[josé william craveiro torres] capitu - exemplo maior de personagem do romance moderno no brasil
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CAPITU: EXEMPLO MAIOR DE PERSONAGEM DO ROMANCE
MODERNO NO BRASIL
Es. José William Craveiro Torres (UFC)1
INTRODUÇÃO
Sempre que ouvimos falar em conto, em crônica, em novela e em romance – e até em
epopeia – é impossível não pensarmos, imediatamente, nos cinco elementos da narrativa
que compõem esses subgêneros literários: enredo, espaço, tempo, personagens e narrador.
Dentre esses elementos, é a personagem, sem dúvida nenhuma, aquele que mais se destaca,
uma vez que é em torno dela que, em maior ou em menor grau, os outros gravitam: a
personagem, que em muitos casos ocupa o papel de narrador da história, vive, num certo
local, numa determinada época, o enredo. Desse modo, a personagem parece ser o elemento
em torno do qual a narrativa estrutura-se; porém, com isso, não estamos querendo dizer que
aquela seja sempre o elemento mais importante desta e que, sozinha, a personagem seja
capaz de garantir o sucesso de qualquer obra literária em prosa (ou em verso, no caso duma
epopeia). Na verdade, não podemos esquecer nunca de que a personagem é só um dos cinco
elementos da narrativa e de que esta só existe satisfatoriamente quando todos os seus
elementos apresentam-se ao leitor em perfeita harmonia. Sobre essa questão da importância
da personagem para as narrativas e, em especial, para o romance, bem como sobre a relação
que a personagem deve estabelecer com os outros elementos da narrativa, Antonio Candido
diz-nos o seguinte, em A Personagem de Ficção (1976):
[...] a personagem [...] representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção,
transferência etc. A personagem vive o enrêdo e as idéias, e os torna
vivos. [...] Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de
mais vivo no romance; e que a leitura dêste dependa bàsicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. [...] Isto nos leva
ao erro, freqüentemente repetido em crítica, de pensar que o essencial do
romance é a personagem, – como se esta pudesse existir separada das outras r[e]alidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Feita esta
ressalva, todavia, pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais
comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e comêço do XX; mas que só adquire pleno
significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção
estrutural é o maior responsável pela fôrça e eficácia de um romance.
Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enrêdo e a personagem, que representam a sua matéria; as “idéias”, que
1 José William Craveiro Torres é especialista n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual
do Ceará – UECE –, mestrando em Letras pela Universidade Federal do Ceará – UFC –, sob orientação dos
professores doutores Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros e Elizabeth Dias Martins, e bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
representam o seu significado, – e que são no conjunto elaborados pela
técnica), êstes três elementos só existem ìntimamente ligados,
inseparáveis, nos romances bem realizados (CANDIDO; ROSENFELD; PRADO et al, 1976, pp. 54-55).
Como vimos, Antonio Candido aponta, a partir de alguns aspectos (capacidade de
atrair a atenção do leitor, a partir dos processos de identificação e projeção; viver o enredo
e as ideias do escritor), a importância da personagem para o romance; contudo, esse grande
crítico literário não se esquece de ressaltar que ela, a personagem, só existe intimamente
ligada às ideias do escritor e aos outros elementos da narrativa, os quais colaboram, e
muito, para o destaque da personagem dentro da história e para o sucesso desta perante os
leitores. Assim, para Candido (1976), um romance “bem realizado” traz sempre estes três
elementos, “ìntimamente ligados”: enredo, personagem (ou personagens) e ideias.
Também tem mais chance de obter êxito um romance que, à vista do leitor, é
verossímil. Por verossimilhança podemos entender a capacidade que algo tem de parecer
verdadeiro. Dessa forma, e pelo que já vimos acerca da importância da personagem para
uma narrativa em prosa, um romance é ainda mais verossímil quando as suas personagens
parecem seres reais; ou seja, comportam-se como as pessoas que vivem no mundo real2.
Em regra, as personagens mais verossímeis da Literatura Universal são aquelas que, como
acontece às pessoas do mundo real, estão sempre a escapar duma análise psicológica que se
quer única e verdadeira, por mais pormenorizada que esta pretenda ser3.
Na Literatura Brasileira, nenhuma personagem escapa mais a uma análise psicológica
desse tipo, e, por isso, é mais objeto de controvérsia, que Capitu, do romance Dom
Casmurro, de Machado de Assis: de sua personalidade pouco ou nada sabemos; da mesma
forma como não nos é permitido falar, com exatidão, da personalidade de uma pessoa com
a qual nos relacionamos, ainda que diariamente.
Com base nas ideias de Antonio Candido em torno da personagem do romance4, que
serão expostas ao leitor em seguida, na primeira parte deste trabalho, mostraremos que
Capitu é o exemplo maior de personagem do romance moderno5 no Brasil. Para tanto,
faremos, na segunda parte deste ensaio, um paralelo entre a personagem machadiana em
questão e duas outras conhecidas personagens femininas da Literatura Brasileira: Isaura (ou
Elvira), do romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; e Luisinha, de Memórias
de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Esta obra, pertencente ao que
2 Para Candido (1976, p. 55), “o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um
ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica[r] a impressão da mais lídima verdade
existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de
relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização dêste”. 3 “o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da
técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o
conhecimento dos nossos semelhantes” (CANDIDO, 1976, p. 58). 4 As ideias de Antonio Candido que giram em torno da personagem do romance e com as quais trabalharemos
aqui neste ensaio foram retiradas do capítulo “A personagem do Romance”, do livro A Personagem de
Ficção. 5 De acordo com Candido (1976), a novelística moderna “se configurou nos séculos XVIII, XIX e comêço do
XX” (p. 54) e caracterizou-se, dentre outras coisas, de acordo com a doutoranda Simone Cristina Mendonça
de Souza (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp), que estudou a produção e a circulação de
romances no início do século XIX, no Brasil, pelo “relato de acontecimentos verossímeis, vividos por
personagens que apresentam particularizações e, ainda, [pel]a identificação do leitor com os mesmos”
(2005, p. 35).
convencionalmente chamamos, ao estudarmos a história da Literatura Brasileira, de Fase de
Transição (ou seja, período histórico-literário situado entre o Romantismo e o Realismo);
aquela, ao Romantismo; e ambas, ao século XIX, assim como Dom Casmurro, de Machado
de Assis. Na Conclusão, reafirmaremos o que já foi dito no título deste trabalho e daremos
mais ênfase ao que foi constatado a partir do cotejo que realizamos, na segunda parte deste,
entre Capitu e as personagens femininas de Bernardo Guimarães e Manuel Antônio de
Almeida.
Finalmente, devemos dizer que o tema deste ensaio deveu-se, em boa medida, ao fato
de termos comemorado, em 2008, o centenário de morte daquele que, para o crítico literário
norte-americano Harold Bloom (2003, p. 687), foi “o maior literato negro surgido até o
presente”, o “mais original dos romancistas brasileiros” (2003, p. 688): estamos falando,
claro, de Joaquim Maria Machado de Assis. Este, mais do que ninguém, buscou desvendar,
à sua época e à sua maneira (singular), a alma humana nos seus mais variados aspectos. Foi
Machado de Assis o escritor que, sem dúvida nenhuma, consolidou (ou “introduziu”; se
falarmos, como é a proposta deste trabalho, de personagens de alta complexidade
psicológica) o romance moderno no Brasil. Enfim, um autor genuinamente brasileiro que
não ficou a dever em nada para os grandes escritores da Literatura Universal e que elevou a
Literatura Brasileira a níveis de primeira grandeza. A Machado de Assis, o nosso
reconhecimento e os nossos aplausos (de pé)!
1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERSONAGEM DO ROMANCE REALIZADAS POR
ANTONIO CANDIDO
As ideias de Antonio Candido em torno da personagem do romance que serão
expostas nesta primeira parte do ensaio foram extraídas, como dissemos já no intróito deste,
do capítulo “A personagem do Romance”, do livro A personagem de Ficção (1976). Vale
salientar que esse livro nasceu “de uma experiência de ensino” no “Seminário
Interdisciplinar [...] da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo” (CANDIDO, 1976, p. 5), que foi realizada, em 1961, por Antonio Candido e por
estudiosos em Filosofia (Anatol Rosenfeld), em Teatro (Décio de Almeida Prado e Bárbara
Heliodora Carneiro de Mendonça) e em Cinema (Paulo Emílio Sales Gomes), e que girou
em torno da personagem de ficção. Tal Seminário Interdisciplinar tinha a pretensão, como
podemos perceber já pela forma como ele foi nomeado por Antonio Candido, de “pôr os
estudantes em contato com as várias faces de um problema complexo (o problema existente
em torno da personagem de ficção), a fim de que a teoria e a análise, do ponto de vista
literário, ficassem o mais esclarecidas possível pela incidência de outros focos (o da
Filosofia, o do Teatro e o do Cinema)” (CANDIDO, 1976, p. 6). Dito isso, passemos para
as ideias de Antonio Candido em torno da personagem do romance.
Para Antonio Candido, uma obra literária, sobretudo um romance, só se realiza
plenamente quando comunica aos leitores “a impressão da mais lídima verdade
existencial”, por meio “de um ser fictício” (CANDIDO, 1976, p. 55). Noutras palavras,
Candido quis dizer que uma obra literária só se realiza em toda a sua plenitude quando
prima pelo princípio da verossimilhança, ou seja, quando procura convencer o leitor,
através de suas personagens, de que tudo o que nela vai escrito pode ser verdade; é passível
de ser verdadeiro. Desse modo, o romance estabelece, inevitavelmente, uma relação com o
mundo real e, consequentemente, as personagens daquele, uma relação com as pessoas que
vivem neste. Assim, um romance é ainda mais verossímil quando as suas personagens
trazem em si a mesma complexidade ou a mesma densidade psicológica das pessoas que
fazem parte do mundo real. Antonio Candido afirma que, cientes disso, os escritores do
século XIX (época em que despontaram o cientificismo, o materialismo, o psicologismo e o
romance documental, dentre outras coisas), sobretudo os da segunda metade, tentaram
imprimir mais realismo e mais verossimilhança às suas obras, aproximando as suas
personagens dos homens e das mulheres do mundo real, no que concerne ao aspecto
psicológico, ou seja, os autores procuraram, à maneira como acontece aos seres humanos,
em termos psicológicos, tornar as personagens de seus livros mais complexas, mais
misteriosas, mais difíceis de serem desvendadas, mais inesperadas e, consequentemente,
mais intrigantes, mais atraentes e mais convincentes para os leitores. Acerca disso, diz
Antonio Candido:
É claro que a noção do mistério dos sêres, produzindo as condutas
inesperadas, sempre esteve presente na criação de forma mais ou menos
consciente, – bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas só foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do século
XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico
dos sêres, seja o mistério metafísico da própria existência. A partir de investigações metódicas em psicologia, como, por exemplo, as da
psicanálise, essa investigação ganhou um aspecto mais sistemático e
voluntário, sem com isso ultrapassar necessàriamente as grandes intuições dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa visão na literatura. [...]
Essas considerações visam a mostrar que o romance, ao abordar as
personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no
plano da técnica da caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes
(CANDIDO, 1976, pp. 57-58).
Como vimos, os escritores do século XIX (principalmente os da segunda metade
desse século) procuraram tornar as personagens de seus romances mais complexas e mais
densas psicologicamente, a partir da supressão ou da seleção minuciosa, cuidadosa, das
suas falas, dos seus traços e dos seus gestos, de modo a quebrar com aquela unidade, com
aquela coesão, com aquela lógica da personagem que tinha sido pré-estabelecida pelos
escritores tradicionalistas (sobretudo os românticos) e que repousava no princípio duma
descrição, seja ela física ou psicológica, exaustiva e duma repetição de determinadas falas e
de certos comportamentos que, a custa de repetida, acabavam por caracterizar ou por
rotular as personagens. Vejamos as palavras de Antonio Candido acerca disso:
O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais êsse
sentimento de dificuldade do ser fictício, diminuir a idéia de esquema
fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista. Isto é possível justamente porque o trabalho de seleção e
posterior combinação permite uma decisiva margem de experiência, de
maneira a criar o máximo de complexidade, de variedade, com um mínimo de traços psíquicos, de atos e de idéias. A personagem é
complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os
elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se o compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada
instante, no modo de ser das pessoas. [...] vários escritores tentaram,
justamente, conferir às suas personagens uma natureza aberta, sem
limites. Mas volta sempre o conceito enunciado há pouco: essa natureza é
uma estrutura limitada, obtida não pela admissão caótica dum sem-número de elementos, mas pela escolha de alguns elementos, organizados
segundo uma certa lógica de composição, que cria a ilusão do ilimitado
(CANDIDO, 1976, pp. 59-60).
Essa preocupação dos autores modernos, ou seja, daqueles que se encaixam, em
termos temporais, entre o século XVIII e o começo do século XX, no que concerne à
construção de suas personagens (sempre mais densas e complexas, em termos
psicológicos), acabou por encetar, já a partir do século XVIII, uma série de estudos em
torno do elemento da narrativa em questão. Assim, de acordo com Antonio Candido,
inúmeros críticos literários e estudiosos do romance debruçaram-se, no período assinalado
(séculos XVIII, XIX e início do XX), sobre a personagem e procuraram caracterizá-la e
rotulá-la. Embora Candido não tenha dito, em nenhuma parte do seu trabalho (“A
personagem do Romance”), que tais estudos setecentistas e oitocentistas possuíam um
caráter normativo, ou seja, que eles tinham por propósito guiar o fazer literário dos
escritores dos séculos XVIII e XIX e do início do XX, no que diz respeito à construção das
personagens dos seus romances, pensamos que o que foi apontado como o ideal de
personagem (pelo menos para a literatura da segunda metade do século XIX) por esses
críticos e estudiosos do romance tenha suscitado, em muitos dos autores de mil e setecentos
e de mil e oitocentos, à guisa de desafio, o desejo de construção de personagens mais
densas psicologicamente, elaboradas com mais cuidado.
Um dos estudiosos que se voltou para o estudo da personagem, no século XVIII, foi
Johnson. Este se debruçou sobre as personagens de Henri Fielding e de Richardson e
caracterizou-as da seguinte maneira: as de Fielding, como personagens de costumes, que
seriam aquelas apresentadas ao leitor mais superficialmente, facilmente identificadas por
um traço, por uma característica, em suma, seriam aquelas personagens às quais
chamaríamos caricaturais; as de Richardson, como personagens da natureza, aquelas
apresentadas ao ledor também no nível da superficialidade, mas, principalmente, a partir do
seu modo íntimo de ser, ou seja, mais a partir do seu aspecto psicológico; enfim,
personagens que não são facilmente identificáveis.
Candido (1976) assim resume as ideias de Johnson em torno das personagens de
costumes e das personagens da natureza:
Traduzindo em linguagem atual a terminologia setecentista de Johnson, pode-se dizer que o romancista “de costumes” vê o homem pelo seu
comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão
normal que temos do próximo. Já o romancista “de natureza” o vê à luz da
sua existência profunda, que não se patenteia à observação corrente, nem se explica pelo mecanismo das relações (CANDIDO, 1976, p. 62).
Já por volta do primeiro quartel do século XX, outro estudioso voltou-se para o
estudo da personagem: E. M. Foster. Foi ele quem cunhou os termos personagem plana,
personagem esférica (ou redonda) e homo fictus para caracterizar as personagens dos
diversos romances sobre os quais se debruçou. Por personagem plana podemos entender
aquela que, ao longo da narrativa, permanece sempre com as mesmas características físicas
e psicológicas; a que é identificada, nas obras, sempre por uma de suas características,
justamente aquela que a representa de forma mais eficaz, durante toda a história; enfim, é
uma personagem caricatural. Já por personagem esférica (ou redonda) podemos entender
aquela que se apresenta ao leitor de forma mais complexa, capaz de surpreendê-lo ao longo
da narrativa, devido a uma brusca mudança de comportamento. Homo fictus, por sua vez,
diz respeito a toda e qualquer personagem: esse termo foi elaborado por Foster para
diferenciar a personagem das pessoas do mundo real, as quais ela procura imitar. O homo
fictus, diferente do que acontece ao homo sapiens, não vive intensamente todas as relações
humanas, mas somente aquelas que dizem mais respeito ao aspecto amoroso.
Para finalizar esta parte, devemos dizer que, apesar de ser verdadeira a ideia de que os
romances modernos, sobretudo aqueles que se enquadram na segunda metade do século
XIX e no começo do século XX, buscaram realizar um aprofundamento psicológico das
suas personagens para se tornarem mais verossímeis para os leitores, alguns continuaram,
no período histórico assinalado, com personagens de pouca ou nenhuma densidade
psicológica. Acontece que o tipo de personagem utilizado nas narrativas, sejam elas longas
ou curtas, sempre diz respeito – e isso não podemos nunca perder de vista – ao que o autor
quer alcançar com a sua obra ou mesmo aos preceitos da escola literária ou da agremiação à
qual ele se filia. Desse modo, o fato dos autores da segunda metade do século XIX e do
início do século XX terem dado ênfase, nas suas obras, às personagens de maior
complexidade psicológica, com vista a criar obras literárias verossímeis, condiz mesmo
com o espírito cientificista da época assinalada, bem com o tipo de romance que se
procurava escrever nesse período: romance-tese (ou romance de tese). Vejamos o que
Antonio Candido diz-nos sobre isso:
a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista. Quando, por exemplo, êste está
interessado em traçar um panorama de costumes, a personagem dependerá
provàvelmente mais da sua visão dos meios que conhece, e da observação de pessoas cujo comportamento lhe parece significativo. Será, em
conseqüência, menos aprofundado psicològicamente, menos imaginado
nas camadas subjacentes do espírito, – embora o autor pretenda o
contrário. Inversamente, se está interessado menos no panorama social do que nos problemas humanos, como são vividos pelas pessoas, a
personagem tenderá a avultar, complicar-se, destacando-se com a sua
singularidade sôbre o pano de fundo social (CANDIDO, 1976, p. 74).
2. DE ISAURA À CAPITU, PASSANDO POR LUISINHA
Como dissemos na introdução deste ensaio, faremos, nesta segunda parte, com base
nas ideias de Antonio Candido acerca da personagem do romance, apresentadas há pouco,
uma análise comparativa de três personagens femininas bastante conhecidas na Literatura
Brasileira: Isaura (ou Elvira), do romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães;
Luisinha, de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida; e
Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis. O objetivo de tal comparação é mostrar
que Capitu é a personagem mais representativa do romance moderno no Brasil, devido à
forma como ela se apresenta ao leitor, ou seja, com uma complexidade psicológica que a
aproxima imenso das pessoas que vivem no mundo real. Tal aproximação, ideal perseguido
sobretudo pelos escritores da primeira metade do século XIX, serve, na visão de Antonio
Candido, para tornar os romances mais verossímeis para os leitores. Vale salientar que
escolhemos essas três personagens por elas pertencerem a três momentos distintos da
literatura moderna no Brasil: Isaura (ou Elvira) enquadra-se no grupo das personagens
românticas (primeira metade do século XIX); Luisinha, no das personagens de transição
(período histórico-literário entre o Romantismo e o Realismo, por volta de 1852-1853); e
Capitu, no das personagens realistas (segunda metade do século XIX). Devido mesmo à
extensão que um trabalho desta natureza exige, limitar-nos-emos, quando da constituição
do corpus a ser analisado, a, no máximo, cinco excertos de cada obra literária para
caracterizar a personagem que lhes é correspondente; entretanto, queremos deixar claro que
nos esforçamos para achar, dentro dos livros, sempre os trechos mais significativos sobre
cada uma das personagens.
A que primeiramente analisaremos será Isaura (ou Elvira). Não a escolhemos
aleatoriamente, mas por ser, ela, no que concerne ao aspecto histórico-literário, a
personagem da Literatura Brasileira que, dentre as que selecionamos, aparece primeiro: é
uma personagem tipicamente romântica. Vejamos alguns trechos de A Escrava Isaura, de
Bernardo Guimarães, para que possamos caracterizar, física e psicologicamente, a
protagonista do romance em questão. Em seguida, procederemos a uma análise dos
aspectos levantados, com base nas ideias de Antonio Candido em torno das personagens do
romance.
Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de
moça. As linhas do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da
caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São tão
puras e suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é como o marfim do teclado, alva que não
deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se
é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro
lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em
espessos e luzidios rolos, e como franjas negras escondiam quase
completamente o dorso da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e
suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no
seio diáfano o fogo celeste da inspiração. Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar vago pairava-lhe pelo espaço.
Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e
diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária
azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando-se-lhe em roda amplas
ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como
Vênus nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgido dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por
uma fita preta constituía o seu único ornamento (GUIMARÃES, 2008, pp.
10-11).
Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e
atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva e robusta
inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças da excelente velha (idem, p. 18).
– Valha-me Deus! – pensou Isaura ao dar com os olhos no
jardineiro. – Que sorte é a minha! Ainda mais este!... este ao menos é de
todos o mais suportável: os outros me amofinam, e atormentam: este às vezes me faz rir (idem, pp. 32-33).
– Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te que veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna superior a
todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e inteligente, e uma
beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que sei de positivo a
respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são bastantemente escassos,
mas que em compensação ela é linda como os anjos, e tem o nome de
Elvira (idem, p. 75).
– Ai! triste de mim! – suspirou dentro da alma D. Elvira: – aqueles
mesmos que mais me amam, tornam-se, sem o saber, os meus algozes!... (idem, p. 89).
A partir da leitura dos trechos de A Escrava Isaura que foram selecionados,
podemos constatar que a longa descrição (algo bem próprio do Romantismo, diga-se de
passagem) em torno da personagem Isaura procura dar conta de seus caracteres físicos
(bela; belas madeixas negras; puras e suaves linhas; tez alva e delicada; colo donoso; busto
maravilhoso; cabelos soltos e fortemente ondulados; porte esbelto; cintura delicada) e
psicológicos (nobre; calma; misteriosa; singela; simples; inteligente; anjo), para não deixar
nenhuma dúvida para o leitor com relação à personagem com a qual ele está lidando.
Percebemos, a partir disso, que a descrição física é mais trabalhada pelo autor, em
detrimento da psicológica. Com relação especificamente ao aspecto psicológico, o narrador
(onipresente, onisciente) não dá a chance do leitor extraí-lo, por si só, da personagem,
através da maneira como ela se comporta ao longo do romance; o mesmo acontece com
relação ao que ela pensa: o narrador, onisciente, não dá ao leitor a possibilidade de
desvendar o que se passa na cabeça de Isaura, antes lhe conta tudo. Com relação à mudança
do nome da personagem de Isaura para Elvira, quando ela foge com seu pai para Recife,
devemos dizer que isso não traz nenhuma mudança em seu caráter e mesmo na sua
fisionomia: ela continua com as mesmas características físicas (beleza incomparável; linda)
e psicológicas (anjo; alma pura; nobre; inteligente), bem como com a mesma forma de
raciocinar. Também o narrador, por conta da sua onisciência, continua a saber tudo o que
Isaura, com o nome de Elvira, pensa. De acordo com as ideias de Antonio Candido acerca
da personagem do romance, Isaura (ou Elvira) é uma personagem que se caracteriza por sua
superficialidade, ou seja, o aspecto psicológico é pouco explorado pelo narrador; é uma
personagem pouco complexa, de costume, sob a ótica de Johnson. E, diferentemente do que
andam alardeando aí aos quatro cantos, Isaura não é uma personagem esférica (ou
redonda), pelo fato de mudar de nome e de endereço, pois ela continua, ao longo da obra,
quer com o nome de Isaura, quer com o nome de Elvira, agindo da mesma forma. Ela não
muda, inclusive, com relação à sua forma física e à sua maneira de pensar. Assim,
poderíamos dizer que Isaura é, antes, uma personagem plana com pretensões à esférica.
Isaura coaduna com a típica personagem do Romantismo, portanto. Não era próprio dessa
escola fazer uma análise psicológica pormenorizada das personagens; muito menos deixar
isso a cargo dos leitores: tudo, no que diz respeito às personagens, era-lhes dado,
desvendado, revelado.
Passemos, agora, aos trechos de Memórias de um Sargento de Milícias que giram em
torno da personagem Luisinha, com o intuito de, em seguida, fazermos uma análise dessa
personagem com base, mais uma vez, nas ideias de Antonio Candido.
Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria
chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos,
e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não
tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o
queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe
apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça
sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma
viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado
de Alcobaça (ALMEIDA, 2007, p. 87).
Luisinha, uma vez extinto o entusiasmo que, suscitado pelas emoções que
experimentara na noite do fogo, acordara da sua apatia, voltara de novo ao
seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos,
nem para este último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e
olhos no chão (idem, p. 95).
Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma
mudança notável se começou a operar em Luisinha, a cada ora se tornava
mais sensível à diferença tanto do seu físico como do seu moral. Seus contornos começavam a arredondar-se; seus braços, até aí finos e sempre
caídos, engrossavam-se e tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e
pálidas enchiam-se e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que trazia habitualmente baixa, erguia-
se agora graciosamente; os olhos, até aqui amortecidos, começavam a
despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se.
A ordem de suas idéias agitava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado, estreito, escuro, despovoado, começava a alargar os
horizontes, a iluminar-se, a povoar-se de milhões de imagens, ora amenas,
ora melancólicas, sempre porém belas. Até então indiferente ao que se passava em torno de si, parecia
agora participar da vida, de tudo que a cercava; gastava horas inteiras a
contemplar o céu, como se só agora tivesse reparado que ele era azul e
belo, que o sol o iluminava de dia, que se recamava de estrelas à noite (idem, p. 113).
Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: ainda bem que não tinham expirado as últimas notas do canto,
e já, passando-lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias, admirava-se
ele de como é que havia podido inclinar-se por um só instante a Luisinha,
menina sensaborona e esquisita, quando havia no mundo mulheres como
Vidinha (idem, p. 135).
Lá estava na sua cadeira o imperador, que o leitor já viu passeando
pela rua no meio dos seus foliões. Luisinha, vendo-o, pôs-se nas pontas
dos pés, esticou o pescoço, e encarou-o por muito tempo estática e absorta. O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por dentro contra o
menino que atraía a atenção de Luisinha, e passou-lhe pela mente o desejo
louco de voltar atrás seis ou sete anos de sua existência, e ser também
imperador do Divino (idem, p. 92).
Da leitura dos excertos de Memórias de um Sargento de Milícias, podemos constatar
a presença, nesse romance de Manuel Antônio de Almeida, de longas descrições (como é
comum do Romantismo) em torno da personagem Luisinha, no que concerne às suas
características físicas (alta; magra; pálida; queixo enterrado no peito; pálpebras sempre
baixas; braços finos e compridos; mal penteada; cabeça sempre baixa). Vale salientar que
tais descrições já não exaltam a figura feminina, como acontece com Isaura, em A Escrava
Isaura; antes o contrário. Quanto aos aspectos psicológicos de Luisinha, o narrador,
também onisciente, a exemplo do que acontece no romance de Bernardo Guimarães, já
permite que o próprio leitor construa-os, a partir do que lhe é contado, ou seja, a partir do
comportamento e das atitudes da personagem que lhe são apresentados no decorrer da
narrativa (antecipação do que iria acontecer, amplamente, no Realismo). De acordo com as
ideias de Antonio Candido acerca da personagem do romance, Luisinha é uma personagem
ainda nos moldes românticos: caracteriza-se, da mesma forma como ocorre com Isaura (ou
Elvira), por sua superficialidade, ou seja, o seu aspecto psicológico é pouco explorado pelo
narrador; é uma personagem pouco complexa, de costume, sob a ótica de Johnson. No
entanto, como dissemos, o narrador deixa a cargo do leitor a fixação dos caracteres
psicológicos de Luisinha; aquele nada ou pouco diz a este, com relação a essa
caracterização psicológica da personagem. Também diferente do que afirmam alguns
estudiosos, Luisinha não é uma personagem esférica (ou redonda): a mudança de Luisinha
assinalada numa das passagens de Memórias de um Sargento de Milícias selecionadas para
a formação do nosso corpus é, antes de qualquer coisa, fruto da paixão ou do amor que
Leonardo começava a sentir pela personagem, e não uma mudança que efetivamente nela
tinha-se operado, com relação aos seus aspectos físico e psicológico.
Por fim, cinco passagens de Dom Casmurro que giram em torno da personagem
Capitu, com o intuito de, em seguida, fazermos uma análise dessa personagem com base,
mais uma vez, nas ideias de Antonio Candido.
Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos
que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão
de desengano e melancolia (ASSIS, 2005, p. 23).
Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as
ocasiões pelo apertado dos olhos (idem, p. 33).
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de
cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se
fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada
achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas.
[...] Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética
para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. [...] Traziam não sei que
fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca (idem, pp. 54-55).
Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é reconhecer que não
podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se não pressa em responder às visitas que “a senhora saiu”, quando a senhora não quer falar a
ninguém (idem, p. 77).
Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem, não eram
oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos (idem, p. 81).
Após a leitura dos excertos de Dom Casmurro, podemos constatar a inexistência, no
romance de Machado de Assis, de longas descrições (como é comum no Romantismo) em
torno da personagem Capitu, no que concerne tanto às suas características físicas quanto às
suas características psicológicas: essas características são apresentadas para o leitor, ao
longo do romance, de forma bastante fragmentada e frágil. Cabe, portanto, àquele que se
debruça sobre Dom Casmurro, para fins de leitura, a construção da personalidade de
Capitu, ou seja, a formação do seu caráter psicológico. Não deve esperar, o leitor, que as
características psicológicas de Capitu sejam-lhe apresentadas pelo narrador: este, que não é
onisciente (diferente dos narradores de A Escrava Isaura e Memórias de um Sargento de
Milícias), não consegue falar de Capitu, com propriedade, àquele. Como também acontece
ao leitor, Capitu escapa às análises psicológicas de Bentinho: exemplo disso é o fato deste,
enquanto narrador, mostrar-se sempre contraditório ao leitor, quando fala daquela. Não
podemos esquecer de que a contradição é algo próprio dos seres humanos. Quanto às
características físicas de Capitu apontadas pelo narrador-personagem, Bentinho, devemos
dizer que elas se encontram intimamente ligadas ao aspecto psicológico da personagem
feminina em questão, o que as torna, também, frágeis: exemplo disso são os “olhos-de-
ressaca”, que ora mostram Capitu dissimulada, ora a mostram correta, direita. De acordo
com as ideias de Antonio Candido acerca da personagem do romance, Capitu é uma
personagem típica dos romances modernos da segunda metade do século XIX, época áurea
do romance brasileiro, para muitos estudiosos: caracteriza-se, diferentemente do que ocorre
com Isaura (ou Elvira) e com Luisinha, por sua densidade, por sua profundidade
psicológica, que foi criada pelo autor de Dom Casmurro a partir da sua escolha quanto ao
tipo de narrador que iria empregar no romance (um narrador sem traços de onisciência, que
tem uma visão limitada dos fatos e das pessoas) e da forma como as características físicas e
psicológicas de Capitu foram espalhadas, literalmente, ao longo do livro, para que o próprio
leitor, ao “catá-las”, pudesse compor a “sua” Capitu. Esta é, portanto, uma personagem
complexa, da natureza, sob a ótica de Johnson.
Para finalizar esta segunda parte, vejamos o que nos diz Antonio Candido acerca da
personagem Capitu, em “A Personagem do Romance”:
Que coisa sabemos de Capitu, além dos “olhos de ressaca”, dos cabelos,
de “certo ar de cigana, oblíqua e dissimulada”? O resto decorre da sua
inserção nas diversas partes de Dom Casmurro; e embora não possamos
ter a imagem nítida da sua fisionomia, temos a intuição profunda do seu
modo-de-ser, – pois o autor convencionalizou bem os elementos, organizando-os de maneira adequada. Por isso, a despeito do caráter
fragmentário dos traços constitutivos, ela existe, com maior integridade e
nitidez do que um ser vivo. A composição estabelecida atua como uma espécie de destino, que determina e sobrevoa, na sua totalidade, a vida de
um ser; os contextos adequados asseguram o tratado convincente da
personagem, enquanto nexos frouxos a comprometem, reduzindo-a à
inexpressividade dos fragmentos (CANDIDO, 1976, p. 79).
CONCLUSÃO
Ao cabo de tudo o que foi dito neste trabalho – e com base nas ideias de Antonio
Candido acerca da personagem do romance –, podemos constatar que Capitu, de Dom
Casmurro, de Machado de Assis, é o maior exemplo de personagem do romance moderno
no Brasil: é passível de ser descrita tanto fisicamente quanto psicologicamente – como
acontece, por exemplo, às personagens românticas (Isaura, por exemplo) e às dos romances
de transição (Luisinha, por exemplo), que também se enquadram no que chamamos de
romance moderno –, só que nenhuma de suas características é dada “de mão beijada” ao
leitor, pois cabe somente a este a construção dessa personagem machadiana, tanto no que
concerne aos seus aspectos físicos quanto no que concerne aos seus aspectos psicológicos.
Capitu, portanto, é uma personagem que “escorrega” sempre entre os dedos do leitor, que
nunca conseguirá apreendê-la em sua totalidade, tal qual acontece conosco quando
tentamos desvendar por completo um ser humano. Por tudo isso, Capitu aproxima-se, mais
que qualquer outra personagem da Literatura Brasileira, do mundo real; dos seres que
habitam o mundo real. Dessa forma, Machado dá um passo à frente com relação aos demais
escritores, quando o assunto é verossimilhança na obra literária, o que serve para confirmá-
lo como um dos maiores escritores da Literatura Universal e, sem dúvida nenhuma, como o
maior da Literatura Brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. Porto Alegre:
L&PM Pocket, 2007.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Fortaleza: ABC, 2005.
BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 Autores mais Criativos da História da Literatura /
Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida et al. A
Personagem de Ficção. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008.
SOUZA, S. C. M. de. Primeiras impressões: Produção e Circulação de Romances no Início
do Século XIX. In: Revista Letras, Curitiba, n. 67, p. 25-40, set./dez., 2005, Editora
UFPR.