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José Mauro de Vasconcelos

A CEIA

Romance

EDIÇÕES MELHORAMENTOS

Page 3: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Para

Ciccillo Matarazzo

Veríssimo de Melo

Tarcizio Natividade de Medeiros

Erich Gemeinder

• • •

Affonso Dante Chiara

Hinda e João Burlamaqui

Fayez José Mauad

• • •

Helena Rudge (Piu-Piu)

João Roberto Petta

Ziza Lofredo

• • •

Maria José de Carvalho (Zora)

Francisco Luiz de Almeida Salles

Inezita Barroso

e

Célia Biar

Page 4: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Em verdade, em verdade eu vos digo: Tudo isso é verda-

de...

O Autor

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Índice

O Tabernáculo

Os Olhos de Lúcio

A Ceia

O Pêndulo de Felipe

Os Bons Samaritanos da Penúria

Vasos Comunicantes

Passos da Solidão

Compassos da Solidão

O Céu Azul com Deus e Anjos por Todo Canto

A Noite Transfigurada de Tiago Maior

A Noite de Simão, o Epiléptico

Quantum Mutatus ab Illo

O Tapete do Evo

O Caldeirão dos Degenerados

A Febre da Solidão

Noli me Tangere

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CAPÍTULO I

O Tabernáculo

Houve a voz. A voz vinha saindo macia. Eis que todos

escutavam.

— Era uma beleza! Só queria que vocês vissem. O

meu avô com quase oitenta anos, galopando pelos campos

a fora. Quando falava, até o gado tremia, o mato tremia,

as pedras tremiam. O que dizia era lei. Ao pôr do sol ele

retornava; os cascos do seu cavalo, um animal enorme

todo branco e de crinas douradas, arrancavam mais poeira

de todas as estradas e de todos os ariscos. Sua barba —

aquilo era ainda mais bonito — sua barba muito branca

que roçava até o peito se dividia em duas bandas e se lan-

çava contra os ombros largos...

Parou. Suas mãos, que ao contrário da voz se mo-

vimentavam sempre com muita dificuldade, tombaram

sobre a cama. Seu corpo foi se enrodilhando, ao perder a

emoção da história que contava, e retornando ao natural

da paralisia. Agora voltara a ser a mesma aranha grande,

encolhida e respirando arfante.

Todos guardavam silêncio na enfermaria. Alguns

encontravam-se sentados e aqueles, que nem isso podiam

fazer, ouviam deitados, forçando os ouvidos para que na-

da se perdesse daquela história tão linda.

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Mas pelo jeito ele não falaria mais hoje. Dava pena

mesmo. Foi por isso que Pedro encostou-se no mármore

da mesa, sorriu e resolveu reacender a conversa.

— Engraçado! Comigo nunca aconteceu dessas

coisas. Nada de sertão nem de fazenda em minha vida.

Sempre gostei foi do mar. Ah! o mar com suas ondas

grandonas, rebentando contra a areia branca. A gente até

desconfiava que a areia fugia com medo das ondas. Toda

minha mocidade, e até um pouco mais, foi passada junto

das águas. Sabem o que diziam quando me avistavam? —

Lá vai Pedro, o Pescador — Minha tarrafa escorregava

pelos ombros, minha jangada rolando sob os toros e eu

dominava o mar. Dominava o mar de dia e de noite, chu-

pando o cheiro da maresia o mais que os meus pulmões

pudessem receber... Hoje...

Suspendeu os braços atrofiados pela lepra nervosa.

Aprumou o corpo, também curvado pela doença e magre-

za, e arrastou as pernas magérrimas em direção à cama.

— Onde você vai, Pedro? Por que não conta mais?

— Vou até a última cama. Quem sabe ele quer

conversar alguma coisa.

— Deixe prá lá, Pedro. Ele não quer. Aquele ho-

mem não é bom. Ele não gosta de ninguém. Nem mesmo

de você. Nem mesmo dele.

Pedro sorriu com brandura e falou bem baixo.

— Ele está morrendo... ele está morrendo...

— Não está não. A cama dele está limpinha. Quan-

do um aqui está morrendo, a gente sabe que a cama e as

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cobertas ficam escuras de tanta mosca.

Pedro abanou a cabeça.

— Nem sempre a gente para morrer precisa estar

cercado de moscas.

Entretanto não continuou a lenta caminhada por-

que Madalena entrou pela porta da enfermaria com uma

seringa na mão. Passou por Pedro e reclamou.

— Que diabo, você não fica no seu canto? Está

sempre no meio para atrapalhar. Vai se sentar, trambolho,

que daqui a pouco vai chegar a comida.

Todos acompanhavam o vulto rotundo de Madale-

na. Seus cabelos, mais desbotados que oxigenados, ondu-

lados por cabeleireiro barato, se suspendiam na nuca, tor-

nando a cabeça pequena para o seu corpo. Manchas de

suor marcavam as mangas do vestido azul-claro.

Madalena parou defronte à cama de João. Ele fingiu

não avistá-la.

— Ei, meu santo. É pra você mesmo. Vamos vi-

rando essa bunda velha, que não quero perder muito tem-

po.

João apoiou a Bíblia sobre o peito.

— Você precisa jogar esse livro no lixo. Está tão

ensebado que atrai mosquito.

João fitou-a gravemente. O rosto macilento só pos-

suía olhos. Uns olhos muito negros e iluminados. Madale-

na comoveu-se.

—Está bem. Está bem. Que é que você estava len-

do de bonito agora?

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— Sobre os anjos.

Madalena deu uma risada debochada.

— Vivendo nessa esterqueira e pensando em anjo.

Era só o que faltava.

— Que sabe você sobre os anjos, Madalena?

— Sei lá. Dizem que não são homens nem mulhe-

res. Vi alguns em estampas. Vi outros em procissão.

João não se alterou.

— Os anjos são as coisas mais lindas de Deus, Ma-

dalena. Eles vivem em legiões e ficam mais perto de Deus

do que qualquer santo. Eles adoram a Deus bem de perto,

entendeu?

— O que é legião?

— Uma espécie de grupo, de bando. São nove legi-

ões. Anjos, Arcanjos, Tronos, Dominações, Potestades,

Virtudes, Principados e os mais importantes ainda: Que-

rubins e Serafins. São nove legiões deles.

— Ótimo! Mas eu acho que você tem minhoca na

cabeça. Em todo caso se distrai com as suas bobagens e

não fica pensando na porcaria da vida. Agora vamos ao

que interessa.

Desatou a amarra do pijama grosseiro e fedido e a-

judou o homem a virar-se. Olhou, mais com nojo do que

com piedade, as nádegas peludas do homem todo enca-

lombado de tanta picada. Procurou um lugar menos irrita-

do e aplicou a injeção.

Por que os médicos faziam aquilo? Aquele homem

nunca teria cura. Mas nenhum daqueles miseráveis poderia

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morrer. Eram necessários para o anfiteatro das aulas de

neurologia. Serviam de cobaias. Enfim...

— Doeu?

— Não.

Estava mentindo. Aquela injeção ardia como fogo.

Tornou a amarrar o pijama do homem e colocá-lo na po-

sição anterior.

— Pronto. Agora prepare-se que daqui a pouco vai

chegar aquele jantar gostoso de sempre.

Madalena sentiu náuseas, pensando na grande pane-

la de sopa. Nem porco mereceria aquilo. Aquele caldo frio

e gorduroso, onde boiavam endurecidas as verduras, pe-

daços de abóboras, de aipim, batatas meio bichadas. Tudo

isso aparecendo impiedosamente com cascas. Nenhuma

mão caridosa para descascá-las. Também para quê? Todo

mundo chegara à conclusão de que aquilo ali não era mais

gente.

João fixou os olhos em Madalena e adivinhou-lhe

os pensamentos.

— Não vai ser sempre assim, Madalena. Um dia,

Ele virá por aquela porta e em vez das batatas com casca

Ele trará um pão. cheio de paz e de amor.

— Você é louco!

— Pode ser. Mas Ele virá. Então todos nós, que

somos os doentes dessas doze camas, vamos poder levan-

tar. Seremos abraçados como gente e como irmãos. Nós

vamos caminhar limpos de corpo e sem dor até aquela

mesa. E depois caminharemos atrás Dele por uma estrada

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cheia de pássaros e rosas perfumadas. Ele destruirá todas

essas doze camas, você vai ver.

— Pior ainda. Porque os outros desgraçados que

vierem depois vão ter de dormir no chão duro. Bom. Tu-

do isso está muito bonito, mas preciso voltar para a minha

sala.

Saiu, arregaçando um pouco a saia e cocando as

axilas suadas.

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CAPÍTULO II

Os olhos de Lúcio

Tentou fechar os olhos com força sabendo desnecessário.

Ergueu as mãos, comprimindo os ouvidos num desespero

absoluto.

Mas a voz de Lúcio repercutia calma por dentro do

seu ser, parecendo perfurar-lhe o coração como agulhas

de fogo. Pior, os olhos tristes que vazavam as suas pálpe-

bras fechadas, sempre mirando-o daquela maneira resig-

nada da última vez. Por que Lúcio não mudava aqueles

olhos? Por que não se enraivecia, não o xingava? Não.

Nunca. Quando menos esperava, Lúcio reaparecia. Até

nos momentos em que o joelho inchado o levava à loucu-

ra da dor.

— Dói muito?

— Dói, Lúcio. E você sabe que eu queimo como se

estivesse com o próprio inferno dentro dos meus ossos?

— Você exagera. Toda dor é igual. Não há maior

nem menor.

— Desgraçado! Miserável!

— Eu? Por quê? Nunca xinguei você em momento

algum. Agüentei o jogo que você me propôs. Não pode

ofender-me assim. Mesmo porque...

— Cale-se, Lúcio.

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— Conversando, as coisas melhoram, se esclare-

cem. Não vai demorar tanto, você sabe disso. E por sua

culpa. Se seguisse o meu conselho, como segui o seu, a

solução seria rápida.

Apertou a cabeça e soltou um pequeno uivo de de-

sespero. Virou-se, sentindo o corpo todo molhado de su-

or. Os olhos estavam chorando por mais que quisesse se

conter.

— Dói muito?

Não era mais a voz de Lúcio. Era daquele homem.

Ouviu a sua cama ranger e o colchão abalar-se. O homem

sentara-se a seu lado. Felizmente sua presença afastava

para longe a imagem de Lúcio.

— Dói, muito?

Prendeu os lábios com os dentes para não respon-

der.

Pedro observou o seu rosto transtornado onde o

suor invadia tudo. A dor poderia levar aquele homem à

loucura e ao desespero total.

— Espere um pouco. Vou ajudá-lo.

Ergueu-se e caminhou até a pia e voltou no seu

passo arrastado, trazendo um velho lenço molhado.

Umedeceu a testa, os cabelos, os lábios e sobretudo

os olhos que teimavam em permanecer fechados.

— Melhorou um pouco?

Os olhos foram se abrindo e o vulto confuso entre

sombras dançava no resto do seu desatino.

— Não é mais você, Lúcio? Não. Não é. Não são

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os olhos verdes de Lúcio.

Respirou fortemente, quase arquejante, como se

quisesse atirar a dor para bem longe.

— Sou eu, Pedro. Simão Pedro, como você disse

que eu me chamava. Não se lembra?

Um ligeiro sorriso nasceu na face do outro e serviu

para ampliar os vincos que desciam dos olhos sempre i-

luminados, sempre molhados. Aquele homem devia cho-

rar até quando dormia.

Repetiu num murmúrio.

— Simão Pedro.

Pedro continuou friccionando o seu pescoço com o

lenço úmido, desatou o laço que servia de botão e enxu-

gou também o suor do peito emagrecido, onde as costelas

começavam a despontar pontudas.

— Por que você não faz uma coisa?

— O quê?

— Já que não quer tomar as injeções que o médico

receita, tome pelo menos, de vez em quando, um sedativo

desses que estão sobre a mesinha.

— Ê bobagem. Porque a dor diminui por momen-

tos, mas depois ela parece crescer mais. Por isso não que-

ro as injeções.

— Mesmo assim, seria melhor. A gente deve se

poupar sempre um pouco.

— Tem vezes que até eu penso em tomar um deles.

— E por que não o faz?

— Porque prefiro levantar-me só quando preciso ir

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ao banheiro. Apoiar essa perna no chão mais de uma vez é

impossível.

— E por que não me chama?

— Por que incomodar os outros? Ninguém tem es-

se direito.

— Eu vou buscar um caneco d’água. De agora em

diante, ele sempre estará cheio a seu lado.

Novamente se encaminhou para a pia. Pedro até

perdera a noção de quantas vezes fizera aquele roteiro

desde que se achava internado na enfermaria. Quantos

anos, Pedro? Abriu a bica e encheu o caneco. Besteira,

Pedro. Não adianta pensar nessas coisas. Deu com o rosto

envelhecido no espelho descascado, com as rugas compri-

das, com os cabelos totalmente brancos, com os gestos

indecisos das mãos incompletas e de suas garras meio re-

curvas. Vamos, Pedro. Vamos, Simão Pedro. Você não

tem dor e aquele homem está morrendo. Você também

não pode dizer que deve viver a vida para a frente, mas

pelo menos pode afirmar que pode morrer sua vida deva-

gar e sem dor.

— Está aqui a água. O comprimido você mesmo

descasca porque meus dedos não prestam para nada. Mas

dá ainda para levantar um pouco a sua cabeça enquanto

você bebe.

Acompanhou o movimento do outro e desceu a

cabeça devagar no travesseiro de palha duro e socado.

— Feche os olhos e experimente dormir, que a dor

vai embora logo.

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Quis erguer-se.

—Não se vá. Fique mais. Se você ficar um pouco,

Lúcio vai desistir e não volta mais hoje.

Pedro sorriu. Sabia que a dor, quando era muita,

criava delírios e fantasias mórbidas.

Ficou quieto, sem se mover, apenas respirando de

leve, esperando que o rapaz de olhos fechados dormisse

completamente. Suspendeu a vista para o comprido da

enfermaria e viu as camas dispostas de seis em seis. Do

lado do fundo onde dormia, elas eram um bloco unido.

Mas na fila da frente havia a mesa das refeições, e as ca-

mas se colocavam de três em três para que permitissem a

passagem da porta. Fora da porta, aquele imenso corredor

branco sempre com cheiro de éter e de remédios. No

fundo do corredor encontrava-se o pavilhão das mulheres.

Todas com o mesmo problema deles. Era gente guardada

como tesouro para ser exibida no anfiteatro do sexto ano,

no curso de Neurologia. Mudou os pensamentos rapida-

mente. Os olhos voltaram-se para dentro da enfermaria.

Havia calma. Havia paz. Os homens se grudavam tanto

nos leitos que muitas vezes nem se lhes distinguia as cabe-

ças. A maioria era retirada para fazer as necessidades ou

para tomar banho na mesma banheira onde a água, sendo

pouca, devia lavar pelo menos quatro corpos. Sempre dei-

xavam o que se cocava por último. Sua coceira crônica

poderia passar para os outros. Nem sempre havia sabão.

Mas os pijamas meio quentes e ásperos eram mudados de

quinze em quinze dias depois do banho. Os pijamas vi-

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nham da Liga Brasileira de Assistência. No lugar do botão

e das casas apareciam dois pedacinhos de cadarços para

amarrar.

A enfermaria sempre parecia a mesma. Muitos do-

entes naqueles anos haviam morrido e foram substituídos

por “casos” de estudos, casos raros como os estudantes e

os médicos classificavam. A enfermaria não aumentava

nem diminuía. Tudo ali se aprisionava num limite. Como

um navio que se perdesse num mar e esse mar não trou-

xesse outro horizonte além da própria água.

Não obstante, os homens não eram tristes. E quan-

do se aproximava um pouco de tristeza, se adivinhava pe-

lo ajuntamento das moscas e pela sombra da morte ron-

dando lentamente pelos cantos.

No mais, eles gostavam até de se comparar intima-

mente. De descobrir que o caso dos companheiros parecia

sempre pior e com menos possibilidade de duração. O

passado interessava apenas nos primeiros dias, nos primei-

ros momentos, enquanto novidade. Depois, o esqueci-

mento, a redução ao nada. O mesmo acontecia com o fu-

turo, colocado na mão de Deus. Como se Deus pudesse

fazer mesmo alguma coisa, ou se lembrasse de o fazer.

Mas Deus estava presente em todas as crises de dor. Deus

habitava em todos os gemidos e em todas as lágrimas, em

todos aqueles rostos que já tinham sido humanos e que se

contorciam sem jeito. Passados os momentos de angústia,

Deus se petrificava na atrofia e na paralisia. Deus talvez

não fosse uma grande esperança, mas também não signifi-

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cava esquecimento. Nunca também a lembrança. A lem-

brança de que aqueles pedaços de gente, que tinham sido

homens, que se retorciam, se encolhiam e minguavam,

podiam um dia ter sido feitos à imagem desse mesmo

Deus.

Alguma coisa atraía o olhar de Pedro. Eram os o-

lhos negros de João que pareciam adivinhar-lhe os pensa-

mentos. Voltou a vista para o rapaz que ainda dormia.

Bom que o remédio fizesse um pouco de efeito. Mesmo

assim, sentia que os olhos negros de João o estavam ob-

servando. Estremeceu. Que olhos verdes seriam aqueles

de que ele falara? Quem seria Lúcio?

O rapaz movimentou-se na cama e sorriu para Pe-

dro.

— Dormiu um pouco?

— Acho que sim.

— Pelo menos uma hora e meia. Olhe, o sol já bai-

xou e penetra pelas janelas da enfermaria. As moscas vêm

brincar na sua luz em cima da mesa de mármore. Já re-

frescou bastante.

Ficou observando a dança das moscas no mármore

manchado da mesa.

— Pedro. Pedro, não. Simão Pedro. Você que está

aqui faz muito tempo, sabe me dizer porque essa mesa é

de mármore?

Pedro riu e balançou a cabeça negativamente.

— Pois eu desconfio que sei.

Voltou longe ao passado. Vira muitas daquelas me-

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sas na “morgue”. Sujas e manchadas tal aquela.

Pedro continuou seu pensamento.

— Eu menti. Eu também sei de onde ela veio. Foi

do necrotério. As mesas de madeira não agüentavam. A-

qui muita gente caía e desmaiava sobre elas. Daí trouxe-

ram essa de lá.

Calaram-se. Não havia mais motivo para insistir

naquela conversa.

— Olhe lá. João não tira os olhos de cima da gente.

— Não tem importância.

— Acho que ele desconfia que você anda batizando

a gente de apóstolo.

— Mas foi ele mesmo que veio com essa conversa.

De que alguém entraria por aquela porta e faria um mila-

gre. Não foi?

— Foi.

— Nós não somos doze? Aquele homem lá do

fundo não se chama Bartolomeu? Você não é Pedro? Ele

mesmo não se chama João? Não vive lendo coisas da Bí-

blia e do Evangelho? Não tem mania de fazer profecias e

ser evangelista? Tudo isso foi facilitando.

Pedro ria da idéia esquisita.

— Depois, que diferença faz aquele homem lá se

chamar Joaquim ou Tadeu? José ou Tiago? Faz?

— Acho que eles nem estão sabendo dessa brinca-

deira. O diabo é como a gente vai perguntar ao João o

nome de todos os apóstolos?

— Também não é necessário. Nem todos os após-

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tolos serão importantes aqui nessa enfermaria. Mas se for

preciso eu sei o nome de todos.

Pedro se admirou.

— Sabe mesmo?

— Sei. Quer ver?

Suspendeu os dedos e foi contando, enquanto os

enunciava.

— Simão Pedro, Tadeu, Felipe, Bartolomeu, An-

dré, Tomé, Mateus, Simão, Tiago, Tiago Menor, João e

Judas Iscariotes.

— Puxa! Sabe mesmo. Então vai ser fácil batizar o

povo.

— João já existe. Bartolomeu é uma evidência. É

você é Simão Pedro. “Tu és Pedro e sobre essa pedra eu

edificarei a minha Igreja.”

Pedro se encontrava fascinado.

— E eu?

— Não sei. Você parece muito moço para ser após-

tolo, igual àqueles velhos que a gente vê na ceia do Se-

nhor. Só você mesmo que inventou a história pode saber

o nome que vai querer.

— Eu só posso ser um.

O ar de zombaria desaparecera e sua fronte achava-

se agora contraída. Seus olhos eram toda uma expressão

de tristeza. Pedro se apercebeu que a dor começava a re-

tornar.

— Eu sou Judas. Judas Iscariotes.

— Por que logo esse? Esse é horrível, não é?

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— Talvez. Mas eu tenho trinta anos. Nasci num dia

trinta e traí um homem talvez por menos de trinta dinhei-

ros.

Pedro não sabia o que dizer. Na certa, a dor reco-

meçaria nele o plano do delírio e de tristeza.

— Vamos parar. Você precisa descansar um pouco.

Está falando demais. Não quer outro comprimido?

— Estou quase acabando... Eu sou Judas. Judas Is-

cariotes. Não se esqueça disso. Mesmo porque Judas, de-

pois de Cristo, foi a figura mais importante dos evange-

lhos. Ele afirmou o Cristo. Sem ele, talvez Jesus nem ti-

vesse a importância que teve. Cristo precisava ser traído.

Estava nos seus planos.

— Está bem. Está bem. Mas não se enerve, senão a

dor volta com mais força.

Judas balançou a cabeça.

— Ela já voltou. Só disfarçou um pouquinho. Até

que foi boa a nossa conversa.

— Está bem. Mas eu me lembrei de uma coisa.

Passei toda a tarde e me esqueci de dar água ao morto.

Nem reparei se ele movimentou os lábios pedindo. Que

cabeça meu Deus!

Judas prendeu seu braço fino entre os dedos.

— Ele não é o Morto. De agora em diante chamar-

se-á Tomé. Só ele pode ter esse nome.

Ante o espanto de Simão Pedro, Judas esclareceu.

— Tomé era aquele que para acreditar precisava to-

car. Ele tocou nas chagas de Cristo para ver se era mesmo

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o Cristo Redivivo. Esse é Tomé ao contrário. Ele precisa

ser tocado para demonstrar que ainda está vivo.

Afrouxou o corpo e Simão Pedro pôde se aproxi-

mar da cama de Tomé.

Apanhou a caneca de ágata, encheu-a na pia e fixou

o rosto, o corpo morto de Tomé. O homem apenas respi-

rava. Respirava devagar. O rosto de olhos fechados não

mostrava uma gota de suor sequer. Fazia meses que se

encontrava ali naquela cama. Não falava. Não se movia.

Só os lábios, quando sentia sede. Não fosse Pedro, ou às

vezes João, ele morreria de sede. Madalena nunca se in-

comodava se ele movimentava os lábios ou não. O mais

que fazia era deixar uma laranjada aguada sobre sua mesa.

Isso porque o médico ordenara.

Pedro passou os dedos molhados em sua testa e

depois levantou a cabeça de Tomé, deixando pingar gotas

de água. Enquanto executava isso, ia raciocinando.

— Talvez nunca operem... Talvez achem que não

valha a pena. Por isso os médicos não vão se interessar

mais. Eles mesmos disseram que talvez ele tenha momen-

tos em que possa pensar e ouvir. Mas não garantem nada.

Naturalmente ele nem vai sentir quando chegar a morte.

Tudo vai ser como num sono.

Ergueu a vista, enquanto deixava a água pingar um

pouco mais. As moscas ainda dançavam na luz, pulavam

do ladrilho para a mesa de mármore e dessas para as bocas

dos doentes mais indefesos.

Depois, Simão Pedro levantou-se com a caneca en-

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tre as garras.

— Até logo, Tomé. Não sei se você sabe. Mas To-

mé é o nome com que você foi batizado aqui. É muito

melhor a gente chamar você de Tomé do que de morto.

Até logo, amigo.

Foi para sua cama. Ergueu as pernas secas e ficou

analisando com os dedos atrofiados as bolas salientes dos

joelhos. Quando escurecesse mais chegaria a hora do jan-

tar. Do jantar, não. Da Ceia, como Judas afirmara.

Do lado de fora, no parque, grudadas nos ficus-

benjamins gigantes, as cigarras faziam um alarido ensurde-

cedor, anunciando que o Verão cada dia se tornava mais

forte.

Foi então que Pedro pensou com um sorriso. “A-

manhã é mais uma quinta-feira. É mais um dia de visitas”.

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CAPÍTULO III

A Ceia

Foi Simão, o epiléptico, quem deu o alarme.

— Lá vem “ele”.

Judas Iscariotes virou o pescoço cansado para o la-

do do grito. Adivinhava tudo o que aconteceria. Mas pre-

cisava interessar-se por alguma coisa, ao menos para des-

pistar a dor contínua.

Simão, o epiléptico, desgrudou-se da janela, cami-

nhou meio desequilibrado, como sempre com a intenção

de ajudar os companheiros a se movimentarem.

Conforme “ele” estivesse, a ceia decorreria calma e

sem medo. Pedro dera agora para inventar que aquele

homem era o Demônio. E quando se aproximava a hora

da sua aparição, pensavam medrosamente: O Demônio

vem aí.

Simão permitiu que Tadeu enrodilhasse os braços

fracos no seu pescoço, enquanto penosamente ajeitava o

travesseiro para que o rapaz se recostasse. E aquilo fazia

mal a Simão. Não só porque seu corpo possuía pouca re-

sistência como também pelo cheiro que se escapava de

Tadeu e subia às suas narinas. Tadeu sempre se encontra-

va sujo. Uma vez Pedro ou ele conseguiam lavá-lo, mas o

dia todo era impossível. E enquanto Tadeu permanecia

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parado com as cobertas, erguidas até o pescoço a coisa

disfarçava, mas quando precisavam movimentá-lo uma

certeza acusava a sua consciência, a certeza de que não era

nada nesse mundo, que ninguém valia nada, nada mais do

que a merda do corpo de Tadeu.

Entretanto Tadeu sorria agradecido e murmurava

numa voz humilde o seu muito obrigado.

Em seguida Simão ajudou Mateus a descer da cama

e o apoiou para que alcançasse a mesa. Dali a sentar-se no

banco a dificuldade seria amenizada.

Por sua vez, Pedro, do outro lado, prosseguia numa

tarefa semelhante. Urgia que os que não pudessem se sen-

tar à mesa, se encontrassem soerguidos nos leitos para que

o Demônio não ficasse com raiva.

E os olhos de Judas acompanharam o vulto piedo-

so de João, concentrado, rezando enquanto aguardava a

ceia. E o medo também parecia imobilizar a todos naquela

posição diferente da paralisia comum. Porque ninguém

podia adivinhar como seria a aparição do Demônio.

Foi então que Judas Iscariotes riu, apesar de estar

com o rosto molhado de lágrimas e de dor. Aquela ceia

era mais humana do que todas as que vira em estampas e

pinturas. Era mais humilde e ainda mais pobre. Possivel-

mente mais real, porque todos se colocavam nos dois la-

dos da mesa. Na ceia de prata da casa de sua avó, todos os

Apóstolos permaneciam de um só lado como se quises-

sem sair no retrato. Olhou novamente João. Pobre João

que profetizava coisas lindas. João que não via a estranhe-

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za daquela ceia. Que não enxergava o vazio que existia no

centro. A ceia onde o personagem principal nunca apare-

cia. Aparecia, sim, a porta vazia por trás, onde João anun-

ciava o grande milagre. Quem sabe mais tarde.

O ruído do panelão sacudindo-se na bandeja gran-

de de alumínio aumentou porque os passos dele subiam a

escada externa e iam começar a invadir a enfermaria.

Os que podiam e estavam sentados em volta da

mesa de mármore branco, munidos apenas de colher, ten-

tavam agora afastar as últimas moscas da tarde. Talvez

disfarçando naquele gesto a apreensão pela presença do

Demônio.

Dentro em breve a luz fugiria para dentro da noite

e seria necessário acender a da sala.

O Demônio, resfolegante pelo esforço, colocou o

bandejão na mesa e deu boa-noite com um sorriso. Na

semi-sombra, os olhos medrosos se apaziguaram e os

homens puderam respirar mais livremente. O Demônio

não se encontrava bêbado. Com cuidado ele ajeitou a

bandeja para não magoar os doentes que se debruçavam

na mesa. E o Demônio falou.

— Esperem que vou acender a luz.

Isso também acontecia. O preto enorme, encurva-

do. Com os olhos bestiais e maneiras simiescas, algumas

vezes se comportava ao nível de um ser humano.

Preparava-se para servir os doentes, mas Pedro o

interrompeu.

— Por favor, deixe que eu faça isso. O senhor está

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cansado. Veio de longe com todo esse peso.

Ele cedia e procurava nos bolsos uma guimba de

cigarro apanhada no chão, na sala dos médicos.

Uma satisfação geral afugentava a inquietação ante-

rior e mandava para bem longe o medo do Demônio. Es-

queciam-se que o preto era o próprio Demônio. Afinal ele

não era tão ruim assim... Ele se tornava ruim por causa da

bebida.

Esqueciam-se até que no dia anterior ele chegara

bêbado, cruel e desesperado, porque não conseguira acer-

tar no bicho. E odiando aquele mundo em que poderia ter

ascendência, vingava-se dos doentes.

Brutalmente puxaria esse que não se sentara na ca-

ma e que tremia.

— Seu porco imundo! Por que não se senta?

Agarrava outro.

— Seu filho da puta, está com luxo hoje?

Parava diante da cama de Tomé, o Morto.

— Vocês deviam estar como esse vagabundo que

não dá trabalho.

E metia o pé onde o botinão grosso se avolumava,

em qualquer parte do corpo de Tomé.

Os homens ainda conseguiam se encolher mais de

tanto pavor. Não podiam fugir. Não podiam falar nem

responder. Tinham vontade de matá-lo, mas não possuí-

am mãos para tanto.

Madalena encostada na parede, quase escondida no

vão da porta, assistia tudo. Presenciava tudo e estava habi-

Page 28: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

tuada a tanto. Não se comovia com o comum dessas ce-

nas e não se intrometia nunca. Tinha que ser assim mes-

mo. Sempre o fora nos vinte anos que rolara pelos ladri-

lhos do Hospital de Neurologia. Assim era no pavilhão

imundo dos homens. Assim o era no pavilhão imundo das

mulheres.

Mas hoje, não. “Ele” não bebera e se desmanchava

em cordialidade para com os internados. Reparava com

prazer na mão mirrada de Pedro penetrando no vasilhame

gorduroso e enchendo com aquela sopa de entulhos os

pratos de ágata descascados.

A comida ensebada e quase fria se derramava com

parcimônia. A sopa grossa e pegajosa, com pedaços de

carne dura e escurecida, os talos de couve e principalmen-

te a batata que nunca vinha descascada, patinava pelos

pratos. As colheres indecisas e mal manejadas batiam ba-

rulhentamente. Os homens enfraquecidos deitavam-se

quase, apoiando-se nos membros para não encostar o ros-

to no mármore da mesa. Os gestos tornavam-se incom-

pletos. Os sorvos, ruidosos.

Nas camas era pior. Mateus, cujos braços a cada dia

se paralisavam mais, erguia a colher até a boca. Os lábios,

com pouco movimento e entreabertos, derramavam a me-

tade da porção levantada. O caldo escorria pelo pescoço,

atingia o pijama e só não encardia mais o lençol porque

Pedro ou Simão caridosamente colocavam um pedaço de

jornal velho.

Judas Iscariotes com dificuldade virou o rosto para

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outro lado. Mas seus ouvidos escutavam a conversa, os

pedidos entrecortados.

— Pedro, está gostoso, não? Se sobrar um pedaço

de batata você põe no meu prato?

— Espere um pouco, Felipe.

— Sobrou um pedacinho de carne, Pedro?

— Carne não tem mais. Só couve, quer?

Judas Iscariotes sabia a origem daquela comida to-

da. Na certa, eram restos que apanhavam nas feiras. So-

bras de verduras, esmolas de carne. Mas eles tinham fome.

E enquanto não viesse o Pão do Amor que João vivia

prometendo, eles se contentavam com o pouco daquilo

tudo. Teriam que se alimentar porque a noite quente se

tornava longa. E teriam também de engabelar a fome até o

café das sete e meia, no dia seguinte.

O Demônio principiou a juntar os pratos.

— Não falta mais ninguém?

Rolou a vista pelas camas até atingir Judas, deitado

de costas para a ceia.

— Ele não quer?

— Não.

— Por quê?

— Há dois dias que não come. Há dois dias que

quase não fala. Há dois dias que não quer se movimentar.

Desde que falou com o médico ficou assim.

— Vamos até lá.

Contornou a cama e colocou-se entre ele e a porta

que dava entrada ao anfiteatro. Encarou o rosto emagreci-

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do de Judas que a luz ao longe vinha desbotar ainda mais.

Ele continuava na mesma posição. O pescoço inteiriçado

e os olhos procurando a treva. O peito, forçado pela posi-

ção do pescoço, respirava meio arquejante, mostrando a

cada movimento pela abertura do pijama as costelas sali-

entes.

Sentou-se na beira da cama e com as mãos duras

suspendeu a cabeça de Judas Iscariotes. Um tremor per-

correu-lhe o corpo e a cabeça tentou voltar à posição an-

terior. O Demônio não o permitiu.

— Olhe. Você precisa comer. Você precisa se ali-

mentar.

Um gemido surgiu em vez de voz.

— Não vê que isso não ajuda? Não fique assim.

Você vai ficar bom.

Ergueu-lhe mais a cabeça.

— Se você não quer ir até a mesa, eu trago o prato

até aqui.

Judas abriu mais os olhos. Fitou o Demônio sem

nada dizer. A morte fizera leito nas suas pupilas. Sua alma

se desligara do momento e parecia não querer compreen-

der aquilo que lhe diziam.

— Vamos. Não fique assim. O joelho dói muito,

não dói?

Um pouco de luz se fez dentro daquele olhar.

— O Dr. Tiago falou com você, não foi? Ele não

disse que você ia ficar bom?

Seus lábios se contraíram endurecidos, e novamen-

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te um fio de lágrimas escorregou de cada lado do seu ros-

to.

— Não. Ele não disse isso. Disse apenas que vou

cortar minha perna muito em breve. Disse também que o

meu tumor se irradiou. Que os meus pulmões estão atin-

gidos pela metástase. Sabe o que é isso? Pois bem, isso

quer dizer que... meus dias estão contados. Se não acredita

pergunte a Lúcio!

— Que Lúcio, meu filho?

— Abra a porta do anfiteatro, por favor. O Demô-

nio obedeceu.

— Está vendo? Lúcio está sozinho sentado na ter-

ceira fila. È aquele que está sempre sorrindo. Sim. O de

grandes olhos verdes...

Tentou colocar a cabeça no travesseiro e respirou

fundo.

— Agora, me deixe em paz, sim?

O Demônio encaminhou-se para o centro da en-

fermaria e em silêncio começou a arrumar os pratos e os

restos da ceia na bandeja grande de alumínio.

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CAPÍTULO IV

O Pêndulo de Felipe

Foi o Dr. Tiago que, brincando, batizara o seu pescoço de

pêndulo. Nem sabia bem o que significava, mas devia ser

algo relacionado com sua cabeça desequilibrada. Não pos-

suía forças do lado direito do pescoço e a cabeça tombava,

encostando-se no ombro. Tornava-se necessário então

suspender com a mão esquerda a cabeça e empurrá-la para

o lado direito. Para que ela permanecesse nessa posição,

amparava-a constantemente com a mão, impedindo que

caísse. Então ao acordar a primeira coisa era colocar no

lugar aquele pescoço deslocado. Não se esquecer que em

momento algum durante o dia poderia soltar a mão es-

querda. Convencer-se sempre que, sem esse apoio, a cabe-

ça tombaria sobre o ombro.

Pronto. Felipe tinha se organizado e sentara-se na

cama. Alguma vantagem aquela doença trouxera-lhe. Bas-

tava encostar a cabeça no travesseiro e já dormia. O mun-

do que desabasse no maior terremoto e ele nem acordaria.

Um sono só. Ligado e sem sonhos. Amanhecia, acordava

descansado como se nada tivesse. Também o médico lhe

dissera que nunca mais sairia do hospital. Aquilo era mui-

to bom. Não precisava trabalhar, nem viver a vida lá fora

que se tornava cada dia mais difícil. Orgulhava-se até de

Page 33: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

ser um caso muito raro. Nem se incomodava nos dias de

“caçada humana” quando o chamavam para o anfiteatro

para servir de exemplo aos estudantes do sexto ano. Só

desabotoava o pijama em cima e mais nada. O que inte-

ressava era o seu “pêndulo”.

Sorriu. Não é que aquele pessoal vivia inventando

coisas?! Agora tinham-lhe dito que seu nome era Felipe. E

que ele era um dos Apóstolos do Senhor. Nem se zangou.

Melhor se chamar Felipe do que pelo nome pavoroso com

que os pais o tinham batizado. Felipe até que era bonito.

Felipe. Pronto, então eu sou Felipe mesmo. Com apóstolo

ou sem apóstolo, gostei de ser Felipe.

A primeira vez que chegara ali, os médicos lhe per-

guntaram sobre sua história. E ele contou. História besta

mesmo. Ficara assim num carnaval de dois anos passados.

Tomara um puto porre e adormecera no asfalto da Praça

da Bandeira. O calor do verão trazia da terra o bafo mor-

no, recolhido do sol intenso. De madrugada, acordara

com uma dor incrível na cabeça e no pescoço. Ainda por

cima caía uma chuvarada grossa sobre o seu corpo. Ta-

manha fora a impressão desse acordar, tão grande era a

dor, que não sabia se se encontrava vivo ou morto. Se não

estava grudado no asfalto e rachava ao mesmo tempo que

na terra. Inconsciente e com muita febre, chegara numa

ambulância até ao pavilhão dos homens.

Ficara com uma parte do pescoço paralisada, sem

forças. Desde aquela época, os médicos diziam esperar

uma ocasião para operá-lo. Mas não se enganava. Quando

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uma pessoa caía ali, nunca era operada não. Eles só queri-

am mostrar a doença deles para os estudantes. - Depois,

se acostumou. Se acostumou com a mão na cabeça e pa-

recia que, quando não se achava nessa posição, alguma

coisa se encontrava errada. Foi ficando. Dependendo só

da habilidade da mão direita, podia ajudar em qualquer

trabalho no hospital. Permitiam que ele entabulasse o co-

mércio cotidiano entre os doentes e a rua. Felipe fazia a

fezinha dos homens no jogo-do-bicho. Os homens es-

premiam os tostões vindos quase sempre da caridade con-

tra uma sorte que não vinha. Também o que queriam

mais? Tinham casa e comida de graça, banho de quinze

em quinze dias, e de quinze em quinze dias um pijama

limpo. Ora, bolas!

Felipe também trazia as novidades da rua, princi-

palmente as histórias dos desastres, que agradavam tanto

ali.

As últimas notícias da guerra, para animar a parali-

sia reinante na enfermaria.

Agora, seu orgulho todo era bem outro. Fora no-

meado barbeiro pelo hospital. Segurando a cabeça com a

mão esquerda, com a outra apoiava a navalha ou a tesou-

ra. Ia barbeando ou cortando os cabelos. Cobrava pouco,

de acordo com o que o freguês tivesse para pagar. Agora,

de graça, nunca. Não era otário. Interessante que ninguém

tinha medo ou desconfiava que um dia aquela mão, que

sustentava a navalha, poderia falhar.

Felipe sentou-se mais fortemente na cama. Estava

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quase pronto. Só faltava o pescoço dar aquele estalinho. E

logo que desse poderia levantar-se.

Madalena apareceu na porta da enfermaria com

uma cara de chamar chuva. Felipe riu por dentro. A puta

velha estava danada da vida. Hoje era quinta-feira e o mé-

dico ordenara que os doentes teriam de ser lavados. Ia ser

trabalho duro para ela e o Demônio.

Ninguém gostava da velha enfermeira, que quando

se agachava para fazer massagens nas nádegas de alguém,

deixava à mostra as pernas gordas e caroçudas, assim co-

mo as grandes nódoas de suor debaixo do sovaco, no ves-

tido encardido. Desleixada e suja, xingando entre dentes,

cumprindo de um jeito incompleto todas as obrigações,

confundindo higiene com os dedos sempre enfiados nos

cabelos ensebados, a torcer cachinhos. Nem mesmo para

companhia, durante a noite, ela servia. Se continuava ali

era porque não encontravam outra para trabalhar tão bara-

to. Muitas noites, tinham dela necessitado e por mais que

batessem à porta do seu quarto, só o ruído do seu gordo

ronco respondia às súplicas e aos gemidos.

Todos os olhos se muniam de piedade, quando

Madalena penetrava na enfermaria com a agulha de inje-

ção desembainhada. Também ninguém reclamava porque

tudo tinha de ser assim mesmo.

Entretanto para Madalena aqueles homens nada

significavam. Se por acaso encontrava-se de bom humor

fazia piadas com eles. Caso contrário, xingava baixinho.

Era tão dura como os ladrilhos do chão. Se um resto de

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emoção lhe extravasava a alma era para prender-se a um

mundo totalmente falso. Possuía lágrimas roliças para de-

pois do almoço chorar com as rádio-novelas, enquanto os

dedos grossos remexiam pontos no tricô.

Alguém murmurara que tinha duas filhas, mas o

que elas faziam não conseguia atingir o conhecimento da

enfermaria. Nos raros dias de folga, quando retornava ao

hospital, vinha de olhos inchados e de nariz vermelho

como pimentão.

Agora Madalena estava ali. Analisando tudo, en-

quanto o dia não clareava, toda a extensão do seu traba-

lho.

Os olhos matreiros de Felipe não perdiam um só de

seus movimentos.

— É isso mesmo, sua puta velha. Sua puta impres-

tável e intrigante. Você vai ter de trabalhar duro hoje. Vai

ter de lavar muito rabo cheio de bosta e muito pinto cheio

de sebo, sua vaca. Você ganha é pra isso e não pra ficar

grudada no rádio a vida inteira.

Foi ai que o pescoço de Felipe deu o estalo que ele

chamava amigavelmente de endurecimento. Voltou à rea-

lidade. Hoje era quinta-feira. Dia de visitas. O dia mais

alegre da vida. O dia mais lindo do hospital. Portanto dia

de muito trabalho seu. Os doentes gostavam de aparecer

de rosto barbeado e de cabelos penteados.

Deu uma risada gostosa.

— Doentes, qual nada. Apóstolos. Não é assim que

seu Judas lá de baixo e seu Pedro chamam? Os apóstolos.

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Que é também mais bonito que doente ou aleijado, lá isso

é.

Era a hora da semana em que melhor conseguia a-

panhar uns cobres. Olhou a vida em volta com um sorri-

so. A manhã dentro em breve traria para a enfermaria a

claridade de mais um dia de verão.

As janelas entreabertas empurravam para longe os

negros das últimas sombras que começavam a desbotar e

transparecer.

De repente, Felipe sentiu os seus olhos atraídos pa-

ra a cama de Judas Iscariotes.

Ao contrário dos últimos dias, Judas se erguera no

leito e encostando o travesseiro na grade da cabeceira, en-

contrava-se quase sentado. Seu rosto lívido acalmara-se

como se não sentisse nenhuma dor. O vinco das lágrimas

secara. De longe, seus olhos brilhavam como carvões fos-

forescentes que se fossem apagando.

E Felipe estremeceu.

Também observava o amanhecer. Na tristeza dos

seus olhos, com a claridade do novo dia, as sombras se

propagavam lentamente.

Pensava. Tinha de pensar. Diziam que os velhos

dormiam menos e que se levantavam mais cedo para me-

lhor aproveitar o resto da vida que lhes sobrava. Não era

as-- sim? Se o era, os velhos tinham uma condenação mais

amena e caridosa. Os outros condenados precisavam con-

tar cada amanhecer. E vai amanhecer, Judas Iscariotes.

Mais um dia na figueira do sol. A luz invadirá pela janela

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com uma força selvagem e constante de vida e tudo se

repetirá. Até... que seus olhos não amanheçam mais.

No entanto vinha aquela moleza terrível que crescia

dia a dia, hora a hora, minuto a minuto. Crescia propor-

cionalmente à sua dor. Os braços quase não obedeciam à

sua vontade. Mesmo porque a sua vontade não se realiza-

va quase. Somente aquele cansaço que doía até nas pálpe-

bras, aquela lassidão, aquela busca do não ser.

A luz clareará a enfermaria e doze camas vão apare-

cer. Alguém bocejará. Depois os primeiros remexidos nos

leitos. Os homens começarão a se locomover dentro dos

seus reduzidos limites. Passarão se arrastando até a pia.

Sentar -se-ão nas latrinas imundas e sairão ainda mais su-

jos. Homens. Pedaços de homens que já foram gente. Um

sorriso interno doendo na alma rebentou em si. Ria da

descoberta perversa.

— “No meu tempo de menino eu estudei fra-

ções”.... Não se arrependeu da maldade do pensamento

mas voltou a se alojar em sua insignificância. Tornando-se

de novo o hóspede desesperado de si mesmo. A frouxidão

da vontade revelava-se mais crua. Não queria recordar-se

de coisa alguma e contudo sentia-se prisioneiro da memó-

ria, do decorrer das lembranças. Principalmente da perse-

guição de Lúcio. Lúcio que agora não desistia. Lúcio que

surgia todas as noites, voando nas sombras com as asas do

remorso e da acusação.

Suspirava aliviado. Tinha um dia de verão, longo,

dolorido e cansativo, mas que afastava para longe o fan-

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tasma dos olhos verdes de Lúcio. Cada noite ele apertava

mais o cerco. E sabendo-o condenado, exigia a sua retri-

buição paga ao preço dos “trinta dinheiros”.

Virou a cabeça para a porta do anfiteatro. Certifica-

va-se que agora ali não existiria ninguém. Chorava por

dentro do seu desalento. Um dia alguém me quis. A dúvi-

da o assaltava. Ou talvez não me tenham querido. Todavi-

a, de uma maneira ou de outra, porque a gente não é con-

cebido por amor e sim por sexo e prazer, saindo para a

aurora, vagindo amedrontado com essa mesma luz que

aparece, conservando os mesmos mistérios, eu vim como

os outros: num parto cru entre gemidos de dores animais.

Por que os pensamentos se alinhavam assim? Por

quê? Devia ser da doença, da febre, dos arrepios de frio

que enregelava os seus ossos, da dor aguda como arpões

de fogo. Antigamente não era assim, nunca o fora.

Tentava disfarçar. Movimentar os dedos, mas as

forças faltavam-lhe. E entretanto precisava movimentar-

se, pois que ainda se encontrava intato. Quase perfeito. E

nada. Só o pensamento. Só o pensamento.

— E se me quiseram, por que agora tanta solidão?

Solidão de mim mesmo.

A luz invadiu tudo. Foi fechando os olhos dolori-

dos.

Afinal aquilo era a vida. Aquilo ainda era a vida. E

quem sabia lá o que significava a vida? Quem somos, de

onde viemos e para onde vamos? Meu querido Gauguin.-

Numa noite dessas, Lúcio adivinhara-lhe os pensamentos

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mais uma vez e repetira um trecho que lera não sei onde.

Ele dizia que não sabia. Mas eu me recordava de quem

era. Ignazio Silone. Lúcio fingia-se de esquecido para dar

menor importância à coisa. Estranho, porque quando vi-

vo, Lúcio nunca demonstrara um resquício de cinismo.

“Levava o trigo nove meses para nascer e se transformar

em pão. A uva, nove meses para amadurecer e se trans-

formar em vinho. O feto, nove meses para ver a aurora”.

E depois, devia ser mais ou menos assim, de nove em no-

ve anos o corpo se metamorfosearia. Se não fosse nove,

poderia ser doze, se não fosse suficiente doze — Merda!

— Quinze anos. Saía a infância, fugia a adolescência, esta-

bilizava-se a maturidade... e tudo para quê? Para ser devo-

rado tão rapidamente como o pão ou o vinho? Talvez a

vida do corpo, comparada à vida do pão ou do vinho,

possuísse a mesma duração de tempo no mistério das ori-

gens...

Afinal, o que era a vida?

Reabriu os olhos e sua vista grudou-se no balde de

lixo onde as primeiras moscas da manhã banqueteavam o

desjejum. O sujo da véspera permanecera esquecido. Al-

godões manchados de sangue mostravam-se para a luz.

Sim o sangue. O sangue era a vida. O sangue era

Cristo. Mas o sangue não era Deus. Deus era uma maravi-

lha tão longínqua, tão perfeita, que era melhor a gente dei-

xar Deus ser Deus em paz. Quantas vezes na selva, à luz

de miríades de estrelas, estrelas tão lindas, tão próximas,

tão grandes que quase se apanhavam com os dedos, não

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fizera declarações de amor a Deus.

— Deus, você é lindo e formidável. Eu não tenho

palavras. E se pudesse rebentar o meu coração para poder

exprimir o meu amor e a minha admiração por Você eu o

faria, porque ninguém tem palavras para conversar com

você e elogiar o que Você faz, não é, meu bom Deus? Vo-

cê fez esse mundo lindo. Esse cosmo. Esse universo, toda

essa, imensidão de galáxias que sem você não poderia e-

xistir...

Calava-se na noite e sentava-se na areia fria das

praias do rio e perdia seus olhos humildes ante tanta gran-

diosidade e pujança.

— Sem Você, meu querido Deus, nada disso existi-

ria. Eu sei. Só isso que sei e que poderei saber.

Depois o peito se confrangia, atacado por aquela

angústia que vinha desde os tempos de menino. Aquela

mesma angústia que perseguiu muito um santo tão impor-

tante e inteligente como Santo Agostinho: “E quem fez

Você, Deus? Como Você surgiu, meu querido Deus?”

Podiam as religiões tapear com quaisquer que fos-

sem os terrenos das revelações. Isso não bastava ante a

eternidade de Deus. De que valiam as explicações do livre

arbítrio. Tínhamos o livre arbítrio da escolha mas nos

condenavam ao limite de uma mística obrigatória. Sempre

o quadrado imperfeito de Cristo em vez do Círculo eterno

de Deus. Inculcavam-nos a solidão de um individualismo

condena-tório — quando apenas nos prometiam a revela-

ção limitada, onde permanecia uma participação inconclu-

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sa e distante, onde havia um Deus eterno, intangível e in-

sofismável. Ora, bolas para a filosofia, para a teologia, pa-

ra a indecisão da Escolástica — Sorriu — “que me perdoe

Aristóteles na sua inteligência maior e mais lúcida do

mundo”. Bolas também para os desígnios da quididade

unilateral. Porque a verdade segundo a assertiva aquina-

tense era uma só. Restava saber apenas se Cristo estava

com a verdade apregoada. Porque, apesar das suas convic-

ções divinas, apesar do seu poder penetrante de áuspice,

apesar da sua grande e característica assuetude, Deus con-

tinuaria mesmo após a revelação, eterno e infinito. E o

infinito continuaria sendo a negação do espaço e o eterno

a negação do tempo. Ou estaria tudo trocado? O tempo é

que seria a negação do eterno, do espaço, do infinito...

Muitas vezes na vida abismara-se com a ignorância de

Cristo. Nunca Ele afirmou estar ciente da existência de

Buda, de Brama, que vieram séculos antes, com as mes-

mas teses, com as mesmas e indisfarçáveis teorias de a-

mor. E por quê? Mais que os outros, era inegável, Cristo

tornava-se mais consubstanciai. Metamorfoseava-se num

líder mais realista, tentando de um meio mais dolorido

também revelar a perfeição de Deus. Mas porque somente

Ele era a verdade e a vida? E os outros, ignorados por Ele,

silenciados por Ele. Sim, devia ser isso. Um meio. Um

meio de chegar a Deus. Um meio, porém, nunca uma so-

lução.

Remexeu-se nervosamente na cama. Aqueles pen-

samentos davam-lhe certo excitamento, cansavam-no, mas

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conseguiam disfarçar o seu desfalecimento e dor.

Riu intimamente. Posso parecer com Judas Iscario-

tes. Ser até chamado assim. Mas não odeio Cristo. Acho

lindo o seu sacrifício. O bem que ele criou, as sementes de

esperanças que Ele semeou. Afinal, se realmente houvesse

uma salvação, tanto seria belo ou mais belo> se ela fosse

obtida pela figura de Cristo. Se houvesse uma salvação,

felizes os que o conseguissem pelo amor de Brama ou pe-

la placidez de Buda. No mais, Cristo era tão lindo no seu

idealismo é seu holocausto. Usara um pouco demais hor-

ríveis explorações sentimentais. O sangue. A cruz. A chi-

coteação. A coroa de espinhos. E sobretudo Judas. E so-

bretudo Judas. Abusou de Judas para a sua Redenção —

Lá vinha a figura estranha do Irmão Estêvão, com o nariz

apimentado, sempre se enxugando num lenço de riscadi-

nho, afirmar categórico: Judas é o único ser condenado ao

inferno. Em casa, para seu espanto o pai também confir-

mava, dizendo usar as palavras de Jesus: Sim, é verdade, é

o único que está garantido no inferno. Aquela história ba-

rata da religião católica, quadrada e passiva, esbofeteava as

primícias da sua fé no coração da gente ainda “tão puro,

ainda na alvorada”, como diria Fagundes Varela. Nunca.

Cristo que se dizia Amor jamais quereria tamanha barba-

ridade. Um único homem a quem Cristo condenasse lan-

çaria por terra toda a teoria do seu amor pela humanida-

de...

— E Deus não perdoa em primeiro lugar aqueles

que se suicidam?

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Sentiu um arrepio brutal triturar-lhe a medula de

todos os ossos. Era a voz de Lúcio.

— Não é isso? Deus não perdoa imediatamente aos

suicidas? Responda.

Trincou os dentes para impedir a fala.

— Alguém me disse um dia. E esse alguém foi vo-

cê. Sé um homem não tivesse que morrer e abreviasse a

vida, sim. Seria um crime contra o Espírito Santo. Contra

Deus. Mas ele apenas abrevia, destrói apenas uma coisa

que tem de acabar um dia. E o desespero de quem se ma-

ta? Você já imaginou? Não é isso que alcança o perdão de

Deus imediatamente? Fale! Diga alguma coisa.

E como não respondesse, Lúcio continuava.

— Agora você está começando a saber o que é esse

desespero. E note bem que os mortos não são pagos com

as trinta moedas do desamor. Por enquanto você só vê os

meus olhos, o meu rosto e ouve a minha voz. Mas por

acaso sabe o que aconteceu às minhas mãos? Vamos, diga.

Sabe?

Judas Iscariotes balançou a cabeça negativamente.

— Quer ver?

— Por favor, Lúcio. Agora não..

— Tem razão. Ainda é um pouco cedo para que eu

as mostre. Vou sair. Continue se masturbando metafisica-

mente. É bonito. Ajuda a disfarçar a dor. Ajuda até a mor-

rer. Isso eu posso lhe garantir. Não se lembra onde parou?

Pois bem. Na criação do inferno. Vamos, o inferno foi

criado, jamais...

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— Será perpétuo. Jamais verdadeiro no sentido e-

terno. Respirou aliviado ao sentir longe a presença de Lú-

cio.

Nunca ele surgira tão cedo. Sentiu-se pequenino e

inútil. Desanimado e vão. Por que os meios que nos levam

a Deus são tão quadrados e obsoletos? Tão limitados?

Talvez o fracasso de Buda, de Brama, de Cristo tenha ad-

vindo pela limitação do quadrado. Aquela mania. Quadra-

do filia.

Mas o coração se apaziguava ao raciocinar que, se

tivéssemos sido arremessados no contorno de um círculo,

estaríamos talvez mais próximos da eternidade de Deus.

Muito embora a eternidade também fosse um círculo im-

palpável. — Sabe, Deus. Apesar de todas as minhas cul-

pas, eu gosto de você. Gosto a meu jeito. Ao formato da

minha grande pequenez. Deus, você é a coisa mais linda

do pensamento, e o homem, minúsculo, vaidoso e bobo

em pensar que foi criado à sua imagem e semelhança. Tão

lindo Cristo morrendo na cruz para a sua Redenção e re-

denção dos homens. Até Os quadros famosos mostravam

tudo isso numa tragédia sublime. Deu um suspiro de de-

sânimo.

— Bobagens! Quando eu estudava medicina e Lú-

cio também... ninguém ignorava que Cristo morreu clini-

camente por um processo de acidose.

Parou os olhos num pequeno armário, que sempre

se postava como sentinela muda perto da porta do anfitea-

tro. Sempre trancado à chave. Ali havia uma quantidade

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enorme de remédios. Sedativos fortíssimos que só eram

aplicados com ordens médicas. Terminado o expediente

médico, as chaves giravam em sua fechadura e ele parecia

dormir indiferente à dor dos outros.

Fez um esforço porque alguma coisa o atraía. Que-

ria saber a razão disso. Uns olhos o atraíam e não seriam

os de Lúcio.

Deu com o olhar de Felipe que o fitava espantado,

e estremeceu.

Page 47: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

CAPÍTULO V

Os Bons Samaritanos da Penúria

— Nada disso! Se não paga, não lhe corto o cabelo nem

lhe faço a barba.

André, desapontado, fitava Felipe. Seus olhos cres-

ceram no espanto e na decepção.

Judas Iscariotes acompanhava a discussão. Estra-

nho que todos os enfermos possuíssem olhos tão grandes.

Os rostos quase sempre paralisados e de pequenas expres-

sões, afinados certamente pela dor, faziam com que os

olhos se arredondassem e se tornassem enormes. Todos

viviam mais pelos olhos do que por qualquer parte do

corpo.

André achava-se assim naquele momento. Uma do-

se de incompreensão e humildade se concentrava neles

como se dissessem: “Não é possível ser mau desse jeito”:

Porém Felipe não cedia. Em pé, defronte à cama,

com a mão esquerda apoiando o pescoço e com a outra

sustentando a navalha e a tesoura, esperava que André

capitulasse.

— Pois é. Não pagando, nada feito.

Sentindo que a parada poderia ser perdida, Felipe

argumentou.

— Prá jogar no bicho, você tem, você acha. Agora,

Page 48: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

para pagar uns miseráveis níqueis, fica aí com essa cara de

piedade, de quem subiu a escadaria da Penha, de joelhos.

E se ainda fosse uma barba macia, agradável de se fazer,

vá lá. Mas uma puta duma barba de bode, dura como car-

rapicho.

André já ia desistir mesmo.

— Hoje não tenho nada. Felipe gozou.

— Por que não pede emprestado às mulheres? Vo-

cê não vive falando nelas? Papando tudo que é fêmea com

os olhos? Até agora só não papou a bunda caroçuda da

Madalena.

Principiou a rir da própria piada. André suplicou.

— Olhe, Felipe. Hoje é dia de visitas. Deve vir al-

guém me visitar e eu lhe pago depois.

— Vem nada. Vai acontecer que nem Tiago. Chora

a vida inteira, esperando o dia de visitas. E depois chora o

tempo todo porque nunca vem alguém visitá-lo. Ele pelo

menos tem uma vantagem. Tem família muito rica e man-

da sempre dinheiro pra ele.

— Deve vir aquele frade dominicano.

— E daí?

— Daí eu deixo meus braços de fora e abro o pale-

tó do meu pijama. Finjo que estou com muito calor e

mostro meu peito.

— Isso é uma nojeira.

— Eu sei. Mas dá certo. Sempre o frade pinga uns

dois mil réis.

— Na semana passada não lhe deram nada.

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— Mas nessa vão dar. Você vai ver.

Felipe continuava na indecisão. E essa indecisão

maior aumentou porque Madalena vinha, com o Demô-

nio, carregando abrutalhadamente Tadeu.

Comentou baixinho para André.

— Essa puta velha não presta mesmo. Vai começar

o banho colocando primeiro Tadeu e sua coceira. Isso é

pra todo mundo pegar aquilo.

— É mesmo. Ela também, tem raiva de me dar ba-

nho por causa das minhas costelas soltas.

— Não dói quando elas saem do lugar, não?

— No começo, doía muito. Agora eu sei um jeito

de dar um estalinho e elas voltam pro lugar, logo.

— Gozado! Meu pescoço também reclama um es-

talinho e eu sei bem a hora que ele vem.

Calaram-se e ouviram o barulho do corpo de Tadeu

jogado na banheira velha, que nunca tinha a caridade de

uma água quente.

André insistiu.

— Vai fazer ou não? Não custa, Felipe. O que é

uma barba a mais ou a menos pra você? Você não sabe

como é triste olharem pra gente e a gente sentir pena nos

olhos que nos olham?

— Uai! Você ainda gora falava em mostrar as coste-

las soltas e a sua chaga do peito para fazer dó... agora mu-

dou? Eu é que não me incomodo que sintam pena de

mim. Afinal quem vem aqui sabe que a gente é o lixo. To-

do o resto do podre que sobrou da humanidade. Que é

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que esperavam encontrar? Anjinhos com a bundinha de

fora, cheirando a pó-de-arroz?

Felipe soltou uma risada debochada.

— Já sei. Apóstolos. Ê isso que Judas lá embaixo

diz. Mas ele é louco, ou está ficando louco porque vai

morrer. Já vive sentindo o cheiro do céu em qualquer coi-

sa. Mas a sua barba não faço mesmo. Melhor é ficar bar-

bado. Se vier alguém da sua família e perguntar por que

não fez a barba, poderá dizer que não teve dinheiro. As-

sim lhe darão algum e se você não jogar no bicho, poderá

me pagar na próxima vez.

Madalena recostada na porta, esperando que o

Demônio enxugasse o corpo de Tadeu, escutava a conver-

sa. Soltou uma risada, deixando a boca maltratada à mos-

tra e sacudindo os seios gordos e o ventre caído.

Felipe ia se afastar, quando uma mão pousou em

seu ombro.

Judas caminhara entre as camas para ir ao banheiro.

Por certo ouvira toda a conversa.

Baixou os olhos e tentou se desculpar.

— O senhor desculpe. Não sei porque fui dizer a-

quilo. Judas sorriu.

— Que eu vou morrer logo? Não tem importância,

todo mundo sabe. Todo mundo morre. Você também irá

um dia. A diferença é que uns vão mais cedo e outros de-

moram meia-hora a mais.

Depois a outra mão magra entreabriu-se e ofereceu

uma nota.

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— Está aqui. Deve dar. Para o que ele lhe deve e

por hoje.

Desceu a mão magra, suspensa com esforço e pro-

curou apoiar-se na cama. Precisava reiniciar a caminhada

para o banheiro.

André balbuciou meio engasgado.

— Por que o senhor fez isso?

— Não sei. Talvez não devesse fazer. Talvez depois

eu me pergunte por que o fiz. Não interessa. Possivelmen-

te porque o meu tempo é curto e eu preciso acabar de gas-

tar meus trinta dinheiros.

— O senhor tem tudo isso?

— Tudo não. Mas ainda sobra um pouco. Ria da

cara espantada de André.

Madalena enfiou os dedos sujos nos cabelos gordu-

rosos e ficou nos minutos de espera enrolando os cachi-

nhos da nuca suada.

* * *

Naquele tempo, a quinta-feira era o dia mais impor-

tante para eles: o dia de visitas.

Algumas vezes, e acontecera raramente, eles podi-

am ser visitados aos domingos. Isso quando era a Páscoa

para os de fora, Semana Santa para os da rua.

Acontecia que a manhã de quinta-feira tornava-se

insuportável.” As horas cruzavam os ponteiros e não an-

davam.

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Hoje a manhã tomava esse aspecto dolorido. Não

fora a atividade de Felipe trançando pela enfermaria, gri-

tando e discutindo o preço dos cortes dos cabelos e das

barbas, eles não teriam onde fixar os olhos. O banho de

todos não significava mais do que um mergulho rápido

numa água sempre fria, e uma ensaboada ligeira. Mudança

da água da banheira de quatro em quatro corpos e pronto.

Uma hora era o suficiente.

Quando havia um doente novo ou ameaça de mor-

rer, Dr. Tiago surgia com aqueles olhos muito azuis e en-

tão podia-se criar algo de curioso nas observações de to-

dos eles. Prestavam atenção nos menores gestos do dou-

tor, indagando em silêncio se aquele embarcava logo ou se

tinha oportunidade de continuar. Ou ainda, se demoraria

alguns dias aguardando a visitação das moscas — melhor

dizendo: Nossa Senhora das moscas, Dona Morte.

Hoje, não. Não fora internado ninguém. Nem havia

vaga. Não sobrava uma cama na enfermaria. Ninguém

fora transferido. Nenhum operado e portanto recolhido

ao pavilhão da Cirurgia. E sobretudo ninguém morrera.

No auditório que separava o pavilhão dos homens

do das mulheres, não haveria aula. E suas portas, cerradas

e mudas, nada traduziam. Os sextanistas de medicina não

teriam aula de Neurologia. Ninguém seria procurado para

servir de exemplo ou de cobaia.

Poucos queriam compreender que estavam ali para

“aquilo”. Que a saúde impossível de retornar justificava as

suas presenças perenes na enfermaria. Com “aquilo”, eles

Page 53: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

pagavam o preço da permanência, o sujo dos lençóis en-

cardidos, a caridade grosseira dos pijamas costurados pe-

los dedos anônimos da Liga Brasileira de Assistência.

Eles estavam ali, ignorando que os seus sacrifícios

talvez ajudassem a que outros, mais favorecidos pela sorte

e pela vida, não chegassem ao ponto de se exibirem no

anfiteatro.

O medo nascia cedo quando o zunzum das vozes

crescia lá dentro e o arrastar das cadeiras indicava os alu-

nos se acomodando. As janelas abertas com força era ou-

tro sinal. E as conversas animadas atravessavam as pare-

des da enfermaria. Os olhos ficavam desanimados olhan-

do para aquele ponto. Um ímã parecia atraí-los para lá. De

repente... A porta se abria de par em par. Vai começar o

Rodeio.

Empurravam um carrinho para o centro da enfer-

maria e um médico, o professor que ministrava as aulas,

cercado de alguns alunos, percorria com os olhos, bem

devagar, as doze camas.

Felipe comentava para André.

— Na cama dele nunca param. Só porque é rico. -J-

Ê aquele.

João apertava a Bíblia sebenta contra o peito para

acalmar o coração aflito. Tiago já ficava com os olhos

cheios d’água. O outro Tiago, aquele cujos ossos cresciam

sempre e que precisavam sempre ser aparados, encurta-

dos, tentava cobrir a cabeça com o lençol. Tadeu danava-

se a se cocar mais, de nervoso.

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O laço parecia estar girando, girando no alto antes

de se abater sobre o escolhido.

Felipe virava as costas para a cena. Simão, o epilép-

tico, deixava escorrer um fio de baba grossa. André estala-

va as costelas continuamente. Só Tomé nada podia fazer.

Todavia era muito triste quando o laço caía sobre

um deles. Quando era arrastado, arremessado sobre o car-

rinho e transportado para o centro do auditório onde o-

lhos semi-insensíveis analisavam as porções das suas misé-

rias físicas.

Havia até comentários desumanos. Piadas cruéis.

— Hoje é o pêndulo.

— Deus do céu, é aquele que vive cagado.

— É o castanhola.

— É o pirocudo.

Riam-se das próprias piadas. Mas se concentravam

quando a explicação do professor se anunciava.

Pedro odiava ir. Talvez por isso fosse sempre o

mais escolhido, o mais procurado. Porque além do seu

caso se prestar para uma porção de explicações, podia ser-

vir-se das suas garras para tirar as suas roupas e tornar a

vestir-se.

De todos, somente Tomé não podia compreender

o ridículo e a humilhação da cena. Não sabia que estranho

se tornava o corpo, nu, aparecendo quase seco, com a pele

enegrecida e manchada, deixando à mostra os ossos sem

carne. E os sexos se avolumavam e se empreteciam des-

proporcionados, balançando sem significado a qualquer

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toque ou movimento. E que feio, trágico e bastardo, ao

mesmo tempo indecente, os pêlos do corpo se tornando

longos porque os ossos se desproviam de carne e a pele se

deslustrara...

Era horrível olhar Pedro. Simão Pedro — “tu que

és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja”. Pe-

dro, o Pescador, voltar de olhos baixos e ficar sentado

sem nada dizer, todo o resto da manhã. Ninguém pertur-

bava o seu silêncio. Sua mudez tornava-se compreendida.

Não adiantava dizer-lhe que o demônio trouxera a bandeja

da comida. Ele não se alimentaria, nem ajudaria os outros

a comer. Apenas seus dedos de graveto ficavam seguindo

doloridamente todas as linhas do pijama ou todo risqui-

nho do lençol.

Porém hoje não havia aula.

Tiago, o maior, sim o maior. Porque sua cabeça

crescia sempre apesar de devagar, por causa da hidrocefa-

lia. Tiago, o maior, com os seus olhos azuis espiava para a

porta para ver se o Dr. Tiago visitaria a enfermaria nessa

manhã. No seu cérebro, que ia se reduzindo a cada dia, a

ponto de tornar-se fino como uma folha de papel, guarda-

va sempre um orgulho de possuir o mesmo nome que o

médico.

— Mas esse outro aí, Tiago segundo, também é Ti-

ago.

— Não é. Desse eu não gosto.

O médico não poderia comparecer. O corredor en-

contrava-se abarrotado de gente para a consulta. Gente

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que aguardava com impaciência uma vaga na enfermaria.

Podia-se ouvir o ruído lá fora, os choros, os gemidos, as

queixas e as reclamações.

Por isso o Dr. Tiago não viria, nem mesmo para vi-

sitar Judas Iscariotes, para lhe dar uma palavra amena,

uma gota de calor humano.

Estranho! Qualquer daqueles homens vender-se-ia

por uma palavra de carinho ou um gesto de piedade.

Um grito lancinante cortou a enfermaria de cima a

baixo. Todos se paralisaram de pavor. Nenhuma garganta

humana poderia emitir um som daquele. Judas Iscariotes

encontrava-se lívido, abraçado ao joelho sem poder parar

de uivar.

E o Dr. Tiago veio. Dessa vez Tiago maior chorava

de medo.

— Madalena, traga depressa a seringa. A morfina.

Dose forte.

E quando o remédio começou a fazer efeito, estica-

ram o corpo de Judas na cama e Pedro enxugou o seu ros-

to molhado de suor.

— Eu lhe falei, meu filho. Você precisa de vez em

quando tomar uma dessas injeções.

Dr. Tiago sorria, vendo o alívio no rosto do rapaz.

— Agora, você vai dormir muitas horas. Dirigiu-se

a Pedro.

— Ele dorme bem durante a noite?

— Nas vezes que eu acordo e são muitas, ele está

sempre apertando o joelho entre as mãos.

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— Ela vai dormir. Está fazendo efeito. Preciso ir.

Saiu em direção do seu consultório no fundo do

corredor..

Pedro arrastou-se para junto da janela e ficou desa-

nimado observando o parque. O dia anunciava-se quente

e cheio de sol.

Começavam as grandes amendoeiras a amarelecer.

As velhas figueiras-bravas suspendiam os nós das raízes

como se quisessem desligar as garras da terra. Um vento

pequeno agitava um ou outro trapo posto a secar na cerca

de arame farpado. Sempre as mulheres do outro pavilhão

descobriam uma maneira de pendurar panos velhos nos

espinhos dos arames.

Pedro voltou-se para dentro da sala, cansado de es-

piar a paisagem indiferente.

As moscas já dançavam loucas nas fímbrias da luz

invasora que se projetava no chão.

Aquela luz, avolumando-se limpa e branca, pene-

trava mais e mais na sala. O dia completamente branco

afastava ainda mais a paz da enfermaria.

As horas não passavam. As visitas só viriam depois

das duas horas e por enquanto nem o almoço das onze se

anunciara.

Só Felipe continuava a visitação das camas.

* * *

Foi quase uma tarde comum de visitas. Veio gente.

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Alguns parentes. Tiago chorou. André esperou inutilmen-

te por alguém. Pedro recebeu bananas cheirosas e madu-

ras e um jornal que trazia muitas notícias de crimes. A en-

fermaria ficou animada com as conversas. Falaram de fu-

tebol, de lutas de boxe e até de corridas de cavalos. Quan-

do contaram sobre a guerra, João baixou os olhos e rezou

no coração. Quando comentaram sobre os bombardeios,

Tadeu delirou de alegria e se cocou muitas vezes. Todavia

quando o assunto incidiu nos afundamentos dos navios,

Pedro sentiu-se tomado de uma grande tristeza.

Se o frade dominicano falhou e André não pôde

impressioná-lo com a sua chaga no peito e suas costelas

deslocadas, eis que à última hora apareceu uma freira. A

visita fora encerrada, mas como a religiosa viera de longe,

permitiram-lhe uma visita rápida pelas camas. Ela trazia

um sorriso contínuo nos lábios e um saco de venda cheio

de biscoitos açucarados.

Pedro ajudou-a na parada de cada leito, explicando

por alto o caso de cada doente.

No fim da enfermaria, de um lado, Tomé; do outro,

Judas Iscariotes.

— Esse?

— Tomé, o morto.

— Morto?

— Quase. Vive dormindo. A gente precisa ver se

ele movimenta os lábios para lhe dar água ou laranjada

quando tem.

Por trás dos óculos, muniu-se de uma grande pie-

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dade.

— Só se alimenta disso?

— Não. Muitas vezes, os médicos aplicam-lhe soro

nas veias. Um dia ele vai ser operado de um tumor muito

grande que tem na cabeça.

Balançou a cabeça meio desanimada.

— E aquele?

— Vamos deixar para outra vez. Ele está dormin-

do.

— Qual o seu mal?

— Está mais morto do que Tomé. Os dias conta-

dos. Está com câncer.

— Meu Deus! Eu preciso falar com ele. Preciso.

Talvez uma palavra de amor faça bem à sua alma.

— Melhor deixar que ele durma. Ele tomou injeção

antes do almoço. De noite quase não dorme de dor.

Ela tomou uma resolução definitiva. Ajoelhou-se

perto do rosto adormecido de Judas. Passou a mão em sua

face. Depois sacudiu brandamente o seu ombro.

— Meu filho. Meu filho. Ouça-me.

Judas Iscariotes entreabriu os olhos e seu rosto es-

tava completamente macerado. Tentou compreender den-

tro do seu torpor e do seu cansaço o que significava aque-

la freira ajoelhada junto do seu rosto. Agora lembrava-se.

Dia de visitas. Dia de visitas e por que havia tanto silêncio

na enfermaria? Olhou Pedro como se indagasse. Pedro

entendeu o significado do seu olhar.

— Os outros já se foram. Ela quer falar com você.

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Falar comigo o quê? Eu não tenho nada que dizer. Quero

é dormir. Dormir enquanto posso...

— Veja, eu gostaria de fazer alguma coisa por você.

Olhe, trouxe uns biscoitinhos muito gostosos. Vou deixar

alguns do lado da sua mesinha.

O olhar de Judas começou a endurecer-se.

Queria lutar intimamente contra a sua extenuação.

“Eu estou cansado. Eu estou tão cansado. Eu estou muito

cansado... O que quer essa mulher comigo? Por que não

me deixa em paz? Por que não vai passear suas esperanças

na hóstia consagrada?

E ela falava, falava docemente e suas palavras con-

fundiam ainda mais a sua capacidade de compreensão.

Tocava sempre na ternura de Jesus. Por que não o Cristo?

Ou os dois juntos. Quando menino achava que Jesus

sempre fora mais doce mesmo. Era ele que aparecia ba-

tendo na porta do coração, pedindo humildemente licença

para entrar, nos santinhos da Primeira Comunhão. Já o

Cristo, não. Pegava no chicote e batia nos vendilhões do

templo. Tinha uma frase de desamor continuamente: “Em

verdade, em verdade eu vos digo” — Nela parecia encer-

rar-se muito mais condenação, muito mais advertência do

que amor. Ficava com pena de Cristo, apesar de achar que

pena só se deve ter dos desgraçados. Cristo estava velho.

Velho dentro do limitado tempo humano. Velho dentro

de teorias arcaicas de uma religião que envelhecera como

qualquer outra que possuísse dois mil e cansados anos.

Ela agora falava de bem. De fazer bem. Fazer bem?

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Ser bom? Ninguém precisava de Cristo para ser bom.

Quantos índios conhecera na selva tão suaves, tão amigos,

tão resignados, que nunca tinham ouvido falar de Cristo

ou outro arúspice qualquer. Certo que com o Cristo quem

já era bom só poderia mesmo melhorar. Mas aí não havia

mistério algum.

Fazer bem? Ser bom? Jesus ia para um canto e re-

tornava como Cristo. Só ela não compreendia que falava

muito, MUITO. E eu estou cansado, Buda, Maomé, Bra-

ma e “Padre Cícero”.

Queria fechar os olhos e não podia. Estava imanta-

do nos seus óculos de aros grossos. Sentia suas pupilas

ainda endurecidas do tóxico se paralisarem ainda mais.

Já sei. Agora percebo. Ela quer me fazer o bem.

Bem. Mal. Maniqueísmo. Ela quer me fazer bem. Umas

palavras retornaram do tempo em que gostava de fazer

estudos filosóficos. Eram palavras de Henri Bergson.

Bergson? Seriam dele? Não estaria confundindo-se em seu

torpor? Se ela o deixasse dormir, tudo se modificaria. Tu-

do volutearia no nirvana. Fugiria àquela condenação de

memórias retalhadas. Pois bem. Fossem de quem fossem,

significavam uma concisa máxima: o homem deve ser

bom. E sendo bom, o bem se faz naturalmente segundo a

vontade de Deus. E aquela freira queria fazer-lhe um bem.

Para quê? Por quê? Poderia por acaso colocar Deus em

todo o seu Infinito de amor à altura dos meus dedos?

Nem Cristo, por mais que afirmasse, jamais o conseguira.

Saberia que, continuando o raciocínio de Bergson, a gente

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querendo fazer um bem, não estará principiando um mal?

Eu estou meio louco pelo sedativo e pela morte. Ela está

louca. Louca de vazio e de participação frustrada. E eu

quero apenas que me deixe dormir. Dormir. Esquecer.

Alguma coisa que se assemelhasse ao “néant.” Se ela não

pára, não conseguirei fechar mais meus olhos e sinto que

isso se aproxima. Que grande mal que me faz”...

A freira tentou calar-se, impressionada pelos olhos

duros, quase paralisados, do homem. O coração quase

espasmodeava no peito: “Meu Deus! Nunca vi ninguém

tão perdido de infinito!”

Pedro tornava-se apreensivo. Tocou-lhe no braço e

implorou:

— Por favor, deixe esse homem em paz. Não vê

que ele nem compreende o que a senhora está falando?

— Irei já. Só quero que me diga qualquer coisa.

Uma palavra só.

Desanimado, Pedro retirou as garras do seu ombro.

A religiosa, meio apavorada, fixou os olhos cada vez mais

secos e cada vez mais endurecidos de Judas Iscariotes.

— Diga pelo menos que gostou que viesse? Espe-

rou um segundo.

— Não tem nenhuma palavra amiga para mim?

Ainda o silêncio.

— Nada?

Judas molhou os lábios e eles se movimentaram

com firmeza.

— PUTA!

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CAPÍTULO VI

Vasos Comunicantes

Sou uma coisa que tem sede!

Quando era um homem, possuía outro nome. Hoje

sou apenas Tomé.

E como Tomé, tenho sede. Ninguém vê que meus

lábios se movem.

Esqueceram-se de mim.

— Deus. Deus. DEUS! Tenho sede!

* * *

Tocando-se em seu corpo, Tomé às vezes sentia.

Falando-se a seu lado, Tomé às vezes ouvia. Além disso,

nem sempre, podia sentir o cheiro, o mau cheiro da sua

urina e das suas fezes, grudando-se na crina do colchão.

O resto existia como noite, como silêncio, talvez

como imitação de eternidade.

Havia para Tomé duas espécies de mão. A boa, que

sempre surgia na paciência de Pedro. Pedro, não. Pois se

ele virará o apóstolo Tomé, Pedro não deveria vir sem

acompanhamento. Simão Pedro. A mão má que o maltra-

tava na impiedade do Demônio. As frases perversas a-

companhavam, como sombra, a mão perversa.

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— Essa praga da peste por que não morre logo?

Essa sujeira do inferno!...

Simão Pedro interferia.

— Não diga isso. Ele pode ouvir.

— Que o quê! Essa merda humana não ouve mais

nem quando chegar a pá do coveiro.

Uma vez, a voz de um médico visitante perguntara:

— Ele ouvirá?

— Quem sabe, às vezes. Nem sempre poderá estar

ouvindo. Nem sempre sentirá alguma coisa. Outras vezes

sim.

— Vão operá-lo?

— Sim.

— Haverá alguma esperança?

— Nenhuma.

— Então por quê?... O catedrático riu.

— Filho, a eutanásia é proibido. E mesmo esse é

um dos casos mais interessantes do mundo.

— E se lhe extraíssem o tumor?

— Daria na mesma. Talvez fosse interessante no

micrótomo, nas lâminas da patologia.

Um sorriso leve e a frase saiu mansamente.

— Só a morte.

O médico moço engoliu em seco, produzindo certo

ruído com a glote.

— Puta-merda, Meu Deus!

— É o caso mesmo.

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* * *

Tornava-se para Tomé, difícil, lembrar-se de tudo.

Reconstituir sua vida, impossível. Algumas lacunas existi-

am como manchas em seu pensamento. Outras vezes

confundia-se, sem saber se algo fazia parte de si ou se per-

tencia a outrem. Todavia alguns pedaços da memória liga-

vam-se entre si. E o resultado de tudo isso era trazer, aos

poucos momentos em que se tornava lúcido, uma dor ta-

manha e indescritível, que o levava ao auge da loucura e

pavor. Sentia-se amarrado, prisioneiro do cérebro e da

noite. Todo ele se movimentava nas paredes da cabeça

que latejava, latejavam.

Raciocinava com desespero e não sabia onde esta-

vam as suas mãos. Se soubesse o lugar delas e as pudesse

movimentar, enforcava-se. Por Deus que enforcava-se.

Vivia. Sim. Vivia e respirava para quê? Bem que a

morte poderia num daqueles momentos caridosos de sono

sem luz libertá-lo. Por que a morte se esquecera dele e não

o libertava?

Uma vez... Foi sim, não foi? Uma vez numa feira,

vira uma porção de passarinhos que soltos na calçada não

fugiam à aproximação de passos. Eram de muitas espé-

cies. Não se lembrava do nome de todos. Mas os canários

da terra, tão amarelinhos, nunca poderia esquecer. Esqui-

sito que tinham asas inteiras e não voavam. Apenas tremi-

am ao ruído de alguma voz.

— Por quê, eim?

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— São passarinhos cegos. Puseram ácido nos olhos

deles.

— Por quê, eim?

— Ora, assim eles não sabem quando é dia ou noi-

te e podem cantar a qualquer hora.

— Como podem fazer uma maldade dessas?

— Ora, bolas! São apenas passarinhos. Os tempos

andam duros e a gente tem que ganhar a vida, não é?

Afastara-se, sentindo uma dor incontida apertando

o seu peito. Apesar de ser um homão, saiu bobamente

chorando e limpando as lágrimas com as costas das mãos.

E agora, Tomé?

Com o tempo, e limitando esse tempo com a espé-

cie de barulho que faziam na enfermaria, foi conseguindo

se libertar das sensações, de todas as sensações humanas.

Uma passividade bestial acometia-o gradativamente, que

podia perder a noção da sua essência para transformar-se

numa coisa que pensava aos pedaços, que sobretudo tinha

sede.

Perdido o horror melancólico da destruição, punha-

se a falar com Deus.

— Sabe, Deus? Eu só desejava andar. Andar um

pouco. Mesmo que continuasse cego. Arrastar-me um

pouco. Só um pouquinho desse tamanho. O Senhor sabe

o que eu faria? Encostar-me-ia na janela e receberia o sol,

o vento pelo rosto. O resto Pedro iria descrevendo como

era.

Se não era desejar muito, sua felicidade consistia em

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alguém trazer água aos seus lábios, e também quando ra-

ramente o levavam e o imergiam na banheira. Tomé enfia-

ra os dedos nas chagas de Cristo para acreditar que Ele

estava vivo. Ele, Tomé, era ao contrário. Era preciso ser o

TOCADO, para acreditar-se vivo. Saía do banho com o

corpo limpo, esfregado, num pijama renovado.

Era bom, se era, quando Felipe tinha tempo e sen-

tava-se na sua cama, passando sabonete em seu rosto e

raspando a barba dura, requete-requete. Isso era mais raro.

Não podia distinguir se Felipe o barbeava todas as sema-

nas ou, se na maioria do tempo, estava como “aquela” voz

do médico comentara.

— Sabe o que eu queria, Deus? Era, se mesmo em

vez de andar, eu pudesse movimentar os braços. Ah! Que

bom! Escorregaria as mãos pelas grades da cama, seguraria

a caneca, que Simão Pedro trouxesse, com as próprias

forças ou pegaria agradecido na mão de Simão quando

bondosamente lhe alisasse os cabelos.

Por que pensar tanta coisa? Para ouvir o desespero

de sua alma perdida se enrodilhando na tristeza? Bem que

queria chorar e não sabia como.

— Pelo menos, meu Deus, se isso não fosse pedir

muito, eu queria mexer com um dos meus dedos. Só com

um deles, sabe? Então eu alisaria o lençol, o pijama.

Não. Impossível. Não poderia chorar. Tudo tão de-

sarrumado em sua cabeça. Nada obedecia aos seus meno-

res desejos.

Poucas vezes porque era muito difícil desejar, não

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se incomodaria de ser cego e de não se movimentar. Mas

se falasse... Se falasse... se lhe fosse dado responder ao que

ouvia...

— Não adianta, não é Deus? Nem você quer con-

versa comigo.

As vozes aumentavam dentro da enfermaria. Che-

gava mais gente.

Simão estava feliz. Mateus conversava com alguém

que possuía voz fina e estridente. Tadeu se cocava mais

porque o dia se encontrava muito quente e não chegava

ninguém para ele. O resto se perdia num aglomerado de

vozes indefinidas.

O sol devia reinar lá fora, produzindo aquele calor

mortiço e abafado. Sua sede aumentava. Tornou a movi-

mentar os lábios. Pedro não viu. Simão não viu.

Um torpor cruciante atingiu em cheio sua cabeça.

O sono principiou a confundir tudo. Sua grande sede seria

devorada pelo sono.

Tomé adormeceu.

Só muito mais tarde conseguiu despertar. Aí, já ha-

via silêncio por todos os cantos. Devia ser noite para os

outros também.

Um trovão repercutiu muito longe. Mais perto uma

voz gemeu. Tadeu coçou-se com força; talvez acordasse

assustado com o trovão.

Outro trovão cresceu lá fora. A sede de Tomé re-

tornou com mais força ainda.

— Meu Deus! Vai chover. Fez muito calor durante

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o dia. Foi-se mais um dia de visitas. Todos estão dormin-

do.

Mas o homem no fim da enfermaria gemeu com

mais força. Ou não era gemido. Parecia mais um choro.

Não havia um deles, que chamavam de Tiago, o maior,

que chorava por tudo?

Outro trovão se repetiu mais perto. O barulho do

vento se realizava nas árvores do parque. Tomé escutava

tudo. Uma brisa suave penetrava pelas frestas das janelas e

revolvia a sua coberta. Esse ventinho de Deus! O cheiro

da banana na mesinha de Pedro chegava mais forte ao seu

olfato, desintegrando-se na noite.

O trovão cresceu mais perto ainda. O vento pare-

ceu estancar. Um cheiro de terra molhada se revolveu no

espaço. Chovia lá fora. E Tomé continuava com sede. De

repente a janela bateu com força atirada por um soco de

vento inesperado.

— Pedro!... PEdro!... PEDro!... PEDRo!... PE-

DRO!...

O vento chamava Pedro suavemente. O vento do

mar. E Pedro sorriu adormecido.

O vento do mar dançava e chamava por Pedro!

— Olha o mar, Pedro!

— Vai pescar, Pedro!

— O mar chama por você e você dorme, Pedro?

— Pescar, Pedro. Pescar, Pedro, o pescador!

E Pedro se viu menino com os pés descalços cami-

nhando pelas ondas desmanchadas. O mar era seu. Ia ser

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seu por toda a vida. E Pedro se fez homem. Pedro cresceu

perto do seu barco, junto da sua jangada. Soltou uma gar-

galhada feliz para confundir o seu riso com o vento.

Eis que... O que foi Simão Pedro? Diga o que foi

para não rebentar o coração sozinho.

Eis que o mar, as águas do mar foram fugindo, fu-

gindo e só existia areia. Pedro sentiu os pés secos e lágri-

mas nos olhos. O mar se afastava cada vez mais. Só o ven-

to no seu coração continuava a chamar por ele. Mas assim

mesmo perdendo a força na distância.

— PEDRO!... PEDRo!... PEDro!... PEdro!... Ped-

Vo!...

A janela bateu com força e Simão Pedro acordou.

Do lado de fora vinha o cheiro da chuva, da terra

removida pelas gotas d’água.

Pedro despertou de todo. A janela abrira-se amea-

çadoramente e a tempestade de verão tombava sobre a sua

cama e a de Tomé.

Concentrou as forças do seu desânimo e levantou-

se.

Uma tristeza morta o invadia todo. Postou-se con-

tra a janela e espiou a sombra das árvores no parque. Tu-

do negro se revolvendo ao clarão dos relâmpagos.

E o mar não existia como sempre.

A chuva borrifou-lhe o rosto, empapou os seus ca-

belos e veio descendo pelos lábios de angústia. Foi quan-

do Simão Pedro estremeceu.

— Tomé!...Tomé!...Ninguém se lembrou dele hoje.

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Ninguém lhe deu uma caneca d’água.

Esquecendo seu abatimento, fechou rapidamente a

janela, apanhou a caneca e se dirigiu para a pia.

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CAPÍTULO VII

Passos da solidão

— Não!...Não me abandones!... Pelo amor de nosso filho,

eu te suplico de joelhos!...

Um grito lancinante e o ruído de um corpo, arre-

messando-se ao chão. Ao mesmo tempo, choros exagera-

dos ecoavam.

A voz continuava.

— Não, Alfredo, tu não podes fazer isso. Pensa no

futuro de nosso filhinho. Que irá ser dele?...

— Nosso filho? Tu por acaso pensaste nele quando

foste para os braços de outro? — A voz do homem au-

mentava e o tom de desprezo crescia em suas palavras —

Tu te lembraste do nosso filhinho nesse momento, Maria

Isabel?...

Uma gargalhada estourou cínica e exagerada, fazen-

do coro com as lágrimas e as súplicas da mulher.

— Perdoa-me, Alfredo. Pelo amor de Nosso Se-

nhor Jesus Cristo, não me abandones agora. Serei tua es-

crava. Beijarei teus pés. Farei tudo que quiseres.

Os soluços se entrecortavam, maiores.

— Não, pérfida. Fica com a sombra da tua traição e

da tua desgraça.

O som de uma porta que batia com força. Maria I-

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sabel gemendo no chão com a voz sumindo entre o pran-

to. Falando consigo mesma.

— Não... Alfredo... Alfredo... O nos... so... filhi...

nho. Não te vás, Alfredo.

Uma música crescente invadiu a cena, começando a

sufocar a voz. Madalena nem sabia que tocavam o “Lago

dos Cisnes” de Tchaikowsky. Suas mãos tinham se parali-

sado. O tricô morrera embaraçado entre os dedos. No

peito, aquela dor imensa rasgando a sua carne. Os olhos

boiando dentro da laguna das lágrimas. O nariz fungou e

ergueu uma das mãos para assoar-se. Depois, as lágrimas,

quentes como açudes vazados, desceram pelo rosto intu-

mescido e escorregaram até a boca.

Outra voz dessa vez. Outra voz angustiada inda-

gando:

— Alfredo voltará? Que futuro estará reservado pa-

ra a infidelidade de Maria Isabel? O que reserva a sorte

para o seu filhinho abandonado?

Uma voz encantadora anunciava ainda.

— Ouçam amanhã, às quatorze e trinta, a continu-

ação da novela que é a sensação do Rio de Janeiro e do

Brasil inteiro: O HOMEM OJUE NÃO SOUBE PER-

DOAR...

Retornou o “Lago dos Cisnes”. A música foi mor-

rendo miúda, até que a mesma voz anunciou.

— Exatamente quinze horas e um minuto. Pontua-

lidade infalível. Hora Argus.

Madalena torceu o dial. Desligou o aparelho de rá-

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dio comprado a prestações, que por sinal estavam atrasa-

das; as mãos caíram-lhe no colo completamente esmore-

cidas. Os olhos principiaram a secar-se mas a dor ainda

habitava perto dos seus suspiros. Ela se enxergava só. A-

bandonada pelo marido, que gostava mais da pinga do que

das duas filhinhas.

Ela via-se vivendo pela vida naquele medo e de-

samparo. A luta terrível para conservar a honra de mulher

moça. As filhas entregues a uma vizinha do subúrbio e os

pés palmilhando o comprido de todas as ruas, à procura

de um emprego que garantisse a subsistência das três.

Tremendamente duro o recomeço da vida. Mas agora,

aquilo nada significava. Talvez como um pedaço de pas-

sado longínquo. As filhas estavam criadas. Viviam daquele

jeito, porque descobriram que era a maneira mais certa e

eficaz. Perdera até a capacidade para compreender que se

dissolveram, que se evaporaram vinte e poucos anos no

pavilhão daquela clínica. Endurecera-se como os ladrilhos

da enfermaria. E se ainda conseguia emocionar-se era ou-

vindo às escondidas as grandes tragédias das rádio-

novelas.

Suspirou resignada e principiou a levantar-se. Re-

cordava-se que o rádio anunciara três horas e precisava

cumprir as ordens do Dr. Tiago.

Jogou água no rosto e nos cabelos e compôs um

pouco o vestido amarrotado. Ligou o aquecedor elétrico

para as seringas ficarem esterilizadas dentro daquela vasi-

lha bem feitinha.

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Penetrou na enfermaria e viu que Judas Iscariotes

dormia calmo.

Balançou os ombros indiferente e continuou com

os olhos percorrendo cada canto da enfermaria. Foi inter-

rompida nos seus pensamentos pelo barulho da seringa

borbulhando na água fervendo.

Preparou a injeção.

— Dr. Tiago mandou aplicar nele soro de dois em

dois dias. Se mandou, vamos ter que fazer. Mas pra quê?

Se o homem está mesmo condenado. Se o homem vive

dizendo que não quer viver!

* * *

Dr. Tiago acusava o Dr. Barretto.

— Taí o homem, Barretto. Taí o seu protegido.

Desanimado. Fazendo manha. Não quer se alimentar. Só

toma injeção se for à força. Vamos ver se você dá um jeito

nele.

Dizia àquilo por dizer. Mas os três tinham pleno

conhecimento da crueldade das palavras. Do que ficava

escondido sem poder ser enunciado.

Dr. Barretto tentou animá-lo, mas não sabia como.

O homem estava secando. Desaparecendo. E quando lhe

amputassem a perna um pouco acima do joelho...Não.

Não queria pensar.

— Você precisa alimentar-se. Eu sei que a comida

não desce, mas é preciso. Caso contrário já estão até pen-

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sando em aplicar-lhe o sistema de enema. Lembra-se ainda

o que é isso?

O rosto magro imitou um sorriso.

— Claro. Enfiar alimento pelo rabo a dentro. O

nome é elegante mas o sistema é indecoroso.

— Isso. Ria. Gosto de vê-lo assim. Como antiga-

mente.

Dr. Tiago encostara-se no armário de remédios e

cruzara os braços. Nem adiantava os olhos do outro Tiago

procurarem os seus. Ele não sorria naquele momento.

Seus olhos azuis buscavam distância e no entanto não fa-

zia tanto tempo.

Recordava-se que a porta do seu consultório fora

aberta e Dr. Barretto foi entrando precipitado. Vinha a-

companhado de um homem sorridente e de rosto inusita-

damente bronzeado de sol.

— Vá dando licença. Esse caboclo é meu amigo.

Estudou medicina até o terceiro ano comigo. Encontrei-o

num bonde. Quase não queria vir.

Apertou a mão do homem.

— Sente-se.

Dr. Barretto foi logo se retirando, para deixar os

dois mais à vontade; depois viria saber o resultado.

— Então?

— É isso. A perna. O pé. Uma dor pequena dentro

do joelho.

— Ninguém olhou isso ainda?

— Ninguém.

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Deu uma gargalhada gostosa, sadia, cheia de vida.

— Eu não tenho ninguém, doutor.

Os olhos do Dr. Tiago muito azuis e curiosos, pa-

recendo duas janelas do céu, fixavam-se sobre ele. Como

sempre faziam todos.

Riu mais. Era um pouco de vida, de indiferença, de

liberdade estourando naquela maneira fogosa de rir.

— Sério, doutor. Não tenho ninguém. Sempre fiz o

possível, melhor dizendo, de não ter ninguém.

Diante do médico aparecia a sua figura simpática.

Talvez tivesse passado dos trinta anos ou estivesse beiran-

do isso. Sua barba por fazer dava-lhe um aspecto agradá-

vel. Não se podia negar. Um belo animal. Sobretudo seus

gestos elegantes e desinibidos deixavam escapar uma cer-

teza, como se soubesse que toda a humanidade lhe per-

tencesse.

— Não se assuste, doutor. Quase nunca tenho nin-

guém. E se não moro é porque a selva é grande demais.

Infelizmente gosto de cultivar em meu peito doses maci-

ças de dromomania. Gosto de viver ao sol. Gosto da chu-

va, dos rios, dos índios, dos grandes rios. Adoro o cheiro

da chuva na terra. Detesto a maleita e me irrito facilmente

quando apanho um resfriado.

Dr. Tiago continuava a sua análise. Sabia que era

desses tipos que contam para impressionar, que são since-

ros, mas o que de verdadeiramente “impressiona” eles

escondem, matam. A vida para ele não significava somen-

te aquilo ou tão pouco como queria fazer acreditar. Senão,

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por que os seus olhos se encontravam cercados de rugas e

sua testa permanecia vincada com sulcos impróprios da

sua idade? E dos lados da boca, na comissura dos lábios,

um risco angustioso expressava uma dor ou uma contínua

angústia. Selva, sol, fuga...

Retribuiu a sua mocidade sorrindo também.

— Acabou?

— Já.

— Posso fazer sua ficha?

— Vale a pena, doutor?

— Quem sabe?

— Então faça.

Apoiou a caneta num papelório.

— Seu nome?

Um pequeno gesto de contrariedade movimentou

os seus ombros.

— Não tenho. O Barreto garantiu que o senhor

não pediria.

— Aqui é preciso. Pensou um pouco.

— Precisa mesmo, doutor?

Dr. Tiago afirmou com a cabeça.

O moço olhou desanimado o médico e comentou

decisivo.

— Então, nada feito. Obrigado, doutor. Adeus. Vi-

rou-se para sair. Dr. Tiago o deteve.

— E se eu dispensar o seu nome? Afinal não é to-

do o dia que o Dr. Barretto me recomenda uma pessoa

amiga.

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— Assim é melhor.

— Então coloco um x na papeleta em lugar do seu

nome. Fez o que prometera.

— Como você não tem nome, não precisa ter ida-

de. Logo, outro x. E como você é dromomaníaco, outro

x. Está satisfeito agora?

Sorriu e coçou o pescoço, onde o cabelo crescido

enroscava-se.

— O senhor é camarada.

— Vai deixar-se examinar?

— Vou. Prometo que ficarei bom. Se eu quiser fi-

car bom, eu fico.

Quem deu uma risada foi o dr. Tiago.

— E só morre quando quiser, não?

O médico rolou um martelinho de reflexo entre os

dedos e comentou.

— Ê o que todos pensamos nessa idade. Ê o que

você pensa. Mas o tempo é um grande mestre. Aprende-

mos muito com ele.

E não fazia muito tempo, não? Dr. Tiago voltou à

realidade e seus olhos pousaram no rapaz. Não. Não de-

veria ser o mesmo.

Mas os pensamentos incidiam no mesmo assunto.

— O que foi isso no pé?

— Um desastre. Reparou, doutor, que eu sou um

caso raro?

— Como assim?

— Veja meus dedos, os dois primeiros perto do

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dedão. São ligados quase até em cima.

— É mesmo.

— Quando eu estudava medicina, meus colegas vi-

ram isso e me levaram ao professor de doenças ósseas.

Sabe o que ele disse? Exatamente isso.

— Que eu sou um caso raro. Que a disposição des-

ses dedos denuncia a existência de meniscos discóides? É

verdade?

— É. Você pode doar seu esqueleto para estudos.

Bateu com os nós dos dedos na mesa para isolar. Nada de

mau presságio.

— Levante a calça por favor, ou melhor, abaixe-a.

Obedeceu.

— Vamos começar pé.

Sentiu as mãos apalpando a nodosidade da antiga

fratura.

— Ninguém tratou disso?

— Ninguém. Isto é, uns garimpeiros. Sabe Doutor,

a gente vinha descendo uma corredeira numa canoa.

— Que é corredeira?

— Uma espécie de cachoeira menor, mas muito li-

geira e perigosa. Naquela época eu vivia pangolando de

um garimpo para outro. Se o ouro alcançava preço, a gen-

te estava lá bateando. Se diamante pintava, a gente enfiava

o escafandro. Se cristal pegava preço marmo, a gente se

derretia ao sol no cabo da picareta.

O médico achou graça.

— Metade do que você fala eu ignoro, mas vamos

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lá que é interessante.

— Isso não tem importância. Ê só um pedacinho

para chegar aonde eu quero. Eu vinha com quatro garim-

peiros descendo uma corredeira no Tocantins e a canoa

rodou, perdendo o canal. Deu uma virada e a gente foi

levado aos borbotões, batendo nas pedras. Foi um salve-

se quem puder. O mais rebentado fui eu. Aqui no pé e nos

dois joelhos. No esquerdo foi pouca coisa. Perdemos tu-

do. Garimpo é assim mesmo: Ê perder e recomeçar. Fi-

quei um tempão num rancho de uns negros que planta-

vam mandioca brava pra fazer farinha. Até que pude an-

dar de novo. O pé inchava e doía como se estivesse sem-

pre picado por formiga-de-fogo. Depois cortei selva de

novo e fui procurar meia-praça em outros garimpos.

— Suspenda a perna.

Obedeceu à ordem. As mãos apalpavam ora o joe-

lho, ora desciam para o pé.

— Movimente o pé para o lado. Não sentiu dificul-

dade alguma.

— Agora para cima.

— Aí é que está. Não posso. Ficou paralítico.

Os dedos práticos subiram pela perna. Ficaram a-

palpando algum tempo perto da canela e depois se dirigi-

ram para trás do joelho.

— Sente alguma coisa aqui quando toco?

— Quase perfeitamente. Em alguns pontos existe

uma sensação esquisita, como se tudo fosse grosso.

— É natural. Já esperava por isso.

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Parou os exames e encarou seriamente o rapaz.

— Não sente algo mais? Algo de diferente?

— Na verdade sinto, sim. Uma dor fininha lá den-

tro do joelho. Como se fosse uma dor de dente no joelho.

— Tem reparado se essa dor aumenta?

— Um pouquinho mais, um pouquinho menos. Às

vezes até irrita um pouco.

Dr. Tiago voltou a sentar-se junto à escrivaninha.

Um sorriso abriu-se em seus lábios, diminuindo o azul dos

seus olhos. Falou com voz bastante simpática.

— Você tem uma lesão no Ciático Popliteo Exter-

no. Lembra-se disso?

Foi a vez dele rir.

— No meu tempo de estudante eram dois. O Po-

pliteo interno e o externo. Eu nunca esqueci o nome.

Porque achava Popliteo gozadíssimo. Lembrava Ptolomeu

do Egito. Ptolomeu Philopátor, irmão de Cleópatra.

Dr. Tiago soltou uma gargalhada gostosa.

— Não vejo muita analogia, mas é original.

— Sabe, doutor, a gente tem tanta coisa dentro da

gente! Quando eu via, nas figuras anatômicas, nervos,

músculos, estômagos, metros e metros de intestinos, qua-

se não acreditava que eu possuísse aquilo. O fígado, por

exemplo, sempre tomei conhecimento dele quando se

manifestava irritado por excesso de álcool ou de outras

besteiras.

— Entretanto, de agora em diante, seu fígado não

vai se irritar mais, porque você não vai tomar mais uma

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gota de álcool.

Deu de ombros.

— Isso é completamente indiferente.

— Faremos um tratamento especial para você.

— Faremos como?

— Vou arranjar-lhe uma cama na enfermaria.

— Terei de ficar internado aqui?

— Por quê? Não gosta do lugar? Talvez até sinta

saudade e recorde coisas que andou estudando no passa-

do.

— Não sei. Talvez goste.

— Não é tão ruim assim. Você terá certas liberda-

des que os outros doentes não terão. Inclusive poderá

quebrar a lenda.

— Que lenda?

— De que quem se interna aqui jamais consegue

sair...

— E ninguém sai?

— Geralmente, não. Pense bem. No seu tempo vo-

cê nunca viu um pavilhão parecido com esse?

Pensou. Pensou. Pensou e sorriu.

— É.

— Eles vão ficando por aí porque são casos de pa-

ralisia muito dolorosas. Servem para estudo dos sextanis-

tas de neurologia.

— Estou lembrado. Não cheguei até lá. Cobaias.

—- Não é bom esse termo. Quando você estiver

aqui, vai ver que ninguém quer mais sair.

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— Acostumaram-se?

— De um certo modo, sim. De outro, o que pode-

rão eles fazer dentro de um mundo tão difícil e hostil?

— Meu caso não é tão grave assim, é? Quando en-

trei, vi gente lá fora reclamando uma vaga há muito tem-

po.

— É certo que seu caso não é tão grave, nem difícil

de cura, nem perigoso. Podemos reativar o seu nervo com

massagens elétricas, muita vitamina BI e massagens manu-

ais. Então tentaremos uma operação.

— Uma diortose?

O médico riu novamente.

— Que exagero. E apenas um pé e um joelho.

— E pé e joelho não são esqueleto? Calaram-se, en-

treolhando-se.

— E então?

— Olhe doutor, bem que eu queria se pudesse ago-

ra. Mas tenho que voltar ao interior de Goiás, lá pras ban-

das da Ilha do Bananal. Numa fazenda que só Deus sabe

o caminho. Entre o Rio do Coco e o Rio Javaé. Tenho

que levar um dinheiro de pagamento. O senhor me enten-

de? O pessoal espera por isso faz séculos. E essa viagem

demorará muitos meses.

Dr. Tiago ficou sério e os olhos azuis se concentra-

ram, dando a impressão de que eles tornavam-se verde-

escuros.

— Você é quem sabe. Mas eu não brincaria muito...

no seu caso.

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— Vamos fazer o seguinte. Eu não posso deixar de

ir. Mas prometo que voltarei para me tratar. Prometo.

Não vou demorar muito.

Levantou-se e estendeu a mão agradecida para o

médico.

Deu de ombros com expressão um tanto gaiata.

— Já não sou muito vaidoso. O fato de puxar um

pouco com essa perna não me molesta muito. Depois, a

selva nem olha pra isso.

Dr. Tiago veio voltando, voltando. Como o pen-

samento pode voar rápido. Agora distinguia a palavra do

Dr. Barretto.

— Vai ter que comer. E vamos usar um pouco de

soro de vez em quando.

Aquele homem não parecia o mesmo. Ele voltara.

Demorara demais com aquela dor fina no joelho. E a dor

crescera demais. Crescera demais.

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CAPÍTULO VIII

Compassos da Solidão

O dia se avolumava quente, anunciando chuva para a noi-

te. Por que todos os dias de visitas terminavam com a a-

meaça de chuva?

Lá fora já se ouviam as vozes que esperavam a hora

que a porta se abrisse. Dentro em breve o relógio anuncia-

ria, para a inquietação de Tiago, o bater das duas horas.

Então o portão da entrada da Clínica seria aberto de par

em par.

Madalena trocara um vestido limpo e seu rosto, ge-

ralmente engordurado, perdera o brilho sob uma camada

de pó-de-arroz creme. Como não precisara lavar a ester-

quice dos homens, podia guarnecer as bochechas com um

sorriso bem humorado. Vivia a sua transfiguração. O

momento da sua mistificação de santidade. Nos dias de

visita uma pérfida meiguice se apossava dela. Todos os

seus gestos traduziam bondade e paciência. Os visitantes,

embora pobres, os amigos e parentes dos doentes, leva-

vam sempre consigo a esperança e algum dinheiro. Muitas

vezes deixavam-lhe entre os dedos umas magras notas. E

isso fazia bem. Principalmente agora que as prestações do

rádio se acumulavam atrasadas. Os visitantes encontravam

em Madalena a personificação do anjo caridoso e amigo.

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Ela conversaria com todos, dando notícias agradáveis so-

bre a saúde de um ou de outro. Seria capaz até de sentar-

se na beira das camas e tentar conversar com aqueles des-

pojos que, nos dias comuns, pensaria em jogar no mais

imundo dos lixos. Ou pior ainda, não tomar conhecimen-

to da existência deles.

Até a enfermaria transcendia à limpeza. As próprias

moscas cooperavam com a ausência. Talvez para não ma-

cular o brilho de um dia tão radiante e feliz.

Todos sorriam, na espera. O bom humor fazia com

que apostassem qual deles seria o primeiro a receber a vi-

sita, que rosto amigo invadiria primeiro a enfermaria.

Judas Iscariotes escorregou lentamente as costas

que se apoiavam no travesseiro. Nesse movimento sentiu

a agulha do soro escorrente, fincada em suas carnes. Sor-

riu, porque a dor física não importava tanto para ele. Ou

talvez houvesse um mistério naquele soro. Quem sabe?

Alguma coisa colocada nele para entorpecê-lo, deixando

que a dor ficasse em segundo plano. A verdade é que a

dor no joelho permanecia, que o joelho inchara um pouco

mais. Ou um pouco mais ele emagrecera. A verdade é que

não se fixava mais no sofrimento físico.

Fixou a borracha que escorria o líquido, tentando

empurrar vida para o seu corpo ressequido e dizimado.

Relembrou-se de uma palavra. Puta! E não sentia remorso

algum de tê-la dito. Os olhos da freira não ficaram retidos

em sua memória. Talvez apenas como um ponto de refe-

rência de alguém sedento de salvação.

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Deitou-se completamente. Ele também já ouvia o

ruído do dia de visitas lá fora. E esses ruídos cresciam

porque na enfermaria a expectativa, a angústia da espera,

silenciara a todos.

Algo mordeu-lhe as entranhas. Conversava com o

seu desespero. Como detestava o dia de visitas. Nesses

momentos sua solidão se distendia por uma planície áspe-

ra e muito maior. Sentia no latejar do coração o ritmo de

uma única frase: — Não ter ninguém!... Não ter nin-

guém!...

Os olhos ardidos e avermelhados queriam umede-

cer-se.

— Não ter ninguém!...

Com moleza ergueu a mão magra e repuxou o len-

çol sobre o rosto.

— Não ter ninguém!...

Sentiu-se abafado. Dentro em pouco o suor, talvez

um suor que eliminasse vida, a vida de que ele se impreg-

nava através do soro, dissolvesse um pouco mais de suas

energias. Entretanto era preferível. Preferível não enxer-

gar, do que avistar-se com os outros que tinham alguém.

Vendo, ele sentia-se tocado às raias do abandono. Ouvin-

do apenas, tentava desintegrar-se e sofrer menos.

Percebia seu hálito esboroar-se na colcha encardida

e áspera.

— Não ter ninguém!

E a colcha devolvia aos seus ouvidos, sempre em

tonalidades crescentes, no barulho da sua respiração rit-

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mada e aflita, o conteúdo daquela maldita frase: não ter

ninguém.

Jogado ali. Paralisado. Despojado daquela selva in-

finita onde sempre vagabundeara, podia ampliar o signifi-

cado da solidão. Ora! A gente nasce só e morre só. E nos

momentos compridos que vive só, longe da morte, longe

da morte? Não ter ninguém. Tudo quanto desejara. Ani-

quilar todas as raízes que o prendiam a alguém ou a um

passado. Não ter ninguém? Fazia poucos anos que não se

importava com o sentido daquilo tudo.

Os outros, a quem se igualara em doença e prostra-

ção, tinham alguém. Recebiam palavras amigas e solidarie-

dade. Quando todos se retirassem, os outros poderiam ler

jornais, falar corretamente ou de maneira trôpega sobre

corridas de cavalo e futebol. Ou então da guerra, o assun-

to que mais entusiasmava o ambiente. Quando o sono

enchesse o recinto e a noite tivesse acendido a sua escuri-

dão, poderia sentir o cheiro de banana madura exalando

de algum canto. No dia seguinte, Pedro viria oferecer-lhe

uma. E a banana tornar-se-ia mais redonda porque as gar-

ras de Simão Pedro grudavam-se nela recurvas.

— Não ter ninguém!

— Como não ter ninguém? E eu? Eu não sou nin-

guém?

De onde vinha a voz de Lúcio? Debaixo dos len-

çóis fechava os olhos com mais força. Mas ela penetrava

por entre suas pálpebras, sentava-se dentro do seu cére-

bro. Era a voz. Eram os olhos. Os dois misturando-se,

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confundindo-se, enlouquecendo-o.

— Querido, eu não sou ninguém? Usava de ternu-

ra, meiguice, carinho. Se conseguisse gritar com a maior

Torça de seus pulmões, a voz continuaria macia no meio

dos seus urros.

— Estou aqui. Estou aqui.

Ouvia o riso. Uma pausa. A voz. O riso ciciante. A

pausa. O riso e a pergunta.

— E eu não sou ninguém, querido?

Todos os sons morriam, perdiam a importância,

quando Lúcio ressurgia.

— Eu prometi, não prometi? Não lhe afiancei que

nunca o deixaria? Que com o passar do tempo e o rolar

das horas — ria — eu iria apertando o meu cerco? Então

por que estranhar? Mesmo porque não adianta.

Engolia em seco e virava-se na cama, sem coragem

de libertar-se do lençol que o asfixiava e empapava seus

cabelos despenteados.

— Não quero que se queixe de solidão, querido.

Não permito que se sinta só. Estou aqui. Ficarei até o úl-

timo momento. Até a agonia do seu derradeiro respirar. E

só quando seu corpo estiver duro como a mesa da Ceia,

duro e frio como o mármore dos Mortos, eu partirei.

Mesmo assim, quem garante que não prosseguiremos jun-

tos na solidão de todas as trevas?

Remexeu-se com mais força para que a agulha en-

tranhada em suas carnes produzisse uma dor maior. Uma

fisgada cruel que atirasse para longe o ritmo dos pensa-

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mentos, os mil dedos do remorso, a suavidade da voz de

Lúcio.

Agora eram outros olhos. Os azuis de Dr. Tiago. E

o médico tornava-se cúmplice do diálogo de Lúcio.

— Sarcoma Osteogênico. Por que demorou tanto?

O médico balançando a cabeça desanimado. Lúcio interfe-

ria.

— Claro que ele tinha de lhe dizer a verdade. Não

podia enganá-lo, podia? Nós já estávamos desconfiados

disso, não?

Dr. Tiago falava baixo com medo da realidade da-

quela condenação.

—Temos que interná-lo. Talvez ainda não exista a

metástase.

Judas Iscariotes engolindo em seco. Confundindo-

se nas palavras.

—Nós já desconfiávamos. Nós sabíamos disso.

Dr. Tiago espantou-se.

— Nós? Lúcio sorriu.

— Você está usando o plural, querido. Ele desco-

nhece a minha condição de intimidade.

Suas faces cobriram-se de rubor. Dr. Tiago franziu

o cenho.

— Barretto falou-lhe alguma coisa?

— Não. Em verdade nada me disse. Talvez ele co-

vardemente me escondesse até o último momento. Eu me

confundi. Eu estava querendo dizer apenas eu e saiu o

nós.

Page 92: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

— É uma fatalidade. O sarcoma osteogênico não

costuma aparece em adultos. Em crianças é mais comum.

Que idade você tem agora?

— Vinte e oito anos.

— Dificilmente ataca uma pessoa depois dos trinta

anos. Uma fatalidade.

Judas riu de um modo parvo.

— Perdi por dois pontos. E agora, doutor?

— Você sabe, não sabe? Lúcio interferiu.

— Claro que sabemos. Por que vocês não param de

se tapear. Se eu pudesse me comunicar por ele, doutor,

seria mais fácil. O senhor quer dizer que a dor vai aumen-

tar, não é? Já sabemos. O que ignoramos é se, depois de se

eliminar a parte atingida do joelho, a dor prosseguirá em

outra parte com a mesma violência.

— Sabe o que estou pensando, Dr. Tiago?

— Calculo. Mas não posso garantir. Só Deus saberá

disso. Há casos em que a dor desaparece mesmo que...

existem outros que continuam até...

— Não tenho escolha.

— Ficará dessa vez?

— Que outro destino me espera?

Estalou as juntas dos dedos, uma a uma, lentamen-

te, como se quisesse esticar a sua decisão.

— Entretanto, o senhor vai me prometer uma coi-

sa.

— Mesmo sem saber, prometo.

Aí seu rosto bronzeado, já marcado pelos primeiros

Page 93: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

sintomas da dor, molhou-se de lágrimas.

— Não me deixe, doutor, ser escolhido para exame

das aulas de neurologia.

— Prometo que nunca.

Dr. Tiago foi caminhando lentamente, todo de

branco, perdendo-se no corredor imenso da sua memória.

Agora estavam os dois. O seu cansaço, o seu semi-torpor

e a continuidade segura da fala de Lúcio.

— Também não precisa se desesperar assim. Isso

não é desespero. Desespero é aquele que eu senti quando

aceitei a sua insinuação. Judas Iscariotes, meu bom Judas

Iscariotes! Você ainda não sabe o que é sentir o peito re-

bentando e as mãos tentando segurar o resto da vida. O

que de imenso penetra em nossa consciência quando es-

tamos a um passo de transpor o terrível soportal da escu-

ridão. Esse é o pior momento. Você talvez tenha nascido

com dor semelhante, mas é arremessado e não espera...

Calou-se um pouco.

— Bem. Nós nos divertíamos muito. Barretto e eu.

A descoberta das primeiras pesquisas. O encantamento de

colocar os tecidos. Quaisquer que fossem e das mais di-

versas partes do corpo. Juntar-lhes formol e esperar impa-

ciente pelo endurecimento. A ansiedade de manejar o mi-

crótomo e colocar tudo bem disposto nas lâminas.

Calou-se um momento pensando em algo que de-

veria significar muito.

— Você não achava que as lâminas de vidros eram

todas muito bem feitinhas, Judas Iscariotes?

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Gemeu desalentado.

— Nunca fui muito apaixonado pela Patologia.

—Ah! Que pena! A gente colocar a lâmina no mi-

croscópio e descobrir. Descobrir a diversificação das célu-

las. Que mundo, meu Deus! A conformação de cada uma.

O que eu ri quando me indicaram os Diplococus Gram-

Negativos. Aquelas coisas mimosas em forma de rins. E

aquelas coisas tão harmoniosas poderiam mesmo signifi-

car a masculinidade de um homem na minha terra. A se-

nhora Dona Blenorragia. Dona Gonorréia da Silva. Puxa.

Células lindas. Roxas, vermelhas, azuladas, amarelas, des-

botadas. Um mundo galáxico de misérias humanas. Um

painel apaixonante. Alucinante. Se os movimentos de arte

abstrata tomassem conhecimento de um microscópio, a

teriam revolucionado muito mais cedo. Bem. A verdade é

que ao precisar isolar-me, esconder-me, senti falta das mi-

nhas lâminas. Não importa, já passou. O que existe é vo-

cê. Foi você que me criou e recriou dentro de si. A reali-

dade é que não quero que se sinta só.

Lúcio assobiou uma música qualquer e principiou a

cantar.

— “Panela no fogo furada Não dá pra fazer feijoa-

da.” “Panela no fogo furada Não dá pra fazer feijoada.”

— Por favor, Lúcio, pare com isso. Pare!

— Por quê? Não gosta? Lá em casa havia uma co-

zinheira negra que cantava assim. Ficava a vida inteira ca-

tando feijão.

“Panela no fogo furada Não dá pra fazer feijoada”

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— Você nunca teve uma empregada em casa que

gostasse de cantar uma cantiga horas e horas seguidamen-

te? Não sei. Aquela música devia ajudar a passar a desim-

portancia do seu tempo. Está bem. Se não gosta muito,

falaremos de outro assunto.

Lúcio voltou a assobiar a música da mesma cantiga.

De repente sua voz ficou mais grave.

Escute. Eu tenho de falar. Falar porque me ajuda.

Você algum dia compreenderá isso. Assim o espe-

ro. O tempo é exíguo. É daqueles que quanto mais a gente

vive, menos se está vivendo. Paradoxalmente estou aju-

dando a você. Mas eu tenho que me apressar e falar. Falar

muito. Mesmo não respondendo, não poderá deixar de

me ouvir.

— Foi uma fatalidade!

— Sarcoma Osteogênico!

— Numa laminazinha bonita, nada mais seria que

um Neoplasma.

Lúcio sorriu enlevado.

— Afinal você, que tanto amou a selva, tem um rio

dentro do seu corpo. Esse rio vai invadindo as praias dos

seus músculos, cartilagens... E o sangue como uma canoa

vai derivando, parando nas estrias dos tecidos, deixando

resíduos contaminosos nas partes mais fracas e atingíveis.

O seu rio é como quase todo o rio do Brasil. Desce sem-

pre para o norte. Entretanto, se fosse uma espécie de os-

teólise, a devastação dos tecidos executar-se-ia sem deixar

vestígios, eliminando talvez os resíduos. Então você não

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sentiria tanta dor. Escute-me, Judas Iscariotes. Eu preciso

que você me escute. Talvez disso dependa a redenção do

nosso nada.

Judas revolveu-se cansado. Não poderia reagir. Te-

ria que deixar Lúcio persegui-lo até que alguma coisa o

fizesse calar. Mas tinha que ser por ele mesmo. Quantas

vezes não teve a impressão de seu cérebro ser um grande

quadro negro onde Lúcio ia riscando, com um giz de fo-

go, palavras cruéis e incandescentes.

— Você sabe, Judas Iscariotes, que tem mais uma

semana. Uma semana para caminhar com o seu corpo a-

inda íntegro. Quer dizer, quase íntegro. Por que não vem

comigo? No fim de um dia de visitas, todos estarão tão

cansados, inclusive Madalena, que nada verão. Deixarei

que você se apóie em mim. Encorajarei para que caminhe.

Desceremos a escada. Dentro da noite que vai ser chuvo-

sa, você achará a solução que outrora me prometeu.

Sabe, Judas, meu doce Judas Iscariotes, existem uns

ônibus lindos, novos que o povo carioca apelidou de Bo-

nitão. Eles correm velozes e suas rodas na rua molhada

deslizam como veludo. Eu não tive quem me empurrasse.

Comigo existiu mais a solidão de mim mesmo. Com você

não. Estarei até o momento final. Junto até os últimos

passos da sua caminhada. Minhas mãos que você nunca

quer ver tocarão suavemente as suas costas, posto que seu

corpo pouco pesa. Um segundo. E estaremos libertados.

Longe da mesquinha dor humana e da falsa piedade da

vida. Por que não vem?

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— Não adianta. Não irei, Lúcio.

— Mas por que, meu querido?

— Reconheço que sou covarde. Covarde até que...

Lúcio recuou desanimado.

— Pena. Você é covarde. Covarde mesmo. Quando

eu fui, veja bem, e você não ignora isso, não havia a cura

para minha moléstia, certo? Mas pouco tempo depois, a-

pareceu a cura. Você não me deu a chance, Judas Iscario-

tes. Você me vendeu para a iniqüidade por quanto? Quan-

to dinheiro havia naquela carteira para quem me conven-

cesse a aceitar a opção?

Judas gemeu passivamente.

— Havia algum. Bastante para aquele tempo. Na-

quele tempo...

— Deixemos de histórias que começam com Na-

quele Tempo. Elas não são pra nós. Entretanto, podemos

evidenciar uma hipótese. Se eu o convido para essa deci-

são é porque... mesmo que fosse anunciada a cura do seu

mal, já seria muito tarde para você. Como sou, não me

atingem os remorsos, Judas Iscariotes.

Os olhos de Judas se molharam muito mais de tris-

teza do que de dor.

— “Nós”, Lúcio, nós os outros, estávamos deses-

perados por sua causa. Ignorávamos que “essas coisas le-

vam tempo para se desintegrar”. Agora escute. Eu não irei

com você. Já disse que sou covarde. Covarde até a medula

dos meus ossos, de todos os ossos ou tecidos que já fo-

ram atingidos pelas garras emaranhadas do carcinoma.

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Lúcio, eu não irei.

— Covarde! Covarde mesmo. Prefere que a Senho-

ra das Moscas, como é chamada aqui na enfermaria, en-

contre a miséria do seu corpo dizimado na forma exe-

cranda de um Ossonhe primitivo e bárbaro.

Calou-se. Sua voz, que nunca demonstrava cansaço,

concluiu:

— Que não seja muito tarde, quando você na soli-

dão dos próprios passos inutilmente conclamar por

mim!...

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CAPITULO IX

O Céu Azul com Deus e Anjos por Todo

Canto

Ao contrário das outras noites que se seguiam ao dia de

visitas, ninguém parecia sentir sono. O cansaço das con-

versas, o calor violento do dia, o conteúdo das conversas

traziam logo o sono a todos, mesmo antes da luz ser des-

ligada.

Tiago balançava a cabeçorra entristecido. Seus o-

lhos vermelhos atestavam o muito que chorara.

Felipe procurava consolá-lo.

— Você é um bobo, Tiago. Faz como eu, não liga.

Não espero visita de ninguém. Me contento vendo as ou-

tras pessoas que chegam.

— Não veio hoje. Mas quinta-feira vai chegar. Ma-

mãe não vem porque não gosta da gente. Meu pai porque

não pode viajar. Minha tia está na Europa. Mas minha avó

que gostava de mim, essa vem. Essa vem sim.

Felipe encarou a cabeça nervosa de Tiago e uma

sombra de suspeita perpassou em sua mente.

— Sua avó não pode vir, Tiago.

— Pode sim. Você não é meu amigo. Se você fosse,

diria que minha avó vem na quinta-feira. E vai trazer meu

cachorrinho todo branco com a orelha preta. Ele se cha-

Page 100: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

ma Bilu.

— Ué. Você foi quem falou que tinha vindo praqui

porque sua avó já morreu. Não foi?

Vovó é que era boa pra mim. Os outros não. Ela

deixava meu cachorrinho Bilu todo branco com a orelha

preta entrar no meu quarto e lamber as minhas mãos e até

o meu rosto. Vovó me dava banho numa banheira limpa e

com sabonete cheiroso. Não essa banheira de água suja e

ma.

Começou a fungar e a chorar de novo.

— Pare com isso, Felipe, que não adianta.

— Ela vem sim.

— Não vem não. Porque ela morreu. Se ela não ti-

vesse morrido, você ainda estaria na fazenda e brincaria

com o seu cachorrinho... como é o nome dele?

— Bilu.

— Pois então.

Simão Pedro achegou-se para apaziguar os ânimos.

— Venha até a pia comigo, Felipe. Eu quero lhe fa-

zer uma encomenda quando você sair amanhã.

Afastaram-se da cama de Tiago e Simão Pedro co-

mentou em voz baixa.

— Não discuta com ele, Felipe.

— Mas como pode ele falar na avó se ela já morreu.

— Finja que acredita. A cabeça dele não é normal.

Você não vê? Quanto mais ela cresce, assim ouvi o médi-

co falar, ele vai ficando mais idiota e vai acabar não dizen-

do coisa com coisa.

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— Está bem. Mas eu não gosto de ver ninguém ser

tapeado.

Depois disso ninguém quis mais conversar. A noite

continuava áspera e quente. Não chovera como espera-

vam. Tadeu cocava o seu nervosismo constante. Ninguém

sabia ao certo que importância tinha a doença de Tadeu

para os médicos ou para a enfermaria. Ele andava, comia

direito, não se queixava de dor. De visível, só aquela co-

ceira interminável. Aquela coceira que o afastava de todos.

Ninguém queria ser ajudado por ele. Nascia o medo do

contágio. Ser do jeito que eram, e ainda por cima com co-

ceira, tornava-se uma condenação muito grande.

João tentava com os movimentos limitados apanhar

qualquer coisa na sua mesinha. Lutou uma, duas vezes, até

que Simão veio de sua cama socorrê-lo.

— Procurando alguma coisa, Professor?

— Minhas bicicletas e aqueles pedaços de caderno

velho ali.

Simão apanhou-lhe os óculos. Riu-se deles. Chamar

aquilo de óculos. Todo remendado com arame fininho na

armação e o vidro direito colado com pedaços sujos de

esparadrapo.

—Dá pra enxergar com toda essa amarração?

— Dá e chega. Graças a Deus que ainda possuo es-

ses. Um dia alguém me dará um de presente.

— Tomé as folhas do caderno, João. O outro agra-

deceu sorrindo.

— Meu tesouro.

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Simão analisava disfarçadamente o vulto de João.

Ele não fazia alguns movimentos. Nos momentos co-

muns, não o conseguia. Entretanto, como podia descer da

cama e caminhar deitado apoiando-se nos calcanhares e

nas palmas da mão? Como conseguia erguer-se no banhei-

ro, fazer suas necessidades sem incomodar ninguém?

Mesmo quando era o escolhido no Rodeio, fazia questão

de caminhar a seu modo até o anfiteatro. Só lá, permitia

que o guindassem até a mesa de estudos.

— Que é que você tem nesse tesouro?

— É uma história linda.

— De quem?

— Minha mesmo.

— Você que escreveu?

— Nem sempre quando estou com a Bíblia na mão

estou lendo. Muitas vezes eu coloco papel do caderno e

fico devagarzinho escrevendo. Agora já terminei.

— Vai ler pra gente, João?

— Ninguém vai gostar.

— Você não falou que é linda?

— Eu acho. Mas quem não entender, não gosta.

Simão Pedro aproximou-se curioso. Foi logo dando

palpite.

— Pois eu acho que deve ser linda mesmo, porque

você só diz coisas sempre muito bonitas, João.

— Não sei se vale a pena. Logo Madalena vem e

apaga a luz.

— Você lê o pedaço que der. Se não acabar, a gente

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espera a noite que vem. Vamos, João. Assim você até dis-

trai a tristeza de Tiago.

— Tá bem. Se vocês querem. Só que precisam sus-

pender meu travesseiro e levantar meu corpo mais alto.

Fizeram e ficaram esperando.

E houve a voz:

“Foi assim. O primeiro vagabundo entrou no jar-

dim, que era todo muito lindo e cheio de luz. Não fazia

calor e o relógio da estação batia três horas: Tem... Tem...

Tem... Ele procurou um banco bem escondido e bem va-

zio. Foi então que ele se sentou. Foi então que ele cruzou

os braços sobre a barriga grande. Foi então que ele viu os

patinhos nadando no lago defronte. Um pé de salgueiro-

chorão assobiava o vento nas suas folhas. A sombra da

amendoeira fazia um grande guarda-sol em cima da grama.

Foi então que ele olhou o céu. E viu que o céu estava to-

do azul e cheio de Deus e de anjos por todo o canto. E

veio um vento tão doce, que fazia até bem ao coração. Foi

daí que ele olhou em redor e viu que não havia guarda ne-

nhum. E como tudo era paz e ele tinha andado muito pelo

comprido das ruas, foi-que-foi fechando os olhos sem te-

mor.

O segundo vagabundo, que era magrinho e muito

alto e que tinha uma barba por fazer de muitos dias, che-

gou sem nem fazer barulho e olhou o outro cochilando.

Fazia tempo que não se encontravam. Sentou-se tão de

leve que nem embalançou o banco. Depois com a mão

amiga tocou no ombro do vagabundo gordo.

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Ele não estremeceu nem nada. Não devia ser guar-

da, porque guarda, quando acordava, era com chute de

botina. Abriu os olhos com calma.

Aí o outro falou.

— Bons olhos o vejam.

— Ah! Sois você? Faz tanto tempo que a gente não

se encontra.

— E que eu não andava por essas bandas. Tirei

umas férias. Eu peguei e li numa revista de médico que

todo homem deve passar quinze dias por ano num Sana-

tório. Peguei è fui. Até engordei.

—Engordou mesmo.

—Fiquei quinze dias na Santa Casa de Misericórdia.

O vagabundo magrinho sentiu-se arrepiado.

—Mas lá não é horrível? Dizem que dão banho de

seis em seis dias. Que tiram sangue, que furam a espinha...

—E daí? Nada disso dói. E é doendo que a gente

descobre que a vida fica mais bonita.

— É.

— E você?

— Eu também mudei de rumo, sabe? Descobri

uma ponte lá na Urca que é uma beleza. A gente pode até

escutar a conversa dos barcos com a maré. A gente dorme

e, até o momento de fechar os olhos, fica vendo as estre-

las do céu, quando há estrelas no céu. Mesmo quando

chove chuva grande, nem dá para molhar o frio que a gen-

te já sente sozinho.

— Não tem perigo de chutes de guardas?

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— Que nada. De manhã, acordo cedo e fico espi-

ando a entrada do Fluminense Iate Club. Aí o porteiro

que é bonzinho me dá café com pão. E o pão muitas ve-

zes vem com manteiga. Que amigão.

— Um dia vou te fazer uma visita.

— Está devendo.

Foi aí que os dois homens ficaram um bocado de

tempo sem falar nem nada. Só espiando a tarde que anda-

va macia com chinelos de paina para não assustar as nu-

vens e nem o vento.

Foi então que o vagabundo magrinho ficou falando

sozinho. Mastigando a língua.

Santa Casa de Misericórdia... Santa Casa de Miseri-

córdia...

O vagabundo gordo, de quem eu me esqueci de di-

zer que tinha os cabelos brancos como algodão branqui-

nho, chamou a sua atenção. Assim mesmo sem se zangar

na alma.

— Não fale em Misericórdia...

— Por quê?

— Porque não gosto. Misericórdia dá impressão de

pena e pena só se deve ter dos desgraçados.

— Tá bem...

Guardaram novo silêncio e o primeiro vagabundo

foi que falou dessa vez, se lembrando de uma coisa.

— Você tem um cigarro aí, meu amigo?

— Tenho.

Enfiou a mão no bolso e retirou um pacote embru-

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lhado num pedaço de jornal do Globo. Abriu entre suas

mãos com muito cuidado.

— Peguei essas guimbas ontem de noite. São fres-

quinhas e cheirosas. Escolha uma. Qualquer uma menos

essa.

Com o dedão comprido indicava uma maior no

meio da multidão das outras.

— Por que essa não?

Sorriu feliz como passarinho que nunca ouviu falar

de gaiola.

— Essa.

Trouxe o pedaço de cigarro até o rosto e se alisou

nele.

— Essa foi uma mulher linda que jogou no chão.

Uma mulher tão linda como uma fada. Toda vestida de

preto. Os cabelos eram tão loiros, quase tocavam no meio

das costas. Que linda. Pintava os lábios de vermelho e

manchou a ponta do cigarro. Ela andava como se não an-

dasse. Por onde pisava os pés, ia nascendo tudo quanto

era espécie de flor. Rosas, cravos e lírios. Linda. Tão linda!

Suspirou tão forte que o primeiro vagabundo ficou

com medo que ele rasgasse um pedaço da tarde.

— Tão linda, você sabe? O meu tipo.

O vagabundo gordo nem disse que não acreditava.

Pra quê? Sabia que na vida não havia mulher daquelas. Se

houvesse, não pisava em flor. Se pisasse em flor, era da-

quelas que andavam em carros de luxo com motorista de

luva e de óculos inteiros. E mesmo se houvesse como ele

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estava contando, ele nunca tinha visto uma assim.

O vento aumentava de leve. Gente passava com

pressa pra pegar trem na estação Dom Pedro II. Só eles

não tinham pressa e podiam espiar tudo que achavam bo-

nito e macio.

Foi então que o primeiro vagabundo pensou numa

coisa que era muito grave e difícil.

— Posso lhe falar de um assunto?

— Do que quiser.

Torceu os dedos gordos, estalou os nós dos dedos,

ficava pra lá e prá cá sem jeito de como começar a coisa.

— Como você sabe, eu passei quinze dias na Santa

Casa de Misericórdia...

— Você falou disso já.

— Mas queria que você visse bem que lá a gente fi-

ca... como posso dizer? A gente fica deitado numa cama,

longe do mundo e das necessidades dele.

— Uai! Eu pensei que você tinha descoberto lá a

casa do Paraíso?

— Pois aí é que está. A gente fica lá numa lerdeza

toda, não precisa de necessitar de nada mas...

— Desembuche logo, homem de Deus!

— É simples. Longe da rua, longe dos pontos, a

gente fica sem ganhar nenhum tostão. Nem mesmo uma

mão caridosa joga uma moedinha pro nosso sorriso mais

simpático.

— Que lá isso é verdade, deve ser.

— Pois é bom que se diga que eu estou órfão de

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dinheiro.

— Sei.

— Queria lhe pedir um favor.

— Quanto?

— Você não tem sobrando aí uma pratinha de um

mil réis?

— Se tivesse essa fortuna aquela loura linda nem

me escapava.

— Nem oitocentos réis?

— Jamais.

— E quinhentos réis?

— Não seria hoje.

— Nem quatrocentos réis?

— Impossível, amigo.

Engoliu em seco uma brasa de desaponto.

— Bem. Duzentos réis eu não peço porque ofende

a minha moral.

O vagabundo magro deu uma risada gostosa.

— Pois tá. Duzentos réis eu tenho. Meteu a mão

no bolso e puxou o níquel.

— Fique com ele. É tudo que consegui hoje. Eu sei

como são essas coisas.

Em silêncio, o primeiro vagabundo ficou rolando o

dinheiro entre os dedos um tempão. E nesse tempão a

tarde começou a espreguiçar sua roupa clara, dando idéia

que estava com vontade de dormir. Era capaz até de não

demorar muito pra que acendessem as luzes da cidade e

do Cristo do Corcovado.

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O vagabundo gordo resolveu até por agradecimen-

to procurar um assunto mais distraído.

— E então?

— Então o quê?

— Você sabe, lá na Santa Casa a gente não tem no-

tícias certas. Por isso você que tem andado pela cidade

deve saber melhor das coisas.

— Sobre?

— Sobre o quê?

— Sobre o que se diz da guerra.

Pela primeira vez o rosto do outro perdeu a calma

deixando ver que estava havendo tempestade no seu cora-

ção. Respondeu com raiva e indiferença.

— A guerra não me interessa.

— Deus do céu! O que foi que você disse?

— Eu disse que a guerra não me interessa. Não te-

nho mais nada para perder com as guerras.

— Mas deve haver sempre um ponto, uma coisa,

entre um homem e uma guerra.

— Comigo não há.

Espantado, o vagabundo gordo pensava depressa.

—Não interessam a você os navios afundados?

— Não.

— As cidades destruídas?

— Não.

— A mocidade destruída?

— Não.

Foi então que ele fez uma pausa cheia de dor. Pas-

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sou a mão sobre o banco do jardim e perguntou todo

tremendo.

— Não interessam a você as bombas que caem em

nossos jardins e destroem tantos dos nossos bancos?

O outro levou um choque elétrico de dor. Olhou o

banco. Olhou todos os bancos brancos do jardim. Os que

estavam ocupados e os que se encontravam vazios. Alisou

demoradamente as costas do banco. Levantou os olhos

cheios d’água e falou então.

— Sim. A guerra é uma coisa horrível!...

João calou-se e deixou que as folhas do caderno ca-

íssem sobre o seu corpo. Sentia-se cansado a ponto de

sentir dificuldades em retirar as bicicletas.

Simão Pedro sentia-se extasiado.

— Foi você que escreveu toda essa história?

— É.

— Foi você que pensou em tudo isso?

— Foi. Num dos dias de visita falavam tanto da

guerra que eu pensei em tudo isso.

— Foi a coisa mais linda que eu já ouvi. Palavra de

honra.

A conversa foi interrompida pela entrada abrupta

de Madalena.

— Nunca vi tanta besteirada junta! Fiquei escutan-

do do lado de fora para ver em que dava toda essa babo-

seira.

— Mas você não gostou, Madalena?

Nunca vi chatice maior. História pra mim, que não

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tem amor, beijo e abraços, não presta pra nada. Mas olha

que eu até que tive muita paciência. Já passam quinze mi-

nutos ou um pouco mais, da hora de apagar a luz. Arru-

mem-se todos porque acabou-se a festa.

Foi até junto da porta, torceu o comutador. Seus

chinelos bateram sobre o ladrilho do corredor. Depois a

luz de lá também se extinguiu.

Felipe não continha a sua indignação.

— Mas é uma vaca mesmo!

Simão Pedro sorriu da revolta de Felipe. Depois

que se acostumaram com a escuridão, Felipe não se con-

teve e achegou-se à cama de Simão Pedro.

— É uma égua afolozada! Madrinha da tropa mes-

mo. Só uma égua dessas não gosta de uma coisa bonita

assim.

Simão Pedro esperou acalmar-se a expressão do ou-

tro e indagou:

— Você entendeu bem a história de João, Felipe?

— Só naquele final que eu fiquei muito confuso.

No resto é igualzinho à vida da gente quando tem que se

afundar na cidade. O que foi que ele quis dizer com os

bancos, Pedro?

— Veja se compreende. Aquela história é feita

mesmo pra qualquer um de nós. É só trocar o banco por

nossas camas. Entendeu?

— Ainda estou todo misturado.

— Vamos ver se dá para lhe explicar melhor. Nós

não temos nada na vida, não é?

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— É.

— Quando vem a guerra pode destruir tudo. Cida-

de, navio, gente... A guerra pode destruir tudo. E a gente

não sente muito porque não tem um ponto de contato

com ela. Mas se as bombas caírem perto da gente e des-

truírem tudo que nos resta, que no caso é essa enfermaria,

a guerra fica sendo uma coisa horrível, não fica?

— Nem num fale nisso, por amor de Deus. Seria a

guerra mais horrível do mundo.

— Até amanhã, Felipe. Que no seu sono de pedra

nunca apareça uma guerra.

— Até amanhã, Simão Pedro.

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CAPÍTULO X

A Noite Transfigurada de Tiago Maior

No seu mundo reduzido de pensamentos tomara uma de-

cisão. Iria. Partiria. Todos dormiam na enfermaria. Barto-

lomeu gemia no sono e raras vezes Tadeu coçava-se irri-

tado.

— Meu cachorrinho Bilu é todo branco com uma

orelha preta.

Fungou compridamente e ergueu a mão para limpar

os seus olhos. Agora precisava apoiar as mãos com muita

força e tentar sentar o corpo. Sabia que se fizesse barulho

Pedro acordaria e viria espiar o que seria aquilo. Tinha

certeza de que quando a noite escurecia demorava muito

tempo para ficar dia de novo.

— Felipe falou aquilo porque Felipe não gosta de

mim. Como pesava o resto do corpo semi-paralisado! Se

suas pernas não fossem retorcidas uma na outra, causando

dificuldade em limpá-lo quando se sujava ou vesti-lo

quando trocava a calça de pijama, desceria com facilidade.

Se elas fossem retas como a de muita gente, escorregariam

no lençol da cama. Assim, demorava muito. Elas engan-

chavam no colchão disforme quando o movimento era

maior. Respirava fundo. Parava um pouco e tornava a

respirar procurando paciência e mais força. Não ignorava

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que chegando ao chão elas deveriam deslizar porque nada

havia para esbarrá-las.

— Vou de novo.

Começou a sentir que suava e que suas mãos esta-

vam ficando escorregadias no ferro da cama. Entretanto

nada o faria desanimar.

Quero ver o meu cachorrinho Bilu todo branco e

de orelha preta. Ele vai lamber o meu rosto.

Puxou mais as pernas c estas se soltaram. Se conse-

guisse virar o corpo um pouco estaria na borda da cama.

Conseguiu. Os pés libertos do lençol balançaram-se no

espaço. Alegrou-se pela vitória. Os braços doíam muito

quando os joelhos começaram a acompanhar os pés e as

pernas embaralhadas.

Simão Pedro ressonou forte, movimentou-se em

seu leito e virou calmo as costas para a sua cama. Ficou

aliviado. Se Pedro acordasse, estaria tudo perdido. Ficou

sem se mexer uma porção de tempo, respirando mais

fundo e teimando em não soltar as mãos que estavam

mais umedecidas de suor. Se as despregasse da grade, com

a posição em que se encontrava o corpo, jamais consegui-

ria alcançá-las de novo. Ia tentar recomeçar do ponto em

que parará. Forçou os braços que começavam a cansar.

Não queria desanimar porque faltava pouco. O corpo

principiou a projetar-se no vazio. Só a força de vontade

fazia com que conseguisse ainda se agarrar no gradil da

cama. Aliviado sentiu que os pés tocavam no chão frio do

ladrilho. Ficou com os olhos cheios de água, mas dessa

Page 115: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

vez sorriu. Podia soltar a mão direita com cuidado e colo-

cá-la junto da esquerda. Executou o movimento. Agora

era a vez de desligar a mão esquerda e apoiar-se no col-

chão. O corpo desceu mais e estava a menos de meio me-

tro do chão. Cairia maciamente no chão. Tudo demorava

muito mas estava dando certo. Fechou os olhos, segurou a

cabeça grande com a mão esquerda para aparar o baque

que ela daria contra os ladrilhos. Abriu os dedos da mão

direita e foi soltando a grade. O corpo baixava mais e os

dedos agora seguravam a beira do colchão. O corpo tom-

bou com um ruído cavo e a cabeça bateu de leve, sem do-

er muito e sem chamar a atenção.

Encontrava-se deitado de bruços. Melhor do que

podia ser. Se o corpo tivesse resvalado de costas, não teria

salvação. Girou-se sobre a barriga e na penumbra da en-

fermaria avistou a porta que dava para a mesa da ceia,

sempre entreaberta. Sentiu-se meio desgraçado ao ver que

o corpo sem apoio quase não caminhava. Seus braços na-

davam no vazio. Suas mãos atingiam o chão mas não ti-

nham ponto de apoio para puxar as suas esperanças. Mas

iria. Colou o rosto na frialdade do ladrilho e com as mãos

alisou cada pedaço. Só existiam pequeninas reentrâncias

em volta de cada ladrilho pelo gasto do cimento. Fincando

as unhas conseguia arrastar-se um pouquinho mais. As

unhas estavam grandes e o ajudavam. Mas depois de certo

tempo, as pontas dos dedos começaram a doer muito. Re-

solveu não se importar.

— Quero ver meu cachorrinho Bilu que tem uma

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orelha preta.

Atingira o meio da enfermaria e os dedos começa-

ram a sangrar. E o suor quente que sentia na cama trans-

formava-se num frio cortante doendo na barriga. Só o de-

sespero o empurrava para frente. Fechava os olhos e tate-

ava os ladrilhos em busca de buracos onde suas unhas, se

desgastando, penetravam doloridas. Nem queria saber

quanto tempo tinha deslizado de olhos fechados. Tinha

medo de abri-los e descobrir que a porta ainda se encon-

trava longe. Animava-se pensando na cadeira de rodas que

sempre havia à disposição dos doentes no corredor. Só

bastava chegar perto dela, restabelecer as forças e puxar o

corpo. Quando sentasse nela tudo seria mais fácil. Porque

só com o impulso das mãos elas estariam deslizando. Sor-

riu pensando nisso. Agora, precisava parar um pouco. A-

judar a suspender a cabeça com as mãos para medir a dis-

tância entre ele e a porta. Quase deu um grito de horror.

Perdera a direção. Não enxergava mais a porta da Ceia e

sim o armário de remédios junto da porta do anfiteatro.

Não conseguira. Não conseguira. A noite tinha andado

mais ligeira do que seu desespero. Levou as mãos à boca e

começou a lamber o sangue dos seus dedos escalavrados.

* * *

Judas Iscariotes elevou o corpo e apoiou-se sentado

no travesseiro. Logo existiria um interminável e quente dia

de verão. Um dia em que a cada minuto aquela idéia fica-

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ria obcecando-o. “Está chegando a hora. Da Próxima se-

mana não poderei passar. Dr. Tiago avisou. E eu sei que

ele está com a verdade. Resta saber se a dor que se pro-

longará no rio do meu corpo existirá tão forte como a sin-

to no joelho”.

Teve um esgar tentando imitar um sorriso. No es-

curo da enfermaria ninguém poderia avistar aquele seu

jeito de desespero. E a guerra. A sua guerra, Judas Iscario-

tes. E a bomba caindo próximo à sua perna, Judas. Na

guerra lá de longe, muita gente será mutilada. Muitas per-

nas serão cortadas. A sua não será a única...

Sentiu uma onda de suor frio, pegajoso escorrer em

sua barriga. Com a mão direita apalpou o joelho inchado.

Não tinha doído muito nesses últimos dias. Como era

mesmo o termo médico? Gonialgia. Não era bem assim.

Gonialgia era apenas uma dor simples no joelho. A sua era

mais definitiva. A dor do carcinoma. A algia do sarcoma.

Tremeram todos os ossos do corpo. E eu estou

morto. Lúcio, frio em sua lógica, estava com a razão. Por

que não abreviar tudo aquilo enquanto podia caminhar?

Não tinha liames místicos que o prendessem à vida. Não

quebrantaria qualquer dogma de auto-fé destruindo o que

lhe pertencia. Havia Deus. Sim, Deus. Mas ele estava tão

longe, tão abandonado talvez. Tão perdido de infinito.

Como foi mesmo que alguém explicara a egoísta angústia

de Santo Agostinho? Era o dedo. Sim o dedo. Meu dedo

dói. É meu dedo que dói. Que me importa que você corte

a sua perna, se é meu dedo que dói?

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Respirou profundamente.

— Não é meu dedo que dói, Santo Agostinho. É a

minha perna que dói.

Muito embora reconhecendo que a dor diminuíra

um pouco. Talvez por um processo de sinetia. Talvez por

ingestão de algum sedativo poderoso colocado dentro do

soro. Talvez. Talvez até por sugestão. A verdade é que

nesses dois dias podia caminhar menos cruciado até o ba-

nheiro. Mas não se iludia demais. Lúcio via mais adiante

porque sua visão era mais perspicaz e profunda. “Ela vai

voltar mais forte, mesmo que você ampute a perna, mes-

mo assim.”

Lúcio usava de todos os argumentos para conven-

cê-lo àquela caminhada que ultrapassa todas as fronteiras.

Decidira até acalmar-se. Submeter-se a sua guerra

particular. Que lindo! João com as suas guerras, cheias de

poesia. Com o céu azul com Deus e muitos anjos por toda

a parte. Com a pureza dos seus sentimentos, sem se revol-

tar com coisa alguma, falando de anjos, arcanjos. Das le-

giões de Tronos, Potestades, Virtudes e Principados, fa-

zendo uma reverência toda especial aos Querubins e Sera-

fins. João era íntimo dos anjos. Até sua guerra era feita

por anjos sem asas... Passou a mão nos olhos para espan-

tar uma visão. O que era aquilo? Não, não poderia ser um

anjo caído. Forçou a vista na escuridão e deu com o vulto

de Tiago, o Maior, nadando nas águas do desespero. Ficou

um instante observando a luta do seu arrastamento. Onde

iria Aquele louco? Onde pensaria estar indo?

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Resignado virou o corpo para os pés da cama.

Quando Tiago se aproximasse mais, poderia estender o

braço e ajudá-lo. Puxá-lo para perto de sua cama. Ainda

fitava o grande esforço do outro. Não sabia se suas unhas

fincadas no vão dos ladrilhos faziam mais força para pu-

xar o corpo ou caminhar a grande cabeça. De repente viu

que o homem começou a lamber os dedos e parará sem

forças de prosseguir.

Falou-lhe com voz baixa para não despertar os ou-

tros que dormiam profundamente.

— Dê-me sua mão. Eu o ajudarei.

Tiago levantou os olhos para a sua mão estendida.

Segure na minha mão e com a outra ajude a empur-

rar o corpo porque não tenho lá muita força.

As mãos se tocaram e Judas Iscariotes sentiu seus

dedos inundados por um líquido grosso que não era suor.

Ajudou-o a encostar-se na sua cama. Enxugou os

dedos ensangüentados no lençol. Em seguida passou a

mão no rosto quase imberbe de Tiago, o Maior. Desceu a

mão para o seu peito.

— Você está todo gelado. Vou chamar Simão Pe-

dro para ajudar.

Tiago murmurou com voz entrecortada.

— Agora, não. Espere um pouco.

— Por que você fez tudo isso? Desceu de sua cama

sozinho.

— Desci.

— Levou a noite inteira para chegar até aqui.

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— Foi sim.

— E por quê?

— Não sei.

— Queria falar comigo?

Demorou um pouco pensando antes de responder.

— Eu queria falar com você?

— Por quê?

— Porque você é como eu. Você também é rico e

amigo dos médicos. Por isso não vai lá dentro.

Mostrou com os dedos o anfiteatro fechado.

— Isso não tem importância, hoje se quiserem po-

dem me levar lá que eu não me importo mais.

— Eu não gosto, eu não quero. Eu choro quando

me levam lá.

Calaram-se um instante. Tiago foi movido por uma

inesperada sofreguidão.

— Você acha que Felipe falou a verdade? Judas

muniu-se de paciência.

— Não sei bem o que Felipe lhe falou.

— Ele disse que nunca vem ninguém me visitar.

Ele diz que eu nunca tive um cachorrinho chamado Bilu

com uma orelha preta. Ele disse que minha avó morreu.

Tiago segurou fortemente na mão de Judas Iscario-

tes.

— Você acredita que eu tenho um cachorrinho

chamado Bilu?

Judas Iscariotes recordou-se da freira, do dia daque-

la visita. Lembrou-se das palavras de Bergson. A gente

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não sabe se fazendo um bem está principiando um mal.

Não sentia remorsos de ter xingado a freira. Talvez que se

fosse nesse momento não a tivesse xingado...

— Eu perguntei e você não respondeu.

— Por que você não foi conversar com João? João

é sempre tão bom. Sempre tão cheio de palavras de fé e

de esperança. Eu não sou como ele.

— Não. João não quer mais saber de mim. Diz que

eu já contei muito do meu cachorrinho Bilu, da minha

avó. João acha que eu sou um bobo porque fico esperan-

do que venha visita e quando não vem fico chorando mui-

to. Só você não sabia ainda da minha história.

— E você quer que eu acredite nela?

— Não.

— Não?

— Não.

— E por quê? Por que, Tiago? Você não viajou

uma noite inteira para me contar isso?

Tiago começou a mover desajeitadamente a cabeça.

Estava chorando baixinho e limpava com os seus dedos

ensangüentados o corrimento das lágrimas. Seu rosto co-

meçava a lambuzar-se todo.

— Por que, Tiago?

— Porque...

Aquela confissão saiu devagar e dolorosa.

— Porque eu não vou mais acreditar que tive um

cachorrinho chamado Bilu com uma orelha preta. Porque

eu agora sei que nunca mais vem visita. Porque eu sei que

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agora minha avó...

Parou de falar e com um esforço inaudito virou a

cabeça para perto do rosto de Judas Iscariotes. Sua face

era co-movedora. A luz que principiava a anunciar a ma-

nhã incidia agora cheiamente sobre ela. Naquela mistura

de sangue e lágrimas só os seus olhos transpareciam de

azul. Eu não queria vir falar com você.

— E por que veio?

— Não acertei ir até a porta. Judas estava perplexo.

— E se você chegasse até a porta, Tiago?

— Entrava no corredor.

— E o que há no corredor de tão importante?

Queria chamar a Madalena e pedir algum remédio?

— Não estou sentindo dor.

— E o que você queria no corredor?

— A cadeira de rodas. Sentar-me-ia nela, desceria a

escada e iria embora.

— Mas como você poderia descer a escada, de ca-

deira de rodas?

— Desceria sim. Eu sei que desceria.

— Mas não poderia ir muito longe, Tiago?

— Iria sim. Você sabe que o portão grande está

sempre aberto, não está?

— Parece. Mas quem você queria encontrar fugin-

do assim?

— Minha avó. Só ela foi boa pra mim. Só ela foi

boa pra mim.

Olhou bem dentro dos olhos de Judas. E Judas pô-

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de descobrir que lá dentro dos olhos de Tiago havia um

infinito perdido de dor.

— Eu ficaria esperando. Esperando...

Judas não quis perguntar o que ele esperaria. Já adi-

vinhara. Deixou o final para Tiago contar.

— Eu esperaria um ônibus bem grande. Empurra-

ria a cadeira pela escada abaixo...

Engoliu em seco.

— E iria encontrar a minha avó.

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CAPÍTULO XI

A Noite de Simão, o Epiléptico

Podia-se dizer que Bartolomeu e Mateus possuíam a atra-

ção dos pólos opostos. Assim glosavam os médicos quan-

do os viam tão amigos e inseparáveis. Existia uma dose

rascante de humor negro naquela infeliz comparação. Se

Bartolomeu possuía o lado direito paralisado, Mateus era

mais completo; a hemiplegia o atacara somente no braço

esquerdo. Sempre havia o que conversar entre eles. Para

acender o cigarro, Bartolomeu segurava a caixa e Mateus

riscava o fósforo. Como falsos xifópagos abraçavam-se

para caminhar até o banheiro. Um apoiava-se no outro e o

outro entreabria a braguilha do pijama para ajudar o com-

panheiro a esvaziar-se. E vice-versa. Mesmo quando a ne-

cessidade se tornava mais demorada, nenhum dos dois

reclamava em servir um ao outro. Não surgia entre eles

nenhuma repugnância ou vergonha. Resignaram-se à uma

situação caprichosa da vida. Se tivessem que esperar por

Madalena ou pelo Demônio acabavam se desapertando na

cama mesmo. Preferível aquele pequeno sacrifício a au-

mentarem o odor putrefato que os velhos colchões já os-

tentavam. Sempre Bartolomeu agradecia mais porque a

sua situação, muito menos favorável, exigia mais paciência

do outro. Entretanto os seus males surgiram de um modo

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diferente. Mateus contava numa história um tanto absurda

que viera dos pagos do sul. Que era tropeiro e montava

um belo pingo. Uma vez precisara viajar sozinho. Viagem

longa e com Minuano ameaçando. Dizia ele que fora

mordido pela mosca do sono. Que caíra do cavalo e ficara

ao relento talvez dias, talvez noites. Quando o encontra-

ram, o braço já se paralisara. Se demorassem mais, diziam

também, que o corpo todo ia se transformar numa pedra

dura até que a morte o atacasse.

Já Bartolomeu não. Não contava de onde viera,

mas pelo número de parentes que o visitavam às quintas-

feiras, não podia ter surgido de muito longe. No começo

só sentia uns choques pelo corpo. Uma coisa esquisita

aparecida não sabia como. A molecada da rua vivia atrás

dele à espera da hora do choque. Por mais que xingasse a

meninada, sempre havia alguém a segui-lo. Talvez aquilo o

enervasse mais e produzisse o ataque mais a miúdo. Vinha

de olhos baixos pelas ruas, o chapéu afundando-se sobre

os olhos, a pasta nervosamente apertada debaixo do bra-

ço... De repente o corpo dava uma carreirinha inesperada

e incontida. A cabeça arremessava-se para trás, o chapéu

ia parar longe e a pasta se estatelava no chão, entreabrin-

do-se e espalhando papel por todo canto. O corpo todo

estremecia como se uma corrente elétrica o atravessasse

por todos os nervos. Ficava três minutos naquela agonia.

A molecada se dispersava com medo e nada dizia. Os

choques viravam pequenos tremores e começavam a pa-

rar. A custo tirava o lenço do bolso e limpava o suor da

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testa e do rosto. Precisava se concentrar para organizar

desanimado os novos movimentos.

Alguma mão caridosa juntava seus papéis, apanhava

sua pasta.

—- Tomé suas coisas, seu Bartolomeu.

Não podia nem agradecer porque os olhos estavam

cheios d’água de tão pequeno que se sentia. Precisava era

se acalmar e continuar o seu caminho. Noutro canto have-

ria outra molecada curiosa esperando a sua passagem, a-

guardando ansiosa por seus choques. Até que um dia eles

pararam de vez. Mas pararam para pior. Deixaram-lhe

como triste lembrança o lado direito paralisado.

Depois o tempo passara. Não havia recuperação.

Deixaram-no ali. Quanto tempo, Bartolomeu? Sei lá, meu

Deus. Só sei que muito tempo. Criara na sua solidão a

mania das moscas. De ficar contando o tempo que restava

dos que iam morrer. Achava até lindo. Elas vinham che-

gando, chegando. Não eram das que ficavam voando de lá

para cá, não. Aumentavam, aumentavam e ficavam espi-

ando para a cara daquele que deveria partir em breve. Se

alguém as afugentava, voavam em bando e em círculo pa-

ra pousarem no mesmo lugar como se nada tivesse acon-

tecido. E quando o médico mandava colocar um biombo

de fazenda branca encardida elas se afastavam, pousavam

em bando no teto. Quando tudo se acalmava, desciam na

cama. Enchiam o biombo de pequenos pontos negros

imóveis. Só a elas era dado assistir à agonia do doente,

como se soubessem de tudo. E quando chegava o fim,

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como que obedecendo à uma ordem se retiravam em si-

lêncio, passando pela mesma janela, indo-se perder nos

mistérios da vida.

Bartolomeu adorava ficar olhando aquilo. Reclama-

va entre dentes, franzindo a pequena testa, apertando os

pequenos olhos, adquirindo uma face estranhamente pité-

cia quando deparava com o biombo imundo. Bem que

podiam pelo menos respeitar a hora da morte de um da-

queles condenados. Não custava mudar o pano de vez em

quando. Desanimava. Mas para que, Bartolomeu? Aquele

ali já fora branco, branquinho também. Ficou assim por-

que assistiu muita gente morrendo. Ficou assim, como a

vida da gente, porque viveu a sua vida. É isso.

E por que Bartolomeu e Mateus, que tanto falavam,

guardavam silêncio agora? Mateus dissera a última frase e

apontara com o queixo para o leito de Simão.

E quando Simão, o epiléptico, se encolhia na cama

ou se afastava pelos cantos, furtando-se a conversar com

alguém ou fixar a vista em qualquer dos companheiros,

evidenciava que alguma coisa estava para acontecer.

Se por ventura alguém conseguisse observar os seus

olhos num desses momentos, poderia até amedrontar-se e

fugir da sua presença. Suas pupilas se dilatavam duras,

dando a impressão de que os olhos tinham perdido o mo-

vimento. Todas as suas expressões eram de pedra. Apenas

a boca caída e retorcida deixava escapar um contínuo file-

te de baba. Respirava com mais força. Suas mãos se cris-

pavam sempre como se quisesse dilacerar uma angústia ou

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esmagar um pesadelo...

Simão hoje encontrava-se assim. Desde a manhã

quando uma súbita tristeza o invadiu e foi crescendo,

crescendo, crescendo cada vez mais, ele emudecera.

Hoje não ajudaria ninguém. Não se apiedaria de

ninguém. Tudo nele se revestindo de indiferença. Nem ele

mesmo compreendia porque se transformava desse jeito.

Não saberia sequer, depois de passada a crise, o que de

verdadeiro acontecera consigo.

Perdia a vontade de almoçar. O coração começava

pequenininho a sentir saudades de sua casa, longe. Longe

onde, Simão? Fale pra mim. Longe, no interior de Minas

Gerais. Todos nós viemos de longe, não é verdade? De

tão longe para quê? Para se juntar a uma porção de gente

como a gente. Uma porção de gente que, se juntasse um

pedaço de cada um, não daria um homem perfeito. É isso.

Só isso. Apenas isso.

A tarde veio encontrá-lo ainda mais triste e de o-

lhos mais duros.

Pedro que tudo observava comentou baixinho para

Felipe.

— Hoje vai ter... Vai ser a noite de Simão, o epilép-

tico. André arrancou um fiapo da colcha e comentou pe-

nalizado.

— É horrível, não é Pedro?

— É. Mas o que se pode fazer?

André observou o rosto atento de Bartolomeu. Na

certa, ele pensaria o que sempre pensava. “Ele só vai me-

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lhorar quando chegarem as “moscas”.

Tiago começara a umedecer os olhos. Pedro o a-

calmou.

— Fique quieto, sim? Isso de nada adianta.

Tomé quis concordar balançando a grande cabeça,

mas aquele movimento disritmado precipitou mais de-

pressa as lágrimas em seu rosto.

O desânimo pareceu apossar-se de toda a enferma-

ria. Ninguém poderia fazer nada. Nada que evitasse aqui-

lo. Os ataques de Simão seriam inesperados como a chuva

do próprio verão. Não tinham dia certo. Hora exata. Não

fossem a tristeza dos meus olhos e o mutismo, nada indi-

cava ao certo quando eles viriam e como viriam. Pedro

rezava no coração do seu mal-estar para que os ataques

não fossem prolongados.

E quando a Ceia chegou, Simão não sentiu vontade

de sentar-se à mesa, nem munir-se de sua colher enferru-

jada.

Quando chegaram as sombras que carregavam a

noite, suas pupilas tinham se desenvolvido mais. Até suas

mãos se desinteressavam em limpar a baba escorrente.

* * *

Tudo era silêncio. As luzes da enfermaria haviam

sido apagadas, dando a impressão de que a noite seria co-

mum como todas as outras. Um ou outro, de vez em

quando, soltava um gemido espaçado. Alguém, além de

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Tadeu se cocando sempre, mexia com força o enxergão da

cama, agitando-se com um estranho sonho.

Judas Iscariotes, que dormira o dia todo alimentado

pelo soro, com a escuridão abria os olhos, mesmo arris-

cando-se a encontrar os verdes olhos de Lúcio. Ficava

escutando em volta, sentindo cada vez mais a fraqueza

intrometer-se em seu corpo e o desânimo se apossar da

sua vontade.

Naquelas horas de insônia, o joelho doía como bra-

sa soprada. Por que as dores aumentam com a escuridão

da noite? Via-se dominado por uma estranha confusão de

sentimentos. Não queria acompanhar Lúcio do jeito que

ele convidara. Do jeito que ele o convidaria sempre. Lúcio

não era de desistir. Nos momentos de grande dor detesta-

va viver. Detestava os médicos que teimavam em prolon-

gar o seu sofrimento. Perguntava-se por que a morte tanto

demorava. Entretanto, se no momento de seu maior de-

sespero Lúcio viesse para “acompanhá-lo” recusava-se ao

convite. Revoltava-se com a insinuação. Não adiantava.

Tudo estava escrito. Ninguém fugia à sua própria solidão.

A sua real condenação legada pela vida. O que poderia

responder à sua angústia e ao seu abandono? Nada. Nada

mais do que um ruído de uma mola dentro de um velho

colchão ou um gemido impessoal e indefinido. Além dis-

so, nada turvava o silêncio da noite tão grande e inútil.

Foi quando um ruído estranho, pavoroso e bárbaro

repercutiu pelos nervos da enfermaria. O som de uma

cama que se debatia louca, parecendo rebentar-se contra a

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parede e pisotear diabolicamente contra os ladrilhos do

chão.

Todos os que podiam sentar-se já se tinham recos-

tado assustados nas camas. O barulho tornava-se maior e

mais desesperado.

Simão Pedro, trêmulo, amarrava o pijama desabo-

toado; erguia-se atarantado à procura do comutador da

luz.

Tinha começado a noite de Simão, o epiléptico.

Com a presença da luz, seus olhos se envidraçavam

rubros. Todo seu corpo se inteiriçava tomando nuances

entre o branco e o amarelo. Suas mãos cresciam os dedos

em garras recurvadas. Tudo nele se paralisava, endurecia,

para quase em seguida rebentar-se em convulsões. A baba

escorria engrossada da boca entreaberta e retorcida. Ron-

cos bestiais atravessavam sua garganta ampliando ainda

mais os trejeitos da máscara cinérea.

Os outros o contemplavam com o medo estampa-

do nos olhos.

Tiago chorava baixinho. João voltara a se enrodi-

lhar como uma grande aranha. Bartolomeu tentava tornar-

se impassível mas a sua mão esquerda espremia a grade da

cabeceira.

Simão Pedro, sem forças para contê-lo, encami-

nhou-se para a cama de Judas Iscariotes.

— Que poderemos fazer?

Judas balançou a cabeça como se quisesse dizer:

nada.

Page 132: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Apenas soergueu o corpo debilitado na cama. Si-

mão Pedro cocou os cabelos brancos.

— Nenhum de nós vai ter forças para segurá-lo.

Defronte àquele mundo paralisado, Simão, o epiléptico, se

debatia em crise. Os sons roucos morreram em sua gar-

ganta, mas agora, sua cabeça rolava de um lado para outro

com uma velocidade incrível, como se fosse um pêndulo

de perdido controle.

As mãos crispavam-se no travesseiro procurando

por instinto refrear o seu movimento de loucura. Entre-

tanto ele não conseguia segurar o rosto transtornado.

Pedro indagou novamente.

— O que poderemos fazer?

Os olhos de Judas tinham adquirido uma calma di-

ferente. Aquela calma de quem também já participava dos

mistérios da morte.

— Ele não morrerá. Vai melhorar.

Simão soltou um ronco maior procurando colocar

no pulmão um ar renovador. A cabeça paralisou-se de i-

mediato. A baba ainda escorria. A boca de dentes maltra-

tados ampliou-se mais. As mãos se descongestionaram,

amolecendo os dedos. Penas amassadas voaram do traves-

seiro estraçalhado. O peito inteiriçado voltou ao ponto

normal. A respiração perdia o aceleramento e acalmava-se

aos poucos.

Uma sensação de alívio pousou em todos na en-

fermaria. A angústia fugia dos olhos de Pedro.

Só Judas observava Simão com a mesma calma.

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Simão entreabriu os olhos docemente. Parecia des-

conhecer o ambiente que o cercava. Parecia que a luz se

fazia em seus olhos pela primeira vez. A curiosidade mo-

rava em suas pupilas. O que fora? Onde estava?

Judas Iscariotes sorriu em seus pensamentos. Láza-

ro ao ressurgir do túmulo possuiria aquele modo de olhar.

Ou talvez Adão, desorientado com o primeiro sono, des-

pertasse assim.

Todavia Simão custava a se reencontrar. As formas

de todas as coisas demoravam a se fixar em sua observa-

ção. Estranho já ser noite! E sendo noite e havendo silên-

cio por que a luz estava acesa? E por que aquele homem

se sentara em sua cama e segurara as suas mãos? Aquele

homem era conhecido seu mas não sabia de onde. Os seus

olhos significavam bondade. Seu sorriso, paz. Ainda sentia

a sensação de suas mãos suaves alisando-lhe os cabelos. E

foi sorrindo que ele se levantou. E foi calmo que ele se

afastou da sua cama e se encaminhou para a porta da Ceia

e desapareceu.

Simão esfregou os olhos. Não seria Pedro? Estivera

talvez sonhando e confundira Pedro com o estranho.

Simão falou com sua voz vindo de longe, do mun-

do das sombras.

— Pedro.!... Pedro!...

Pedro aproximou-se do leito de Simão.

— Estou aqui.

— Foi você?

E como Pedro não soubesse responder formulou

Page 134: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

outra pergunta.

— Olhe, o homem foi embora?

Pedro acompanhou os olhos de Simão se dirigindo

para a porta da Ceia.

— Pedro, ele foi embora. Saiu ali por aquela porta.

A mão trêmula indicava a porta da enfermaria.

Os grandes olhos de todos os doentes dilatavam-se

mais pelo espanto. Simão estava vendo alguma coisa. A

doença teria transtornado a sua razão?

Simão descansou a mão amarelada na perna magra

de Pedro. Perguntou sem esperança alguma.

— Será que ele vai voltar, Pedro?

Uma piedade imensa alastrava-se na alma de Simão

Pedro.

— Ele vai voltar sim. Fique quieto. Você está me

ouvindo, Simão?

O epiléptico esqueceu-se da porta e fixou Simão

Pedro. Conseguia fugir ao fascínio daquela porta.

— Fique quieto, Simão. Você teve um ataque. Vou

limpar um pouco o seu rosto. Se acalme.

Simão fechou os olhos sentindo a mão de Pedro

em sua face. Era diferente. O toque da mão de Pedro

lembrava só um pouco as mãos daquele homem.

— Está melhor?

Abriu os olhos e tentou sorrir em seu desânimo.

— Você não viu, Pedro. Mas era um homem tão

bonito e tão bom. Os olhos dele eram verdes, como nun-

ca vi em ninguém. Duas estrelas muito verdes.

Page 135: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Simão Pedro arrepiou-se todo. Simão também esta-

ria enxergando os olhos verdes que viviam perseguindo

Judas Iscariotes? Disfarçou a vista e descobriu a palidez de

Judas. Descobriu que aquela sua calma anterior desapare-

cera e os seus lábios estavam tão brancos como o rosto e

tremiam quase imperceptivelmente.

Simão agora não ignorava mais o que lhe acontece-

ra. Não seria essa a última crise violenta que o atacaria.

Sentia o corpo nada pesar-lhe e um profundo desinteresse

de tudo que se infiltrava em sua vida.

Afundou mais a cabeça no travesseiro rasgado e re-

laxou os músculos ainda mais. Urgia fazer alguma coisa.

Algo que tentasse desfazer a impressão de terror que ata-

cara os outros doentes. Não ignorava como feios e hor-

rendos se manifestavam os seus momentos de ataque.

Dessa vez fora mais triste. Nunca, nunca acontecera assim

antes. Nunca das outras vezes o homem viera até ele. E

por que viera? O homem era limpo e bonito. Todos ali se

assemelhavam a lixos humanos. Nenhum deles merecia a

atenção de uma visita como aquela...

Ergueu o corpo no leito.

— O que vai fazer, Simão?

— Pouca coisa, Pedro. Vou até a pia lavar o rosto.

Levantou-se cambaleando. À luz do ambiente con-

fundia-se forte. As camas balançavam dentro da enferma-

ria. Seus pés tornavam-se bambos, os músculos pouco

significavam e o chão se forrara de uma grossa camada de

borracha que bamboleava.

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Reagiu, afastando da vista as sombras azuladas que

circundavam tudo que procurava enxergar.

Aos poucos se arrastava mais seguro. Até a ameaça

da vertigem sumira. Agora, a pia se encontrava a menos

de dois metros.

A paz retornara aos olhos dos outros. O medo fu-

gira da face de André. Tadeu recomeçara a sua coceira

mais nervosa porque agora o motivo fora assustador. João

rezava com calma. O medo fugira da face de Tiago Me-

nor. Mateus acendera um cigarro para Bartolomeu e Bar-

tolomeu acendeu o cigarro de Mateus. Até Tiago Maior

retirara o lençol da grande cabeça, diminuíra as suas pupi-

las e conseguira secar os olhos.

Sossegara o coração de Pedro enquanto comentava

com André.

— Foi um ataque muito feio. Foi um ataque...

Não conseguiu terminar a frase. O ruído do espe-

lho se partindo e os cacos caindo no ladrilho com estarda-

lhaço interromperam a sua frase. Ao mesmo tempo, um

baque surdo e pesado se ouviu.

Pedro paralisou-se um momento, atacado de pavor.

Suas mãos atrofiadas cruzaram-se sobre o peito.

Os olhos de André grudaram-se desesperados no

rosto de Pedro.

— Meu Deus!... Ê ele de novo.

Impulsionado pelo desespero tentou correr até a

pia.

Tiago chorou de novo. O cigarro aceso ficou quei-

Page 137: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

mando sozinho entre os dedos de Bartolomeu. Mateus

arrastou-se procurando abrigo em sua cama.

De longe, Pedro gritou implorando.

— Ê preciso alguém para me ajudar.

Seu desespero tornava-se maior porque sabia que o

pedido de socorro repercutiria em vão. Felipe dormia o

seu sono de pedra e nada o despertaria. Justamente quem

o ajudava mais nas horas de aflição era o próprio Simão.

Ninguém aparecia. E quem estaria em condições de

ajudar?

Num movimento súplice todos os olhares atingi-

ram a cama de Judas Iscariotes. Havia a mesma angústia

em cada espera. “Será que ele conseguirá?”

Judas compreendeu e sorriu tristemente. Teria de

lutar. Convencer-se de que a dor de Santo Agostinho era

maior que a sua. Foi suspendendo o corpo nas grades da

cabeceira. Só nesse pequeno movimento o joelho voltou a

estourar de dor. Pior era a força gasta para organizar-se.

Para que seus músculos reagissem e o fizessem caminhar.

O desalento dos gestos retardava todo o movimento do

seu corpo. Não era somente a dor que o segurava preso

ao solo, ou lhe dificultava os passos vacilantes. Era algo só

por ele compreendido. Mesmo assim puxado pelos braços

do desespero, segurando-se em outras camas, ia conse-

guindo atingir o centro da enfermaria.

O momento seguinte afigurava-se-lhe o pior: aquele

desgraçado espaço que interrompia a cama e que dava

passagem para a porta onde o homem se fora...

Page 138: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Os olhares agoniados torciam por ele como se fos-

se um cavalo velho obrigado a correr numa raia repleta de

obstáculos. A torcida não era para ele e sim para a égua da

sua dor. Os gritos não provinham das gargantas e sim dos

olhos desesperados.

A mesa da Morte e da Ceia encontrava-se a menos

de dois metros. A mesa da Ceia que se desacostumara a

freqüentar. Mesa morta. Inútil. Sem braços... E precisava

chegar até ela. Tinha de chegar. O outro estava morrendo

e Pedro pedia socorro. Simão Pedro dirigia todos os seus

passos:

— Agarre na mesa. Agarre com mais força. Puxe o

corpo. Quando o joelho esquentar vai doer menos. Por

amor de Deus, venha. Simão está horrível.

Arremessou o corpo e sentiu o mármore morto e

frio sob os seus dedos. Aquele gelo pareceu criar-lhe al-

gum ânimo. Animado por aquela conquista, apoiou-se

ainda mais na mesa e os braços obedeceram às suas or-

dens com menor sacrifício. Da mesa alcançou a cama mais

próxima. Pouco mais poderia apoiar-se nos ladrilhos do

corredor que levava à pia e às imundas latrinas.

Ainda pôde perceber a cabeça deslocada de Felipe,

tombando fora da cama naquele sono profundo que só as

pedras poderiam ter. Para ele a noite era a morte e o sono

uma continuação de mesas e de pedras mortas e irrealiza-

das.

— Ajude-me. A gente tem que levantá-lo. Ele caiu

contra o espelho e cortou a testa. Rachou também a boca

Page 139: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

ao bater na pia.

Simão encontrava-se lavado em sangue. Uma pe-

quena fonte borbulhava inundando a sua face e derivando

para dentro do pijama. A ferida da boca lançava um san-

gue mais claro porque este se confundia com a baba vis-

cosa.

Agarrando-se à beira da pia, Judas Iscariotes conse-

guiu abaixar-se e puxar um dos braços de Simão sobre o

seu ombro. Com um esforço sobre-humano os dois foram

se levantando. Simão com o corpo hirto revirava os olhos

e respirava pesadamente. Sacudia o seu sangue sobre o

rosto dos dois homens. O cheiro do suor acre do corpo

do epiléptico causava náuseas ajudas.

Saíram do corredor. As paredes juntas não deixa-

vam que os três tombassem.

— Agora, falou Pedro ofegante, preste bem aten-

ção. Segure-se bem com a outra mão nas grades das ca-

mas, senão cairemos todos.

A cada novo esforço Simão sangrava mais. Naquela

caminhada de vermes os três conseguiram chegar até a

cama de Simão.

Deitaram o homem enquanto respiravam arfantes.

Era preciso tomar rápidas providências.

E ainda foi Simão Pedro que encontrou forças para

voltar até a pia. Trouxe um pano embebido n’água e co-

meçou a limpar o ferimento do epiléptico. Havia um talho

feio no supercílio esquerdo e provavelmente um ferimen-

to no interior da boca, além da rachadura do lábio.

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O ataque estava novamente se finalizando. Simão

respirava de leve e suas expressões enrijecidas desapareci-

am. Até a baba gosmenta se estancara e os olhos tendiam

a fechar.

Mateus aconselhou de sua cama.

— E se a gente chamasse a Dona Madalena?

Judas Iscariotes deu de ombros acompanhando a

resposta de Simão Pedro.

— De nada adiantaria. Aquilo e nada é a mesma

coisa.

Todos tentavam se acomodar em suas camas. E

sem coragem de apagar a luz porque sabiam que o sono

não viria mais essa noite, ficaram fazendo a vigília do si-

lêncio.

De quando em vez espiavam para Simão, aguar-

dando que, a qualquer momento, seus traços feridos, seu

rosto inchado fossem sacudidos por renovadas convul-

sões. Depois observavam Simão Pedro, confiantes. Aque-

le homem de braços atrofiados pela lepra nervosa crescia

em sua confiança como um salvador. Sabiam que o mun-

do dos perfeitos fugia deles, se distanciando das suas pe-

quenas misérias como as horas incomodando o tempo.

Ninguém viria essa noite. Só havia Simão Pedro para aju-

dá-los.

O tempo passava e Simão respirava calmo. Já o

cansaço começava a se manifestar grandemente nos olhos

dos outros enfermos. Parecia que a luz da enfermaria se

acometia de iluminação tremeluzente como um pequeno

Page 141: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

sol querendo se apagar.

O silêncio da noite era interrompido pelo ruído dos

bondes rasgando os trilhos da solidão. Até os bondes e-

ram mais raros. Como os bondes se encontravam tão lon-

ge, tão longe deles.

João cochilava com a Bíblia sebenta escorregando

no peito. Bartolomeu se imobilizara como o morto Tomé.

Tiago com a sua cabeça pesada no pescoço fino puxava-a

com o sono para dentro do travesseiro. Seus membros

não podiam mais suster o desfalecimento que ó atacava.

Um galo cantou distante e Simão Pedro velava. Ju-

das Iscariotes entrefechava os olhos e sorriu quase imper-

ceptivelmente.

— “Antes que o galo cante três vezes, Tu Me nega-

rás, Simão Pedro”.

O sorriso morreu em suas faces onde nenhum tre-

mor perpassava sua expressão de madeira talhada. Seu

peito magro e saliente apenas se projetava para frente nu-

ma imobilidade inexpressiva.

Todavia Simão Pedro velava calmo. Paciente e do-

ce, ele não pensava sequer em dormir.

O galo cantou muitas vezes, não cantou Simão Pe-

dro? Cantou sim, e você esqueceu-se de contar porque

não há ninguém para negar.

Um novo movimento brutal e o corpo de Simão

tombou pesadamente no chão.

Judas abriu os olhos. Todos estavam vivos nova-

mente. Acordados pelo medo naquela noite que pertencia

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a Simão, o epiléptico.

Simão Pedro ajoelhara-se junto do homem caído.

— Ele tornou a se machucar no rosto.

O rosto emborcado no ladrilho confirmava isso,

remexendo-se no sangue.

— E agora, Simão Pedro? Que poderemos fazer?

— Vou chamar Dona Madalena. Eles devem ter al-

gum remédio.

* * *

Madalena apareceu enorme, bocejando. Era a ima-

gem do próprio desmazelo. Os peitos grandes rolando

soltos na camisola suja e azeda, dentro de um roupão fur-

ta-cor mal amarrado.

Bocejou de novo e limpou os olhos daquele sono

que a dominava como nunca. Olhou Simão indiferente-

mente. Enfiou os dedos gordos entre os cabelos embara-

çados e engordurados. Ante a expectativa de todos, enca-

minhou-se devagar para o armário.

Postada à sua frente comentou com voz roufenha.

— É. Mas não tenho a chave. Dr. Tiago nunca dei-

xa a chave comigo. Se tivesse a chave apanharia um com-

primido de Luminal e ele melhoraria logo.

Simão Pedro aproximou-se desesperado.

— Mas a senhora precisa fazer algo. Não vê que es-

se homem está morrendo?

Respondeu com indiferença.

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— Não vê que não tenho a chave? Quer que eu vi-

re chave para abrir o armário?

Simão Pedro fitou o armário com ódio. A salvação

estava ali. Dentro daquela estupidez de vidro. A salvação

de Simão e a paz da enfermaria estavam presas por uma

mísera fechadura e uma desgraçada chave inexistente no

momento. Olhou duramente o buraco vazio. Os vidros

embaçados da parede do armário. Tão frágil. Bastaria enfi-

ar a mão e sentir os estilhaços espalhando-se no chão.

Voltou-se enfurecido para Madalena.

— E se a gente quebrasse o vidro?

— Está louco, homem!

Suas grossas sobrancelhas se encurvaram tomadas

de profunda indignação.

— O que diria Dr. Tiago amanhã? Que pensa que

sou aqui?

Deu uma risadinha cínica.

— O que não iriam dizer do meu zelo e responsa-

bilidade? Não vou colocar em jogo o meu velho emprego

por causa de um armário quebrado.

E como se não bastasse, ainda ladainhou.

— Se conservo esse lugar é porque nunca me pega-

ram numa falta. Eu estou velha e não arranjaria outro lu-

gar assim para trabalhar.

Virou as costas gordas para Simão Pedro. Na sua

face encovada notavam-se nuances de repugnância.

Simão estrebuchava. Suas mãos vazias, sem traves-

seiro para agarrar, apertavam crispadas o inexistente.

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Madalena finalmente tomou uma decisão.

— Acho melhor a gente tirar o colchão da cama e

botar no chão. Assim ele não cairá e não se machucará

tanto.

Judas Iscariotes quis levantar-se, mas Simão Pedro

tolheu-lhe o movimento, comprimindo o seu peito com a

mão.

— Fique aí. Não precisa. Você já tem a sua própria

dor para doer. A gente se arranja bem.

Executaram o combinado e recolocaram o corpo

de Simão sobre o colchão.

— Agora ele não cairá mais. Resta só esperar que

Dr. Tiago chegue amanhã.

Suspirou. Emendou o suspiro com um bocejo dila-

tado, espreguiçou os braços rechonchudos e retirou-se da

enfermaria.

Simão Pedro e Judas Iscariotes olharam mudamen-

te para o armário. “Esperar que o médico venha”... E se

ele se atrasasse? E se ele por acaso não viesse nessa ma-

nhã? Rezava Simão Pedro para que tal não acontecesse e

que o Dr. Tiago chegasse religiosamente às nove e quinze.

Enquanto isso, Simão gastava a vida. Consumia as

energias do corpo fraco, arriscando se a morrer a cada no-

vo ataque.

Simão Pedro alisou a cabeça embranquecida, sem

saber o que fazer. Esperar, esperar e esperar. Como a vida

era estúpida e indecente! E amanhã, Simão, com o rosto

crivado de gazes e esparadrapos, todo arroxeado, doendo

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até para sorrir, talvez esteja feliz por ter resistido à noite

de sua grande loucura. Tudo seria amenizado, se eles não

fossem tão fracos e o armário tão poderoso. Nenhum de-

les na realidade teria coragem para espatifar o vidro. A-

queles tubos mesquinhos e diminutos continham uma coi-

sa pequena e redonda de cor branca que, levada à boca,

em um segundo poderia resolver a angústia dos outros

enfermos. Economizaria as forças daquele ser que se de-

batia no chão. Mas eles eram todos igualmente medrosos.

Nenhum pulso seria erguido contra o armário, e a fecha-

dura continuaria perfeita, integra, sobreguardando o seu

milagre da cura.

Outro galo cantou mais longe. A madrugada se a-

nunciava igual às outras e os olhos de Simão Pedro se u-

medeceram.

— É preciso que eu comece a contar o canto dos

gaios para que o tempo passe e eu não adormeça.

O cansaço veio aos poucos, pesando nos olhos dos

outros companheiros de vigília. Os homens pareciam ter-

se acostumado aos ataques de Simão.

A luz continuava acesa e somente Pedro e Judas Is-

cariotes permaneciam despertos tomando conta do epilép-

tico.

Perto das quatro horas. Simão teve nova crise e só

os dois presenciaram a sua agonia.

Depois, de vinte em vinte minutos; a situação pio-

rou muito. O homem voltara a ter convulsões. Mal des-

cansava duma, surgia outra. O problema continuaria sem-

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pre porque o armário de vidro jamais seria aberto.

Agora era mais difícil olhar para o doente. Simão,

com o desespero dos últimos ataques, se despira todo. O

corpo branco e nu se misturava com o sangue. E mais

tarde foi mais cruel ainda. Com o remexer mais forte, as

fezes vinham saindo fedorentas. E a urina encharcava suas

pernas. A cada estremecimento os ombros se enchiam de

mais sangue e as pernas, de escrementos. Aquela imundí-

cie fétida encerando as pernas finas e amareladas.

Judas Iscariotes não resistiu. Esqueceu-se de tudo.

Da dor, da falta de forças. Todo o desespero do mundo o

empurrava para a porta do fundo. Suas trôpegas mãos

grudaram-se na fechadura da porta. Torceu a chave. Pu-

xou a porta contra o peito. Quanta luz. Lá fora a manhã se

realizava linda.

Desceu os degraus da escada sem saber como. Sen-

tou-se nos últimos batentes. Nem se importava com a dor

do joelho. Os olhos inchados, avermelhados, confrangi-

am-se olhando ávida.

O sol do final do verão surgiria em breve. Mutações

rosadas e fios de ouro pincelavam sobre o azul puro do

dia. Mais um dia. Um dia calmo, onde os parciais faziam

ruídos, irritando as folhas das árvores. Os grandes pés de

figueira-brava iluminavam-se brilhantes nas copas. Ne-

nhuma delas era a sua figueira. A figueira dos seus deses-

peros. Todas aquelas indicavam paz. O vento nasceu de

leve e balançou peças esquecidas nos arames da cerca. No

coração das escuras árvores os sabiás cantavam. Soltavam

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pios lindos e ritmados. Os machos atraíam as fêmeas para

a umidade do bosque. Em tudo a calma da vida. Sorriu.

Por que será que a sabiá não canta? Só o macho. Em ver-

dade, só aquela calma. O suave da vida se realizando bela

e sem pressa. Tudo tão indiferente e necessário. Tão gran-

dioso e belo. Só os homens eram pequeninos e insignifi-

cantes. Pequeninos, insignificantes e reais. Além disso, a

frase de Madalena que ficara gravada na memória, anunci-

ando a chegada do médico às nove horas. Isso tornava-se

p mais importante.

Atacava-o de novo o desalento. O que importava a

vida lá de dentro? A morte lá de dentro? A luz que ainda

não fora apagada? O homem que se consumia? Tudo a-

quilo lá... e aqui? Aqui a vida completa, inconsútil e miste-

riosa. A vida que o atraía, que o prendia à inutilidade de

mais um dia. Na presença da luz que era branca, que era

azul, que era dourada, tornavam-se encantados os seus

olhos doloridos, insones e avermelhados. Ninguém o tira-

ria dali durante muito tempo. Queria permanecer. Ficar

horas e horas olhando a luz. Porque aquela luminosidade

não significava nada além de um sentido estético. A luz

não prometia nada, não anunciava a morte, não traduzia

eternidade. A luz em si era mais um dia sem dor. Por que

os dias não sofrem?

— Por que os dias não sofrem? Ora essa, você

também sofre porque quer, não querido?

Foi tomado por um estremecimento tão grande

como se tivesse adquirido o mal de Simão. Quis tapar os

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ouvidos.

— Não adiantará, querido. Você vai me ouvir.

— Hoje não, Lúcio, por favor. Hoje não. Você sa-

be que eu passei uma noite pavorosa.

Ouviu a risada de Lúcio repercutir bem calma.

— Eu sei. Mas você passou uma noite. E o que é

uma noite perto de uma eternidade por que estou passan-

do?

Sentiu os olhos cheios d’água. Olhou em volta para

descobrir onde Lúcio se escondia. Na claridade tornava-se

mais difícil descobri-lo.

— Aqui. Estou aqui. Venha comigo, querido. Está

vendo, não o quero levar para a porta da enfermaria. Que-

ro caminhar com você no interior do bosque, longe dos

ônibus tão elegantes. Venha.

Queria negar-se a obedecer, mas o corpo erguia-se,

apoiando-se na escada.

— Assim. Assim. Assim sim, meu querido. Vou até

fazer uma coisa. Não deixarei que o seu joelho doa por

um momento sequer nessa nossa caminhada. Venha. Dê-

me o braço. Apoie-se em mim. Estou forte, não? Vamos

ouvir na paz do bosque a música de todos os sabiás. Va-

mos, meu querido.

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CAPÍTULO XII

Quantum Mutatus ab Illo

— Viu? Nada de dor, nada de cansaço. Só nós dois e essa

sombra maravilhosa das figueiras-bravas. Não se impres-

sione, que não irei oferecer-lhe uma corda, meu querido

Judas Iscariotes. Esse é o seu novo nome, não é verdade?

— Você sabe de tudo.

Judas Iscariotes encostou-se numa raiz adunca e

suspendeu a cabeça para o céu deixando escapar um sus-

piro.

— Por que isso agora? Suspirando por um mundo

perdido?

— Não. Talvez um momento perdido de êxtase.

Tão azul é o céu do fim de verão! Antigamente na selva eu

adorava os dias límpidos que nasciam com o morrer de

abril e o aparecer de maio. Estranho eu me lembrar de

uma coisa.

— O quê?

— Talvez não tenha importância. Uma frase que eu

achava tão expressiva antigamente. Estava inscrita em cer-

tos relógios: “Cada hora fere a nossa vida até que a derra-

deira a roube”.

Os olhos verdes de Lúcio adquiriram uma expres-

são de tristeza inusitada.

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— Nem sempre as horas roubam a nossa vida.

Muitas vezes a derradeira são os outros que decidem por

nós...

— Você prometeu, Lúcio.

— Está bem. Vamos sorrir. Deu uma risada suave.

— Vamos fazer um brinde. Como eram as palavras

daquele camarada que estudava com a gente? Aquele que

tinha mania de falar difícil. Quando por maldade lhe per-

guntavam se era um padre sem batina, ele tornava-se dig-

no e hierático. “Padre que deixou a batina, não. Simples-

mente um “défroqué”...

Judas sorriu tentando lembrar-se da sua costumeira

frase, ao lazer um brinde qualquer.

— Era algo relacionado com ânfora, não?

— Não. Ânfora, para ele, seria o banal, o medíocre.

Era urcéola. “Ergamos a urcéola aos paramos e bebamos

a sutade da paz.”

— Você não esqueceu nada, Lúcio?

— Não posso...

Os olhos verdes de Lúcio analisaram o rosto maci-

lento do outro. Judas sentia o peso dessa observação. Ele

estava comparando o seu momento com o passado. Fe-

chou mais os olhos e arriscou uma pergunta.

— Lúcio, eu já morri?

— Bobagem. Não é assim que se morre. Ninguém

morre sem a passagem e essa é terrivelmente marcante. Ê

o pior momento de cada um.

— Eu pensava antigamente que a morte fosse tão

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inapercebida como o nascimento. Ninguém se lembra

como nasceu, mas assistindo a um parto, vê-se que a dor

do ar penetrando no pulmão de um recém-nascido deve

ser horrível. A gente também passou pela mesma coisa e

não se recorda. Eu pensava que a passagem deveria ser

assim.

— Você saberá na sua derradeira hora. Na hora que

escolheu. Vê? Você é quem prolonga o assunto mórbido

dessa vez. Por que está se preocupando agora? Olhe a be-

leza do dia e ouça o canto dos sabiás se aquecendo do or-

valho da noite. Não é mais belo?

— Não. Esses meus últimos dias têm sido horrí-

veis. Diz-se que, quando a morte se aproxima, a gente de

tudo se recorda. Vivo, parece-me, do passado, de todas as

lembranças. Por que será? Talvez só você possa me escla-

recer.

— É simples. Em cada soro que lhe é aplicado, e

isso não é novidade paia você, estão aumentando a quan-

tidade de anestésico e soníferos. A cada dia as doses serão

acrescidas de um remédio mais forte. Daqui pra frente,

você viverá mais dos sonhos do que da dor. Nesse perío-

do onírico os tóxicos criarão um mundo de fantasia em

sua mente. Ora coisas maravilhosas, ora hediondamente

angustiantes. O subconsciente nosso é muito complexo.

— Por que não posso pensar em coisas simples-

mente lindas, marcadas de ternura e paz?

— Hoje você pode. Estou lhe dando uma trégua.

Afinal você foi tão formidável para mim, lembra-se?

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— Não consigo.

— Abra os olhos.

Judas Iscariotes obedeceu.

— O que vê?

— O dia.

— Então, espere.

Lúcio estalou os dedos.

— Faça-se a noite. E agora?

— Entrevejo a noite formigando de estrelas.

— Lembra-se de algum fato? Pense.

— Não consigo.

— Então, espere. Tornou a estalar os dedos.

— Faça-se o dia novamente. E agora?

— Não sei. Terei que lembrar-me longe ou perto?

— Não tão longe, posto que você tanto não viveu.

Quer que eu o ajude?

— Por favor, Lúcio.

Os olhos de Lúcio percorreram distâncias.

— Como você era moço! Moço e tão puro. Quase

um anjo.

Judas sorriu.

— Um anjo tão pobre tentando estudar com tanta

dificuldade. E você, tão belo, tão fino, parecia mais um

príncipe. Sobretudo um príncipe rico. Enquanto os outros

usavam o bonde do Derby para ir à Faculdade, você era o

único que possuía uma baratinha atrevida. Eu me lembro

que a passagem para os estudantes de medicina custava

cem réis.

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— Quanto a isso não posso garantir, porque não

freqüentava essas coisas.

Judas se concentrou com uma fisgada cruel no co-

ração. Precisava criar coragem. Coragem de perguntar.

Nenhuma hora se afigurava tão propícia, pois Lúcio não

estava cobrando nada, nem o acusando.

— Lúcio!

— Já sei o que vai me perguntar. Não me pergunte.

Nunca responderia.

— Mas eu tenho que perguntar. É tão importante

como a minha condenação. Eu fiz com que você se ma-

tasse, Lúcio. Portanto, eu o matei.

Os olhos verdes de Lúcio percorriam as raízes pro-

tuberantes da figueira, numa fuga dolorida.

— Você acha que eu o matei por maldade? Os o-

lhos de Lúcio se desanuviaram. Sorriu até.

— Não creio. Por um momento, quando enviei o

dinheiro pelo correio, eu estava transtornado, desespera-

do. Não, você não quis que eu morresse, apenas por ego-

ísmo ou crueldade. Você me matou...

Sua voz adquiria uma trêmula emoção. Não teria

ganas de calar-se. Judas Iscariotes entreabriu os lábios ar-

fantes.

— Continue, Lúcio.

— Você me matou mais que por piedade. Você me

matou por amor.

— Amor, Lúcio?

Passou a mão na testa para enxugar o suor frio e

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acalmar a palidez que ainda se tornava maior nos seus tra-

ços macerados.

— Foi assim. Nós não sabíamos. Mas o amor é um

sentimento que transcende a morte.

— Mas como? Éramos tão normais. Excessivamen-

te normais. Chegávamos a trocar as fêmeas prazenteira-

mente. Cada um se satisfazia orgulhosamente com o pra-

zer da primeira conquista e da segunda entrega. Lúcio riu.

— Talvez não seja a essa espécie de amor que me

refiro. Um amor lindo e sobre-humano. Nada de sexo.

Apenas uma atração que as pessoas sentem num senti-

mento mais puro. Que há de escabroso no amor dos anjos

em relação a Deus? Ou no amor de João Evangelista por

Cristo. Ou em Cristo chamar João de meu amado? Foi um

pensamento sublime que atacou você para que a doença

não me apodrecesse em vida.

— E porque você me cobra a dívida, aquela dívida

constantemente?

— Porque talvez eu não queira, vendo você se de-

compor, que espere pelos derradeiros momentos da “sua

hora”. Eu, no começo, agia com certo ódio, mas com o

tempo fui me modificando e você tem notado isso. Até no

modo de tratá-lo. Sou forçado a insistir até... Bem não fa-

lemos mais nisso. Voltemos ao início da conversa. A pa-

rada do Bonde de um tostão. O bonde circular do Derby.

Você se lembra do nosso trote? Foi gozado, não? Mas eu

sofri pra burro. O meu desespero era que desmaiasse, pois

estava quase vomitando de pavor. Como você foi bom.

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Minha avó inglesa, se visse aquilo, murmuraria emociona-

da: “How could you be so noble?”

A agonia desgastara-se do peito de Judas Iscariotes,

e o inglês sofisticado de Lúcio fazia-o sorrir apesar de ain-

da sentir os olhos cheios d’água da emoção do assunto

anterior.

Não era agora difícil recordar-se do trote. Parecia

que a fama da riqueza de Lúcio caminhava rápida entre os

estudantes.

Tinham colocado todos os calouros em fila. E cada

um deles teria de participar de uma cena com um cadáver.

Havia dois sobre uma mesa de mármore. Lúcio, a sua

frente, parecia contar terrificado o número de calouros

que desaparecia. Tirara um lenço perfumado do bolso e

limpava continuamente a face. Analisava penalizado todos

os seus gestos. Podia até contar os tremores que sacudiam

os seus membros.

— Tá difícil, companheiro?

Lúcio virou-se com aqueles olhos mais verdes ainda

porque estava a ponto de chorar.

— Não vou agüentar.

— É só um minutinho. Faça força. Feche os olhos

e trinque os dentes. Quando tiver de executar o que man-

darem, não respire. Disfarce, senão eles marcam você.

— Tenho vontade de sair correndo.

— Não faça isso. Talvez...

A idéia perpassou-lhe como um raio.

— Tem dinheiro aí?

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— Tenho.

— Quanto daria para passar por cima dessa prova?

— Sei lá. O que quiserem.

— Não fale assim. Se ouvem, você fica quebrado

pro resto da vida. Digamos um conto de réis?

— Dou voando.

Fez menção de enfiar a mão no bolso.

— Espere. Deixe chegar a sua vez.

Lúcio olhou cheio de novas esperanças e murmu-

rou baixinho.

— Esse negócio da gente ficar descalço em ladrilho

tão frio, nunca me aconteceu antes.

— A gente vê isso.

Ficaram observando os pés nus mutuamente.

— Que destino vão dar aos nossos sapatos, você

sabe?

— Estão colocados todos num saco, e quando sa-

irmos daqui, vamos todos para a rua Nova. Alguém sobe

numa janela do primeiro andar, ou do segundo, desamarra

o saco e joga todos os sapatos. É aquela confusão danada.

A gente vai virar criança catando dinheiro na rua. Melhor

dizendo, catando sapato. Até que isso é gozado.

A palidez se dissipara um pouco do seu belo rosto.

Porém, quando o candidato a sua frente foi chamado, vol-

tou a tremer assustado. As vozes dos veteranos cresciam

dentro daquele ambiente fechado e fúnebre. Os “carras-

cos” se aproximaram de Lúcio.

Judas Iscariotes segurou-o pelo braço e tomou a

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sua frente.

— Ei companheiros, tive uma idéia. Veio uma vaia

de gozação.

— Olha, minha gente, o bonitinho teve uma idéia.

— Garanto que vão gostar. Fizeram um coro de

vozes sacanas.

— Ah! Sim. Nós vamos gostar muito. Qualé?

— Eu vi que de manhã a coleta do dinheiro entre

os calouros foi pequena.

— Sim. Foi pequena. Você tem uma idéia de como

melhorar.

As vozes estavam se tornando insuportáveis e o

cerco fechava-se em volta dos dois.

— Tenho sim. Vocês deixam ele fazer uma coisa

“de leve”, sabe como é? E eu consigo duas pelegas de

quinhentos para a chopada de vocês essa noite.

— E se não conseguir, a gente capa você. Onde já

se viu estudante ter tanto dinheiro.

— Eu tenho.

— Mostre.

— Primeiro vocês mandem ele fazer a coisa “de le-

ve”, como combinamos.

Estava frito. Puxara toda a atenção para si.

Calaram-se um instante e confabularam. Depois

puxaram Lúcio para que se adiantasse até perto da mesa

de mármore. Apontaram-lhe o corpo de uma mulher nua.

— Está bem. Se você arranja tanto capim, terá que

passar somente os dedos no cabelo dessa Bela Adormeci-

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da.

Lúcio obedeceu como um autômato, talvez fechan-

do os olhos e deixando de respirar, como lhe fora aconse-

lhado.

Um estudante segurou-o pelo braço, aguardando as

ordens do grupo.

— Ei, Vicente, segure o caboclo perto da escada. Se

esse papagaio falador não tiver o dinheiro, traga-o de vol-

ta.

Foi a vez de arrastarem Judas para o meio da sala.

Formaram um círculo à sua volta.

— E o dinheiro? Cadê?

Enfiou a mão no bolso da calça e puxou as duas

notas amassadas. Elas foram passadas de mão em mão. E

a surpresa era tanta que o silêncio apareceu, contrastando

com a algazarra anterior.

— Tem mesmo, minha gente.

Bateram palmas de alegria e chegaram até a vivar. A

noitada seria de fartura. Todavia, passado o espanto, enca-

raram avidamente o rapaz.

— Errol Flynn, você é um sujeito formidável. Nós

estamos precisando de uma pessoa assim. Venha cá, meu

pequeno gênio.

Foi carregado em triunfo até junto da mesa.

— Bem, nós fomos camaradas e atendemos o seu

pedido. Agora vamos escolher alguma coisa especial para

você. Você merece.

Confabularam de novo. Aproveitou-se daquela

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pausa para olhar o lado da escada. Lúcio desaparecera.

Sorriu. Seu plano dava certo. Faria o que escolhessem para

executar, dizendo palavrões entre dentes. O palavrão

sempre lhe dera coragem nos piores momentos de sua

vida.

— Pronto. Você sabe dançar?

— Mais ou menos.

— Pois chegue-se perto daquela dama. Ela foi anti-

gamente uma dama de cabaré e adora dançar um tango.

Ficou indeciso a olhar a mulher nua de peitos pe-

quenos e escuros. As ancas largas. As coxas bem unidas e

endurecidas pela morte. Sua boca não se fechara no mo-

mento final e ela conservava um rictus de desânimo, e pe-

lo canto dos lábios podia-se ver um dente mal incrustado,

de ouro.

— Vamos.

Começaram a marcar compasso com as mãos e a

cantar. Havia até os que assobiavam. Naquele momento

jurava que para o resto da vida nunca mais ouviria “Ia

Cumparsita.

— Vamos, Errol Flvnn, não podemos perder muito

tempo com um só candidato.

Começou a xingar-se por dentro. “Não era isso que

você queria, seu merda? Puta que pariu, agora não tenho

escolha”. Tinha que apelar para o cinismo.

— Alguém precisa me ajudar.

— Claro. Claro. Estamos aqui para isso.

Várias mãos trouxeram o cadáver da mulher que

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em pé parecia bem pequena.

— Abrace-a. Enlaçou a sua cintura.

— Vamos, minha Pavlova. Desculpe o mau jeito,

dona. Era quase impossível arrastar numa dança macabra

um corpo hirto, nu e gelado. Tinha que fazer. Já começara

e eles próprios não teriam paciência de demorar-se muito.

Cantavam e batiam palmas e o maldito tango não parava.

— Assim não, galã. Encoste o rosto na dama. Ela

quer carinho.

E as mãos que suavam escorregavam na pele álgida.

E o rosto frio colando-se ao seu. Tentava não respirar pa-

ra sentir menos o hálito podre e desagradável. Encorajava-

se, xingando-se de tudo, esperando que aquele tango che-

gasse ao fim.

— Pronto. Pronto.

Aplaudiram com uma alegria de bárbaros e ajuda-

ram-no a colocar o corpo da mulher morta sobre a pedra

fria. Puxou o lenço para desafogar seu desatino contido.

— Posso ir?

— NÃO. Você ajudou um amigo, agora precisa e-

xecutar outra tarefinha tantinho pior, no lugar dele.

Toda sua coragem ruiu por terra. Haveria algo pior

do que o tango? Se eles anunciavam isso, havia sim. Ficou

resignado, à espera da nova tarefa.

— Está vendo aquele senhor deitado do outro la-

do?

Por Deus! Não iriam querer que dançasse com um

homem morto...

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— Não fique desanimado, Errol Flvnn. Você só vai

dar um beijinho nele. Um beijinho de ternura amiga. Va-

mos.

Empurraram-no aos trambolhões.

Ficou um segundo espiando o homem morto.

“Criolão filho da puta! Veja a sinuca em que você está me

colocando?” Dessa vez nem os palavrões pareciam enco-

rajá-lo. O homem deveria ter morrido afogado. Talvez

fosse um daqueles pobres jangadeiros do Pina. Na certa,

bebera, caíra da jangada e estava ali com os olhos arrega-

lados e o bucho intumescido. Precisava cuidar-se e não

apertar o seu ventre. Não ignorava que dali sairiam ruídos

estranhos e os estudantes morreriam de prazer. Olhou o

rosto com a barba por fazer de muitos dias. Infeliz! ter de

morrer e com uma cara tão estúpida.

— Vamos. Um beijinho.

Cercavam-no para que não pudesse furtar-se das

ordens recebidas.

— Dessa vez, como você foi bonzinho, só um bei-

jinho de leve. Veja bem. “De leve”, como você aconselha

sempre.

Abaixou-se num átimo e beijou a face barbuda do

cadáver.

— Assim também não. É abusar da nossa genero-

sidade. Um beijinho na boquinha do moço. Vamos. Na

boquinha.

As mãos aprisionaram-lhe os ombros e braços.

Forçavam o seu pescoço para frente, e, quase a desmaiar,

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sentiu seus lábios se colando à boca rude do pescador.

Estava livre agora e o cerco se concentrava nos ou-

tros calouros. Pôs-se a caminhar, subindo a escada como

se saísse de um túnel de tortura. Os pés gelavam-se mais

contra a escada nua. Tinha a impressão que a escada mor-

rera também. Passou a mão na testa para afastar os pen-

samentos mórbidos. O que passara perfazia uma quota

muito grande para uma só pessoa. Agora, precisaria cami-

nhar descalço até a Rua Nova. Ninguém se incomodaria,

vendo-o descalço no bonde. Conheciam os usuários do

Derby o costume dos estudantes em trote. Pensou no ra-

paz e sorriu. Cabra cagão! Medroso de dar dó. Apesar dis-

so, deveria ser boa pessoa e de muito fina educação.

Saiu da Escola de cabeça baixa. Tudo passara. No

próximo ano seria a sua vez de ministrar os mesmos atro-

pelos a outros estudantes novos.

— Ei!

Ergueu a cabeça. O rapaz o esperava. Tinha recu-

perado a calma e a cor do rosto. O calor da rua fazia-lhe

bem. Esperou que se aproximasse. Ele olhava o relógio no

pulso.

— Ficaram todo esse tempo com você?

— Se ficaram.

— Puxa! Mais de quinze minutos. Que horror!

— Quinze minutos! Pra mim foram dois purgató-

rios juntos.

— Posso.saber o que lhe aconteceu?

Quis olhá-lo com certo menosprezo mas mudou de

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idéia porque havia sinceridade em todos os seus traços.

— Fizeram-me dançar um tango com a mulher, e a

tarefa, que era sua, tive de executá-la.

— O que foi?

— Beijar aquele criolão bem na boca, sentindo a

língua grossa, fedorenta e fria.

— Porra!

— Porra mesmo. Tenho que começar tomando

uma puta duma cachaça pura e depois dois chopps gela-

dos para desinfetar a alma.

— Vamos. Eu convido. Você me salvou a vida.

Vamos, lá do outro lado da rua há um bar gostoso.

Caminharam em silêncio. Só depois de beberem o

prometido é que se olharam abertamente. Estavam de no-

vo vendendo mocidade e esperanças. Gargalharam ao

mesmo tempo. No fim começaram a achar que tudo fora

mesmo na base da gozação.

— Agora só restaria esperar o bonde e ir pro centro

da cidade. Às quatro horas irão devolver os nossos sapa-

tos. Você vem?

— Não. Você virá comigo. Tenho um carro. Asso-

biou admirado.

— Assim melhora?

— E como!

Saíram do bar e foram buscar o carro estacionado

numa rua tranqüila.

— Só pra quem pode!

— Bem que eu queria um V-8 do último tipo, mas

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a “velha” não deixou.

— E fez bem.

Sabiam do que falavam e não se distenderam no as-

sunto. Acomodados no interior do carro conversavam

moleza para o tempo passar.

— Você não disse o seu nome. Eu sou Lúcio.

— Raul. Apertaram-se as mãos.

— Seremos bons amigos, não Raul?

— Acredito.

— Você não gosta de conversar ou ainda está sob a

influência do trote?

— Um pouco de cada.

— Então vamos falar, porque ajuda a distrair. On-

de você mora?

Ficou com vergonha de dizer. Tornou-se meio co-

rado. Não respondeu.

— Eu moro no Hotel Central. Estou lá num apar-

tamento muito bom. Desde que cheguei para o vestibular,

instalei-me ali. Até que é bom. Quando começarem as au-

las, acho que vou até procurar uma casa simpática ali pela

Rua do Hospício.

Parou ante a hostilidade dos olhos de Raul.

— O que foi?

— Vou descer.

— Por quê? Disse alguma coisa que ofendesse?

— Só coisas que ofendessem. Você é podre, Lúcio.

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Ao perceber a palidez e o desânimo do outro, re-

trocedeu da sua agressão.

— Estou dizendo besteiras, desculpe. Ê que nós

somos muito diferentes. Eu moro numa pensão vagabun-

da na Rua da Praia. Perto do Mercado São José. Sabe o

que há por lá? Não. Baratas, mau cheiro e putas baratas. A

gente almoça, e de noite toma café com leite com banana-

são-tomé ou um pedaço de macaxeira. O dinheiro que

meu pai me manda não dá pra mais. Ainda tenho de traba-

lhar como censor no Colégio Carneiro Leão todas as ma-

nhãs. Essa é a merda da minha vida.

Lúcio puxou um cigarro. Ofereceu o maço e Raul

não quis servir-se.

— Não fumo. Obrigado.

Lúcio soltou uma tragada comprida e acompanhou

o fumo brigando contra o vento manso.

— Que posso fazer? A gente não pode mudar a fa-

ce do mundo.

Raul sorriu. Deu uma palmada nas costas do novo

amigo-

— Tem razão. Estou sendo cretino como uma vaca

velha. Que horas são?

— Três e meia. Quer ir?

—- Vamos com calma. Há tempo. Recife é uma ci-

dade calma. Os bondes têm sempre lugar e as ruas não

estão muito cheias de automóveis.

* * *

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Quando anunciaram a distribuição dos sapatos, foi

aquela ansiedade. Todos fixavam o saco levantado, prestes

a desabar. A estranha chuva se precipitou ruidosa nas pe-

dras da rua. Todo mundo parava para ver a catação. Até

os bondes deixavam de andar.

No fim, Lúcio que não perdera tempo, surgiu com

um par na mão, orgulhoso da sua conquista.

— E você?

— Fiquei na mão. Apanharam os meus.

— Não tem importância.

— Pode não ter pra você. Pra mim faz uma dife-

rença enorme.

— Fique com esses. Também não são meus. São

pequenos para os meus pés. Quer?

Examinou o par de sapatos com cobiça.

— Puta merda! Que maravilha.

— Fique pra você.

— Vou experimentar. Soltou um assobio de prazer.

— Uma luva.

Judas Iscariotes entreabriu os olhos e o sol passeava

em seu rosto, penetrando pelas folhas da figueira-brava.

Estivera longe, sonhando.

A voz de Lúcio confirmava a realidade.

— Foi lindo, não foi?

— Foi. Agora me diga, Lúcio, os sapatos de quem

eram?

— Meus mesmo. Se lho dissesse, você ficaria cheio

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de frescura e não os aceitaria.

Judas riu.

— Aceitaria sim. Porque os que perdi eram os

meus únicos-sapatos.

— E bom sonhar. É muito bom sonhar. Quer vol-

tar para a enfermaria ou continuar?

— Esperemos um pouco. Minha noite foi muito

pesada e aqui me sinto tão bem. E como se antigamente

estivéssemos juntos.

— Então vamos lembrar outra coisa que nos tenha

encantado. Vou estalar os meus dedos.

— Por que, Lúcio, ouço o ruído dos seus dedos e

não distingo as suas mãos?

— Você assim o quis. Lembra-se? Se quiser, posso

mostrá-las.

Judas Iscariotes temeu por aquele momento e recu-

ou.

— Não, agora não. Por favor.

— Está certo. Mas uma vez você terá que vê-las.

Deixemos isso pra mais tarde.

Estalou os dedos e sua voz ordenou.

—Faça-se a noite!

E a noite se fez.

Do carro Lúcio buzinava com força e só parou

quando Raul meteu a cabeça na janela. Tinha os cabelos

úmidos e enrolava-se numa toalha.

— Desce ou subo?

— Acabei o banho agora. Melhor você subir.

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Foi obra de um momento. Já estava sentado na ca-

ma de Raul, espiando e tagarelando enquanto ele se pente-

ava e se vestia.

— Nós vamos jantar juntos. No Leite.

— Quem disse?

— Vai negar à sua capacidade estomacal um deli-

cioso jantar no Leite?

— Espere. Vamos devagar. Eu estou cansado.

Quero dormir cedo.

— Ninguém proíbe isso. Você não vai fazer ceri-

mônia comigo. Sai à hora que quer. Se insisto é porque

precisamos comemorar.

Raul deu uma risada.

— Você e suas comemorações. Vai dizer que hoje é

o aniversário de uma cunhada que é prima em terceiro

grau do marido de sua tia?

— Não. Hoje é coisa séria. Se bem que esse moti-

vo, que você expôs, mereça o máximo respeito do maior

cristão.

— Então diga.

— Quero comemorar porque ganhei uma aposta de

minha mãe. Ela achava que nunca eu daria para médico.

Sabia por antecipação que sempre me aconteceria “aqui-

lo”, quando eu me deparasse com um cadáver.

— E daí?

— Daí. Acabou-se. Posso assistir a qualquer aula de

anatomia com a maior naturalidade do mundo. Como

qualquer outro estudante. Cadáver pra mim agora é flor.

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Raul riu.

— E sobre o parto? Também já mudou de idéia?

Lúcio franziu o nariz meio descontrolado.

— Bem. Isso é mais duro. Porque o troço é nojen-

to mesmo. Eu acho. Uma placenta balofa e remexente

ainda me repugna a alma. Mas vou me dominar também.

Mesmo porque não preciso viver presenciando isso. Mi-

nha intenção é optar pela Patologia. Por falar nisso, e vo-

cê?

— Psiquiatria no duro. Sem tirar nem pôr.

— Esplêndido. Psiquiatria é um colosso. Quer di-

zer então que nós vamos jantar no Leite.

Era impossível negar qualquer coisa a Lúcio.

Quando intentava algo, ninguém o demovia jamais.

— Então vá lá.

— Eu sabia. Porque faz mais de uma semana que

você não aceita um convite meu.

— Precisa gravata, não?

— Lógico. Lá é um lugar muito chique. Raul apa-

nhou uma gravata atrás da porta.

— Deixe eu ver isso.

Rodou aquilo que chamava de gravata nos dedos.

— Essa forca de Judas é que você chama de grava-

ta? Será que você tem preguiça até de desatar o nó?

— Cadê tempo. Já deixo o laço armado e é só enfi-

ar no pescoço e ficar enforcado.

— Não. Com essa nunca. Você é meu mendigo

predileto mas não precisa exagerar. Olhe o que eu trouxe.

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Enfiou a mão no bolso do paletó e retirou uma

gravata. Falou com toda doçura possível.

— Não se zangue, viu? Eu trouxe essa porque

combina melhor com você do que comigo.

O Leite era o máximo do luxo. Todos os turistas

que aportavam em Recife faziam questão de jantar nele.

Ali se reuniam os políticos do interior para discutir elegan-

temente os seus problemas. Ali a “Haute-Gome” piteirava

as suas elegantes noitadas. Os garçãos precisavam de clas-

se e disciplina. Geralmente eram importados do sul. Até

às nove e meia só existiria mesa com reservas antecipadas

e com boas propinas. Lúcio sabia disso e já providenciara

tudo. O “maitre” o conhecia e os garçãos se inclinavam à

sua passagem por entre as mesas.

Raul sentia-se eufórico, talvez porque tivesse bebi-

do ura tal vinho especial. Especial como tudo que Lúcio

inventava. Ficou indeciso quando Lúcio olhou o relógio e

indicou-lhe as horas. A noite tomava um aspecto delicio-

so, tornando difícil raciocinar com lógica. Censor? Colégio

Carneiro Leão? Levantar cedo? Ele mesmo? Podia tradu-

zir o sorriso de Lúcio analisando todas as suas indecisões.

Os olhos repetiam a sua filosofia de vida. Aproveitar o

tempo enquanto há tempo. A vida é uma só. E o que se

leva da vida é a vida que se leva. Por que sacrificar-se pe-

los outros, se os outros não evitarão que você morra sozi-

nho, seu bobo. De mais a mais, se você perder um dia, um

diazinho, ninguém vai se importar, vai? Invente qualquer

desculpa. Remorso? Bobagem. Remorso se cura com café,

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aspirina e coca-cola, como qualquer ressaca...

— Depois não vá me acusar que eu não o deixei

ir... Passou a mão na boca sem nada responder.

— A verdade é que você está gostando, não.

— Sei lá. Sinto uma alegria tão grande no coração

que tenho vontade de gritar como uma arara flechada.

— Pois grite.

— Você está louco.

— Talvez. Apenas lhe pergunto: por que terminar

uma alegria assim tão depressa? Por que não prolongá-la?

As horas. Ora, as horas. Ora, bolas para as horas. A noite

mal começou. A noite ainda é “baby”.

— Ganhou, Lúcio. Quais são os seus planos?

— Um cabaré.

Saltou na cadeira como se a espinha fosse uma mo-

la se partindo.

— Cabaré? Mas eu nunca fui a um cabaré.

— Pois uma vez será sempre a primeira. Quem o

proíbe de ir?

— Duas coisas: dinheiro e idade.

— Duas coisas extraordinariamente bestas. A pri-

meira, nem precisa me agradecer. É minha santa mãezinha

que está pagando. Esqueceu do que falamos? A segunda

faz rir a qualquer vaquinha de presépio. Idade? Porra, meu

herói! Com esse físico dobrado tem lá investigador que vá

interceptar a sua entrada?

Aproximou a boca do rosto de Raul. Falava entre

dentes.

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— Ouça, seu trouxa, eu conheço a meganhada to-

da. Eles vão me fazer mais festas do que esses pobres gar-

çãos. Certo?

A idéia começou a empolgar a sua curiosidade.

— Que cabaré?

— O Atlântico.

Assobiou entusiasmado. Ir a um cabaré, depois po-

der contar um puta farol aos colegas. Ir a um cabaré era

quase uma afirmação de masculinidade. E logo o Atlânti-

co. Quantas vezes, tendo de ir ao bairro de Santo Antô-

nio, olhava o prédio na esquina. Mudo e dormindo duran-

te o dia. Escondendo o mistério das suas noites barulhen-

tas. As escadarias que subiam e desciam o pecado. Tinha

que ir. Talvez fosse preferível da primeira vez procurarem

um cabaré mais modesto e não o mais famoso e impor-

tante da cidade.

— Tem que ser o Atlântico? Por que não um mais

modesto? Afinal tudo é cabaré. Dá no mesmo.

— Aí é que você se engana. O filhinho da minha

santa mãe não entra em qualquer pulgueiro barato. Nem

por castigo. Pra se fazer isso, deve-se fazer bem feito. Oh!

Mother, mother, como você sofreria se me visse aceitando

os conselhos desse bocó.

— Tá bem. Não precisa me fazer do tamanho des-

sa xícara de café. Pois vamos ao Atlântico, e viva sua Mo-

therzinha!

— Só é preciso uma coisa.

Lúcio já chamara o garçom para liquidar a conta.

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Todos os seus gestos eram finos. A vida inteirinha fora

fabricada para que reinasse a sua elegância nas menores

coisas.

— Está com a identidade?

— Claro. Há perigo?

— Nenhum. Apenas é bom ter-se sempre a carteira

de identidade. Num cabaré, como num hospital, ou numa

igreja. Só isso.

Nem sentiu o vento remexer-lhe os cabelos quando

o carro de capota arriada atravessou a ponte, procurando

o bairro de Santo Antônio. Apenas notou que o café La-

fayette ficara para trás e o cabaré Atlântico também.

— Você passou?

— Ainda é um pouco cedo. Vou buscar uns paco-

tes de cigarros americanos com o barman do Grande Ho-

tel. Você se importa?

Balançou a cabeça, compreendendo.

— Depois vou abastecer o carro. Assim mesmo,

ainda poderemos girar um pouco, gastando o tempo. Va-

mos dar uma de mendigo, circulando pela praia do Pina.

— Lúcio, você não existe.

— Como não? Penso, logo existo. Não contrarie-

mos agora o pai do Cartesianismo.

Deu uma gargalhada de encher a noite e abafar o

ruído dos pneus rodando macios no calçamento.

— Estou me lembrando de algo. Como é mesmo o

nome daquele plebeu? Aquele seminarista que se diz “dé-

froqué”?

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— Não tenho certeza, mas deve ser Ignácio. Igná-

cio, com G mesmo.

— Pois noutro dia ele falou uma frase notável. Eu

tomei nota para decorar. Está de acordo com a minha teo-

ria epicurista de vida. “Video meliora proboque, deteriora

sequor.”

— Lindo.

Raul bateu palmas.

— Lindo, mas que significa essa minhocada toda?

— Que o danado tem cultura, lá isso tem. Ê o pró-

prio homem vacilante imaginado por Ovídio em suas Me-

tamorfoses.

— Vai traduzir ou não?

— Vou, é claro. Mas como a gente tem que passar

o tempo, prolonguei o assunto. Você é uma besta, não

entende de nada na vida.

Deu um pigarro para impressionar e explicou sole-

nemente a frase.

— “Vejo as coisas melhores e as aprovo, mas sigo

as piores.”

Raul colou a boca na mão e soltou um purrute es-

tridente. Não haveria melhor coisa a fazer numa ocasião

daquelas.

— Depois da aula de saber que lhe dei, acho que

não custaria acender um cigarro pra mim, não?

Raul fingiu certa preocupação.

— Você não poderia parar o carro por um minuto?

Lúcio diminuiu a marcha e encostou na calçada. O mar do

Page 175: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Pina dormia na escuridão da noite.

— Pipi?

— Nem um pouco. Fixou o amigo intrigado.

— Então, por quê?

— Para você acender calmamente o cigarro. Não

quer gastar o tempo?

Lúcio acendeu o isqueiro e levou-o ao cigarro nos

lábios. Jogou fumaça pra cima e deu uma bruta risada. Li-

gou de novo a chave do carro e recomeçou o passeio.

— Sabe que você é um belo filho da puta também,

seu ingrato.

Andavam devagar. No centro da rua uns pescado-

res vinham carregando os apetrechos da pesca. Nem adi-

antava traduzir os pensamentos de Raul. Vinha aquela

lenga-lenga: “Os infelizes chegando do trabalho a essa

hora e a gente indo pra farra”...

— Vamos andar depressa e passar bem junto da-

quela gente?

— Pra quê?

— Vamos xingar os plebeus. É danado de gostoso.

— Deixe pra lá.

— Você nunca fez isso, fez?

— Fiz sim, quando toda a turma viaja de trem nas

férias. O trem vai saindo e a gente bole com meio mundo.

Muitas vezes atiravam até pedras no trem.

— Então vamos.

Foi parando perto dos pescadores, botou a cabeça

para fora e lascou o berro.

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— Pobres!

Pisou no acelerador, gargalhando feliz. O barulho

do carro só deixava aparecer o final do palavrão:... ta!... ta!

— Agora a noite está quase completa. Olhou o re-

lógio.

— Vamos voltar. Está de bom tamanho.

Subiram a escadaria com calma. Raul queria disfar-

çar, demonstrando que estava habituadíssimo a freqüentar

aqueles ambientes. Na realidade, seus músculos tremiam,

chegando a doer. As batatas das pernas umedeciam-se,

obrigando as meias a se encolherem. No seu nervosismo,

os degraus pareciam estar subindo sobre seu amedronta-

mento.

O diabo é que todos conheciam Lúcio. Já estava em

uma mesa especial. Sorria para todos e acenava para os

conhecidos. A semi-escuridão do ambiente acalmava um

pouco os pulos do coração de Raul.

O garçom se aproximou.

— O mesmo de sempre, senhor Lúcio?

— Claro. Para dois. Melhor dito, traga-me uma gar-

rafa de uísque.

— Alguma marca preferida.

— A de sempre, Hipólito.

O homem fez uma mesura, retirando-se.

Raul abaixou-se para consertar as meias descidas.

— Uísque, Lúcio?

— Claro, cretino. Não vai querer tomar raspadinho

de tamarindo, como na festa da Madalena.

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— Mas eu nunca tomei uísque.

— Pois vai tomar agora. E se pensa que é alguma

coisa do outro mundo, vai se enganar. Uísque nada mais é

do que cachaça educada em Oxford. A diferença só se

percebe no preço e no gosto, que é muito melhor, e, ade-

mais, a ressaca aparece sem azia. Só.

Olhou as mulheres decotadas e terrivelmente mal

pintadas, sorrindo de longe, à espera de um aceno.

— Elas vão é chuchar! Não vou chamar nenhuma

marafona daquelas. As menos piores aparecem um pouco

mais tarde para se valorizar. Aquela de cabelo pintado de

branco é a Lolita, um bonde. Aquela outra é uma espa-

nholinha até regular, mas fala pelos diabos. Vamos deixar

aqueles detritos pra lá. Opa! Tá vindo o uísque.

— Se você não quer nenhuma daquelas mulheres,

que veio fazer aqui?

— Daqui a pouco eu mostro. Mas se você quiser,

pode chamar aquela trempe toda para a mesa.

Raul pensou na nota magra de dez mil réis, que ti-

nha de render pelo menos oito dias. Por nada no mundo

abriria a carteira de estudante para apanhá-la. O garçom

chutou para longe o seu dilema.

— Sirva primeiro ele.

— Não, por favor, primeiro Lúcio. Ele é freguês

velho. O garçom obedeceu e Lúcio sorriu gaiatamente em

sua direção.

— Duas pedras de gelo ou mais?

— Duas, Hipólito.

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— E o senhor?

— Exatamente como o dele. Mas carregue mais no

uísque.

Foi a vez de Lúcio se espantar. Não demorou-se

muito naquela atitude porque algo o preocupava.

— E ela?

— Canta dentro de cinco minutos. Já sabe que o

senhor chegou.

Lúcio ergueu o copo.

— Tintim.

— Tintim.

— Quem é ela, Lúcio?

— Uma flor. Veio de São Paulo. Estou louco.

— Vai me emprestar depois?

— Quando passar minha paixão, talvez.

— E essa paixão é pra mês ou dois dias?

— Sei lá. De repente a gente dá uma de japonês:

Pau duro, coração mole. Pau mole, coração duro. Não sei

não, essa está abalando as esferas do meu rolimã.

A música tocou um prefixo meio nostálgico. As lu-

zes começaram a diminuir no salão. Lúcio apertou a man-

ga do paletó de Raul.

— É ela. Olhe bem.

Tudo escureceu como por milagre. Surgindo não se

sabe de onde, um foco de luz caiu sobre uma mulher, de-

fronte a um microfone.

Palmas estrugiram e vozes exclamaram aos brados.

— Ivonete!

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— Ivonete!

Assobios e barulhos de copos se brindando.

Ivonete abaixou a cabeça com uma dignidade im-

pressionante. Levantou uns olhos muito negros para cima.

Colou a mão direita aos lábios e jogou um beijo para o

público. Aquele beijo, na certa, possuía um só dono.

Raul sentiu uma estranha comoção. Algo havia de

errado nele. A mulher era linda, linda, tão linda como

nunca vira. Os cabelos negros estavam puxados para trás,

amarrados num coque. Duas argolas de ouro balançavam-

se nas orelhas. O silêncio tornou-se maior.

Só então a orquestra introduziu o começo de uma

marcha-frevo. Sim, uma marcha-frevo tristíssima. Tinha

de ser assim. Cabaré é primo de tango e sobrinho da tris-

teza.

Raul engoliu em seco. Nervosamente levou o copo

de uísque aos lábios. Queria refrescar a sua angústia.

Ivonete retesou o corpo, abriu mais os olhos ne-

gros, como se procurasse consolo no negror do ambiente,

e principiou a cantar. Nunca mais esqueceria aquela músi-

ca e aquela letra.

“Que vais fazer, mandarim,

com esse sorriso cruel?

Ele vai se esquecer de mim,

soltando papagaios de papel”.

Tornou a repetir o refrão. E continuou música afo-

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ra, com a tristeza aumentando nos olhos umedecidos de

emoção.

“Foi ele, que após a dança,

beijou-me as tranças e jurou paixão...

Oh! Esse chin prazenteiro

foi o primeiro

na profissão”...

Repetiu uma ou duas vezes a marcha-frevo. E

quando acabou, não deixaram que ela se arredasse do mi-

crofone.

Ivonete repetiu tanto o frevo, e o público só parou

de bisá-la quando, pela última vez, as lágrimas baixaram

pelo seu rosto moreno.

Era um delírio ensurdecedor. Tudo se aplacou

quando as luzes se reacenderam e Ivonete desapareceu.

Lúcio virou-se para perguntar se gostara e viu que

Raul chorava.

— Mas rapaz, o que é isso?

— Não sei. Foi me dando uma coisa. Uma tristeza

apertando meu peito; nem sei explicar.

— Que bobagem, Raul. Aquilo é palco. Ê tudo en-

saiado.

— Eu sei que sou uma égua mesmo. Mas vi tudo

pelo lado contrário.

— Beba mais um uísque, que passa.

Colocou mais gelo e mais bebida em seu copo.

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— Ela não é linda?

— Nunca vi tão linda assim.

— Depois ela volta para cantar outro número. Pena

não deixarem que ela cante outra música. Precisa repetir,

repetir...

— Deve ser horrível.

— Que nada. Ela ganha para isso. Pomba! Veja se

melhora essa cara de bezerro desmamado que toma leite

em pó! Se soubesse que iria ficar assim, nem o teria trazi-

do.

—Deve ser do álcool. Sem álcool já sou um cretino

para ficar com os olhos cheios d’água...

— Quer ir agora?

— E Ivonete?

— Só sai depois das quatro. Levo você e depois

venho esperá-la.

— Tá bem.

Hipólito já estava ali pressuroso, recebendo a conta

e a gorda caixinha.

Raul descia as escadas com mais calma, muito em-

bora o corpo estivesse amolecido pelo uísque. Que dife-

rença daquela sofreguidão que quase lhe embargava os

passos ao subir. O som da música se perdia a cada degrau

descido. Na rua, ele ficava tão longe, tão alto, como se

pertencesse ao céu. A rua era dos mortos. Podiam passar

um leiteiro, um jornalista que se recolhia do Jornal do

Comércio, ou uma puta da mais baixa estirpe ainda ten-

tando dar uma canoada.

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Fazia bem colocar a cabeça meio pendida para fora

do carro e receber os últimos e doces ventos da noite. O

silêncio de fora restituía a paz, tão comprometida nas der-

radeiras horas.

— Gostou?

— Foi uma noite fantástica. Tudo maravilhoso.

— Não, sua égua, falo da mulher.

— Além da imaginação. Entretanto...

— O quê?

— Nunca dormiria com ela.

Lúcio ficou tão intrigado que brecou o carro com

certa violência.

— Por quê? Por ser uma puta?

Não, não. Não é isso. Não seria a primeira prostitu-

ta com quem me deitaria. Justamente porque ela me des-

pertou sentimentos antípodas.

Como Lúcio em silêncio esperasse uma explicação,

constrangido, pôs-se a esclarecer os seus pensamentos.

— Sabe o que foi? Talvez por ter tomado muito u-

ísque...

— Lá vem a culpa sobre o pobre uísque.

— Talvez ele tenha afrouxado a minha censura. A

verdade é que...

— Desembuche logo, homem de Deus. Você está

cheio de nós górdios.

— Pois bem. Quando eu vi aquela mulher. Os o-

lhos tão negros e cheios d’água, a pele tão fina, tão branca

e transparente. Com as mãos esguias e angustiadas, segu-

Page 183: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

rando a haste do microfone... Eu não vi uma puta cantan-

do. Ela se transformava numa das madonas sofredoras de

El Greco, com aqueles pescoços finos e expressivos.

Lúcio sorriu complacente.

— Jamais vi um cretino tão romântico. Vamos pa-

rar de sonhar.

Estalou os dedos.

— Faça-se o dia novamente.

Raul entreabriu os olhos mortiços, e, em cima da

sua cabeça, as árvores balançavam as folhas, numa peque-

na dança do verão que começava a ir. Passou a mão no

peito, que resfriara sob aquela doce sombra.

— Lúcio! Você ainda está aí?

— Claro.

— Foi tudo tão lindo, não?

— Foi. A mocidade é a única parte dessa porca vi-

da que possui algum significado. O resto é estrume. Pense

no que fomos. Olhe o que restou. Veja a fotografia da a-

sarcia em que você se transformou, Raul.

— Não falemos nisso agora. Naquele ano, quando

as férias chegaram, você viajou com a sua avó para a In-

glaterra. Eu fiquei na minha praia do Meio, em Natal, go-

zando o sol violento do verão.

— Foi naquela trágica viagem à Europa que come-

cei a descobrir o que me esperava.

Raul concordou.

— Sim, na volta da viagem você começou a se tor-

nar triste e indiferente... Vamos mudar de assunto.

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— Sabe, Lúcio, que a guerra está ameaçada de aca-

bar?

— Claro que sei. Os sinos dobrarão por toda a par-

te.

Haverá risos em todos os corações, paz em todos

os olhares. E as ruas encher-se-ão de novos mutilados.

Belo quadro, pois não?

Raul sentiu-se novamente mal. Os olhos de Lúcio,

magnetizados, pousavam sobre o seu joelho inchado.

— Por favor, Lúcio. Desvie o seu olhar da minha

perna.

— Ora, não seja idiota.

As áscuas do seu olhar aterrorizavam. E não podia

desgrudar-se daquele magnetismo. Mordia-lhe o peito um

desespero pungente.

— Por favor, Lúcio. Não estrague as belas horas de

sonho que você me proporcionou.

— Eu não proporcionei nada. Não sou eu quem

controla as oscilações da sua catarse. O produto do seu

remorso é simplesmente você.

Olhava profundamente o joelho se avolumando no

pijama vagabundo. Parecia querer serrar-lhe doridamente

a parte atingida pelo sarcoma. Por isso falara da guerra e

dos mutilados tão cruelmente.

— Não precisa me acusar dessa maneira. Estou por

pouco, Lúcio. Talvez na próxima semana terei decidido

amputar a perna. É isso que você quer?

— É uma pena. Uma lástima que não possa mais

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dançar um tango argentino em meu lugar.

— Eu o faria novamente.

— Faria? E quantas outras coisas você também não

repetiria”? Não precisa negar: é uma evidência.

Raul foi tomado de grande fraqueza e, empapado

de suores gélidos, mal podia segurar o joelho para escon-

dê-lo daquela perfuração de Lúcio.

— Por que me trouxe aqui, Lúcio? Não foi só para

recordarmos fatos tão marcantes da nossa juventude, foi?

— Que acha? Vou lhe contar a verdade. Depois de

uma noite como a que você passou, talvez fosse mais fácil

induzi-lo...

— Induzir dessa vez a que, Lúcio?

Lúcio soltou uma risada irritante.

— Convenci-me de que Tiago, o Maior, teria mais

coragem do que você em procurar a paz sob a roda de um

ônibus. Então pensei trazê-lo para esse pequeno passeio.

Pense bem, a manhã está encantadora e há um sol todo

carinho, convidando para um sono diferente.

— Cale-se!

— Não adianta tapar os ouvidos. Minhas palavras

penetrarão no âmago da sua consciência. Olhe em redor.

Veja o que está sobre os tentáculos dessas raízes. Ali

mesmo, enrodilhada como uma doce e escura cobra. Uma

muçurana de veludo, Raul.

Apavorado, descobriu a corda repousando enove-

lada entre as raízes da figueira.

— A corda você já tem. A figueira é toda sua, Judas

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Iscariotes.

— Não irei, Lúcio. Não farei o que você quer.

— Se existe alguma dificuldade, eu ajudarei a arre-

messar a corda ao galho. Construo um nó macio, silencio-

so e deslizante.

Raul sentiu os olhos enevoarem-se. Controlou o

peito para que a pergunta nascesse com mais calma.

— Foi por essa razão que você me trouxe aqui, Lú-

cio. O que dói é a falsidade de todos esses momentos de

sonho e amizade. Como pôde até enlamear a pureza de

nossa amizade? Por que levantar até uma suspeita sobre a

grande dignidade que existiu entre nós dois?

— Eu?

— Você, Lúcio. Você chegou até a insinuar amor

entre nós dois. Tudo para trazer-me junto desse laço e

dessa figueira. Por que conspurcar o amor que é um sen-

timento tão sagrado?

—Bobagem. É cretinice sua. Não há amor na vida.

Em nenhum momento da vida, sabe? A morte sim. A

morte é amor. A morte é um sentimento muito maior e

mais profundo que o amor. É nisso que você se confunde.

Tornou a olhar duramente. Primeiro para o joelho

de Raul. Depois para a corda enrolada nas raízes da figuei-

ra.

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CAPÍTULO XIII

O Tapete do Evo

O desalento de Simão Pedro contrastava com a aparente

calma da enfermaria. Em vão tentava disfarçar o seu desâ-

nimo. “Bobagem, Simão Pedro, a vida é assim mesmo.

Sobretudo pra nós que temos de esperar a chegada da noi-

te, o começo do dia, o começo da noite, a chegada do dia.

E depois, pronto! Mas a verdade, coração, é que até a gen-

te chegar a esse pronto! — o tempo às vezes demora mui-

to.”

Não criava coragem nem para mexer o corpo no

leito. Ficaria, sabia lá quanto, com as mãos perdidas entre

as coxas finas, o rosto fixado entre o armário inútil dos

remédios e a cama dos dois mortos. Aquilo, sim, doía. A

consciência de que o sono de Judas Iscariotes, prolongado

pelos entorpecentes, criavam-lhe um aspecto circunstanci-

al de morte. Por que Deus em toda a sua misericórdia não

o levava durante aqueles períodos de inconsciência? Seria

apenas uma ligação de sonos, sem dor, sem desesperos.

Dava pena ver o rosto se afilando e o corpo perdendo as

carnes cada dia. Arrepiava conhecer a sua luta para não

deixar que lhe amputassem a perna. Protelando sempre,

conseguira passar quase o verão. Por que se agarrava tanto

a uma perna, a um joelho condenado a um suplício contí-

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nuo assim? Logo ele que estudara medicina, que não igno-

rava nada do que teria de acontecer.

Simão Pedro engoliu a saliva salgada do fracasso

lentamente.

A vida parecia mesmo um tapete eterno, como na-

quelas histórias de criança, em que se viajava sempre vo-

ando. Por mais que viajasse depressa o tapete, havia mo-

mentos em que ele parecia pairar no ar esperando pelo

vento da desesperança para tocá-lo mais adiante.

Virou a cabeça desanimado e deu com os olhos de

João que abaixara a Bíblia para fitá-lo. Parecia ler-lhe os

pensamentos. E João sorria. Sorria como a estimulá-lo.

Aquele não parecia temer nada. E quando a Senhora das

Moscas lhe estendesse as mãos, partiria como um justo,

com o sorriso de quem achou a viagem do seu tapete a

coisa mais maravilhosa que tivera.

Desconcertado, tornou a voltar a cabeça para as

duas camas divididas pelo armário.

Tomé dava uma pena total, que logo desaparecia.

Não se sabia bem o que era nem o que poderia estar sen-

tindo. Mas Judas, não. Falava, falava tão bonito. Uma pe-

na! Sentiu uma pontada tão dolorida no peito que precisou

beber um pouco de água. Judas ainda não sabia de toda a

realidade. Ignorava que mais dia menos dia teria o mem-

bro decepado.

Aí Simão Pedro contou, com dificuldade, nos de-

dos mirrados. “Ontem, foi dia de visitas. Hoje é sexta.

Amanhã, sábado. Ele terá o domingo para caminhar com

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as duas pernas. Mesmo que se rebente de dor e uive, ainda

estará marchando com as duas pernas. Mas a segunda foi

o dia marcado pelo médico para fazer a operação.

— Olhe, Pedro, falara-lhe Dr. Tiago, você, que tem

jeito e calma, vai dar a notícia devagarzinho a ele, quando

ele retornar do efeito da morfina.

Não tivera coragem de dizer, não. Agora carecia

esperar que acordasse para aos poucos transmitir-lhe o

recado amargo. Juntara as duas garras nervosamente. Por

que ele não ia embora durante aquele sono. Por quê? Por

que o seu tapete não tomava logo o rumo ignorado de

uma noite que nunca voltava?

Felipe entrou às gargalhadas na enfermaria. Fez tan-

to barulho que acordou aqueles que ainda podiam acordar.

Bartolomeu apertou os olhinhos matreiros, ansioso

pela novidade.

—A praga da Peste! Castigo anda a cavalo. Pensa

que é só judiar dos outros e não ter volta?

Pulava grotescamente no meio das camas, seguran-

do o pescoço com mais força para que não desabasse com

os movimentos da sua dança frenética.

Aquilo afastou os pensamentos atrozes de Simão

Pedro. Aproximou-se de Felipe. Esperou calmamente que

ele parasse. Felipe fez ainda umas cabriolas e jogou-se

com força, sentando-se na cama de Bartolomeu.

Parou de rir e ensaiou uma voz de falsete.

— Alfredo! Alfredo!... Não me abandones nesse

momento. O que será do nosso filhinho?...

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Ria desbragadamente da sua própria inventiva.

— Agora, minha gente, acabou-se.. A puta da va-

cona se estrepou.

— De que você está falando, seu doido?

— De Madalena.

— E que é que tem?

— Veio um investigador com o dono da casa e le-

vou de volta o seu rádio. Bem feito! Foi praga minha. A

sacana daquela velha só sabia grudar a orelha nele, mas

pagar que é bom, não pagava.

Houve um silêncio geral. Ninguém dizia nada. Só

os olhos grandes dos doentes observavam espantados o

rosto de Felipe. Depois os olhos foram mudando de ex-

pressão. Não adquiriam a mesma satisfação de Felipe e

sim uma estranha tristeza.

João foi o único que interpelou Felipe. O seu sorri-

so desaparecera, muito embora sua voz permaneces-

se,calma.

— Seu coração achou isso bom, Felipe?

— Achei e muito. E pena que não tivesse sido há

mais tempo.

João abanou a cabeça inutilmente.

— Mas isso é vingança, meu amigo. E Deus não

gosta de vingança.

Felipe encolerizou-se.

— Ora Deus. Deus que vá lamber sabão! Você fica

aí com indigestão de Deus, só falando besteiras sobre Ele.

E Ele o que é que faz pela gente? NADA. Nada de nada.

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O que faz por você? Também NADA. Você acha que Ele

vai perder tempo com essa merda de gente que somos?

Pois olhe. Olhe bem o que vou fazer.

E ante o espanto de todos, segurou no sexo e gri-

tou com mais raiva.

— Taqui pra Deus!

João persignou-se e falou com humildade:

— Perdoai-lhe, meu Deus, ele não sabe o que fala.

— Não sei. Não sei, uma merda. Não sei. Se Ele se

importasse conosco mandaria agora mesmo um raio me

matar. Por que não manda?

Virou-se danado e saiu da enfermaria. Não obstan-

te, um mal-estar entremeado de medo grudou-se nas pa-

redes da enfermaria e na alma de cada um. Felizmente

Deus não dava importância às palavras de um maluco da-

queles. Sua bondade era muito maior do que esta tontice.

Simão Pedro pensou em voltar para a cama. Hoje o

dia estava marcado para o vôo do tapete eterno. Ele paira-

ria no ar por mais tempo ainda. Precisava inventar uma

coisa muito forte para espairecer e arejar suas esperanças.

- Pedro!

Atendeu ao apelo. Era Bartolomeu.

— O que quer você?

— Sente-se aqui, por favor.

— Pronto.

Seu rosto estava mais pálido do que de costume e

os olhinhos de macaco travesso pareciam umedecidos.

— Ficou com medo das palavras de Felipe, Barto-

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lomeu? Não tenha medo; nada disso tem significado para

a grande Glória de Deus.

— Não. Não fiquei. Eu já estou acostumado com

as maluquices dele. No fundo, ele é uma boa pessoa. Não

deve ter dito aquilo de coração. Só para irritar João. Tam-

bém, aquela beatice de João enjoa qualquer cristão, não

acha?

— Não sei não. Cada um sabe o que se passa den-

tro de si.

— Sabe o que é, Pedro? Eu estou com medo. Ou-

tro medo.

— Conte. Contando, talvez você melhore. Barto-

lomeu tentou aproximar o rosto do ouvido de Pedro. A-

pesar do terrível mau hálito, Pedro curvou-se para escutá-

lo.

— Pedro, já faz dois dias que eu estou com uma

eólica horrível.

— Onde?

— Aqui. Mostrava-lhe o estômago.

— Pode ser de alguma coisa estragada que você

comeu. Não sentiu dor de barriga?

— Pouquinho. Quando Felipe me levou ao banhei-

ro disse que eu estava podre.

— Então é isso. Ê só pedir um remédio ao Dr. Ti-

ago e ele resolve tudo.

— Será?

— Claro. Mais alguma coisa?

Bartolomeu ficou meio indeciso, mas como come-

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çara a contar precisava acabar.

— Também sinto uma fisgada fina como se fosse

picada de agulha aqui no braço sadio e do lado do peito.

— Não é nada. Desarranjo pode dar isso também.

— Mas estou com medo, Pedro. Quando esse lado

morreu, senti uma dor parecida. Parecida e mais forte.

— Bobagem. Não vai ser nada. Amanhã a gente

conversa com Dr. Tiago e ele descobre tudo e cura. Des-

canse. Tente dormir um pouco. Você vai ficar logo bom.

Falava sem convicção, e naquele estado de espírito

foi procurar o leito. Sabia que continuaria a fitar o armário

entre os dois mortos.

Estaria esperando que o tapete eterno recebesse os

bons ventos. Quando a Ceia chegasse, ajudaria os outros e

tentaria esquecer-se de tudo.

Abriu mais os olhos porque Judas Iscariotes reme-

xia-se na cama e prenunciava acordar-se.

* * *

Quando a Ceia apareceu todo mundo começou a

tomar as suas precauções. O Demônio bebera. Não se

encontrava completamente ébrio, mas os seus olhos a-

vermelhados chispavam. Fazia tudo com brutalidade. Ati-

rava tudo com estardalhaço. Não queria fitar ninguém e

seu mutismo amedrontava mais.

Saiu sem ajudar ninguém a se servir. Quando vol-

tou, uma hora mais tarde, a noite já se fizera quase. Reti-

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rou tudo para dentro da grande bandeja com gestos mais

vacilantes. Comprovava que naquele intervalo voltara ao

bar para beber.

Foi um alívio quando desapareceu sacolejando as

panelas na descida complicada dos degraus.

Simão Pedro ainda comentou para João:

— Será que ele não volta?

— Difícil. Quando levar a bandeja pro refeitório,

vai pro seu porão e dorme até amanhã. Quando acordar,

já nem se lembrará do que aconteceu.

- E se a gente fechasse a porta?

— Não é necessário. Aquela porta traz o único

vento da noite para abrandar o nosso calor.

Todos já se tinham recolhido para o sono. Inclusive

Felipe, esquecido da discussão, começara a pender a cabe-

ça fora da cama para a imobilidade de pedra.

A mesma opressão continuava no peito de Simão

Pedro. O sono daria fim àquilo tudo. Amanhã seria outro

dia. Nem sequer criara coragem de visitar a cama de qual-

quer enfermo para dizer uma palavra amiga. Apenas mo-

lhara os lábios de Tomé que tinham pedido água. Foi com

alívio que viu Madalena apagar a luz da enfermaria. Seus

olhos fecharam-se fatigados, recebendo o sono querido

por que tanto aguardava. Não podia precisar se dormira

muito, ou se sonhava. A verdade é que a luz estava acesa

de novo na enfermaria. Esfregou os olhos para orientar-se

melhor. Tinha certeza de ter visto Madalena girar o comu-

tador. Algo de muito estranho deveria estar acontecendo

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para que a luz se reacendesse assim. Talvez Bartolomeu

tivesse piorado e precisasse de socorro.

Uma risada debochada repercutiu por todo canto.

O Demônio, completamente embriagado, sem ca-

misa, estava se apoiando na porta da entrada da Ceia.

— Vocês hoje vão me pagar, seus putos!

Caminhou até a mesa e ficou batendo com força

contra o mármore gelado.

— Todo o dia eu levo carão pelas porcarias mal fei-

tas que vocês fazem. Hoje vou me vingar.

Ninguém se mexia. O medo tolhia qualquer movi-

mento.

— Pois é. Eu vivo aqui como se estivesse numa

prisão. O mais que posso fazer é tomar uma cachacinha

no bar. Passo meses sem saber o que é o gosto de uma

mulher.

Riu com mais estridência e desequilíbrio.

— E aqui dentro tem um que é branquinho como

uma fêmea. Pensam que eu não reparo quando dou ba-

nho. Muitas vezes eu já tinha pensado nisso. Quando pas-

sava sabão naquela bundinha bem feita eu pensava: Muita

fêmea não tem uma coisa tão bonitinha assim, nem tão

lisa. Sabem de quem eu estou falando, não? É daquele.

Apontou para a cama de Tiago.

— É ele. Tem uma cabeça grande, feia pra burro.

As pernas são engruvinhadas como cipó. Mas atrás não.

Vocês não viram como eu vi, quando dou banho nele e

fico passando a mão naquela carne macia.

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Arrotou forte e passou a mão na baba que escorria

pelo rosto.

— E ele é limpo e branquinho. Não é como vocês,

cambada de porcos filhos da puta!

Balanceou-se para o lado do leito de Tiago. Os o-

lhos já estavam soltando lágrimas.

— Pare de chorar que ainda não lhe fiz nada. Nem

vai doer, seu bobo cabeçudo!

Virou-se para o olhar atarantado de todos e, enfi-

ando a mão no bolso da calça, retirou uma faca sem bai-

nha. Passou o gume na boca, sorriu e ameaçou.

— Quem se meter a besta, destripo os intestinos

para fazer lingüiça!

Tiago começou a gritar como um louco! Sua cabeça

revoluteava tanto que parecia querer saltar do fino pesco-

ço.

— Calma, calma, branquinho.

Com a faca habilidosamente cortou os cordões que

amarravam as calças do pijama de Tiago.

— Vamos virar essa coisinha branca para cima.

Bundinha redonda de nenê.

O paralítico suspendeu os braços para agarrar-se à

grade da cama e tentar suspender o corpo. Talvez pensas-

se arremessar as pernas de cipó retorcido fora da cama e

fora do alcance do bêbado.

— Pare com isso, garoto.

Espetou devagar a faca no punho esquerdo de Tia-

go, fazendo os seus dedos se soltarem. Repetiu a ação

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com a mão direita. A dor obrigou o rapaz a ceder e escor-

regar para a cama.

—Seja bonzinho que eu não quero cortar você.

Enfureceu-se brutalmente.

— Pare de gritar se não quer que eu corte o seu

pescoço!

Madalena apareceu embrulhada no velho robe des-

botado. Nem podia acreditar no que seus olhos presencia-

vam. Tremia como vara verde e quando descobriu a faca

brilhando na mão do Demônio, voltou de carreira para o

quarto. Trancou a fechadura com duas voltas, afogou-se,

apesar do calor, debaixo da coberta. Tapara os ouvidos

apavorada. O próprio coração vibrava tão alto e descom-

passado que encobria todo o ruído lá fora. No dia seguin-

te procuraria saber como terminara tudo. Não tinha a

quem recorrer e não possuía coragem para enfrentar um

homem bêbado e armado. João persignou-se e recomen-

dou a Pedro.

— Vá, Simão Pedro. Talvez você falando, ele mude

de idéia.

Simão Pedro seguiu o conselho. Estava mais bran-

co que o pijama e seus cabelos prateados. Seus lábios tre-

miam disritmados.

Tocou nas costas do Demônio, que tentava virar o

corpo de Tiago de bruços.

Ele virou-se babando e de olhos fumaçando.

— Eu avisei que não queria que ninguém viesse se

meter. Porém vendo a velhice de Simão Pedro, apenas

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encostou a mão em seu peito e empurrou com força. O

corpo do velho rodopiou arremessado e foi bater de boca

contra a cama de Tadeu. Os tremores não deixavam que

se levantasse.

— Magoou-se Simão Pedro?

Era Judas Iscariotes que o encorajava. Era a mão de

Simão, o epiléptico, querendo reerguê-lo.

— Um pouco. Só um pouco.

Um filete de sangue escorria do lábio inferior, aber-

to pela pancada. Doía menos que a humilhação.

— Eu vou até junto dele.

— Não vá. Ele matará você, Judas Iscariotes.

— Vou sim. Terei forças de chegar até lá. Basta que

vocês dois me sustentem por um instante até que eu con-

siga equilibrar-me de pé.

Tentaram aquela manobra embora descressem do

resultado. Mas alguma coisa urgia ser feita. E eles eram

pequenos, doentes e impotentes para conseguirem salvar

alguém. E não vinha socorro de nenhuma parte. Era rezar

no coração e esperar a caminhada de dor de Judas Iscario-

tes.

O Demônio estava quase conseguindo prender o

corpo de Tiago de bruços sobre o colchão.

Judas estava a um metro da cena bestial. O que a-

conteceu causou maior espanto ainda entre os enfermos.

Ele soltara uma gargalhada estridente que revelava

uma satisfação imensa.

O próprio Demônio desvirou-se meio apalermado.

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No olhar de Judas morava o deboche e a cobiça.

— O que você quer?

Mostrou-lhe a faca novamente empunhada.

Onde Judas Iscariotes fora buscar tamanho cinis-

mo?

— Bem, companheiro. O amigo não vai querer a-

proveitar sozinho, vai?

O Demônio achou engraçada a idéia.

— Quer dizer que você também...

— Claro. Pensa que só você enxerga as coisas? Eu

também, meu amigão. Eu já tinha visto muitas vezes esse

negócio aí cor-de-rosinha...

Apontava com o queixo as nádegas desprotegidas

de Tiago.

— Eu também sou filho de Deus. Também estou

num jejum dos diabos dentro dessas paredes podres. Mas

que você tem bom gosto, isso tem!...

O Demônio ria desbragadamente. Estava se delici-

ando com a idéia.

— E quem é que vai primeiro?

— Pode ser você. Mas o certo é a gente tirar a sor-

te. Quer?

— Não tenho uma moeda.

Judas abriu a palma da mão e apresentou um ní-

quel.

— Seu sacana, você pensa em tudo.

— Até que não. Acho que por direito você quem

deveria começar. Mas se for um trato feito entre dois ma-

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chos, -aí, sim, é bom a gente tirar a sorte.

O Demônio olhava o seu rosto, tentando descobrir

uma trapaça.

Judas sorriu safadamente, tentando disfarçar aquela

suspeita.

— Cara, você.

— Coroa, você.

Simão Pedro encontrava-se tão fascinado que es-

quecera até a dor do seu ferimento. Que estaria maqui-

nando Judas? Não poderia perder um só dos seus gestos,

porque talvez ele convidasse a Simão e a ele para agir.

A moeda foi jogada em cima da mesa. Pulou com

um tilintar macabro. Rodopiou e foi morrendo em peque-

nos gritinhos.

— Cara. Judas exultou.

— A sorte foi amiga. Ganhei.

O Demônio ficou cocando a barba com grosseria.

— Tá cum sorte, seu sacana. Até que é bom. Assim

você é quem se machuca indo primeiro. Eu vou pegar o

negócio já macio...

Fitaram-se por um segundo e riram ao mesmo

tempo.

— O que está esperando agora?

— Que você me ajude. Só você pode.

— Não vá dizer que depois de tudo você...

— Nem sombra disso. Pareço sempre um bode

novo quando vejo uma coisinha dessas. Mas assim a frio é

meio chato. Você preparou tudo, esquentando-se no bar.

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Eu não.

— Que conversa comprida é essa.

— Juro por Deus! Beber uma coisinha é coisa que

não me deixam fazer há tanto tempo quanto isso. Você

bem poderia me ajudar. Não tem um pouco de pinga no

seu quarto?

— Tudo vazio. Nem fundo de garrafa.

— Não tem gaita pra comprar?

— Tou duro como essa mesa.

Judas enfiou a mão no bolso do pijama.

— E isso dá?

Entre os dedos exibia uma nota novinha de dez mil

réis.

— Dá?

— Se dá. Mas eu preciso atravessar a rua e ir buscar

no bar.

— Dá tempo. A noite é muito comprida. Mas não

se demore.

Os olhos do Demônio brilhavam de cobiça ante

tanto dinheiro junto.

— Topa?

— Topo.

— Mas não demore que eu estou louco. Louco pa-

ra fazer as duas coisas.

— Trago duas?

— Duas é melhor. Uma a gente toma antes para

esquentar e a outra, depois para comemorar. O troco é

seu.

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O Demônio saiu tão alegre que esqueceu a faca em

cima da mesa da Ceia. Ouviram os ruídos dos seus passos

descendo a escada dos fundos da enfermaria.

— Por favor, Pedro, a porta.

— Simão, tranque todas as janelas. Ele não vai vol-

tar. Mas é melhor garantir.

Judas ajudou Tiago a desvirar-se e acalmou-o.

— Já passou. Já passou. Daqui a pouco você está

dormindo e amanhã pensará que tudo não passou de um

sonho mau. Cubra-se bem que esses arrepios são mais de

nervoso do que de frio.

Simão Pedro retornara da sua missão. O que resta-

va da cena era apenas aquela faca nua sobre a mesa.

— Vou guardá-la, não acha? Amanhã contaremos

tudo ao*Dr. Tiago e mostraremos a faca.

Judas riu. Seu rosto estava empalidecendo. A dor

morava novamente em todos os seus traços.

— Não sei se conseguirei voltar à minha cama.

— Conseguirá. Nos o ajudaremos. Apóie-se em

Simão e em mim. Vamos devagar para que sua perna doa

menos. Você falou que a noite é muito comprida. Pois

vamos. Não temos pressa nenhuma.

Judas Iscariotes deitou-se e Pedro trouxe-lhe uma

caneca d’água para que tomasse um comprimido.

— Não vai adiantar muito, Simão Pedro. Isso agora

é muito fraco. Minha dor exige remédio cada vez mais

forte.

Bebeu o sedativo e ficou olhando para o teto. Que-

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ria confirmar se tudo a que assistira e de que participara

era realidade. Lúcio tinha prognosticado que durante “cer-

to” período viveria entre a dúvida e a alucinação.

Simão Pedro fez menção de erguer-se da ponta da

sua cama.

— Não vá ainda. Fique mais um pouco. Por favor,

converse qualquer coisa. Acho que estou melhorando

mesmo.

— Como foi que você imaginou essa saída Judas?

Sorriu.

— Não sei. Talvez na minha vida já tenha aconte-

cido algo parecido com isso.

— Você estava certo de que o Demônio iria engolir

aquilo tudo?

— Não. Mas a gente tinha que arriscar. Que mais

no mundo se poderia fazer? Foi bom haver um final feliz.

— Por que você acredita que o Demônio não vol-

tará mais hoje?

— Isso é mais fácil de deduzir. Ele está bêbado.

Chegando ao bar, beberá um pouco antes de voltar. E be-

bendo sempre, esquecerá tudo. Ficará tão bêbado que mal

poderá chegar até o seu quarto. Amanhã nem saberá o

desatino que praticou.

— O Dr. Tiago vai mandá-lo embora?

— Não, você sabe melhor que eu. Quem poderá

fazer o que ele faz com o dinheiro que ganha? Lavar essa

enfermaria-merda, doentes-merdas, trazer comida-merda,

viver sua vida-merda... Dr. Tiago falará com ele e ele vai

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prometer. Mas não sairá nunca. Ê como Madalena.

Começou a fechar os olhos. A boca entreabriu-se e

a respiração meio ofegante aumentava seu peito emagreci-

do. Ainda teve forças para concluir.

— Foi uma pena. Pena que eu tenha tão pouco

tempo para andar e ter gasto tanta energia nessa caminha-

da. Meu bom Simão Pedro, não sei se caminharei mais

uma vez até chegar aquela hora...

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CAPÍTULO XIV

O Caldeirão dos Degenerados

Simão Pedro tornava a contar nos dedos. Mais um dia.

Não. Menos ura dia para Judas Iscariotes. Um dia também

a menos para todos. Mas para Judas as horas tinham um

cunho mais definitivo. Queria aprisionar as horas, segurar

os ponteiros, agarrar o tempo entre seus dedos deficientes.

Queria pisar, fazer em estilhaços o relógio do seu desalen-

to. E só conseguia engolir a saliva salgada e saburrosa. Pa-

recia que tudo combinava para precipitar a realidade das

desgraças. Se olhava para um lado, estavam os dois mor-

tos. Se buscava com a vista o outro canto da enfermaria,

esbarrava em Bartolomeu esperando a visita da Senhora

das Moscas. Ele, que ansiara tanto em ver uma cama co-

berta de pontos negros, agora observava apavorado as

janelas, esperando a qualquer momento surgir o enxame, a

procissão das Fronteiras.

Felipe estava desconfiado que o desarranjo de Bar-

tolomeu, nascido tão intempestivamente, não podia ter

uma boa origem. E o mau cheiro que se desprendia das

suas fezes prenunciava um breve desenlace. Os médicos

não esconderam a verdade. Bartolomeu apodrecia todo

por dentro. Estava sendo comido violentamente, rapida-

mente sumindo.

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Felipe desistira de limpá-lo porque não reunia tanta

força para aquilo. Muito menos seu amigo xipófago Ma-

teus.

Madalena trouxera a novidade. Iriam providenciar

um biombo, aquele biombo que escondia a vergonha da

morte, para cercarem Bartolomeu. Assim evitariam a ex-

pressão do seu olhar quando as moscas viessem pacien-

temente sentar-se à sua cabeceira, ao lado dos braços, em

volta da cabeça, na umidade dos lábios.

O que não permitiriam, isso nunca, é que os outros

vissem o seu pavor à chegada das moscas. Os seus olhos

analisando o engrossamento do cortejo. Os seus olhos

observando se os olhares dos outros sentiam o mesmo

prazer que sempre tivera quando elas apareciam em outro

leito. Talvez até sua família tão numerosa o levasse para

casa para que seu passamento se desse num ambiente de

paz. Simão Pedro até que desejava isso, mas duvidava. Se

não o quiseram vivo, por que tê-lo em seu ambiente, apo-

drecendo entre fezes e moscas silenciosas?

Se Simão Pedro possuísse capacidade de odiar, ain-

da que fosse um pouco, estaria imprecando contra João.

João que prometia coisas tão lindas, falava de legião de

anjos, de Aparições e de milagres... João tão calmo, João

tão miserável que não rezava com mais força para que tan-

ta coisa desgraçada não acontecesse por ali.

Tão aprisionado em seu tapete eterno que não pa-

recia querer viajar tão cedo, Simão Pedro tomou a decisão

de caminhar pelo parque dos ficus-benjamins e das figuei-

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ras-bravas. Não era momento para que os pássaros ainda

cantassem no ambiente. Mas a sombra daria bálsamo ao

coração.

— Escada dura. Dura como o esquecimento de

Deus e dos homens.

Desceu com cuidado os degraus de cimento. On-

tem o Demônio descera por ali com outras intenções.

— Ora diabo de pensamentos. Só coisas tristes. Só

coisas tristes. A gente acaba não agüentando mais. Se co-

ração rebentasse mesmo com a dor, a gente seria todo um

remendão por dentro.

Atravessou a cerca de arame farpado onde as mu-

lheres do outro Pavilhão colocavam trapos lavados para

secar. Olhou dois banheirões enormes onde duas bicas

ficavam constantemente jorrando. Ali lavavam a roupa das

camas, os pijamas. Bem que deveria haver uma licença

para que pudesse banhar-se naquela água. Mas poderia dar

numa senvergonhice sem par. Não havia porta e iria aca-

bar homem tomando banho junto com mulher... Uma

sacanagem grossa.

Procurou o canto mais frondoso das árvores e abri-

gou-se à sua sombra. Sentou-se entre duas raízes e encos-

tou a cabeça num dos troncos. Nem o silêncio lhe fazia

bem ou lhe trazia paz.

— Quem falou outro dia, Simão Pedro, que a guer-

ra está para acabar? Negócio de aliados. Negócio de Inva-

são. Por que os homens gostam tanto de se matar? Por

que não esperam a hora da morte que não perdoa nin-

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guém? João falou dos navios afundados. João falou das

cidades destruídas. João falou da mocidade destruída. João

falou dos bancos bombardeados. Por que João, que só

fala de coisas bonitas, foi contar tudo aquilo? Mais bonito

seria contar da paz com sinos tocando por toda parte. Dos

pombos brancos voando no céu cheio de nuvem e de a-

zul. Dos corações se abraçando, cheios de felicidade e fé.

João só falou da guerra ruim. E qual era a guerra que não

era ruim? Eu não tenho navios, João. Eu não tenho cida-

des, João. Eu não possuo bancos, João. Eu não tenho

mocidade, João. Eu não tenho nada, João. Tenho só a ve-

lhice e ninguém. Ninguém e a velhice. A velhice e nin-

guém, João. Com a guerra ou sem a guerra, só isso me

sobrou da vida, João.

O coração se apertou tanto, tanto que os olhos fo-

ram se enchendo de lágrimas. Lágrimas salgadas e amargas

que desciam pelo recente ferimento no lábio inferior. Lá-

grimas sozinhas que tinham de cair. Por mais que tentasse

colocar o rosto entre as mãos, não conseguiria detê-las. A

lepra nervosa deformara todos os seus dedos para impedir

de segurar o seu próprio choro.

* * *

Quando de tardinha Simão Pedro retornou à en-

fermaria só se falava naquilo. A notícia estourara como

bomba.

— Mateus?

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— Sim. Mateus mesmo.

— Como pôde fazer isso?

— Como pôde, não sei. Mas que fez, fez.

— E onde está ele?

— Trancado na segunda privada. Diz que só sai de

lá depois de morto. Se insistirem ele corta o pescoço com

uma gilete velha.

Simão Pedro, meio atarantado, engoliu em seco.

— Vou dar água a Tomé. Ele movimenta os lábios.

Na volta parou na cama de Judas Iscariotes e ainda

criou ânimo para lhe dar um sorriso. Judas Iscariotes fala-

va baixo.

— Você pode ajeitar meu travesseiro.

— Posso sim.

Judas sentiu a mão crispada ajustando o seu pesco-

ço na fronha suja.

— Nós já morremos, Simão Pedro?

— Se a morte vem de uma vez só, ainda estamos

vivos.

— Você soube de Mateus?

— Sim, já soube.

— Estavam esperando por você. Onde você anda-

va, Simão Pedro?

— No bosque dos sabiás. Queria descansar um

pouco.

— Estiveram buscando você por toda parte.

— Que querem de mim dessa vez? Judas sorriu fra-

camente.

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— Escolheram você para falar com Mateus. Acham

que só você pode tirá-lo de lá. Convencê-lo a não se ma-

tar.

— Por que eu? João é o mais indicado. João sem-

pre fala mais bonito.

— Tentaram com João. Mas Mateus disse que só

falaria com você. Que João só fala mentiras. Vive num

mundo bonito demais em que só ele acredita. João até que

tentou. Arrastou-se como uma aranha, mas a sua voz cla-

mou no deserto, sem significado algum.

Simão Pedro apertou a cabeça, e escorregou os de-

dos entre os cabelos prateados.

—Meu Deus! Meu Deus!...

Suspirou profundamente como se quisesse encher

o pulmão de vida e de coragem.

Resignado concordou.

— Eu vou ter com ele. Só preciso descansar um

pouco da minha caminhada.

Sorriu em sua máscara de desolação.

— E você como se sente, Judas Iscariotes?

— Como você ou pior. Com os dedos da alma con-

tando todos os minutos.

— Você é o homem mais corajoso que eu conheço.

Judas percebeu o riso de escárnio de Lúcio e sua voz espi-

caçando suas penas.

— Corajoso? Ainda bem que os homens desconhe-

cem os outros homens.

Pedro levantou a cabeça surpreso para Judas.

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— Você disse mais alguma coisa?

— Não. Talvez tenha agradecido o seu elogio quase

em silêncio.

— Bem. Vou lá.

Sentia os olhos crescidos dos doentes acompa-

nhando a sua marcha. Sempre que acontecia um fato iné-

dito os olhos dos homens, aumentavam mais como se

fossem os únicos donos móveis de cada rosto.

Estacou diante da porta da privada. Ansioso tentou

escutar se havia qualquer ruído lá dentro. Nada. Mas era

ali que ele estava. Procederia de uma forma que não o as-

sustasse mais.

Seria necessário munir-se de todos os farrapos da

sua calma e da sua ternura.

Fez um sinal avisando que não queria a proximida-

de de ninguém.

Junto à cama de Bartolqmeu, por fora do biombo

colocado, ainda vazio de moscas, existia um tamborete.

Aquilo ajudaria. Apanhou-o e fez um pequeno ruído para

que Mateus notasse a presença de alguém.

Sentou-se nele e sem ânimo encostou a cabeça na

porta da privada.

Faltavam-lhe palavras para principiar.

— Mateus!

O silêncio permanecia lá dentro.

— Você queria falar comigo. Eis-me aqui.

De novo o nada como resposta. E se ele tivesse

cumprido a sua ameaça? Se tivesse golpeado os pulsos ou

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seccionado a garganta? Não. O sangue estaria correndo

pela abertura embaixo. Ou talvez não. Eles não possuiri-

am muito sangue. Cada um deles era um farrapo de gente.

O sangue poderia estar embebido no pijama e secara-se

antes de atingir a porta.

— Escute, Mateus, você queria falar comigo. Não

queria?

Ouvia forte a batida angustiada do coração. Pedia

aos céus que houvesse uma resposta do homem acuado.

Que crime tão horrível ou pecado tão desgraçado poderia

ter cometido um homem como aquele. Imaginava a cena.

Madalena perseguindo aos gritos, tocando-o do pavilhão

das mulheres. O Demônio seguindo Madalena, chaman-

do-o de todos os palavrões. E como conseguira caminhar

com tanta pressa se uma parte do seu corpo era paralisa-

da? O grotesco da corrida. O medo, o pavor empurrando-

o para a latrina, fechando a porta com o corpo e depois

conseguindo fechar o trinco. Depois as batidas e as amea-

ças de derrubar a porta e lançá-lo nu à rua...

Pedro passou a língua nos lábios e sentiu a rachadu-

ra incomodando um pouco, mas não tanto como o tama-

nho da maldade humana.

— Mateus, eu estou aqui. Minha cabeça está encos-

tada à porta. Não precisa falar alto. Eu posso escutar você.

Meu ouvido se aproxima do trinco e posso ouvir tudo que

falar mesmo que seja baixinho.

Estranho confessionário. Nas igrejas, todos se ajoe-

lhavam e o padre sempre se separava por uma gradezinha

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ou um trançado de xadrez. O seu, não. Tudo se resumia

num banco, uma porta bruta e um homem sentado numa

privada sem higiene sempre repleta de merda. E quem era

ele? Ninguém. Ninguém que pudesse ter o dom de perdo-

ar. Apenas a mais velha porcaria que se arrastava naquele

pavilhão com um coração envelhecido que podia compre-

ender qualquer um daqueles condenados.

Precisava insistir e insistir. Ter calma para que nada

do que dissesse ampliasse mais os temores de Mateus.

Mudou o rumo da conversa.

— Eu sei que você está preso aí, já faz muito tem-

po, Mateus. O dia é quente e você deve ter muita sede.

E como o outro não se decidisse a responder aos

seus apelos, tomou uma decisão.

— Está bem. Você me quis e estou aqui. Vim co-

mo seu amigo que sempre fui. Mas você precisa se lem-

brar que eu sou um velho e também um doente. Não a-

güentarei permanecer aqui muito tempo. Ficarei mais uns

quinze ou vinte minutos, depois abandonarei você à sua

sorte.

Esperaria o prometido enquanto o coração rezava.

Dali podia ver pelo pedaço do corredor três camas. A de

Tiago Menor, cuja estranha paralisia ninguém sabia expli-

car. Um quase menos cruel do que o de Tomé, o morto.

Depois a cama de João. E João olhava em sua direção es-

perando pelo sucesso da sua missão. E João mexia com os

lábios rezando aos seus anjos. Por fim a cama de Tiago

Maior que também observava os seus movimentos e de

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vez em quando limpava as lágrimas dos olhos. Uma vaga

sonolência tentava pesar em suas pupilas. Devia ser cansa-

ço, porque normalmente ninguém adormeceria junto a

tamanho mau cheiro. O coração agitou-se forte. A porta

estava sendo arranhada pelo lado de dentro. Muniu-se de

novas esperanças.

— Pedro!

A voz era sumida quase imperceptível.

Estaria sonhando? Colou mais o ouvido junto ao

trinco.

— Pedro! Você ainda está aí?

— Estou, Mateus.

— Pedro, eu tenho sede!

— Eu sei.

— Pedro, eu tenho muita sede mesmo.

— Podemos fazer alguma coisa. Você abre a porta

e eu lhe dou um caneco de água.

— Não posso fazer isso. Eu acredito em você. Mas

sei que se abrir a porta eles virão pegar-me.

— Eles quem?

— O Demônio, Madalena, os soldados e a Polícia.

— Eu não deixarei.

— Eu sei. Mas o Demônio é muito forte e já bateu

em você ontem, rachando sua boca.

Simão Pedro sabia que não seria atendido daquela

forma e que Mateus continuaria com sede por mais algum

tempo. Entretanto, ele resolvera falar. O que prenunciava

um bom augúrio.

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Aí Simão Pedro comoveu-se ainda mais. Mateus fa-

lava e chorava baixinho.

— Pedro, o que vão fazer comigo?

— Não sei bem ainda.

— Por que, Pedro? Eles não podem me mandar

embora, Pedro. Eu não tenho ninguém na vida. Sou como

você.

— Talvez eles não mandem você embora.

— Vão mandar sim. Pedro, o que vou fazer no

meio das ruas? No meio de uma cidade grande... Nem sei

andar nela. Por que foi acontecer aquilo comigo?

Fungava forte e dominava-se para falar.

— Pedro, aqui é tão bom. A gente tem comida, tem

roupa. A comida é muito boa e a roupa também. Onde

vou achar uma cama assim para poder dormir? Eu não

queria findar os meus dias numa escadaria, levantando

meu único braço para pedir esmola. Juro que não queria.

— Se você me contar tudo direitinho, eu falo com

Dr. Tiago e talvez ele deixe você ficar com a gente.

— Meu Deus! Por que foi me acontecer tudo aqui-

lo?

— Eu não estava na enfermaria e não me contaram

direito o que se passou. Você não confia em mim? Me

conte tudo então.

— Vou lhe contar.

Ouvia-se que Mateus enchia o peito de coragem e

resignação para falar.

— Sabe, Pedro, eu não queria fazer nada daquilo. A

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mulher foi que me puxou sempre. Já faz tempo. Era eu

chegar à porta, ela dava um jeito de aparecer, vindo de não

sei onde. Eu até que fugia. Se eu chegava às vezes à janela,

ela tava lá estendendo pano na cerca de arame farpado. E

me fazia adeus e me fazia proposta. É uma mula-tona

gorda que tem uns defeitos no pé.

Mateus calou-se e engoliu alguns soluços mais for-

tes.

— Conte tudo, Mateus.

— Eu tenho vergonha até de lhe contar.

— Sou seu amigo e nada na vida vai me causar es-

panto.

— Aí, Pedro, aconteceu que a gente se encontrou

no corredor. E ela perguntou se eu era ou não era ho-

mem. Que macho que era macho não ficava assim fugin-

do de uma fêmea. Foi ela que me mostrou e me levou pa-

ra aquele quartinho onde guardam as roupas de cama e os

pijamas dos homens. Empurrou a porta e me agarrou. Eu

não podia dizer que não. A gente aqui nem sabe mais co-

mo é uma mulher. Ela que me ajeitou todo. Você sabe

que eu não tenho movimento completo com meu braço...

Mateus aumentou o seu choro.

— Foi quando a porta abriu e Madalena pegou a

gente mesmo antes de ter feito qualquer coisa. O resto

você sabe.

Pedro calou-se pensando na história. Mulher quan-

do queria era bicho safado mesmo. Na certa ela iria contar

a história ao jeito dela. Na certa também não iria aconte-

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cer nada com ela. Enquanto isso, Mateus estaria condena-

do a penar pelas ruas impiedosas da cidade desconhecida.

— E agora, Pedro? O que vai ser de mim?

— Amanhã eu converso com Dr. Tiago. Como sou

o doente mais velho e ele me pede para fazer tudo, talvez

ele compreenda a sua situação e deixe você continuar aqui.

— Você vai falar por mim, Pedro?

— Dou minha palavra. Mas pelo jeito você não a-

credita em mim.

— Juro por tudo que é mais santo que acredito.

— Então abra a porta para que eu lhe dê um pouco

d’água.

— E depois? Eu posso fechar a porta de novo?

— Pode. Já lhe dei a minha palavra.

— Então vá buscar a caneca.

Mateus ficou escutando os movimentos de Pedro.

Sua ida até a pia. O jorro da torneira e seus passos retor-

nando.

— Abra que eu enfiarei a mão com a caneca.

Mateus abriu pressurosamente, fechou a porta e

bebeu com sofreguidão, amainando a grande sede. Devol-

veu a caneca, tornando a cerrar a porta.

— Quer mais?

— Agora não, Pedro. Muito obrigado.

Pedro pensou no problema mais grave a resolver.

Estava quase certo do sucesso. Desde que Mateus lhe a-

brira a porta, tudo aconteceria mais fácil.

— Que bom, Pedro. Eu estava com uma sede de

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morrer.

— Agora, Mateus, você precisa confiar em mim to-

talmente.

— Eu confio.

Simão Pedro sorriu da ingenuidade.

— Você não quer sair daí, quer?

— Hoje não. Vou ficar a noite toda e só depois que

você falar com Dr. Tiago. Se prometerem que não vão

arrombar a porta e me capar, eu saio.

— E você agüentará passar a noite com esse fedor

todo?

— Não será a pior coisa que já passei na vida.

— Está bem. Mas você precisa me entregar...

— O quê, Pedro?

— A gilete. Não posso permitir que você fique com

ela aí dentro. É a única coisa que eu exijo em troca de falar

com o Dr. Tiago.

Mateus titubeou um pouco e Pedro temia perder a

sua grande cartada.

— Não posso, Pedro.

— É assim que você me agradece?

— Por favor, Pedro, Eu...eu...

Vencendo uma grande dor, Mateus resolveu con-

fessar toda a verdade.

— Eu não posso lhe entregar, Pedro, porque eu

não tenho gilete alguma.

— Você está mentindo, Mateus!

— Juro. Não tenho nada. Se eu tivesse, Pedro, na

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agonia que passei todas essas horas aqui dentro, já teria

cortado o pescoço.

Pedro passou a mão aliviado, no peito, para enxu-

gar um suor frio.

— Eu inventei aquela história com medo que ar-

rombassem a porta. Onde é que eu iria descobrir uma gile-

te assim?

Calaram-se. Mas a voz de Mateus interrompeu a

pausa com uma cândida humildade.

— E agora, Pedro? Você vai contar que eu não te-

nho a gilete? Se contar, eles me jogarão na rua essa noite

mesmo.

— Não. Não direi isso a ninguém. Ao contrário,

vou contar pra todo mundo que você está armado com

ela. Assim, se é que é possível, você terá uma noite de paz.

— Pedro, você é amigo mesmo! Quando eu sa-

ir...Se ficar... tendo dinheiro, vou pagar Felipe para fazer

uma vez sua barba e seu cabelo.

— Esqueça disso. Agora que está tudo resolvido,

vou lhe dar mais uma caneca d’água para você passar a

noite. Comida não deixarão que eu lhe dê. Mesmo porque

uma noite de fome a gente pode agüentar. Agora a sede,

não. E duro demais pra se passar.

Voltou à pia e encheu a caneca. Entregou-a.

O coração de Simão Pedro exultava. Parecia que o

tapete eterno começava a se movimentai procurando ou-

tra direção, outros ventos mais brandos e mais harmonio-

sos. Depois, Simão Pedro devolveu o tamborete ao seu

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lugar. Olhou para os grandes olhos que o observavam e

sorriu com brandura.

A luz da enfermaria estava acesa numa hora inco-

mum. A noite ainda era madura e anunciava-se longa.

Judas despertou com a voz de Madalena sacudindo

a sua cama.

— Vamos, porque não temos muito tempo a per-

der e a viagem durará pelo menos doze horas.

Sentia-se atordoado e seus olhos pesavam, teiman-

do em fechar, motivados por tanto anestésico ingerido

nos últimos dias.

Todos os outros começavam a se movimentar. Si-

mão Pedro e Simão já ajudavam os outros a se vestir e a se

levantar. Em vez de pijama, todos estavam se agasalhando

com túnicas transparentes de seda amarela.

— Todos terão de ir. Menos o Morto e Tiago Me-

nor.

Pedro indagou temeroso.

— Até Bartolomeu que está morrendo.

— Principalmente ele.

— E como agiremos para afastar tanta mosca do

seu biombo. Elas se multiplicaram demais nessa noite.

— Não é problema. Depois, você precisa usar ócu-

los. Onde está vendo moscas. São apenas dezenas de lin-

das borboletas azuis.

Bateu palmas e as borboletas esvoaçaram, forman-

do guirlandas azuladas circulando o biombo.

Simão Pedro sentiu-se aliviado, Muito mais ainda

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porque, não havendo mais moscas, Bartolomeu não iria ao

encontro da grande Senhora delas.

— Pare de conversar e aja mais depressa. O ônibus

logo buzinará na porta.

Judas Iscariotes encontrava-se estupefato. Ninguém

parecia notar nada de anormal em Madalena. Ela falava

elegantemente e com muita decisão. E o que tornava mais

extraordinário era não usar os vestidos habitualmente su-

jos, encardidos e suados. Em seu lugar havia uma espécie

de sotaina toda de veludo vermelho, abotoada do pescoço

até os pés. Sobre o peito ostentava uma grande corrente

de ouro terminada na ponta com um camafeu de brilhan-

tes. Os cabelos pintados de um negro tão escuro até azu-

lavam Ela os prendera elegantemente num coque. E na

cabeça um grande chapéu vermelho também de veludo,

de grandes abas caídas, contrastando com a copa rasa.

Somente os calçados destoavam da sua elegância. Eram

velhos borzeguins amarelos com peitilhos brancos atados

por cordéis negros.

Simão Pedro veio auxiliar Judas Iscariotes a vestir-

se.

— Como você está bonito, Simão Pedro. Como

seus cabelos brancos ficam tão dignos com essa túnica

amarela.

— Vamos vestir a sua. Judas estranhou.

— Por que a dos outros é amarela e a minha verde?

— Não sei. Era essa que estava dobrada nos pés da

sua cama.

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Uma voz conhecida segredou aos seus ouvidos.

— Fui eu quem escolheu, Raul. Verde. Verde cor

de selva. Verde principalmente: a cor dos meus olhos.

Lembra-se daquela noite?

— Você vai também conosco? Simão Pedro admi-

rou-se da pergunta.

— Claro que vou. Todos vão, menos Tomé e Tiago

Menor.

Lúcio sorriu e advertiu.

— Cuidado quando me falar. Ele não pode ouvir o

que eu digo, mas pode escutar o que você fala. Claro que

também vou. Vai ser um espetáculo inigualável.

Tadeu também vai? Já disse os que ficam.

— Ninguém quererá sentar-se perto dele por causa

da leishmaniose.

Pedro suspirou.

— Se fosse só por isso.

— Diga uma coisa, Simão Pedro. Você sabe real-

mente qual a doença de Tadeu? Nunca tinha pensado em

perguntar-lhe, mas como você é o mais velho daqui...

Simão Pedro abanou a cabeça misteriosamente.

— Nunca poderei contar. É uma promessa. Mas

um homem não permaneceria num ambiente tão especial

só porque contraiu uma coceira incurável.

— Deve ser.

Ajudou a enfiar a camisola verde na cabeça e ela se

grudava ao corpo como se tivesse sido feita sob medida.

— Que viagem é essa de que estão falando? Simão

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Pedro readquiriu o seu ar de mistério.

— Pelo que ouvi será muito longa. Doze horas ou

mais de duração.

— Que coisa esquisita. Será que nós já morremos,

Simão Pedro?

Ele sorriu com bom humor.

— Nunca vi pergunta mais sem nexo. Não há ne-

cessidade de vestir todo mundo de amarelo e você de ver-

de para morrer. Vamos, estão chamando.

Segurou no braço de Pedro e descobriu que a ma-

greza da doença desaparecera.

— Está admirado? Passe a mão no seu joelho e ve-

rá uma diferença...

— Eu queria lhe falar sobre isso, mas fiquei teme-

roso. Nem sequer sinto qualquer dor.

— É assim mesmo. Todos nós estamos anestesia-

dos. Por isso ficamos com a ilusão de que não somos mais

doentes.

Judas foi perdendo a alegria. Então tudo era fictí-

cio? Não conseguira escapar da sua condenação.

— Não se impressione. Veja Tiago Maior. No ín-

timo ele tem a sensação de que está caminhando com as

pernas completamente sãs. Mas é tudo um estado de espí-

rito. Na realidade, vai ser empurrado naquela cadeira de

rodas até o ônibus.

Dr. Tiago entrou na enfermaria. Ele encontrava-se

translúcido. Sua túnica era de uma alvura tão transparente

que doía nos olhos. Seus olhos eram o próprio céu. Nem

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sequer parecia caminhar e sim deslizar sobre os ladrilhos.

Bateu palmas sem se irritar.

— Vamos, meus filhinhos, precisamos todos partir.

Urge que saiamos dentro de um segundo.

 saída do Portão Central, Madalena fornecia um

copo com uma substância desconhecida a cada um. A

qualquer um que se recusasse a beber apenas explicava:

“É ordem médica. Ajudará na viagem”

A droga conseguia um efeito imediato porque to-

dos eles pareciam inflados como balões de borracha, e o

corpo saltava mais quando tocava ao chão e se locomovia

em pulos desequilibrados e grotescos. — Para o ônibus.

Um rapaz sem rosto, mas fardado de azul-claro, in-

dicava os lugares.

— Aqueles doze para os doentes. Mais dois para o

médico e a enfermeira.

O que mais chamava atenção no ônibus era o seu

extraordinário colorido e decoração. Todo pintado de ro-

xo, com a porta e as janelas em cor de abóbora. Grudados

em sua pintura, existiam centenas de pintinhos novos, to-

dos amarelos e fazendo uma piadeira desconsolada. A ca-

da palmo existia um daqueles pintinhos.

O rapaz fardado de azul explicou feliz.

— Não se impressionem. Eles não alcançam preço

bom no mercado. Então nos são oferecidos para decorar

os ônibus da Grande Viagem. Não se preocupem que não

sofrerão. Quando o veículo adquirir uma certa velocidade

eles naturalmente serão descolados e atirados entre as ra-

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magens das árvores. Morrerão docemente.

Não se podia negar que o ônibus oferecia um agra-

dável conforto. Os bancos tomavam a posição de cada

corpo deformado. No seu interior uma pequena luz, ape-

nas, indicava os lugares.

— Assim poderão dormir e descansar. E haverá

música para os que gostarem. Os que não apreciarem, po-

dem apertar esse pequeno botão de madre-pérola e ela

será desligada.

Na parte traseira do grande ônibus parecia haver

mais passageiros.

O rapaz de azul-claro adivinhava os pensamentos e

sua voz surgida não se sabe de que parte do corpo, porque

seu rosto não existia, continuava na explicação.

— Vêm outros de outros pavilhões. São centenas

de ônibus que chegarão de outras partes.

Contou com o indicador os lugares e ficou surpre-

so,

— Sobram dois lugares. Dr. Tiago explicou.

— Pertenciam a dois doentes que morreram on-

tem. Não houve tempo de avisar a Corte Suprema.

O rapaz não se alterou.

— Não importa, poderei colocar ali uma encomen-

da. Desceu e voltou. Na mão trazia uma enorme gaiola.

Dentro havia um grande javali de presas retorcidas

muito brancas. Os olhos, apesar de rubros, não indiciavam

agressividade. Logo em seguida outra gaiola com outro

javali nas mesmas condições tomou o lugar vago. Os bi-

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chos bocejaram e logo se acomodaram.

— Eles dormirão o tempo todo. Não causarão o

menor incômodo. A não ser que resolvam urinar na gaio-

la. Aí sim, pois a urina fede insuportavelmente.

— Tudo pronto.

— Tudo.

O ônibus colocou o motor em ponto de marcha. O

rapaz de azul-claro ligou todas as luzes. Tudo se transfor-

mou como em um grande palco iluminado.

— Vou descerrar a cortina rósea para vocês conhe-

cerem o nosso melhor motorista. O mais habilidoso de

nossa frota.

Puxou a cortina e para espanto de todos o Demô-

nio sentava-se à direção do veículo. Suas mãos adquiriam

enormes proporções e se encontravam aprisionadas ao

volante por algemas de cristal. Não podia virar a cabeça,

mas pelo espelho via-se seu rosto preocupado, com dois

chifres de ouro polido reverberando até com o seu respi-

rar mecânico.

Como os outros, vestia-se com uma túnica negra de

seda que modelava o seu torso musculoso.

Antes que se desfizessem do assombro a luz foi

desligada e a semi-escuridão reinou no ambiente.

— Pronto, meus queridos. Ele é o maior de todos

os condenados. Será o Primeiro Vector do Sexo e da Cas-

tração.

O ônibus, voava pelas ruas a fora. A baía do Bota-

fogo dormia plácida com o colar de luzes. Judas Iscariotes

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sorriu comentando com Simão Pedro.

— Não há dúvida que a viagem tem um sortilégio,

um extraordinário fascínio...mas faz bem. Como é linda a

cidade adormecida.

Depois mudaram de rumo e se dirigiram para o

Largo do Machado. Pegaram a Rua das Laranjeiras.

— Estamos indo para o lado de Águas-Férreas.

— Devemos estar. Eu não conheço o Rio direito.

Era tão macio o rodar do ônibus que ele parecia

deslizar e não tocar no solo. Para a sua marcha inexistia os

costumeiros buracos da rua.

— Estamos subindo. Vamos passando as Paineiras.

Deus do céu. Já estamos chegando ao Corcovado. É tudo

tão desconcertante e veloz.

— Você sabe onde nós vamos? Fitou o desalento

de Pedro.

— Não sei. E você?

Simão Pedro deu de ombros indiferentemente.

Judas Iscariotes encontrava-se fascinado. O ônibus

passava pelas costas da estátua do Cristo do Corcovado e

subia por uma estrada que nem sabia existir. Ficou em

dúvida. Só uma vez visitara o local. Mas guardara a im-

pressão de que a estrada finalizava ali. Entretanto o ônibus

continuava a sua marcha.

— Olhe, Simão Pedro, como é lindo o Rio das altu-

ras. Se você nunca viajou de avião, pode estar tendo a

mesma impressão agora. A Urca, Copacabana, Ipanema.

Simão Pedro debruçou-se na janela do amigo e

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também encantou-se com o deslumbramento da paisa-

gem. Quando retornou à antiga posição, encontrou o ra-

paz de azul-claro a seu lado.

— Por favor, viajem em silêncio. Os outros são

mais fracos e precisam dormir o tempo todo. Terão que

reunir o resto de suas forças para o Grande Momento.

Judas adiantou-se no banco.

— Só uma pergunta.

— Mas fale baixo.

— Para onde estamos indo?

— Não posso lhe adiantar muito. Fui instruído a-

penas e essa é a minha primeira viagem. Ouvi falar de um

Grande Juízo. De uma coisa semelhante a um Pré-

Armajedom. Agora, prossiga a sua viagem em silêncio,

como os outros.

Simão Pedro encostou os lábios nos ouvidos de Ju-

das Iscar i o tes.

— O que é esse negócio?

— Não sei direito. Parece que é qualquer coisa rela-

tiva ao Juízo Final dos Demônios. Tudo é muito confuso.

Agora a viagem adquiria uma expressão de grande

monotonia. As horas deveriam passar indiferentes, mas o

dia não aparecia. Tornava-se uma jornada em contínua

treva. Os olhos também procuravam o sono. Lutava para

não dormir e acompanhar os faróis do carro iluminando a

borda da estreita e confortável estrada. Quando uma es-

pessa bruma dourada não encobria as árvores, seus galhos

apresentavam flores maravilhosas. Flores gigantescas co-

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mo nunca vira e de todos os matizes.

Cansou-se de preliar contra o cansaço e sonolência

que desabavam sobre as pálpebras e dormiu profunda-

mente.

* * *

Grandes fachos iluminavam uma imensa cratera.

No fundo, lavas do vulcão eram controladas e remexidas

por grandes colheres de ferro.

Depois, um guindaste de proporções gigantescas

depositou uma grande vasilha de ferro. Todo aquele servi-

ço realizava-se por homens igualmente sem rosto, como o

rapaz do ônibus. Diferenciavam-se somente por usarem

calças colantes vermelhas e o torso completamente nu. Os

músculos todos remexiam-se iluminados pelas labaredas e

fagulhas que por vezes escapavam da larva incandescente.

Depois colocaram várias espécies de calhas que

desciam da montanha e tombavam sobre a boca do caldei-

rão.

Um microfone invisível anunciou uma ordem.

— Dentro em breve os réprobos e os degenerados

receberão a Injectio Super Excitante e preparar-se-ão para

a operação Ego-Castracional. É bom saberem todos que

na-, da disso é doloroso. Outrossim, ninguém terá capaci-

dade de prazer. Tudo não passa de um método esterilizan-

te e preventivo.

Outros ônibus já se encontravam parados à beira da

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cratera. E os médicos vestidos de branco como o Dr. Tia-

go, todos armados de archotes meio incandescentes, or-

ganizavam os doentes, os réprobos nas proximidades das

grandes calhas. Estas, por sua vez, nas extremidades ti-

nham o formato de uma grande pia luminosa. Alguma

coisa seria derramada na pia para que, escorrendo pela

calha, caísse no centro do grande caldeirão.

Trouxeram primeiro, e eram outros homens sem

rosto e também de calças vermelhas, as gaiolas das feras.

Se o ônibus do Dr. Tiago transportara dois javalis, os ou-

tros variavam os espécimens. Eram lobos de dentuças

ameaçadoras, leões, tigres e jacarés de olhos coruscantes.

Arrastaram os outros homens de chifres, acorren-

tados como o Demônio. Todos ficaram dispostos juntos

das pias. Todos colocados no meio das suas feras escolhi-

das. Judas e Simão Pedro apreciavam aturdidos a cena in-

comum. Tinham medo de falar. Mas sentiram certa pieda-

de, quando empurraram o Demônio e o agrilhoaram ao

cano da pia. Depois os ferozes javalis rodearam os seus

flancos. A uma distância que, a qualquer movimento de

desobediência, poderiam fincar as presas em suas carnes.

O microfone voltou a funcionar e o eco da monta-

nha repetia as ordens de uma maneira macabra. Ninguém

duvidaria que aquela voz também não fosse aproveitada

em outras crateras circunvizinhas, ocultas aos olhos devi-

do à escuridão da noite.

— Atenção, senhores doutores, é necessário a apli-

cação do Primus NOX nos réprobos. Rogamos que tudo

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se realize ao mesmo tempo para que não haja atraso. Pois

que novas caravanas estão no Vale Termopilário, aguar-

dando a sua vez.

Os médicos retiraram a batina negra dos demônios

e esses babaram de horror. Os corpos então completa-

mente nus deixavam escorrer um suor opalescente.

Tudo era feito em silêncio profundo..

Seringas com agulhas compridas eram encostadas

nas nádegas dos demônios. Deveria doer. Mas eles temi-

am mexer-se para não se aproximarem das feras guardiãs.

Todos os demônios em um segundo se encontra-

ram excitados, ostentando os membros rijos e tumefactos.

A voz anunciou-se novamente.

— Queiram agir os senhores Carrascos Maniqueís-

tas.

Judas Iscariotes levou a mão aos lábios. Aqueles e-

ram os carrascos? Crianças louras como anjos, com os

cabelos tocando quase os calcanhares, aproximavam-se

sorrindo, portando nas mãos navalhas afiadíssimas.

Judas Iscariotes quis premir os olhos e não conse-

guiu. Simão Pedro entendeu o seu gesto.

—É inútil. Eu também tentei e não consegui. Te-

remos de acompanhar tudo de olhos bem abertos.

Os Demônios apenas retorciam as expressões dos

rostos compreendendo a extensão do ato. Não por uma

dor física e sim pelo temor moral.

Os anjinhos louros, com uma habilidade inesperada

e sempre conservando os sorrisos inocentes, de um só

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golpe deceparam os sexos de todos os demônios.

Não houve um só gemido. Apenas os olhos aumen-

taram de desespero e intensidade.

Os sexos cortados rolaram, inundando tudo de

sangue. Eles foram boiando no próprio vermelho à procu-

ra das calhas condutoras.

— Podem soltar as mãos dos Réprobos.

Mesmo libertos eles continuavam aprisionados ao

furor das suas feras.

— Agora é a vez dos degenerados.

Dr. Tiago aproximou-se dos seus doentes. Separou

Simão Pedro de Judas Iscariotes.

— Você não. Você é quase um dos nossos. Pode

usar da prioridade que lhe concerne.

Todos os doentes formavam filas junto às pias en-

sangüentadas. Os demônios num inútil gesto de pudicícia

colocavam as mãos onde outrora existira o sexo.

Dr. Tiago instruía Madalena quanto aos seus en-

fermos. Perto do médico ela se metamorfoseava numa

enfermeira cordata e eficiente.

O microfone atuou com mais força como se exigis-

se mais presteza e ação.

— As Senhoras enfermeiras queiram despir os De-

generados.

Os botões de todas as batinas amarelas foram aos

poucos desabotoados pelas mãos agora tão finas e elegan-

tes de Madalena. Todos haviam recebido a influência do

remédio anunciado. O mais impressionante era Simão Pe-

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dro que parecia tão desesperado como quando era caçado

para as aulas de Neurologia aplicada.

Judas Iscariotes tremia todo. Certamente chamari-

am de novo os tais Carrascos Maniqueístas para decepar

os sexos dos chamados Degenerados. Se pudesse fugir a

tudo aquilo, sumir, evaporar-se ou, pelo menos, fechar os

olhos ou ocultar o rosto...

A voz que soou ao microfone era outra. Uma voz

de tal mansuetude que comovia.

— Meus filhos, vós sois os Degenerados. Não por

culpa vossa e sim por uma determinação dos Destinos.

Sois os mais condenados de todos. De vós não poderá

existir a perpetuação da espécie. Visto que os vossos des-

cendentes seriam gerados com as vossas taras muito mais

ampliadas. É triste vos dizer tudo isto. Mas quando che-

gardes ao limite da Grande Passagem, ser-vos-á dado um

prêmio de esquecimento maior. Continuareis completos

dentro da vossa imperfeição outorgada. Apenas perdereis

em um segundo as esperanças de reprodução de novas

vidas. Nada tenho mais a vos falar.

Calou-se aquele discurso. Entretanto o microfone

foi reocupado pela voz anterior.

— Demônios impuros e miseráveis, cumpri vossa

humilhante tarefa.

E os enfermos foram confiados aos demônios.

Com as mãos sujas de sangue, eles começaram a mastur-

bar a todos os doentes. Tudo se realizando numa opera-

ção mecânica, sem prazer e sem gozo. Cada um deixava

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escapar um jorro comprido e violento de sêmen, que pro-

curava o caminho da pia e das calhas. Todos eram manu-

seados muitas vezes, enquanto durasse aquela ereção mo-

tivada pelo estimulante afrodisiaco. Quando nada mais

havia dentro do sexo ou dentro das forças do corpo, o

doente desmaiava e era substituído.

Começou então a se formar uma massa oleosa nas

calhas, a pingar grossamente como gotas opacas nos bor-

dos do caldeirão. E quando a torrente atingiu o fundo fer-

vente, apareceu uma música estranhíssima, toda feita de

gemidos e de lamentações. Eram as futuras vidas que se

extinguiam ao calor, muito antes de serem geradas.

Tão horripilante que num arranco Judas Iscariotes

conseguiu safar-se do seu lugar e atingir o interior do ôni-

bus. Sentou-se angustiado em sua poltrona. Pensava poder

fechar os olhos e esquecer. Dormir desgraçadamente até a

morte dos séculos.

— Que coisa, não, Raul?

Estremeceu porque apercebeu-se que Lúcio se en-

contrava sentado ao lado. Suspirou doridamente.

— Felizmente, escapei a tanta humilhação.

— Quem disse?

Olhou os enigmáticos olhos verdes de Lúcio. Agora

sabia que alguma coisa de mais trágico e repugnante lhe

seria reservado.

— O que farão comigo, Lúcio?

— Pouca coisa. Tudo muito rapidamente. Olhe pa-

ra o fundo do ônibus.

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O moço sem rosto e de azul-claro retirara todas as

cadeiras e as colocara em formato de círculo. Com os de-

dos magicamente virou todas as luzes para o centro da-

quele círculo. O mais curioso era colocar um velho micro-

fone num dos cantos como se esperasse alguém para can-

tar. Firmou a memória querendo descobrir onde conhece-

ra aquele microfone antes. Aquele velho microfone.

— Por que tudo isso, Lúcio?

— Ficaram com pena de você. Bobagem, não?

Tanto fazia esterilizarem você, como não. Logo, você es-

tará longe de todos esses problemas. Assim como eu.

Lúcio sorriu.

— Tiveram pena. Mas você terá que passar por al-

go semelhante. Deram-lhe a “prioridade”. Aquilo que vo-

cê sempre condenava em mim. Aquilo que meu dinheiro

sempre conseguia, só em estalar os dedos. Vou mudar de

assunto. Você não se recordou de nada ao ver todos aque-

les fachos, aqueles archotes, iluminando a noite? Garanto

que se lembrou.

— Sim. Das noites da selva. Das dormidas na praia

com o frio do Verão que o bom Deus nos mandava. Com

o ventinho gelado que espantava para longe as muriçocas

e a gente dormia o cansaço de um dia bem remado em

santa paz. As fogueiras ficavam sendo reacendidas a noite

inteira, ou por mim ou por algum índio companheiro e

amigo, para espantar as feras. É isso?

— Exatamente. Sabe por que pergunto? Porque sua

expressão ao contemplar esses plebeus condenados de

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pinto duro foi de tal espanto, tal espanto, que eu diria ser

a mesma quando me contemplou pela primeira vez. Sim,

pela primeira vez, sentado à sua frente.

Lúcio riu.

— E você pensava que tudo tinha acabado, morri-

do, esquecido. Esquecera-se que a semente do remorso

quando germina não morre mais. Você pode cortá-la, apa-

rá-la, pisoteá-la... mas ela renasce com fênix, ressurgindo

das cinzas.

— Nós já falamos disso. Por que justamente nesse

momento relembrar?

— Todos os momentos pertencem totalmente a

todos os momentos. Isso na sua devida importância. To-

dos os seus momentos me foram significativamente im-

portantes, Raul.

— Por que me lembrar agora? Justamente agora?

— Existe uma crença boba entre os humanos. Uma

crença que funciona bastante bem, creia-me. Toda pessoa,

ao sentir que vai transpor a grande Fronteira, revê a vida

rapidamente. Não digo toda a vida, porque a vida também

é formada de uma grande dose de bobagem e de inutilida-

des. E eu não quero perder o seu “flashback” por nada.

Principalmente no que se refere a nós dois. E justo?

Ficou sem dar uma resposta.

— Vou insistir por um segundo. Seu tempo é pou-

quíssimo, Raul. Tão pouco que os remédios, os sedativos,

trarão a sua memória toda entrecortada. Mas eu estarei

junto para que não perca nada do que me interessa. É um

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direito que me assiste. Ou você pensa que, eliminando a

minha vida, se apossou de todos os meus direitos?

Deu uma risadinha cruel e maléfica.

— Mas no momento, o momento é outro. E será

divertidíssimo. Olhe.

Madalena entrara no ônibus e atravessando o resto

que sobrara da fila de cadeiras, passou indiferente por eles.

Foi-se postar em frente do microfone.

— Vamos para perto. Ela precisa de público para

aplaudi-la.

Sentaram-se perto e Madalena parecia ignorá-los.

Primeiro, retirou o chapéu rubro e atirou-o no

chão. Deixou à mostra os cabelos negros e luzidios, bem

amarrados no coque. Em seguida, como se recebesse or-

dens ocultas, puxou as luvas pelos dedos.

— Eu conheço aquele microfone.

— E aquelas mãos?

— Parece que sim. São lindíssimas. Madalena não

possui mãos daquele jeito.

— Quem disse que ela é Madalena?

Os dedos longos foram entreabrindo a veste ver-

melha e esta escorregando pelo corpo deitou-se no chão.

Um vestido negro de cetim ou seda apertavam as formas

enxundiosas da mulher.

— As mãos não são. Mas essa mulher, pelancuda e

gorda, ainda é Madalena.

— Por todos os demônios do inferno. Você é tei-

moso. Espere e serão alijadas suas teimas.

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Uma orquestra invisível começou a executar a in-

trodução de uma música que tanto o emocionara no pas-

sado. A mulher elevou os grandes olhos negros para o

céu, onde uma pintura forte tentava encobrir as centenas

de rugas que os empapuçavam, e cantou:

“Que vais fazer, Mandarim, com esse sorriso cruel?

Ele vai se esquecer de mim, soltando papagaios de papel”

“Foi ele, que após a dança, beijou-me as trancas, e

jurou paixão... Oh! Esse chin prazenteiro foi o primeiro na

profissão”.

— Gostou? Pois aplauda. Ela precisa disso. O ves-

tígio dela necessita da nossa ovação. O que custa pois?

Os olhos de Judas Iscariotes estavam cheios d’água.

O peito magro se oprimia em desolação.

— Viu que não era Madalena nenhuma? Estou

brincando. Ivonete e Madalena são a mesma pessoa.

— Não pode ser.

— Pode sim. Você não viu que na enfermaria ela

nunca se aproximava diretamente da sua cama, diretamen-

te dos seus olhos?

— Não creio. Ivonete tinha um rosto de Madona.

Só as mãos são uma tênue recordação dela.

— Madona! Que romântico! Uma puta como todas

as outras. Uma puta que a noite desfigura mais depressa

que qualquer outra mulher. Ou vai me dizer que também

não sabe disso? Que uma prostituta gasta perna, seio,

bunda, braços, rosto, com uma rapidez incrível? Mais do

que duzentas mães que gerassem doze filhos numa vida?

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Você é gozado. Pra umas coisas tem uma sutileza de anjo.

Esperou que a orquestra desse os finais da música e

chamou com voz imperiosa.

— Ivonete!

— Chamou-me, querido?

— Eu lhe falei de um amigo que estava louco para

dormir com você? Pois aqui ele está.

— Então vou lá para as cadeiras. Tirarei a roupa li-

geiro, porque logo precisarei me preparar para trazer os

Degenerados de volta.

Deu um muxoxo debochado.

— Não sei porque em vez daquela... — fez um ges-

to indecente com a mão — não jogaram aqueles imundos

dentro do próprio caldeirão!

Saiu rebolando as velhas nádegas para o fundo do

ônibus.

—Você mentiu, Lúcio. Eu uma vez lhe disse que

nunca dormiria com ela. Você falou-lhe o contrário.

— Não há alternativa. Ou você prefere ser mastur-

bado como os outros lá nas pias? A sua prioridade é essa.

Gastar-se nas entranhas de Ivonete. Depois você não mais

terá forças na vida para usar outra mulher.

Bateu nos ombros desanimados de Raul.

— Ora vamos, meu querido. Não deve humilhá-la

não Ela não tem idéia de que envelheceu assim. A cretina

julga-se bonita e pensa que ainda canta como antigamente.

Você bem que ouviu sua voz roufenha de ganso esganiça-

do... Vamos lá. Eu o ajudarei a despir-se...

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Obedecia como um autômato. Lúcio o empurrava

para a mulher nua, de coxas pelancudas entreabertas, mos-

trando os pêlos longos e lisos a deslizarem sobre as per-

nas. Um miramacho não seria tão hediondo.

— Vamos. Ela não tem muito carinho. Faz tempo

que ela espera por alguém que a ame e a faça estremecer

de gozo.

Sua linda batina verde de seda tombava ao chão e o

corpo nu com os ossos espetando sua magreza se arre-

messavam contra as banhas suaretitas de Ivonete.

— Ame-a, meu querido. É a sua prioridade. Eu

cantarei a canção mais linda do amor. O epitalâmio mais

lindo e mais sagrado. Cada nota saída da minha boca ex-

pedirá um perdigoto que caindo ao solo se transformará

em manjar de gusanos. Meus lindos noivos, vamos.

E Judas Iscariotes apertou o corpo fétido de Ivone-

te. As carnes amolecidas como peixe se deteriorando gru-

davam-se ao seu olfato. Agora podia jurar que Ivonete

voltava a ser Madalena. Madalena só e sem amor. Madale-

na abandonada, sem filhas e sem rádio.

Lúcio enlouquecia de prazer.

— Meus noivos lindos, antes do mais sublime, um

pouco de dança. A dança amadurece os corpos para o

amor.

Começou a cantarolar a música de um tango. Um

tango que não gostaria de escutar nem no momento da

morte: La Cumparsita.

E o ônibus foi crescendo, crescendo. A voz de Lú-

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cio adquiria proporções altíssimas. Toda a humanidade, se

tivesse um pouco de boa vontade, poderia escutar aquele

ritmo.

Madalena foi se endurecendo toda. Os membros

tomaram-se de uma algidez mórbida. Seu rosto gelava-se

como a mesa da Ceia.

— Dance mais, querido. Está divino.

Sua perna intumescida pelo sarcoma tentava arras-

tar a mulher naquele baile de fantasmas. Madalena estava

morta. Madalena ou Ivonete dançava morta em seus bra-

ços exatamente igual como dançara pela primeira vez no

trote dos calouros.

Só podia ter sido a mão de Deus que se apiedara

dele e o acordara daquele pesadelo.

Diante dos seus olhos, Dr. Tiago sorria. Dr. Barret-

to perguntava-lhe com mansuetude.

— Está melhor? Vou mandar que lhe dêem um

pouco de leite gelado. É muito bom para o estômago e

para desintoxicar.

Afastaram-se tão amigos.

Simão Pedro substitui-os à frente de sua cama. Tu-

do voltara a ser como antes. Voltara daquela viagem terrí-

vel. A paisagem da enfermaria continuava a mesma.

— Que dia é hoje, Simão Pedro?

— Hoje é a manhã de mais uma sexta-feira. Recor-

dou-se das palavras de Lúcio que se gravavam em fogo

em sua memória.

— Você terá pouco tempo para lembrar-se e eu

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não quero perder os momentos mais importantes. Não

seriam bem aquelas palavras. Mas Lúcio lhe dissera pala-

vras similares...

Sorriu enfraquecido para Simão Pedro. Sem querer

ele encolhera três dedos na mão direita. Encolhera suas

garras finas e aduncas. Três. Três dias. Três dias para que

pudesse andar com as duas pernas.

Simão Pedro passou a mão sobre o seu peito num

gesto que arranhava docemente.

— Você dormiu tanto e tão calmo. Desde ontem.

Dr. Tiago nem deixou que o acordassem para ver o dia de

visitas.

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CAPÍTULO XV

A Febre da Solidão

Não seria melhor se em vez daquela sonolência contínua

que lhe produzia uma tibieza ímpar, deixassem que lhe

voltassem todas as dores? E por que não? A dor absoluta,

insuportável talvez criasse em seu íntimo uma vontade de

que cortassem logo a sua perna. Então sentia-se naquele

dilema. Já? Ainda não. Dormia. Abria os olhos. Faltava

muito, Simão Pedro? Quem respondia era Lúcio.

— Ande depressa que o seu tempo é mínimo.

“Ande depressa”. Como andar depressa? Lúcio

continuava o maior de todos os gozadores que conhecera.

Ele avisava-o que devia segurar, morder o tempo entre os

dentes e usava uma expressão contrária.

Sempre deixavam alguma coisa escorrendo em suas

veias. A frouxidão nascia daquele líquido se infiltrando em

suas veias. Sorriu desgraçadamente. Sentia-se o próprio

caldeirão dos degenerados. Aquela borracha era a calha

condutora dos espermas, mas a febre da sua angústia não

fazia ferver nada, nem produzir salmos elegíacos.

— De que está rindo? Sonhando com coisas agra-

dáveis? Descerrou os olhos e deu com a figura simpática

do Dr.

Barretto junto à sua cabeceira. Sua mão apalpava-

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lhe o pulso.

— Não foi nada. Mas você não pode me enganar.

Quero saber de algo. Ê essencial para mim.

— Vamos ver lá, o que é?

— Quanto tempo, Barretto?

— Quanto tempo de que tempo?

— Você sabe o que pergunto. Não brinque, por fa-

vor.

— Quer saber quantos dias faltam para a operação?

— Não. Isso, eu sei. Não perdi por completo essa

noção semântica de meu enfraquecimento e da dor. E não

estou delirando ainda.

Dr. Barretto deu um assobio com simpatia.

— Puxa! Está mais lúcido do que eu. Tomou uma

atitude séria.

— Afinal que quer que realmente lhe diga? Judas

Iscariotes sorriu um tanto taciturno.

— Olhe, Barretto, eu sei que nessa profissão você

está acostumado a ver gente bater as botas todas as ho-

ras... Sei que os médicos ficam calejados por dentro e por

fora. Faz de conta que eu sou apenas mais um.

Dr. Barretto meneou a cabeça, comprimindo os lá-

bios.

— Não julgue com tanta justeza os sentimentos de

um médico. Ninguém que eu conheça se conforma em

perder um doente. A gente finge, mas a sensação da últi-

ma perda é semelhante à primeira. Isso nos dá a noção

exata da nossa impotência e fraqueza. Talvez eu nunca

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desse um bom clínico ou cirurgião. Por isso me dediquei

mais à Patologia.

Foi Judas Iscariotes quem sorriu com vontade.

— Pare com essa litania. Porra! Eu só quero saber

se vou demorar muito ou pouco, depois que cortarem a

minha perna.

— Ninguém sabe. Espero que façam um tratamen-

to de cobalto e você pode muito bem se recuperar. Quem

sabe? Eu espero. Quero vê-lo ainda forte. Ainda vamos

caminhar bastante por aí...

— É me fazer de besta mesmo. Caminhar... Judas

Iscariotes sentiu-se jocoso como há muito não se sentia.

— Barretto, você ainda é muito católico?

— Por que mudar na minha idade?

— Ê amigo do Papa? Se for, você conseguirá que

eu ande mesmo um pouco.

— Você sempre maluco. Que tem o Papa a ver

com todo esse mingau?

— Simples. Com jeito você lhe pede a Sédia Gesta-

tória... aí sim. Eu poderei andar por aí sem dificuldade ne-

nhuma.

Barretto carinhosamente passou a mão em seus ca-

belos

— Malucão! Mas eu prefiro vê-lo como antigamen-

te, soltando palavrões e irreverências. Agora posso ir?

Preciso dar o resultado de uns exames. Mais tarde estarei

dando um pulinho até cá.

Saiu com seu uniforme impecavelmente branco.

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Desapareceu na porta da Ceia.

Judas Iscariotes recolheu-se ao ventre dos seus

pensamentos. A vida dispersa. A vida une. Pode ser hoje,

pode. ser amanhã. Talvez espere muitos anos, mas o que

ela resolve, realiza. Nem sabiá precisar quanto tempo fazia

que deixara a medicina. Mas no ano anterior. Talvez nem

fizesse um ano. Talvez a temporada de uma chuva e o

começo de um verão na selva, se tanto. Viera ao Rio, de-

pois daquelas infindáveis viagens de trem, pelo interior de

São Paulo, Triângulo Mineiro e Goiás. Depois daquelas

cortações de rio e selva, ou por canoas, ou em caminhão,

ou mesmo em lombo de cavalo xucro, viera ao Rio buscar

um pagamento para o pessoal da fazenda. O antigo porta-

dor adoecera e ele lá naquelas brenhas era o que mais co-

nhecia uma cidade como o Rio. Teria que perder no mí-

nimo três santos dias. Até que preparassem toda aquela

papelada e somassem na firma o dinheiro reclamado. Da-

va certo prazer depois de tanto tempo rever aquela cidade.

O Rio era adorável. Os verdes bondes sempre vazios,

sempre oferecendo lugares. Claro que os bondes operários

vinham sempre apinhados. Não era novidade nenhuma.

Uma manhã resolveu tomar um bonde qualquer na Gale-

ria Cruzeiro. Escolheu um. Praia Vermelha. Tanto podia

ser aquele como Ipanema, Leme ou Jockey-Club. Mas o

que surgira à sua frente com toda a simpatia fora aquele:

Praia Vermelha. Que bom. Reveria um lado do Rio que

não via ainda há mais tempo. Catete. Largo do Machado.

Senador Vergueiro. Botafogo. Urca. A Urca sim. O seu

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lindo casino, sua pequena praia, seus iates galeando sobre

o mar como se respirassem. No bonde, alguma coisa in-

cômoda também fez-se recordação. Algo que se ligava à

Medicina. Besteira. Assunto morto, enterrado. Quando o

bonde cruzou o Pavilhão Mourisco, um rapaz pediu licen-

ça e sentou-se a seu lado. Voltou a vista para o seu encan-

tamento. Mas sentiu que o rapaz o observava com inten-

sidade. Não era ninguém tão elegante nem tão mal vestido

que pudesse chamar a atenção. Sentiu que uma mão pou-

sava em sua perna, e uma voz, que vinha de longe, lhe fa-

lou amigavelmente.

— Desculpe, você não é Raul?

Nem podia negar nada. A seu lado estava Barretto,

aquele estudante sempre tão sério e tão consciencioso.

Barretto lhe sorria com grande prazer.

— Ora, ora, o mundo é pequeno. Quantas vezes

não pensei que fim levara você.

Apertaram-se as mãos.

— Que fim levou você? Por que deixou a carreira

já no meio do terceiro ano?

Disfarçou.

— Não dava praquilo. Meu destino era outro. Que-

ria urna vida que me oferecesse mais aventuras.

— E conseguiu?

— Mais ou menos.

Cortou o assunto. Desviou a conversa ligeiramente.

— Pra onde você vai?

— Ali perto. Eu não pude desistir. Formei-me e

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trabalho como chefe de um laboratório de patologia.

Barretto olhou-o longamente. Parecia intrometer-se

na barreira do tempo.

— Ninguém na Faculdade entendeu o seu desapa-

recimento. Foi total. Lembro-me que na época ligamos o

fato ao suicídio de Lúcio. Como vocês eram inseparáveis,

calculamos que tivesse sofrido um trauma muito grande.

Agora você desvendará esse mistério. Acertamos?

Raul sentia um gosto de fogo na garganta. Precisou

respirar com força para responder. Barretto, vendo-o em-

palidecer, retrucou.

— Estou brincando. Se isso lhe dói, deixe como es-

tá.

— Não, não.

Controlava-se com medo de se trair em qualquer

detalhe.

— Não tenho nada a esconder. De fato, quando

aquilo se deu, tamanho foi o meu desgosto que perdi o

entusiasmo...

— Foi terrível para todos. Lúcio tão novo, tão vivo,

tão rico. Você sabia da sua doença?

— Fui dos primeiros a tomar conhecimento.

— Deus do céu! O que você não deve ter passado.

— Nem metade do que você pensa seria o suficien-

te. Não me conformei. Não quis nem ver Lúcio pela últi-

ma vez. Nem presenciar as cerimônias fúnebres.

Barretto deu um salto de surpresa e tocou a campa-

inha do bonde.

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— Puxa. Já ia passando do ponto. Pegou na mão de

Raul com insistência.

— Por favor, venha comigo. Não diga que tem o

que fazer. Faz tanto tempo. Por favor, não me negue isso.

Vamos tomar um cafezinho no meu Laboratório.

Não possuía argumentos para contrariá-lo. Já se en-

contravam lado a lado caminhando na calçada. Segurou na

manga de Barretto.

— Só que não precisa voar. Nessas passadas eu não

poderei acompanhá-lo.

— Por quê? Algum problema com a perna? Sabe

que notei você descer do bonde com certa dificuldade?

Riram.

— O danado do olho clínico. Não é bem a perna.

Ê meu joelho direito que faz um tempinho que vem me

incomodando.

—Já viu um médico? Um especialista?

— Naqueles buracos onde estou afundado? Você

esta é doido.

Contou os detalhes do acidente na corredeira. Fin-

do o relato, um risco de preocupação marcava a testa do

medico.

— Vamos ver isso.

— Aqui na rua?

— Que é que tem? Encoste-se aqui no muro. Sus-

penda a calça até a altura do joelho.

Abaixou-se um pouco e apalpou a região.

— Dói?

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— Assim não. Na selva quando vem a friagem do

grande verão, incha um pouco e incomoda andar. Só

quando a junta esquenta, como o povo de lá diz, é que

melhoro. Ê grave?

— Não parece. Mesmo porque não sou um Clínico.

Depois de a gente tomar o cafezinho, amigo, vou telefo-

nar ao Tiago. Aquele, sim, é um dos maiores neurologistas

do mundo.

— Será que vale a pena?

— E por que não? Você não vai gastar nada. Não

custa ver.

— E se ele pedir para que eu faça um tratamento?

Agora não dá, Barretto. Tenho que voltar para o mato.

Não posso demorar mais o abandono daquela gente pobre

de lá.

— Não custa examinar. Depois vocês se decidem.

Tá?

Caminharam novamente. Dessa vez com mais cal-

ma. Como se gostassem de recuperar em breve tempo

todos os longos momentos perdidos.

— Sabe, Raul, você, até que a gente compreendeu

ter abandonado tudo. Mas os outros três...

— Que outros três?

— Eram três. Me lembro como se fosse hoje. Nun-

ca pude me esquecer dos seus rostos e dos seus nomes. O

Ferreira. O Góis e o Amílcar. Esse último era da Paraíba e

tinha um bigodão de assustar.

Raul segurou-se dentro do seu espanto. Teria que

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firmar-se para não se trair.

— Que houve com eles?

— Não soube?

—Não. Nunca mais vi ou ouvi falar de ninguém da

nossa turma.

— Aos poucos como se fossem frutas se despen-

cando, eles foram abandonando a Medicina, sem dar uma

razão plausível. Afinal, você que era muito amigo de Lú-

cio, poderá dizer. Eles eram assim tão achegados à Lúcio?

Raul sorriu, procurando tempo para responder com

lógica e firmeza.

— Talvez você ignore o que acontecia com os es-

tudantes, fora da Faculdade. Mas nós cinco éramos inse-

paráveis. Talvez realmente eu fosse o grande amigo de

Lúcio. Todas as quartas-feiras de folga e todas as tardes de

sábado a gente se reunia para jogar pôquer.

— Isso eu não sabia.

— Pode ser também que realmente eles não sentis-

sem uma verdadeira vocação.

— Também pode ser. Mas esqueçamos por ura

momento tudo isso porque estamos chegando. Dá pra

subir dois lances de escada?

— Também ainda não estou tão aleijado assim.

— Nem pensar. Que besteira.

Subiram a escadaria e ele tirou do bolso com certo

orgulho a chave do seu mundo. Tudo aquilo era seu. Lim-

po, organizado. Monte de prateleiras. Outras mesas com

microscópios de todos os tamanhos. Estantes bem dispos-

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tas com compêndios médicos. Uma mesa com telefone e

uma cadeira de rodas. Todo aquele seu mundo sonhado.

Desejado. Realizado.

Puxou uma cadeira. Sentou-se atrás da mesa. Tocou

uma campainha. Sorriu contente.

— Sabe que eu gostei mesmo de revê-lo. Não mu-

dou nada, Raul. Talvez seu rosto esteja mais bronzeado e

tenha adquirido uma seriedade de homem. Mas é o mes-

mo. Espere aí.

Na sua euforia nem esperava uma resposta ou uma

anuência. Discou o telefone e combinou com o médico

amigo se poderia aparecer. Meia hora? Tá, ótimo. Muito

obrigado. Mas é um grande amigo de infância. Ele tam-

bém andou estudando Medicina. Você vai gostar. Até já.

Obrigado.

Olhou de novo encantado. Falava com toda a sua

simplicidade, mostrava em cada traço a surpresa de encon-

trar alguém que julgara perdido para sempre na vida.

— Agora só falta chegar Rolinha. Vou encomendar

um café especial. Por um segundo pôs-se a imaginar como

seria a Rolinha. Gorda, magra, comprida, baixa...

Nem teve tempo de preocupar-se com isso, porque

a porta entreabriu-se e um rosto negríssimo, luzidio, exi-

bindo um sorriso perfeito, indagava.

— Um cafezinho, Dr. Barretto?

— O mais perfeito que puder fazer. Hoje é dia de

festa no coração.

Quando a mulher desapareceu, voltaram a falar,

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como se tivessem combinado antes, sobre Lúcio.

— Quando ele descobriu?

— Fazendo exame de saúde no CPOR. Uma man-

cha escura na espinha na região dos rins.

— Esse detalhe eu ignorava. Ele falou tudo com

você, Raul?

— Tudo. Até do medo que o levassem para um da-

queles leprosários horrendos do nordeste. Fez valer o seu

dinheiro para que não o denunciassem. Pelo que me con-

tou, prometeu que viajaria para São Paulo a fim de melhor

ser tratado e internar-se onde ninguém tivesse ouvido falar

dele. Depois, foi aquela fuga. Vivendo na escuridão da

noite. Deixou a sua casa. Procurou bairros distantes. Até

que se convenceu que no quarto andar...

— Aquele da Rua da Aurora?

— Aquele mesmo. Descobriu que estando mais

perto causaria menos surpresa.

— Ele tinha um carro muito bonito, não?

— Era o que de mais chique havia na época; uma

baratinha Cadillac. Ele também vendeu.

— Você o viu até os últimos dias?

Por que toda aquela confissão? Urgia responder tu-

do. Barretto não possuía um dedo de maldade. Não des-

confiava de nada, nem o estava acusando. Somente satis-

fazia sua mórbida curiosidade. Mentiria quantas vezes se

tornassem necessárias.

— Não. Deixei de vê-lo uns três meses antes. Ele

me implorou. E era cruel para ambos. Tanto que eu julga-

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va que ele tivesse tomado um rumo ignorado.

— Pobre. Tomou o rumo da ponte do Capibaribe.

Aquela lá longe. E esperou a noite se adiantar... O resto

nós já sabemos. Vamos esquecer.

Felizmente Rolinha entrou festiva servindo o café

saboroso. Raul sentia dificuldades em ingeri-lo. Barretto

notava seu constrangimento.

— Foi chato lembrar tudo isso. Mas eu precisava...

Notou com espanto que Raul esquecera-se do café.

— Não gosta? Ou está ruim demais.

— Ao contrário. O cheiro é delicioso. Não se as-

suste porque vou tomá-lo todo, lamber até a xícara. Mas

quando estiver na selva doida e lembrar-me dessa maravi-

lha de café, vou xingá-lo por todo o resto da eternidade.

Barretto ingeriu o último gole e comentou triste-

mente.

— Foi uma pena!

— Que é que foi uma pena?

— Sei lá. Tanta coisa. Pena você ter abandonado a

Medicina. Pena Lúcio não ter tido um pouco de paciência.

Raul sentiu-se todo arrepiado. Até a barba de um

dia doeu-lhe.

— Paciência de quê?

— De esperar um pouco.

— Que quer dizer com esperar um pouco?

— Sim. Isso mesmo. A humanidade é atacada pela

leprofobia. Dificilmente alguém escapa disso. É natural.

Uma maldição que vem da Bíblia. E hoje a gente vê que

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não é assim. Só isso.

— Você está cheio de circunlóquios. Traduza logo

o que pensa. Pelo menos confirme o que estou desconfi-

ando.

— É simples. O horror da lepra faz imaginar que

um doente afetado por essa moléstia se decomponha em

semanas. Ora, o processo leva anos para se desencadear.

Todo mundo pensa que o nariz cai de imediato, os dedos,

as orelhas... Tudo ignorância... Se ele tivesse tido paciência

de esperar... talvez estivesse curado.

— Curado.

Raul segurou-se com força para não se erguer num

impulso incontrolável.

— Sim, curado! Talvez com certas deficiências, mas

cicatrizado, são. Sem perigo de contaminar os outros.

— Verdade?

Seu rosto deveria estar branco como a parede. Bar-

retto compreendeu o seu desespero.

— Acalme-se; quando eu soube disso, fiquei mais

emocionado do que você. Pelo menos mais pálido. E eu

não era tão seu amigo.

Raul baixou as mãos, deixando-as pendentes e se-

mi-mortas entre os joelhos. Seus olhos percorriam sem

divisar os riscos do assoalho encerado.

Ouviu o barulho da cadeira giratória de Barretto se

movimentando. Depois os vidros da biblioteca se descer-

rando e um livro qualquer sendo retirado.

— Aqui está o processo. Pasmem os céus. O pro-

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cesso de cura de uma condenação Bíblica.

Folheou o livro fino e leu palavras soltas.

— Derivados da Sulfa. Qualquer composto do gru-

po S02. A Sulfona. O Promim. A cura. Dentro de um ou

dois anos tudo estará concretizado, graças a Deus. A cura.

E Lúcio não teve paciência.

Para alívio do cruel desatino de Raul o telefone ti-

lintou. O Dr. Tiago reclamava sua presença no horário

determinado.

Saíram.

Pouco tempo depois caminhava, procurando a bei-

ra-mar. Queria sorver o ar salgado para recuperar-se, ar-

mazenar vida no seu íntimo tão destroçado pelo recente

impacto.

Sentou-se no paredão, decidido a voltar para a sel-

va. Jamais colocar os pés naquele pavilhão de Neurologia.

Nunca mais enfrentar os olhos bondosos de Barretto.

Fitou o cochilar dos iates de luxo e as gaivotas

brancas riscando o azul do céu. Seus olhos encheram-se

de lágrimas. E as mil garras do remorso se alastravam no

sangue dolorido percorrendo suas veias e artérias.

Em pleno dia os olhos verdes de Lúcio vinham

surgindo do mar. Caminhavam, imantando os seus olhos,

prendendo-os à sua fascinação.

Sentiu depois que Lúcio sentara-se a seu lado e

continuava a analisar todos os traços do seu rosto. Como

se quisesse desenhar cada ângulo do seu perfil.

— Você sabia, Lúcio?

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— Como poderia saber? Eu não tive paciência,

não?

— Agora você sabe. Agora você apertará cada vez

mais o cerco.

— Certamente.

— E sobre os outros três?

— Desconfiava.

— Por que não os seguiu também? Lúcio soltou

uma risada sarcástica.

— Porque eles tomaram parte naquele plano...

Como um punhal penetrante o dedo indicador de

Lúcio penetrava fundo no seu coração.

— Eles tomaram parte naquele plano. Mas foi vo-

cê. VOCÊ. Você quem me vendeu à Morte.

* * *

João estava milagrosamente em pé defronte da sua

cama. Apenas dos braços cruzados desaparecera a Bíblia

velha e sebosa. Em seu lugar existia outra com uma linda

capa de madrepérola que adquiria tons dourados bem for-

tes conforme o seu respirar. E João lhe falava com bastan-

te calma e convicção.

— Meu filho, meu irmão. É mister que nesse transe

a alma compreenda todas as variantes da Partida. Se a vida

se realiza em pequenas etapas até que amadureça, a Morte

surge em partículas menores e mais fracas. Como se fora

um dissolver de minúsculas partículas enfraquecendo-se e

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penetrando no imo da memória. Parece difícil, mas não é.

Parece duro talvez. Quem atinge o umbral desse momen-

to deve deixar que a Resignação sobrepuje a Lógica e as

ameaças de Razão adormeçam na Paz do Nada.

Irritava-se com aquelas palavras ocas de João. Aos

outros ele costumava se manifestar tão simples, tão calmo

e tão humano. Entretanto não pensava em feri-lo. Deixá-

lo-ia prosseguir o quanto desejasse.

— Não poderei trazer para o seu Pré-Sono a músi-

ca divina de qualquer legião de anjos. Que tristeza. Eles

são tão lindos. Você tem preferência por algum?

— Sei lá. Só me recordo de Anjos e Arcanjos. João

manifestou um olhar de reprovação.

— Eles são tão lindos. Virtudes, Potestades, Que-

rubins, Serafins, Dominações... qual desses nomes soa me-

lhor para você?

Irritou-se.

— Que importa? Eles não são para mim. Você

mesmo não esclareceu isso.

Todavia, arrependeu-se da grosseria, porque João

era humilde, humilde mesmo. Citou o último porque, sen-

do o último, ficou mais gravado em sua lembrança.

— Está bem. Fico com Dominações. Resolveu dis-

sipar uma pequena dúvida.

— Diga-me, João. Quando um eleito morre ouve o

canto de todos esses anjos?

— Difícil. Uma legião para cada justo. E deve ser

muito. Todos somente para a maior grandeza do bom

Page 259: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

Deus.

— E gente como eu? O que farão comigo?

— Não muito. Mas Simão Pedro e eu choraremos

sentidamente a sua ida. Depois pediremos para ungir o

seu corpo com óleos cheirosos. Enrolaremos o corpo

morto no mais alvo e delicado síndon. E quando o leva-

rem para a sua nova casa modesta, nesse exato momento

pediremos aos céus que se possa ouvir o cantar de todos

os sabiás dos bosques.

Virou-se cansado e enxergou Simão Pedro, à cabe-

ceira, sentado no tamborete.

Gemeu abatido.

— Que horas são, Simão Pedro?

— Ainda é cedo. Você quer alguma coisa?

— Por favor, sem que o magoe, leve João para a

cama dele. Ele me cansa tanto.

Simão Pedro olhou o lugar indicado e vazio. Sorriu

triste.

— Nem foi preciso pedir. Ele está indo sozinho.

Suspirou aliviado.

— Sabe o que é, meu amigo? Ele fala difícil. Muitas

vezes não o compreendo ou ele confunde tudo. Devo ser

como aqueles apóstolos burros que não compreendiam o

Mestre, e ele criou o Pentecostes. É isso. Vou pedir a

Deus que me ilumine de poderes monergísticos para en-

tender suas prédicas.

Olhou o sorriso pobre de Simão Pedro.

— Por que está sorrindo, Simão Pedro?

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— Porque eu não entendo nada do que você está

falando.

— Não tem importância. A mínima importância.

Esqueça, sim? Eu tenho um pouco de sede.

Simão Pedro deu-lhe de beber.

— Por que será assim, eim?

— Assim o quê?

— Eu gostaria de dormir, e acordar quando tudo já

tivesse passado. Contudo, fico lutando para não dormir.

Aproveitar o pouco tempo que me resta. Por quê?

— Não sei responder essa pergunta. Eu sei de tão

pouca coisa, Judas. Talvez você não se recorde que me

batizou de Simão Pedro e que Pedro foi considerado

sempre um dos discípulos mais burros. Se ele, que falava

com o Mestre, era assim, imagine eu...

— Ele era Amado. Como você, Pedro, que todos

aqui amam. “Tu és pedra, e sobre essa pedra edificarei a

minha Igreja”. Você é a Igreja amiga de todos aqui.

Simão Pedro sentiu umedecerem-se os olhos e sua

voz mal vencia a comoção.

— Que igreja eu poderia construir com a fraqueza

das mãos e com as garras dos meus dedos? Nem um ran-

chinho de palha de pescador cujo chão seria calçado de

seixos do rio e conchinhas do mar...

Passou a mão na cabeça do rapaz e implorou terna-

mente.

— Durma. Não fale tanto. Você precisa dormir,

sim?

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* * *

Sacudiu os ombros de Judas Iscariotes com certa

violência.

— Dormir! Ora, que besteira dormir! Apegue-se à

vida. Eu avisei que seu tempo era mínimo.

Desesperado, contrapunha os olhos aos olhos ver-

des de Lúcio.

— Tenho uma coisa pra nós. Uma coisa formidá-

vel. Quer ver?

Colocou um rádio sobre a mesa de cabeceira de Ju-

das.

— Só nós dois poderemos ouvir. Não incomodará

ninguém na enfermaria. Deixe-me ver. Ah! Sim. Existe

uma tomada elétrica atrás daquele armarinho de remédio.

Vou ligar o aparelho.

Voltou a sentar-se no tamborete que nas últimas

horas pertencia a Pedro. Simão Pedro cansara-se da vigília

e deveria ter adormecido.

— Onde você arranjou isso?

— Chama essa maravilha de “isso”? É de Madale-

na. Ela mo emprestou.

— Madalena não teria dinheiro para comprar um

rádio desses.

— Está bem. Se você quer a verdade: Eu lhe dei de

presente. Talvez tenha esquecido que sempre fui muito

rico. A propósito, o que você fez com aquele dinheiro que

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lhe enviei?

Um suor gélido escorreu por sua espinha. Desgra-

çadamente respondeu.

— Você sabe. Você me seguiu sempre. Você nunca

me abandonou.

— Não é verdade. Eu só voltei mesmo, depois da-

quele desastre na corredeira. Na praia, quando a noite era

escura e cheia de estrelas. Esqueceu-se? O que você fez

com o meu dinheiro?

— Gastei-o todo. Gastei-o com ódio, fugindo.

— Fugindo de quê?

— Fugindo de você, Lúcio.

— Não. Você mente. Essas drogas todas desman-

charão os seus recalques. Você está com maior senso de

autocrítica.

Deu uma batida, fingindo-se amigo, nos ombros de

Judas.

— Você fugia realmente era de você. Mas não tem

importância. Aquele dinheiro não me faltaria para qual-

quer coisa. Só queria que não esquecesse um detalhe. Vol-

temos ao rádio. Não acha estranho Madalena amar tanto

essas novelas piegas e baratas?

— Poderemos ouvir música. Existem bons pro-

gramas de música.

— Também gostaria, se sobrasse mais tempo para

nós. Mesmo porque o rádio está viciado em novelas. Ou-

çamos.

Ligou o aparelho, torceu o dial em busca do que

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desejava.

— Conhece essas vozes?

Judas Iscariotes quase sentou-se na cama de tão as-

sustado.

— “O que faria você?

— Não sei.

— Mas estamos aqui para decidir alguma coisa.

— Mas que é duro e cruel, lá isso é...” Abaixou o

volume do rádio.

— Conhece? Ou melhor, reconhece? »

Judas fechou os olhos e quando os reabriu estava

sentado numa mesa do café Lafaiette. Amílcar preocupa-

do, torcendo os bigodões negros. Góis sem vontade de

levar o chopp aos lábios. Enquanto Ferreira, assustado,

avisava a presença do garçom se aproximando.

— Você toma alguma coisa, Raul? Como sempre,

atrasou um pouco.

Atarantado, olhou o garçom. Temia que ele pergun-

tasse o fim que teria levado Lúcio. Precipitou-se, enco-

mendando uma batida de limão, para que o garçom se a-

fastasse depressa.

Voltaram a um silêncio que precisavam interrom-

per, muito embora não o desejassem.

— Você o viu?

— Vi.

Tudo era dito em voz baixa e confidente.

— E ele?

— Está horrível. Ainda não se nota sintoma de de-

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formação. Mas parece que a doença existia antes do que

ele pensava.

— Será que ele esbanjava tanta vida para disfarçar?

Estava tentando se enganar?

— Talvez.

— E ele?

— Vive na penumbra. Num quarto andar ali na

Rua da Aurora.

— Tão perto, meu Deus.

— Escondendo-se muito longe, talvez chamasse

mais a atenção sobre ele. As maçãs do rosto parecem um

pouco deformadas como querendo anunciar para breve os

sintomas do leproma. Mesmo assim, ele deixou crescer os

cabelos como um Cristo. Sempre deixa que eles caiam so-

bre o rosto. Evita a luz e seu quarto vive numa penumbra

doentia.

— E por lá ninguém desconfia?

— Sabe-se lá o que ele contou para os proprietá-

rios. Talvez um homem com um terrível desgosto. Um

homem que dorme de dia. Sai à noite para se embebedar.

Sei lá...

— Infelizmente acabarão descobrindo.

— Todos nós já pensamos nisso.

Resolveram confessar-se mutuamente. E aquela

pergunta já tinha sido formulada muitas vezes, ou em con-

junto, ou na solidão dos quatro.

— O que você faria se fosse com você? Dessa vez

temos de ser sinceros o mais possível. Você, Amílcar?

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— Talvez fugisse para o sul. Talvez me entregasse.

— Acabaria num leprosário? Engoliu em seco, de-

sesperado.

— Sabe o que significaria? Os tratamentos da lepra

são os mais primitivos. Aplicações de óleo de Chaulmugra

no local afetado. Mil picadas sem fim. Aquilo arde como

fogo, porque é preciso desinfetar os lugares sãos que cer-

cam as feridas. E na maioria dos casos só retarda a chaga,

o apodrecimento.

Amílcar abaixou a cabeça desorientado.

— Não sei o que responder. Nem o que faria. Pas-

se a pergunta adiante.

Foi escolhido para externar a sua opinião o filósofo

Góis.

— E você?

— Eu não gostaria de apodrecer aos poucos. Ver

meus dedos, minhas orelhas, caindo aos pedaços. Sou

mais pela morte.

— Teria coragem?

— Haveria de ter pelo menos um desespero tão

grande que me levasse a esse fim.

— E você, Ferreira?

Ferreira, sem jeito e emotivo, deixava escorrer lá-

grimas pelo rosto.

— Pare com isso, homem de Deus. Ninguém pode

saber o que estamos conversando. Uma tora de homem

como você, chorando, vai despertar qualquer suspeita

mais tarde.

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— Desculpem. Não é momento de chorar, mas eu

sou besta mesmo. Perguntem ao Raul. Ele, sim, deverá

decidir melhor, porque se trata do seu maior amigo.

— Não sei o que faria em seu lugar.

Suas palavras tinham tomado uma dureza de pedra.

— Não sei. Só não quero saber que descobriram

Lúcio e o levaram. Não desejaria por nada nesse mundo

vê-lo cair aos pedaços. Seria crueldade demais da vida.

Conhecendo-o como o conheço, ele optaria pela morte.

— Você fugiu à nossa pergunta. O que faria em seu

lugar?

— Eu me mataria. Sem nenhuma dúvida: eu me

mataria.

Lúcio desligou o rádio.

— Não se esqueceu de nada? Reconheceu todas es-

sas vozes e as resoluções que tomaram a meu respeito?

— Fez um gesto de reacionar o aparelho.

— Torna-se desnecessário, Lúcio. Não esqueci um

só detalhe.

— Então, repita a última frase.

— Sem nenhuma dúvida: eu me mataria. Lúcio to-

mou um tom cáustico e desafiante.

— Pois é. Eu me mataria. È fácil dizer. Resolver

numa mesa de bar o destino de alguém. Muito fácil. Eis

que é chegada a sua hora. Deixo a escolha a seu livre arbí-

trio. Não estou lhe entregando nas mãos o frio desumano

de um revólver. Que outra alternativa vocês me deram?

— Nós pensávamos estar praticando um bem.

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— Mas você mesmo, com sua mania de Bergson,

não podia esquecer-se de que muitas vezes a gente, prati-

cando um bem, está principiando um mal.

— Você pode descrer. Mas não queríamos vê-lo

fugindo. Sabê-lo se decompondo em vida ou procurando

cidades longe, do sul, em que os doentes do mal de Han-

sen agitavam um sino, anunciando suas presenças. Ou pe-

diam esmolas, apresentando canecas amarradas em ponta

de varas.

— Muito bem.

Lúcio tomava-se de uma violência incontrolável.

— Muito bem. Chegou o seu momento. Você está

caindo aos pedaços. Devorando-se internamente. Uma

ruína. Um escombro humano.

— Com uma pequena diferença. Uma bárbara dife-

rença. Meu mal não é transmissível.

— O meu possuía esse aspecto mas... tinha cura.

Nisso consiste a maior crueldade de vocês.

Abrandou a voz.

— Querido, vê-lo desmoronar não é a minha imen-

sa preocupação. Juro. Quero evitar essas dores terríveis

que sente. Não se iluda. Mesmo daqui a três dias — Três

dias, não; enganei-me; apenas mais dois — as dores tor-

nar-se-ão insuportáveis. Ainda que por felicidade seus a-

migos médicos o ajudem, intoxicando-o de morfina.

Judas Iscariotes sentiu o rosto lavado em lágrimas.

— Lúcio, tenho vivido com o horror presente do

meu erro. Você não ignora isso. Deixe-me morrer. Sabe-

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mos que não durarei muito. Deixe-me dormir. Eu sou um

covarde, um medroso, um cagão, como a gente classifica-

va qualquer fraco antigamente. Deixe-me dormir...

— Nesses últimos dias, enquanto tiver as duas per-

nas, não o deixarei. Não posso prometer o que não hei de

cumprir.

Os saltos dos chinelos de couro batiam no chão

perto da sua cama. Sentiu-se calmo pela sua presença. A-

inda pôde comunicar a Lúcio.

— Que bom! Madalena chegou. Ela veio buscar o

rádio de volta.

— Pois sim! Apenas veio aplicar mais uma injeção.

Bendisse na alma o cheiro azedo de Madalena, abaixando-

se sobre o seu corpo e procurando nas nádegas um lugar

menos emagrecido. Antes de acabar a massagem com ál-

cool na pele, suplicou.

— Madalena, você pode me fazer um favor? Ela riu

com desdém.

— Que outra coisa faço nesses dias e noites? Pare-

ce que virei enfermeira particular. Afinal você é a menina

dos olhos do Dr. Tiago e do Dr. Barretto. Há gente pior

do que você. Veja o infeliz do Bartolomeu. Está desapare-

cendo no meio das fezes. E eles? Nem ligam.

Depois, olhando a face cinérea de Judas Iscariotes,

recuou um pouco o seu ressentimento. Traduzia em suas

expressões estar avistando a morte no seu nariz afilado.

— O que quer?

— Você pode levar o seu rádio. Obrigado. Já escu-

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tei tudo que me interessava.

— Que rádio?

Irritava-se julgando que o desgraçado estava gozan-

do a história fracassada do rádio.

— Ele está na mesinha de cabeceira. É lindo. O rá-

dio mais lindo do mundo. Obrigado.

Por trás da cama de Judas, Simão Pedro fez um si-

nal, convencendo Madalena de que ele estava delirando.

— Está bem. Já que não precisa mais, eu o levarei.

Soltou um obrigado tíbio e apressou-se em fechar

os olhos.

* * *

— Não. Você não vai dormir. Nem pense que vai.

Lúcio o sacudia pelos ombros, tentando reanimá-lo.

— Por favor, deixe-me dormir. Deixe-me ter a im-

pressão de que estou morrendo. Não consigo mais abrir

os olhos. A injeção está fazendo efeito.

— Qual nada. Você pensa que morrer é tão fácil

assim? Não permitirei que desperdice o tão pouco que lhe

resta.

Sentia-se sacudido, mas as mãos de Lúcio pareciam

estar longe, nas léguas do infinito. Sua voz entrava em

seus ouvidos, percorria os labirintos do cérebro, parecia

patinar nas meninges. Meninges. As Meninges são três: Pia

Mater, Dura Mater e Aracnóide...

— Está bem. Você dormirá. Mas estarei dentro de

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suas lembranças como se você revivesse num redemoinho

ou na atração de uma voragem. Estou dentro de sua vida.

Tão dentro como o sangue que percorre as veias. Sonhe

aquilo que penso. Reveja aquilo que quero.

E Judas Iscariotes reviveu lembranças entrecorta-

das, cenas do seu passado na selva. Todas elas permeadas

de desconforto e distância. Uma hora, remava ao sol vivo

de quarenta e tantos graus nas águas barrentas do Rio A-

raguaia. Outra vez, sem camisa, picado de mosquito, tra-

balhava na roça do Serviço de Proteção aos índios, em São

Domingo, no Rio das Mortes. Não havia uma pausa para

um descanso ou contemplação das belezas da selva. Agora

o machado retesava os seus músculos, diminuindo, redu-

zindo toras de lenha, na Ilha do Bananal. Via-se em cima

de lombos de burros percorrendo matas. Dormindo na

rede debaixo da chuva. Quando havia uma estiagem, de-

samarravam a rede para torcê-la e tornar a esticá-la. Ape-

sar de molhada, a noite asfixiava de calor. Muriçocas e

carapanãs picavam as costas atravessando o tecido da re-

de. Onde estava agora? Nas crateras de noventa metros de

profundidade dos garimpos de cristal. Jogar a terra pelo

cabo da pá, de bancada a bancada, até atingir a superfície.

Respirava forte porque o corpo precisava sempre de ar

renovado. As bateias dançando nas mãos, e as pernas o

dia inteiro mergulhadas nas águas sujas. Procurava a sorte

que não vinha? Talvez não. Procurava sim, gastar o tempo

da vida e esquecer suas origens. O tempo marcava-lhe o

rosto e empurrava a adolescência para bem longe. O es-

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sencial era andar. Tornar a andar. Não se fixar em ne-

nhum lugar onde começasse a aparecer a curiosidade so-

bre o seu passado. Não seria demais que o julgassem um

criminoso, fugindo à consciência e à Polícia, como tantos

outros daquelas brenhas. Comportava-se bem. Não abu-

sava da bebida, nem era dado a estripulias, cabarés e bri-

gas. De noite dormia como pedra. Ou na frialdade das

areias das praias dos rios, ou nas redes armadas em acam-

pamentos ou barracões de garimpeiro. Numa viagem com

uns garimpeiros, dera-se aquele acidente que a princípio

julgara tão sem importância. Podia ouvir ainda o ritmo das

remadas do batelão tão pesado, que transportava as tralhas

dos garimpeiros. O mestre no jacumã bem que tinha re-

comendado.

— Cuidado em equilibrar o corpo. Nenhuma re-

mada em falso. A canoa tá pesada. Cuidado com a corre-

deira que é marma e brava...

De nada adiantou: O destino estava pregando uma

peça. Entre as pedras estreitas do canal ele deixara um pe-

queno tronco fincado. Foi só a embarcação triscar e des-

governar-se, tomando a descida de bubuia. No arremesso

maior da queda d’água a canoa empinou e virou de borco,

jogando as cargas pesadas sobre os homens. Não houve

ura grito de alarme ou um pedido de socorro. Todos de-

sapareceram na voragem. Foram se debatendo, jogados,

imprensados contra as pedras por vários minutos. No a-

calmar das águas, no fim do rebojo, começaram a apare-

cer, nadando. Felizmente alcançaram uma pequena praia

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do rio. Um velho, o mais velho, o dono do batelão, vendo

a canoa desaparecer destroçada na correnteza, que se tor-

nara lisa mas coberta de flocos de espuma, apenas mur-

murou entre dentes.

— Eta Tocantins danado!

Perderam tudo. Só de noite confirmaram que o bai-

ano Misael pertencia ao mundo dos finados. Era melhor

dizerem um ora pro nobis em conjunto porque o mistério

das águas do rio tinha devorado a sua alegria, a sua moci-

dade e aquela voz que vivia de cantar.

— Moço, vosmecê está mesmo maltratado.

— Devo ter quebrado a perna. Ou talvez o joelho.

E provavelmente o pé. Não sei. Nem dá pra doer. Está

tudo grosso e anestesiado. É bem provável que tenha o-

fendido um nervo. Deve ser o ciático. Combinaram uma

porção de planos.

— Perdemos tudo. Até a garrafinha que tinha os

xibius e os gramas de ouro do nosso lucro. Ela deve ter se

espatifado na corredeira.

— Pois é. A gente precisa começar tudo de novo

no começo.

Calaram-se.

— Se a gente tivesse um fosque pra fazer a fogueira

tudo seria melhorado. Porque do jeito que a tarde corre

vamos ter uma noite de frio. Sem coivara ninguém num

guenta.

Um deles se lembrou e remexeu o fundo do bolso.

Falou com alegria.

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— Escapou.

— O quê?

— Minha guimba. Se o algodão secar e a gasolina

não tiver molhado muito, é capais de fazer lume.

— Vamos ponhar ela em cima daquelas pedras

quentes na bundinha da cachoeira. Quando dá fé vai dar

milagre.

E a sorte que deu.

Organizaram uma batida na praia pra ver se havia

pelo menos ovos de gaivota porque tracajá e tartaruga a-

inda iam custar muito. Voltaram com os braços cheios do

nada. Mas havia resignação nos olhos e nos rostos. Bem

comum a caboclos acostumados à dureza da selva.

Quando estava o sol pelas quatro horas, já haviam

recolhido muita lenha seca. Toras grossas para agüentar a

noite e pedaços menores para reacender o fogo durante a

noite.

Achegaram-se do rapaz acidentado. Sentaram-se à

sua volta.

— Olhe moço, a gente combinou com muita calma

enquanto pegava a lenha.

Raul sorriu. Adivinhava o significado da reunião.

— Olhe, moço...

Mesmo assim, tornava-se duro ditar a sua sentença.

— Podem falar. Eu entendo.

— A gente ficou sem tudo como viu. É lei de ga-

rimpo: quem se machuca na selva, na selva fica.

— Eu sei.

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— Ninguém tem força nem condição para lhe car-

regar até um rancho.

— Também sei.

— O senhor não era do nosso grupo. Viajou com

nóis porque pediu.

— Eu sei e agradeço.

Aí que foi duro acabar com o resto da conversa.

— A gente vai simbora antes que a noite feche de

toda. Vamos ver se se arcança um rancho ou uma corrute-

la. Aí a gente pede socorro e o povo vem lhe buscar...

O velho mais velho cocou a cabeça totalmente

branca e despenteada.

— Eles vêm sim. Porque vão imaginar que a gente

cometeu uma morte...

Raul sorriu.

— Se não vierem, virão os urubus do céu. Também

é a lei da selva. Eu agradeço aos senhores esses dias que

deixaram que eu viajasse na sua canoa e dividiram a matu-

la comigo.

— É uma pena moço. A gente vê de longe que o

senhor é uma pessoa de muito trato.

Os outros, meio sem jeito, ergueram-se mas o ve-

lho tinha que rematar a combinação.

— Vamo deixar uma coivara bem grande acesa.

Vamo cavar um leito bem fundinho na areia da praia, pra

que de noite seu corpo tenha o calor do sol que ficou na

areia. A clareira do fogo vai toca pra longe qualquer bicho

que se aproxime. Perto do seu braço a gente deixa uns

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paus mais leve. O senhor acordando, dá pra encostar no

braseiro. Assim, se não pegar muito no sono, pode acor-

dar e se defender da noite.

Levantaram-se e começaram a preparar a grande

fogueira em respeitoso silêncio.

Terminada a operação, só o velho se abaixou e per-

guntou um pouco comovido.

—Lhe dói muito?

—Por enquanto nada.

— Que Deus e as Santa Alma do Purgatório lhe

protejam. Adeus.

Fizeram uma fila, transpuseram uma moita longa de

sarão. Depois sumiram na barreira, um de cada vez, sem

olhar pra trás.

Com a noite vieram os mosquitos das primeiras ho-

ras. Depois partiram com o frio. O barulho da corredeira

ampliava-se porque a noite era quase silenciosa. A roupa,

resumida numa calça e numa camisa, estava seca e engros-

sada pela farinha da areia, ajudando contra o frio. As laba-

redas cresciam enormes e quase retas porque não havia

vento. Isso parecia ajudá-lo. A lenha seria economizada, e

o cheiro do seu corpo não seria propagado, aguçando

mais a curiosidade das feras.

Bastava que não dormisse pesado. Assim arremes-

saria um pedaço de madeira ao fogo, reavivando-o. Sua

salvação poderia depender da luta contra a sonolência e

uma espécie de febre que lhe causava um princípio de tor-

por.

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Quando deu fé, a noite era toda uma imensidão de

estrelas. A fogueira agigantava-se na escuridão e alguns

animais gritavam na selva, irritados e amedrontados com o

clarão.

De repente o coração gelou no peito. Se não esti-

vesse delirando, diria ouvir passos se aproximando. Não.

Não se equivocara. Alguém riscava de leve as areias. Po-

deria ser uma fera, um cristão, morador perdido naquelas

paragens, ou um índio curioso procurando alguma parti-

lha.

— Sou eu.

Aquela voz rebentava em estilhaços todo o seu me-

do e angústia. Estourava dos espaços, do inferno, da soli-

dão. Tentou erguer-se nos cotovelos.

— Não. Não faça movimentos. Não desperte ainda

a dor, porque, não se iluda, ela virá... e como.

No refulgir da fogueira, os olhos de Lúcio estavam

mais verdes do que toda a selva depois de uma grande

chuvarada.

Misteriosamente apanhou um pedaço de fogo e ati-

çou o braseiro da fogueira.

— Não quero que você “morra” de frio, meu que-

rido. Olhou o céu cheio de estrelas.

— A grande Ursa já adormeceu. Escorpião reina

soberano. Que beleza o céu de Deus, não?

Todas as frases de Lúcio possuíam um terrível i-

mantismo e duplo sentido.

— Foi uma fatalidade. Vocês perderam tudo, não?

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Uma fatalidade. Tenho a impressão de que essa anestesia

que ataca a sua perna direita é motivada simplesmente

porque você atingiu o nervo ciático. Se não me falha a

memória, antigamente estudamos isso juntos. Ciático Po-

pliteo externo. Ciático Popliteo interno. Que você acha?

Não queria responder. Continuava meio tonto e

aparvalhado. Sentia medo até. Lúcio adivinhava os seus

pensamentos.

— Asneira dizer que os mortos não fazem mal.

Não pensa assim?

Sem obter resposta Lúcio cantarolou com voz sua-

ve.

“Panela no fogo furada

Não dá pra fazer feijoada...

Panela no fogo furada

Não dá pra fazer feijoada...”

Riu de uma maneira expansiva.

— “Musguinha” besta tá aí! Era uma canção que

uma velha babá cantava pra mim.

Grudou novamente os olhos verdes de selva, de

esmeralda líquida, nos olhos medrosos de Raul.

— Ora também! Precisamos conversar muito. Co-

mo vê, estou fazendo tudo para que fique à vontade.

Assobiou, voltando a olhar as estrelas. E admirando

a sua beleza dentro da noite, continuou a conversar. Era

mais um monólogo de solidão.

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— Você não pensou muito em mim, não, querido?

Isto é, pensou que não pensou. Matou-se numa vida hostil

e bruta para tentar esquecer-me. Sabe que eu não me im-

portei em absoluto? Eu apenas aguardava um momento

importante para fazer a minha “reentrée” em sua vida.

Acertei em cheio, não?

Vendo que não receberia resposta, prosseguiu.

— Querido, você não pode continuar assim como

um bebezinho emburrado. Pense como sou seu amigo.

Não quero deixá-lo sozinho numa contingência dessas.

Que prova maior poderia dar? Melhor é ir-se habituando

comigo. Porque eu voltei. Voltei. Esse momento é a hora

mais importante da sua vida para mim. O mais importante

de todos nesses últimos anos. Por isso voltei, querido.

Levantou-se, espreguiçando-se contra o céu milio-

nário de estrelas. Falou em tom definitivo, como se tradu-

zisse seus desejos e a vontade irrefutável de Deus.

— Eu estarei com você, Raul. De hoje em diante

viverei dentro dos seus pensamentos como uma sombra

na sombra. Chegou o momento de cobrar uma dívida. E

essa dívida, querido, vai ser muito difícil de saldar...

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CAPÍTULO XVI

Noli me Tangere

— Eu dormi muito, Simão Pedro?

— Bastante, meu amigo.

— Que horas são?

— Ainda é cedo.

— Acho que não é cedo, Simão Pedro. Falta mui-

to?

— Esqueça. A tarde está fria e o verão foi embora.

— Sei. O verão foi-se embora e a guerra está para

acabar. Todo um mundo se renovando. Eu sei que a tarde

está linda. Mas a verdade, Simão Pedro, você não poderá

me negar. A que dia pertence essa tarde?

Simão Pedro chegou a apertar o peito para acalmar

o coração.

— Fale, meu amigo. Eu tenho perdido a noção de

tudo, até da dor. Não posso entretanto perder a noção da

morte. Essa tarde linda pertence a que dia?

— Ao domingo, Judas Iscariotes. Então ele soltou

um soluço constrangido.

— Ê, pois, a tarde do meu último dia.

Suspendeu o corpo fraco no colchão. A tarde des-

cia calma, penetrando nas janelas da enfermaria. Ao con-

trário dos dias quentes de verão, as moscas tinham desa-

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parecido.

— Todas as moscas já se foram, Simão Pedro.

— As comuns sim. As outras permanecem no bi-

ombo que encobre a cama de Bartolomeu.

—Já não era tempo que elas se acercassem de mim?

— Você não vai morrer. Apenas fará uma operação

amanhã. Ninguém pode garantir nada nesse mundo.

Quem sabe se meu velho coração não pode parar antes do

seu? Ninguém sabe. Só o bom Deus.

— Está bem. Está bem. Você me faria mais um fa-

vor?

— Estou aqui para tanto.

— Não deixe que me dêem nenhuma injeção essa

tarde. Promete?

— Não sei. Não depende tanto de mim. Não seria

melhor você tornar a dormir e ignorar tudo?

— Não. Por um único motivo. Senti uma vontade

imensa. E essa vontade imensa está enchendo cada canto

de minha alma. Eu quero caminhar pela última vez e par-

ticipar da Ceia.

Uma necessidade imperiosa espicaçava morbida-

mente aquele seu desejo. Um gosto de partida na alma.

Uma sensação de auto-adeus. Seu corpo era o cais. A per-

na, o adeus. Em menino, sempre vira partir navios. Não

tinha para quem acenar um lenço branco. Mas o navio,

apitando lugubremente, achatava o peito de mágoas des-

conhecidas.

Pedro sorriu placidamente.

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— Você quer dizer que gostaria de ir sentar-se à

mesa?

— Sim. Caminhando com minhas pernas. Mesmo

que pra isso sinta a maior de todas as dores. Caminhar

pela última vez com o corpo que a vida me proporcionou.

Você sabe de uma coisa, Simão Pedro? Quando eu estu-

dava Medicina, vi muitos doentes amputados sentirem

doer no local da parte já retirada.

— Eu acredito. Mas vamos falar de uma coisa mais

alegre.

— Onde existe coisa mais alegre por aqui? Na mi-

nha frente há outro morto: o apóstolo Tomé. Nos olhos

de quem me cerca enxergo o espectro da morte. No fun-

do dá sala o biombo mortuário de Bartolomeu com mos-

cas paralisadas em humilde expectativa.

— Está bem. Mas pense outra coisa. Pense que sua

perna não está doendo nesse momento. Feche os olhos e

repouse. Não precisa adormecer...

— Está bem, meu amigo, vou tentar obedecê-lo.

— Enquanto isso, vou começar a dar um jeito no

pessoal para que quando venha a Ceia, tudo se encontre

melhor organizado.

As sandálias de Pedro, o Pescador, bateram disrit-

madas no chão e foram se perdendo sem pressa.

Uma madorna começava a entorpecer os seus sen-

timentos. E aquilo o desanimava. Todo aquele abulismo

reaparecia depois de uma pequena reação qualquer. Os

remédios o prostravam tal qual o desejo dos médicos.

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Não queria que ele estivesse consciente até o momento

precípuo. Na realidade estava imbuído de tremenda agno-

sia. Começava a ser atacado de uma inconsciência intelec-

tual e fazia esforço para perceber as coisas como realmen-

te elas eram.

— Você está exagerando, querido.

Lúcio intrometia-se como bem entendia em seus

pensamentos. Surgia sempre numa hora mais ou menos

de paz. Nos instantes menos desejados.

— E agora?

— Nada. Por que preocupar-se? Pensei comigo.

Ele não quer perder a Ceia. Esforça-se para adormecer.

Entretanto se não dorme, o tempo rola lentamente. Estão

provando novamente a minha dedicação...

— O que pretende agora?

— Vamos.

— Não irei.

Segurou com força as grades da cama.

— Juro que dessa vez não acompanharei você.

Lúcio soltou uma gargalhada.

— Não irá? Como poderá negar-se a fazer o que

quero? Solte-se.

Judas Iscariotes agarrava-se loucamente à cama.

— Então serei forçado a obrigá-lo. Por que resistir

se suas forças são tão diminutas? Olhe.

Um saco de couro agitava-se ante os olhos de Judas

Iscariotes. O som de moedas tilintava alucinadamente.

— Tomé, querido. É todo pra você. São mais trinta

Page 283: José Mauro de Vasconcelos - A ceia.pdf

moedas. Todas de ouro. Todas reluzentes como o sol.

Vem?

Judas soltou a grade e apertou os ouvidos para fugir

àquele som martirizante. Era em vão; o entrechocar das

moedas penetrava lá dentro da cabeça, fazendo-o quase

gritar de dor.

— Pare, por favor. Esconda esse dinheiro desgra-

çado. Eu vou.

Arfava o peito, regado de suores frios.

— Eu vou...

Lúcio falou com certo triunfo.

— Não queria ter feito isso. Você me obrigou, que-

rido.

Judas ergueu-se e sentiu que Lúcio o apoiava com

as mãos fortes penetrando nas suas axilas.

— Vamos com calma. Agora pode fechar os olhos.

Obedeceu.

— Estamos na noite. Estamos na rua. Não existem

no céu as estrelas de que você tanto gosta. Mas vamos

mesmo assim.

O corpo era arrastado como num torvelinho. Não

podia diferenciar se andava ou voava.

— Hoje não posso convidá-lo a ir naquele carro de

capota aberta, se lembra? Nem havia motivo para isso. O

tempo passa e aquela baratinha, naturalmente um ferro-

velho hoje, estaria, ridícula e obsoleta.

— Onde estamos?

— Pode abrir os olhos. Reconhece?

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Tentou firmar a vista e analisar a paisagem. A pou-

ca iluminação do ambiente dificultava-lhe o intento. For-

çou as pálpebras com as costas da mão, tentando clarear

um pouco mais a visão. Somente velhos casarões se recor-

tavam no perfil da noite.

— Não se afobe, você conhece. Conhece sim. Se

não dá para enxergar desse lado, vire-se à sua direita.

O coração confrangeu-se. A ponte de ferro, vazia

de gente, de qualquer movimento, refletia-se nas águas

sombrias do Capibaribe.

— Recife, meu velho. Recife dos casarões e das

fontes coloniais. Da rua da Aurora com as suas pedras

britadas.

Recife que tanto nós amamos e que embalou tantos

sonhos da nossa juventude.

Parou defronte um velho pardieiro.

— Esse nós conhecemos bem, não querido? O

cheiro de velhice, pobreza, vômitos, sujeira, ratos... Sabe

porque eu escolhi esse ambiente com um odor tão deteri-

orado? Não? Sinta o aroma da maré podre que vem do

rio.

Teve que aspirar aquele cheiro nauseabundo.

— Ê simples. Combinando o cheiro do rio com a

podridão desgraçada do prédio, eu pensava escapar. Dis-

farçar o cheiro doce que dia a dia iria nascer com o desen-

volvimento da minha doença. Mas vocês nem pensaram

num detalhe desses... Entre.

— A porta está trancada.

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— Não está. Trancada pra quê? Até as putas que

habitam o fundo do segundo andar já se recolheram. E

quando elas o fazem mais cedo, existem duas razões. Ou

muito cansaço ou mãos vazias.

Empurrou Judas Iscariotes para o lado da escada. A

luz mortiça de uma fraca lâmpada recortava os degraus

velhos, gastos, e que iriam ranger muito à sua escalada.

Sentiu-se apavorado. Seus dentes castanholavam.

— Você não vem?

— Para quê? O caminho você já conhece. Basta

prestar atenção porque nos desvãos da escada e nos lances

de cada andar pode esbarrar com o corpo de algum men-

digo ou um bêbado.

Suas pernas teimavam em não obedecer. Lúcio em-

purrou-o irritado.

— Obedeça, seu palerma. Sinta exatamente o que

eu sentia todas as noites em minha solidão. O que amar-

gurava todo o sangue nas minhas veias e chacoalhava meu

coração contra a parede do peito. Era a mesma angústia

noturna. Rastejava escondido nas horas mortas da noite

em busca de algo para alimentar-me. A volta era toda essa

tortura que você vai conhecer, sentir como eu senti, pelo

menos uma vez na vida.

Pediu humildemente.

— Me acompanhe por amor de Deus.

— Amor de quem? Ouvi bem? Ora, querido, nesse

momento não há lugar para sandices. Suba. Eu estarei lá.

Vamos reviver uma cena. Esses últimos dias você aqueceu

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na cabeça uma idéia comum: que a morte faz reviver to-

dos os momentos que nos foram importantes. Esse, para

nós dois, deve ter sido o ápice. Suba. Não se esqueça. A

quarta porta. Nem precisa bater. A porta se encontrará

apenas encostada. Uma luz mortiça trará seus passos junto

a meu abandono. Vá.

Empurrou a porta com os dedos do desalento. As

dobradiças gemeram um lamento de ferrugem. A luz ain-

da tornava mais sombrio a horridez do cenário.

— Quem é?

— Eu. Você sabe que sou eu.

— O que quer?

— Você sabe por que vim. Nós estamos repetindo

uma cena.

— Quê cena?

Engoliu em seco desorientado.

— Da última vez havia um pouco mais de luz aqui.

— Também creio que se engana. Provavelmente

seus olhos envelheceram.

A voz de Lúcio surgiu irritada e manifestou uma

ordem imperiosa.

— Tudo será exatamente como aconteceu. Não se

pode frustrar os traços do destino.

Foi-se aproximando transido de medo e de indeci-

são. Lamentava ter se proposto a vir ali.

— Lúcio...

Sua voz estacava, impossibilitada de prosseguir.

— A que você veio?

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Lúcio saiu da penumbra em que se encontrava e a

luz amarelada incidiu sobre os seus traços. Seus cabelos

tinham crescido e tocavam-lhe os ombros. Com aquela

iluminação, eles obtinham um colorido de fogo. O rosto

intumescia-se nas maçãs. Dali talvez explodissem duas

chagas. Surpreendentes eram seus olhos verdes que pare-

ciam iluminar mais do que a lâmpada. Todos os pêlos de

Raul se eriçaram. Lúcio se transfigurava num Cristo doen-

tio à espera de novo holocausto.

— Eu pedi que você não voltasse mais.

— Tinha que fazer... Nós não queremos vê-lo...

— Além de você existem outros que também...

— O Góis, o Amílcar, o Ferreira.

— Sei. E decidiram-se...

— Tudo por seu bem. Mais cedo ou mais tarde.

— Você acha que...

— Iriam sim.

A voz de Lúcio tomara uma rigidez de pedra.

— Muito bem. E o que escolheram?

— Isso.

Lúcio examinou com os olhos cuidadosamente.

— E não falhará?

— É bastante novo e de pouco uso.

— Pensaram em tudo.

— Você faria o mesmo com qualquer um de nós.

— Provavelmente.

Houve um silêncio em que podia ser distinguido o

respirar apressado de ambos.

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— Então?

— Está certo. Ponha-o em cima da mesa. Melhor

suspender o pano e abrir uma gaveta. Ali dentro não des-

pertará muita curiosidade.

— Você acha que poderá vir alguém aqui antes?

— Nunca se sabe.

Movimentou as pernas como se tentasse aquecer a

sua coragem.

— Preciso ir.

— Muito bem.

Pensou em perguntar quando ele se decidiria a rea-

lizar... Mas sua voz não encontrou saída na garganta. Tal-

vez fosse crueldade demais.

— Por que não vai?

Aproximou-se de Lúcio. Não podia se conter. Seus

olhos estavam umedecendo suas faces.

— Lúcio.

— O que quer agora?

— Pelo bem que nós nos quisemos sempre.

— Não comece com isso agora.

Avançou com a mão estendida para o amigo.

— Adeus, Lúcio.

A mão ficou petrificada no espaço. Para aumento

de todo o seu horror, os olhos verdes de Lúcio estavam

possuídos do fogo dos infernos. Sua voz saiu rouca e ca-

vernosa. Era uma voz que esbofeteava seu rosto e sua al-

ma.

— NOLI ME TANGEREI...

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Virou as costas e desceu a escadaria, sentindo todos

os degraus se abalarem com o peso dos seus saltos. Ga-

nhou a rua. Respirou com força. O rio estava cheio e lu-

minoso. Ainda existia um resto de tarde e as luzes da ci-

dade brevemente acender-se-iam. Andou como autômato

pelas ruas até que a noite se revelou completa. Suas pernas

desesperadas ainda caminhavam quando a madrugada

queria anunciar a alva.

Conseguiu voltar até o quarto de pensão. Meteu-se

numa ducha bem fria. Por todo canto que parasse o olhar,

sentia-se perseguido pelas palavras condenatórias de Lú-

cio.

— NOLI ME TANGEREI...

Acabava de descobrir uma triste realidade. Quando

Lúcio realizasse tudo o que tinham planejado, a vida teria

também perdido todo o gosto para ele. Os olhos verdes

de Lúcio, as palavras de Lúcio iriam gravar-se a fogo em

cada gota do seu sangue.

De tarde, no bar defronte à Faculdade, encontrou-

se com os três.

Quase não havia diálogo. Tudo era dito por cochi-

chos e monossílabos. Contou-lhes tudo.

— Nós também passamos a noite sem poder dor-

mir.

Pensávamos que seria nessa mesma noite.

— Não foi. Caso acontecesse alguma coisa, já sabe-

ríamos aqui na Faculdade.

— E se ele desistir?

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— Eu conheço Lúcio. Ele aceitou. Não volta atrás.

Com a barba de dois dias e grandes olheiras, voltou

quase à noitinha para seu quarto. Nem bem retirara a ca-

misa, a dona da pensão bateu na porta.

Entreabriu-a nervosamente.

— Olhe, seu Ruy, logo depois do almoço manda-

ram lhe entregar esse pacote.

Empalideceu, vendo o embrulho. Seria o revólver

devolvido por Lúcio? Recebeu a encomenda e viu que

nada pesava. Em um segundo não sabia o que pensar. Se

desejava ter recebido o revólver ou se estava contente

com a leveza do embrulho.

— Obrigado, D. Elza.

Fechou a porta. Sentou-se na cama com o coração

amedrontado, espiando o pacote por fora. Precisava abri-

lo. Os dedos quase não obedeciam, e o peito adquiriu um

estranho calor. Rasgou o papel. Dentro existia uma caixa.

Retirou a tampa. Um envelope gordo aparecia colado.

Nada escrito em sua frente. Mas ao desvirá-lo, descobriu a

letra de Lúcio. A caligrafia firme e decidida. Elegante até.

Uma única frase.

— Você esqueceu-se disso, querido.

Com os dedos tremendo rompeu o envelope e um

monte de notas caiu em seu colo. Pôs-se a contar, balbu-

ciando e chorando.

— Trinta contos.

Caiu sobre o travesseiro e chorou demoradamente

aquilo que seria o começo da sua grande solidão.

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— Eu sei. As minhas trinta moedas.

* * *

Simão Pedro tentava acordá-lo com brandura.

— Olhe, Judas Iscariotes. Já se pode ouvir o baru-

lho das panelas, balançando na bandeja. O Demônio não

tardará a entrar na enfermaria.

Fez forca para compreender todas as palavras que

lhe eram dirigidas.

— Você falou que queria ir à Última Ceia, não fa-

lou? Fiquei com pena de acordá-lo. Você dormia tão cal-

mo.

— Fez bem. Eu quero ir. Eu preciso ir. Eu tenho

que ir...

— Eu ajudo, quer? Talvez você fique tonto por

causa dos remédios.

— Não, meu amigo. Eu preciso ir só. “Hoje eu te-

nho que caminhar completamente só”.

Simão Pedro andou um pouco e voltou-se receoso.

Talvez ele não conseguisse e precisasse de auxílio. Ele

teimava. Tinha conseguido descer da cama e tentava equi-

librar-se numa perna muito fraca e noutra quase morta.

O Demônio passou por ele e sorriu, admirado do

seu esforço e coragem. Conseguiu reunir na alma certo

orgulho. Não estava vencido de todo. O importante é que

iria caminhar sozinho até a mesa da Ceia. Estava com as

suas pernas. O presente, que a vida dera ao corpo, ainda

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lhe pertencia. Nada havia mudado ainda. O Demônio

continuaria ali. Tudo que fizera começava a ser esquecido.

Onde encontrariam um homem capaz de trabalhar, como

ele, por um ordenado tão pobre? Nenhum homem conse-

guiria sobreviver com tão pouco. Mas para ele, tornava-se

suficiente. Dava para o seu jogo de bicho e para as delicio-

sas cachaças. Camisas e calças recebia de presente dos

médicos e dos estudantes. Podiam ser de gordos ou de

magros. Mas ficavam-lhe bem. Compridas ou curtas. Afi-

nal era pobre e tinha corpo de empregado.

Judas Iscariotes riu. O cérebro estava funcionando

livre e bem.

Parou em frente da cama de Tomé. Também ele

não mudara. Nunca seria operado e continuaria preso à

sua sina. Não tocaria nunca para dizimar as suas dúvidas.

Teria de ser tocado para saber-se ainda vivo.

Os olhos de todos tinham crescido mais de admira-

ção do que de magreza. A Ceia fora colocada sobre o

mármore gelado da mesa. Logo Simão e Simão Pedro fari-

am a distribuição da sopa porca.

Tocaram-lhe no braço. Uma voz vibrou suavemen-

te ao seu ouvido.

— Irei com você até a Mesa.

— Não. Não há necessidade.

— Há sim. Até aquela mesa ainda tenho as minhas

esperanças. Você não andava e está andando. Talvez até lá

vença a sua total covardia.

— Perderá o seu tempo, Lúcio.

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E caminhou devagar. Não sentia doer a perna. Era

uma maneira amigável dela despedir-se. Sem dor. Depois,

quando a retirassem do corpo, a dor voltaria em outras

partes. Mas isso era depois. Por enquanto, a enfermaria

permanecia imutável.

Tiago dessa vez não chorava. Sorria-lhe até. Só no

fundo da alma, que ia diminuindo dia a dia, guardava a-

quela certeza de que o seu cãozinho Bilu, com uma orelha

preta e todo branquinho, não viria mais aos seus braços.

Mateus estava ameaçado de partir. Mas a cada dia a

ameaça ia ficando mais delgada. Mesmo porque ele era um

caso interessantíssimo. E o que praticara quase forçado,

nada significava diante do serviço que prestava ao futuro

da humanidade.

Parou um momento para respirar fundo e restaurar

as forças. Notou que as moscas não voejavam na enfer-

maria. E sempre àquela hora eram mais atraídas pelo chei-

ro da comida.

Lúcio atendeu ao seu pensamento.

— O tempo passou, meu querido. Você nem repa-

rou que o verão está quase no fim e que já falam no fim

da guerra. Houve uma tapeação mútua entre você e os

seus amigos médicos. Você protelando a amputação da

perna e eles fingindo querer amputá-la. Com isso o belo

verão se despede e parte por mais um ano.

— Por mais “um ano”, Lúcio?

— Ora, deixe disso. O verão cumpre o seu tempo

como sempre. Mas se está sentindo falta das moscas, as

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outras estão permanentemente lá.

Indicou o leito de Bartolomeu.

— Antes que fechem as janelas, com a aproxima-

ção da noite, elas se vão a um só comando. Depois retor-

nam na primeira manhã e pacientemente aguardam.

Judas Iscariotes imaginava os olhos de Bartolomeu

por trás do biombo. Os olhos cada vez mais esbugalha-

dos, contando o aumentar da Senhora das Moscas e o di-

minuir do seu corpo.

Simão Pedro aflitivamente acompanhava cada pas-

so do homem. Postara-se a uma das cabeceiras da mesa e

aguardava sua chegada. Só então principiaria a servir a

Ceia. E só então, Judas Iscariotes prestou atenção a algo

que nunca notara. Ninguém queria sentar-se de costas pa-

ra a porta da Ceia. Era sinal de mau presságio.

Afastaram o banco para que se sentasse. Tudo feito

com paciência e determinação. Apoiou os braços magros

na frialdade do mármore e tentou sorrir para os que ainda

podiam comparecer à Ceia.

Lúcio falou ao seu ouvido.

— Pela última vez, precisamos conversar.

— Agora é tarde, Lúcio. Simão Pedro vai servir a

refeição.

— Ainda não. Olhe.

Estranhamente todos tinham se paralisado. Não e-

ram mais gente e sim uma escultura. Como muitas que

vira. Como tantas ceias que diferiam nas posições dos a-

póstolos, conservando sempre a mesma intenção.

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— Venha comigo, querido. Não quero que sofra

mais. Você nem pode imaginar o que está reservado para

o seu resto de vida. Quando você me esclareceu, na pe-

numbra do meu quarto, eu dei razão e aceitei seus argu-

mentos. Nem sequer os discuti.

— É verdade. Mas eu não tenho a sua coragem.

— Não é preciso muito. Com o esforço exigido pa-

ra a caminhada da cama até aqui, logo você será abordado

por um torpor avassalante. Será fácil encaminhá-lo à ca-

deira de rodas e de lá para a libertação.

— Não irei. Você perdeu, Lúcio.

Enraivecido, Lúcio levantou uma das mãos e esbo-

feteou o rosto de Raul.

Sorriu porque o rosto não sentira o impacto da bo-

fetada. Diante dos olhos pela primeira vez lhe apareciam

integralmente as mãos de Lúcio. Elas encontravam-se en-

voltas em gazes e manchadas de sangue nas palmas.

— O que foi isso, Lúcio?

— São as minhas chagas.

— Que chagas? As chagas da cruz?

— Grande cretino. Pare de me confundir com ou-

tra pessoa. Essas são as minhas. Pelo menos tenho direito

a possuir uma coisa que é completamente minha. São mi-

nhas mãos, querido. Minhas mãos que você nunca quis

enxergar. Pois vai vê-las nesse exato momento. Soltou as

ataduras e ficou balançando as gazes no ar até que elas se

desfizessem e tombassem no chão.

— Ei-las, querido. Examine-as bem. Foi você quem

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me presenteou com isso.

As palmas das mãos de Lúcio exibiam cortes pro-

fundos, que deixavam aparecer os ossos.

— Foi da ponte, Raul. São as marcas da morte,

querido. Porque morrer é horrível. Tanto faz com a bruta-

lidade com que me destruí, ou com a passividade da dor

que espera por você. São as marcas da ponte, veja.

Raul cerrou os olhos para não presenciar nada. Em

vão, porque estava além de suas forças. Voltara a ser noi-

te. Noite muito escura e chuvosa. Lúcio caminhava sem-

pre na sombra, procurando os cantos mais abandonados.

Lúcio dirigindo-se para a ponte. Parando para ver o vazio

da vida. Ninguém. Ninguém naquele momento. Aquele

momento que pertence completamente a cada ser huma-

no. Não chegou a alcançar a metade da ponte. Suspendeu-

se até o gradil e sentou-se. Ficou balançando as pernas e

vendo as águas do rio, refletindo as luzes das ruas. Retirou

o revólver do bolso e depositou-o ao lado. Parou um

momento, olhando o céu negro e sem significado. Fechou

os olhos como se rezasse. Depois entreabriu a camisa e

deixou o peito receber rajadas do vento frio. Apanhou o

revólver, encostou-o em cima do coração e disparou. O

tiro morreu sem eco no abandono da noite e da vida. O

corpo oscilou para frente e para trás. Num derradeiro ins-

tinto de conservação ainda agarrou-se às grades enferruja-

das da ponte. As mãos crispavam-se naquele desespero

total. O corpo foi deslizando e ficou pendurado no espa-

ço. As mãos, que teimavam em sustê-lo, escorregaram pe-

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los ferros enferrujados e cheios de pontas agudas. Elas

cederam e abriram-se todas ensangüentadas. O corpo pro-

jetou-se no espaço e mergulhou no rio, acompanhando a

viagem que o revólver executara antes.

— São minhas chagas, Raul. Essas são minhas.

O sangue coagulara em suas palmas mas as carnes

rasgadas haviam destruído as linhas da vida e da morte, do

amor e dos sonhos.

Desviou o olhar para os apóstolos. Continuavam

ainda completamente petrificados. Como eram lindos na-

quela pose irreal. Não pareciam mais com o lixo humano

da verdade.

Sem querer, procurou a porta aberta da Ceia. Re-

cordou-se das palavras de João. “Alguém vai entrar por

aquela porta”... Forçou o ouvido, no desespero de escutar

passos chegando, à distância. E o que existia na distância?

Ora, se existia. Seus pensamentos foram retrocedendo no

tempo, até onde havia alguém que penetrava por uma por-

ta de esperanças como aquela.

Reviu-se menino. Quantos anos? Nove ou dez.

Não mais. E irmão Amadeu contando uma história. Uma

história linda. Talvez a mais linda que ouvira na infância.

Lembrava-se até do nome da cidade onde acontecera. Si-

quém. O nome: O suave Milagre. Um menino pobre, ar-

dendo de febre e pedindo à mãe para ver o Rabi da Gali-

léia. O que doía muito era a fala da mãe.

— Nós somos muito pobres.

O menino insistindo para ver o Rabi da Galiléia.

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A voz da mãe já proporcionava lágrimas em seus

olhos de infância.

— Ele está muito longe. Ele não virá.

Num último gemido, o menino doente implorou.

— Mamãe, eu queria ver o Rabi da Galiléia...

E a porta abriu-se suavemente e uma voz se ouviu.

— Eu estou aqui.

Raul passou a mão sobre os olhos, para estancar

um começo de lágrimas. Não, não choraria nunca mais.

“Sou eu quem está aqui”. Ali só existe uma porta, sem

milagres. Milagre só no coração amantíssimo de João. A

realidade cruel se mostrava nas mãos de Lúcio, que se a-

baixavam para recuperar suas gazes. Desajeitadamente

principiou a enfaixar a sua herança. Foi então que ele fa-

lou sem raiva e sem recriminação.

— Estou quase terminando. Dentro em breve eles

voltarão para servir os pratos de sopa. Então tudo estará

perdido. Você está resolvido, não é? Eu sei, querido. Eu

me vou para sempre. Não sairei por aquela porta e sim

pela do anfiteatro. Cada um tem a sua porta na vida para

entrar e para sair. E quando eu a transpuser, tudo voltará a

ser exatamente como antes. Sem diferença alguma. De

uma coisa esteja certo. Sem mim, você se sentirá em soli-

dão maior ainda. E depois que eu atravessar o meu desti-

no definitivo, nunca mais encontrarei uma porta de retor-

no, nunca mais.

Terminara de amarrar-se. Sorriu.

— Agora não é necessário que as minhas chagas es-

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tejam sempre muito bem arrumadas. Dentro em breve

elas se perderão na memória do Espaço.

Sorriu e nesse gesto deixava transparecer uma terrí-

vel pena do amigo.

— Adeus, Judas Iscariotes. Não lhe darei as mãos

para que você não me devolva uma frase minha. Uma fra-

se que dói mais na alma do que qualquer chaga: Noli Me

Tangere...

Virou-se calmo e compassado. Andou resoluto até

a sua porta. Girou a maçaneta e desapareceu, sem deitar

um único olhar de despedida.

Voltou a ser ouvido o ruído da colher, remexendo

o panelão de sopa.

Simão Pedro usou sua maior doçura.

— Vou primeiro servir os outros. Enquanto isso,

escolherei os pedaços mais gostosos para você.

Ouvia a palavra de Simão Pedro, mas seus olhos se

prendiam atraídos pela porta aberta à sua frente.

Aí a voz de Simão Pedro cresceu num entusiasmo

sadio.

— Hoje está acontecendo um milagre.

Dizia Milagre como se todas as letras fossem mai-

úsculas: MILAGRE.

O coração de Judas Iscariotes revolveu-se desespe-

rado no peito. Que milagre anunciaria Simão Pedro? A

profecia de João?

Prendeu os olhos na porta com ansiedade. A Porta.

A POrta. A PORta. A PORTa. A PORTA.

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Queria ouvir os passos caminhando. As sandálias

batendo nos ladrilhos frios. Caminhando. Caminhando

sempre até a angústia da sua alma.

Simão Pedro apanhara a concha para servir o seu

prato.

— Você vai ver que milagre. Nunca aconteceu isso

durante todo o tempo em que estou aqui.

Não queria olhar o prato e sim a porta. Mas ouviu a

sopa caindo no prato lentamente, como tudo que Simão

Pedro sabia fazer.

— Olhe o milagre, Judas Iscariotes!

Parou ura pouco e, vendo que Judas Iscariotes fixa-

va a porta em êxtase, concluiu.

— HOJE, AS BATATAS VIERAM DESCAS-

CADAS!

* * *

E em verdade, em verdade eu vos digo: — Ninguém en-

trou por aquela porta e ninguém se sentou àquela mesa!

FIM.

Granja-Viana

74-75.