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109 verve Élisée Reclus: vida e obra de um apaixonado da natureza... élisée reclus: vida e obra de um apaixonado da natureza e da anarquia josé maria carvalho ferreira* Nos meios anarquistas ortodoxos, Élisée Reclus não tem sido referência de autor emblemático e doutrinário em relação ao processo conducente à da Revolução So- cial. Por uma razão ou outra, no panteão das figuras que se consubstanciam no anarco-comunismo ou no comunismo libertário, inscritos no simbolismo da teo- ria revolucionária, do debate, da reflexão, da comemo- ração, da ação individual e coletiva, do modelo de soci- edade libertária, é indistintamente assumido pelas fi- guras de Kropotkin, Bakunin e Malatesta. Para a generalidade dos militantes anarquistas, Élisée Reclus é antes de mais nada um cientista, que em determina- dos momentos da sua vida lutou pela revolução social e, sobretudo, coadjuvou a obra pioneira de Kropotkin, na elaboração do modelo de sociedade anarco-comu- nista. * Professor da Universidade Técnica de Lisboa. Edita a revista anarquista Uto- pia verve, 10: 109-134, 2006

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Élisée Reclus: vida e obra de um apaixonado da natureza...

élisée reclus: vida e obra de umapaixonado da natureza e da anarquia

josé maria carvalho ferreira*

Nos meios anarquistas ortodoxos, Élisée Reclus nãotem sido referência de autor emblemático e doutrinárioem relação ao processo conducente à da Revolução So-cial. Por uma razão ou outra, no panteão das figurasque se consubstanciam no anarco-comunismo ou nocomunismo libertário, inscritos no simbolismo da teo-ria revolucionária, do debate, da reflexão, da comemo-ração, da ação individual e coletiva, do modelo de soci-edade libertária, é indistintamente assumido pelas fi-guras de Kropotkin, Bakunin e Malatesta. Para ageneralidade dos militantes anarquistas, Élisée Reclusé antes de mais nada um cientista, que em determina-dos momentos da sua vida lutou pela revolução sociale, sobretudo, coadjuvou a obra pioneira de Kropotkin,na elaboração do modelo de sociedade anarco-comu-nista.

* Professor da Universidade Técnica de Lisboa. Edita a revista anarquista Uto-pia

verve, 10: 109-134, 2006

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Sua ação de militante anarquista revolucionário éfundamentalmente conhecida pela sua participação naComuna de Paris, em 1871, pela sua colaboração naedição do jornal Le Révolté, entre 1879 e 1882, por de-bates e conferências, dezenas de artigos de caráter pan-fletário e pedagógico, pequenas brochuras, entre asquais se destacam: La Peine de Mort, de 1889,L’Anarchie,1 de 1894, e L’Evolution, la Révolution et l’IdéalAnarchique, de 1898. Todavia, sua outra faceta, que re-laciona a anarquia com a ciência da geografia social eespacial, mostra-nos um Élisée Reclus, antes de maisnada, senhor de um conhecimento enciclopédico e pro-fundo da Terra e da sua fauna e flora. Dessa obra imen-sa, que tem início em 1851, quando ele era, ainda, umjovem, e termina com sua morte, em 1905, para alémde centenas de artigos de divulgação científica de geo-grafia em revistas da especialidade, importa realçar apublicação da Nouvelle Géographie Universelle,2 em 19volumes, entre 1876 e 1894, e L’Homme et la Terre, em6 volumes, entre 1905 e 1908. Outros livros foram, en-tretanto, publicados: L’Histoire d’un Ruisseau, de 1869,La Terre — Description des Phénomènes de la Vie du Glo-be,3 em 2 volumes, entre 1870 e 1872, e L’Histoire d’uneMontagne, de 1880.

Pela dificuldade extrema e pela quase impossibilida-de de realizar uma leitura sistemática e profunda demilhares de páginas, vou cingir-me a uma interpreta-ção e explicitação muito sumárias e sintéticas da obrade Élisée Reclus, tentando extrair ensinamentos quenos possam servir para nossa atualidade biológica e so-cial. Em primeiro lugar, procurarei resgatar os aspectosanalíticos de sua geografia social e espacial, que o tor-nam um precursor da ecologia e do anarco-naturismo.Em segundo lugar, sendo Élisée Reclus apologista deum equilíbrio ecossistêmico, firmado principalmente no

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progresso científico e em uma evolução civilizacional,inscritos ambos na liberdade e na ação individual con-tra o Estado, a religião e o capitalismo, destacarei aspremissas que considero relevantes para a emancipa-ção social. Por último, em sintonia com os pressupos-tos de sua defesa do anarco-comunismo, tentarei ana-lisar em que medida, hoje, a luta de classes é contradi-tória com as premissas do anarco-naturismo e doequilíbrio ecossistêmico.

Élisée Reclus: um precursor da ecologia e do anarco-naturismo

Das muitas obras que Élisée Reclus escreveu e le-gou à posterioridade, subjaz uma lição epistemológicae metodológica crucial. Não há nem pode haver separa-ção mecânica entre teoria e prática, entre objeto de ob-servação e sujeito observador. Todos os elementos cons-titutivos do universo são lições sistêmicas experimen-tais de vida e de morte das espécies animais e vegetais,atravessadas pela interdependência e a complementa-ridade. Não há história sem tempo, mas também estenão existe sem espaço. A geografia de Élisée Reclus éincrustada em um tempo histórico, e a sua matriz é ali-cerçada no progresso e em uma evolução que podemser classificados de positivos, se inscritos na solidarie-dade, na liberdade, no apoio mútuo e no amor. Por ou-tro lado, a história é pródiga em exemplos contrários.Para Élisée Reclus é possível evoluir no sentido contrá-rio do progresso e da ciência, mas, nesse caso, estamosem um tempo histórico regressivo, pautado pela igno-rância, competição, violência, guerra dominação e es-cravidão.

No seu livro A História de um Ribeiro, Élisée Reclusdeclara seu amor e sua admiração por todas as fontes

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de vida. É um profundo hino poético à vida que emanado universo, sob todas suas formas e conteúdos. A água,os rios, os ribeiros, os oceanos, as montanhas, as flo-restas, o sol, a lua, os continentes, todos os planetas eem especial a Terra são um todo uno e indivisível. En-quanto fontes de vida, as interdependências e comple-mentaridades entre as espécies animais e vegetais e,logicamente, a harmonia e a liberdade entre as mesmasexcluem qualquer tipo de dominação e destruição: “Tale qual como o homem considerado isoladamente, a so-ciedade tomada no seu conjunto pode ser comparadacom a água que se escoa. Em todas as horas, a todo oinstante, um corpo humano, simples décima milionési-ma parte da humanidade, abate-se e dissolve-se, en-quanto que noutro ponto do globo uma criança emergedentre uma imensidade de coisas, abre o seu olhar paraa luz e torna-se um ser pensante. Do mesmo modo quenuma planície todos os grãos de areia e todos os grãosde argila foram rolando pelo rio e depositados nas suasmargens, também toda a poeira que recobre o globo cir-culou, com o sangue do coração, nas artérias dos nos-sos antepassados. De época para época, as geraçõessucedem-se, modificando-se pouco a pouco: os bárba-ros de aspecto bestial e lutando pela primazia com osanimais ferozes são substituídos por seres mais inteli-gentes, a quem a experiência e o estudo da naturezaensinaram a arte de alimentar os animais e cultivar aterra; depois, de progresso em progresso, os homenschegam a fundar as cidades, a transformar as matérias-primas, a trocar os seus produtos, a comunicarem-sede um lado ao outro do mundo; civilizam-se, isto é, oseu tipo é enobrecido, o crânio torna-se maior, o pensa-mento mais alargado (...). Os povos, tornando-se inteli-gentes, aprenderão certamente a associar-se numa fe-deração livre: a humanidade, até agora dividida em cor-rentes distintas, não será mais do que um mesmo rio,

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e, reunidos numa só corrente, nós desceremos em con-junto para o grande mar onde todas as vidas se vãoperder e renovar.”4

Denota-se, nessa primeira análise, uma sensibilida-de ecológica profunda e sistemática. Da vida que des-ponta dos ribeiros, através da água, explicam-se as ra-zões de ser e de existir da Terra, da fauna e da flora queesta integra. O progresso civilizatório da espécie huma-na implica um equilíbrio ecossistêmico com todas asespécies animais e vegetais. Esse equilíbrio passa peladomesticação e a aprendizagem com todas as espéciesanimais e vegetais, não as olhando nem as entendendocomo espécies externas à espécie humana, mas inter-nas aos desígnios de emancipação social, no contextodo progresso e da civilização societária. A cooperação, asolidariedade, a liberdade e o amor, a ser desenvolvidopelos indivíduos e os povos em escala universal, de-vem, por tal fato, generalizar-se às relações sociais eprocessos de socialização da vida quotidiana na federa-ção livre. Essas premissas, como é lógico, devem seralargadas às relações da espécie humana com as ou-tras espécies animais e vegetais.

Na minha opinião, se bem que toda a obra de ÉliséeReclus seja pautada por uma visão ecológica (pense-mos nas atividades econômicas circunscritas aos seto-res agrícola e industrial, entendendo o progresso den-tro de parâmetros definidos pela razão da lógica cientí-fica), não aprofunda, com a proficiência devida, aspremissas do modelo de produção e de consumo, cir-cunscritos à morte e à escravidão das espécies animais,por parte da espécie humana.

Não obstante, tendo em conta um texto escrito em1897, a que chamou “A grande família”, pode afirmar-se que Élisée Reclus foi um dos precursores do anarco-

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naturismo. Ao debruçar-se sobre “A grande família”, es-creve sobre um tipo de família que integra todas as es-pécies animais. Adotar esse conceito implica uma mu-dança radical nas nossas opções de escravidão e de do-minação sobre aquelas espécies: “A corrupção dasespécies é já um grande mal; mas a ciência dos civiliza-dos exerce-se também pela exterminação. Sabe-se quan-tos pássaros os caçadores europeus destruíram na NovaZelândia e na Austrália, ou em Madagascar. E nos ar-quipélagos polares, quantas morsas e outros cetáceosjá desapareceram! A baleia fugiu dos nossos mares tem-perados, e brevemente não se encontrará nem entre oscampos de gelo do oceano Ártico. Todos os grandes ani-mais terráqueos estão igualmente ameaçados (...) Estesfatos demonstram os imensos recursos que o homemcongregou para recuperar a sua influência sobre todoeste mundo animado que ele deixava ir ao sabor do des-tino, negligenciando associá-lo à sua própria vida. Anossa civilização, ferozmente individualista, ao dividiro mundo em tantos pequenos Estados inimigos, em tan-tas propriedades privadas, em tantos rebanhos e ma-nadas familiares, sofreu certamente a sua última der-rota. Teremos necessariamente de recorrer à ajudamútua para atingirmos a salvação comum. Quando abusca da amizade substituir a do bem-estar, que maisdia menos dia deverá estar suficientemente assegura-do, logo que os naturalistas entusiastas nos tiveremrevelado tudo o que há de belo, de amável, de humano(e muitas vezes mais do que humano) na natureza dosanimais, nós olharemos com outros olhos para todasessas espécies, que se atrasaram no caminho do pro-gresso, e acabaremos por fazer delas, não servidores oumáquinas, mas os nossos verdadeiros companheiros.O estudo dos primitivos contribuiu singularmente paracompreender o homem policiado de hoje; a vida práticados animais far-nos-á penetrar mais longe na ciência

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da vida, alargará o nosso conhecimento das coisas e onosso amor.”5

Esses pressupostos naturalistas são quase sempreatravessados por uma visão ecológica, baseada em umequilíbrio ecossistêmico, sempre dependente e deter-minado pelo progresso e a evolução positivista da ciên-cia. Claro que a evolução e o próprio progresso poderi-am traduzir-se em um retrocesso civilizacional, e atéem uma destruição do equilíbrio ecossistêmico, mastudo isso resultava da ignorância e da estupidez do po-der político e religioso que não estão identificados comas leis da ciência e da natureza: “Entre as causas quena história da humanidade fizeram desaparecer suces-sivamente tantas civilizações, deveria ser colocada naprimeira linha a violência brutal com que todas as na-ções trataram a terra mãe. Os homens abateram as flo-restas, deixaram secar as fontes e transbordar os rios,deterioram os climas, cercaram as cidades de zonas pan-tanosas e pestilentas; depois, quando a natureza profa-nada por eles, se lhes tornou hostil, tomam-na com rai-va, e não podendo recompor-se como o selvagem quevivia nas florestas, deixam-se embrutecer pelo despo-tismo dos padres e dos reis.”6

Ainda que os postulados da ecologia e do equilíbrioecossistêmico fossem cientificamente desenvolvidos emmáxima plenitude em sua grande obra Nova GeografiaUniversal, pelo fato de todos os continentes que inte-gram o planeta Terra serem objeto de uma abordagemgeográfica profunda e sistemática, com uma contribui-ção exaustiva da geografia articulada com a história, apolítica, a sociologia, a cultura e a economia, ÉliséeReclus nunca descurou a análise desses postulados.No final da sua vida, em 1905, na sua outra grande obracientífica, O Homem e a Terra, reforçou-os de uma for-ma imperativa: “Coordenar os continentes, os mares e

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atmosfera que nos rodeia, ‘cultivar a nossa horta’ ter-restre, distribuir de novo e regular o ambiente para fa-vorecer cada vida individual da planta, do animal ou dohomem, adquirir definitivamente consciência da nossahumanidade solidária, formando um só corpo com o pró-prio planeta, abarcar com o mesmo olhar as nossas ori-gens, o nosso presente, o nosso objetivo mais próximoe o nosso ideal longínquo, é nisto que consiste o pro-gresso”7

Ciência e progresso: fatores determinantes da eman-cipação individual e social

Como já me referi, subsiste um denominador comum,que atravessou a vida e a obra de Élisée Réclus: umavontade enorme de conhecer todas as manifestações devida da Terra — incluindo montanhas, rochas, solo, rios,florestas —, com especial incidência na evolução dasespécies animais e vegetais, recorrendo para isso, àscausas e efeitos reportados ao conhecimento profundoda espécie humana nas vertentes histórica, social, es-pacial, política, cultural e civilizacional.

Essas exigências do conhecimento pessoal transfor-mam-no em um apologista das ciências da vida e doprogresso. As ciências da vida, para Élisée Reclus, nãoeram redutíveis à biologia, à física e à medicina, masincluíam também as ciências sociais e humanas. Nessaassunção, o homem, enquanto entidade analítica, de-veria ser objeto de estudo científico exaustivo, evitan-do-se, assim, todas as especulações não científicas decaráter metafísico, religioso ou ideológico. O conceitode progresso está intimamente relacionado com a evo-lução e a identidade histórica atingidas pelo homem,enquanto ser biológico e ser social, no planeta Terra. Oconhecimento científico traduzido em progresso, impli-

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ca, em primeiro lugar, um conhecimento intra-pessoal,razão pela qual cada indivíduo deve transformar-se emuma função de causalidade e efeitos científicos e de pro-gresso, nomeadamente por meio da auto-educação, daauto-organização e auto-soberania de seu físico, de suamente e de sua psique.

Nessas circunstâncias, o estudo da geografia sociale espacial só poderia denominar-se de científico casotodos os fenômenos ou fatos estudados assumissemconteúdos e formas de leis, cuja regularidade e siste-matização universal nos conduzisse impreterivelmenteno caminho do progresso. Entre outras leis que o autorreputou como básicas — luta de classes e equilíbrio eco-lógico — para analisar o Homem em suas articulaçõescom a Terra, é fundamental percebermo-nos como indi-víduos, por forma a potenciarmos nossas probabilida-des de sentir, pensar e agir: “A ‘luta de classes’, a pro-cura do equilíbrio e a arbitragem soberana do indivíduosão as três ordens de fatos que nos revela o estudo dageografia social e que, no caos de todas as coisas, semostram bastante constantes para que possamos dar-lhes o nome de leis (...). A observação da terra explica-nos os acontecimentos da história, e esta, por sua vez,faz-nos voltar ao estudo mais profundo do planeta, atra-vés de uma solidariedade mais consciente de nosso in-divíduo, simultaneamente tão pequeno e tão grande,para como o imenso universo.”8

No amplo sentido dos termos, a ciência e o progressosão determinantes para a emancipação individual. Seum indivíduo qualquer evoluir no sentido das leis cien-tíficas e do progresso, estará capacitado para decidir eagir de forma soberana, não necessitando, para tal efei-to, de qualquer poder externo à sua individualidade in-trínseca. É evidente que a ignorância e a estupidez in-dividual, que têm acompanhado a história do Homem,

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estava bem patente e universalmente demonstrada notempo histórico de Élisée Reclus, daí a importância quedava à educação integral dos indivíduos.

Só por meio da educação os indivíduos podiam asce-der ao conhecimento das leis científicas concernentesa sua vida e, por essa mesma via, ao conhecimento dasleis da vida que integram o planeta Terra e, logicamen-te, de todas as espécies animais e vegetais. A educaçãointegral torna-se tal em um processo de aculturação ede aprendizagem social, que se opõe à educação sepa-rada da vida, ministrada pelo Estado, a Igreja e o capi-talismo. Essa educação, para além de tornar os indiví-duos escravos da maximização do lucro, transforma-osem seres opostos às leis da ciência e do progresso: “Con-vém que a ‘ciência do bem e do mal’, ou do verdadeiro edo falso, objeto da primeira maldição religiosa, se es-tenda por toda a terra e se distribua a todos os homens,na medida de sua boa vontade e de sua capacidade deadaptação. Sem dúvida, a realidade atual está muitoabaixo do ideal proposto: do mesmo modo que o ensinointegral, ao alcance de muitos, não suscita, apesar deacessível, o interesse de pouco mais do que um númerorelativamente pequeno de apaixonados, que se dedicamcom êxito ao estudo, assim também a difusão universaldo saber só penetrará gradualmente nas profundida-des atávicas das populações bárbaras, que se acomo-dam penosamente a um novo ambiente, não sem neledeixarem numerosas vítimas. Não obstante, um novoinstrumental existe e funciona cada dia com maior ati-vidade e eficácia: cursos de adultos, técnicos e profissi-onais, conferências diurnas e noturnas, exercícios e de-monstrações, exibições teatrais e, por último, universi-dades populares nascidas em distintos pontos, naInglaterra, na América, na França.”9

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Da mesma forma que para analisar o planeta Terra éimpossível não analisar as espécies animais e as espé-cies vegetais, o mesmo princípio epistemológico e me-todológico se impõe na análise do indivíduo humano.Este, enquanto subsistema integrante do planeta Ter-ra, só pode ser analisado cientificamente na sua dimen-são biológica e social. Como tal, em termos de vida bio-lógica é, simultaneamente, um todo e uma parte ínfimada espécie humana. Por outro lado, como ser social, éum compósito de dependências e complementaridadesinter-individuais, cuja síntese interativa resulta em“construídos” sociais, institucionalizados e formaliza-dos na família, em grupos, coletividades, comunidades,sociedades de características locais, regionais, nacio-nais até a sociedade global.

Quando passamos de uma perspectiva individualpara uma perspectiva social, evidentemente que esta-mos em uma dimensão de causalidades e efeitos insti-tucionalizados e formalizados na sociedade. A históriada geografia social e espacial, no seu sentido amplo, épara Élisée Reclus algo que obedece a uma evoluçãoatravessada por situações de progresso e de retrocesso,de reformas e revoluções, de destruição e de criação, devida e de morte. É uma história que tem o seu início nosnossos antepassados milenares, organizados em tribose clãs, sem propriedade privada, sem trabalho assalari-ado, sem Estado. Tinham Deuses e superstições polis-sêmicas, extraídas de um estado evolutivo “selvático-primitivo”, e subsistiam socialmente sem a neces-sidade de noções utilitárias e simbólicas, tais como odinheiro ou o mercado. É uma história que continuacom a emergência das civilizações clássicas, resultan-tes do progresso e das relações racionais do homem coma Terra, e que acabam por se traduzir em relações soci-ais de escravidão. Não somente pela institucionaliza-

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ção da propriedade privada ou do Estado, mas tambémpela evolução econômica, política, cultural e civilizacio-nal subseqüente, em que a dominação e a exploraçãoassumiram uma plasticidade social relevante, por meioda criação de Impérios e de Estados, circunscritos ter-ritorialmente em cidades, regiões ou países. Dando con-tinuidade a esse processo histórico, com a extinção doImpério Romano do Ocidente, a institucionalização po-lítica, social e cultural realiza-se principalmente na Eu-ropa Ocidental, por intermédio da Igreja Católica Apos-tólica Romana e dos feudos liderados pelos senhoresda guerra. No Oriente, esse papel é realizado pelo Isla-mismo, pelo Budismo e o Hinduísmo e pelos impériosemergentes da China, Turquia e Mongólia. Com dife-renças específicas, assiste-se a uma evolução atraves-sada socialmente pela servidão, mesclada com outrasmodalidades de escravidão, sendo que é no papel doEstado, da Religião e dos senhores feudais que se fun-damentam as relações de exploração e de dominação.

Seguindo o mesmo raciocínio histórico, para ÉliséeReclus, a história moderna começa efetivamente com ainstauração das diferentes Monarquias e dos Municípi-os na Europa Ocidental, não esquecendo o importantepapel do Renascimento, da Reforma e dos Descobrimen-tos, que geraram a separação dos poderes entre o Esta-do e a Igreja e o processo da Colonização. Neste contex-to, a ciência e o progresso funcionam como um fatorestruturante do conhecimento científico do planeta Ter-ra, nos domínios da geografia social, espacial e física.Os conteúdos e as formas de dominação complexificam-se e generalizam-se em escala intercontinental, por meiode uma crescente globalização dos transportes, por viaterrestre e marítima e das trocas mercantis, decor-rentes de uma acréscimo das atividades econômicas dossetores agrícola, industrial e comercial.

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Esse período histórico integra, ainda, a RevoluçãoIndustrial na Inglaterra e a Revolução Francesa, de 1789.O Estado-nação inicia o exercício dos poderes jurídico,legislativo e executivo, formalizando e institucionalizan-do as relações e as funções de controle e dominação doEstado sobre a sociedade civil. Por outro lado, aindaque de forma incipiente, face às perversões da domina-ção e da exploração criadas pelo capitalismo emergen-te, o Estado atua como força repressiva das convulsõessociais de caráter reivindicativo e revolucionário. A lutapela conquista e delimitação territorial e administrativada construção definitiva do Estado-nação foi atraves-sada por guerras entre diferentes países em diferentescontinentes, com especial incidência na Europa, Amé-rica, Ásia e África.

No entanto, para Élisée Reclus, na história contem-porânea, enquanto processo de formalização e institu-cionalização de relações sociais, processo que decorreuda evolução da ciência e do progresso, era determinan-temente visível o Estado moderno, nas atividades agrí-cola, industrial e comercial, e também, na generaliza-ção da propriedade privada de tipo capitalista nas refe-ridas atividades.

No que se reporta à identidade do Homem e a umaevolução positiva das suas relações com a Terra, as di-ferentes funções do Estado moderno eram contrapro-ducentes, pelo fato das funções políticas, administrati-vas e de guerra se revelarem demasiadamente burocrá-ticas, improdutivas e repressivas: “O Estado e os diversosEstados que o compõem têm a grande desvantagem defuncionar segundo um mecanismo tão regular, tão pe-sado, que é impossível modificar os seus movimentos efazê-los habituarem-se às coisas novas. Não somentenão ajuda ao funcionamento do trabalho econômico dasociedade, como também lhe é duplamente prejudicial,

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primeiro, perturbando de todas as maneiras a iniciativaindividual e até impedindo o seu nascimento, depois,detendo e imobilizando os trabalhos que lhe são confia-dos. As engrenagens da máquina administrativa estãoestabelecidas precisamente no sentido inverso daqueleem que elas funcionam em um organismo industrial.”10

Seguindo os mesmos pressupostos analíticos, emrelação à atividade agrícola e à propriedade privada daterra, a visão ecossistêmica do autor é mais uma vezdestacada, não só no sentido da denúncia das incon-gruências resultantes da exploração e escravidão, im-postas pelo capitalismo, como das suas graves e des-trutivas conseqüências para todas as espécies animaise vegetais e ainda para o solo e o clima. Sendo crítico docapitalismo e do Estado, não se coíbe de criticar o ho-mem trabalhador agrícola, no sentido genérico do ter-mo, que escraviza e destrói impunemente a vida no pla-neta Terra: “O Homem continua a ser caçador e carní-voro, mas apregoa muito os seus deveres para com osanimais; as relações estreitas que mantém com os ani-mais que trabalham para ele suscitam questões moraisurgentes: todo esse mundo de operários quadrúpedesque dão o seu concurso com extrema boa vontade àsempresas do seu amo, constitui, disse Clemenceau, um‘quinto Estado’, muito semelhante ao quarto, só que seencontra mais na situação do escravo dos tempos anti-gos do que na situação do assalariado moderno. E coisalamentável, há sempre um escravo para disciplinar osescravos, um homem do povo ‘baixo’ para vingar-se so-bre os mais baixos que ele; um oprimido, o mesmo filhodo assalariado mutilado nos seus direitos, transforma-se, por conta do amo, no verdugo do animal; um criadocamponês que aprende a fustigar a pele do animal de-sobediente de toda a maneira e feitio; é o caso do car-roceiro que conserva cuidadosamente a chaga do burro

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ou da mula para nela lhe cravar o aguilhão: Quantascidades, sem serem o ‘céu’ de ninguém, são, todavia, o‘inferno dos cavalos’.”11

Não obstante saber de todas as manifestações per-versas que a história contemporânea apresentava paraas hipóteses de vida de muitas espécies animais e ve-getais, acreditava que o papel da ciência e do progressoera determinante para os desígnios da emancipaçãosocial das mesmas. A ciência e o progresso, tornando-se elementos do conhecimento e da educação dos indi-víduos integrados em atividades agrícolas, geravam, naopinião do autor, o equilíbrio ecossistêmico, permitin-do desse modo que desabrochassem livremente todasas formas de vida na terra. Não é de estranhar que oequilíbrio e a harmonia entre as diferentes espécies setornassem também um elemento estruturante da eman-cipação social, e que a ciência e o progresso fossem cru-ciais para a consecução desse fato histórico. O acordo ea defesa das leis da evolução das espécies, preconiza-das por Élisée Reclus, nesse aspecto, estão em perfeitasintonia com as teses evolucionistas de Darwin: “Osprogressos realizados na ciência da vida, há um século,trouxeram um melhor conhecimento dos animais e dasplantas, o que representa um aumento do poder huma-no na transformação e na educação das espécies, bemcomo na compreensão de todo o conjunto harmônicodas coisas. Os verdadeiros predecessores de Darwin,os que prepararam a sua educação e que deveriam serconsiderados os verdadeiros autores da doutrina evo-lucionista, foram os criadores de animais e os jardinei-ros, que através das suas engenhosas investigaçõessouberam produzir tão belas rosas, desenvolver tãomaravilhosos crisântemos, embelezar tão admiravelmen-te as espécies dos nossos companheiros domésticos.Em cada ano se vêem novos milagres.”12

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No cômputo geral, em termos do crescimento e dasatividades econômicas, a evolução do capitalismo nassociedades contemporâneas expressava-se basicamenteno desenvolvimento da indústria e do comércio. De fato,o processo de industrialização e de urbanização dassociedades, pela crescente integração da ciência e datécnica e da racionalização da organização do trabalho,permitiu que a capacidade produtiva de bens e serviçosnas sociedades contemporâneas aumentasse exponen-cialmente e, sobretudo, que a grande finalidade do ca-pitalismo se traduzisse na maximização do lucro. Emsintonia com este desiderato, a potenciação da produ-ção, distribuição, troca e consumo de bens e serviçosreproduzia eficazmente os pressupostos da dominaçãoe da exploração do trabalho assalariado, cuja popula-ção ativa começava a revelar-se preponderante no setorindustrial. A miséria e a pobreza da classe trabalhado-ra, que trabalhava nas fábricas e vivia nas grandes ci-dades em condições paupérrimas, demonstravam ine-quivocadamente, de que forma o capitalismo como mo-delo de sociedade não estava identificado com aperspectiva positivista da ciência e do progresso preco-nizado por Élisée Reclus. Todavia, o processo de indus-trialização e de urbanização não era simplesmente ne-gativo por esse fato. O trabalho nas fábricas e a vidanas cidades eram um espaço-tempo de destruição doselementos de vida, essenciais à espécie humana e àsespécies animais e vegetais. Concomitantemente, esseprocesso traduzia-se na morte do solo, dos rios, das pla-nícies e das montanhas que propiciavam as fontes devida dessas mesmas espécies. O trabalho da grande in-dústria revelava o seu caráter alienante e atomizadordas potencialidades da vida da espécie humana e, logi-camente, de suas hipóteses de emancipação social: “Noprincípio, a grande indústria tomou um aspecto bárba-ro, feroz, titânico. As máquinas não estavam bem con-

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cebidas em relação ao trabalho que deviam produzir,tinham formas pesadas, complicadas, estranhas; meti-das em edifícios que tinham sido construídos para exe-cutar um trabalho manual em que se usavam ferramen-tas hereditárias de pequenas dimensões, faziam estre-mecer os tetos e as paredes com o seu estrondo; o vapor,os materiais carboníferos e os gases desprendidos dasfermentações viciavam a atmosfera; os restos do antigoinstrumental jaziam em pátios sujos e nauseabundos,e os operários, lutando entre os costumes inveteradose as ordens recebidas, produziam um trabalho irregu-lar, sem elegância.”13

A crítica radical de Élisée Reclus ao capitalismo, combase nos pressupostos positivistas da ciência e do pro-gresso, era de índole histórica, econômica, social, polí-tica e cultural. Verifica-se que, embora propiciasse oaumento da riqueza social e sua distribuição e consu-mo, gerando uma expansão demográfica inaudita, atransformação de matérias-primas de característicasinorgânicas resultava na morte e destruição das basesda vida da terra — clima, solo, planícies, rios, ribeiros,riachos, montanhas, florestas e, sobretudo, das espéci-es animais e espécies vegetais — que eram vitais para asobrevivência histórica da espécie humana. Esta críti-ca, dirigida ao setor industrial, ainda era mais feroz enegativa em relação ao setor do comércio: “O comércio,na prática ordinária, é, não só uma fraude e uma men-tira, mas também, pela ignóbil publicidade, o comércioé uma inutilidade, uma obsessão e uma coisa feia.”14

Depreende-se que o autor considerava o comérciocomo algo inútil e perverso. Uma vez generalizado, tra-duzia-se em um consumo compulsivo de populaçõesignaras e na reprodução continuada e ampliada das mes-mas perversões ecológicas. Era uma atividade conside-rada parasitária e inútil, porque improdutiva de riqueza

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material e social, corporificada no consumo quotidianoda espécie humana.

A anarquia como conseqüência da evolução da hu-manidade e da revolução social

Até este momento, minha análise tem incidido basi-camente em proposições elaboradas por Élisée Reclusno domínio científico da geografia que, como já disse,tem uma vertente social e espacial. Sabemos todos, ouquase todos, que não existe neutralidade axiológica nocampo científico, na medida em que é impossível sepa-rar objetiva e subjetivamente o objeto de estudo obser-vado e o sujeito observador. Em qualquer espaço-tem-po de pesquisa e análise, ao lidarmos com informação,conhecimento e energia de qualquer ser humano, so-mos sujeitos de causalidades e efeitos, que produzem ereproduzem todo e qualquer fenômeno de natureza físi-ca, biológica, social, cultural, política, econômica, his-tórica e civilizacional. Assim sendo, e baseando-me naperspectiva de equilíbrio ecossistêmico de Élisée Re-clus, é-me lícito afirmar que se torna impossível sepa-rar mecanicamente qualquer indivíduo de uma totali-dade sistêmica, da qual é interdependente e comple-mentar.

Das obras de referência do autor já analisadas, ascorrelações entre os conceitos de evolução e revoluçãoe o conceito de anarquia são pouco explícitos, mas nãodeixam de implicitamente atravessar essas mesmasobras de uma forma profunda e sistemática. Servindo-se dos conceitos positivistas da ciência da vida e do pro-gresso, Élisée Reclus demonstra bem que é impossívelseparar a vida da morte, a teoria da prática, o bem domal, o progresso do retrocesso, a evolução da revolu-

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ção, revoluções progressivas e revoluções regressivas,revolução social e reformas.

Como cientista e militante apaixonado da anarquia,as problemáticas epistemológicas e metodológicas dasua vida e obra, na minha opinião, foram bem desen-volvidas na brochura A evolução, a revolução e o idealanárquico, que escreveu em 1897.

Não vendo na ciência da vida e no progresso qual-quer fenômeno que demonstre ou indique oposição en-tre os elementos descritos, a evolução é equivalente aum sem-número de mudanças graduais, enquanto que,em simultâneo, no mesmo tempo histórico, a revoluçãonada mais é, em relação a todo o tipo de fenômenos,que um conjunto de mudanças sociais, políticas, cul-turais e econômicas bruscas. Como modelo de socieda-de, a hipótese da emergência histórica da anarquia nãofoge ou escapa a estas restrições ao progresso e à ciên-cia: “Constatemos, em primeiro lugar, que se faz provade ignorância imaginando entre a evolução e a revolu-ção um contraste de paz e guerra, de doçura e violên-cia. As revoluções podem consumar-se pacificamente,na continuidade de uma mudança repentina do meioambiente, dando origem a uma reviravolta nos interes-ses; da mesma forma que as evoluções podem ser mui-to prolongadas e, entretanto, atravessadas por guerrase perseguições. Se a palavra evolução é aceita de boavontade até por aqueles que vêem os revolucionárioscom horror, é porque eles não percebem de modo ne-nhum seu valor, porque a coisa em si mesma eles não aquerem, seja a que preço for.”15

No contexto da evolução do capitalismo, do Estado eda religião, enquanto fenômenos de exploração e de do-minação da classe trabalhadora e dos povos, enquantocausas de destruição das fontes de vida do planeta Ter-

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ra, e baseando-se sempre nos pressupostos da ciênciae do progresso, Élisée Reclus torna-se um fervorosoadepto da revolução social, verificando que ela seria aúnica forma de realizar as mudanças bruscas que per-mitiriam a emergência da emancipação social e biológi-ca. Não se julgue que a revolução social era separadamecanicamente de um processo simultâneo de refor-mas que acompanham qualquer evolução. Longe dessaperspectiva, e tendo presente os resultados de sua par-ticipação efetiva na Comuna de Paris, constatou queuma revolução social nunca poderá ser realizada nosentido da emancipação social se em sua gênese esustentabilidade perdurarem as perversões de uma açãocoletiva da multidão ou da “multitude”. Não há açãocoletiva crível e emancipação social sem identidade co-letiva, sem identidade entre os meios utilizados na lutae os resultados finais das mudanças operadas pela re-volução social. Qualquer massa informe e ignara atro-pela esses meios e esses objetivos. Vive, age e senteconforme a sua desgraça e a sua miséria coletiva: “Comefeito, da multitude de indivíduos comprimidos unscontra os outros extrai-se facilmente uma alma comuminteiramente subjugada pela mesma paixão, deixando-se levar pelos mesmos gritos de entusiasmo ou as mes-mas vociferações, não sendo mais do que um ser com-posto por milhares de vozes frenéticas de amor ou deódio. Em poucos dias, em poucas horas, o turbilhão dosacontecimentos leva a mesma multidão às mais contra-ditórias manifestações, de apoteose ou de maldição.Aqueles dentre nós que combateram pela Comuna co-nhecem essas assustadoras ressacas do torvelinho hu-mano. No início, quando estávamos à frente dos acon-tecimentos, seguiam-nos com saudações carinhosas, aslágrimas de admiração brilhavam nos olhos dos que nosaclamavam, as mulheres agitavam os seus lenços do-cemente. Mas qual foi o acolhimento dispensado aos

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heróis da véspera que, após ter escapado do massacre,regressaram como prisioneiros entre duas colunas desoldados! Em muitos bairros, o populacho era compos-to exatamente pelos mesmos indivíduos; mas que con-traste absoluto nos seus sentimentos e a na sua atitu-de! Que conjunto de gritos e maldições! Que ferocidadenas palavras de ódio. “À morte! À morte! Ao fuzilamen-to! Ao torniquete! Para a guilhotina!”16

Sendo defensor do anarco-comunismo preconizadopor Kropotkin, sua opção passa pela defesa intransi-gente das massas trabalhadoras, que eram objeto deopressão e exploração por parte do capitalismo, do Es-tado e da religião. As contradições e os conflitos estru-turavam uma identidade e uma ação coletiva conseqüen-te, em função das condições e dos interesses da classetrabalhadora, que eram radicalmente opostos aos daburguesia, da igreja e da classe burocrática estatal. Namedida em que a emancipação radicava na ação dospróprios trabalhadores, neles residia o projeto de eman-cipação social. Não se deduza, contudo, que essa noçãode classe trabalhadora era redutível ao conceito de classesocial, centrado nos interesses e desígnios do operaria-do industrial. Para além dele, para Élisée Reclus, o con-ceito de trabalhador revolucionário integrava os seto-res agrícola, industrial, serviços e todos os perfis pro-fissionais que não se identificavam com a dominação ea exploração do homem pelo homem e, logicamente, tam-bém não se identificavam com a dominação e explora-ção destes últimos sobre as espécies animais e vege-tais.

No sentido amplo, é possível deduzir da obra de Éli-sée Reclus a lógica revolucionária da luta de classes,quando o operariado luta contra o capitalismo. O mes-mo já não podemos dizer, quando se utiliza o conceitode trabalhador identificado com os desígnios da eman-

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cipação social e do ideal anarquista. Reside aqui suaprincipal contradição. Como é possível estar de acordocom o pressuposto da luta de classes, se ela encerrapressupostos de emancipação social em relação ao Es-tado, à religião e ao capitalismo, mas, por outro lado,mantém a essência de um modelo de produção e deconsumo anarco-comunista baseado na escravidão edominação das outras espécies? Se a revolução socialsó poderá realizar-se a partir de uma ação coletiva, in-tegrando indivíduos livres e soberanos, como é possívelagregar, integrar e identificar interesses, idéias e moti-vações diferenciadas de indivíduos por meio de quais-quer classes sociais, sabendo nós que só podemos falarde classe social com base em uma identidade coletiva eigualdade absolutas no contexto da divisão do traba-lho, da propriedade privada e do trabalho assalariado?O conceito de trabalhadores não resolve, de forma al-guma, essa contradição no pensamento de Élisée Re-clus: “A emancipação dos trabalhadores será obra pró-pria dos trabalhadores, diz a declaração de princípiosda Internacional. Essa palavra é verdadeira no seu sen-tido mais lato. Se é certo que sempre os homens ditosprovidenciais pretenderam realizar a felicidade dos po-vos, não é menos verdade que todos os progressos hu-manos foram realizados graças à própria iniciativa dehomens revoltados ou de cidadãos já livres. É, portan-to, a nós mesmos que incumbe libertarmo-nos, todosnós, os que de qualquer forma nos sentirmos oprimidose nos mantivermos solidários com todos os homens le-sados e que sofrem em todo e qualquer território domundo. Mas para combater, é preciso saber. Não é su-ficiente lançarmo-nos furiosamente à batalha, comoCimbros e Teutões, mugindo debaixo do escudo, comouma vaca, ou soprando num corno de auroque; esta-mos no tempo de prever, de calcular as peripécias daluta, de preparar cientificamente a vitória que nos dará

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a paz social. A primeira condição do triunfo é desemba-raçarmo-nos de todo o tipo de ignorância: é preciso co-nhecer todos os preconceitos que há para destruir, to-dos os elementos hostis a excluir, todos os obstáculosa superar e, por outro lado, não ignorar nenhum dosrecursos de que podemos dispor, nenhum dos aliadosque a evolução histórica nos dá.”17

Do mesmo modo que denotamos a função positivada ciência, dos revoltados e dos homens livres, o papelda auto-educação e da auto-organização é crucial paraque subsista uma interação e uma identidade plenaentre a emancipação individual e a emancipação social.A anarquia ou o ideal anarquista como processo histó-rico está, e foi, no meu entendimento, inteligentementeconcebida. Entre todos os autores clássicos que estãona origem ou fazem parte da construção histórica desseconceito, Élisée Reclus foi o que mais contribuiu paraesse efeito.

Em primeiro lugar, porque sua afirmação clássica “AAnarquia é a mais alta expressão da ordem, sem coaçãoe dominação”, só se pode interpretar, explicar, compre-ender e viver se tivermos presente que, para o autor emquestão, sua essência reside em “Pensar, falar, agir li-vremente em todas as coisas! O ideal da sociedade fu-tura, em contraste e, contudo, na continuação da soci-edade atual, explica-se, pois, da maneira mais clara.Pensar livremente! Em conseqüência, o evolucionista,tornado revolucionário, separa-se de qualquer igrejadogmática, de qualquer corpo estatutário, de qualqueragrupamento político com cláusulas obrigatórias, dequalquer associação, pública ou secreta na qual o sóciodeve começar por aceitar, sob pena de traição, palavrasde ordem incontestadas. Acabaram-se as congregaçõesque só existem para indexar os nossos escritos! Não maisreis nem príncipes para nos pedirem juramentos de obe-

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diência, nem chefes de exércitos para exigir a fidelidadeà bandeira; não mais ministro da Instrução Pública paranos ditar ensinamentos, para determinar até as pas-sagens dos livros que o professor deverá ou não expli-car; não mais comitê diretor que exerça censura doshomens e das coisas na entrada das casas do povo. Nãomais juízes para forçarem a testemunha a prestar umjuramento ridículo e falso, que implica necessariamen-te um perjúrio, dado o fato de o juramento ser em simesmo uma mentira. Não mais chefes de qualquer na-tureza, funcionário, professor, membro do comitê cleri-cal ou socialista, patrão ou pai de família, para se imporcomo senhor a quem é devida obediência.”18

Em segundo lugar, porque sua visão ecológica é ba-seada em um princípio ecossistêmico da luta pela vidacontra todos os pressupostos de morte. A Anarquia, ouo ideal anarquista, não pode ser vivida fora dos pres-supostos da evolução histórica e da revolução social.Esses dois termos são interdependentes e complemen-tares. Se tivermos presente a atualidade da crise do ca-pitalismo, do Estado, da religião e sobretudo da crisedas formas de vida no planeta Terra, então é perfeita-mente clara a afirmação de que a vida e a obra de ÉliséeReclus é mais do que nunca atual e pode ser um bomantídoto para resistir e superar a tragédia biológica esocial que atravessamos.

Notas:1 Cf. Élisée Reclus. L’Anarchie, conférence prononcée le 18 juin 1894 aux mem-bres de la loge “Les Amis Philanthropes” de Bruxelles.2 Cf. Élisée Reclus. Nouvelle Géographie Universelle — La Terre et les Hommes (19vol.). Paris, Librairie Hachette, 1876-1894.

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3 Cf. Élisée Reclus. La Terre et les Hommes — Description des Phènomènes de la Vie duGlobe (2 vol.). Paris, Librairie Hachette, 1870-1972.4 Élisée Reclus. Histoire d’un Ruisseau, Arles, Ed. Actes Sud, 1995, pp. 205-206.5 Élisée Reclus. “La grande Famille”, in Le Magazine International, janeiro 1897,pp. 3-4.6 Élisée Reclus, op. cit., 1995, p. 13.7 Élisée Reclus. El Hombre y la Tierra (8 vol.). Madrid, Doncel, 1975, p. 294.8 Idem, p. 72.9 Ibidem, pp. 227-228.10 Ibidem, p. 44.11 Ibidem, p. 65.12 Ibidem, p. 68.13 Ibidem, p. 118.14 Ibidem, p. 153.15 Élisée Reclus. L’Evolution, la Révolution et l’Idéal Anarchique. Paris, ÉditionsStock, 1906, p. 3.16 Idem, pp. 10-11.17 Ibidem, p. 15.18 Ibidem, p. 26.

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RESUMO

A obra do anarquista Élisée Reclus é apresentada no exercíciode pensar nossa atualidade biológica e social. Para tanto, o arti-go contempla três movimentos: Reclus como precursor da ecolo-gia e do anarco-naturismo, a emancipação social como ponto devista do progresso científico e da evolução civilizatória pautadospela ação individual contra o Estado e, finalmente, o confrontoentre as noções de luta de classes e anarco-naturismo, no interi-or do anarco-comunismo proposto por Reclus.

Palavras-chave: Élisée Reclus, anarquismo, anarco-naturismo.

ABSTRACT

Élisée Reclus’s work is presented in the attempt to think ourbiological and social pertinence. The article comprises, therefo-re, three movements: Reclus as precursor of ecology and anar-cho-naturism; social emancipation as viewpoints of scientificprogress and civilizatory evolution oriented by individual acti-on against the state; and, lastly, the confrontation between thenotions of class struggle and anarcho-naturism, within ÉliséeReclus’s discussion of anarcho-communism.

Keywords: Élisée Reclus, anarchism, anarcho-naturism.

Recebido para publicação em 27/03/2006. Confirmado em31/07/2006.