jose raimundo, jesus, carne de deus

240
FAJE – FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA JOSÉ RAIMUNDO RODRIGUES JESUS, CARNE DE DEUS! ESTUDO TEOLÓGICO-EXEGÉTICO A PARTIR DE Jo 1,14a Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Johan Konings SJ BELO HORIZONTE 2006

Upload: guimaraespaz

Post on 30-Sep-2015

224 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Carne

TRANSCRIPT

FAJE FACULDADE JESUTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

PAGE 19

FAJE FACULDADE JESUTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

JOS RAIMUNDO RODRIGUES

JESUS, CARNE DE DEUS!

ESTUDO TEOLGICO-EXEGTICO A PARTIR DE Jo 1,14a

Dissertao de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Johan Konings SJ

BELO HORIZONTE

2006

AGRADECIMENTO

Congregao do Verbo Divino e Arquidiocese de Mariana pelo incentivo ao estudo.

Ao Prof. Dr. Johan Konings pelo estmulo ao longo da pesquisa.

Aos amigos pelo apoio, cuidado, humanizao que me ofertaram neste tempo.

Aos que professam Jesus-carne, acreditam no humano e assumem a histria como momento nico e privilegiado de adeso ao Pai.

RESUMO

Esta dissertao tem como objeto de estudo o vocbulo carne aplicado pessoa de Jesus no Prlogo joanino. Partindo da interpretao dada ao termo por Ireneu de Lio, Agostinho de Hipona, Toms de Aquino e Karl Rahner, formulado o status questionis. As perspectivas judaica e paulina so analisadas, respectivamente, como pressuposto e elemento comparativo para uma definio do vocbulo em Jo 1,14a. Ao afirmar a Palavra se fez carne (Jo 1,14a) Joo prope que a existncia mortal de Jesus elemento essencial para a manifestao da glria/amor do Pai (cristologia do envio). O estudo de outras ocorrncias de carne na obra de Joo (Evangelho e Cartas) ressalta o valor dado humanidade de Jesus. Por fim, so apresentadas algumas incidncias de Jesus-carne na eclesiologia, nos dilogos ecumnico e inter-religioso, na relao com o mundo moderno. O presente estudo teolgico- exegtico visa, portanto, elucidar um dos aspectos, carne, da profisso de f da encarnao.

Palavras-chaves

Carne, Evangelho segundo Joo, humano, encarnao, cristologia (do envio).

RSUM

Cette dissertation a pour objet ltude du vocable chair appliqu la personne de Jsus dans le Prologue johannique. Cest partir de linterprtation donne ce terme par Irne de Lyon, Augustin dHippone, Thomas dAquin et Karl Rahner quest formul le status questionis. Les perspectives judaque et paulinienne sont respectivement analyses comme prsupposs et lments de comparaison pour la dfinition de ce vocable dans Jean 1,14a. En affirmant que le Verbe sest fait chair (Jn 1,14a), Jean propose que lexistence mortelle de Jsus est un lment essentiel pour la manifestation de la gloire/amour du Pre (christologie de lenvoi). Ltude dautres occurrences de chair dans loeuvre de Jean (vangile et lettres) fait ressortir la valeur donne lhumanit de Jsus. Finalement sont prsentes quelques incidences de Jsus-chair dans lecclsiologie, dans les dialogues oecumniques et inter-religieux , dans la relation avec le monde moderne. Cette tude thologique et exgtique vise donc lucider un des aspects chair de la profession de foi de lincarnation.

Mots-cls

Chair, vangile selon St Jean, humain, incarnation, christologie (de lenvoi).

SUMRIO2AGRADECIMENTO

3RSUM

8LISTA DE ABREVIATURAS

10INTRODUO

14CAPTULO I: STATUS QUAESTIONIS

151 O conceito de carne em Ireneu de Lio

151.1 Ireneu e a Gnose

161.2 Ireneu e a salvao na carne: encarnao para a comunho com Deus

17Cur Deus homo?

191.3 A leitura de Jo 1,14a por Ireneu

232 Agostinho de Hipona e o desafio da carne aplicado ao Verbo

242.1 O mistrio da encarnao na leitura agostiniana do Evangelho segundo Joo

262.2 Ser humano: imagem de Deus

302.3 O Verbo preexistente

312.4 Jo 1,14a e o conceito de carne

323 Santo Toms: carne e esprito unidos indissociavelmente

333.1 A encarnao e o conceito de carne na III Parte da Suma Teolgica

343.1.1 Convenincia e justificativa para Deus vir na carne

373.1.2 O problema da unio hiposttica

383.1.3 O conceito de pessoa humana e sua incidncia na carne do Cristo

403.1.4 O termo carne associado ao v. 14a do Prlogo Joanino

413.2 A carne de Cristo no Comentrio sobre o Evangelho de Joo

434 Karl Rahner e o Portador Absoluto de Salvao vindo na carne

444.1 O ser humano: um misterioso ouvinte da palavra

474.2 Cristologia existencial e encarnao a partir da leitura de Jo 1,14a

53Concluso

55CAPTULO II: JESUS-CARNE EM Jo 1,14a

561 O termo carne no Antigo Testamento

571.1 rf'B' ..........

571.1.1 Sentido genrico de rf'B'

571.1.2 rf'B' carne animal para alimentao

581.1.3 rf'B' carne do ser humano

601.1.4 rf'B'-lK' (kol- br) toda carne

611.1.5 rf'B' relao de parentesco

621.1.6 rf'B' fragilidade e condio mortal do humano

631.2 raev. (sher)

641.3 rf'B' e raev. na interpretao da LXX

671.4 Concluses

682 Carne no Corpus Paulinum

692.1 Sa,rx no sentido neutro ou estrito

692.2 Sa,rx como parentesco ou relaes de raa/etnia

702.3 Sa,rx como indicativo da totalidade do ser humano, aplicada a Jesus Cristo

722.4 Sa,rx como antagonista de pneu/ma

732.5 Concluses

743 Carne no Evangelho segundo Joo

743.1 Um Evangelho para deciso na f

763.2 Significado de sa,rx em Jo 1,14a

763.2.1 O contexto amplo

773.2.2 O contexto imediato de sa,rx em Jo 1,14

793.2.3 Definio de sa,rx

823.3 Sa,rx em outras passagens joaninas

823.3.1 Jesus-carne para a vida do mundo Jo 6,51-56

863.3.2 O termo sa,rx no aplicado pessoa de Jesus

863.3.2.1 Os que no nasceram do desejo da carne Jo 1,13

873.3.2.2 Nascimento na carne e nascimento no Esprito Jo 3,6

883.3.2.3 A carne para nada serve Jo 6,63

893.3.2.4 O julgamento segundo a carne Jo 8,15

893.3.2.5 O poder sobre toda carne Jo 17,2

903.4 Uma possvel leitura sarcolgica do Evangelho de Joo: sa,rx como paradoxo

923.4.1 Jesus e a mulher samaritana Jo 4,1-30

933.4.2 Jesus e o debate sobre a filiao de Abrao Jo 8,39-47

943.4.3 Jesus e a cura do cego de nascena Jo 9,1-41

963.4.4 Jesus acusado de blasfmia Jo 10,22-39

963.4.5 Jesus, o sinal de Lzaro e a reao do Sindrio Jo 11

973.4.6 Jesus diante de Pilatos Jo 19,1-16

983.5 A cristologia do envio e o termo sa,rx

1013.6 O Jesus histrico em Joo

1033.7 Concluses acerca do termo sa,rx em Joo

1054 Carne nos outros escritos joaninos

1054.1 Concupiscncia da carne 1Jo 2,16

1064.2 Jesus Cristo na carne 1Jo 4,2

1074.3 Jesus Cristo vindo na carne 2Jo 7

108Concluso

CAPTULO III: INCIDNCIAS DA LEITURA DE 112JESUS-CARNE (Jo 1,14a)

1131 Jesus-carne: verdade crist e incgnita eclesial

1141.1 A redescoberta do Jesus-carne

1171.2 O abismo entre as formulaes teolgicas e a vida eclesial

1202 Jesus-carne: possibilidade do dilogo ecumnico e inter-religioso?

1202.1 O horizonte do dilogo ecumnico

1232.2 O horizonte do dilogo inter-religioso

1273 Jesus-carne: uma referncia humana para a modernidade

1273.1 O horizonte da razo e da cultura moderna

1313.2 O princpio da solidariedade

135Concluso

138CONCLUSO

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 142

142a) Instrumentos

142b) Bsica ..........

146c) Complementar

LISTA DE ABREVIATURAS

AHIRENEU DE LIO. Contra as heresias. 2. ed. So Paulo: Paulus, 1995.

ATAntigo Testamento

cap. captulo

cf. confira

CESJTOMS DE AQUINO. Commentaire sur lvangile de Saint Jean. Paris: Cerf, 1998.DCTLACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionrio Crtico de Teologia. So Paulo: Loyola, 2004.

DGNTRUSCONI, Carlo. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2003.

DITATHARRIS, R. Laird et al. Dicionrio Internacional de Teologia do Antigo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 1998.

DITNTCOENEN, Lothar et al. Dicionrio Internacional de Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 2000. v. I.

DTAUGUSTIN, Saint. De Trinitate: la Trinit. Paris: Descle de Brouwe, 1955. v. 1-2.DVDei Verbum

DZDenzinger. El magisterio de la Iglesia: manual de los smbolos, definiciones y declaraciones de la Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Herder, 1961.

ed. edio

et al.et alii

GSGaudium et Spes

ibid.ibidem

LXXSeptuaginta Setenta

NT Novo Testamento

op.cit.opus citatump. pgina

TDNTFRIEDRICH, Gerhard et al. Theological Dictionary of the New Testament. Michigan: WMB, 1982. v. VII.

TEBBblia Traduo Ecumnica. Verso integral.

Trat.AUGUSTN, San. Tratados sobre el evangelio de San Juan (1-35). Madrid: Editorial Catlica, 1955.

ST ITOMS DE AQUINO. Suma Teolgica. So Paulo: Loyola, 2001. I, v. I (q. 1-43).

ST IIITOMS DE AQUINO. Suma Teolgica. So Paulo: Loyola, 2002. III, v. VIII (q. 1-59).

URUnitatis Redintegratiov., vv.versculo, versculosINTRODUO

O cristianismo professa com o Evangelho segundo Joo que o o Logos se fez carne (Jo 1,14a). A f em Jesus-carne, confessada pela comunidade joanina, repetida h sculos, porm nem sempre realmente assimilada pelas comunidades crists. Esta dissertao tem por objeto de pesquisa o vocbulo carne na sua aplicao direta pessoa de Jesus no Prlogo joanino, procurando contribuir para uma melhor compreenso do seu significado e ressonncia para os cristos.

O debate acerca da encarnao tem sido questionado nos ltimos tempos pela cultura moderna e pelo dilogo inter-religioso, sendo assim de grande relevncia refletir sobre o Jesus-carne. O cristianismo no pode ter uma falsa segurana de ser o detentor universal da verdade, esperando que suas palavras sejam aceitas em todos os mbitos. O caminho do dilogo surge naturalmente como exigncia que, se no respondida, descuida daquilo que o propsito do Evangelho, ou seja, a comunicao do amor de Deus e do seu desejo salvfico em relao humanidade. Portanto, necessrio, hoje, mais que em outras pocas, explicitar o que os cristos querem dizer ao afirmar que o Logos se fez carne.

Com a finalidade de se aproximar do que tem sido a reflexo em torno do termo carne foram tomadas quatro leituras que formam o status questionis desta dissertao. A pergunta que se faz diz respeito ao significado que foi dado ao vocbulo, particularmente, mas tambm sua associao com a pessoa do Filho de Deus e as conseqncias da nascidas para a compreenso do humano. A leitura de Ireneu traz tona uma realidade conflitiva que exigia respostas claras e com fundamentao teolgica a fim de sanar as seqelas que surgiam com as heresias. Que relevncia Ireneu d ao termo carne na sua interpretao de Jo 1,14a? Parece ser ele um autntico defensor da realidade humana de Jesus, carne, diante das proposies gnsticas.

Dentre as diversas leituras patrsticas, Agostinho foi escolhido como segunda palavra acerca do Jesus-carne. Os Tratados sobre o Evangelho de So Joo so lidos no desejo de haurir deles a reflexo agostiniana sobre o homem-Deus que veio at humanidade para recuperar-lhe a viso. Que concepo do humano subjaz na interpretao que Agostinho faz do Quarto Evangelho? Em que sentido a leitura do Bispo de Hipona pode ajudar para a percepo do Jesus-carne? Agostinho parece marcado por um pessimismo diante do humano que fruto do seu desejo de salvaguardar o mistrio da graa salvfica de Deus. Esse aparente pessimismo, sem dvida, est refletido no seu modo de falar sobre Jesus-carne.

Uma terceira leitura feita a partir de Toms de Aquino. Os dados apresentados tm a finalidade de trazer baila a recuperao do humano, embora ainda numa compreenso bastante terica e, marcadamente, metafsica. No Doutor Anglico foi buscado o rigor da afirmao teolgica sobre a encarnao e seu posicionamento em relao vida terrena de Jesus. Ao afirmar a unidade indissocivel da alma ao corpo, estaria Toms j avanando para uma otimizao do humano?

Para finalizar o primeiro captulo apresentado parcialmente o pensamento de Rahner sobre a encarnao. No se tem a pretenso de abarcar toda a sua densidade teolgica, mas sim visibilizar o humano Jesus como o revelador do Pai. A antropologia rahneriana, essencialmente marcada pela graa, muito prxima do pensamento dos Padres Gregos e atualiza a valorizao da condio humana tal como ela , apresentando-a como forma escolhida por Deus para se comunicar com os seus filhos e filhas. Sem dvida, h grande semelhana entre o pensamento de Rahner e aquilo que Joo procurou dizer no v. 14a do seu Prlogo.

O segundo captulo uma reflexo bblica em torno do vocbulo carne. O ponto de partida o significado veterotestamentrio do termo, pois parece que Joo grande devedor do AT. A concepo judaica d a impresso de que o humano encontra-se numa esfera totalmente distinta da divina e tem como caracterstico o fato de ser mortal, terreno. Para o AT, rf'B' (br) a afirmao da contingncia e finitude humanas. Carne seria ainda a definio do ser humano na sua totalidade de existncia terrena. Parecem quase que evidentes as implicaes disso na afirmao de Joo. H tambm no segundo captulo uma breve reflexo sobre raev.. (sher), outro termo designativo de carne, e uma abordagem das tradues dos dois termos hebraicos pela LXX.

A ttulo de comparao, apresentado o pensamento de Paulo sobre a carne. comum ao imaginrio religioso cristo uma rejeio ao carnal supostamente fundamentada no pensamento paulino. Seria ela possvel? legtima tal atitude? Ao que tudo indica, h no Apstolo uma continuidade do pensamento hebraico e o que ele condena no a carne em si, mas sim a pretenso humana de colocar-se como independente de Deus e, at mesmo, resistente a Ele. Quando Paulo usa sa,rx (srx) aplicado a Jesus deseja demonstrar a totalidade da existncia daquele que redime a humanidade.

Aps as duas abordagens, judaica e paulina, como traar o significado de carne em Jo 1,14a? Joo estaria apenas afirmando o nascimento de Jesus ou estaria indicando algo mais com esse vocbulo? Como dito, Joo demonstra total fidelidade ao pensamento hebraico e se posiciona como um telogo que afirma a existncia terrena de Jesus na sua totalidade, ou seja, no somente o nascimento, mas todo o seu agir at a morte na cruz. Essa condio humana, mortal, para Joo dado de f professado comunitariamente e indissocivel do Jesus glorioso. No que concerne ao pensamento joanino, a reflexo aqui apresentada busca somente elucidar o termo carne, no investigando, portanto acerca do Logos nem da pr-existncia e glorificao de Jesus.

O Evangelho de Joo j foi duramente criticado como tradutor de uma cristologia descendente onde o humano no teria relevncia. O estudo ora apresentado prope que em Joo o Jesus-carne evidente a ponto de se tornar dado mais que aceito pela comunidade. A dificuldade parece estar num outro ponto, a saber, o reconhecer que Deus se revela plenamente neste humano. Um dado novo aqui sugerido de que em Joo, mais que uma cristologia descendente ou ascendente, h uma cristologia do envio que d o verdadeiro significado do Jesus-carne para a comunidade crist. Alm das ocorrncias de carne no evangelho de Joo e de seu possvel paralelo humano, explicitado tambm como o termo compreendido nas Epstolas joaninas.

Como toda teologia tem por fim servir para o crescimento, amadurecimento e vivncia da f, o ltimo captulo tem como preocupao central apresentar algumas incidncias da pesquisa sobre o Jesus-carne. A incidncia intra-eclesial aponta para a redescoberta do Jesus-carne e o desafio de se transpor para a vivncia da f a formulao e reflexo teolgicas. A segunda incidncia est relacionada com a necessidade de um dilogo mais claro e corajoso com outros cristos e com as outras religies. Tais dilogos encontrariam em Jesus-carne alguma contribuio? A ltima incidncia toca na necessidade de uma aproximao da afirmao crist acerca da humanidade de Jesus com a cultura e pensamento modernos. Jesus-carne poderia ser apresentado como uma referncia humana para a modernidade?

Em sntese, o contedo desta dissertao pode ser apresentado em trs grandes questes: a) como alguns telogos interpretaram o termo carne aplicado a Jesus no Prlogo joanino? b) qual o significado do vocbulo nas Escrituras e, particularmente, em Jo 1,14a? c) quais as conseqncias da interpretao do Jesus-carne para o momento atual?

Por fim, h um desejo de que, ao final da leitura deste texto, a aproximao com o Jesus-carne possibilite um resgate da pessoa humana como condio escolhida por Deus para a sua melhor e mais autntica comunicao de amor. O v. 14a do Prlogo desperta para o mistrio j abordado por muitos, mas que sempre ser novo e exigir novas interpretaes. No Jesus-carne joanino est presente a surpreendente ao de Deus que coloca no mais alto lugar aquela condio considerada pela maioria das pessoas como humilhante e negativa. Enquanto muitos buscam Deus nas alturas, ele busca o humano no terreno de cada dia. Ele ensina que para alcanar a divindade preciso assumir a humanidade como dom e busca de realizao luz de seu Filho. Contra todo cristianismo superficial que rejeita a humanidade de Jesus ou que a professa apenas formalmente, levanta-se a reflexo sobre o Jesus-carne enquanto afirmao de que s se cristo medida que se assume como legtima a sua condio humana.

CAPTULO I: STATUS QUAESTIONIS

O presente captulo almeja oferecer uma posio acerca das interpretaes j dadas ao termo carne no v. 14a do Prlogo de Joo. Sendo tal versculo chave para toda a reflexo sobre a encarnao, procura-se, ento, perceber como as elaboraes teolgicas dialogaram com ele e quais as suas conseqncias para a compreenso da pessoa humana e da cristologia. Dentre as infindveis possibilidades, optou-se por uma representatividade.

Num primeiro olhar, procura-se determinar como Ireneu de Lio representante de uma incipiente teologia sistemtica de cunho bblico, que caracterizada por um apreo ao mistaggico leu o termo carne aplicado pessoa de Jesus. Uma leitura inicial de sua obra Contra as heresias permitiu entrever seu posicionamento, e procura-se aqui revelar um aspecto um tanto esquecido da antropologia patrstica acerca do Verbo na carne.

Na leitura de Agostinho, especificamente seus Tratados sobre o Evangelho de Joo, manifesta-se uma definio do humano e da carne de Jesus bastante difundida que, vencendo sculos, tem-se acomodado sub-repticiamente no universo mental cristo ocidental. Aclara-se em Agostinho um complexo dilema sobre a desvalorizao da carne humana.

Aps as duas leituras patrsticas, faz-se uma incurso no pensamento de Toms de Aquino, procurando, na sua teologia da encarnao, desentranhar sua viso e compreenso da densidade humana do Verbo de Deus. Duas referncias orientaram a pesquisa nesse autor: sua obra mais sistemtica, que a Suma Teolgica, especificamente a Parte III, e seu Comentrio sobre o Evangelho de So Joo.

Por fim, com o objetivo de aproximao com uma representao da teologia mais hodierna, coloca-se a reflexo do termo carne a partir da teologia transcendental de Karl Rahner. Talvez, j adiantando uma concluso final, ser esta a mais prxima daquilo que Joo procurou afirmar de forma concisa no Prlogo.

Acreditamos que, partindo dessas quatro leituras, temos ento uma noo do status quaestionis da leitura/interpretao do termo carne, especificamente na sua relao com a pessoa de Jesus, na meno feita ao mesmo no v. 14a do Prlogo. Outras leituras poderiam ser apresentadas, mas nessa escolha existem referncias bastante significativas no que diz respeito ao perodo histrico, viso de Deus, forma de elaborao teolgica. Ireneu, Agostinho, Toms e Rahner, quatro palavras sobre o mesmo mistrio que se encerrou como carne humana. No mosaico das compreenses do termo carne, h um movimento crescente que convida o humano a dar-se conta de si e de sua carne como mistrio querido por Deus.1 O conceito de carne em Ireneu de Lio

1.1 Ireneu e a Gnose

Ireneu (+140-202) destaca-se como um defensor da f crist diante do perigo da falsa gnose. A presente reflexo versa sobre a obra Adversus Haereses, que tem como subttulo denncia e refutao da falsa gnose. Os gnsticos propunham um conhecimento perfeito, alcanvel apenas por revelao e privilgio de um grupo de iniciados. A explicao do mundo dada pela Gnose tinha pretenses de totalidade e baseava-se num princpio dualista, apresentando uma oposio entre o mundo do bem e o mundo do mal. Para os gnsticos, nesse contexto mundano era necessrio salvar o esprito, pois o que importava era a dimenso espiritual. Essa compreenso do homem espiritual, por sua vez, repercutia na interpretao da pessoa, atuao e significado da pessoa de Jesus Cristo:

O ser humano somente um campo de batalha transcendente entre o bem e o mal, e Cristo um salvador celeste, vindo de repente a este mundo sem se comprometer com ele, e representando essencialmente o papel de revelador da gnose.Entre esse posicionamento de base docetista (Cristo: Deus em aparncia humana) e seu extremo oposto, postura adocionista (Jesus: simples homem tomado pelo Verbo eterno), Ireneu procura oferecer respostas da mais alta qualidade teolgica, com o objetivo de explicitar os erros de seus adversrios. As heresias cristolgicas exigiam uma reflexo que tocava nos pontos fundamentais de toda a formulao doutrinal crist. Ireneu no se esquiva de tal tarefa; antes procura, na fidelidade Tradio, repassar as verdades crists. E o far a partir de uma perspectiva inusitada.

Para Ireneu, a questo do conhecimento proposta pela Gnose merece uma resposta, e esta se encontra na chamada Verdadeira Gnose que caracterizada pelos seguintes elementos: o ensinamento dos apstolos; a Igreja una, apostlica, catlica; a sucesso ininterrupta dos bispos frente das diferentes igrejas locais; uma conservao verdadeira das Escrituras (integral, leitura honesta, explicao correta) e a precedncia do gape sobre todos os outros dons.

1.2. Ireneu e a salvao na carne: encarnao para a comunho com Deus.Em Adversus Haereses fica evidente que, para Ireneu, a salvao foi oferecida j no ato criador de Deus, que tem em vistas a encarnao do Verbo. Se os gnsticos prescindiam da carne, humanidade de Cristo, ser ela, em Ireneu, o conceito-chave de sua soteriologia que se encontra coerentemente no panorama teolgico da unidade entre Deus e a criao. Segundo Ireneu, salvao vincula-se com criao e, acidentalmente, com pecado.

Gonzlez Faus argumenta que, para Ireneu, pecado e perdo fazem parte de um momento posterior que ameaou manchar a visibilidade da salvao. Essa ao de Deus s pode dar-se na carne, e o mistrio da encarnao demonstra o desejo divino de elevar a si suas criaturas. Nas palavras do prprio Ireneu: Glria de Deus o homem que vive e a vida do homem consiste na viso de Deus.

Em Jesus-carne acontece a grande comunicao de Deus. A carne no apenas um elemento do humano, podendo ser depreciada. Ela aquilo que realmente distingue o humano na sua relao com Deus e na sua posio no plano salvfico. A salvao s se d na carne e no na sua negao.

Cur Deus homo?

Se o pecado no razo primeira da encarnao, a resposta de Ireneu questo cur Deus homo? ser marcada por uma valorizao do ser humano concreto e de seu universo, bem como por uma valorizao do lugar do humano no plano divino e, de modo especfico, do papel da humanidade de Jesus na salvao.

A diversidade de argumentos usados por Ireneu contra os hereges ganha coeso no princpio da comunho da humanidade com Deus. Como visto acima, o ser humano criado para Deus e para viver. No livro IV de Adversus Haereses, Ireneu menciona o ato criador de Deus, que destina o mundo ao gnero humano, e recorda que Deus permanecia desconhecido. Ento, afirma o papel do Verbo encarnado como aquele que conduz ao verdadeiro conhecimento.

H um s Deus que por sua palavra e sabedoria fez e harmonizou todas as coisas. ele o Criador, ele que destinou este mundo ao gnero humano. Pela sua grandeza desconhecido por todos os seres criados por ele; pelo seu amor, contudo, conhecido, desde sempre, por aquele por quem criou todas as coisas, e este o seu Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, que nos ltimos tempos se fez homem entre os homens, para unir o fim ao princpio, isto , o homem a Deus.

Em outra passagem, comentando os versculos 6 e 7 do Salmo 82 (Eu disse: todos vs sois deuses e filhos do Altssimo; mas, como homens morrereis), afirma Ireneu: Este o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o Filho de Deus, Filho do homem: para que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoo, se tornasse filho de Deus. Mais uma vez fica explcita a idia de comunho realizada pela mediao do Verbo e tambm a referncia imortalidade concedida em Cristo aos que progredirem na f.

O ser humano o destinatrio do amor/salvao de Deus. Importante notar que, em Ireneu, a salvao, j dada, no passivamente recebida pela humanidade. Ao movimento de descida do Verbo e sua associao carne corresponde um progresso humano que culmina com o tornar-se imagem e semelhana de Deus. [...] enquanto o Primognito, isto , o Verbo desce na criatura e a assume, por sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe at Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se imagem e semelhana de Deus. Como se percebe, a salvao uma divinizao do humano. Segundo Orbe, Ireneu prope que o humano ser elevado ao pleno conhecimento/participao em Deus:

O homem, que no nasceu filho natural de Deus, como o Verbo, foi destinado sua filiao adotiva. De Deus o fazer, e do homem o ser feito. Deixando-se fazer, o homem se torna por obedincia filho de Deus. As duas etapas de barro a homem, e de homem a Deus se cumprem debaixo do sinal da obedincia.

A criatura no pode salvar-se por si mesma, mas associando-se, conformando-se e incorporando-se ao Verbo que ela alcana a meta de sua existncia. Salvao , pois, a realizao do fim ltimo do humano: conhecer a Deus, estar em Deus. No teramos absolutamente podido aprender os mistrios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo Verbo, no se tivesse feito homem. O ser humano, criado imagem e semelhana de Deus, na visibilidade do Verbo feito carne, reconhece em si a imagem de Deus que lhe foi plasmada. O prprio Ado foi criado imagem do Verbo. vendo o Mestre que a humanidade pode imitar suas aes e praticar suas palavras. E isso que assegura a comunho. A contemplao de Deus conduz a criatura a reconhecer e amar seu Criador.

Existe em Ireneu uma viso otimista do ser humano, isto : criatura, que no goza dos atributos divinos, mas que convidada a participar dessa divindade. Sendo assim, o ser humano como tal, que j criado imagem e semelhana de Deus, convidado a ver-se no Cristo. Gonzlez Faus aponta que a comunho da humanidade com Deus prolongamento da encarnao e s pode ser pensada a partir desse mistrio, movimento divino que atinge todas as pessoas. O objetivo da encarnao no destruir o humano, mas lev-lo ao pleno cumprimento dentro do desejo de Deus.

Chega-se, assim, questo que aqui interessa mais particularmente: qual viso Ireneu elabora acerca do ser humano e qual a ressonncia dela na interpretao do termo carne mencionado em Jo 1,14a?

1.3 A leitura de Jo 1,14a por Ireneu.Ireneu faz inmeras referncias ao Prlogo joanino. E o Verbo se fez carne (Jo 1,14a) tambm muito mencionado, porm, explicitamente como citao das Escrituras, aparece apenas quatro vezes: a) AH, I 8,5: a meno do v. 14a est numa reproduo do pensamento dos hereges que antecede a crtica que Ireneu far dessa distoro da f; b) AH, III 11,2: ao refletir sobre o evangelho de Joo, Ireneu fala do Verbo que se fez carne, mas que existe desde sempre e que por esse mesmo Verbo que todas as coisas foram feitas; em 11,3, Ireneu critica os hereges que no acreditam no Verbo feito carne e pensam o Cristo do alto, sem carne e impassvel; c) AH, III 16,8: ao tratar da identificao de Jesus com o Cristo, menciona o v. 14, ligando-o a 1Jo 4,2; d) AH, V 18,2: ao tratar da economia humana da Trindade, afirma que Jesus o mediador perfeito vindo na carne.

Coerente com a antropologia de Ireneu, o termo carne significa a existncia humana como tal. O ser humano no perfeito nem imperfeito; ser finito, posto que criatura, porm chamado imortalidade num progressivo conhecimento de Deus. A carne , portanto, para Ireneu, o elemento caracterstico do humano, que se no assumido pelo Filho de Deus no permite ao prprio Deus alcanar seu objetivo.

Recordando que a pessoa humana foi barro modelado por Deus, que deixou o artista agir em sua matria, Ireneu prope que a carne apta para as aes de Deus. Embora fraca, no sentido de sua fragilidade/finitude aqui sem nenhuma conotao de tendncia ao pecado a carne pode participar do projeto de Deus: [...], a carne se encontrar capaz de receber e conter o poder de Deus como no princpio recebeu a sua arte.

A condio humana, carnal por assim dizer, a condio de possibilidade do mais:

Como a carne capaz de corrupo assim o de incorrupo; como capaz de morte o tambm de vida. Estas coisas se excluem mutuamente e no ficam juntas no mesmo indivduo, mas uma afasta a outra, e onde h uma no h outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a vida e faz dele morto, com maior razo a vida, apoderando-se do homem, afasta-lhe a morte e o restituir vivo a Deus.

Na concepo de Ireneu, o ser humano, animal racional ou ser psquico pelo sopro de vida, torna-se espiritual pela obra do Esprito vivificante que no mais abandona o ser humano, desde que este abandone o mal e converta-se ao bem. O Esprito pode modificar a fraqueza/finitude da carne, auxiliando-a a alcanar seu destino. H uma ressonncia tica da salvao com implicao antropolgica.

Outro dado importante sobre o humano, o constitudo de carne, a insistncia de Ireneu acerca da bondade de Deus que queria comunicar-se com a humanidade e torn-la a depositria de seus benefcios. O olhar de Deus sobre sua criatura desde sempre e para sempre marcado pela gratuidade e pelo nico e exclusivo interesse divino de tornar a pessoa humana participante de sua glria.

Qual seria o significado do termo carne na compreenso de Ireneu? H uma srie de argumentos ao longo da obra para garantir que o Cristo no veio numa aparncia de carne, mas que realmente assumiu a carne humana. Gonzlez Faus, ao analisar o esquema Verbo-carne em Ireneu, prope que:

O termo caro alude no esquema Verbum-caro ao afora extratrinitrio: no existe outra possibilidade de doao do Esprito ao homem a no ser atravs de uma carne (que no seja s carne naturalmente, mas seja verdadeiramente carne): uma criatura que fosse puramente espiritual [...] incapaz de salvar o homem.

Carne , portanto, elemento essencial para a compreenso da comunho de Deus com a humanidade. O efeito da encarnao revela o que a condio da carne, o corruptvel, o mortal. E , em Jesus, Deus encarnado, que a humanidade tem acesso incorruptibilidade e imortalidade. Tais atributos jamais seriam alcanados pela humanidade a no ser pela encarnao. Diz Ireneu:

E como poderamos realizar esta unio sem que antes a incorrupo e a imortalidade se tornassem o que somos, a fim de que o corruptvel fosse absorvido pela incorrupo e o mortal pela imortalidade, e deste modo pudssemos receber a adoo de filhos?

Em outro momento, afirma Ireneu: [...] devia tornar-se quem devia ser salvo, para no ser o Salvador de nada. E no prefcio do Livro IV, Ireneu define o que considera como ser humano: O homem composto de alma e de corpo, uma carne formada imagem de Deus e modelada pelas suas mos.

A identidade humana em momento algum violentada pela encarnao. Carne, para Ireneu, o ser humano na sua fragilidade em processo de conhecimento de Deus. O fato de ser criatura no torna a pessoa humana algo fechado e j definido. Distinta do Criador, mesmo tendo feito a experincia do pecado, ela marcada por um movimento em direo a Deus. Experincia esta que Deus permitiu por magnanimidade do seu desgnio. Ireneu apresenta a necessidade de se ter clara a distino entre o ser criatura diante do Criador e a busca por assemelhar-se pessoa do Filho. Assim o diz:

Aquele que possui, sem orgulhosa jactncia, o verdadeiro conceito da criatura e do Criador, que Deus, superior a todos em potncia, que a todos d a existncia, e permanece no seu amor, submetido e agradecido, receber dele glria maior e progredir at se tornar semelhante quele que por ele morreu. Com efeito, ele veio ao mundo na semelhana da carne do pecado para condenar o pecado, e, condenado, expuls-lo da carne, e, por outro lado, chamar o homem a tornar-se semelhante a ele na imitao de Deus, para elev-lo ao reino do Pai, e torn-lo capaz de ver a Deus e conhecer o Pai. Pois ele o Verbo de Deus, que habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplcito do Pai.

necessrio notar que, segundo essa passagem, a carne permanece valorizada e conservada no mistrio da redeno. Ireneu, no Livro V, apresentar a ressurreio de Cristo e a ressurreio da carne; carne humana ressuscitada pelo poder de Deus. O Cristo expulsa o pecado da carne, mas a preserva, restaurando nela a imagem modelada na criao e convidando a uma associao de vida na graa do Esprito. Alm disso, Ireneu afirma que Deus tambm se habitua carne. um movimento de iluminao do humano e interao do divino. Fica evidente mais uma vez a imagem positiva da humanidade, enquanto carne, que assumida pelo Verbo.

Outra questo que pode ser levantada diz respeito preexistncia do Verbo. Ireneu, em toda a sua obra, afirma que o Verbo existe desde todo o sempre e uma das mos do Pai. Por ele as coisas foram criadas e, por ele, sero levadas a bom termo. Para ele, o v. 14a do Prlogo acaba sendo uma prova da verdadeira encarnao. o argumento escriturstico para refutar os hereges. Note-se como ele apresenta essa questo do Logos que se encarna:

Demonstrado at evidncia que o Verbo existia desde o princpio junto de Deus, que por sua obra foram feitas todas as coisas, que sempre esteve presente ao gnero humano e que justamente ele, nestes ltimos tempos, segundo a hora estabelecida pelo Pai, se uniu obra de suas mos, feito homem passvel, est refutada toda afirmao contrria dos que dizem: se nasceu nestes ltimos tempos, houve um tempo em que o Cristo no existia.

A visibilidade do Cristo na carne j caminho para a glria do humano, que a viso de Deus. A encarnao o tornar possvel o encontro do Criador com a criatura, encontro este dado em Jesus-carne. Nele, a luz de Deus brilha e se irradia de tal maneira que pode iluminar e recuperar a viso da humanidade cegada pela falha, que no mais se enxergava na sua dignidade criatural. Os homens, portanto, vero a Deus para viver, tornando-se imortais por tal viso e alcanando a Deus.

Em sntese, possvel dizer que, para Ireneu, o fazer-se carne o assumir por completo a humanidade, compreendida como originalmente marcada pela graa de ser imagem e semelhana de Deus. O Jesus-carne o ser humano na plenitude do progresso a que todos so chamados na relao de comunho com Deus. A condio do ser mortal a ligao com o primeiro Ado formado do barro, insuflado pelo sopro divino. Jesus, novo Ado, a aquele que modelou no barro o primeiro e agora volta a tocar a humanidade. Jesus o arteso tambm feito barro que anuncia um Deus que jamais desistiu de se comunicar com as suas criaturas. Como bem o afirma Ireneu numa sntese daquilo que o agir do Cristo:

A mo de Deus que nos modelou no princpio e agora nos modela no seio materno, esta mesma mo nos ltimos tempos, nos procurou quando perdidos, reencontrou a ovelha desgarrada, carregou-a aos ombros e com alegria a reintegrou no rebanho da vida.

Os dados apresentados acerca do pensamento de Ireneu so suficientes para uma proposio otimista do ser humano e integrada na relao de comunho/comunicao com Deus. A teologia da divinizao do humano, bem prpria dos Padres Gregos, no foi suficientemente assimilada pela antropologia teolgica do Ocidente cristo, assinalando mais uma outra viso e interpretao do termo carne mencionado em Jo 1,14a. Essa outra leitura do versculo em questo, bastante diferente da de Ireneu, o que agora se prope anlise.

2 Agostinho de Hipona e o desafio da carne aplicado ao Verbo

Agostinho (354-431) deixou um grandioso comentrio ao Evangelho segundo Joo. A presente reflexo versa sobre o conceito carne nesta obra de Agostinho. No se trata de uma obra de exegese nem tampouco um tratado teolgico; so suas homilias dominicais guardadas, em parte, graas ao esforo de taqugrafos. O gnero da obra o dos sermes que tinham por objetivo refutar os pensamentos hereges to disseminados entre o povo e apresentar com solidez os princpios da f. Embora no seja formalmente um tratado teolgico, nesse escrito encontram-se inmeras referncias aos temas mais caros a Agostinho, como Trindade, graa, encarnao, salvao.

Durante o perodo em que apresentou ao seu paroquiado as reflexes sobre cada versculo de Joo, Agostinho procurou tratar com o mximo de clareza a doutrina sobre o Filho de Deus, principalmente pelas interpelaes suscitadas pelo donatismo, arianismo, maniquesmo. O auditrio de Hipona, certamente heterogneo, marcado por essas influncias herticas e outras supersties, foi convidado e incentivado por Agostinho a conhecer as verdades do evangelho que, segundo ele, nasceu do peito do Mestre e foi assimilado pelo Discpulo Amado. Agostinho afirma que Joo nos transmitiu apenas a palavra e que necessrio usar agora a inteleco e ir ao encontro do prprio Jesus .

Por ser uma obra da maturidade de Agostinho, reflete muito do cristo que se dedicou a meditar a palavra de Deus e que se reconhece agora desejoso por partilhar o sabor experimentado. Agostinho parece buscar uma plena comunho com o autor do evangelho, procurando ser fiel s suas palavras e desentranhando delas toda a riqueza que seria oferecida ao seu povo. Sabe das dificuldades de seu pblico, mas insiste na necessidade de adentrar ao manancial do evangelho que no pode ser saboreado com o esprito carnal. Logo de imediato entende-se que Agostinho ir propor um caminho de purificao do esprito para acessar divindade transcendente.

A leitura contnua do texto de Agostinho permite entrever como h uma constante afirmao da grandeza e transcendncia do Verbo que se fez carne. Joo ofereceu a Agostinho material essencial e oportuno para o seu trabalho de pastor. Ao tratar do Verbo eterno que se fez carne, Agostinho encontra em Joo elementos suficientes para distinguir entre a divindade e a humanidade do Verbo. Tal distino pode ainda ser associada com as diferenas entre aqueles que afirmavam apenas a divindade e os que afirmavam a humanidade do Verbo. Agostinho firmar a doutrina da unidade do divino e do humano no Verbo encarnado.

2.1 O mistrio da encarnao na leitura agostiniana do Evangelho segundo Joo

Duas passagens so chaves para entender o que Agostinho pensa sobre a encarnao. Muito embora no sejam percopes expressas sobre tal temtica, de acordo com uma exegese moderna, elas so lidas por Agostinho como princpios de interpretao do mistrio do Verbo vindo na carne. A primeira sua interpretao de Jo 14,6a: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. A segunda a leitura da cura do cego de nascena (Jo 9). Esses dois textos se complementaro no discurso de Agostinho.

O Bispo de Hipona, ao comentar Jo 3,22-30, o encontro de Jesus com Joo Batista, constri todo o seu argumento sobre Jo 14,6a:

Se vais em busca da verdade, segue o caminho, j que o caminho mesmo a verdade. Ele o trmino aonde vais e por onde vais. No vs por uma coisa a outra distinta; no vs a Cristo por uma coisa distinta dele; vs a Cristo por Cristo mesmo. Como por Cristo a Cristo? Por Cristo homem a Cristo Deus, pelo Verbo feito carne ao Verbo que no princpio era Deus em Deus [...].

Agostinho compreende a afirmao joanina (Jo 14,6a) como aluso ao mistrio da encarnao. O Cristo homem quem pode conduzir ao Cristo Deus, que por sua vez introduz o ser humano no mistrio trinitrio. Se Jesus o caminho e esse caminho vai progressivamente e pedagogicamente instruindo os que o acolhem na f, necessrio abandonar todo e qualquer pensamento que difira da verdade. Toda a leitura de Joo ser feita com essa lente de compreenso. imprescindvel buscar a verdade e o prprio Jesus, a Verdade, quem conduz ao Pai. No h outro caminho.

Afirmar que Jesus o caminho assegurar a doutrina e, num argumento bastante condensado, afirmar a incongruncia dos hereges. Jesus a visibilidade de Deus. Para Agostinho, o Deus transcendente no poderia jamais ser visto ou ouvido. Por qu? Por causa do pecado. A viso da substncia de Deus, viso direta dos atributos divinos, est reservada para a vida eterna, no sendo possvel alcan-la nesta terra. A incomunicabilidade de Deus no se deve a Ele, mas estirpe de Ado manchada pela queda. Em Cristo, pelo mistrio da encarnao, a revelao atualizada. O fazer-se carne tornar possvel o encontro da criatura com o Criador por meio de Jesus, que o caminho.

Se o mistrio da encarnao constitui-se, pela humildade do Cristo, no caminho a ser trilhado pela humanidade, o Cristo glorioso a prpria Verdade e Vida almejadas por essa mesma humanidade. Num dptico: Cristo homem o Caminho, e Cristo Deus, a Verdade e a Vida.

O segundo texto de Agostinho que resume o sentido da encarnao diz assim:

Ns somos agora iluminados, se que temos o colrio da f. Precedeu, pois a mistura de sua saliva com a terra com a qual havia de ungir os olhos do que nasceu cego. Ns nascemos de Ado cegos tambm e temos necessidade de que Cristo nos ilumine. Fez uma mistura de saliva e terra: o Verbo se fez carne e habitou entre ns. Misturou sua saliva com a terra.

Nessa passagem, comentando Jo 9,6, o pensamento de Agostinho se articula a partir da idia de que o ser humano p. Ado foi feito do p da terra, seu pecado afastou-o de Deus e somente pela graa da humilhao do Cristo o ser humano poder recuperar sua viso. O tema da cegueira foi muito usado por Agostinho para mostrar que o pecado afastara a humanidade de Deus, porm Deus no se afastou dela. A luz permanece a brilhar e nada pode ofusc-la, porm os coraes nscios no tm capacidade para ver esta luz; os oprime e impede que a vejam o peso de seus pecados.

Assim, pois, pode-se tocar nos motivos da encarnao. Agostinho responde a essa questo de forma envolvente: que foi tanto o que me amou que, para fazer-me imortal, quis nascer ele mesmo por mim numa vida mortal. O Verbo encarnado colrio que vem em socorro da humanidade cega. ele, somente ele, quem pode curar os olhos da humanidade. Usa daquilo que foi a causa da cegueira, ou seja, o p da terra, a condio de servido s paixes. Agostinho faz um belo axioma acerca dessa imagem: O p fez perder a viso e o p a devolver. A carne foi a causa da tua cegueira e a carne que vai faz-la desaparecer.

Em A Trindade, Agostinho diz tambm qual o sentido da encarnao, acentuando novamente a condio pecadora da humanidade:

E a luz brilha nas trevas, mas as trevas no a apreenderam (Jo 1,5). As trevas so as mentes dos homens insensatos, cegadas pelas ms concupiscncias e pela infidelidade. Foi para as curar e sarar que o Verbo pelo qual tudo foi feito, se fez carne e habitou entre ns (Jo1,14). Pois nossa iluminao uma participao no Verbo, isto , quela vida que a luz dos homens. A imundcie de nossos pecados tornava-nos menos idneos ou totalmente inbeis a essa participao. Devamos, portanto, ser purificados.

Cristo, homem-Deus, o mdico que vem das alturas para curar a humanidade. Ele o mediador entre Deus e a humanidade. Nos motivos que Agostinho apresenta h sempre a recordao do pecado, a situao de enfermidade e a necessidade de cura e, implcita ou explicitamente, a meno ao Pai, ou seja, o retorno ptria.

2.2 Ser humano: imagem de Deus

A antropologgia crist profundamente marcada pela referncia a Gn 1,26-27. Sendo o ser humano aquele que ocupa lugar privilegiado na obra da criao, sua existncia considerada de forma particular em relao s outras criaturas. Ele no mais uma das obras de Deus, mas sim a obra que d significado s outras que o precederam. A teologia patrstica deu muita ateno ao fato de que o humano a criatura central no plano da criao. Agostinho d continuidade ao pensamento sobre a Imago Dei e leva para lugar central de sua reflexo o tema do humano.

J que o humano foi criado imagem e semelhana de Deus necessrio que, na sua condio de criatura, ele se volte sobre si mesmo e, na busca da interioridade, descubra-se como lugar privilegiado no s da presena de si mesmo, mas tambm da presena de Deus que nele se d. Quanto mais o ser humano se conhece mais poder conhecer a Deus, pois a imagem do Criador est gravada em seu interior e lhe permite existir e participar em Deus. Ao afastar-se de si mesma, a pessoa humana afasta-se tambm de Deus.

Devido ao dilogo com o mundo grego, Agostinho leva para a antropologia crist a compreenso do ser humano como um composto de corpo e alma. Corpo e alma so duas realidades distintas: uma externa, a outra interna, so tambm duas realidades diversas entre si, enquanto desempenham funes distintas. O homem no s um ou o outro. Para o Bispo de Hipona, no foi segundo a forma corprea que a pessoa foi criada imagem e semelhana de Deus, mas sim segundo a sua alma racional; portanto, a parte mais nobre do humano encontra-se na alma racional (mens). por ela que a pessoa conhece ou pode conhecer seu Criador, descobrir que imagem de Deus.

De acordo com o pensamento de Agostinho, por ser imagem de Deus, o humano o ser que foi criado pela verdade mesma, sem necessitar de mediao de criatura alguma, gozando do benefcio de uma relao direta com o Criador. Esse composto de corpo e alma, o humano, ao experimentar o pecado passa tambm a experimentar o corpo como um peso para a sua alma. Agostinho v no pecado original o nascimento de todo o mal da humanidade, trazendo como conseqncia a morte. Por sua vez, a situao de pecado da pessoa humana exige o nascimento de um salvador tambm nascido nessa humanidade.

Agostinho parece no conseguir ver o ser humano separado da idia de pecado. Por mais que anuncie a graa de Deus agindo no mundo e sua misericrdia que, longe de punir justamente o humano, manifesta-lhe amor gratuitamente, at isso aponta para a fraqueza e pobreza humanas. Discutindo sobre por que no existem pessoas que cumpram a Lei, Agostinho afirma:

que o homem nasce com o grmen do pecado e da morte. Nascido de Ado, arrasta consigo todo o que ali recebeu. Caiu o primeiro homem, e todos os nascidos herdaram dele a concupiscncia da carne. Era necessrio, pois que nascesse outro homem que no trouxesse consigo esta herana: um homem e outro homem, homem que nos d a morte e homem que nos leva a vida.

Para que a salvao acontecesse, era imprescindvel um salvador homem. Jesus Cristo esse salvador, e Agostinho logo pondera que, como tal, no nasce com a marca do pecado, ainda que revestido de uma carne mortal. O Verbo, por quem tudo foi feito, assume a condio mortal, faz isso como remdio para uma humanidade que no deseja ser curada e que ama as coisas criadas e no o Criador. O pecado faz parte da condio de vida do ser humano. Segundo Ladaria, o pensamento de Agostinho articula uma ntima ligao entre pecado e salvao. Para que esta seja universal, necessrio que tambm aquele o seja, da sua associao de todos os seres humanos s origens de Ado.

Hardy mostra que, no pensamento de Agostinho, o pecado coloca o homem numa situao carnal na qual seu esprito fica aprisionado:

Escravo das realidades sensveis pelo amor de si, o homem no retoma a vida por seus prprios meios. Seu pecado no somente momentneo, mas a condio de toda a sua vida. Sua vida tornou-se uma enfermidade, e essa enfermidade arraigada sempre mais no tempo numa situao de cegueira e de surdez para um Deus que vem a ele e a ele se enderea.

A viso negativa do humano, contaminado pelo pecado, faz com que Agostinho afirme que toda a criao reconhece seu Criador; entretanto, o ser humano, que imagem e semelhana de Deus, amando o mundo revela desconhecer o Criador e exterioriza o mal trazido pelo pecado. Agostinho comenta o v. 10c do Prlogo joanino da seguinte forma:

Quando se diz, pois, que o mundo no o conheceu, se entende aqueles que amam o mundo, aqueles que habitam nele com o corao. mau o mundo porque so maus os que vivem nele, como m a casa no por seus muros, seno pelos que nela vivem.

Depreende-se da uma postura de certa desconfiana diante do humano. O mundo, obra do Criador, bom; porm os homens que nele vivem e foram manchados pela culpa original so maus. No entanto, Agostinho no pode ser simplistamente classificado como elaborador de uma antropologia de cunho pessimista. Ele est s voltas com problemas muito concretos que o fazem acentuar um aspecto em detrimento de outro. Se, por um lado, Agostinho quer afirmar a divindade de Cristo, contrapondo-se aos arianos; por outro, afirma a necessidade de uma converso humana, contrapondo-se ao pensamento de Pelgio.

Para Agostinho, o humano criatura chamada converso e conformao com Deus. O primado da graa que realizar na pessoa humana o convite perfeio e possibilitar o pleno exerccio da liberdade. O ser humano, to viciado s coisas sensveis, diante do Cristo interpelado a dar uma resposta de f. Segundo Hardy, o Cristo, em toda a sua existncia, ou seja, por palavras e atos, reflexo do papel revelador e pedaggico da encarnao e, ao mesmo tempo, uma interpelao:

Cada movimento do Cristo uma verdadeira palavra: ele uma interpelao para o homem, um convite a recolher-se na f de maneira a atender atravs dos sinais at realidade. Uma palavra sonora acorda a alma; ela suscita a atividade da alma. Por sua humanidade, provoca o homem no seu embotamento material para suscitar a resposta da f. Em suma, tornando-se homem, o Verbo torna-se na sua humanidade, uma palavra interpelante.

Sendo assim, o Verbo encarnado que ir inaugurar a nova humanidade e possibilitar a adoo dos redimidos por Deus. A preocupao em mostrar a grandeza do Verbo exige de Agostinho falar da pureza de Maria, situao prvia que assegura a total diferena do Deus feito homem em relao humanidade.

Todos viemos daquela semente de que fala Ado com soluos e gemidos: Eu fui concebido na iniqidade e em pecado minha me me alimentou em seu ventre. Cordeiro, pois somente aquele que no veio nessas condies. No foi concebido na iniqidade, j que no foi concebido por obra de mortal, nem o alimentou na iniqidade sua me quando o teve em seu ventre, porque virgem o concebeu e virgem o deu luz. O concebeu pela f e pela f o criou. Eis aqui, pois, o Cordeiro de Deus. No h nele a semente de Ado. Toma de Ado a carne, no o pecado. S este, que no toma de nossa massa o pecado, e quem tira nossos pecados.

Jesus um homem que oculta a sua divindade. Ser na sua fraqueza humana e ocultando sua divindade que o Cristo experimentar a morte. Para Agostinho, a cruz tem um significado de sacrifcio redentor. E ser por ela que toda a humanidade poder ter acesso ao Pai. A cruz necessria para a redeno do gnero humano, pois nela morre pelos pecadores aquele que no tinha motivos para experimentar a morte, pois fora concebido sem pecado. Mas em sua morte se d a vida.

Hardy argumenta que, para Agostinho, no a morte de Cristo que cura a humanidade, mas aquele que morre por essa humanidade. O crucificado aquele que cura. Este crucificado no surge somente no momento da paixo, mas lhe anterior. Portanto no somente o crucificado que porta a salvao, mas sim o Cristo na sua existncia total. Imprescindvel, ento, para tal, a encarnao.

2.3 O Verbo preexistente

No se tocou at agora na questo da preexistncia. Para Agostinho, a interpretao do v. 14a do Prlogo a prova de que o Deus, que habitava nas alturas e que era inacessvel comunica-se agora com a humanidade e a conduz perfeio. Toda a sua teologia sobre o esquema Verbo-carne se basear na idia de que no Verbo se encontra a perfeio a que o humano chamado. No Deus-homem a humanidade encontra/v sua enfermidade e, tambm, seu destino.

Agostinho toca no problema que a encarnao suscitara e que deu margens ao surgimento das heresias cristolgicas: como se deu a unio entre o humano e o divino? Para ele, o Verbo que habita junto do Pai desde todo o sempre e que com o Pai tudo criou adentra na humanidade pela fora do Esprito. No se deixar guiar pela sua natureza humana, mas esta ser guiada por ele, pois o Verbo , a um s tempo, Filho de Deus e Filho do homem.

O Filho do homem tem alma e tem corpo. O Filho de Deus, que o Verbo, tem o homem, como a alma tem o corpo. Como a alma com o corpo no h duas pessoas, seno um s homem, assim o Verbo com o homem no faz duas pessoas, seno um s Cristo. Que o homem? Uma alma racional que tem um corpo. Que o Cristo? O Verbo de Deus que possui o homem.

Preocupado com as afirmaes arianas acerca do Filho, Agostinho insiste que o Verbo eterno e que o Cristo a visibilidade de Deus. Enquanto rio afirmava a condio de simples criatura para a pessoa de Jesus, Agostinho insiste na sua divindade. Cristo no nem o Verbo nem a carne simplesmente, seno o Verbo feito carne para viver conosco. 2.4 Jo 1,14a e o conceito de carne

No tratado sobre a Trindade, Agostinho explicita como compreende a encarnao, tendo como argumento de autoridade o referido texto de Joo. A disputa com os arianos faz Agostinho precisar o que significa tal versculo:

Afirmo que o prprio Verbo de Deus se fez carne, ou seja, se fez homem, no porm no sentido de que se tenha transformado e mudado no que se fez, mas de tal modo se fez, que nele se encontra no somente o Verbo de Deus e a carne do homem, mas tambm a alma racional humana; e assim este todo pode-se denominar Deus pela natureza divina e homem pela natureza humana.

A passagem acima j introduz a questo do significado de carne para Agostinho em sua leitura de Jo 1,14a. Carne sinnimo de humano, natureza humana composta por alma e corpo. A alma racional que permite ao ser humano conhecer a Deus. O corpo, embora parte integrante do homem, tido como realidade inferior a alma. O esquema Cristo-Deus e Cristo-homem, que refora ainda mais a distino entre alma e corpo, ser lembrado inclusive quando se fala da ressurreio, acentuando que por um a alma ressuscitada e por outro, a carne. apenas uma distino formal, pois Agostinho j afirmou que as duas naturezas esto no Verbo eterno.

Carne tambm a condio mortal, a finitude. Os nascidos de Ado so mortais e o Verbo, ao se encarnar, se fez mortal. Alm disso, o tornar-se carne a entrada de Deus no tempo cronolgico. O Deus que tudo fez, o Verbo existente desde o princpio, adentra na histria. Tendo vindo na carne, Cristo se torna para a humanidade um referencial, ou seja, modelo e exemplo. Novamente encontramos o sentido dado por Agostinho a Jo 14,6. O Cristo, Verbo eterno feito homem, o caminho. Seguindo o Cristo, Deus visvel, o cristo poder ter a viso direta de Deus na eternidade.

Embora Agostinho tenha uma viso do humano marcada pelo pecado, concebe o Jesus-carne como aquele que veio guiar a humanidade para o que a ela est destinado, a ptria celeste. Carne para Agostinho a condio mortal e, em Jesus, comunho de Deus com aqueles que o desprezaram ao pecar. Como se viu, as disputas com os hereges influenciaram sobremaneira a obra de Agostinho, fazendo-o concentrar a sua reflexo sobre a grandeza de Deus em detrimento de qualquer grandeza do humano.

Jesus-carne, para Agostinho, o Caminho que conduz Verdade e Vida. Na interpretao da passagem da Samaritana (Jo 4), Agostinho mostra como Jesus experimenta o cansao, a fraqueza humana, no por necessidade, mas por humildade e com o objetivo de fortalecer a humanidade. H uma separao bastante marcada entre a humanidade de Jesus, assumida humildemente, e a sua divindade. Tal distino gerou uma desconfiana em relao carne, ao ser humano, valorizando-se excessivamente o aspecto espiritual, a alma.

3 Santo Toms: carne e esprito unidos indissociavelmente

Toms de Aquino (1224-1274) encontra-se num contexto em que, passados os grandes debates cristolgicos, fazia-se necessria uma clara doutrina crist que, enquanto cincia, estivesse em condies de dialogar com o mundo. Quis Toms de Aquino oferecer uma sntese das verdades da f aos iniciantes em teologia que se viam s voltas com numerosas obras crists, mas no conseguiam, por si mesmos, elucidar a opinio mais ortodoxa a ser assumida.

O esforo de Toms por fidelidade Sagrada Escritura, numa leitura literal, e Tradio, evitando negar qualquer resposta j dada, faz-se sentir na elaborao da Suma Teolgica. H um princpio motivador em Toms, que a busca do conhecimento que, por sua ndole, quer livrar as pessoas da ignorncia. Mais que um estudioso, que se dedicou a dar cientificidade elaborao da teologia, Toms se mostra um mstico. Repassa na sua reflexo todos os mistrios da f e procura elucidar questes contemporneas e outras anteriores resolvidas insatisfatoriamente.

Se Toms estava livre dos debates e controvrsias promovidos pelas heresias, que ocuparam o pensamento dos Santos Padres, no estava isento de esclarecer temas e assimilar, de acordo com os princpios cristos, as novidades de seu tempo. A influncia da filosofia aristotlica apresentada pelos rabes exigiu uma integrao da mesma, pois as simples condenaes j no produziam o mesmo efeito do passado. Toms de Aquino , ento, aquele que assume a empreitada de dialogar com a filosofia de Aristteles. mrito de Toms abrir o cristianismo ao mundo e s idias que lhe eram contemporneas.

Prope-se, agora, refletir sobre o Jesus-carne em duas obras de Toms de Aquino: a) Suma Teolgica: a partir da sua Terceira Parte, procura-se analisar a interpretao de Toms acerca do conceito carne em questo; b) Comentrio sobre o Evangelho de Joo: seguindo os passos exegticos de Toms e concentrando-se na sua interpretao do Prlogo, deseja-se sintetizar os dados sobre a carne aplicados ao Verbo.

3.1 A encarnao e o conceito de carne na III Parte da Suma Teolgica

Tendo comeado sua Suma pelo estudo sobre Deus e as coisas criadas, prope, ento, o retorno a Deus pela vida nova redimida na pessoa do Verbo encarnado, dedicando a esse tema toda a Terceira Parte. Claramente influenciado por questes filosficas, Toms ir discutir as relaes do mistrio da encarnao no contexto de uma teologia marcada por conceitos como substncia, subsistncia, natureza, pessoa, convenincia etc.

Para acessar a compreenso de Toms sobre a encarnao, preciso perceber sua cristologia, pois esta d o sentido de tudo o que ele quis dizer sobre tal mistrio. A cristologia de Toms resumida, por ele mesmo, no prlogo da Terceira Parte da Suma Teolgica:

Nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo, para salvar seu povo de seus pecados, segundo o testemunho do anjo, mostrou-nos em si mesmo o caminho da verdade, atravs do qual possamos chegar pela ressurreio bem-aventurana da vida imortal.

Muito semelhante interpretao feita por Agostinho, Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6) a sntese emblemtica de Toms no que tange ao Verbo feito carne. Jesus , a um s tempo, caminho, pelo qual a humanidade precisa passar para reencontrar o Criador; e o termo do caminho, pois nele a humanidade reconhece aquilo a que foi chamada desde a criao. Percebe-se, pois, uma concatenao de idias que conduz a uma compreenso do mistrio da encarnao no contexto dessa cristologia. Pela encarnao o Caminho torna-se acessvel humanidade, e nela que todo ser humano se reconhece filho na viso beatfica. O Jesus-carne, alm de comunicar a Verdade e a Vida, faz com que todo ser humano possa nele se reconhecer como filho(a) de Deus. Jesus-carne o Caminho por onde devem passar os que desejam ver a Deus.

Fora do Cristo no haveria possibilidade de encontro com o Pai. Ele, o Cristo, o mediador que veio restaurar a comunho e comunicar humanidade todos os bens da parte do Pai; a Verdade, pois Aquele que existe desde todo o sempre junto do Pai e que recebeu deste todo o poder. Dessa forma, quem quiser conhecer toda a verdade e em Deus jamais existir falsidade ou mentira precisa aderir ao Verbo.

O Verbo encarnado lana o ser humano ao encontro da verdade sobre o divino e sobre o humano. Ele abre-se para o mistrio da divindade e da humanidade, que se revelam por seu ser na carne. Da pode-se extrair que a encarnao justificada, de incio, pela elucidao de toda dvida sobre Deus e sobre a criatura humana. Mas Toms ainda mais explcito no que diz respeito ao objetivo da encarnao, como poder ser verificado frente. Antes, importa perguntar sobre a convenincia da encarnao.

3.1.1 Convenincia e justificativa para Deus vir na carne

A resposta de Toms ao problema da convenincia da encarnao marcada por uma compreenso de Deus bastante legtima e cunhada na tradio neotestamentria: Deus amor. Na sua resposta pergunta: Era necessrio que o Verbo de Deus se encarnasse para a restaurao do gnero humano?; Toms responde que o amor justifica a encarnao e que ela foi o modo mais conveniente dentre os modos possveis a Deus.

Toms aproxima do tema da encarnao a idia de que a humanidade tem, em si, a capacidade de conhecer a Deus; por isso, afirma que a encarnao quer despertar uma resposta de amor no ser humano e que a visibilidade de Deus tornada possvel no Verbo feito carne, alm de dignificar, capaz de atrair a humanidade para o conhecimento de Deus:

[] deve-se dizer que se encarnando, Deus no diminuiu sua majestade: por conseguinte, no diminui razo da reverncia que lhe devida. Ela cresce com o aumento do conhecimento que dele podemos ter. E ao querer tornar-se nosso prximo encarnando-se, tanto mais nos atraiu para conhec-lo.

Para Toms, o movimento divino provoca no ser humano um desejo de conhecimento. Na medida em que se conhece Deus, Verdade e Vida, o humano exortado a se tornar semelhante a Jesus-carne. Ele o modelo a ser seguido por aqueles que desejam conhecer a Deus e que tm na pessoa do Filho encarnado a graa da realizao de tal anseio.

Tendo recebido da Tradio um conceito j elaborado de encarnao, foi necessrio que Toms justificasse a encarnao frente s diferentes posies que eram apresentadas na poca. Anselmo de Canturia, em seu Cur Deus homo?, respondeu questo associando a encarnao ao mistrio da paixo. O imperativo de uma justia a ser cumprida faz com que o motivo para Deus assumir a carne humana seja somente o de satisfazer a esse Deus que foi ofendido. Ao abordar essa idia de um Deus ofendido que precisa ser satisfeito, o Doutor Anglico utilizou a categoria soteriolgica da satisfao, mas segundo Nicolas, a finalidade da encarnao em Toms pode ser compreendida como [...] a exaltao do universo e a divinizao do homem, sua prpria ressurreio e exaltao, princpio de tudo, passam por seu sacrifcio redentor e se manifestam como o dom do amor. Toms tambm conferiu encarnao uma caracterstica de extenso trinitria que veio ao encontro da humanidade:

A encarnao , para Santo Toms, ao mesmo tempo, o vrtice do mistrio de Deus, pois uma extenso at a criatura do mistrio trinitrio, e o vrtice do mistrio do homem, pois a ascenso deste ao cume absoluto da ordem da criao: a natureza humana transcende-se por essa unio e nessa unio Pessoa Divina.

Embora no pensamento de Toms houvesse a possibilidade de o Verbo se encarnar, mesmo que a humanidade no tivesse pecado; ele concorda com a justificativa do perdo dos pecados, pois afirma que a condio de no-pecado (pre lapsare) da humanidade apenas uma hiptese (afinal, existe o pecado!). Porm, na soteriologia tomasiana, a encarnao no ocorre somente em funo de uma reparao, pois h sempre a idia de um encaminhamento para Deus. O perdo dos pecados mais uma expresso da misericrdia divina que se associa ao itinerrio humano.

Se, pois, se afirma a realidade de pecado, a pergunta sobre a ligao da encarnao com a queda original torna-se inevitvel. O Verbo se faz carne para redimir a carne pecadora nascida de Ado? E os pecados do tempo presente? Seriam tambm eles motivao do assumir a carne? Toms mostra que se pode compreender a encarnao como remisso dos pecados, tanto os atuais quanto o original. Assim ele se pronuncia na sua resposta ao art.4 da Q.1 da III parte:

certo que Cristo veio a esse mundo no s para apagar o pecado transmitido originalmente aos psteros, mas tambm para apagar todos os pecados que depois foram acrescentados. No que todos efetivamente sejam apagados, em razo da deficincia dos homens que no aderem a Cristo, [...], mas porque ele realizou o que foi suficiente para apagar todos os pecados.

No haveria uma contradio no fato de que Deus, sendo bom e justo, tomasse para si uma carne marcada pelo pecado? Segundo Toms, a natureza humana est enferma e esta mesma natureza que o Verbo assume, mostrando assim o poder de Deus que capaz de vencer o antigo inimigo pela recuperao da dignidade humana em Cristo. Deus prefere usar a linhagem ferida pelo pecado. Tal escolha divina teve tambm suas conseqncias, pois ser o fato de usar dessa linhagem que ocasionar o sofrimento no Cristo. Ele sofrer no por ser culpado, pois a pena da morte conseqncia do pecado; sofrer por escolha livre pela misria humana, pois assumiu a carne nos seus limites e sofrimentos, ou seja, nas conseqncias do pecado e no na condio de pecador.

Toms apresenta uma idia bastante peculiar, posto que devedor de Agostinho, quando afirma que o pecado no faz parte da condio humana e, por isso, o Verbo, ao encarnar-se, assume tudo o que pertence a essa condio e o fato de no pecar no o torna inabilitado para a misso que se prope de satisfao em nome da humanidade. O pecado no demonstra a verdade da natureza humana que causada por Deus e, assim, o pecado a ela no pertence. Ao contrrio, oposto natureza e foi introduzido pela semeadura do demnio, como diz Damasceno. Alm de que, segundo Toms, o Cristo no esteve em Ado, como os demais, pois esteve nele somente segundo a matria.

3.1.2 O problema da unio hiposttica

Um problema que ocupar Toms o da unio hiposttica, que a afirmao teolgica (linguagem conceitual) encimada no v.14a do Prlogo. Como explicar que duas realidades to dspares podem unir-se no Cristo? Deus e a humanidade podem unir-se numa pessoa? Para Toms, a natureza humana de Cristo (corpo e alma) est plenamente unida ao Verbo (natureza divina).

O grande contributo de Toms, no que concerne ao mistrio trinitrio, foi o de solucionar a questo deixada por Agostinho acerca da harmonia entre as relaes subsistentes das pessoas divinas e o absoluto e a unidade da divindade. Na concepo tomasiana, em Deus as relaes subsistentes no so acidente, mas sim constitutivas de sua essncia. A definio de Toms acerca da pessoa (hipstase) ser de extremo valor para sua compreenso do ser na carne do Cristo.

A unio hiposttica, ou movimento descendente de Deus ao encontro da humanidade e a ela se unindo, eleva a condio humana a um nvel superior de existncia. Isso possvel porque em Cristo h uma s hipstase com duas naturezas. [...] a pessoa de Cristo subsiste em duas naturezas. Portanto, embora seja um s subsistente, nele h dois modos de subsistir. Assim, a pessoa se diz composta, na medida em que, sendo uma s, subsiste em duas naturezas. H uma preocupao em salvaguardar a imutabilidade do divino, da a importncia de lembrar que a natureza divina no sofre nenhuma alterao em si, porm a natureza humana torna-se melhor. O primeiro dom concedido pela encarnao o prprio fato de o Verbo se fazer carne.

3.1.3 O conceito de pessoa humana e sua incidncia na carne do Cristo

A antropologia tomista tambm foi elaborada sobre a obra do sexto dia da criao, porm compreendida a partir da conscincia da complexidade humana. No que diz respeito carne, como Toms compreende o ser humano? O ser humano como o horizonte, onde a terra e o infinito se encontram. Uma pessoa humana formada por uma alma racional e um corpo. Diferentemente da postura agostiniana em que alma e corpo, pela influncia platnica, eram tidos como elementos concorrentes, Toms afirma a indissociabilidade da alma ao corpo/carne humana. A alma no alguma coisa colocada sobre o corpreo, nem tampouco o corpreo um aprisionamento da alma. Um no existe independente do outro.

Tratando sobre a possibilidade de se chamar a alma de pessoa, responde Toms:

Deve-se dizer que a alma parte da espcie humana. Assim, pelo fato de guardar, embora estando separada, a aptido natural para a unio, no se pode cham-la de substncia individual, que a hipstase ou substncia primeira. [...] Eis por que nem a definio nem o nome de pessoa lhe convm.

O que constitui a pessoa humana o fato de ser um corpo/carne, que no subsiste por si mesmo, e ser uma alma, que, embora sendo ato, s se constitui realidade se vinculada ao corpo. A alma , pois, uma substncia autnoma. Toms mantm a prioridade da realidade espiritual do humano, ou seja, a sua alma racional, que permite ao ser conhecer e encaminhar-se para a verdade. Por outro lado, na antropologia tomasiana, o corpo no desvalorizado, j que est unido alma.

No caso de Cristo, essa alma racional est ligada ao Verbo eterno, colocando-o em ntima comunho com Deus e recebendo dele todo o influxo de sua graa. O Verbo eterno e preexistente desce humanidade: [...] o Verbo de Deus perfeito assumiu como prpria a imperfeio de nossa natureza, segundo o que diz o Evangelho de Joo: Desci do cu (Jo 6,38-51). O Verbo s comea a existir no mundo, enquanto exteriorizao, na pessoa de Cristo.

Enquanto verdadeira pessoa humana, o Cristo experimenta tudo dessa condio, exceto o que se relaciona ao pecado. Toms de Aquino dedica as questes 7 a 15 da Parte III da Suma natureza humana assumida, explicitando suas perfeies e suas debilidades, tendo como referncia o objetivo da encarnao: conceder a salvao humanidade. Para Toms, em Cristo, existe total unidade entre o ser e o agir. O que diferente no Cristo, em sua humanidade, em relao a todos os outros seres humanos, que, nele, a natureza humana participa da vontade do agente principal (vontade divina). Portanto, o ser est plenamente em comunho com o agir.

Quanto questo dessa natureza de Cristo absolutamente plena, apresentada por Toms, Nicolas afirma que:

Quando apresenta a natureza humana de Cristo, dotada j nesta terra da plenitude absoluta, no s da graa, mas do conhecimento, no nos esqueamos que ela permanece, em tudo, humana e que se trata para ela, portanto para o Filho de Deus nela, de participar no mais alto grau possvel da divindade. Para Santo Toms, a humanidade de Jesus ao menos quanto alma desde sua vida terrestre, estava no vrtice da criao, acima dos prprios anjos.

Percebe-se que na soluo de Toms h uma questo sempre delicada: a alma permanece num nvel espiritual sempre mais elevado que o corpo. A humanidade de Jesus, enquanto corpo e alma, marcada por esse diferencial da vida do Verbo, Filho de Deus, na pessoa do Cristo. esse diferencial que permite ao Cristo conhecer de modo distinto do restante da humanidade; porm, apesar disso, sua humanidade no perde em semelhana com a de toda humanidade. no nvel da alma que ele permanece num patamar ainda no atingido pela humanidade, pois esta no Deus.

3.1.4 O termo carne associado ao v. 14a do Prlogo Joanino

Cabe agora perceber em Toms qual a compreenso do termo carne. Em tudo que j foi mencionado, implcita e explicitamente, h referncias a esse termo. Carne atributo da natureza humana nunca existindo em Deus e caracterizada pela mutabilidade marca tambm incompatvel com o divino. A carne constitutiva do humano e o Cristo, para estar entre a humanidade, precisa dela.

Carne, pecado e dor formam uma trade praticamente inseparvel, pois pela carne que a humanidade transmite o pecado original (idia da razo seminal). H muito de Agostinho nessa compreenso de Toms. O Doutor Anglico discordar, inclusive, da possibilidade da imaculada concepo de Maria. Para ele, impossvel algum ser purificado do pecado na concepo, pois no h ali ainda uma alma racional capaz da graa purificadora. O ser humano, ps-pecado original, intrinsecamente corrompido. A carne de Cristo isenta do pecado pelo fato de que em Deus no h imperfeio. Todavia, h tambm uma viso do humano como ser que, naturalmente, deseja ver a Deus. Se o pecado impossibilita essa viso, a graa de Deus vem em auxlio da natureza humana e a torna capaz para conhecer a Deus, pois esse o nico fim da humanidade.

Na questo 16 da Parte III da Suma, em que discute sobre o que convm a Cristo segundo o ser e o vir-a-ser, Toms reflete no artigo 6 a proposio o Filho de Deus se fez homem. Retoma a Epstola a Epicteto de Atansio, em que se afirma que, ao dizer que o Verbo se fez carne, como se dissesse: fez-se homem. Novamente ressalta que o fazer-se homem ocasiona mudana no gnero humano e no em Deus. Marie Lamy de la Chapelle assinala que o termo homem, nesse caso, atribudo pessoa do Cristo, necessita ser pensado no isoladamente da divindade:

O termo homem, no sentido do que subsiste, conota no caso de Cristo no somente o sentido que ele ter de ser humano: uma alma e um corpo ento, mas a divindade sem a qual ele no teria o supsito, pois Deus este homem.

A expresso fez-se homem poderia incitar ao erro de se afirmar que todo ser humano Deus pela encarnao. Diante dessa possibilidade, Toms de Aquino, seguindo o pensamento de Damasceno, assevera que: O Verbo de Deus no assumiu uma natureza humana universal, mas individual. Battista Mondin comenta que, para Toms, Jo 1,14 significa a ao com a qual a Trindade forma no ventre de Maria uma natureza humana determinada e a une pessoa do Verbo. A novidade que se estabelece que se pode concluir que carne seria, ento, o ser humano determinado, o Cristo no caso, como bem se assinala na ST III, q.16,10.

3.2 A carne de Cristo no Comentrio sobre o Evangelho de Joo

Mas ser no seu Comentrio sobre o Evangelho de Joo que Toms se deter mais explicitamente sobre o termo carne. Segundo sua compreenso, o Evangelho de Joo teria por finalidade mostrar a divindade do Verbo. Essa chave-interpretativa marcar toda a sua leitura dos vv. 1 a 8 do Prlogo.

Ao tratar do v. 9 que Toms toca no tema da humanidade na sua relao com a luz divina do Verbo que veio a encontr-la. O ser humano, existindo nesse mundo sensvel, iluminado pela razo natural e pela verdadeira luz de onde deriva a possibilidade do conhecimento natural. um ser dotado da capacidade de conhecer, e essa capacidade o liga ao princpio de sua existncia, que Deus. Ainda comentando o mesmo versculo, afirma Toms que a inteligncia humana provm de uma causa extrnseca, ou seja, de Deus, e que o ser humano composto por uma dupla natureza:

O homem constitudo de uma dupla natureza: corporal, isto animal ou sensvel, e intelectual. Segundo a natureza corporal ou sensvel, ele esclarecido pela luz corporal e sensvel, e segundo a alma e a natureza intelectual, ele esclarecido pela luz intelectual e espiritual.

prprio do ser humano ter a natureza corporal e a natureza intelectual ou espiritual dada pela alma. A natureza corporal se vincula diretamente ao mundo sensvel, enquanto que a intelectual no tem a causa em si mesma nem se vincula diretamente a este mundo.

Diante da proposio o mundo no o conheceu (v. 10c), evoca Toms o motivo para o desconhecimento humano acerca de Deus: a falta humana. Esta definida como um amor ao mundo de maneira desordenada, sinal da ignorncia em relao a Deus. Dessa maneira, o Verbo, ao fazer-se carne, deu-se a conhecer ao mundo.

Numa elaborao mais formal, Toms apresenta trs motivos para Deus fazer-se carne: 1) a perversidade da natureza humana, que, pela sua prpria malcia, teria se submetido s trevas dos vcios e da ignorncia; 2) a insuficincia do testemunho dos profetas, que, por eles mesmos, no poderiam iluminar o mundo; 3) a deficincia das criaturas, incapazes de se conduzirem ao conhecimento do Criador.

Tendo explicado os motivos, ele aborda a finalidade:

Assim o filho de Deus veio ao mundo e, portanto ele estaria no mundo. Na verdade, ele ali estaria pela essncia, pelo poder e pela presena, mas ele ali veio assumindo a carne; ele estaria invisvel, e veio para ali ser visvel.

Logo, conclui-se que estar na carne tornar-se visvel. Neste mundo sensvel da existncia, onde o conhecimento humano passa pelo uso dos sentidos, Cristo inaugura a visibilidade de Deus, e a todos que no Filho acreditarem o Pai concede a graa do Esprito Santo. Toms capta esse movimento trinitrio na sua interpretao de duas palavras todos aqueles do v. 12. E o fruto da vinda na carne a adoo filial.

No pargrafo 166, diz Toms que o Verbo se fez carne; isso significa que ele assumiu a carne, e no que o Verbo, ele mesmo, seria carne, ela mesma. Essa afirmao de Toms se justifica em funo da recordao que faz do eutiquismo, heresia monofisista. Alm de assegurar a verdadeira humanidade do Cristo, como na Suma Teolgica, Toms de Aquino, de forma minuciosa, repassa possveis erros cristolgicos, recorda as heresias e seus autores (utiques, Ario, Apolinrio, Nestrio), para numa sntese formular: O Verbo assumiu uma carne animada de uma alma racional. O Jesus-carne uma alma racional.

Toms adiciona concluso acima mencionada outro elemento. Debate sobre o porqu Joo no menciona a alma racional no lugar de carne. Justifica o fato de o evangelista dizer somente que o Verbo se fez carne com quatro argumentos: 1) para provar a verdade da encarnao contra os maniqueus, que no acreditavam na unio do Verbo carne; 2) para mostrar a grandeza da bondade divina para com a humanidade, ligando-se a ela por amor; 3) para mostrar a verdade e caracterstica nica dessa unio no Cristo, assegurando que Deus se une aos outros homens apenas pela alma; 4) para mostrar que o ser humano foi restaurado maneira que convinha o melhor, ou seja, a carne enferma restaurada pela carne do Verbo.

A preocupao com a questo das duas naturezas e o como se deu tal unio na pessoa do Cristo remete Suma Teolgica e suas questes. A unio do Verbo carne tal que Deus feito homem e o homem feito Deus; quer dizer que ele tal que Deus seria homem. Tal unio implica uma nova relao entre Deus e o homem nascida do conhecimento que teve iniciativa em Deus e se concretizou em Jesus-carne.

Em sntese, Toms consegue dar um novo sentido dimenso carnal do ser humano ao lig-la de modo indissocivel alma, que a sua forma. Rompe-se, assim, com uma desconfiana em relao ao humano e estabelece-se uma valorizao do que sensvel enquanto instrumento necessrio para se chegar a Deus e participar da viso beatfica. O Cristo, Deus e homem, concede aos humanos a possibilidade de participar da graa divina e, por uma vida de compromisso com ele, ascender ao Deus que desceu at eles.

4 Karl Rahner e o Portador Absoluto de Salvao vindo na carne

A contribuio de Rahner (1904-1984) para a reflexo acerca da encarnao est intimamente ligada a conceitos-chaves de sua teologia transcendental. Propomo-nos agora, tendo-os como dados essenciais, analisar suas implicaes na leitura de Jo 1,14a.

Rahner captou em profundidade os apelos do homem moderno em relao f, percebendo-os num quadro mais amplo que o meramente eclesial e religioso, abrindo-se para a antropologia. Isso se deu pela sua percepo do mal-estar em que os cristos viviam diante de um mundo onde as cincias evoluram, onde o mundo em si evoluiu, e as verdades da f permaneciam acrisoladas em formulaes dogmticas repetidas, mas incompreendidas.

Jesus, Deus-homem, , para Rahner, o Portador Absoluto de Salvao. Sendo assim, compreendeu ser urgente uma investida da teologia no dilogo com outras reas e a formulao de uma teologia de cunho ontolgico, significando no s uma mudana na linguagem em relao teologia de concepes nticas, mas, acima de tudo, uma variante na forma de olhar e de dizer a f no mundo, a partir do humano.

O itinerrio aqui seguido foi o de contemplar a viso rahneriana de ser humano, basicamente uma primeira leitura de sua antropologia, e de sua cristologia, especificamente sua interpretao do termo homem, compreendido como sinnimo de carne, no texto do Evangelho segundo Joo.

4.1 O ser humano: um misterioso ouvinte da palavra

Para Karl Rahner, o ser humano possui um a priori que lhe caracterstico e que fundamenta todo o seu ser no mundo. Tal a priori a possibilidade de conhecimento que existe em todo ser humano e, na medida em que desenvolve o seu conhecimento do mundo dado, na sua relao com as coisas, vai constituindo o seu a posteriori. O que torna possvel o conhecimento categorial ou a posteriori justamente o a priori.

Ao afirmar que a pessoa humana , a priori, capaz de conhecer, Rahner afirma tambm a ligao com o mistrio. O humano, nessa perspectiva, constitui-se um mistrio indefinvel ou, como diz Rahner, o mistrio. Sempre haver o que conhecer. O ser humano conhece e conhecido, mas permanece carente de conhecimento e de conhecer-se, por isso o ser que se indaga. Sempre existir um mais a que ser chamado. Da que todo ser humano, ao se indagar sobre as verdades ltimas de sua existncia, anseia por uma resposta, e somente no abandonar-se no mistrio de si pode encontrar aquele que lhe responde e a resposta.

Em Ouvinte da Palavra, Rahner prope uma filosofia da religio baseada numa antropologia, tocando no tema da transcendentalidade do conhecimento sem, porm, se definir teologia. Prope que uma filosofia crist no perde sua legitimidade pelo fato de ser crist. O filosofar sobre o ser humano e seus anseios j o encaminhamento para a constatao da abertura ao mistrio e da possibilidade, ento, de uma eventual comunicao de Deus. Ainda circulando no terreno da filosofia, Rahner j afirma que antropologicamente o ser humano abertura para o mistrio.

O ser humano um ser de transcendncia, na medida em que seu conhecimento das coisas no se confunde com as coisas em si, mas delas se abstrai e se pergunta pelo seu prprio ser. O humano se perde no mistrio de sua existncia e pode-se encontrar nesse mesmo mistrio. O primeiro princpio de uma ontologia geral, para Rahner, : A essncia do ser do ente conhecer e ser conhecido em uma unidade originria, que temos chamado como o estar consigo, o estado de luminosidade do ser para consigo mesmo como subjetividade.

O ser humano, na contingncia e finitude do seu ser, pergunta-se acerca do ser. Essa pergunta pela quididade, pela essncia, o conduz pergunta sobre Deus. Ele descobre, pois a, que o Ser captado no infinito no s luminosidade, mas tambm obscuridade. Deus pode ou no se revelar. Deus livre para se revelar como tambm o ser o ser humano para responder-lhe. No da natureza do humano o direito a uma revelao, tal pode se dar na livre ao de Deus.

Se a relao da pessoa humana com Deus conhecimento, tal no pode ocorrer, a no ser na liberdade, posto que todo conhecimento no se d pela posse do outro, mas sim pelo encontro dialogal com o outro. Deus j se revelou na criao, e o humano, como ser apetecvel, o encontra nas coisas, na medida em que procura perceber o bem que h nelas. Dessa forma, a pessoa humana j est em contato com o Luminoso. Mas ele, Deus, pode-se reservar o direito de, na criatividade de seu ser, estabelecer uma outra forma de revelao. E, para que tal seja possvel, necessrio que o humano tenha a possibilidade de acolher essa possvel autocomunicao de Deus.

E se o humano o ser capaz de ouvir a possvel palavra de Deus que a ele pode ser expressa, ele deve estar sempre atento eventual palavra divina. O humano o ente que em sua histria deve pr-se a ouvir a revelao histrica de Deus, possivelmente efetuada em forma de palavra humana. A humanidade ouve e pode ouvir a Deus. E se uma palavra de Deus lhe dirigida, essa palavra pode encontrar resposta e eco no seu criatural. Nem Deus um Absoluto fechado em si, nem o humano um contingente desprovido da capacidade de agir. A comunicao de Deus ressoa no ser humano como resposta ao seu mistrio indecifrvel e convida a uma confiana inabalvel naquele que o criou.

O humano, esprito e matria que , no capaz de uma viso beatfica/supramundana j neste mundo. Portanto, a possvel revelao de Deus deve dar-se no lugar histrico. nele somente que a humanidade poder conhecer, pois o conhecimento humano ser a pr-captao do infinito no finito de sua existncia. A histria o espao no qual a palavra de Deus deve dar-se a conhecer. Tal revelao na histria rompe com os esquemas antagnicos em que Deus, o Absoluto, no se envolve com o mundo. Na histria e na carne que Deus pode se comunicar. Rahner insiste para que se rompa esse antagonismo entre o celeste e o terrestre e se descubra no mundo a palavra dada por Deus:

Se o homem um esprito histrico face a um Deus livre, segue-se ento, que o homem aberto a uma realizao de sua potncia obediencial, que possui necessariamente como esprito, e que a revelao ento no deve ser uma krisis do humano, nem o transmundano que no pode fazer-se carne, mas permanece somente um espinho na carne; de outra parte, segue-se que o humano deve acolher a revelao livre de Deus como uma graa imprevisvel e gratuita, como histria: isso no como antinatural, mas sim como sobrenatural.

, na materialidade do seu ser, que o humano pode conhecer o espiritual de sua essncia. Enquanto unidade de matria e esprito, o humano descobre em si algo de semelhante a Deus, que permite ao primeiro conhecer o Outro. A posio de Rahner a de um conhecimento no a partir de categorias externas ao prprio humano, mas sim a partir deste.

Rompendo com uma tradio teolgica que apresentava a graa como algo que poderia ser ou no dado humanidade e intrinsecamente ligado dimenso do pecado, Rahner, reatando com os primeiros Santos Padres, prope que toda a histria em si marcada pela graa, sendo uma realidade permanente do humano, e no um adicional divino que pode lhe ser acrescentado. A graa sobrenatural, pois no algo que o humano adquiriu por suas prprias foras; ao contrrio, presente gratuito de Deus, que ao criar toda pessoa a constitui partcipe de seu ser. Essa graa acompanha o ser humano no desenvolver e desenrolar de sua histria, respeitando sempre sua liberdade.

De acordo com o pensamento de Karl Rahner, todo o humano marcado por um existencial sobrenatural. A histria humana no concorre com Deus, mas para ele. O ser humano no um pecador em sua natureza, em quem se acrescentou a graa; ele , sim, o portador de uma graa original que lhe possibilita estar aberto ao seu Criador e a ele, na liberdade, responder com amor. Liberdade que Deus tambm respeitou, ao permitir a desobedincia. a desobedincia que, enquanto realidade vivida, mesmo sendo recusa a Deus, leva o humano a defrontar-se com o destino ltimo de sua existncia e das possibilidades da grandeza de seu ser. Sendo assim, mesmo passando pelo pecado, a pessoa humana continua no influxo da graa.

O tema da encarnao tido, por Rahner, como premente para uma teologia que queira dialogar com o mundo e a cultura modernos; pois, para ele, parte da estranheza diante do mistrio da encarnao deve-se s formulaes metafsicas do enunciado religioso. Para uma teologia transcendental, marcada por uma antropologia tambm assim adjetivada, o lugar da encarnao justamente o eixo no qual se articula a consolidao de uma inusitada experincia de Deus, que nova, tanto para o humano como para o prprio Deus, que desejou-se e fez-se humano. Nas palavras de Rahner: A cristologia fim e princpio da antropologia e esta, na sua realizao mais radical a cristologia eternamente teologia.

4.2 Cristologia existencial e encarnao a partir da leitura de Jo 1,14a

Tudo o que foi mencionado acerca da antropologia transcendental refere-se diretamente interpretao feita por Rahner do mistrio da encarnao e, particularmente, de Jo 1,14a. Chega-se agora ao ponto em que se faz necessrio perceber como esse telogo, embora no sendo exegeta, aplica pessoa de Cristo os elementos compreendidos como caractersticos do humano.

Rahner l o v. 14a do Prlogo joanino a partir de uma viso do humano intensamente agraciado. O Verbo se faz carne dessa carne da qual constituda a humanidade, que vive num existencial sobrenatural. Rahner temia um cristianismo com feies mitolgicas. Sua preocupao, no que diz respeito ao mistrio da encarnao, foi a de assegurar que a proposio feita em Calcednia, enquanto formulao dogmtica, fosse assimilada como realidade tangvel que implica todo o humano num processo de renovao da compreenso de si mesmo e de Deus.

Como a formulao de Calcednia, cunhada em parte sobre a base do Prlogo, pode ser compreendida como mitolgica? Para Rahner, a humanidade, marcada pelo pluralismo e com acentos de secularizao, ao ouvir o dogma da encarnao, no capta a verdade nele apresentada, embora consiga at mesmo repeti-la. Todo o esforo do discurso teolgico esbarra na mentalidade moderna, com uma crtica que no consegue compreender o afirmado a no ser como um mito. Tal compreenso de Rahner, primeira vista estranha, fica bem-elucidada numa comparao apresentada por ele:

Olhemos friamente a situao espiritual tal qual em nossos dias: um homem de hoje, sem educao crist, ouve dizer: Jesus Deus feito homem; ele rejeitar de sada esta declarao porque, para ele, se refere a um mito, que, a priori, no poderia ser tomado a srio nem discutido; e tambm o que fazemos ns quando ouvimos que o Dalai Lama se tem por reencarnao de Buda.

Num tempo em que os mitos so