L. C. F.; COHEN, S. C. Políticas públicas para

adolescentes em territórios vulneráveis. Revista Brasileira de Promoção de Saúde, Fortaleza,

vol. 23, n. 3, p. 288-294, 2010.

BRAVO, M. I. S. Políticas públicas de saúde no Brasil - Serviço Social e Saúde: Formação e

Trabalho Profissional. Cortez, 2006. Disponível em:

<http://www.servicosocialesaude.xpg.com.br/texto1-5.pdf> Acesso em: 22 de jun. 2013.

GIBBS, G. Análise de dados qualitativos. Trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre:

ARTMED, 2009. 198 p. (Coleção Pesquisa qualitativa/coordenada por Uwe Flick).

HANSEN, J.K.; SANO, H. The implications and value added of a rights-based approach. In:

ANDREASSEN, B. A.; MARKS, S. P. Development as a Human Right: legal, political, and

economic dimensions. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press. 2006,

p.36-56.

I Conferência Internacional sobre a Promoção de Saúde, Carta de Ottawa, 1986.

Disponível em: <http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Ottawa.pdf.> Acessado em: 13

de mai. 2013.

JACOBI, P. Poder local, políticas sociais e sustentabilidade. Revista Saúde Sociedade, São

Paulo, vol.8, n.1, p. 31-48, 1999.

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4. ed. São

Paulo – Rio de Janeiro: HUCITEC/ABRASCO, 1996. 132 p.

PIRES, M. R. G. M.; DEMO, P. Políticas de saúde e crise do Estado de Bem-Estar:

repercussões e possibilidades para o Sistema Único de Saúde. Revista Saúde Sociedade, São

Paulo, vol.15, n.2, p. 56-71, 2006. ISSN 0104-1290.

SANTOS, B. S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais,

Coimbra: Portugal, vol.65, maio, p. 3-76, 2003.

161

SCHERER-WARREN, I. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

(Coleção Estudos Brasileiros).

TARANTOLA, D. et al. Human Rights, Health and Development. Technical Series Paper

Sydney: The UNSW, 2008. Disponível em:

<http://www.ihhr.unsw.edu.au/publications/papers.html> Acesso em: 10 de fev. 2013.

TELLES, V. S. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: UFMG, 1999. 193 p.