jose henrique bortoluci
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Periferia e CentralidadeTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
JOS HENRIQUE BORTOLUCI
Pensamento Eurocntrico, Modernidade e Periferia: Reflexes sobre o Brasil e o Mundo Muulmano
So Paulo 2009
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Pensamento Eurocntrico, Modernidade e Periferia: Reflexes sobre o Brasil e o Mundo Muulmano
Jos Henrique Bortoluci Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Peter R. Demant
So Paulo 2009
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BORTOLUCI, Jos Henrique. Pensamento Eurocntrico, Modernidade e Periferia: Reflexes sobre o Brasil e o Mundo Muulmano. Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Histria.
E-mail: [email protected]
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________ Instituio:_______________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. ____________________________ Instituio:_______________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr. ____________________________ Instituio:_______________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________
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O Haiti aqui O Haiti no aqui
Caetano Veloso e Gilberto Gil
A partir das margens ou das periferias, as estruturas de poder e de saber so mais
visveis.
Boaventura de Sousa Santos
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Resumo BORTOLUCI, J. H. Pensamento Eurocntrico, Modernidade e Periferia: Reflexes sobre o Brasil e o Mundo Muulmano. 2009. 221 f. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo.
Na recente literatura em Cincias Sociais, o paradigma eurocntrico da modernidade vem sofrendo ataques de diferentes naturezas. Entretanto, esse paradigma ainda fornece as categorias e formas de pensar hegemnicas para a anlise sobre a modernidade e os obstculos a ela, em sociedades perifricas. Este trabalho busca analisar o setor sociolgico de uma estrutura de atitudes e referncias eurocntricas e as apropriaes deste para a reflexo sobre os dilemas da modernidade, no Brasil e nas sociedades muulmanas. A partir disso, busca-se avanar na crtica a esse paradigma eurocntrico, por meio de um dilogo interparadigmtica ps-colonial este entendida como um programa de estudos crticos modernidade, elaborado a partir de um ponto de vista perifrico. Por fim, pretende-se mostrar que uma srie de elementos dessas abordagens anti-eurocntricas esto presentes em anlises histricas e sociolgicas acerca da modernidade no Brasil e nas sociedades rabes e muulmanas.
Palavras-Chave: Modernidade. Eurocentrismo. Periferia. Brasil. Mundo Muulmano.
Abstract
BORTOLUCI, J. H. Eurocentric Thought, Modernity and Periphery: Reflections on Brazil and the Muslim World. 2009. 221 f. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo.
The Eurocentric paradigm of modernity has been suffering several kinds of attacks in the recent literature of Social Sciences. Nevertheless, such paradigm still provides the hegemonic categories and structures of thought for the reflection about modernity and the obstacles imposed to it in peripheral societies. This work intends to analyze the sociological sector of a eurocentric structure of attitudes and references, and the appropriations of such structure for reflections about the dilemmas of modernity, in Brazil and in Muslim societies. Furthermore, it intends to advance a criticism about that eurocentric paradigm, by means of an inter-paradigmatic postcolonial dialogue such a dialogue understood as a programme of critical studies on modernity, formulated from a peripheral point of view. Finally, this work tries to demonstrate that many elements of those anti-eurocentric approaches are present in historical and sociological analysis about modernity in Brazil and in Arab and Muslim societies. Keywords: Modernity. Eurocentrism. Periphery. Brazil. Muslim World.
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SUMRIO
Agradecimentos ...................................................................................................7 Introduo ..........................................................................................................10 1. Formas e categorias do pensar eurocntrico ................................................15
Orientalismo e Eurocentrismo ......................................................................15
Uma teoria do poder: a tradio do Despotismo Oriental ...........................31 Racionalizao e conduta de vida metdica ................................................41
Internalismo culturalista e histria imvel ...................................................46 2. Pensamento Eurocntrico e os dilemas da modernidade no Brasil e nas sociedades rabes e muulmanas.....................................................................52
Eurocentrismo e o Mundo rabe e Muulmano ............................................56 Discursos eurocntricos e o desafio do moderno no Brasil............................80 Eurocentrismo e periferia ..........................................................................103
3. Modernidade, crtica ao eurocentrismo e o problema da modernidade perifrica...........................................................................................................107
Elementos da razo eurocntrica...............................................................107 Modernidade e Ocidente............................................................................115 Uma tentativa de inserir a diversidade: a abordagem das mltiplas modernidades ...........................................................................................123 Para alm das Mltiplas Modernidades: dilogos tericos por uma teoria crtica da modernidade a partir da periferia.................................................135
4. As sociedades rabes e muulmanas: modernidade perifrica como simbiose do arcaico e do moderno..................................................................158 5. Marxismo dialtico brasileiro e a busca da especificidade da modernidade perifrica...........................................................................................................176 Consideraes Finais.......................................................................................204 Bibliografia .......................................................................................................210
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Agradecimentos
A imagem mais corriqueira que se tem de um pesquisador na rea de
Cincias Humanas mesmo daquele que apenas comea e engatinhar por essa
vida uma imagem de solido: as longas horas em frente a um amontoado de
livros, textos e notas, em uma biblioteca ou gabinete, com a companhia discreta da
quinta ou sexta xcara de caf do dia. Essa imagem, reveladora de um
comportamento comumente entendido como adequado, parece ser o ndice de
validade do trabalho desse pesquisador: uma vez que no dispomos de laboratrios
onde podemos aplicar e replicar nossos experimentos, o trabalho constante e
solitrio aparece como um dos nicos garantidores de que aquela pesquisa algo
srio e no um desperdcio de tempo com diletantismo vazio.
Esse sentimento de mergulho solitrio deve marcar, creio eu, a experincia da
maioria dos que se iniciam pelas bandas da pesquisa. Aprendemos desde o incio
que os prazos devem ser cumpridos, que s se d conta da bibliografia com
trabalho obstinado, que temos que delimitar nossos objetos (que terror...) e que a
dissertao no se escreve da noite pro dia. Vamos aprendendo, como dizia o
mestre Florestan Fernandes, que cincia trabalho e trabalho duro.
Contudo, essa imagem do aprendiz de pesquisador solitrio, mergulhado em
seus livros, esconde uma realidade fundamental: s possvel pensar, produzir e
crescer coletivamente. Se o trabalho individual e constante tem uma importncia
crucial e evidente que ele tem , estou muito seguro de que ele s ganha
sentido quando serve como maneira de sintetizar vivncias e aprendizados que so
coletivos.
Entendo este trabalho como a sntese dessas muitas experincias coletivas
de que tive a felicidade de fazer parte, sobretudo nos ltimos seis anos de minha
vida, desde que ingressei no curso de Relaes Internacionais, na Universidade de
So Paulo. Ali, pude conhecer pessoas excepcionais e participar de inmeros
espaos de formao. Com essas pessoas e nesses espaos, aprendi, entre tantas
outras coisas, que a vida intelectual s vale a pena se ela aponta para um processo
de humanizao que v muito alm de uma aquisio individual de habilidades,
conhecimentos ou ttulos. Uma humanizao que parte de uma insatisfao brutal
com o estado de coisas e com a mais do que comum passividade acadmica frente
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a elas; mas que entende que apenas com uma prtica poltica e dialgica constante
pode-se tentar chegar coletivamente, mais uma vez a um mundo em que todos
tenham a chance de transpor a fronteira entre o ser e o ser mais, nas palavras de
Paulo Freire.
Muitos me acompanharam neste breve percurso, at aqui. Agradeo,
inicialmente, ao Professor Peter Demant meu orientador desde 2003, quando
comecei meu primeiro projeto de iniciao cientfica. Sua dedicao ao meu
desenvolvimento acadmico foi de importncia fundamental. Alm disso, agradeo
pelo seu humanismo e sua capacidade de discordar respeitosamente, sem nunca
ter expressado nenhuma exigncia de que seus pontos de vista e opinies
determinassem, por menos que fosse, minhas concluses.
Os professores Paulo Daniel Farah e Gildo Maral Brando, membros de
minha banca de qualificao, desempenharam um papel muito importante para a
elaborao deste trabalho. Tambm tive o prazer e a oportunidade de cursar, no
meu primeiro semestre de mestrado, uma disciplina sobre o pensamento poltico
brasileiro com o professor Gildo, fundamental em uma fase em que os problemas
aqui apresentados estavam ainda em uma primeira etapa de maturao. Agradeo
tambm aos professores Bernardo Ricupero, Jess Souza e Srgio Costa, com
quem tive a oportunidade de discutir alguns dos temas aqui apresentados, em
diferentes ocasies.
Agradeo Fapesp pelo financiamento desta pesquisa, entre maro de 2007
e fevereiro de 2009. Aproveito para agradecer imensamente a cada uma das
pessoas que me auxiliaram ao longo destes anos, para que minha formao
universitria fosse possvel ou menos penosa em particular ao meu primo
Geraldo, ao meu tio Carlos, aos Srs. Baltazar S. Parra e Durval Mangilli, e famlia
Watanabe.
Agradeo a cada aluno com quem dividi uma sala de aula na Fundao
Escola de Comrcio lvares Penteado (FECAP), onde tive a satisfao de lecionar
ao longo destes dois anos e meio, principalmente no Bacharelado em Relaes
Internacionais. Agradeo igualmente aos meus colegas naquela instituio, em
particular aos coordenadores do Bacharelado, Cludia e Glauco, pelas
oportunidades e pelo companheirismo.
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A lista de amigos que me acompanharam at aqui muito grande, e
certamente h um pouco de cada um deles neste trabalho. No irei nome-los um a
um j que com isso corro o srio risco de me esquecer de pessoas fundamentais
, mas apenas lembrar de algumas pessoas que estiveram comigo em momentos e
espaos fundamentais.
Agradeo aos meus colegas da turma de 2006 do Bacharelado em Relaes
Internacionais: so tantas as pessoas entre estas por quem sinto carinho e gratido,
que tenho apenas a lamentar que nossos encontros sejam cada vez mais raros.
Aos grandes amigos de Ja, meu recanto, responsveis por muito do que sou e
por continuarem sendo pessoas to especiais.
Sou eternamente grato aos meus grandes amigos da Veredas em
particular aos muito queridos Tassia, Ernesto, Fatah, Talita e Sarah ,
companheiros de gesto Centro Acadmico de Relaes Internacionais no ano de
2004, com quem pude ir vivenciando um sentimento do mundo, desde ento.
Sentimento esse que foi explorado, aprofundado e recriado pelos amigos da
Terceira Margem uma felicidade conviver com pessoas brilhantes e especiais
como o Gabriel, a Andreza, o Lo, o Thiago, o Srgio, a Cris, a Ndia, a Lu e, de
forma especial, o Jonas e o Caio amigos sinceros, a quem tanto devo.
Participei, com muitos desses e outros amigos e companheiros, de um grupo
de estudos sobre teorias do imperialismo e sociologia paulista, ao longo dos ltimos
dois anos. Talvez no seja preciso dizer que este trabalho tem uma dvida imensa
com todos esses imperialistas sobretudo o captulo 5, que fruto direto de
nossas discusses conjuntas.
Ao Joo Paulo, responsvel por momentos quase dirios de alegria um
amigo precioso, de quem tenho a imensa sorte de ser irmo.
Melina, por me tornar algum melhor e renovar minhas esperanas a cada
dia vamos de mos dadas.
Aos meus pais, meus grandes mestres, Dirce e Jos (Didi) a quem
humildemente dedico este trabalho. A eles, devo absolutamente tudo.
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Introduo
Na capa da edio 2047 da revista Veja, de 13 de fevereiro de 2008, somos
confrontados com uma imagem que, a princpio, deixa pouco espao para dvidas e
exige poucos esforos de raciocnio. Vemos ali uma espcie de gnio da lmpada,
ou um sulto brasileiro. O membro da elite burocrtica do governo federal como
indica a manchete flutua em seu tapete voador, este estampado como um carto
de crdito. Em sua cabea, um turbante:
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O tapete voador, o turbante e a posio dos braos daquele membro
exemplar da elite burocrtica brasileira remetem ao universo mgico das Mil e uma
Noites. Ela traz mente as imagens, histrias e encantos de um outro mundo. Um
mundo de odaliscas e sultes, de harns, desertos, encantos e mistrio. Um mundo
que no o das modernas burocracias ocidentais apesar do fato de o nosso
personagem vestir um terno, traje que, na imagtica ocidental, remete a uma
posio masculina de respeito e autoridade. Os elementos do extico,
evidentemente, ganham preeminncia frente ao elemento frgil, que esse
enganoso terno.
No haveria, ento, como disfarar: essa elite oriental nada teria a ver com
o mundo racionalizado dos aparatos de estado e do capitalismo ocidentais.
Essa elite prpria a um mundo encantado ou seja, um mundo que no se
desencantou, como Weber nos ensina sobre o processo de racionalizao por que
passaram as modernas sociedades ocidentais. Um mundo preso tradio,
magia, s relaes pessoais e familiares, onde o gozo imediato vale mais que a
lgica do trabalho e do ascetismo. Um mundo em que a casa tem precedncia
sobre a rua e em que o estado ter constitudo a sociedade, e no o contrrio. Um
estado que tudo, enquanto a sociedade no nada.
A revista nos ensina qual o padro de comportamento dessa elite
burocrtica: com seus hbitos irresponsveis, sua propenso farra, nada
condizente com valores republicanos ou ascticos, essa elite burocrtica gastaria
ao seu bel-prazer todo o dinheiro suado do povo. Esse grupo desponta como a
fonte dos males que assolam a sociedade brasileira. Ela a responsvel pelo
atraso do pas, o obstculo mudana. Vivem em um mundo encantado e
impedem que a sociedade se desencante. Esses donos do poder comporiam o
estamento anti-moderno, que impede que as ondas progressistas da modernizao
se alastrem pelo tecido social. Localizam-se no topo, pairam sobre as nuvens, longe
de qualquer controle ou contato com a sociedade.
O crculo proposto por essa imagem vai se fechando. Ela oferece, a todos
aqueles que passam os olhos pela capa da revista, uma porta de entrada para uma
interpretao do Brasil e, mais do que isso, para um conceito de modernidade e
de modernizao. A operao parece se dar em dois nveis: primeiramente, essa
elite descrita como oriental; ao mesmo tempo, o oriental subentendido como
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tudo aquilo que se afasta do moderno e, assim, do racional, do aceitvel e do
justo. Portanto, um Brasil oriental equivaleria a um Brasil no moderno, ou seja,
a um pas atrasado, dominado por uma elite governamental corrupta, distante do
povo, da sociedade.
Um Brasil incompleto, que ainda no teria chegado l l, onde chegaram
as modernas sociedades ocidentais. Por ainda aguardar na sala de espera da
histria, acompanhado das outras naes atrasadas, a crnica de seu destino s
poderia ser narrada pela negativa sua histria se reporia continuamente, marcada
por um fatdico ainda no.
*
Essas operaes, pressupostas pela imagem oferecida pela revista, no so
triviais, bvias ou necessrias. Elas se assentam, pelo contrrio, em uma narrativa
hegemnica da modernidade e de seus outros. Uma narrativa que se foi
constituindo simultaneamente constituio da prpria idia de Ocidente e de seu
contato com povos coloniais ou com os imprios orientais, e que depois foi
apropriada de formas diversas para a compreenso sobre os destinos histricos de
sociedades perifricas e no apenas do Brasil, evidentemente. Na histria do
pensamento social dessas naes, os esforos de autocompreenso
corresponderam (e correspondem), com extrema freqncia, a um exerccio de
comparao com aquilo que, supostamente, teria se constitudo nas modernas
sociedades ocidentais. Mas essas imagens sobre o moderno e o no moderno
tambm povoam o imaginrio cotidiano, os discursos do senso comum e so, com
imensa freqncia, mobilizados pelos meios de comunicao dessas sociedades ou
de estados ocidentais modernos, quando buscam represent-los.
Essa narrativa eurocntrica da modernidade que corresponde auto-
imagem hegemnica do centro hegemnico do sistema-mundo moderno e as
alternativas tericas a ela so os objetos centrais deste trabalho. Procuro nele
analisar, em particular, como essa forma de ver a modernidade, prpria ao discurso
eurocntrico, leva a que as histrias das sociedades perifricas sejam narradas sob
o signo da incompletude ou do fracasso, cuja culpa normalmente atribuda a
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traos internos de cada uma dessas sociedades, os quais funcionariam como
bloqueios ao processo de modernizao.
Parto, para isso, de um dilogo crtico com vrias vertentes do que se
convencionou chamar de Estudos Ps-Coloniais, Descoloniais, Culturais e
Subalternos. Esses trabalhos fornecem, de incio, uma espcie de enquadramento
geral de problemas e perspectivas, a partir das quais busquei propor leituras,
aproximaes e confrontaes com outras tradies tericas, seja para critic-las
ou para enquadr-las no interior de um possvel programa anti-eurocntrico. Nesse
sentido, no procuro me filiar a nenhuma teoria particular nem desenvolver uma
perspectiva terica original, mas, seguindo algumas trilhas que vm sendo
desbravadas em uma srie de teorias crticas contemporneas e por estudos
histricos e sociolgicos sobre o Brasil e as sociedades muulmanas, apontar para
possveis dilogos que sirvam quele programa inter-paradigmtico e
interdisciplinar a que acabei de me referir.
No captulo inicial, parto de uma crtica ao primeiro modelo anti-eurocntrico
elaborado por Edward Said, em a Orientalismo (1978). Busco mostrar, em seguida,
como alguns trabalhos ps-coloniais posteriores buscaram solucionar os dilemas
desta obra, permitindo que seus insights tericos pudessem ganhar maior
preciso conceitual e potencial crtico. A partir dessa primeira considerao,
discorro brevemente sobre a constituio de uma estrutura de atitudes e referncias
eurocntricas e, sobretudo, de um setor sociolgico dessa estrutura, em alguns
momentos fundamentais do moderno pensamento social.
A seguir, no captulo 2, busco mostrar como aquela estrutura foi apropriada,
de formas diversas, para uma reflexo sobre os obstculos modernidade, no
Brasil e nas sociedades muulmanas. Para isso, concentro-me em alguns autores
representativos, tanto clssicos quanto contemporneos, que desenvolveram
interpretaes gerais sobre a histria e a estrutura social dessas sociedades, a
partir de diferentes apropriaes daquela estrutura de atitudes e referncias
eurocntricas.
No captulo 3, procuro realizar uma crtica a esse paradigma eurocntrico,
sobretudo pelas limitaes e mistificaes que impe para uma anlise da
modernidade em sociedades perifricas. Procuro analisar brevemente uma srie de
perspectivas tericas e particularmente a perspectiva das Mltiplas Modernidades,
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os Estudos Ps-Coloniais e trabalhos da tradio marxista , tentando delinear
alguns elementos de um programa terico crtico modernidade perifrica que seja,
ao mesmo tempo, um programa crtico modernidade, elaborado a partir de um
ponto de vista perifrico.
Por fim, nos captulos 4 e 5, procuro mostrar que as questes apontadas no
captulo 3 encontram um espao fundamental em uma srie de anlises histricas e
sociolgicas que buscaram enfrentar os desafios colocados pelo paradigma
eurocntrico. No caso das sociedades rabes e muulmanas, apresento algumas
das leituras sobre a simbiose entre o arcaico e o moderno na constituio dessas
modernidades perifricas e ps-coloniais. No caso do Brasil, foco-me nas
contribuies do marxismo dialtico brasileiro, em particular dos estudos
histricos, sociolgicos e literrios derivados de uma intuio de Brasil, originada
no conhecido Seminrio dO Capital, a partir de fins dos anos 1950, na Faculdade
de Filosofia da Universidade de So Paulo. Em ambos os casos, procuro mostrar a
necessidade do dilogo entre uma agenda terica direcionada a uma teoria crtica
da modernidade perifrica e o pensamento social desenvolvido em naes
perifricas.
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1. Formas e categorias do pensar eurocntrico
Podemos, portanto, ver claramente como, entre os sculos XVIII e XX, a hegemonia das minorias
possuidoras revelada por Marx e Engels e o antropocentrismo desmantelado por Freud seguem de
mos dadas com o eurocentrismo nas Cincias Humanas e Sociais, principalmente naquelas que tm
relao direta com os povos no-europeus
Anouar Abdel-Malek, 19751
Orientalismo e Eurocentrismo
O conceito de orientalismo adquiriu notoriedade (e, preciso dizer, forte
carter pejorativo) nas cincias sociais a partir de 1978, com o lanamento do livro
Orientalism, de Edward Said. At ento, o termo no era visto de forma
depreciativa, sendo geralmente utilizado para caracterizar estudos sobre o Oriente
desenvolvidos por pesquisadores e instituies ocidentais. Said, um intelectual
palestino radicado nos Estados Unidos, desenvolve naquele livro uma ampla
anlise da produo cultural e terica europia (sobretudo francesa e inglesa)
acerca do Oriente que teria constitudo a tradio orientalista, alvo de suas
profundas crticas.
Na verdade, a crtica ao pensamento eurocntrico ou orientalista nas
academias centrais anterior ao livro de Said, tendo ocupado espao j nas
dcadas de 60 e 70, estimulada, sobretudo, pelos processos de independncia
nacional no terceiro mundo e articulada principalmente em linguagem e conceitos
marxistas as obras de Anouar Abdel-Malek e Maxime Rodinson esto entre as
mais representativas desse conjunto de trabalhos. Alm disso, Said e os estudos
ps-coloniais posteriores ajudaram a popularizar, na academia ocidental, uma
tradio anti-eurocntrica que, no sculo XX, teve como notveis representantes
pensadores da descolonizao e da negritude, em geral advindos de regies
perifricas e apresentando em suas biografias alguma forma de envolvimento em
1 Citado em Wallerstein (2007: 68).
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lutas anti-racistas ou pela descolonizao nomes como Frantz Fanon, C.L.R.
James, Aim Csaire e Amlcar Cabral saltam mente2.
Com Said, a crtica ao orientalismo no ganha apenas notoriedade, mas
passa a sofrer uma profunda influncia do pensamento estruturalista e ps-
estruturalista francs sobretudo das anlises de discurso e da reflexo sobre a
constituio de mecanismos de poder enredados em tramas discursivas,
desenvolvidas por Michel Foucault. Desde a dcada de 1970, tornou-se quase uma
moda incontornvel nos setores crticos da academia norte-americana a referncia
ao pensamento de autores como Foucault, Derrida e Lyotard, nas diversas reas
das Humanidades. No exagero notar que Said um dos precursores e um dos
mais influentes promotores dessa apropriao do pensamento francs
contemporneo pela academia norte-americana. Os chamados Estudos ps-
coloniais so, em grande medida, um captulo desse processo de apropriao.
Para Said, o orientalismo um estilo de pensamento baseado em uma
distino epistemolgica e ontolgica entre o Ocidente e o Oriente. Essa distino
fundamental seria o ponto de partida para a elaborao de teorias, romances, obras
de arte e outras peas culturais sobre o Oriente, seus povos e costumes (Said,
2003: 2). Porm, o orientalismo no constituiria apenas uma forma de
representao: essa duplicao do discurso (Oriente versus Ocidente) prpria ao
Orientalismo seria marcada de uma pretenso de estereotipar o outro no caso, o
outro do discurso, o Oriente e de reduzi-lo a uma determinada essncia. O
2 Entretanto, nem sempre os recentes estudos ps-coloniais reconhecem-se como continuadores de uma espcie de linhagem poltico-terica que remonta ao pensamento radical anticolonial ou anti-racista. Como aponta Bart Moore-Gilmort (1997: 15), apenas em meados da dcada de 80 Said teria reconhecido a existncia de trabalhos predecessores ao seu no tipo de crtica que ele buscava avanar. O mesmo pode ser dito de Gayatri Spivak e Homi Bhabha que, juntos de Said, vieram se firmando como a trade maior dos estudos ps-coloniais dando a entender, em diversos momentos, que a origem de suas reflexes se assenta muito mais firmemente na alta cultura ocidental do que no pensamento e na ao de homens e mulheres em disputa contra o legado da colonizao. Contudo, parece-me que essa uma tendncia que, felizmente, vem se enfraquecendo: os textos de autores ps-coloniais, subalternos e da rea de Estudos Culturais parecem vir abrindo espao, nos anos recentes, para uma retomada do legado daqueles pensadores antes tidos como polticos ou anti-acadmicos, ao menos nas academias centrais , sem o abandono de autores crticos e da tradio do alto humanismo ocidentais. Creio que essa mudana pode ser observada, por exemplo, na prpria obra de Said: este autor, a partir da dcada de 1990 e, em especial, em Cultura e Imperialismo (1993), voltou-se em grande medida para as vozes emergentes e contra-discursos subalternos em situaes coloniais e ps-coloniais, como veremos frente.
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orientalismo ter-se-ia desenvolvido como um estilo ocidental de dominar,
reestruturar e exercer autoridade sobre o Oriente (Said, 2003: 3).
Said tenta mostrar que o orientalismo no uma fantasia etrea da Europa
sobre o Oriente, mas sim um grande corpo terico e prtico em que houve, por
diversas geraes (sobretudo, ao longo dos sculos XVIII e XIX, mas com
repercusses que chegam at nossos dias), um considervel investimento material.
Tendo tido seus principais elementos desenvolvidos ao longo do enfrentamento
europeu contra o Oriente em sua expanso econmica e militar, o orientalismo seria
uma dimenso considervel da cultura poltica e intelectual moderna (Said, 2003:
12) no interior da qual, convm afirmar, desenvolveram-se os principais discursos
sociolgicos sobre a modernidade.
O prprio Said afirma que o uso do termo orientalismo para a produo
contempornea refere-se s formas pelas quais cientistas sociais e produtores
culturais nutrem-se de elementos do discurso orientalista original europeu, dos
sculos XVIII e XIX3 (Said, 2003: 19). O conceito de discurso central para a
compreenso da abordagem geral de Said em Orientalismo, assim como para uma
reflexo sobre esse processo de nutrio terica.
Como afirma Stuart Hall, refletindo sobre o legado terico de Said, um
discurso orientalista uma forma particular de representar o Ocidente, o Resto
(no-Ocidente) e a relao entre eles. Um discurso um grupo de afirmaes que
constituem uma forma de representar um tipo particular de objeto. O prprio
conceito de discurso no se basearia na distino convencional entre pensamento e
ao, linguagem e prtica: a idia de discurso refere-se produo de
conhecimento a partir da linguagem; mas ele prprio produzido por uma prtica,
ou seja, a prtica de se produzir sentido (Hall, 1992: 291). Dessa forma, o conceito
de discurso orientalista pode ser entendido como uma srie de formas de
representao concatenadas logicamente, que fornecem a base categorial e o
domnio analtico a partir do qual se desenvolvem esforos de compreenso de
realidades sociais tidas como no-ocidentais. O ncleo articulador desse discurso
uma distino entre o desenvolvimento das sociedades ocidentais (tido como
normal ou clssico) e o desenvolvimento das outras sociedades: o Oriente 3 Alis, como bem mostram Perry Anderson e Norberto Bobbio, mesmo essa produo dos trs ltimos sculos nutre-se de categorias gestadas ao menos desde Aristteles. Um bom exemplo disso a histria do conceito de despotismo oriental, de que tratarei mais frente (Anderson, 1985; Bobbio, 1996).
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(estagnado, irracional e atrasado) construdo como um contraste, um outro a
partir do qual se pode caracterizar o prprio Ocidente (dinmico, racional e
progressista) (Turner, 1994: 96). de se observar que, no interior desse discurso,
o conceito de Oriente no necessariamente geogrfico: ele delimita, sobretudo,
uma fronteira entre o ns (Ocidente) e o eles (no-Ocidente), no interior de uma
relao que produz e reproduz o outro como inferior, ao mesmo tempo em que
permite definir o ns, o si mesmo, em oposio a este outro... (Costa, 2006: 119).
Dessa forma, a crtica ao orientalismo, popularizada por Said, mas
desenvolvida anterior e posteriormente por uma srie de autores, , sobretudo, um
mtodo de desconstruo de essencialismos. Para efetuar essa crtica, o que se
deve observar em uma determinada produo terica no somente, segundo
Said, a sua fidelidade ao original representado, mas o estilo de abordagem, as
figuras de linguagem, as estruturas categoriais e os mecanismos narrativos (Said,
2003: 20-21).
Nas ltimas trs dcadas, poucas obras nas reas de Cincias Sociais e
Humanidades despertaram maior polmica em todo o mundo do que Orientalismo.
O livro, por seus avanos e, principalmente, pela imensido de caminhos abertos a
novas investigaes empricas e tericas, produziu clivagens acadmicas e
ascendeu disputas ferinas entre crticos de todos os tipos. No meu objetivo aqui
realizar uma reviso das recepes de Orientalismo, nem mesmo elencar
sistematicamente as possveis crticas obra4. Entretanto, preciso apontar que
esse primeiro esquema anti-eurocntrico saidiano como quase toda corajosa pea
de interferncia no debate acadmico possui algumas fragilidades na forma de
constituir suas categorias fundamentais e de abordar os materiais utilizados; essas
insuficincias constituem desafios a uma crtica a discursos eurocntricos que se
proponha a analisar textos de naturezas diversas, produzidos em diferentes
contextos.
Nota-se, inicialmente, que bastante vacilante a forma como Said trata a
relao entre discurso orientalista e imperialismo ao longo do livro. Apesar de
estabelecer uma ligao entre ambos, Said parece oscilar entre uma considerao
da determinao discursiva sobre o mundo material (o orientalismo gera o
imperialismo) e o oposto (o imperialismo gera o orientalismo). muito provvel
4 Para isso, remeto a Moore-Gilbert (1997) e Demant (2007).
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que o autor no assumiria nenhuma dessas alternativas: a prpria noo de
discurso, da forma como ele a apresenta, restringe tal tipo de simplificao.
Entretanto, no so poucas as vezes em que Said parece fornecer uma espcie de
autonomia ao setor discursivo dos instrumentos de dominao, que faz com que
sua categoria de orientalismo resvale na imagem de uma entelquia histrica: o
Orientalismo, estrutura sem sujeito, geraria um Oriente a servio de um Ocidente
dominador5. Essa espcie de determinao estrutural do discurso orientalista leva a
que Said construa uma imagem unitria do orientalismo: ele parece abarcar tudo,
munido de uma potncia (quase) auto-sustentvel.
Essa forma de descrever o orientalismo deve-se, em grande parte, ao uso
particular que faz Said dos trabalhos em que Foucault desenvolve de forma mais
acabada suas anlises de discurso e sua abordagem da constituio da episteme"
ocidental em especial As palavras e as coisas (1966) e A Arqueologia do Saber
(1969) , alm de livros em que Foucault descreve a constituio de dispositivos de
controle ocidental e a forma como estes servem constituio da subjetividade
moderna, como Vigiar e Punir (1975).
A influncia de Foucault nessa primeira fase de estudos de Said acerca dos
discursos ocidentais sobre o Oriente notvel, a ponto de nos convidar ao
questionamento de outras possibilidades, no declaradas no texto de Said, de
paralelo entre as obras. Como exemplo disso, no seria descabido sugerir que o
estudo arqueolgico de Said sobre os discursos acerca do Oriente obedece a uma
lgica comparvel aos estudos de Foucault sobre a loucura e a internao,
sobretudo a Histria da Loucura (1961). Se em A palavra e as coisas o pensador
francs buscava reconstituir a arqueologia da razo moderna, naquele trabalho ele
voltava-se compreenso das formas pelas quais a cultura europia moderna se
constituiu a partir de um mecanismo de excluso, pela definio de reas, em
particular a loucura, nas quais ela no mais se efetivaria apesar de tais reas
terem sido constitudas por essa prpria cultura. Trata-se, em sntese, de uma
5 Outro problema, menos importante para os objetivos deste trabalho, a dvida sempre presente na escrita de Said sobre sua crena na existncia do Oriente. Said oscila entre a idia de que o Ocidente cria o Oriente e de que o Ocidente representa falsamente o Oriente aproximando o orientalismo, nesta segunda formulao, da idia de ideologia, como tratada na tradio marxista (Moore-Gilbert, 1997). Entre os diversos motivos dessa oscilao, comum apontar-se que Said ainda no haveria conseguido, nessa obra, combinar de forma no contraditria suas referncias marxistas (sobretudo Gramsci) e ps-estruturalistas (Foucault).
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histria do outro da razo, indissocivel de uma histria do mesmo da razo.
Sem desenvolver aqui essa questo, diria que Said, voltando-se para a constituio
de uma forma diferente de outro da razo europia, realiza um esforo em muitos
aspectos comparvel de reconstruo das tramas de discurso e poder que deram
origem s formas fundamentais da moderna subjetividade europia.
Centremo-nos aqui, contudo, na apropriao das anlises de discurso e das
consideraes epistemolgicas de Foucault realizada por Said. Nas palavras do
prprio Said:
I have found it useful here to employ Michel Foucaults notion of a discourse, as described by him in The Archeology of Knowledge and Discipline and Punish, to identify Orientalism. My contention is that without examining Orientalism as a discourse one cannot possibly understand the enormously systematic discipline by which European culture was able to manage and even produce the Orient politically, sociologically, militarily, ideologically scientifically, and imaginatively during the post-Enlightenment period. Moreover, so authoritative a position did Orientalism have that I believe no one writing, thinking or acting on the Orient could do so without taking account of the limitations on thought and action imposed by Orientalism (Said, 2003: 3).
Essa forma de descrever o orientalismo como fornecedor das condies de
possibilidade do conhecimento e da ao sobre o Oriente parece-me amplamente
baseada na idia foucaultiana de episteme. Tal conceito, em Foucault,
fundamental para suas reflexes sobre as possibilidades do conhecimento e sobre
a constituio das disciplinas ocidentais. A episteme a concatenao de prticas
discursivas de uma determinada poca, dotada de regras e condies a partir das
quais o prprio conhecimento se torna possvel. Foucault descreve a episteme
como o espao ...onde os conhecimento, encarados fora de qualquer critrio
referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enrazam sua positividade
e manifestam assim uma histria que no a de sua perfeio crescente, mas,
antes, a de suas condies de possibilidade (Foucault, 2007: XVIII; destaque meu).
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Nesse sentido, o orientalismo, apesar de restrito a um determinado setor da
experincia ocidental6, forneceria, para Said, as condies de possibilidade de todo
conhecimento e de toda prtica direcionados quela entidade qual o Ocidente se
contrapunha. Ele poderia ser lido como o fundamento de racionalidade de qualquer
elaborao intelectual, artstica ou poltica que tematizasse aqueles povos ou
regies. De forma geral, essa idia sobre a operao do orientalismo baseia-se
amplamente em uma concepo igualmente foucaultiana sobre as formas de
operao do poder: este, disseminado socialmente, constituiria os objetos do
conhecimento. Em sntese, Said busca mostrar, em Orientalismo, a constituio de
um Oriente discursivo como contraponto a um Ocidente em constituio, ou seja,
a constituio de um discurso que mediaria ou ordenaria logicamente a relao
entre Ocidente e Oriente (Moore-Gilbert, 1997: 38). Independentemente se
simpticos ou no com relao ao Oriente, os discursos ordenados a partir do
discurso orientalista seriam dominados por uma vontade de potncia do Ocidente
sobre o Oriente este seria descrito como essencialmente sem voz, sensual,
feminino, desptico, irracional e atrasado, sendo o Ocidente o seu negativo.
No grande surpresa apontar que Orientalismo recebeu crticas muito
prximas quelas feitas ao estruturalismo e ao ps-estruturalismo em geral, como
as que j apresentamos acima. O alvo fundamental a prpria categoria de
6 Certamente, o orientalismo um conceito muito mais restrito que o de episteme. Com este, Foucault, sobretudo em As Palavras e as Coisas provavelmente seu texto mais marcado pelo estruturalismo e, segundo comentaristas, a obra sntese desse movimento intelectual (ver Dosse, 2007: cap. 34) procurou descrever a constituio da episteme moderna como aquela que fornecia o solo para qualquer conhecimento: Numa cultura e num dado momento, nunca h mais de uma epistm, que define as condies de possibilidade de todo saber. Tanto aquele que se manifesta numa teoria quanto aquele que silenciosamente investido numa prtica (Foucault, 2007: 230). Contudo, a forma como Said opera esse conceito para a rea especfica dos estudos sobre o Oriente assemelha-se muito ao esforo de Foucault. de se observar que o orientalismo, como descrito por Said, teria uma potncia duradoura maior do que qualquer das epistemes descritas poelo pensador francs uma vez que este descreveria, em A Palavra e as Coisas, a sucesso dessas ao longo do perodo moderno, enquanto Said parece abarcar na mesma estrutura discursiva, ao longo de Orientalismo, textos clssicos escritos na Antigidade ou no incio do Renascimento como A Divina Comdia, de Dante e textos jornalsticos ou discursos polticos correntes, sem maior especificao das diferenas desses textos em relao sua estrutura interna e s suas relaes com a poltica de seus tempos. Alguns crticos apontaram a dificuldade em definir temporalmente o perodo de vigncia do discurso orientalista como um obstculo ao argumento de Said. Aijaz Ahmed, por exemplo, aponta que Said oscilaria entre uma delimitao moderna desse discurso (via influncia de Foucault) e de sua associao com uma textualidade europia contnua, cujas origens estariam na Grcia antiga esta segunda opo sendo uma influncia direta, segundo Ahmad, do alto humanismo de autores como Erich Auerbach, cuja obra teria marcado profundamente a formao de Foucault (ver Ahmad, 2002: 110-116).
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orientalismo, que, em muitos momentos, no deixa margem para a diferena em
seu interior; essa categoria, em outros termos, traz dificuldades para a anlise de
obras individuais e contextos especficos, assim como impe barreiras a uma
considerao das disputas constantes (polticas e intelectuais) a respeito das
possibilidades de representao do no-ocidental. Em sntese, o maior risco das
investidas de Said a descrio do orientalismo como um mal congnito do
Ocidente: o orientalismo pode ser lido como uma espcie de ontologizao da
incompreenso ocidental sobre o oriental.
Quanto ao problema dos contextos diversos, uma crtica comum que vem
sendo desenvolvida por autores latino-americanos que esse primeiro esquema
saidiano deixaria de fora experincias de sociedades que se constituram no
entrechoque com o colonizador portugus ou espanhol em um perodo de primeira
modernidade (ver, por exemplo, Dussel, 2000; Mignolo, 2000 e 2003; e Quijano,
2000). Essa considerao de extrema importncia para este trabalho: o discurso
europeu no nasce e encontra sua forma definitiva como um orientalismo no
h critrios histricos para se afirmar que o processo de dominao europia sobre
populaes no-europias teria sua realizao mxima no perodo posterior ao
Iluminismo e Revoluo Industrial, como parece sugerir o recorte de Said. Trata-
se de um processo anterior, distinto em suas mltiplas realizaes e que gerou uma
diversidade de formas discursivas eurocntricas atreladas a processos materiais de
dominao.
Esses tipos de crtica a Orientalismo, de formas e em tons diversos, ir
marcar tanto os trabalhos que buscam se afastar ao mximo da obra de Said
(como, por exemplo, Irwin, 2008; Lewis, 1993), quanto aqueles que, de alguma
forma, compartilham de preocupaes intelectuais e polticas com o autor (Ahmad,
2002; Dirlik, 2003; Moore-Gilbert, 1997; Quijano, 2000). O prprio Said, nas duas
dcadas seguintes publicao de seu clssico, passou a absorver grande parte
dessas crticas, porm sem abandonar a coerncia de um projeto intelectual
militante e anti-eurocntrico. Sobretudo no livro Cultura e Imperialismo, Said busca
uma caracterizao das formas de entrelaamento entre cultura metropolitana e
imperialismo que se afasta de forma significativa daquele estruturalismo dramtico
de Orientalismo. Nesse processo, a sombra de Foucault, apesar de nunca
desaparecer, vai perdendo espao para outras referncias tericas sobretudo
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para Gramsci e pensadores descoloniais e perifricos, como C.L.R. James e
Fanon.
Nesse novo enquadramento que se vai constituindo entre o incio da dcada
de 1980 e meados da dcada de 1990, menos totalizante e mais flexvel que o
inicial, Said mostra grande desconforto com a ausncia de uma perspectiva de
mudana e de uma possibilidade de agncia no esquema foucaultiano de anlise de
discurso. Tendo isso em mente, como j apontado, Said passa a dar maior
centralidade s manifestaes de resistncia dominao ocidental material e
discursiva. Nessa nova forma de abordar o mesmo problema, Said tenta escapar da
priso estruturalista que ele havia erigido em seu livro clssico. Como aponta
Ahmad, em Orientalismo, Said buscaria mostrar o n secular que se teria firmado
entre o Alto Humanismo ocidental e o colonialismo; contudo, ao buscar
brevemente refletir sobre as formas de agncia que poderiam desatar esse n, Said
lana mo de valores e conceitos do prprio liberalismo humanista, sem uma
invocao de atores e processos histricos reais que disputariam projetos de
sociedade (e projetos discursivos relacionados queles) de contedo anti-
eurocntrico. Nas palavras de Ahmad, o que notvel a respeito dessa afirmao
s vezes retumbante do valor humanista que o humanismo-como-idealidade
invocado precisamente no momento em que o humanismo-como-histria foi
rejeitado to inequivocamente (Ahmad, 2002: 114). O que sustentava a crtica,
naquele primeiro esquema saidiano, era um conjunto de valores depurados do
humanismo ocidental, sem uma ligao a processos sociais especficos; ou, como
ele parece expressar em diversos momentos (ver, por exemplo, Said, 2003: 25-26),
sua prpria experincia como um homem do exlio um palestino que recebeu
uma educao ocidental e que, em todos os momentos de sua biografia, teria
experimentado a sensao da inadequao, do deslocamento e da exterioridade
que garantiria outro ponto privilegiado de crtica tradio ocidental eurocntrica.
Pode-se perceber que, em Orientalismo, h uma tenso interna ao projeto de crtica
ao eurocentrismo tenso que s se resolve com um movimento para alm da
confiana irrestrita ou exclusiva de Said no humanismo, ou, ainda, de sua crena na
possibilidade de autocertificao da crtica.
Em Cultura e Imperialismo, o autor busca outras estratgias para identificar
atores e discursos anti-eurocntricos. Sobretudo, ele busca realizar um exerccio de
leitura em contraponto (Said, 1995: 104), um mtodo de crtica cultural que busca
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desvelar a estrutura de sentimentos em que se encontram mergulhadas as
culturas centrais estrutura que faria parte da aventura imperial europia , mas
tambm as culturas perifricas ou coloniais. Sem o imperativo de constituir uma
estrutura bem definida de possibilidades do prprio saber, trata-se, nesse segundo
momento da obra de Said, da elaborao de uma forma de leitura cultural voltada a
estabelecer as relaes entre imperialismo e cultura: Ler Austen sem ler Fanon e
Cabral e assim por diante separar a cultura moderna de suas ligaes e
comprometimentos (Said, 1995: 97).
Essa nova forma de compor seu exerccio crtico , em termos que
poderamos emprestar de Walter Benjamin, uma demonstrao das articulaes
entre cultura e barbrie prpria aos monumentos culturais ocidentais. Como se
pode perceber, o foco de Said deslocado de uma anlise dos discursos ocidentais
como fenmenos logicamente discretos (que se definem pela inferiorizao do
outro) para uma considerao das relaes entre fenmenos polticos e produes
culturais no centro e na periferia colonial, articulados pela lgica assimtrica do
imperialismo.
Esse desenvolvimento ulterior da crtica saidiana abre caminhos para uma
leitura mais flexvel e, de certo, mais proveitosa dos problemas tratados em
Orientalismo. Distanciado de uma nsia estruturalista, Said continua a fornecer
importantes consideraes sobre as temticas e categorias que permearam as
formas ocidentais de fazer sentido sobre as sociedades orientais. Para isso, sai de
cena o orientalismo e passa-se a trabalhar a partir de uma idia de estruturas de
atitudes e referncias (baseada no trabalho do crtico marxista Raymond Williams)
nas formas de intercmbio cultural entre Ocidente e Oriente; uma estrutura
apropriada de formas diversas por atores em contextos especficos. Nos termos de
Said:
quero mostrar que a estrutura de atitudes e referncias prevalece e exerce influncia de todas as maneiras, em todas as formas e lugares, mesmo bem antes da chamada era do imprio; longe de ser autnoma ou transcendente, ela est prxima do mundo histrico; longe de ser fixa e pura, ela hbrida, partilhando da superioridade racial bem como da genialidade artstica, da autoridade poltica bem como da
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tcnica, de procedimentos simplistas e redutores bem como de mtodos complexos (Said, 1995: 155-6).
Dessa maneira, Said tenta mostrar que o Imperialismo (assim como,
posteriormente, formas violentas e assimtricas de capitalismo global) estaria
articulado a um horizonte de conceitos, problemas e imagens que povoariam o
imaginrio ocidental e colonial. A literatura, dessa forma, no pode ser vista como
uma considerao das relaes entre grandes obras que, no Ocidente, constituiriam
um cnone, mas como um local de interseo de uma estrutura de atitudes e
referncias marcadas por aquela lgica assimtrica de poder global. Dessa
maneira, Said passa a trabalhar no apenas com obras clssicas ocidentais que
teriam realizado apropriaes especficas daquela estrutura - como Heart of
Darkness, de Conrad, ou Aida, de Verdi , mas igualmente com o seu contraponto
colonial: entram em cena os textos de Fanon e C. L. R. James ou as mltiplas
apropriaes por autores descoloniais caribenhos de A Tempestade, de
Shakespeare. Uma leitura em contraponto, em sntese, leva em conta tanto o
processo de imperialismo como a resistncia a ele, o que exige uma expanso do
horizonte de leitura dos chamados clssicos da literatura europia, incluindo o que
se mostra escondido ou seja, o prprio imperialismo e as reaes poltico-culturais
a ele.
Essa nova forma de avanar uma crtica ao pensamento eurocntrico
aproxima o trabalho de Said daquele de diversos outros pensadores sociais,
polticos e tericos ps-coloniais contemporneos que vm se debruando sobre a
construo de discursos tericos e polticos sobre as sociedades no ocidentais
produzidos nestas, seja em um contexto imperial ou de grande assimetria de poder.
Nesse sentido, sem que se lance mo de uma espcie de entelquia terica de
validade universal, pode-se pensar nas formas pelas quais uma conscincia
europia da modernidade foi se constituindo ao longo dos ltimos sculos e,
simultaneamente, produzindo uma imagem do no-idntico (o no europeu, o
colonial, o oriental...) que se manteve atrelada a uma imagem de si, funcionando
como seu princpio de legitimidade e garantia de superioridade. Podemos pensar
nessa imagem para utilizarmos um termo pouco preciso, de incio como uma
estrutura de atitudes e referncias eurocntricas, atrelada constituio material de
um sistema mundial moderno de cujo centro emanam essas formas de pensar e de
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orientar a ao poltica. Dessa forma, as relaes polticas e simblicas entre
Ocidente e Oriente tm sua especificidade definida em termos de uma estrutura
poltica e econmica prpria modernidade capitalista, cujo centro foi-se
constituindo no Ocidente (e, ao mesmo tempo, foi constituindo o prprio Ocidente).
Portanto, essa forma de crtica ps-colonial passa a fazer sentido no interior
de uma considerao do capitalismo moderno. Como aponta Said:
Todas as culturas tendem a elaborar representaes culturais estrangeiras a fim de melhor domin-las ou de alguma forma control-las. Mas nem todas as culturas fazem representaes de culturas estrangeiras e de fato as dominam ou controlam. Este o trao distintivo das culturas ocidentais modernas. Isto exige que o estudo do conhecimento ou das representaes ocidentais do mundo no europeu seja um exame tanto dessas representaes quanto do poder poltico que elas expressam (Said, 1995: 143).
O eurocentrismo pode ser descrito, dessa maneira, como o imaginrio
dominante do sistema mundo moderno (Mignolo, 2003: 49; Wallerstein, 2007).
Tendo isso em vista, pode-se pensar o eurocentrismo como um conjunto de
categorias e imagens de mundo adaptvel s alteraes na organizao do poder
global, mas sempre emitido a partir de um ponto de vista do centro
europeu/ocidental desse sistema. Esse olhar central hegemnico ontologiza as
diferenas com relao s outras sociedades (perifricas), enxergando-as como
formas incompletas de realizao de um ideal moderno7.
7 A definio do sistema mundo moderno como horizonte para anlise da constituio e operao do eurocentrismo vem sendo avanada por autores latino-americanos a que j me referi acima. Essa considerao permite uma anlise das formas como esse discurso surgiu nos contatos com povos e regies no-europias em um perodo anterior Era do Imperialismo, assim como as formas como ele foi apropriado para a compreenso dos dilemas da modernidade dessas sociedades sobretudo na Amrica Latina. Como aponta Mignolo, esse novo recorte ajuda a solucionar um problema das temporalidades na crtica ps-colonial: o sistema mundo moderno teria no sculo XVI seu momento de constituio, ao ponto que Said, Guha, o ps-estruturalismo e a teoria crtica alem teriam no sculo XVIII e no Iluminismo a fronteira cronolgica da modernidade (Mignolo, 2003: 43). Como aponta Quijano (2000: 202), Amrica se constituy como el primer espacio/tiempo de un nuevo patrn de poder de vocacin mundial y, de ese modo y por eso, como la primera id-entidad de la modernidad.
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Como observa Boaventura de Sousa Santos, o raciocnio eurocntrico
moderno, absorvido em parte considervel pelas teorias sociolgicas da
modernidade, opera a partir de uma concepo de tempo em que o
contemporneo apenas uma parte extremamente reduzida do simultneo, a partir
de uma operao reflexiva que estabelece um centro que, por sua vez, definiria a
contemporaneidade. Como aponta este autor, baseando-se em Koselleck, essa
no contemporaneidade do contemporneo no problematiza a hierarquia
envolvida na definio do contemporneo (Santos, 2006: 100). Essa dicotomia
entre contemporneo/no-contemporneo exemplifica a prpria estrutura em que
se organiza a maioria dos discursos eurocntricos. O dualismo, em formas
diversas, um dispositivo lgico essencial ao discurso eurocntrico8.
Norberto Bobbio aponta que essa espcie de ideologia europia constitui-
se ao longo da histria, no entrechoque com as populaes no-europias (esta
idia sendo, igualmente, histrica). Na poca moderna, quando esses
entrechoques tornaram-se mais freqentes, a ideologia europia que rene ...
em uma rpida sntese, os traos de um modo geral de conceber a poltica no qual
se refletiu orgulhosamente durante sculos a conscincia da Europa (Bobbio,
1996: 143) alimentou-se de formulaes e imagens bipolares que remetiam ao
pensamento grego e s primeiras conceituaes da idia de um despotismo
oriental (Bobbio, 1996).
Conforme se observou anteriormente, as vrias formas daquela estrutura de
atitudes e referncias eurocntricas no so dominantes apenas nos primeiros
trabalhos da Idade Moderna que trataram de caracterizar as sociedades no-
8 Como afirma Quijano: Esa perspectiva binaria, dualista, de conocimiento, peculiar del eurocentrismo, se impuso como mundialmente hegemnica en el mismo cauce de la expansin del dominio colonial de Europa sobre el mundo. No sera posible explicar de otro modo, satisfactoriamente en todo caso, la elaboracin del eurocentrismo como perspectiva hegemnica de conocimiento, de la versin eurocntrica de la modernidad y sus dos principales mitos fundantes: uno, la idea-imagen de la historia de la civilizacin humana como una trayectoria que parte de un estado de naturaleza y culmina en Europa. Y dos, otorgar sentido a las diferencias entre Europa y no-Europa como diferencias de naturaleza (racial) y no de historia del poder. Ambos mitos pueden ser reconocidos, inequvocamente, en el fundamento del evolucionismo y del dualismo, dos de los elementos nucleares del eurocentrismo (Quijano, 2000: 211). Apesar de considerar adequada a caracterizao de Quijano sobre o dualismo e o evolucionismo como formas lgicas de organizao da maior parte dos discursos eurocntricos, importante destacar que nem sempre ele se expressa na forma de discursos racistas, sobretudo quando nos referimos a trabalhos elaborados ao longo do sculo XX. Nesse sentido, como veremos logo frente, creio ser mais adequado pensar o essencialismo como uma descrio geral da forma como nos discursos eurocntricos outorga-se sentido s diferenas entre Europa e no Europa.
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ocidentais. A sociologia, como cincia, origina-se em um ambiente cultural
embebido pelo caldo de cultura eurocntrico, durante um perodo de
aprofundamento da dominao colonial europia em regies perifricas. Desde o
incio, mesmo a proposio de suas questes fundamentais orientou-se pelo quadro
categorial do eurocentrismo ou seja, este forneceu uma estrutura de atitudes e
referncias que orientou, em grande medida, a elaborao de suas categorias e
teorias fundamentais. Dessa forma, os fundamentos da sociologia moderna foram
estabelecidos a partir de estruturas e valores presentes em sociedades ocidentais,
a partir das quais se estabeleceriam parmetros de comparao para o que seriam
sociedades modernas (Costa, 2006: 119; Hall, 1992: 314). nesse sentido que
uma parcela hegemnica das teorias sociolgicas da modernidade (e do no-
moderno) forneceram uma verso cientfica a formas do discurso eurocntrico em
circulao, auxiliando na longevidade daquele imaginrio europeu moderno.
De forma simplificada, nas diversas formas de discurso sociolgico
eurocntrico, o Ocidente assume a funo de uma cultura padro, detentora de
uma srie de caractersticas essenciais em termos das quais as outras sociedades
podem ser tratadas como deficientes. Dessa maneira, como mostra Turner, uma
tabela de atributos positivos e negativos pode ser estabelecida, a partir da qual se
podem avaliar os processos histricos de outras sociedades (Turner, 1994: 37). A
modernizao, no discurso eurocntrico que, em grande medida, informa as teorias
sociais clssicas, pode ser confundida com a consumao natural do
desdobramento de etapas evolutivas, em sociedades dotadas de um certo nmero
de variveis sociais e no como um processo contingente, situado no tempo e no
espao e derivado das disputas sociais especficas. A ausncia de uma dessas
variveis constitui, dessa maneira, um obstculo ao desenvolvimento dessas
sociedades. Esse discurso sociolgico funda-se em uma duplicao da narrativa
ou seja, baseia-se em um raciocnio binrio de fundo , seja ela implcita ou
explcita, a partir da qual se compe o quadro da normalidade ou completude
tidas como padro de evoluo social, base para a caracterizao da
anormalidade ou incompletude das sociedades dotadas de entraves quele tipo
de desenvolvimento.
Como observa Turner com relao sociologia orientalista do Isl (mas que
certamente se poderia estender para o discurso sociolgico eurocntrico, em geral),
esta teria se fundado em uma epistemologia particular, predominantemente idealista
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e essencialista, segundo a qual o fracasso dessas sociedades em se
desenvolverem ao longo de trajetos histricos ocidentais at uma sociedade
racional, democrtica e industrial se explica tendo-se por referncia uma essncia
dessas prprias sociedades (Turner, 1989: 88). Trata-se, em resumo, de uma
perspectiva sociolgica internalista, de cunho essencialista. Nesse discurso, o
Oriente (ou o no-Ocidente) pode ser definido como um sistema de ausncias,
as quais constituiriam, em maior ou menor medida, obstculos ao acesso dessas
modernidade (Turner, 1994: 39). Dessa forma, possvel perceber que grande
parte das teorias sociolgicas clssicas acabaram por fornecer dinmica a uma
forma de compreenso do real centrada naquela ciso fundamental entre moderno-
ocidental e atraso-no ocidental; entre sociedades dinmicas e estticas;
impessoais e personalistas; racionais e irracionais no limite, funcionando como
uma atualizao, em um contexto moderno, da ciso grega entre
civilizao/liberdade e barbrie/despotismo (ver Bobbio, 1996).
Grande parte do pensamento atual que trata de sociedades perifricas e
que, de alguma forma, realiza algum tipo de apropriao do eurocentrismo seja
ele produzido nas academias centrais ou perifricas , sofreu uma influncia das
estruturas de referncias eurocntricas principalmente por meio do pensamento
sociolgico moderno. Referimo-nos, sobretudo, s sociologias de Marx e Weber9.
Os dois autores, centrados em questes sobre o desenvolvimento do capitalismo e
a racionalizao processados no Ocidente, utilizam, de formas distintas (e variveis,
ao longo de suas obras), uma srie de categorias e abordagens originadas em uma
distino fundamental entre Ocidente e no-Ocidente. Apesar da complexidade de
suas obras, inegvel que em diversos momentos os autores lanam mo de
abordagens internalistas e fornecem contribuies para a reafirmao dos
elementos marcantes dos discursos eurocntricos (Hall, 1992; Said, 2003; Turner,
1989 e 1994). Dentro de nossas preocupaes, preciso apontar as formas pelas
quais importantes aspectos do pensamento desses autores se inserem e ajudaram
a constituir uma tradio eurocntrica de reflexo sobre a modernidade e as
sociedades no-ocidentais.
9 O propsito aqui no , evidentemente, denunciar o uso desses clssicos para a reflexo sobre essas sociedades perifricas, o que seria uma proposta completamente descabida. Contudo, igualmente incorreto no nos atermos a como grande parte do pensamento social contemporneo que busca fazer sentido dessas sociedades reproduz aspectos problemticos da obra desses autores, em especial suas abordagens sobre as sociedades no-ocidentais.
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Nessa tradio, a idia de obstculo adquire uma importncia central. Em
Marx, essa idia sintetizada no conceito de Modo Asitico de Produo, sendo
este, como mostra Anderson, uma variao do conceito orientalista clssico de
Despotismo Oriental (Anderson, 1985: 461-494). Em Weber, como se apreende a
partir da anlise de Schluchter (1996: 120), a idia de obstculo encontra-se
principalmente nos pontos que balizam sua anlise comparativa sobre as diferentes
ticas econmicas: tipo de estado, leis, cincia e conduta de vida, podendo cada
um desses elementos prover resistncias ou no ascenso do capitalismo
racional caso sirvam ou no reafirmao da estereotipao, esta inibidora do
fluxo racional da vida cotidiana (Pierucci, 2003: 131). Alm disso, em ambos os
clssicos h uma dicotomia de fundo entre o carter dinmico das sociedades
ocidentais, em contraposio ao carter esttico das sociedades orientais (Turner,
1989: captulo 1).
De forma esquemtica, Turner busca descrever os principais componentes do
discurso orientalista (Turner, 1994: 96-99). Creio que, a partir de nossas
consideraes acima, possvel nos orientarmos por esse raciocnio de Turner e
tentar expandi-lo, buscando descrever os principais elementos do quadro categorial
de uma sociologia eurocntrica.
Primeiramente, o eurocentrismo pode ser visto como uma teoria do poder
desptico. O segundo componente a incorporao nesse discurso de uma teoria
sobre a transformao social (ou, na verdade, de uma teoria sobre a ausncia de
transformao). Em terceiro lugar, o discurso orientalista apresenta uma teoria da
sexualidade oriental ou no-ocidental em contraponto a um pretenso ascetismo
ocidental. Por ltimo, esse discurso incorpora uma teoria da disciplina e da
racionalidade, pretensos traos ocidentais ausentes em sociedades no-ocidentais.
A esses elementos, deve-se adicionar um quinto: o internalismo essencialista a
idia de que h uma essncia cultural que determina o desenrolar da histria de
uma certa coletividade humana, hiptese que afastaria a necessidade de se avaliar
(ou de se dar centralidade analtica) s disputas internas entre grupos e indivduos
pertencentes a essas coletividades ou s relaes entre estes e membros de outras
coletividades. Relembro, por fim, que, em termos de estrutura lgica do discurso, o
eurocentrismo pode lanar mo do dualismo e de alguma forma de evolucionismo
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histrico10. A articulao entre dualismo e evolucionismo a forma lgica de
organizao de discursos histricos que lanando mo de anlises sobre
estruturas de poder, racionalidades e formas de vida ou de padres de organizao
social que perduram no tempo em sociedades tipicamente no entendidas como
ocidentais se organizam em torno de uma dicotomia bsica entre completude (a
experincia social moderna/ocidental tida como tpica) e incompletude (sociedades
atrasadas, que podero chegar l), em formas de narrativa em que a Histria
pode ser descrita como uma espcie de sala de espera (Chakrabarty, 2000: 8).
Entre esses elementos, o primeiro (teoria do poder), o segundo (teoria da
transformao social), o quarto (disciplina e racionalidade) e o quinto (internalismo
essencialista) recebero, neste trabalho, uma especial ateno: eles nos serviro
de baliza para a tentativa de esquematizao de um setor da estrutura de atitudes
e referncias eurocntricas que organiza a descrio da dinmica histrica de
desenvolvimento das sociedades no ocidentais um setor sociolgico daquela
estrutura mais ampla, por assim dizer.
O que busco no restante deste captulo no , evidentemente, desenvolver
uma descrio exaustiva sobre as origens e desdobramentos do pensamento
eurocntrico entre os pensadores ocidentais. Pretendo apenas reconstruir as
principais trilhas dessa forma de pensar sobre o Ocidente, os seus outros e a
relao entre ambos, a partir de uma considerao de alguns momentos, textos e
categorias chave do pensamento europeu ou, em outros termos, busco reconstruir
brevemente a constituio dos principais elementos daquela estrutura de atitudes e
referncias caracterstica de um setor sociolgico do pensamento eurocntrico.
Uma teoria do poder: a tradio do Despotismo Oriental
O uso da idia de despotismo como categoria chave na descrio das
sociedades no europias anterior ao desenvolvimento de uma dicotomia
Ocidente/Oriente. Conforme essa dicotomia foi se constituindo como um dos
10 preciso advertir, porm, que os autores que trabalham a partir de uma perspectiva eurocntrica ou que so de alguma forma influenciados por ela no se utilizam de todos esses elementos, necessariamente. Em geral, esses cinco elementos so utilizados seletivamente, conforme a sociedade analisada, a postura intelectual ou poltica do autor, ou a questo a que se quer dar destaque.
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elementos fundantes da conscincia europia da modernidade, a idia de
despotismo passou a ser adjetivada como oriental mesmo que o conceito fosse
aplicado para a compreenso de sociedades no localizadas no Oriente, como as
civilizaes da Amrica pr-colombiana. A idia de despotismo oriental o
principal elemento da teoria do poder desptico que, como vimos, constitui um dos
componentes de uma sociologia eurocntrica.
Conforme afirma Bobbio (1996: 142-3), a histria desse conceito atravessa o
pensamento poltico europeu, funcionando como categoria fundamental para uma
contraposio bsica entre governo das leis (ou governo da liberdade) e
governo dos homens (ou despotismo). Em uma diversidade de pensadores
europeus de Plato e Pricles at os mais recentes tericos polticos , a primeira
dessas formas foi entendida como a nica capaz de garantir igualdade formal entre
os indivduos. Essa dicotomia, para alm de uma formalizao de princpios
normativos antagnicos, passou a acompanhar a elaborao de uma ideologia
europia fundada em uma cartografia dual: o governo dos homens, de incio, seria
uma representao conceitual da viso grega sobre os persas. Dessa forma, j no
pensamento grego se operaria uma indexao entre, de um lado, princpios de
organizao de poder e, de outro, civilizaes ou regies.
A dicotomia liberdade/despotismo, central no pensamento poltico e social
europeu, funcionou como o principal critrio de distino entre Ocidente e no-
Ocidente (e, sobretudo, Oriente). O despotismo, como conceito sntese, foi sendo
constituindo como verdadeira anttese de uma autoviso hegemnica da Europa
uma espcie de denominador genrico para tudo o que o outro representava, a
partir do qual o Eu europeu se firmava.
Nesse sentido, a contraposio entre liberdade ou democracia (nos
tempos modernos) e despotismo no se refere apenas a uma categorizao de
diferentes formas de governo. Como aponta Bobbio,
...a contraposio entre democracia e despotismo parte constitutiva, vital, essencial daquela viso de mundo, daquela filosofia da histria por meio da qual o pensamento europeu buscou, em anttese ao que diverso e negativo, definir positivamente a prpria identidade, em uma tradio ininterrupta embora com alternadas vicissitudes
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caracterizadas pela maior ou menor intensidade da contraposio (Bobbio, 1996: 145).
A comparao entre estruturas sociais e estatais europias e asiticas ganha
fora a partir dos trabalhos de Maquiavel e Bodin, produzidos em um contexto de
aproximao e ameaa Europa pelo Imprio Turco Otomano. A partir do sculo
XVIII, o termo estendido para alm da Turquia, passando a constituir a categoria
fundamental para se pensar a estrutura oriental de organizao do poder
(Anderson, 1985: 461-462). O grande responsvel pela categorizao iluminista da
idia e pela sua consagrao no pensamento moderno Montesquieu. Este autor,
por seu tratamento sistemtico do despotismo em O Esprito das Leis, confirma a
continuidade de uma tradio europia, mas, igualmente, demonstra a posio que
o Oriente assumia no imaginrio da Europa da poca do Iluminismo, uma vez que
seu pensamento se encontra exatamente no momento de passagem da filosofia
clssica sociologia moderna (ver Aron, 2008 e Ianni, 1989).
A teoria das formas de governo de Montesquieu no comporta apenas um
componente institucional (na tradio dos filsofos clssicos europeus), mas
tambm uma ampla considerao sociolgica (mesmo antes que a disciplina da
Sociologia seja reivindicada, como aponta Aron, 2008) sobre as formas de vida e os
princpios de legitimao do poder. Nesta, o despotismo descrito como uma das
trs formas tpicas, sendo as outras duas a Repblica (que comportaria tanto a
Democracia quanto a Aristocracia) e, entre essas, a Monarquia. Como se sabe, a
cada uma dessas formas de governo corresponderia um determinado princpio:
enquanto o princpio da Repblica seria a virtude e o da Monarquia a honra,
Montesquieu entende que o medo seria o princpio do Despotismo, na medida em
que, em sociedades despticas, o homem a criatura que obedece a outra criatura
que manda (Montesquieu, 1982: 63).
Ao longo de toda sua caracterizao daquela forma de governo, o filsofo
descreve o sdito do despotismo como uma espcie de escravo, para o qual o
mando algo naturalizado e a objeo a ele no se coloca como possibilidade: a
obedincia cega ao dspota exigiria ignorncia, algo que se inscreveria na
educao e na religiosidade dos povos sujeitos a essa forma de poder total (ver, p.
ex., Montesquieu, 1982: 70). Em contrapartida, a elite governante desptica se
formaria por uma transmisso direta do poder desde aquele que o deteria de forma
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suprema: o vizir o prprio dspota, e cada oficial particular o vizir, uma vez que
...nesse governo, a autoridade no pode ser posta em dvida; a do magistrado
mais subalterno no o mais do que a do dspota (Montesquieu, 1982: 98).
Assim, o governo desptico se sustenta por meio de uma espcie de
estamento onipotente no alto e pela submisso sem reao dos debaixo. O
despotismo, ento, se basearia em uma igualdade aniquiladora de todos os
sditos, uma vez que todos seriam iguais em sua sujeio aos mortais caprichos do
dspota. Em um estado desptico, no haveria a figura poltica e jurdica da
pessoa (Montesquieu, 1982: 108). Assim, Montesquieu, de forma exemplar,
estabelece uma relao, fundamental para o pensamento eurocntrico, entre uma
teoria do poder e uma teoria das formas de vida ou de racionalidade ou seja, das
causas morais que sustentariam um regime, junto das causas naturais (clima e
natureza do solo, entre outros; ver Aron, 2008: 33). O governo desptico dependeria
no apenas de um aparato poltico de dominao, mas ele se assentaria em uma
espcie de ser social servil, indisposto a rebelar-se ou a alterar o estado das coisas
como veremos com mais ateno frente.
Em seu volumoso tratado, Montesquieu utiliza inmeros exemplos para
precisar seu conceito de despotismo, quase todos extrados das histrias do
Imprio Otomano, da China ou da ndia sociedades da sia, regio do mundo
onde o despotismo se encontraria naturalizado (Montesquieu, 1982: 96). O filsofo
fixa a idia de que os Estados asiticos no possuam propriedade privada estvel
nem nobreza hereditria e, por conseguinte, eram de carter arbitrrio e tirnico.
H, em todo o livro, aquela indexao clssica entre, de um lado, formas de
vida e de governo e, de outro, uma regio em que habita o outro:
Na sia, o poder deve ser sempre desptico, pois no sendo a servido to extremada, ocorreria logo uma diviso que a natureza da regio no poderia suportar; ...na sia reina um esprito de servido que nunca a abandonou e, em todas as histrias desse continente, no possvel encontrar um s trao que marque uma alma livre; a nunca se ver seno o herosmo da servido (Montesquieu, 1982: 305).
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A obra de Montesquieu ser de grande influncia sobre a maneira como os
grandes pensadores europeus dos sculos XVIII e XIX caracterizariam o Oriente
entre eles, Hegel, James e John Stuart Mill, Richard Jones, Karl Marx e, j no
sculo XX, Max Weber (Anderson, 1985; Bobbio, 1996; Turner, 1989). Como mostra
Perry Anderson, os formuladores clssicos do conceito de despotismo oriental
destacaram diferentes elementos para caracterizar aquela forma de governo,
constituindo, entretanto, uma tradio intelectual dotada, em linhas gerais, de
pressupostos comuns sobre os sistemas polticos e sociais asiticos. Os traos
distintivos desses sistemas seriam a posse estatal da terra, a ausncia de restries
jurdicas, a substituio das leis pela religio, a ausncia de nobreza hereditria, a
igualdade social na servido, a existncia de comunidades aldes isoladas, o
predomnio da agricultura sobre a indstria, a necessidade de obras pblicas de
engenharia hidrulica, o clima trrido e, por fim, a imutabilidade histrica (Anderson,
1985: 471).
Montesquieu desempenha um papel fundamental para a consolidao, no
imaginrio europeu moderno, dessa imagem de Oriente desptico. Como aponta
Aron (2008: 18), Montesquieu, dispondo de poucas informaes concretas sobre as
sociedades orientais, descreve-as como uma espcie de deserto da servido, em
que o soberano reinaria absoluto, sustentado pelo medo; em que no haveria
classes sociais em equilbrio e nem o equivalente, em termos de valores, da virtude
antiga ou da honra europia.
Em Marx, a idia de Despotismo Oriental desdobra-se no conceito de
Modo Asitico de Produo. Valendo-se das mesmas fontes de Mill sobre a vida
nas aldeias asiticas e bastante influenciado pela caracterizao de Hegel sobre a
imutabilidade histrica das sociedades orientais, Marx tentou desenvolver, de forma
oscilante ao longo de sua produo, um conceito que explicasse a diferena
decisiva entre o desenvolvimento social ocidental e oriental11. preciso apontar que
11 Nimtz (2002) e Jani (2002) desenvolvem interessantes crticas ao tratamento de Marx como um autor eurocntrico, centrando-se, sobretudo, na dialtica entre teoria e prtica na produo intelectual e na atuao poltica desse autor. Contudo, nenhum desses autores debrua-se sobre a construo do conceito de Modo Asitico de Produo na obra de Marx. De qualquer forma, algumas de suas observaes e citaes de Marx nos auxiliam a desenvolver leituras de sua obra que no sejam esquemticas e etapistas. Na seguinte afirmao de Marx, em uma carta a um grupo de revolucionrios russos, de 1877, adverte contra a transformao de seu historical sketch of the genesis of capitalism in Western Europe into a historical-philosophical theory of general development, imposed by fate on all peoples, whatever the historical circumstances in which they are placed (Marx, citado em
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Marx nunca se considerou um estudioso das sociedades no-europias, de maneira
que o estudo dessas s adquire sentido em sua obra no interior de suas
preocupaes sobre o desenvolvimento do capitalismo na Europa. De qualquer
forma, conforme o pensamento marxista adquiriu importncia terica e, sobretudo,
poltica ao redor do mundo, suas consideraes sobre a sociedade asitica ou
sobre o Modo de Produo Asitico ganharam, igualmente, grande significao
conceitual e poltica (ver Turner, 1993; Demant, 2007).
Esse conceito possui um estatuto bastante controverso no interior do
marxismo: conforme aponta Turner, o conceito de Modo de Produo Asitico pode
servir formulao de um marxismo menos dado a esquemas teleolgicos de
evoluo evitando uma descrio marxista ortodoxa da histria como uma
sucesso de escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo. Contudo, a
aceitao do conceito pode levar a que os marxistas endossem uma posio
privilegiada da histria ocidental em relao oriental, uma vez que ele acentuaria
um carter progressista e dinmico ocidental, em contraposio a um Oriente
estacionrio (Turner, 1993: 348). Nos termos j apresentados, parece tratar-se de
um dilema entre duas verses diferentes de eurocentrismo: aceitando-o, lana-se
mo de uma viso dualista da histria; dispensando-o para se vincular s formas
vulgares ou ortodoxas do marxismo (representadas, sobretudo, pela cartilha
sovitica), adere-se a uma histria evolucionista.
O ncleo desse conceito a idia de que, devido ao fato de os Estados
asiticos serem os detentores de todas as terras, no se teria desenvolvido nessas
sociedades uma estrutura de classes:
O dspota aparece, aqui, como o pai das numerosas comunidades menores, realizando, assim, a unidade comum a todas elas... O despotismo oriental aparentemente leva a uma ausncia legal de propriedade. Mas, de fato, seu fundamento a propriedade tribal ou comum criada, na
Nimtz, 2002: 75). Jos Aric, marxista argentino, aponta que o pensamento de Marx sofre uma espcie de virada anti-eurocntrica na fase final de sua vida, a partir do estudo de sociedades perifricas (em especial a Rssia), quando passa a incorporar a idia de que ... o modo capitalista de produo est condicionado por modos de produo que no se encontram no mesmo estgio alcanado pelo desenvolvimento do primeiro (Aric, 1982: 58). A partir da, Marx passaria a trabalhar com um conceito de capitalismo mundial cujos desdobramentos aproximam-se daquilo que Trotski teorizou, posteriormente, a partir da idia de desenvolvimento desigual e combinado.
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maioria dos casos, por uma combinao de manufatura e agricultura dentro da pequena comunidade que, assim, faz-se completamente auto-suficiente, em si mesma contendo todas as condies de produo e de produo de excedentes (Marx, 1975: 67-68).
As possveis conseqncias de ausncia legal de propriedade da terra (j
que o dspota seria o proprietrio efetivo dela) e do insulamento das comunidades
em unidades auto-suficientes seriam, para Marx, ou a vegetao dessas
comunidades lado a lado, ou o desenvolvimento de sistemas comuns de trabalho
(sistemas de irrigao, meios de comunicao...) como obras coordenadas pela
unidade superior, centralizada e centralizadora (Marx, 1975: 68).
Alm disso, Marx aponta uma diferena fundamental entre a histria do
desenvolvimento das cidades no Ocidente e no Oriente. No feudalismo europeu, a
existncia de cidades politicamente independentes teria sido crucial para a
ascenso de uma classe burguesa e do capitalismo industrial; no Oriente, as
cidades manter-se-iam subordinadas agricultura e ao Estado; elas surgiriam ao
lado das aldeias nos pontos favorveis ao comrcio exterior ou onde o chefe de
estado e seus funcionrios trocariam suas receitas por trabalho (Marx, 1975: 68).
Em sntese, esse tipo de arranjo social cujos fundamentos seriam a propriedade
estatal da terra, a auto-suficincia das aldeias e o carter estatal ou comercial das
cidades levaria impossibilidade da existncia de conflitos de classes como os
que se produziram no Ocidente e, sem isso, se bloquearia o funcionamento da
principal fora histrica dinmica. No haveria, enfim, qualquer tipo importante de
conflito social progressista o capitalismo no se poderia gerar internamente,
tendo de ser trazido de fora (Turner, 1989: 36-38).
Este aspecto do pensamento marxiano certamente bastante marginal
frente ao conjunto de sua obra, porm no menos problemtico dadas suas
implicaes ideolgicas foi abandonado por diversos marxistas posteriores,
apesar de nunca ter sido completamente deixado de lado. O conceito de Modo
Asitico de Produo ocupou importante espao na produo intelectual marxista
at, ao menos, a dcada de 6012. Contudo, a partir da dcada de ento, o conceito
12 A alta carga ideolgica do conceito no foi o nico motivo para que a maioria dos pensadores marxistas se afastassem dele ao longo das ltimas dcadas. Alm desse motivo, o conceito mostrou-se demasiadamente vago para dar conta da diversidade social
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passa a sofrer severas crticas dentro do prprio marxismo, perdendo grande parte
de seu flego final com a obra de Perry Anderson Linhagens do Estado Absolutista,
publicada em 1974.
Em Weber, por sua vez, essa tradio impacta na formulao de sua
sociologia da dominao, ainda que de forma matizada. Desde sua tica da
modernidade (e de sua forma de dominao caracterstica), Weber constri os
outros tipos de autoridade que sirvam de baliza para a definio da prpria
dominao racional. A forma fundamental de dominao, no Oriente de Weber
apesar de no se restringir apenas a este , seria um tipo de patrimonialismo
centralizado, em contraste descentralizao do feudalismo. Weber denomina de
formao estatal-patrimonial a estrutura de dominao em que um prncipe organiza
sua dominao no-domstica com o emprego de coao fsica contra os
dominados, sobre territrios e pessoas extrapatrimoniais (os sditos polticos), da
mesma forma que o exerccio de seu poder domstico (Weber, 1999: 240). Nesse
tipo de dominao, o direito individual do soberano sobrepe-se a qualquer outra
forma de poder.
Em sua preocupao constante em descrever os aparatos a partir dos quais
as diferentes formas de dominao se mantm, Weber procura descrever a criao
de cargos patrimoniais voltados administrao dos domnios do prncipe. Nesse
processo, Weber observa uma tendncia da gerao de uma estereotipificao dos
cargos e funes oficiais a qual no interessaria ao senhor, uma vez que essa
fixao pode trazer desafios ao seu domnio. O autor observa, contudo, que esse
um processo bastante comum na histria: a estereotipagem e apropriao
monopolizadora dos poderes oficiais pelos detentores, como companheiros
jurdicos, cria o tipo estamental do patrimonialismo (Weber, 1999: 253). Weber das sociedades asiticas (Anderson, 1985; Demant, 2007). Ademais, o conceito foi criticado por falhas internas, sobretudo por apresentar uma contradio fundamental: como aponta Turner, por exemplo, difcil entender como aldeias auto-suficientes poderiam ser compatveis com um Estado centralizador que deveria manter uma interveno permanente na economia destas (Turner, 1993: 350). A avaliao desse autor, ele mesmo amplamente influenciado pelo marxismo, parece exemplificar bem a postura atual de rejeio majoritria ao conceito no interior do marxismo: O MPA teve uma importncia negativa no marxismo j que sua funo terica no foi a anlise da sociedade asitica, mas a explicao da ascenso do capitalismo na Europa dentro de um quadro comparativo. Portanto, a sociedade asitica foi definida como uma srie de hiatos a burguesia inexistente, a inexistncia das instituies burguesas que explicavam o dinamismo da Europa. A sociedade asitica foi, dessa forma, uma manifestao, no marxismo, de uma problemtica orientalista cujas origens remontam filosofia poltica grega, passando por Hegel, Montesquieu e Hobbes (Turner, 1993: 351).
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adverte, contudo, que essa estereotipificao no corresponde instalao de uma
tpica burocracia moderna:
Ao cargo patrimonial falta sobretudo a distino burocrtica entre a esfera privada e a oficial. Pois tambm a administrao poltica tratada como assunto puramente pessoal do senhor,