[josé william craveiro torres] capitu - exemplo maior de personagem do romance moderno no brasil

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CAPITU: EXEMPLO MAIOR DE PERSONAGEM DO ROMANCE MODERNO NO BRASIL Es. José William Craveiro Torres (UFC) 1 INTRODUÇÃO Sempre que ouvimos falar em conto, em crônica, em novela e em romance e até em epopeia é impossível não pensarmos, imediatamente, nos cinco elementos da narrativa que compõem esses subgêneros literários: enredo, espaço, tempo, personagens e narrador. Dentre esses elementos, é a personagem, sem dúvida nenhuma, aquele que mais se destaca, uma vez que é em torno dela que, em maior ou em menor grau, os outros gravitam: a personagem, que em muitos casos ocupa o papel de narrador da história, vive, num certo local, numa determinada época, o enredo. Desse modo, a personagem parece ser o elemento em torno do qual a narrativa estrutura-se; porém, com isso, não estamos querendo dizer que aquela seja sempre o elemento mais importante desta e que, sozinha, a personagem seja capaz de garantir o sucesso de qualquer obra literária em prosa (ou em verso, no caso duma epopeia). Na verdade, não podemos esquecer nunca de que a personagem é só um dos cinco elementos da narrativa e de que esta só existe satisfatoriamente quando todos os seus elementos apresentam-se ao leitor em perfeita harmonia. Sobre essa questão da importância da personagem para as narrativas e, em especial, para o romance, bem como sobre a relação que a personagem deve estabelecer com os outros elementos da narrativa, Antonio Candido diz-nos o seguinte, em A Personagem de Ficção (1976): [...] a personagem [...] representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enrêdo e as idéias, e os torna vivos. [...] Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura dêste dependa bàsicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. [...] Isto nos leva ao erro, freqüentemente repetido em crítica, de pensar que o essencial do romance é a personagem, como se esta pudesse existir separada das outras r[e]alidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Feita esta ressalva, todavia, pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e comêço do XX; mas que só adquire pleno significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção estrutural é o maior responsável pela fôrça e eficácia de um romance. Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enrêdo e a personagem, que representam a sua matéria; as “idéias”, que 1 José William Craveiro Torres é especialista n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Ceará UECE , mestrando em Letras pela Universidade Federal do Ceará UFC , sob orientação dos professores doutores Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros e Elizabeth Dias Martins, e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES.

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Page 1: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

CAPITU: EXEMPLO MAIOR DE PERSONAGEM DO ROMANCE

MODERNO NO BRASIL

Es. José William Craveiro Torres (UFC)1

INTRODUÇÃO

Sempre que ouvimos falar em conto, em crônica, em novela e em romance – e até em

epopeia – é impossível não pensarmos, imediatamente, nos cinco elementos da narrativa

que compõem esses subgêneros literários: enredo, espaço, tempo, personagens e narrador.

Dentre esses elementos, é a personagem, sem dúvida nenhuma, aquele que mais se destaca,

uma vez que é em torno dela que, em maior ou em menor grau, os outros gravitam: a

personagem, que em muitos casos ocupa o papel de narrador da história, vive, num certo

local, numa determinada época, o enredo. Desse modo, a personagem parece ser o elemento

em torno do qual a narrativa estrutura-se; porém, com isso, não estamos querendo dizer que

aquela seja sempre o elemento mais importante desta e que, sozinha, a personagem seja

capaz de garantir o sucesso de qualquer obra literária em prosa (ou em verso, no caso duma

epopeia). Na verdade, não podemos esquecer nunca de que a personagem é só um dos cinco

elementos da narrativa e de que esta só existe satisfatoriamente quando todos os seus

elementos apresentam-se ao leitor em perfeita harmonia. Sobre essa questão da importância

da personagem para as narrativas e, em especial, para o romance, bem como sobre a relação

que a personagem deve estabelecer com os outros elementos da narrativa, Antonio Candido

diz-nos o seguinte, em A Personagem de Ficção (1976):

[...] a personagem [...] representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção,

transferência etc. A personagem vive o enrêdo e as idéias, e os torna

vivos. [...] Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de

mais vivo no romance; e que a leitura dêste dependa bàsicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. [...] Isto nos leva

ao erro, freqüentemente repetido em crítica, de pensar que o essencial do

romance é a personagem, – como se esta pudesse existir separada das outras r[e]alidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Feita esta

ressalva, todavia, pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais

comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e comêço do XX; mas que só adquire pleno

significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção

estrutural é o maior responsável pela fôrça e eficácia de um romance.

Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enrêdo e a personagem, que representam a sua matéria; as “idéias”, que

1 José William Craveiro Torres é especialista n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual

do Ceará – UECE –, mestrando em Letras pela Universidade Federal do Ceará – UFC –, sob orientação dos

professores doutores Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros e Elizabeth Dias Martins, e bolsista da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

Page 2: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

representam o seu significado, – e que são no conjunto elaborados pela

técnica), êstes três elementos só existem ìntimamente ligados,

inseparáveis, nos romances bem realizados (CANDIDO; ROSENFELD; PRADO et al, 1976, pp. 54-55).

Como vimos, Antonio Candido aponta, a partir de alguns aspectos (capacidade de

atrair a atenção do leitor, a partir dos processos de identificação e projeção; viver o enredo

e as ideias do escritor), a importância da personagem para o romance; contudo, esse grande

crítico literário não se esquece de ressaltar que ela, a personagem, só existe intimamente

ligada às ideias do escritor e aos outros elementos da narrativa, os quais colaboram, e

muito, para o destaque da personagem dentro da história e para o sucesso desta perante os

leitores. Assim, para Candido (1976), um romance “bem realizado” traz sempre estes três

elementos, “ìntimamente ligados”: enredo, personagem (ou personagens) e ideias.

Também tem mais chance de obter êxito um romance que, à vista do leitor, é

verossímil. Por verossimilhança podemos entender a capacidade que algo tem de parecer

verdadeiro. Dessa forma, e pelo que já vimos acerca da importância da personagem para

uma narrativa em prosa, um romance é ainda mais verossímil quando as suas personagens

parecem seres reais; ou seja, comportam-se como as pessoas que vivem no mundo real2.

Em regra, as personagens mais verossímeis da Literatura Universal são aquelas que, como

acontece às pessoas do mundo real, estão sempre a escapar duma análise psicológica que se

quer única e verdadeira, por mais pormenorizada que esta pretenda ser3.

Na Literatura Brasileira, nenhuma personagem escapa mais a uma análise psicológica

desse tipo, e, por isso, é mais objeto de controvérsia, que Capitu, do romance Dom

Casmurro, de Machado de Assis: de sua personalidade pouco ou nada sabemos; da mesma

forma como não nos é permitido falar, com exatidão, da personalidade de uma pessoa com

a qual nos relacionamos, ainda que diariamente.

Com base nas ideias de Antonio Candido em torno da personagem do romance4, que

serão expostas ao leitor em seguida, na primeira parte deste trabalho, mostraremos que

Capitu é o exemplo maior de personagem do romance moderno5 no Brasil. Para tanto,

faremos, na segunda parte deste ensaio, um paralelo entre a personagem machadiana em

questão e duas outras conhecidas personagens femininas da Literatura Brasileira: Isaura (ou

Elvira), do romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; e Luisinha, de Memórias

de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Esta obra, pertencente ao que

2 Para Candido (1976, p. 55), “o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um

ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica[r] a impressão da mais lídima verdade

existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de

relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização dêste”. 3 “o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da

técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o

conhecimento dos nossos semelhantes” (CANDIDO, 1976, p. 58). 4 As ideias de Antonio Candido que giram em torno da personagem do romance e com as quais trabalharemos

aqui neste ensaio foram retiradas do capítulo “A personagem do Romance”, do livro A Personagem de

Ficção. 5 De acordo com Candido (1976), a novelística moderna “se configurou nos séculos XVIII, XIX e comêço do

XX” (p. 54) e caracterizou-se, dentre outras coisas, de acordo com a doutoranda Simone Cristina Mendonça

de Souza (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp), que estudou a produção e a circulação de

romances no início do século XIX, no Brasil, pelo “relato de acontecimentos verossímeis, vividos por

personagens que apresentam particularizações e, ainda, [pel]a identificação do leitor com os mesmos”

(2005, p. 35).

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convencionalmente chamamos, ao estudarmos a história da Literatura Brasileira, de Fase de

Transição (ou seja, período histórico-literário situado entre o Romantismo e o Realismo);

aquela, ao Romantismo; e ambas, ao século XIX, assim como Dom Casmurro, de Machado

de Assis. Na Conclusão, reafirmaremos o que já foi dito no título deste trabalho e daremos

mais ênfase ao que foi constatado a partir do cotejo que realizamos, na segunda parte deste,

entre Capitu e as personagens femininas de Bernardo Guimarães e Manuel Antônio de

Almeida.

Finalmente, devemos dizer que o tema deste ensaio deveu-se, em boa medida, ao fato

de termos comemorado, em 2008, o centenário de morte daquele que, para o crítico literário

norte-americano Harold Bloom (2003, p. 687), foi “o maior literato negro surgido até o

presente”, o “mais original dos romancistas brasileiros” (2003, p. 688): estamos falando,

claro, de Joaquim Maria Machado de Assis. Este, mais do que ninguém, buscou desvendar,

à sua época e à sua maneira (singular), a alma humana nos seus mais variados aspectos. Foi

Machado de Assis o escritor que, sem dúvida nenhuma, consolidou (ou “introduziu”; se

falarmos, como é a proposta deste trabalho, de personagens de alta complexidade

psicológica) o romance moderno no Brasil. Enfim, um autor genuinamente brasileiro que

não ficou a dever em nada para os grandes escritores da Literatura Universal e que elevou a

Literatura Brasileira a níveis de primeira grandeza. A Machado de Assis, o nosso

reconhecimento e os nossos aplausos (de pé)!

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERSONAGEM DO ROMANCE REALIZADAS POR

ANTONIO CANDIDO

As ideias de Antonio Candido em torno da personagem do romance que serão

expostas nesta primeira parte do ensaio foram extraídas, como dissemos já no intróito deste,

do capítulo “A personagem do Romance”, do livro A personagem de Ficção (1976). Vale

salientar que esse livro nasceu “de uma experiência de ensino” no “Seminário

Interdisciplinar [...] da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São

Paulo” (CANDIDO, 1976, p. 5), que foi realizada, em 1961, por Antonio Candido e por

estudiosos em Filosofia (Anatol Rosenfeld), em Teatro (Décio de Almeida Prado e Bárbara

Heliodora Carneiro de Mendonça) e em Cinema (Paulo Emílio Sales Gomes), e que girou

em torno da personagem de ficção. Tal Seminário Interdisciplinar tinha a pretensão, como

podemos perceber já pela forma como ele foi nomeado por Antonio Candido, de “pôr os

estudantes em contato com as várias faces de um problema complexo (o problema existente

em torno da personagem de ficção), a fim de que a teoria e a análise, do ponto de vista

literário, ficassem o mais esclarecidas possível pela incidência de outros focos (o da

Filosofia, o do Teatro e o do Cinema)” (CANDIDO, 1976, p. 6). Dito isso, passemos para

as ideias de Antonio Candido em torno da personagem do romance.

Para Antonio Candido, uma obra literária, sobretudo um romance, só se realiza

plenamente quando comunica aos leitores “a impressão da mais lídima verdade

existencial”, por meio “de um ser fictício” (CANDIDO, 1976, p. 55). Noutras palavras,

Candido quis dizer que uma obra literária só se realiza em toda a sua plenitude quando

prima pelo princípio da verossimilhança, ou seja, quando procura convencer o leitor,

através de suas personagens, de que tudo o que nela vai escrito pode ser verdade; é passível

de ser verdadeiro. Desse modo, o romance estabelece, inevitavelmente, uma relação com o

mundo real e, consequentemente, as personagens daquele, uma relação com as pessoas que

vivem neste. Assim, um romance é ainda mais verossímil quando as suas personagens

Page 4: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

trazem em si a mesma complexidade ou a mesma densidade psicológica das pessoas que

fazem parte do mundo real. Antonio Candido afirma que, cientes disso, os escritores do

século XIX (época em que despontaram o cientificismo, o materialismo, o psicologismo e o

romance documental, dentre outras coisas), sobretudo os da segunda metade, tentaram

imprimir mais realismo e mais verossimilhança às suas obras, aproximando as suas

personagens dos homens e das mulheres do mundo real, no que concerne ao aspecto

psicológico, ou seja, os autores procuraram, à maneira como acontece aos seres humanos,

em termos psicológicos, tornar as personagens de seus livros mais complexas, mais

misteriosas, mais difíceis de serem desvendadas, mais inesperadas e, consequentemente,

mais intrigantes, mais atraentes e mais convincentes para os leitores. Acerca disso, diz

Antonio Candido:

É claro que a noção do mistério dos sêres, produzindo as condutas

inesperadas, sempre esteve presente na criação de forma mais ou menos

consciente, – bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas só foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do século

XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico

dos sêres, seja o mistério metafísico da própria existência. A partir de investigações metódicas em psicologia, como, por exemplo, as da

psicanálise, essa investigação ganhou um aspecto mais sistemático e

voluntário, sem com isso ultrapassar necessàriamente as grandes intuições dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa visão na literatura. [...]

Essas considerações visam a mostrar que o romance, ao abordar as

personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no

plano da técnica da caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes

(CANDIDO, 1976, pp. 57-58).

Como vimos, os escritores do século XIX (principalmente os da segunda metade

desse século) procuraram tornar as personagens de seus romances mais complexas e mais

densas psicologicamente, a partir da supressão ou da seleção minuciosa, cuidadosa, das

suas falas, dos seus traços e dos seus gestos, de modo a quebrar com aquela unidade, com

aquela coesão, com aquela lógica da personagem que tinha sido pré-estabelecida pelos

escritores tradicionalistas (sobretudo os românticos) e que repousava no princípio duma

descrição, seja ela física ou psicológica, exaustiva e duma repetição de determinadas falas e

de certos comportamentos que, a custa de repetida, acabavam por caracterizar ou por

rotular as personagens. Vejamos as palavras de Antonio Candido acerca disso:

O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais êsse

sentimento de dificuldade do ser fictício, diminuir a idéia de esquema

fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista. Isto é possível justamente porque o trabalho de seleção e

posterior combinação permite uma decisiva margem de experiência, de

maneira a criar o máximo de complexidade, de variedade, com um mínimo de traços psíquicos, de atos e de idéias. A personagem é

complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os

elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se o compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada

instante, no modo de ser das pessoas. [...] vários escritores tentaram,

Page 5: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

justamente, conferir às suas personagens uma natureza aberta, sem

limites. Mas volta sempre o conceito enunciado há pouco: essa natureza é

uma estrutura limitada, obtida não pela admissão caótica dum sem-número de elementos, mas pela escolha de alguns elementos, organizados

segundo uma certa lógica de composição, que cria a ilusão do ilimitado

(CANDIDO, 1976, pp. 59-60).

Essa preocupação dos autores modernos, ou seja, daqueles que se encaixam, em

termos temporais, entre o século XVIII e o começo do século XX, no que concerne à

construção de suas personagens (sempre mais densas e complexas, em termos

psicológicos), acabou por encetar, já a partir do século XVIII, uma série de estudos em

torno do elemento da narrativa em questão. Assim, de acordo com Antonio Candido,

inúmeros críticos literários e estudiosos do romance debruçaram-se, no período assinalado

(séculos XVIII, XIX e início do XX), sobre a personagem e procuraram caracterizá-la e

rotulá-la. Embora Candido não tenha dito, em nenhuma parte do seu trabalho (“A

personagem do Romance”), que tais estudos setecentistas e oitocentistas possuíam um

caráter normativo, ou seja, que eles tinham por propósito guiar o fazer literário dos

escritores dos séculos XVIII e XIX e do início do XX, no que diz respeito à construção das

personagens dos seus romances, pensamos que o que foi apontado como o ideal de

personagem (pelo menos para a literatura da segunda metade do século XIX) por esses

críticos e estudiosos do romance tenha suscitado, em muitos dos autores de mil e setecentos

e de mil e oitocentos, à guisa de desafio, o desejo de construção de personagens mais

densas psicologicamente, elaboradas com mais cuidado.

Um dos estudiosos que se voltou para o estudo da personagem, no século XVIII, foi

Johnson. Este se debruçou sobre as personagens de Henri Fielding e de Richardson e

caracterizou-as da seguinte maneira: as de Fielding, como personagens de costumes, que

seriam aquelas apresentadas ao leitor mais superficialmente, facilmente identificadas por

um traço, por uma característica, em suma, seriam aquelas personagens às quais

chamaríamos caricaturais; as de Richardson, como personagens da natureza, aquelas

apresentadas ao ledor também no nível da superficialidade, mas, principalmente, a partir do

seu modo íntimo de ser, ou seja, mais a partir do seu aspecto psicológico; enfim,

personagens que não são facilmente identificáveis.

Candido (1976) assim resume as ideias de Johnson em torno das personagens de

costumes e das personagens da natureza:

Traduzindo em linguagem atual a terminologia setecentista de Johnson, pode-se dizer que o romancista “de costumes” vê o homem pelo seu

comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão

normal que temos do próximo. Já o romancista “de natureza” o vê à luz da

sua existência profunda, que não se patenteia à observação corrente, nem se explica pelo mecanismo das relações (CANDIDO, 1976, p. 62).

Já por volta do primeiro quartel do século XX, outro estudioso voltou-se para o

estudo da personagem: E. M. Foster. Foi ele quem cunhou os termos personagem plana,

personagem esférica (ou redonda) e homo fictus para caracterizar as personagens dos

diversos romances sobre os quais se debruçou. Por personagem plana podemos entender

aquela que, ao longo da narrativa, permanece sempre com as mesmas características físicas

e psicológicas; a que é identificada, nas obras, sempre por uma de suas características,

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justamente aquela que a representa de forma mais eficaz, durante toda a história; enfim, é

uma personagem caricatural. Já por personagem esférica (ou redonda) podemos entender

aquela que se apresenta ao leitor de forma mais complexa, capaz de surpreendê-lo ao longo

da narrativa, devido a uma brusca mudança de comportamento. Homo fictus, por sua vez,

diz respeito a toda e qualquer personagem: esse termo foi elaborado por Foster para

diferenciar a personagem das pessoas do mundo real, as quais ela procura imitar. O homo

fictus, diferente do que acontece ao homo sapiens, não vive intensamente todas as relações

humanas, mas somente aquelas que dizem mais respeito ao aspecto amoroso.

Para finalizar esta parte, devemos dizer que, apesar de ser verdadeira a ideia de que os

romances modernos, sobretudo aqueles que se enquadram na segunda metade do século

XIX e no começo do século XX, buscaram realizar um aprofundamento psicológico das

suas personagens para se tornarem mais verossímeis para os leitores, alguns continuaram,

no período histórico assinalado, com personagens de pouca ou nenhuma densidade

psicológica. Acontece que o tipo de personagem utilizado nas narrativas, sejam elas longas

ou curtas, sempre diz respeito – e isso não podemos nunca perder de vista – ao que o autor

quer alcançar com a sua obra ou mesmo aos preceitos da escola literária ou da agremiação à

qual ele se filia. Desse modo, o fato dos autores da segunda metade do século XIX e do

início do século XX terem dado ênfase, nas suas obras, às personagens de maior

complexidade psicológica, com vista a criar obras literárias verossímeis, condiz mesmo

com o espírito cientificista da época assinalada, bem com o tipo de romance que se

procurava escrever nesse período: romance-tese (ou romance de tese). Vejamos o que

Antonio Candido diz-nos sobre isso:

a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista. Quando, por exemplo, êste está

interessado em traçar um panorama de costumes, a personagem dependerá

provàvelmente mais da sua visão dos meios que conhece, e da observação de pessoas cujo comportamento lhe parece significativo. Será, em

conseqüência, menos aprofundado psicològicamente, menos imaginado

nas camadas subjacentes do espírito, – embora o autor pretenda o

contrário. Inversamente, se está interessado menos no panorama social do que nos problemas humanos, como são vividos pelas pessoas, a

personagem tenderá a avultar, complicar-se, destacando-se com a sua

singularidade sôbre o pano de fundo social (CANDIDO, 1976, p. 74).

2. DE ISAURA À CAPITU, PASSANDO POR LUISINHA

Como dissemos na introdução deste ensaio, faremos, nesta segunda parte, com base

nas ideias de Antonio Candido acerca da personagem do romance, apresentadas há pouco,

uma análise comparativa de três personagens femininas bastante conhecidas na Literatura

Brasileira: Isaura (ou Elvira), do romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães;

Luisinha, de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida; e

Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis. O objetivo de tal comparação é mostrar

que Capitu é a personagem mais representativa do romance moderno no Brasil, devido à

forma como ela se apresenta ao leitor, ou seja, com uma complexidade psicológica que a

aproxima imenso das pessoas que vivem no mundo real. Tal aproximação, ideal perseguido

sobretudo pelos escritores da primeira metade do século XIX, serve, na visão de Antonio

Candido, para tornar os romances mais verossímeis para os leitores. Vale salientar que

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escolhemos essas três personagens por elas pertencerem a três momentos distintos da

literatura moderna no Brasil: Isaura (ou Elvira) enquadra-se no grupo das personagens

românticas (primeira metade do século XIX); Luisinha, no das personagens de transição

(período histórico-literário entre o Romantismo e o Realismo, por volta de 1852-1853); e

Capitu, no das personagens realistas (segunda metade do século XIX). Devido mesmo à

extensão que um trabalho desta natureza exige, limitar-nos-emos, quando da constituição

do corpus a ser analisado, a, no máximo, cinco excertos de cada obra literária para

caracterizar a personagem que lhes é correspondente; entretanto, queremos deixar claro que

nos esforçamos para achar, dentro dos livros, sempre os trechos mais significativos sobre

cada uma das personagens.

A que primeiramente analisaremos será Isaura (ou Elvira). Não a escolhemos

aleatoriamente, mas por ser, ela, no que concerne ao aspecto histórico-literário, a

personagem da Literatura Brasileira que, dentre as que selecionamos, aparece primeiro: é

uma personagem tipicamente romântica. Vejamos alguns trechos de A Escrava Isaura, de

Bernardo Guimarães, para que possamos caracterizar, física e psicologicamente, a

protagonista do romance em questão. Em seguida, procederemos a uma análise dos

aspectos levantados, com base nas ideias de Antonio Candido em torno das personagens do

romance.

Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de

moça. As linhas do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da

caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São tão

puras e suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é como o marfim do teclado, alva que não

deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se

é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro

lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em

espessos e luzidios rolos, e como franjas negras escondiam quase

completamente o dorso da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e

suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no

seio diáfano o fogo celeste da inspiração. Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar vago pairava-lhe pelo espaço.

Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e

diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária

azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando-se-lhe em roda amplas

ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como

Vênus nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgido dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por

uma fita preta constituía o seu único ornamento (GUIMARÃES, 2008, pp.

10-11).

Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e

atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva e robusta

inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças da excelente velha (idem, p. 18).

Page 8: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

– Valha-me Deus! – pensou Isaura ao dar com os olhos no

jardineiro. – Que sorte é a minha! Ainda mais este!... este ao menos é de

todos o mais suportável: os outros me amofinam, e atormentam: este às vezes me faz rir (idem, pp. 32-33).

– Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te que veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna superior a

todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e inteligente, e uma

beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que sei de positivo a

respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são bastantemente escassos,

mas que em compensação ela é linda como os anjos, e tem o nome de

Elvira (idem, p. 75).

– Ai! triste de mim! – suspirou dentro da alma D. Elvira: – aqueles

mesmos que mais me amam, tornam-se, sem o saber, os meus algozes!... (idem, p. 89).

A partir da leitura dos trechos de A Escrava Isaura que foram selecionados,

podemos constatar que a longa descrição (algo bem próprio do Romantismo, diga-se de

passagem) em torno da personagem Isaura procura dar conta de seus caracteres físicos

(bela; belas madeixas negras; puras e suaves linhas; tez alva e delicada; colo donoso; busto

maravilhoso; cabelos soltos e fortemente ondulados; porte esbelto; cintura delicada) e

psicológicos (nobre; calma; misteriosa; singela; simples; inteligente; anjo), para não deixar

nenhuma dúvida para o leitor com relação à personagem com a qual ele está lidando.

Percebemos, a partir disso, que a descrição física é mais trabalhada pelo autor, em

detrimento da psicológica. Com relação especificamente ao aspecto psicológico, o narrador

(onipresente, onisciente) não dá a chance do leitor extraí-lo, por si só, da personagem,

através da maneira como ela se comporta ao longo do romance; o mesmo acontece com

relação ao que ela pensa: o narrador, onisciente, não dá ao leitor a possibilidade de

desvendar o que se passa na cabeça de Isaura, antes lhe conta tudo. Com relação à mudança

do nome da personagem de Isaura para Elvira, quando ela foge com seu pai para Recife,

devemos dizer que isso não traz nenhuma mudança em seu caráter e mesmo na sua

fisionomia: ela continua com as mesmas características físicas (beleza incomparável; linda)

e psicológicas (anjo; alma pura; nobre; inteligente), bem como com a mesma forma de

raciocinar. Também o narrador, por conta da sua onisciência, continua a saber tudo o que

Isaura, com o nome de Elvira, pensa. De acordo com as ideias de Antonio Candido acerca

da personagem do romance, Isaura (ou Elvira) é uma personagem que se caracteriza por sua

superficialidade, ou seja, o aspecto psicológico é pouco explorado pelo narrador; é uma

personagem pouco complexa, de costume, sob a ótica de Johnson. E, diferentemente do que

andam alardeando aí aos quatro cantos, Isaura não é uma personagem esférica (ou

redonda), pelo fato de mudar de nome e de endereço, pois ela continua, ao longo da obra,

quer com o nome de Isaura, quer com o nome de Elvira, agindo da mesma forma. Ela não

muda, inclusive, com relação à sua forma física e à sua maneira de pensar. Assim,

poderíamos dizer que Isaura é, antes, uma personagem plana com pretensões à esférica.

Isaura coaduna com a típica personagem do Romantismo, portanto. Não era próprio dessa

escola fazer uma análise psicológica pormenorizada das personagens; muito menos deixar

Page 9: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

isso a cargo dos leitores: tudo, no que diz respeito às personagens, era-lhes dado,

desvendado, revelado.

Passemos, agora, aos trechos de Memórias de um Sargento de Milícias que giram em

torno da personagem Luisinha, com o intuito de, em seguida, fazermos uma análise dessa

personagem com base, mais uma vez, nas ideias de Antonio Candido.

Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria

chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos,

e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não

tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o

queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe

apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça

sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma

viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado

de Alcobaça (ALMEIDA, 2007, p. 87).

Luisinha, uma vez extinto o entusiasmo que, suscitado pelas emoções que

experimentara na noite do fogo, acordara da sua apatia, voltara de novo ao

seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos,

nem para este último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e

olhos no chão (idem, p. 95).

Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma

mudança notável se começou a operar em Luisinha, a cada ora se tornava

mais sensível à diferença tanto do seu físico como do seu moral. Seus contornos começavam a arredondar-se; seus braços, até aí finos e sempre

caídos, engrossavam-se e tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e

pálidas enchiam-se e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que trazia habitualmente baixa, erguia-

se agora graciosamente; os olhos, até aqui amortecidos, começavam a

despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se.

A ordem de suas idéias agitava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado, estreito, escuro, despovoado, começava a alargar os

horizontes, a iluminar-se, a povoar-se de milhões de imagens, ora amenas,

ora melancólicas, sempre porém belas. Até então indiferente ao que se passava em torno de si, parecia

agora participar da vida, de tudo que a cercava; gastava horas inteiras a

contemplar o céu, como se só agora tivesse reparado que ele era azul e

belo, que o sol o iluminava de dia, que se recamava de estrelas à noite (idem, p. 113).

Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: ainda bem que não tinham expirado as últimas notas do canto,

e já, passando-lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias, admirava-se

ele de como é que havia podido inclinar-se por um só instante a Luisinha,

Page 10: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

menina sensaborona e esquisita, quando havia no mundo mulheres como

Vidinha (idem, p. 135).

Lá estava na sua cadeira o imperador, que o leitor já viu passeando

pela rua no meio dos seus foliões. Luisinha, vendo-o, pôs-se nas pontas

dos pés, esticou o pescoço, e encarou-o por muito tempo estática e absorta. O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por dentro contra o

menino que atraía a atenção de Luisinha, e passou-lhe pela mente o desejo

louco de voltar atrás seis ou sete anos de sua existência, e ser também

imperador do Divino (idem, p. 92).

Da leitura dos excertos de Memórias de um Sargento de Milícias, podemos constatar

a presença, nesse romance de Manuel Antônio de Almeida, de longas descrições (como é

comum do Romantismo) em torno da personagem Luisinha, no que concerne às suas

características físicas (alta; magra; pálida; queixo enterrado no peito; pálpebras sempre

baixas; braços finos e compridos; mal penteada; cabeça sempre baixa). Vale salientar que

tais descrições já não exaltam a figura feminina, como acontece com Isaura, em A Escrava

Isaura; antes o contrário. Quanto aos aspectos psicológicos de Luisinha, o narrador,

também onisciente, a exemplo do que acontece no romance de Bernardo Guimarães, já

permite que o próprio leitor construa-os, a partir do que lhe é contado, ou seja, a partir do

comportamento e das atitudes da personagem que lhe são apresentados no decorrer da

narrativa (antecipação do que iria acontecer, amplamente, no Realismo). De acordo com as

ideias de Antonio Candido acerca da personagem do romance, Luisinha é uma personagem

ainda nos moldes românticos: caracteriza-se, da mesma forma como ocorre com Isaura (ou

Elvira), por sua superficialidade, ou seja, o seu aspecto psicológico é pouco explorado pelo

narrador; é uma personagem pouco complexa, de costume, sob a ótica de Johnson. No

entanto, como dissemos, o narrador deixa a cargo do leitor a fixação dos caracteres

psicológicos de Luisinha; aquele nada ou pouco diz a este, com relação a essa

caracterização psicológica da personagem. Também diferente do que afirmam alguns

estudiosos, Luisinha não é uma personagem esférica (ou redonda): a mudança de Luisinha

assinalada numa das passagens de Memórias de um Sargento de Milícias selecionadas para

a formação do nosso corpus é, antes de qualquer coisa, fruto da paixão ou do amor que

Leonardo começava a sentir pela personagem, e não uma mudança que efetivamente nela

tinha-se operado, com relação aos seus aspectos físico e psicológico.

Por fim, cinco passagens de Dom Casmurro que giram em torno da personagem

Capitu, com o intuito de, em seguida, fazermos uma análise dessa personagem com base,

mais uma vez, nas ideias de Antonio Candido.

Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos

que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão

de desengano e melancolia (ASSIS, 2005, p. 23).

Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as

ocasiões pelo apertado dos olhos (idem, p. 33).

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de

cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se

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fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada

achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas.

[...] Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética

para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. [...] Traziam não sei que

fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca (idem, pp. 54-55).

Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é reconhecer que não

podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se não pressa em responder às visitas que “a senhora saiu”, quando a senhora não quer falar a

ninguém (idem, p. 77).

Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem, não eram

oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos (idem, p. 81).

Após a leitura dos excertos de Dom Casmurro, podemos constatar a inexistência, no

romance de Machado de Assis, de longas descrições (como é comum no Romantismo) em

torno da personagem Capitu, no que concerne tanto às suas características físicas quanto às

suas características psicológicas: essas características são apresentadas para o leitor, ao

longo do romance, de forma bastante fragmentada e frágil. Cabe, portanto, àquele que se

debruça sobre Dom Casmurro, para fins de leitura, a construção da personalidade de

Capitu, ou seja, a formação do seu caráter psicológico. Não deve esperar, o leitor, que as

características psicológicas de Capitu sejam-lhe apresentadas pelo narrador: este, que não é

onisciente (diferente dos narradores de A Escrava Isaura e Memórias de um Sargento de

Milícias), não consegue falar de Capitu, com propriedade, àquele. Como também acontece

ao leitor, Capitu escapa às análises psicológicas de Bentinho: exemplo disso é o fato deste,

enquanto narrador, mostrar-se sempre contraditório ao leitor, quando fala daquela. Não

podemos esquecer de que a contradição é algo próprio dos seres humanos. Quanto às

características físicas de Capitu apontadas pelo narrador-personagem, Bentinho, devemos

dizer que elas se encontram intimamente ligadas ao aspecto psicológico da personagem

feminina em questão, o que as torna, também, frágeis: exemplo disso são os “olhos-de-

ressaca”, que ora mostram Capitu dissimulada, ora a mostram correta, direita. De acordo

com as ideias de Antonio Candido acerca da personagem do romance, Capitu é uma

personagem típica dos romances modernos da segunda metade do século XIX, época áurea

do romance brasileiro, para muitos estudiosos: caracteriza-se, diferentemente do que ocorre

com Isaura (ou Elvira) e com Luisinha, por sua densidade, por sua profundidade

psicológica, que foi criada pelo autor de Dom Casmurro a partir da sua escolha quanto ao

tipo de narrador que iria empregar no romance (um narrador sem traços de onisciência, que

tem uma visão limitada dos fatos e das pessoas) e da forma como as características físicas e

psicológicas de Capitu foram espalhadas, literalmente, ao longo do livro, para que o próprio

leitor, ao “catá-las”, pudesse compor a “sua” Capitu. Esta é, portanto, uma personagem

complexa, da natureza, sob a ótica de Johnson.

Para finalizar esta segunda parte, vejamos o que nos diz Antonio Candido acerca da

personagem Capitu, em “A Personagem do Romance”:

Que coisa sabemos de Capitu, além dos “olhos de ressaca”, dos cabelos,

de “certo ar de cigana, oblíqua e dissimulada”? O resto decorre da sua

Page 12: [José William Craveiro Torres] Capitu - Exemplo Maior de Personagem do Romance Moderno no Brasil

inserção nas diversas partes de Dom Casmurro; e embora não possamos

ter a imagem nítida da sua fisionomia, temos a intuição profunda do seu

modo-de-ser, – pois o autor convencionalizou bem os elementos, organizando-os de maneira adequada. Por isso, a despeito do caráter

fragmentário dos traços constitutivos, ela existe, com maior integridade e

nitidez do que um ser vivo. A composição estabelecida atua como uma espécie de destino, que determina e sobrevoa, na sua totalidade, a vida de

um ser; os contextos adequados asseguram o tratado convincente da

personagem, enquanto nexos frouxos a comprometem, reduzindo-a à

inexpressividade dos fragmentos (CANDIDO, 1976, p. 79).

CONCLUSÃO

Ao cabo de tudo o que foi dito neste trabalho – e com base nas ideias de Antonio

Candido acerca da personagem do romance –, podemos constatar que Capitu, de Dom

Casmurro, de Machado de Assis, é o maior exemplo de personagem do romance moderno

no Brasil: é passível de ser descrita tanto fisicamente quanto psicologicamente – como

acontece, por exemplo, às personagens românticas (Isaura, por exemplo) e às dos romances

de transição (Luisinha, por exemplo), que também se enquadram no que chamamos de

romance moderno –, só que nenhuma de suas características é dada “de mão beijada” ao

leitor, pois cabe somente a este a construção dessa personagem machadiana, tanto no que

concerne aos seus aspectos físicos quanto no que concerne aos seus aspectos psicológicos.

Capitu, portanto, é uma personagem que “escorrega” sempre entre os dedos do leitor, que

nunca conseguirá apreendê-la em sua totalidade, tal qual acontece conosco quando

tentamos desvendar por completo um ser humano. Por tudo isso, Capitu aproxima-se, mais

que qualquer outra personagem da Literatura Brasileira, do mundo real; dos seres que

habitam o mundo real. Dessa forma, Machado dá um passo à frente com relação aos demais

escritores, quando o assunto é verossimilhança na obra literária, o que serve para confirmá-

lo como um dos maiores escritores da Literatura Universal e, sem dúvida nenhuma, como o

maior da Literatura Brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. Porto Alegre:

L&PM Pocket, 2007.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Fortaleza: ABC, 2005.

BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 Autores mais Criativos da História da Literatura /

Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida et al. A

Personagem de Ficção. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008.

SOUZA, S. C. M. de. Primeiras impressões: Produção e Circulação de Romances no Início

do Século XIX. In: Revista Letras, Curitiba, n. 67, p. 25-40, set./dez., 2005, Editora

UFPR.