jose e.m. knust - senhores de escravos, senhores da razão

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA JOSÉ ERNESTO MOURA KNUST SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZÃO Racionalidade Ideológica e a Villa Escravista na República Romana (séculos II e I a.C.) Niterói 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    JOS ERNESTO MOURA KNUST

    SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO

    Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)

    Niteri 2011

  • JOS ERNESTO MOURA KNUST

    SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO

    Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Orientadora: Prof. Dra. Snia Regina Rebel de Arajo

    Niteri 2011

  • Knust, Jos E.M.

    Senhores de Escravos, Senhores da Razo. Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II-I a.C.).

    327 f.

    Orientadora: Snia Regina Rebel de Arajo.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011.

    Bibliografia: f.310-327.

    1. Roma Histria Antiga 2. Escravido Roma. 3. Economia Roma. I. Arajo, Snia Regina Rebel. II Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

  • i

    JOS ERNESTO MOURA KNUST

    SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO

    Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Aprovado em abril de 2011.

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________________________

    Profa. Dra. Snia Regina Rebel de Arajo - UFF (Orientadora)

    ______________________________________________________________________

    Prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso UFF

    ______________________________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Augusto Machado UNIFESP

    Niteri

    2011

  • ii

    Para meu pai.

  • iii

    Agradecimentos

    um grande clich afirmar em pginas de agradecimentos de trabalhos como este que

    seu resultado no fruto de um esforo individual. Isso no torna menos verdadeiro o fato de

    que, apesar de apenas aquele que assina o texto poder ser responsabilizado pelos seus erros

    afinal, ele quem tem o poder de incluir ou excluir qualquer afirmao uma pesquisa nunca

    uma atividade intelectual solitria. Fora o fato de que no reinventamos a roda a cada vez

    que nos debruamos sobre uma problemtica de pesquisa estamos sempre vendo o mundo

    sobre o ombro de gigantes, como diria Isaac Newton , cada passo dado em uma pesquisa

    sempre fruto das mais diversas interaes com as mais diferentes pessoas a quem cabe

    agradecer, neste momento. Tendo a certeza de seu insucesso, estes agradecimentos tentaro

    dar conta de mencionar pelo menos o maior nmero possvel de pessoas sem as quais este

    trabalho seria certamente mais pobre, seno inexistente.

    A professora Snia Regina Rebel de Arajo, minha orientadora, dedicou-me no s

    uma orientao acadmica atenciosa e dedicada, como me agraciou com uma amizade sincera

    e generosa. Sua orientao foi sempre capaz de me indicar os rumos necessrios para o

    desenvolvimento da pesquisa e de me salvaguardar de possveis equvocos ao trilhar tais

    caminhos. Ademais, sem me podar os anseios de grandeza, Soninha foi capaz de me salvar

    muitas vezes das armadilhas da minha prpria megalomania acadmica, me fazendo voltar a

    por os ps no cho sempre que necessrio mesmo que algumas vezes eu tenha sido um tanto

    cabea-dura.

    O Grupo de Trabalho sobre Sociedades Pr-Capitalistas do Ncleo de Pesquisas e

    Estudos em Marx e Marxismo (o NIEP-PrK), da Universidade Federal Fluminense, deu um

    significado ainda mais profundo a idia de que esta dissertao fruto de um trabalho

    coletivo. Os debates semanais dedicados a desvendar a anatomia do macaco estimularam a

    formulao da maioria das grandes questes que tentei responder ao longo deste trabalho. E as

    respostas presentes nesta dissertao tambm so frutos das conversas e reflexes coletivas,

    nas reunies semanais ou nas trocas de e-mail dirias, que se tronaram um grande estmulo

    para o aprofundamento de minhas reflexes, nesses dois anos de existncia do grupo.

    Alm de estimulante academicamente, o grupo se tornou uma segunda famlia (mais

    clichs!) na qual o almoo de domingo foi substitudo pelo lanchinho da segunda-feira de

    manh. Os amigos Arthur Henriques, Daniel Tomazine, Fbio Afonso Frizzo, Gabriel Melo,

    Mariana Bedran, Mrio Jorge da Motta Bastos, Paulo Henrique Pach e Renato Rodrigues

  • iv

    Silva sintam-se abraados por este grato colega que reconhece que sem vocs este trabalho

    no teria a mesma relevncia que pretende ter. O nome do autor na capa desta dissertao s

    no Macacada do Niep-PrK por que vocs no podem ser culpados pelas bobagens que

    por ventura eu possa ter escrito neste trabalho.

    Ao professor Mrio Jorge, assim como ao seu contra-xar Jorge Mrio Davidson,

    devo, tambm, os importantes comentrios e conselhos da banca de qualificao, que me

    ajudaram a corrigir certos rumos da pesquisa e a melhorar os dois primeiros captulos,

    apresentados em tal oportunidade. Alm desses dois professores, tive a sorte de poder contar

    com comentrios, conselhos e sugestes de diversos outros professores sobre aspectos da

    minha pesquisa. Em diferentes oportunidades, atravs dos mais diversos meios (como eventos

    acadmicos, trocas de e-mails e at comentrios em blogs), pude travar conversas com

    professores como Andr Chevitarese, Carlos Astarita, Fbio Faversani, Juliana Marques e

    Norberto Guarinello, que foram muito importantes para a realizao da pesquisa. O professor

    Fbio Duarte Joly muito me ajudou no apenas com seus comentrios e sugestes, mas

    tambm incentivando e auxiliando minha pesquisa com o envio generoso de muitos materiais

    importantes ainda no momento em que esta pesquisa dava seus primeiros passos. Por fim, aos

    professores Carlos Augusto Machado e Ciro Flamarion Cardoso agradeo pelo aceite em

    participar da banca examinadora desta dissertao, alm dos comentrios e sugestes minha

    pesquisa feitos pelos dois em diferentes oportunidades.

    Questes importantes para a pesquisa tambm surgiram ao longo das disciplinas que

    cursei no primeiro ano do Mestrado, com os professores Carlos Gabriel Guimares, Joo Lus

    Fragoso e Vnia Leite Fres, alm da matria que cursei com minha prpria orientadora, a

    professora Snia Rebel. Aos professores Carlos Gabriel e Joo Fragoso devo muitas das

    reflexes sobre problemas da Histria Econmica que tentei tratar nesta dissertao.

    professora Vnia, por sua vez, devo reflexes tericas e metodolgicas fundamentais para o

    desenvolvimento da pesquisa.

    Gostaria de agradecer no apenas aos professores dessas disciplinas, mas em especial

    aos colegas de curso que, provavelmente sem nem desconfiar, me ajudaram a desenvolver

    diversas questes importantssimas para minha pesquisa enquanto comentavam textos,

    expunham questionamentos ou teciam consideraes sobre os mais diversos assuntos. Em

    todas as matrias que cursei encontrei colegas dedicados e um ambiente de inquietao e

    curiosidade intelectual que foram fundamentais no desenvolvimento de minha pesquisa.

    As reflexes que desenvolvi neste trabalho, contudo, no nasceram do dia para a noite,

    assim que entrei na ps-graduao. Desta forma, importantssimo no esquecer colegas da

  • v

    minha turma de graduao em Histria (tambm cursado na UFF), que nas mais diversas

    situaes, em conversas com os mais diferentes graus de seriedade (e inebriao), tambm

    ajudarem (e muito!) este que vos escreve a trilhar seus primeiros passos no ofcio do

    historiador. Expondo-me ao risco de esquecer nomes importantes, gostaria de agradecer a

    Adolpho, Bruno, Carlos, Daniele, Michel, Francisco, Gabriel Jos, Priscila, Nathlia,

    Samantha.

    Dentre estes colegas de graduao, gostaria de agradecer em especial a Thiago Krause,

    exemplo de historiador e de apaixonado pela pesquisa, que certamente exemplo no s pra

    mim, e a Vincius Ayres, meu companheiro de Histria Econmica. As constantes conversas

    com ambos, atravs dos diferentes meios que a tecnologia permite atualmente, sempre foram

    importantes para minha reflexo historiogrfica.

    Devo um agradecimento sem tamanho minha namorada, Aline da Cruz de Moura,

    que com uma enorme boa vontade aceitou o inglrio cargo de revisora da minha dissertao.

    Para alm dos agradecimentos acadmicos, obviamente, no posso deixar de agradecer a

    companhia e o carinho que ela me dedicou nestes quase dois anos que estamos juntos. O

    carter coletivo deste trabalho no se resume apenas s contribuies diretas dada ao trabalho

    pelo colegas historiadores, mas tambm a estas pessoas que tornam nossa vida mais feliz.

    Nesta categoria de agradecimentos no posso esquecer meus familiares. Minha irm,

    Carolina, e meu cunhado, Ricardo, me hospedaram incontveis vezes em sua casa sempre em

    que eu, morador de Nova Friburgo, precisei ir ao Rio ou mesmo a Niteri (o que por razes

    bvias no foram poucas vezes nestes dois ltimos anos) e este no o nico motivo pelo

    qual devo agradecer aos dois, obviamente. Minha me, Marilene, e meu pai, Gustavo, me

    deram todo o apoio, mesmo tendo o caula escolhido carreira to inglria. toda minha

    famlia, meus tios, tias, primos e primas, agradeo por toda a convivncia familiar to

    saudvel que temos e por todo o incentivo que sempre me deram.

    Gostaria de agradecer tambm aos meus muitos amigos no-historiadores, que

    certamente sentiram minha ausncia naqueles chopinhos de final de semana nesses ltimos

    tempos (aos quais prometo voltar em breve). Devo agradecimentos especiais, entre estes, a

    Rafael Herdy, que me iniciou nos mistrios do Excel, a Felipe Lopes, que me hospedou em

    uma abusada visita a So Paulo que me possibilitou realizar pesquisas na biblioteca da USP, e

    Rafael Pedretti, que me hospedou tantas vezes na sua casa em Niteri que acabou me

    convidando para morar l de uma vez (e pelo menos ajudar a rachar o aluguel!), o que fiz por

    divertidos quatro meses.

  • vi

    Por fim, cabe o agradecimento ao CNPq, que me concedeu bolsa de estudos que

    permitiu minha dedicao a esta pesquisa.

  • vii

    Por trs dos grandes vestgios sensveis da paisagem, por trs

    dos escritos mais inspidos e as instituies aparentemente mais

    desligadas daqueles que as criaram, so os homens que a histria

    quer capturar. Quem no conseguir isso ser apenas, no

    mximo, um servial da erudio. J o bom historiador se parece

    com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali

    est sua caa.

    Marc Bloch, Apologia da Histriai.

    O primeiro ato histrico , pois, a produo dos meios para a

    satisfao dessas necessidades, a produo da prpria vida

    material, e este , sem dvida, um ato histrico, uma condio

    fundamental de toda a histria, que ainda hoje, assim como h

    milnios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,

    simplesmente para manter os homens vivos.

    Karl Marx e Friederich Engels, A Ideologia Alemii

    O historiador das economias antigas est, portanto, obrigado a

    restringir seu emprego [das categorias da cincia econmica

    moderna] a um uso, por assim dizer, indireto ou reflexivo: no

    para imediata e simplesmente descrever, mas para formular

    conceitos capazes de descrever. Apenas assim a inevitvel

    comparao entre o antigo e o moderno pode traduzir-se numa

    pontual anlise das diferenas (o conhecimento histrico nada

    mais do que conhecimento pelas diferenas), e no numa

    assimilao confusa e estril.

    Aldo Schiavone, Uma Histria Rompidaiii

    i Marc Bloc, Apologia da Histria. Ou o ofcio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.54 ii Karl Marx e Friederich Engels, A Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p.33. iii Aldo Schiavone, Uma Histria Rompida. Roma Antiga e o Ocidente Moderno. So Paulo: Edusp, 2005, p.71, nota 30.

  • viii

    Resumo

    Esta pesquisa analisa a racionalidade das prescries sobre os trabalhadores escravos no De Agri Cultura de Cato e no De Re Rustica de Varro. A hiptese inicial de trabalho que Cato e Varro ilustram um processo de racionalizao das atividades produtivas e do controle social da mo-de-obra nos campos italianos dentro de um quadro ideolgico tipicamente escravista e patriarcal, fazendo frente s transformaes e contradies fundamentais do sistema econmico-social que se desenvolvia na Itlia tardo-republicana. Contudo, identificamos que o conceito neoclssico de racionalidade, amplamente utilizado como premissa dos estudos sobre a economia antiga, se baseia em premissas equivocadas e no serve como bom referencial de anlise. A partir disso, propomos uma nova abordagem ao problema, a partir do conceito de Racionalidade Ideolgica. Este conceito nos leva a ressaltar a importncia da anlise das relaes sociais que marcam a Villa, forma de apropriao do solo e de explorao do trabalho que estes autores tinham em mente ao compor seus tratados, para o estudo da Racionalidade. Para tal, em um primeiro momento, analisamos como os tipos de atividades produtivas realizadas nas Villae e as formas de circulao de seus produtos esto ligadas ao problema da extrao de excedentes dos produtores diretos. J em um segundo momento, identificamos as formas de relaes sociais de produo e a centralidade da escravido para a forma de insero social das Villae nas comunidades rurais. Tendo por referncias essas problemas das relaes sociais que marcam a Villa, analisamos as prescries de Cato e Varro sobre a mo-de-obra escrava, identificando a Racionalidade Ideolgica que fundamenta suas preocupaes bsicas.

    Palavras-Chave: Roma Antiga, Economia Antiga, Escravido Antiga, Racionalidade,

    Ideologia, Cato, Varro.

  • ix

    Abstract

    This study examines the rationality of the prescriptions on slave workers in Catos De Agri Cultura and Varros De Re Rustica. The initial hypothesis is that Cato and Varro illustrates a rationalization process of productive activities and manpowers social control in the Italian countryside within a typically slavery and patriarchal ideological framework in line with the changes and the fundamental contradictions of the socio-economic system that developed in late-Republican Italy. However, we identify that the neoclassical concept of rationality, widely used as a premise in studies on the ancient economy, relies on questionable assumptions and it isn`t a useful concept for this study. We propose a new approach to the problem, the concept of Ideological Rationality. This concept will lead us to emphasize the importance of the social relations that mark the Villa (form of land appropriation and work exploitation that these authors had in their mind when composing these treatises) for the study of the Rationality. At first, we analyze how the types of productive activities carried out in Villae and the forms of production circulation are linked with the problem of surplus extraction from direct producers. In a second step, we identify the forms of social relations of production and the centrality of slavery to the form of social insertion of Villae in rural communities. In face with these problems of social relations that mark the Villa, we analyze the prescription of Cato and Varro on slave labor, identifying the Ideological Rationality that underlies their basic concerns.

    Key-Words: Ancient Rome, Ancient Economy, Ancient Slavery, Rationality,

    Ideology, Cato, Varro.

  • 1

    Sumrio

    Nota sobre as fontes citadas .......................................................................................................... 6

    Introduo ...................................................................................................................................... 7

    Captulo 1: Racionalidade Econmica da Aristocracia Romana: conceitos e debates ......... 14

    1. A Racionalidade Inexistente: o paradigma de Finley ............................................. 16

    1.1. Weber, Polanyi e as premissas de Finley sobre o Econmico ............. 18

    1.2. Tradio, Costume e Empiria .............................................................. 24

    2. A Racionalidade Limitada: o paradigma neomodernista .................................... 27

    2.1. A racionalidade dos investimentos conservadores .............................. 29

    2.2. New Economic History e Economia Antiga......................................... 32

    2.3. Neoinstitucionalismo e Economia Antiga ........................................... 36

    2.4. Crtica ao conceito neoclssico de racionalidade................................. 42

    3. A Racionalidade Singular: propostas alternativas .................................................. 46

    3.1. A Gesto aquisitiva no-mercantil ................................................... 49

    3.2. Racionalidade Imperial ........................................................................ 55

    3.3. Racionalidade do Sistema Escravista................................................... 62

    4. A Racionalidade Ideolgica: uma nova proposta ................................................ 67

    4.1. Materialismo Histrico, Ideologia e Estrutura Social .......................... 68

    4.2. Por um conceito materialista histrico de racionalidade ..................... 75

    Captulo 2: Os tratados de Cato e Varro e o estudo da racionalidade ............................... 82

    1. Os agrnomos latinos na historiografia .............................................................. 83

    2. O De Agri Cultura de Cato ................................................................................... 88

    2.1. O Autor ................................................................................................ 88

    2.2. Composio do De Agri Cultura ......................................................... 89

    2.3. Contexto poltico e cultural da composio ......................................... 91

    2.4. De Agri Cultura como fonte para a Histria Econmica ..................... 97

    3. O De Re Rustica de Varro ................................................................................... 100

    3.1. O Autor .............................................................................................. 100

    3.2. Composio da De Re Rustica ........................................................... 101

    3.3. Contexto poltico e cultural da composio ....................................... 108

    3.4. De Re Rustica como fonte para a Histria Econmica ...................... 110

    4. Estruturalismo Gentico e Anlise de Contedo .................................................. 114

  • 2

    Captulo 3: A Villa Rustica: conceito e primeiros elementos de anlise ............................... 117

    1. Estrutura Fundiria e Demografia na Itlia Republicana ..................................... 117

    1.1. Arqueologia rural e a heterogeneidade da estrutura fundiria ........... 119

    1.2. O problema demogrfico ................................................................... 123

    2. O Conceito de Villa .............................................................................................. 128

    2.1. Crtica concepo de Villa tpica ou ideal ............................... 128

    2.2. A Villa e a reorganizao do espao rural ......................................... 145

    3. Atividades Econmicas nas Villae........................................................................ 149

    3.1. Produo de vinho e leo de oliva ..................................................... 150

    3.2. Outras produes agro-pastoris ......................................................... 154

    3.3. Outras atividades econmicas ............................................................ 157

    4. Circulao dos produtos das Villae....................................................................... 163

    4.1. Caracterizao do Comrcio na Economia Antiga ............................ 163

    4.2. Comercializao dos Produtos da Villae ........................................... 170

    Captulo 4: As relaes sociais de produo nas Villae Escravistas...................................... 178

    1. Os trabalhadores externos ................................................................................. 181

    1.1 Trabalho Livre e a Vizinhana da Villa em Cato e Varro ........... 181

    1.2. Trabalho livre? ................................................................................... 199

    2. Os trabalhadores fixos ....................................................................................... 204

    3. A Importncia da escravido nas Villae ............................................................... 218

    3.1. Escravido e a alienao das relaes sociais .................................... 218

    3.2. Escravos e o surgimento de Sociedades Escravistas ......................... 220

    3.3. Escravido e as Relaes Agrrias na Itlia dos sculos II e I a.C. ... 225

    3.4. Roma teve uma economia genuinamente escravista? ........................ 234

    Captulo 5: Controle e Explorao dos Trabalhadores Escravos nas Villae ....................... 238

    1. As relaes entre senhores e escravos: violncia e cooptao .......................... 239

    1.1. Controle dos escravos: a historiografia e seus conflitos .................... 239

    1.2. A ausncia da violncia em Cato e Varro ...................................... 246

    2. A hierarquia na organizao do trabalho: os chefes escravos .............................. 251

    2.1. Varro e as caractersticas necessrias aos chefes ............................. 253

    2.2. O Vilicus ............................................................................................ 256

    2.3. Outros chefes: magister pecoris, custos e uilica ................................ 268

    3. Tratamento dos Escravos ...................................................................................... 275

    3.1. Aplicao ao trabalho e fidelidade ao senhor .................................... 275

  • 3

    3.2. Peclio: controle social e brecha camponesa ................................. 280

    3.3. Peclio e Raes: o problema da alimentao dos escravos.............. 284

    3.4. A Famlia Escrava: no ergstulo, uma flor? ...................................... 289

    4. A Racionalidade Ideolgica do Escravismo ......................................................... 293

    4.1. Tipos de atividades produtivas e formas de controle ......................... 294

    4.2. A questo do Paternalismo ............................................................. 298

    4.3. Patriarcalismo e Racionalidade .......................................................... 301

    Concluso ................................................................................................................................... 306

    Bibliografia ................................................................................................................................. 311

    1. Edies das Fontes ................................................................................................ 311

    2. Bibliografia Citada................................................................................................ 311

  • 4

    ndice de Figuras

    Figura 1 - Estimativas para a Populao Italiana entre 200 a.C. e 1900 d.C. ............. 125

    Figura 2 - Nmero de referncias a produtos agro-pastoris no De Agri Cultura de

    Cato ....................................................................................................................................... 137

    Figura 3 - Nmero de referncias a produtos agro-pastoris no De Agri Cultura de

    Cato distinguindo Consumo e Produo ............................................................................... 137

    Figura 4 - Planimetria reconstruda de um edifcio rural prximo a Pompia (R-34) 160

    Figura 5 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Agri Cultura:

    denotao de estatuto ou de ofcio .......................................................................................... 179

    Figura 6 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Re Rustica: denotao

    de estatuto ou de ofcio ........................................................................................................... 180

    Figura 7 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Agri Cultura: trabalho

    fixo e trabalho temporrio ....................................................................................................... 180

    Figura 8 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Re Rustica: trabalho

    fixo e trabalho temporrio ....................................................................................................... 180

    Figura 9 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores

    residentes na Villa no De Agri Cultura ................................................................................... 205

    Figura 10 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores

    residentes na Villa no Livro I da De Re Rustica ..................................................................... 207

    Figura 11 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores

    residentes na Villa no Livro II da De Re Rustica.................................................................... 213

    Figura 12 - Categorizao das Aes do Vilicus em Cato e Varro.......................... 262

    ndice de Tabelas

    Tabela 1 - Demanda anual de novos escravos se as estimativas de Brunt estiverem

    corretas .................................................................................................................................... 126

    Tabela 2 - Atitudes e sentimentos que devem ser estimulados entre os Escravos,

    segundo Varro ....................................................................................................................... 279

  • 5

  • 6

    Nota sobre as fontes citadas

    As edies do De Agri Cultura, de Marco Prcio Cato, e do De Re Rustica, de

    Marcos Terncio Varro, utilizadas como referncia neste trabalho so as presentes na

    publicao conjunta das obras na conceituada srie Leob Classical Library, da Harvard

    University Press, organizada por William Davis Hooper e Harrison Boyd Ash1. Tal

    publicao utiliza os textos latinos estabelecidos pelo fillogo alemo Goetz nas edies

    Teubner da De Agri Cultura, de 1922, e da De Re Rustica, de 1929. A obra de Hooper e Ash

    encontra-se em domnio pblico e est disponibilizada na internet nos seguintes endereos:

    De Agri Cultura, de Cato:

    http://penelope.uchicago.edu/thayer/e/roman/texts/cato/de_agricultura/home.html

    De Re Rustica, de Varro:

    http://penelope.uchicago.edu/thayer/e/roman/texts/varro/de_re_rustica/home.html

    As citaes desses dois textos ao longo do nosso trabalho sempre traro o texto

    original, para garantir a verificabilidade das interpretaes propostas, antecedido de uma

    traduo para o portugus, com o intuito de facilitar a leitura do trabalho. As citaes

    traduzidas do De Agri Cultura e do Livro I do De Re Rustica foram feitas a partir das suas

    tradues para o portugus apresentadas por Matheus Trevizam na sua tese de Doutorado em

    Lingstica pela Universidade Estadual de Campinas2. Apenas em um ou outro caso optamos

    por manter o termo original mesmo na traduo, omitindo a traduo utilizada pro Trevizam.

    As citaes dos livros II e III da De Re Rustica foram tradues feitas por ns a partir do texto

    em latim estabelecido por Goetz e tendo por referncia a traduo para o ingls de William

    Davis Hooper e Harrison Boyd Ash.

    As demais fontes foram citadas a partir da bibliografia referente aos temas trabalhados

    na pesquisa; deste modo, as referncias dessas citaes sero fornecidas em cada um dos

    casos. Como no empreenderemos anlises detalhadas dessas outras fontes, omitiremos o

    texto original em latim ou grego e citaremos apenas a traduo para o portugus.

    1 Cato, On Agriculture & Varro, On Agriculture. William Davies Hooper e Harrison Boyd Ash (Eds.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1935. 2 Mateus Trevizam, Linguagem e Interpretao na Literatura Agrria Latina. Campinas: IEL-UNICAMP (Tese de Doutorado), 2006.

  • 7

    Introduo

    Este exerccio de reflexo crtica parte do reconhecimento de que no h um ponto acima ou ideal do qual podemos descortinar o processo scio-histrico ou produzir conhecimento. Ao contrrio, mergulhado nele que o conhecimento se enriquece das inmeras determinaes que compem o real, evidenciando suas asperezas e contradies, e no as ocultando. Baseia-se, portanto, na compreenso de que a vida social composta por bilhes de seres que, no agir, produzem sua existncia. Somos seres concretos, de carne e osso. Precisamos continuar concretos para produzirmos alimentos, casas, roupas, bens variados, festas, cultura, amizade, mltiplas linguagens. Somos seres annimos, que encontramos um mundo organizado de uma dada maneira, que nos parece natural. Nele, nos tornamos o que somos, ora satisfeitos, ora enraivecidos como nossa sorte. Sabemos que a vida social histrica e pode se modificar, mas nem sempre sabemos como fazer para que isso ocorra. Este livro pretende socializar um conhecimento que, adquirido em instituies pblicas, refinado e polido nas lutas sociais, procura partir do mundo real, de seres sociais concretos e manter-se nele. Se puder contribuir para que as lutas emancipatrias tornem-se mais aguadas, terei atingido meu objetivo.

    Virgnia Fontes, O Brasil e o Capital-Imperialismo3

    A epgrafe acima no pode servir para balizar este trabalho. Cito-a mais como uma

    referncia ao que acredito ser o ideal de um bom trabalho de pesquisa do que para descrever o

    que foi de fato realizado nesta dissertao de mestrado. E to pouco eu poderia reivindicar o

    mesmo tipo de enquadramento de meu trabalho na atuao poltica que faz Virgnia Fontes,

    de imensa relevncia na historiografia e nos movimentos sociais. Porm, ao ler tal passagem

    da obra da professora Virgnia, no pude no pensar no que ela significaria para o meu

    trabalho. Mais especificamente, me levantou a difcil questo de para que(m) serve meu

    trabalho de pesquisa? Obviamente, minha pesquisa dialoga com debates tericos e

    historiogrficos que julgo relevantes para o desenvolvimento dos estudos nas reas de

    conhecimento em que busco me inserir, e talvez eu pudesse me dar por satisfeito com isso. No

    entanto, acredito que este trabalho pode ir um pouco alm.

    Sendo otimistas, podemos esperar que a crise econmica global que teve incio em

    2009, mesmo ano em que comecei o mestrado no Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), talvez marque o fim de uma era em que

    imperou nos debates econmicos a perspectiva da existncia de um pensamento nico. A

    teoria econmica de base neoclssica, h bastante tempo hegemnica e alada ao status de

    3 Virgnia Fontes, O Brasil e o Capital-Imperialismo. Rio de Janeiro: EPSJV e EdUFRJ, 2010, p.16.

  • 8

    Ortodoxia, tornou-se um pensamento quase sacrossanto, desafiado apenas por hereges que, ou

    no percebiam que defendiam idias anacrnicas, afinal o socialismo teria sido derrotado com

    a queda do muro de Berlim e o capitalismo triufara, ou que no tinham capacidade intelectual

    de perceber o bvio, a cientificidade inquestionvel e absoluta da teoria neoclssica e o erro

    marxista ao insistir no conceito de valor-trabalho.

    Obviamente, este estado de coisas no flutua na histria das idias sem qualquer

    contato com o mundo social e econmico. A nova fase de expanso do capitalismo (ou como

    melhor define Virgnia Fontes, capital-imperialismo4) iniciado em meados da dcada de 80,

    juntamente com a queda dos regimes que reivindicavam o Marxismo como fundamentao

    terica e poltica, criou o contexto scio-poltico favorvel disseminao do mito da

    existncia do pensamento econmico nico, ou da economia ortodoxa, que no se podia

    contradizer impunemente. Vivamos a poca do there is no alternative, da primeira-ministra

    inglesa Margareth Tatcher. O crescimento do PIB em boa parte do mundo ocidental na dcada

    de 90 e, especialmente, na primeira dcada do novo sculo acabou servindo de apoteose para

    esse mito.

    Como poder ser visto ao longo deste trabalho, uma das pretenses mais srias da

    minha pesquisa foi combater o pilar epistemolgico da economia neoclssica, o tosco

    conceito de racionalidade econmica que sustenta sua reflexo pois esta abordagem da

    teoria econmica serve de base para importantes posies terico-metodolgicas da

    historiografia econmica que pretendo superar neste trabalho. Sendo assim, esta dissertao

    de mestrado pretende contribuir para o esforo de derrubada do mito do pensamento nico

    neoliberal ou da economia ortodoxa, mostrando como o que se considerou nestas ltimas

    dcadas como nica possibilidade de pensamento econmico cientificamente vlido se

    sustenta sobre bases epistemolgicas extremamente frgeis.

    A crtica ao pensamento econmico nico fundamental para demonstrarmos que, ao

    contrrio da idia que se consolidou nas ltimas dcadas, as solues para os problemas da

    humanidade no passam pelo maior desenvolvimento do capitalismo. Mais mercado! tem

    sido um mantra repetido ad nauseam nas ltimas dcadas como resposta para todo e qualquer

    problema identificado nas sociedades contemporneas e esse estado de coisas deriva

    justamente da consolidao do tal pensamento nico neoliberal. Hegemonizou-se a idia de

    que o desenvolvimento do Mercado seria a nica resposta cientfica e racional para a soluo

    dos problemas da humanidade.

    4 Ibidem, passim, especialmente p.145-155.

  • 9

    Desta forma, o combate a essa hegemonia da Teoria Econmica Neoclssica uma

    ponte para a defesa da superao do capitalismo (e no de seu desenvolvimento) como o

    caminho para a soluo das encruzilhadas da sociedade contempornea. Mostrando as

    singularidades do passado, podemos historicizar o presente. Historicizando o presente,

    podemos desenvolver alternativas para sua superao. Acima de tudo, portanto, esta

    dissertao pretende ajudar no esforo de demonstrar que o rei est nu, ou de que o mito tem

    ps de barro.

    De qualquer forma, os problemas que incitam um trabalho de pesquisa possuem uma

    trajetria intelectual de construo, e sua explicitao muitas vezes ajuda bastante a

    identificao dos mesmos por parte do leitor. Para tanto, posso dizer que em meados do ano

    de 2007, ainda no curso de graduao em Histria na UFF, comecei uma pesquisa de

    iniciao cientfica, sob orientao da professora Snia Regina Rebel de Arajo, cujo tema era

    A escravido no De Re Rustica de Varro. Meu interesse pela escravido neste texto, um

    tratado sobre as coisas do campo escrito no sculo I a.C. na Roma Antiga, surgira do que se

    poderia chamar de histria comparada intuitiva: ao ler diversos estudos sobre a escravido

    nas Amricas relacionando modificaes e reformulaes nas prticas e nas ideologias

    escravistas a grandes episdios de sublevao de escravos5, me perguntei sobre os tipos de

    mudanas que poderiam ter ocorrido nas prticas e ideologias escravistas romanas aps as

    famosas guerras servis dos sculos II e I a.C. que ocorreram no sul da Itlia e na Siclia.

    Certamente, esta seria uma problemtica de pesquisa complexa e profunda demais

    para uma pesquisa de iniciao cientfica e, portanto, busquei um recorte temtico mais

    delimitado. O texto sobre as coisas do campo de Varro me pareceu ideal para um estudo

    inspirado neste questionamento, pois o autor foi contemporneo da ltima dessas guerras

    servis a Revolta de Esprtaco (73 a.C.-70 a.C.). Desta maneira, desenvolvi uma pesquisa

    sobre a forma como Varro preconizava a administrao da mo-de-obra escrava, partindo da

    hiptese de que o medo de novas revoltas causado pela violncia e magnitude das grandes

    revoltas servis fez a classe proprietria romana rever suas prticas e suas ideologias

    escravistas6.

    5 Cf., por exemplo, Silvia Hunold Lara, Do singular ao plural: Palmares, capites-do-mato e o governo dos escravos in: Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes, Liberdade por um fio. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, especialmente p.83-88; Joo Jos Reis, Rebelio Escrava no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, especialmente p.509-515 e 525-536; e Keith Bradley, Slavery and Rebellion in the Roman World. Indiana University Press and B.T.Batsford, 1989, p.13. 6 Jos Ernesto Moura Knust, Escravido, Produo e Controle na De Re Rustica de Varro. Niteri: Departamento de Histria, Universidade Federal Fluminense (Monografia de concluso de curso), 2008. A possibilidade de relacionar alguns dos conselhos varronianos sobre o controle dos escravos com as guerras servis

  • 10

    Como costuma ocorrer com todas as pesquisas, ao aprofundar minhas reflexes sobre

    esta temtica me deparei com problemas mais fundamentais que eu no havia previsto

    inicialmente. Ao tentar entender as razes dos conselhos de Varro sobre a relao do

    proprietrio com seus escravos, emergiu um problema mais profundo a ser resolvido: a

    abordagem de Varro sobre os trabalhadores rurais, em especial os escravos, permeada por

    uma racionalizao da atividade produtiva e das relaes de controle social? A polmica

    envolvendo esta questo considervel, j que durante dcadas a historiografia,

    principalmente anglo-sax, foi dominada por uma caracterizao minimalista e

    primitivista da Economia Antiga, negando a possibilidade de qualquer tipo de crescimento

    econmico e do desenvolvimento de qualquer espcie de pensamento econmico na

    Antiguidade. Moses Finley, o autor fundamental desta percepo da Economia Antiga, por

    exemplo, afirmava que os autores de tratados sobre a agricultura da Antiguidade nunca iriam

    alm de observaes rudimentares baseadas no senso comum em seus textos7.

    Como durante a pesquisa de iniciao cientfica no era possvel desenvolver uma

    questo desta profundidade, acabei deixando-a de lado. Foi esse questionamento no-

    resolvido que me fez retornar s consideraes de Varro sobre os escravos em seu tratado

    sobre o campo.

    Nesta retomada do problema, achei importante expandir um pouco o corpus

    documental incluindo nesta nova pesquisa o tratado similar de Cato (anterior ao de Varro)

    por ele ter sido produzido em um perodo (incio do sculo II a.C.) que alguns autores,

    especialmente aqueles que no concordam com a abordagem minimalista de Finley sobre a

    Economia Romana, apontam como de grande transformao da economia rural italiana.

    Temos, ento, como fontes primrias, dois tratados que foram escritos em momentos que

    teriam sido crticos para possveis processos de racionalizao da atividade produtiva e das

    relaes de controle social, o objeto de pesquisa neste trabalho.

    A centralidade dessas fontes nesta pesquisa no significou a ignorncia de todas as

    outras fontes que podiam ser relevantes para pesquisa. Muitos estudiosos, a fim de evitar

    generalizaes abusivas, buscam um recorte do objeto de pesquisa bastante especfico,

    circunscrevendo fontes determinadas e remetendo-se exclusivamente ao universo conceitual

    identificvel nessas fontes. Acredito que existem melhores formas de evitar generalizaes

    abusivas do que este procedimento que acaba, muitas vezes, empobrecendo pesquisas muito

    j fora aventado por Zvi Yavetz em Slaves and Slavery in Ancient Rome. New Brunswick and London: Transaction Publishers, 1988, p.127-128 7 Moses Finley, A Economia Antiga, Porto: Edies Afrontamento, 1981, p.22-23.

  • 11

    bem realizadas. O problema da racionalidade identificvel nos tratados de Cato e Varro

    serviu como eixo ao longo do trabalho, mas muitas vezes outras fontes foram citadas para o

    estabelecimento do quadro explicativo.

    O prprio dilogo historiogrfico estabelecido ao longo dos captulos me levou a

    contemplar, ainda que de maneira indireta, outras fontes primrias. Porm, uma diferena

    importante na apreciao dessas fontes poder ser percebida ao longo da leitura deste

    trabalho. Enquanto os tratados de Cato e Varro foram exaustivamente analisados, e

    interpretaes originais foram oferecidas, a abordagem a outras fontes sempre se deu a partir

    de interpretaes j estabelecidas por outros pesquisadores e apenas debatidas ao longo do

    trabalho.

    A realizao destes dilogos com a historiografia foi importante neste trabalho devido

    insero desta pesquisa na encruzilhada de dois debates historiogrficos clssicos sobre o

    mundo antigo: as caracterizaes da Economia Antiga e da Escravido Antiga. Ademais,

    minha proposta de abordagem insere estes debates historiogrficos em um debate fundamental

    da teoria social: o problema da racionalidade do comportamento humano, o que acredito ter

    possibilitado novas abordagens frutferas a reflexo sobre estes temas clssicos.

    A hiptese inicial de trabalho a de que Cato e Varro ilustram um processo de

    racionalizao das atividades produtivas e do controle social da mo-de-obra nos campos

    italianos dentro de um quadro ideolgico tipicamente escravista, fazendo frente s

    transformaes e contradies fundamentais do sistema econmico-social que se desenvolvia

    na Itlia tardo-republicana. Porm, como pretendi demonstrar, possvel falar neste processo

    de racionalizao somente a partir de uma reconstruo do conceito de racionalidade,

    abandonando o aporte da teoria econmica neoclssica referncia bsica quando se fala em

    racionalidade. Tal reconstruo do conceito de Racionalidade pode ser feito a partir de

    referenciais marxistas de autores como Maurice Godelier, Wiltold Kula, Lucien Goldmann,

    Edward Thompson e Ellen Meiksins Wood e da associao direta desse conceito com o

    conceito de ideologia.

    As definies do objeto de pesquisa, das fontes a serem utilizadas e do aporte terico

    estabelecem dois problemas iniciais: o que exatamente entendemos por racionalidade? Que

    tipo de abordagem das fontes empreender para poder realizar este estudo? Estes so os temas

    dos dois primeiros captulos deste trabalho. No primeiro captulo so analisados diferentes

    tipos de abordagens historiogrficas sobre o problema da racionalidade econmica dos antigos

    romanos que derivam de diferentes conceitos de racionalidade utilizados. Meu intuito

    identificar a importncia de cada uma destas abordagens para o desenvolvimento do debate,

  • 12

    mas tambm seus problemas e limitaes, tudo isto a fim de delimitar o conceito de

    racionalidade que ser utilizado no trabalho, definido no termo racionalidade ideolgica. A

    detalhada reviso historiogrfica e terica empreendida neste captulo, porm, no visa apenas

    definir pontualmente o que entendo por racionalidade nesta pesquisa. Pretendo neste captulo

    identificar o que acredito ser o maior problema dos estudos sobre a racionalidade econmica

    antiga: a falta de uma boa definio do conceito de racionalidade. Alm disso, o cotejamento

    de uma ampla bibliografia pretende tambm identificar certos insights teis para reflexes nos

    captulos seguintes.

    No segundo captulo, a vez de enfrentar o problema metodolgico fundamental: qual

    a forma de abordagem dos tratados permite o estudo da racionalidade a partir deles? Para

    responder a tal questionamento, a forma tradicional de abordagem desses tratados na

    historiografia e a crtica contempornea que se faz a essa abordagem so identificadas. A

    partir desta crtica, so discutidas separadamente as singularidades de cada um dos tratados

    para estabelecer suas formas de composio, suas caractersticas e seus objetivos poltico-

    ideolgicos. Com isto, acredito ser possvel estabelecer como abordar estes tratados para

    atingir os objetivos da pesquisa, determinando, por fim, os parmetros metodolgicos para a

    pesquisa a partir do dilogo com o Estruturalismo Gentico e com a Anlise do Discurso.

    Este trabalho terico-metodolgico nos dois primeiros captulos define a importncia,

    para nosso trabalho, da correta identificao das estruturas e transformaes scio-

    econmicas da histria agrria romana. O terceiro e o quarto captulos, que, como o leitor

    poder perceber, formam uma unidade coerente, tratam deste problema. A questo

    fundamental identificar o que era uma uilla e os diversos problemas analticos que tal

    conceito traz consigo.

    Tradicionalmente os tratados de Cato e Varro so identificados como descries de

    um tipo especfico de propriedade, as uillae. Como mostramos no segundo captulo, esta idia

    parte da premissa equivocada de que Cato e Varro pretendiam descrever a realidade dos

    campos italianos. Porm, em parte, concordamos com a idia de que estes autores tinham em

    mente, ao escrever seus tratados, este tipo especfico de propriedade mas no sem discordar

    veementemente da forma rgida e equivocada em que as uillae tm sido definidas.

    A partir disso, discutimos no incio do terceiro captulo como definir de uma maneira

    mais interessante o fenmeno da uilla, enfatizando o problema da insero social desta forma

    de propriedade no contexto rural. A partir das consideraes sobre este problema, levantam-se

    trs questes importantssimas: as atividades econmicas realizadas nas uillae, as formas de

    circulao de sua produo e as relaes sociais de produo deste tipo de propriedade. As

  • 13

    duas primeiras questes so discutidas ainda no terceiro captulo, mostrando a centralidade do

    problema da extrao de excedentes dos produtores diretos para entend-las.

    A terceira questo, as formas de relaes sociais de produo da uilla, no por acaso

    mereceu uma anlise mais cuidadosa, e por isso a ela dedicamos todo o quarto captulo. Neste

    captulo identificamos as diferentes formas de trabalho que existiam no contexto da uilla, que

    podem ser basicamente divididas entre o trabalho fixo, residente, realizado por escravos, e o

    trabalho temporrio ou sazonal, realizados por camponeses livres. Ao longo deste captulo

    buscamos entender qual a importncia do escravismo no contexto da uilla.

    No quinto captulo, so analisados detalhadamente os preceitos defendidos por Cato e

    Varro acerca da mo-de-obra. O captulo comea como uma discusso sobre a importncia

    da violncia no controle dos escravos e uma explicao sobre a pouca ateno dada a este

    elemento nas prescries dos nossos dois autores. Depois disso, identifico a importncia dada

    s hierarquias entre os trabalhadores, destacando o importante papel desempenhado pela

    figura do escravo encarregado da administrao da propriedade, o uilicus. O terceiro tema do

    captulo so as formas de tratamento dos escravos, analisando os objetivos dos preceitos deste

    tratamento e sua incorporao em uma racionalidade da organizao do trabalho agrcola e do

    controle dos trabalhadores. Concluindo o quinto captulo, tentamos caracterizar a

    Racionalidade Ideolgica que identificamos nestes preceitos.

    Por fim, a concluso busca retomar as idias centrais do trabalho, identificando como

    a organizao da unidade produtiva e, especialmente, a organizao do trabalho descritas nos

    tratados de Cato e Varro podem ser analisadas dentro do quadro conceitual da

    Racionalidade Ideolgica.

  • 14

    Captulo 1: Racionalidade Econmica da Aristocracia

    Romana: conceitos e debates

    Os estudos sobre a Economia Antiga so dominados h mais de um sculo pelo debate

    entre duas diferentes abordagens bsicas, iniciado ainda no sculo XIX, sob forte impacto do

    grande desenvolvimento da economia industrial capitalista. Por um lado, economistas da

    Escola Histrica Alem, como Karl Rodbertus e Karl Bcher, defendiam a idia de que o

    Mediterrneo Antigo pertencia a uma fase inicial do desenvolvimento econmico-histrico

    universal, que seria justamente a anttese do desenvolvimento industrial capitalista que lhes

    era contemporneo. A economia antiga seria, desta forma, marcada pela economia

    domstica, essencialmente agrcola e voltada para a auto-suficincia das unidades

    produtivas, e por isso desprovida de relaes comerciais relevantes. Esta posio ficou

    conhecida como primitivista.

    Por sua vez, renomados classicistas da virada do sculo XIX para o sculo XX, como

    Eduard Meyer e Michail Rostovtzeff, defendiam uma viso mais corrente no senso comum

    sobre o mundo clssico Greco-romano: to imponente sociedade, vista como espcie de mito

    fundador da civilizao ocidental, no poderia ser sustentada por uma economia to dbil

    como a postulada pelo primitivismo; pelo contrrio, haveria de possuir uma economia similar

    ao capitalismo moderno. Esta posio ficou conhecida como modernista. Entre o final do

    sculo XIX e a dcada de 60 do sculo passado, a viso modernista dominou os estudos sobre

    a economia antiga talvez por apresentar uma viso mais convergente com a viso geral que

    se tinha sobre o mundo Greco-romano, ou talvez por lidar melhor com as fontes histricas,

    abundantes no que pareciam exemplos de trocas comerciais e produes mercantilizadas8.

    A partir da dcada de 60, porm, Moses Finley iniciou uma releitura da histria

    econmica greco-romana crtica ao modernismo dos autores mencionados, que visava

    recuperar muitos dos aspectos do primitivismo, especialmente de Karl Bcher. Influenciado

    por Karl Polanyi e Max Weber, Finley afirmava que os antigos no possuam uma economia

    autnoma da sociedade e que a cidade antiga era essencialmente um centro de consumo e no

    de produo9. Como brilhantemente identifica o historiador dinamarqus Peter Fibiger Bang,

    as teses de Finley surgiam no contexto do choque ps-colonial, um perodo no qual idias

    8 Aldo Schiavone, Uma Histria Rompida. Roma Antiga e Ocidente Moderno. So Paulo: EdUSP, 2005, p.82. 9 Finley, A Economia Antiga, op.cit. passim.

  • 15

    crticas ao Ocidente capitalista ganharam fora. Nesta poca, os povos no-europeus, que

    durante o perodo ureo do imperialismo neocolonialista haviam sido repetidamente taxados

    de primitivos, atrasados e brbaros, passaram a ser analisados de maneira mais positiva e os

    estudos antropolgicos sobre esses povos ganharam maior influncia10. Caracterizar as

    sociedades fundadoras do mundo ocidental, Grcia e Roma, a partir de insights produzidos

    por esses estudos deixou de ser algo to assombroso ou reprovvel dentro do senso comum

    historiogrfico e as teses de Finley tiveram amplo espao para circulao.

    A obra de Finley era um ataque muito bem elaborado contra vises anacrnicas do

    mundo romano e contra o uso indevido de mtodos quantitativos a partir das fontes primrias

    Greco-romanas. A importncia da obra deste autor para os estudos scio-econmicos da

    Antiguidade inegvel, visto que sua abordagem se tornou paradigmtica desde a dcada de

    60 e fixou alguns problemas centrais em torno das quais se desenvolveram os estudos

    posteriores sobre a economia antiga. Um desses problemas centrais que Finley estabeleceu foi

    a questo da racionalidade econmica. A partir de sua obra, muito se discutiu o quanto os

    investimentos de recursos pelos antigos, especialmente da elite proprietria de terras,

    refletiam de fato uma racionalidade econmica. A compreenso dos critrios que definiam o

    comportamento dessa elite na relao com suas propriedades fundirias passou a ser vista

    como um elemento chave para a caracterizao qualitativa da economia romana, permitindo

    distinguir as caractersticas especficas dessa economia com a de outros perodos da histria11.

    Atualmente, existe uma preocupao muito grande no debate acerca da economia

    antiga em estabelecer a magnitude e as possibilidades de crescimento do produto interno bruto

    do imprio romano a partir de abordagens inspiradas no neoinstitucionalismo de Douglass

    North12. Sem diminuir a importncia desse tipo de estudo, acreditamos que fundamental sua

    complementao por perguntas mais primordiais sobre as relaes sociais de produo que

    estruturam tal economia, sendo o estudo da racionalidade econmica da elite proprietria de

    terra uma das chaves para este empreendimento. Caso contrrio, ficaremos eternamente refns

    dos termos do debate oitocentista, que estabelecia que, ou a economia romana era

    subdesenvolvida e, por isso, diferente da economia capitalista, ou era desenvolvida e, por isso,

    10 Peter Fibiger Bang, Antiquity between "Primitivism" and "Modernism", Workpaper 53-97, Centre for Cultural Resarch, University of Aarhus, 1997, verso online disponvel em www.hum.au.dk/ckulturf/pages/publications/pfb/antiquity.htm (acessado em 24/11/2010) 11 Dennis Kehoe, Investment, Profit and Tenancy. The Jurists and Roman Agrarian Economy. Ann Arbor: Michigan University Press, 1997, p.1 12 Cf., por exemplo, Alan Bowman e Andrew Wilson (Eds.), Quantifying the Roman Economy. Methods and Problems. Oxford: Oxford University Press, 2009, em especial os artigos de Elio Lo Cascio, Urbanization as Proxy of Demographic and Economic Growth, Willem Jongman, Archaeology, Demography and Roman Economic Growth, e Walter Scheidel, New ways of studying incomes in the Roman Economy.

  • 16

    similar a economia capitalista sem pensar diferenciaes qualitativas entre os diversos

    sistemas econmicos histricos.

    Analisando as obras que, nos ltimos quarenta anos, vm debatendo o problema da

    racionalidade econmica dos grandes proprietrios de terras romanos, identificamos trs tipos

    bsicos de abordagem: 1) aqueles que identificam racionalidade econmica com o

    comportamento tipicamente capitalista e negam a existncia deste tipo de comportamento

    entre os antigos isto , que advogam a inexistncia de racionalidade econmica na

    Antiguidade; 2) aqueles que tambm identificam racionalidade econmica com o

    comportamento capitalista, mas acreditam que este tipo de comportamento existe em algum

    nvel na Antiguidade, mesmo que limitado por fatores fundamentais ou seja, que advogam a

    existncia de uma racionalidade econmica limitada na Antiguidade; 3) e, por fim, aqueles

    que advogam a existncia de mltiplas racionalidades econmicas na histria, distintas da

    racionalidade capitalista, e que buscam identificar a racionalidade econmica especfica da

    Antiguidade. Analisaremos alguns dos principais autores que defenderam cada uma destas

    posturas ao longo destes quarenta anos de debates, buscando identificar as potencialidades e

    os limites de suas abordagens.

    Trs sero as pretenses dessa anlise: demonstrar os termos superficiais em que o

    conceito de racionalidade vem sendo tratado nos estudos sobre economia antiga, identificando

    isto como o principal problema dos termos em que o debate vem sendo colocado; identificar

    aspectos inspiradores e insights nos modelos analisados (especialmente entre aqueles que

    identificam singularidades na racionalidade antiga) a serem utilizados neste trabalho; e

    construir uma nova proposta de abordagem para este conceito a ser utilizada em nossa

    pesquisa, que permita contribuies mais ricas ao debate sobre a caracterizao da economia

    antiga.

    1. A Racionalidade Inexistente: o paradigma de Finley

    Ao discutir a produo agrcola romana, no captulo Senhores e Camponeses de A

    Economia Antiga, Moses Finley apresenta sua principal contribuio ao problema da

    racionalidade econmica dos grandes proprietrios de terras da Antiguidade clssica. Ele

    critica a tendncia modernista de imputar aos proprietrios de terras da Antiguidade

    raciocnios produtivistas comuns realidade moderna, afirmando que os pesquisadores fazem

    isso a revelia da analise emprica por no acreditarem que os gregos e romanos tivessem sido

  • 17

    to incapazes de melhoramentos to simples13. Contrariando estes modernistas, Finley

    afirma que a estabilidade e riqueza obtidas pela elite romana a partir de suas propriedades

    rurais eram conseqncias da magnitude de suas posses e riquezas, e no de qualquer forma

    qualitativamente diferente de encarar a produo agrcola14. A idia bsica a de que os

    fatores que hoje chamamos econmicos, maximizao de rendimentos (...) ou clculos de

    mercado15 no exerciam um papel importante no comportamento dos antigos papel

    exercido, na verdade, por valores fundamentais16. Deste modo, a economia no possua um

    carter autnomo, visto que, acima de tudo, a satisfao de necessidades no se dava pelo

    mercado, o que, para Finley, torna impossvel uma anlise do comportamento econmico dos

    antigos pois se no h maximizao de rendimentos atravs de clculos de mercado nem

    sequer existiria um comportamento econmico a ser analisado17.

    Para fundamentar empiricamente a idia de que no havia racionalidade econmica

    entre os grandes proprietrios romanos, Finley identifica uma srie de comportamentos que

    ele considera constituintes da racionalidade econmica e que no podem ser identificados

    entre esses proprietrios. O primeiro deles a economia de escala, isto , a minimizao

    dos investimentos necessrios para gerir a produo atravs da utilizao de fatores de

    produo fundamentais em larga escala18. O segundo a inexistncia de incentivo ao aumento

    da produtividade das tcnicas agrcolas. Finley afirma que a direo e controle do trabalho,

    tema recorrente nas fontes antigas devido ao absentesmo dos proprietrios, insistia no

    problema da honestidade dos trabalhadores e no na melhoria qualitativa da eficincia da

    fora de trabalho atravs da utilizao de melhores tcnicas agrcolas que ajudassem a poupar

    trabalho19. Por fim, Finley afirma que o investimento em terras nunca foi uma questo de

    decises sistemticas e calculadas, daquilo a que Weber chamava racionalidade econmica,

    pois no havia conceitos claros de distino entre custos de capital e de trabalho, ou

    reinvestimento planejado de lucros, emprstimos com fins produtivos ou nada que se

    assemelhe com uma contabilidade bem desenvolvida. Isto , economias de escala, incentivo

    ao aumento da produtividade atravs de melhores tcnicas agrcolas e tcnicas contbeis bem

    desenvolvidas caracterizam, para Finley, o comportamento econmico racional e nenhum

    desses fatores est presente na Antiguidade.

    13 Finley, A Economia Antiga, op.cit., p.149. 14 Ibidem, p.150. 15 Ibidem, p.55. 16 Ibidem, p.80. 17 Ibidem, p.26. 18 Ibidem, p.153-155. 19 Ibidem, p.156

  • 18

    A abordagem de Finley em A Economia Antiga seguida de perto por Richard Saller e

    Peter Garnsey nos captulos sobre economia em seu influente manual The Roman Empire:

    Economy, Society and Culture. Saller e Garnsey afirmam que a Economia Romana deve ser

    caracterizada como subdesenvolvida, pois a maior parte da populao vivia em um nvel

    prximo ao da subsistncia20. Uma das chaves para a explicao deste nvel de

    subdesenvolvimento, ao lado do baixo nvel tecnolgico, o comportamento da elite romana.

    Dois aspectos deste comportamento so fundamentais: os proprietrios romanos eram

    essencialmente consumidores, e no investidores; e as riquezas investidas no eram

    direcionadas para atividades que buscassem o lucro na produo manufatureira em larga

    escala. Isto , no existia uma classe de empreendedores capitalistas no mundo romano; as

    riquezas eram desviadas para emprstimos (empregados no consumo poltico ou social

    ostentatrio, e no em investimentos produtivos) e para a compra de terras. Estas eram vistas

    como um investimento seguro que garantia uma renda estvel, mas atraam a elite,

    especialmente, por garantir prestgio e poder poltico, sendo o caminho de entrada para a

    aristocracia. Ou seja, o comportamento comum de investir riquezas em terras se devia mais a

    fatores sociais e polticos do que econmicos. Isto ocorria devido predominncia de valores

    aristocrticos, que subjugavam o empreendedorismo e a habilidade nos negcios, decorrncia

    do fato de um sistema de valores que premiava a ostentao de riqueza no ser compatvel

    justamente com o reinvestimento produtivo da riqueza21.

    1.1. Weber, Polanyi e as premissas de Finley sobre o Econmico

    Finley parte de duas premissas equivocadas: primeiro, que racionalidade econmica

    significa busca por aumento da produtividade e diminuio de custos atravs de clculos

    econmicos refinados; segundo, que o termo economia limita-se maximizao de

    rendimentos a partir de clculos de mercado. Garnsey e Saller fazem as mesmas

    identificaes equivocadas, buscando contrapor o empreendedorismo capitalista ao

    comportamento aristocrtico da elite romana. necessrio lembrar que esses autores esto

    fazendo uma crtica direta a abordagem modernista que imputava um ethos burgus,

    capitalista e moderno aos grandes proprietrios de terras gregos e romanos, e dentro desta

    crtica que sua nfase na inexistncia de comportamentos capitalistas na Antiguidade precisa

    20 Peter Garnsey e Richard Saller, The Roman Empire: Economy, Society and Culture. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1987, p.43. 21 Ibidem, p.44-45 e p.74

  • 19

    ser compreendida. Para contrapor-se a autores que defendiam a existncia do capitalismo na

    Antiguidade, Finley, Garnsey e Saller identificavam o comportamento econmico racional

    tipicamente capitalista como inexistente no mundo antigo. Porm, para o avano do debate

    sobre o problema da racionalidade, fundamental lembrar, tambm, que mesmo dentro

    daquilo a que Weber chamava racionalidade econmica, essas duas premissas de Finley,

    seguidas por Garnsey e Saller, podem (e em nossa opinio, devem) ser criticadas. Mais do que

    isso, as duas premissas que estruturam a tese de Finley sobre a inexistncia de comportamento

    econmico entre os antigos (da qual tambm partem Saller e Garnsey) podem ser criticadas a

    partir dos prprios ensinamentos dos dois autores que, aparentemente, mais o influenciaram:

    Max Weber e Karl Polanyi.

    No captulo sobre Sociologia Econmica de Economia e Sociedade, Weber distingue

    dois tipos fundamentais de racionalidade econmica: a racionalidade formal e a racionalidade

    substantiva. A racionalidade formal nada mais que o desenvolvimento de tcnicas de clculo

    da forma mais precisa e eficiente de resolver problemas atravs de regras abstratas e

    universais. J a racionalidade substantiva aquela que direciona a ao dentro de um

    postulado de valores. Num sentido mais estritamente econmico, refere-se ao grau em que o

    abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas (...) ocorre conforme determinados

    postulados valorativos22. Os trs comportamentos que Finley identifica como constituintes

    da racionalidade econmica e inexistentes entre os antigos pertencem essencialmente ao

    campo do conceito weberiano de racionalidade formal. Ou seja, apesar de reivindicar a obra

    do socilogo alemo, Finley ignora por completo a idia weberiana de racionalidade

    substantiva, limitando a racionalidade econmica a racionalidade formal.

    Este procedimento compromete o melhor desenvolvimento das idias de Finley. Sua

    percepo de que o comportamento dos grandes proprietrios romanos difere em pontos

    fundamentais do comportamento capitalista correta. Contudo, ao identificar racionalidade

    exclusivamente com o comportamento tipicamente capitalista, Finley se limita a caracterizar a

    racionalidade econmica dos antigos negativamente, chegando concluso final (inevitvel

    ao partir dessa identificao equivocada) de que no existia qualquer racionalidade deste tipo

    no mundo antigo. Mesmo atuando dentro dos referenciais weberianos, reivindicados por

    Finley, no possvel afirmar que um comportamento deixa de ser racional por no estar

    baseado em clculos economizantes, mas em valores, pois para Weber um comportamento

    22 Max Weber, Economia e Sociedade, Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Vol.1. 3 Ed. Braslia: EdUnB, 1994, p.52.

  • 20

    baseado em postulados valorativos pode ser to racional quanto aquele baseado no clculo

    economizante, possuindo o que ele chama de racionalidade substantiva.

    Essa limitao da racionalidade econmica racionalidade formal um modus

    operandi bastante comum. Isto se explica pelo fato de o termo racionalizao ser amplamente

    utilizado por Weber em seus estudos sobre a formao do mundo moderno, o que acabou

    levando-o a ser associado completamente idia de expanso do Capitalismo e do Estado

    Burocrtico Moderno - processos histricos ligados a profundos desenvolvimentos de

    racionalidades formais. Mesmo Weber toma este caminho nos trabalhos sobre o mundo antigo

    que escreveu entre 1891 e 1897, tentando identificar comportamentos racionais e irracionais a

    partir das possibilidades de formalizao e acreditando que tal procedimento permitiria

    estabelecer a existncia ou no do capitalismo na Antiguidade. John Love, em um importante

    trabalho de anlise da obra weberiana e sua relao com o estudo da economia antiga,

    identifica, precisamente, que no momento da carreira em que escreveu estes trabalhos sobre

    Antiguidade, Weber equalizava racionalidade, racionalidade formal e comportamento

    capitalista, s percebendo o equvoco desta formulao em suas obras sociolgicas do final da

    carreira, notadamente em Economia e Sociedade23. Segundo o prprio Love, um ardoroso

    weberiano, a abordagem a partir destas obras sociolgicas muito mais promissora para o

    estudo da economia antiga do que a abordagem a partir das obras sobre o mundo antigo,

    aparentemente o caminho tomado por Finley.

    Desta forma, em Economia e Sociedade, racionalizao no necessariamente aquela

    ocorrida no Ocidente moderno, mas a busca pelo controle da realidade por um princpio de

    racionalizao, que busca banir percepes particularizadas e ordenar a percepo de mundo

    em regularidades inteligveis, coerentes e consistentes com um sistema de valores24. Isto ,

    no existem racionalidades absolutas e universais, possivelmente derivadas de um

    racionalismo formal baseado no clculo, mas inmeras racionalidades substantivas que

    dependem de sistemas de valores especficos. Mesmo a racionalizao capitalista do Ocidente

    moderno, vista por Weber como aquela que melhor desenvolveu a racionalidade formal e por

    Finley como o padro universal da racionalidade econmica, depende de seus valores

    especficos, como o prprio socilogo alemo estudou em seu famoso tica Protestante e o

    Esprito do Capitalismo.

    23 John Love, Antiquity and Capitalism: Max Weber and the sociological foundations of Roman civilization. Londres e Nova York: Routledge, 1991, p.34. 24 Stephen Kalberg, Max Webers types of rationality: Cornerstones for the analysis of rationalization processes in history. The American Journal of Sociology, Maro de 1980, Vol.85, n5, p.1155-1157 e 1160.

  • 21

    Os problemas desta viso limitada do conceito de racionalidade econmica esto

    intimamente ligados ao problema da segunda premissa equivocada de Finley: identificar o

    mercado como o elemento chave para a definio de economia. Finley cita um conceito um

    pouco confuso de economia, pinado do economista Erich Roll, segundo o qual o problema

    central da investigao econmica a explicao do processo de troca ou, mais

    particularmente, a explicao da formao de preo25. Porm, ao equalizar troca formao

    de preos e, principalmente, ao identificar comportamento econmico com maximizao de

    rendimentos atravs de clculos de mercado, percebemos que Finley tributrio da concepo

    marginalista que define economia como cincia que estuda a alocao racional de recursos

    escassos entre fins alternativos, cunhada pela primeira vez pelo economista britnico Lionel

    Robbins26.

    Finley constri uma dicotomia entre economia de mercado, na qual esta definio

    formalista funcionaria e na qual o comportamento econmico existe e deve ser estudado, e

    sociedade sem economia autnoma, na qual no existe comportamento econmico. Esta

    dicotomia condizente, em parte, com a construo terica de Polanyi, j que o antroplogo

    hngaro tambm considera que o formalismo marginalista til anlise do mundo

    capitalista. Porm, Finley subverte a percepo polanyiana ao considerar que, no existindo

    este comportamento descrito pelo formalismo nas sociedades sem mercado, no h

    comportamento econmico.

    Polanyi diferencia Economias de Mercado e Economias sem Mercado, e no

    Sociedades com Economia e Sociedade sem Economia, como acaba fazendo Finley ao

    afirmar que no existe comportamento econmico sem mercado. Polanyi prope, em

    substituio ao conceito formalista de Economia, justamente um conceito substantivo de

    economia, que a define como a necessidade humana de um meio fsico de subsistncia e a

    relao dos homens com a natureza e seus semelhantes para obter os meios materiais para a

    satisfao de suas necessidades (materiais ou no)27. Toda sociedade humana precisa deste

    meio fsico de subsistncia construdo a partir das relaes dos homens com a natureza e seus

    semelhantes; logo, toda sociedade humana possui uma economia em sentido substantivo.

    25 Finley, A Economia Antiga, op.cit., p.26. 26 Carlos guedo Nagel Paiva e Andr Moreira Cunha, Noes de Economia. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2008, p.22, n.10. 27 Karl Polanyi, A Iluso da Economia. Editora Joo S da Costa, 1997, p.23-24 e Idem, La Economia como actividad institucionalizada, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y Mercado en los Imperios Antiguos. Barcelona: Labor Universitria Monografias, 1976, p.289 e 291.

  • 22

    Polanyi v a chave para a compreenso do comportamento econmico humano em

    outra abordagem que no a anlise das escolhas individuais, como faz o marginalismo. E aqui

    se percebe a clara diferena entre a fundamentao funcionalista de Polanyi e o

    individualismo metodolgico da anlise econmica marginalista. O importante para Polanyi

    entender a economia em seu sentido substantivo como atividade institucionalizada. Estudo da

    atividade sugere identificao de movimentos, e para Polanyi existem dois tipos fundamentais

    de movimentos econmicos: de situao (no qual ele inclui a produo e o transporte) e de

    apropriao (que ele classifica como circulao, no caso de transaes entre dois ou mais

    sujeitos, ou como administrao, no caso de disposies unilaterais). As atividades

    econmicas so compostas por diversos elementos que podem ser agrupados como

    ecolgicos, tecnolgicos ou sociais28.

    Porm, as atividades econmicas, para garantirem a subsistncia econmica dos

    homens, precisam estar integradas e estabilizadas no tempo e isto ocorre com a

    institucionalizao dessas atividades. A institucionalizao garante a unidade e a estabilidade

    da atividade econmica, permite a constituio de uma estrutura com uma funo determinada

    e canaliza o interesse sobre valores, motivaes e a atuao prtica29. Para analisar tal

    institucionalizao deve-se comear pelo que d unidade e estabilidade s atividades

    econmicas, que para Polanyi so as formas de integrao de suas partes. Existiriam trs

    formas fundamentais de integrao das atividades econmicas: a reciprocidade, a

    redistribuio e o intercmbio30.

    Sem entrar em maiores detalhes sobre tais formas de integrao, por que isto fugiria de

    nossos objetivos aqui, ao analisarmos como Polanyi v a institucionalizao dessas formas de

    integrao, percebemos bem a concepo de explicao do comportamento econmico dele.

    Existe uma preocupao exaltada em afirmar que a institucionalizao dessas formas de

    integrao no ocorre pela agregao de condutas individuais estas so, para Polanyi,

    insuficientes para explicar as estruturas institucionais. Os efeitos sociais de integrao

    propiciados por determinados comportamentos no dependem apenas da existncia de tais

    comportamentos, mas peremptoriamente da existncia de determinadas condies

    institucionais. Comportamentos desviantes enfrentaro um duplo problema: sua eficincia

    ser extremamente limitada, devido inexistncia de instituies adequadas para auxiliar sua

    28 Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit., p.293-294. 29 Ibidem, p.295. 30 Ibidem, p.296.

  • 23

    performance; e suscitaro uma forte reao coercitiva por agir fora dos canais sancionados

    pelo costume31.

    A institucionalizao das atividades econmicas pode se dar nos mais diversos tipos

    de instituies, e da que vem a idia de economia integrada, incrustada ou submersa32

    na sociedade. Uma distino importante passa a ser, desta maneira, a entre sociedades nas

    quais a atividade econmica se institucionaliza em instituies no-econmicas e aquelas em

    que se institucionalizam em instituies econmicas33. disto que Finley deriva sua idia de

    Sociedades sem Economia. Acreditamos que Polanyi cria uma confuso terminolgica neste

    ponto, que gera interpretaes equivocadas de sua proposta, como julgamos ser o caso de

    Finley. O sentido de econmico em instituies econmicas parece ser justamente aquele

    que o prprio Polanyi combateu, isto , identificam-se como instituies econmicas as

    instituies mercantis. Desta forma, para manter a prpria linha de argumentao de Polanyi,

    seria melhor falar em sociedades nas quais as atividades econmicas se institucionalizam em

    instituies mercantis e aquelas sociedades nas quais isto ocorre em instituies no-

    mercantis, do que utilizar instituies econmicas.

    A diferena entra a institucionalizao das atividades econmicas em instituies

    mercantis ou no cria, de fato, questes importantes. O mercado, como entendido por Polanyi,

    uma instituio integradora de imenso poder, pois unifica em um nico sistema a

    apropriao de uma gama quase ilimitada de bens e servios34. Nas sociedades sem mercado,

    este princpio homogeneizante do mercado no existe. As atividades econmicas se

    institucionalizam em diversas e distintas instituies. Com isso, cada um dos acontecimentos

    das atividades econmicas se funde com diversas lgicas das instituies onde esto

    integradas, impossibilitando a visualizao dos agentes de uma lgica unificada do econmico

    (no sentido substantivo). Ademais, como se integram em instituies diversas, as atividades

    econmicas de um mesmo processo econmico muitas vezes no so percebidas pelos agentes

    desta maneira, devido descentralizao de sua performance35. Essa impossibilidade de

    identificao do econmico como uma unidade, porm, no impede que os indivduos

    realizem suas atividades econmicas cotidianamente; pelo contrrio, uma hipottica

    identificao unificadora do econmico apenas causaria confuso na ao de um indivduo,

    31 Ibidem, p. 296-298. 32 Na verdade vrias formas no muito boas de traduzir o termo original de Polanyi, embedded 33 Polanyi, Aristteles descubre la economa, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y Mercado... op.cit., p.117 e Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit. p.295 34 Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit., p.309. 35 Idem, Aristteles descubre la economa, op.cit., p.118.

  • 24

    pois as atividades econmicas da realidade social na qual ele est inserido esto fragmentadas

    em diversas instituies diferentes, que se regem por lgicas diversas36.

    Desta forma, ao falar em sociedades sem Economia, Finley est interpretando de

    maneira equivocada a proposta polanyiana. Todas as sociedades possuem economia muitas

    no possuem mercado, mas, se de fato isto cria singularidades importantes para a anlise do

    comportamento econmico nestas sociedades, no impede de maneira alguma o estudo de tal

    comportamento, como pretende Finley.

    1.2. Tradio, Costume e Empiria

    Ao adotar estas premissas equivocadas, identificadas acima, Finley forado a

    assumir uma posio ainda mais criticvel ao tentar explicar o comportamento da elite

    proprietria romana em relao produo agrcola. Segundo ele, Tradio, hbito e regras

    empricas so os determinantes deste comportamento. Estes so conceitos extremamente

    problemticos que Finley utiliza sem fazer qualquer definio mnima, como se fossem

    pontos pacficos. Mas o que ser que Finley entende por cada um deles? Como ele no nos d

    definies claras e diretas destes conceitos, precisamos investigar sua argumentao mais

    detalhadamente para descobrir isso.

    Comecemos pelo ltimo dos trs conceitos: regras empricas. Para entend-lo,

    preciso lembrar que Finley afirma no primeiro captulo de A Economia Antiga que a

    inexistncia de um desenvolvimento verdadeiramente cientfico do pensamento econmico na

    Antiguidade indcio da inexistncia de uma economia autnoma nesta sociedade. Citando

    Schumpeter, Finley contrape o verdadeiro pensamento econmico surgido com o capitalismo

    aos conhecimentos pr-cientficos baseados meramente no senso comum, existentes no

    mundo antigo37. Ou seja, Finley iguala racionalidade econmica e teorias econmicas

    modernas, contrapondo a isto a reflexo emprica cotidiana a que se limitariam os

    proprietrios de terras da Antiguidade. Novamente Finley ignora aspectos importantes da

    sociologia weberiana. Alm da tipologia que contrape racionalidade formal e racionalidade

    substantiva, que apontamos acima, Weber contrape, em outra tipologia, mais dois tipos de

    racionalidade: a racionalidade prtica e a racionalidade teortica. Como podemos inferir de

    suas denominaes, a racionalidade prtica a avaliao cotidiana das prprias aes pelos

    36 Ibidem, p.117 e 119. 37 Finley, A Economia Antiga, op.cit. p.22-23 e Idem, Technical innovation and economic progress in the ancient world. Economic History Review, vol.18, 1965, p.40.

  • 25

    agentes para que seus objetivos sejam alcanados, enquanto a racionalidade teortica a

    construo de concepes abstratas sobre a realidade (e no a ao na realidade propriamente

    dita)38. Esta distino weberiana impede que se cometa a confuso em que Finley incorre: a

    reflexo emprica pode ser to racional quanto o pensamento cientfico; so tipos ideais

    diferentes de racionalidade e precisam ser analisadas respeitando suas especificidades. Desta

    forma, afirmar que os proprietrios romanos agiam por regras empricas, e no baseados por

    uma reflexo cientfica, no impossibilita a existncia de uma racionalidade que fundamenta

    as decises desses proprietrios. certo que Cato, Varro e outros autores que aconselhavam

    como os grandes proprietrios de terras deveriam gerir suas propriedades no estavam

    estabelecendo uma cincia econmica como a que conhecemos no capitalismo. Porm, ao se

    basearem em suas experincias prticas ou na conversa com outros proprietrios de terras,

    estes autores poderiam estar refletindo acerca de um conhecimento prtico que exprimia a

    racionalidade construda pragmaticamente a partir das relaes de produo destas

    propriedades.

    Sobre os conceitos de hbito e de tradio, o problema mais complicado. Dentro do

    quadro terico weberiano existe a distino entre dois tipos de ao social economicamente

    orientada: a tradicional e a racional referente a fins39. Weber no detalha o que entende por

    ao econmica tradicional, mas podemos pens-la em paralelo com a ao social

    tradicional, descrita como reao surda a estmulos habituais que decorre na direo da

    atitude arraigada40. Aparentemente, Finley se baseia nesta distino weberiana entre tradio

    e racionalidade para contrapor o comportamento tradicionalista dos grandes proprietrios de

    terras da Antiguidade ao comportamento verdadeiramente racional da sociedade de

    mercado. O problema neste ponto que Weber e, conseqentemente, Finley encaram a ao

    tradicional como dada, pensando-a como algo que existe por si, espcie de reminiscncia

    inconsciente da histria, sem necessidade de explicao. Porm, o comportamento costumeiro

    precisa ser problematizado, pois se ele existisse por si s, sem necessidade de explicao para

    seu surgimento e, principalmente, reproduo, no existiria explicao para a transformao

    histrica. Isto , a existncia do comportamento costumeiro precisa ser explicada,

    especialmente as condies que estimulam sua reproduo, pois se um comportamento

    repetido por muitas pessoas por um longo espao de tempo a ponto de passar a ser visto como

    tradicional ou costumeiro, faz-se necessrio explicar justamente o que faz estas pessoas

    38 Kalberg, Max Webers types of rationality, op.cit., p.1152 39 Weber, Economia e Sociedade, op.cit., p. 41. 40 Ibidem, p.15.

  • 26

    repetirem tal comportamento tantas vezes e a inrcia nunca uma boa explicao para

    historiadores. Para conseguir este tipo de explicao sem ir muito longe do aporte terico

    reivindicado por Finley, podemos recorrer ao antroplogo noruegus Fredrik Barth, cujas

    formulaes tericas coincidem com o individualismo metodolgico de Weber, porm,

    apresentando uma explicao bem mais interessante para o comportamento tradicional ou

    costumeiro.

    Barth defende uma teoria da ao social focada na importncia da construo de

    estratgias racionais de interaes pelos agentes sociais que buscam a maximizao daquilo

    que eles consideram valioso a partir de seus sistemas de valores, posio prxima, de certa

    forma, do conceito weberiano de ao econmica racional referente a fins. Porm, depois de

    desenvolver toda a teoria baseado nesta percepo do conceito de racionalidade, Barth matiza

    sua teoria afirmando que ele no considera que os agentes, de maneira geral, constroem

    estratgias de ao a todo tempo. Na verdade, eles agem guiados pelas suas aes rotineiras

    em situaes similares anteriores, caso tais comportamentos no tenham sido obviamente

    desastrosos e tenham recebido a aprovao social. De um ponto de vista estratgico, porm,

    essa forma de ao faz sentido: reduz a necessidade de informaes para a tomada de deciso

    e aumenta a previsibilidade das conseqncias do comportamento. Isto , dentro de um

    sistema hiper-complexo de relao de fatores a serem levados em considerao para a tomada

    de deciso, como a vida em sociedade, o comportamento costumeiro uma forma eficiente

    de ao ao reduzir os riscos assumidos41.

    Por outro lado, porm, isto no significa que Barth esteja apenas chegando a uma

    percepo automatista do comportamento humano salientando certa racionalidade nesse

    procedimento. Ele afirma que apesar da fora do comportamento costumeiro, as pessoas esto

    a todo o tempo fazendo julgamentos na vida, analisando as performances sociais de si

    prprias e dos outros. Isto por que as pessoas: tm impresses inter-relacionais do que devem

    ser as prestaes nas relaes sociais; tm expectativas e traam planos nos termos destas, por

    mais inadequados que possam ser suas informaes sobre a realidade; se no so

    oportunistas, tambm no deixam de perceber quando as coisas vo bem ou mal para si

    prprias; e esto realisticamente preocupados em buscar o melhor para si e sabem que se no

    o fizerem, outros tiraram vantagem delas42.

    41 Fredrik Barth, Process and Form in Social Life. Selected essays of Fredrik Barth: Volume I. Adam Kuper (ed.). London, Boston, Prenley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p.98-99. 42 Ibidem, p.100.

  • 27

    Desta forma, Barth foca sua ateno no processo de institucionalizao dos

    comportamentos costumeiros. Segundo ele, o conceito de racionalidade maximizadora de

    valores no nos prov um modelo geral para anlise das decises individuais, mas ilumina o

    processo de institucionalizao dos comportamentos. Isto ocorre de duas maneiras: 1) Quando

    um agente adota um curso de ao prximo ao que seria a estratgia mais racional nos termos

    de seus valores, so grandes as chances de ele interpretar os resultados de tal comportamento

    como benficos e repetir tal curso de ao em outras oportunidades similares; 2) Quando este

    processo descrito acima ocorre com outra pessoa, e a situao e comportamento so

    replicveis por um agente que o observa, o comportamento daquele servir de exemplo para

    este, que conseqentemente ser estimulado a reproduzir o tal comportamento. Percebemos,

    desta forma, que para Barth o comportamento costumeiro resultado de um movimento

    convergente dos agentes na direo de estratgias timas. Explica-se, portanto, o

    comportamento costumeiro pela institucionalizao processual de uma estrutura racional de

    comportamento43.

    Sendo assim, mesmo o comportamento costumeiro pode ser explicado atravs do

    conceito de racionalidade e, portanto, a dicotomia entre hbito/tradio e racionalidade,

    reivindicada por Finley sem maiores definies ou argumentos, no se sustenta pacificamente.

    Desta maneira, acreditamos que tanto as premissas finleynianas que sustentam a identificao

    da inexistncia de racionalidade econmica quanto os conceitos utilizados pelo historiador

    estadunidense para explicar a relao da elite com suas propriedades fundirias se baseiam em

    posturas tericas equivocadas.

    2. A