jose e.m. knust - senhores de escravos, senhores da razão
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
JOS ERNESTO MOURA KNUST
SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO
Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)
Niteri 2011
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JOS ERNESTO MOURA KNUST
SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO
Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Orientadora: Prof. Dra. Snia Regina Rebel de Arajo
Niteri 2011
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Knust, Jos E.M.
Senhores de Escravos, Senhores da Razo. Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II-I a.C.).
327 f.
Orientadora: Snia Regina Rebel de Arajo.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011.
Bibliografia: f.310-327.
1. Roma Histria Antiga 2. Escravido Roma. 3. Economia Roma. I. Arajo, Snia Regina Rebel. II Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
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JOS ERNESTO MOURA KNUST
SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO
Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Aprovado em abril de 2011.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Profa. Dra. Snia Regina Rebel de Arajo - UFF (Orientadora)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso UFF
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Augusto Machado UNIFESP
Niteri
2011
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Para meu pai.
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Agradecimentos
um grande clich afirmar em pginas de agradecimentos de trabalhos como este que
seu resultado no fruto de um esforo individual. Isso no torna menos verdadeiro o fato de
que, apesar de apenas aquele que assina o texto poder ser responsabilizado pelos seus erros
afinal, ele quem tem o poder de incluir ou excluir qualquer afirmao uma pesquisa nunca
uma atividade intelectual solitria. Fora o fato de que no reinventamos a roda a cada vez
que nos debruamos sobre uma problemtica de pesquisa estamos sempre vendo o mundo
sobre o ombro de gigantes, como diria Isaac Newton , cada passo dado em uma pesquisa
sempre fruto das mais diversas interaes com as mais diferentes pessoas a quem cabe
agradecer, neste momento. Tendo a certeza de seu insucesso, estes agradecimentos tentaro
dar conta de mencionar pelo menos o maior nmero possvel de pessoas sem as quais este
trabalho seria certamente mais pobre, seno inexistente.
A professora Snia Regina Rebel de Arajo, minha orientadora, dedicou-me no s
uma orientao acadmica atenciosa e dedicada, como me agraciou com uma amizade sincera
e generosa. Sua orientao foi sempre capaz de me indicar os rumos necessrios para o
desenvolvimento da pesquisa e de me salvaguardar de possveis equvocos ao trilhar tais
caminhos. Ademais, sem me podar os anseios de grandeza, Soninha foi capaz de me salvar
muitas vezes das armadilhas da minha prpria megalomania acadmica, me fazendo voltar a
por os ps no cho sempre que necessrio mesmo que algumas vezes eu tenha sido um tanto
cabea-dura.
O Grupo de Trabalho sobre Sociedades Pr-Capitalistas do Ncleo de Pesquisas e
Estudos em Marx e Marxismo (o NIEP-PrK), da Universidade Federal Fluminense, deu um
significado ainda mais profundo a idia de que esta dissertao fruto de um trabalho
coletivo. Os debates semanais dedicados a desvendar a anatomia do macaco estimularam a
formulao da maioria das grandes questes que tentei responder ao longo deste trabalho. E as
respostas presentes nesta dissertao tambm so frutos das conversas e reflexes coletivas,
nas reunies semanais ou nas trocas de e-mail dirias, que se tronaram um grande estmulo
para o aprofundamento de minhas reflexes, nesses dois anos de existncia do grupo.
Alm de estimulante academicamente, o grupo se tornou uma segunda famlia (mais
clichs!) na qual o almoo de domingo foi substitudo pelo lanchinho da segunda-feira de
manh. Os amigos Arthur Henriques, Daniel Tomazine, Fbio Afonso Frizzo, Gabriel Melo,
Mariana Bedran, Mrio Jorge da Motta Bastos, Paulo Henrique Pach e Renato Rodrigues
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Silva sintam-se abraados por este grato colega que reconhece que sem vocs este trabalho
no teria a mesma relevncia que pretende ter. O nome do autor na capa desta dissertao s
no Macacada do Niep-PrK por que vocs no podem ser culpados pelas bobagens que
por ventura eu possa ter escrito neste trabalho.
Ao professor Mrio Jorge, assim como ao seu contra-xar Jorge Mrio Davidson,
devo, tambm, os importantes comentrios e conselhos da banca de qualificao, que me
ajudaram a corrigir certos rumos da pesquisa e a melhorar os dois primeiros captulos,
apresentados em tal oportunidade. Alm desses dois professores, tive a sorte de poder contar
com comentrios, conselhos e sugestes de diversos outros professores sobre aspectos da
minha pesquisa. Em diferentes oportunidades, atravs dos mais diversos meios (como eventos
acadmicos, trocas de e-mails e at comentrios em blogs), pude travar conversas com
professores como Andr Chevitarese, Carlos Astarita, Fbio Faversani, Juliana Marques e
Norberto Guarinello, que foram muito importantes para a realizao da pesquisa. O professor
Fbio Duarte Joly muito me ajudou no apenas com seus comentrios e sugestes, mas
tambm incentivando e auxiliando minha pesquisa com o envio generoso de muitos materiais
importantes ainda no momento em que esta pesquisa dava seus primeiros passos. Por fim, aos
professores Carlos Augusto Machado e Ciro Flamarion Cardoso agradeo pelo aceite em
participar da banca examinadora desta dissertao, alm dos comentrios e sugestes minha
pesquisa feitos pelos dois em diferentes oportunidades.
Questes importantes para a pesquisa tambm surgiram ao longo das disciplinas que
cursei no primeiro ano do Mestrado, com os professores Carlos Gabriel Guimares, Joo Lus
Fragoso e Vnia Leite Fres, alm da matria que cursei com minha prpria orientadora, a
professora Snia Rebel. Aos professores Carlos Gabriel e Joo Fragoso devo muitas das
reflexes sobre problemas da Histria Econmica que tentei tratar nesta dissertao.
professora Vnia, por sua vez, devo reflexes tericas e metodolgicas fundamentais para o
desenvolvimento da pesquisa.
Gostaria de agradecer no apenas aos professores dessas disciplinas, mas em especial
aos colegas de curso que, provavelmente sem nem desconfiar, me ajudaram a desenvolver
diversas questes importantssimas para minha pesquisa enquanto comentavam textos,
expunham questionamentos ou teciam consideraes sobre os mais diversos assuntos. Em
todas as matrias que cursei encontrei colegas dedicados e um ambiente de inquietao e
curiosidade intelectual que foram fundamentais no desenvolvimento de minha pesquisa.
As reflexes que desenvolvi neste trabalho, contudo, no nasceram do dia para a noite,
assim que entrei na ps-graduao. Desta forma, importantssimo no esquecer colegas da
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minha turma de graduao em Histria (tambm cursado na UFF), que nas mais diversas
situaes, em conversas com os mais diferentes graus de seriedade (e inebriao), tambm
ajudarem (e muito!) este que vos escreve a trilhar seus primeiros passos no ofcio do
historiador. Expondo-me ao risco de esquecer nomes importantes, gostaria de agradecer a
Adolpho, Bruno, Carlos, Daniele, Michel, Francisco, Gabriel Jos, Priscila, Nathlia,
Samantha.
Dentre estes colegas de graduao, gostaria de agradecer em especial a Thiago Krause,
exemplo de historiador e de apaixonado pela pesquisa, que certamente exemplo no s pra
mim, e a Vincius Ayres, meu companheiro de Histria Econmica. As constantes conversas
com ambos, atravs dos diferentes meios que a tecnologia permite atualmente, sempre foram
importantes para minha reflexo historiogrfica.
Devo um agradecimento sem tamanho minha namorada, Aline da Cruz de Moura,
que com uma enorme boa vontade aceitou o inglrio cargo de revisora da minha dissertao.
Para alm dos agradecimentos acadmicos, obviamente, no posso deixar de agradecer a
companhia e o carinho que ela me dedicou nestes quase dois anos que estamos juntos. O
carter coletivo deste trabalho no se resume apenas s contribuies diretas dada ao trabalho
pelo colegas historiadores, mas tambm a estas pessoas que tornam nossa vida mais feliz.
Nesta categoria de agradecimentos no posso esquecer meus familiares. Minha irm,
Carolina, e meu cunhado, Ricardo, me hospedaram incontveis vezes em sua casa sempre em
que eu, morador de Nova Friburgo, precisei ir ao Rio ou mesmo a Niteri (o que por razes
bvias no foram poucas vezes nestes dois ltimos anos) e este no o nico motivo pelo
qual devo agradecer aos dois, obviamente. Minha me, Marilene, e meu pai, Gustavo, me
deram todo o apoio, mesmo tendo o caula escolhido carreira to inglria. toda minha
famlia, meus tios, tias, primos e primas, agradeo por toda a convivncia familiar to
saudvel que temos e por todo o incentivo que sempre me deram.
Gostaria de agradecer tambm aos meus muitos amigos no-historiadores, que
certamente sentiram minha ausncia naqueles chopinhos de final de semana nesses ltimos
tempos (aos quais prometo voltar em breve). Devo agradecimentos especiais, entre estes, a
Rafael Herdy, que me iniciou nos mistrios do Excel, a Felipe Lopes, que me hospedou em
uma abusada visita a So Paulo que me possibilitou realizar pesquisas na biblioteca da USP, e
Rafael Pedretti, que me hospedou tantas vezes na sua casa em Niteri que acabou me
convidando para morar l de uma vez (e pelo menos ajudar a rachar o aluguel!), o que fiz por
divertidos quatro meses.
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Por fim, cabe o agradecimento ao CNPq, que me concedeu bolsa de estudos que
permitiu minha dedicao a esta pesquisa.
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Por trs dos grandes vestgios sensveis da paisagem, por trs
dos escritos mais inspidos e as instituies aparentemente mais
desligadas daqueles que as criaram, so os homens que a histria
quer capturar. Quem no conseguir isso ser apenas, no
mximo, um servial da erudio. J o bom historiador se parece
com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali
est sua caa.
Marc Bloch, Apologia da Histriai.
O primeiro ato histrico , pois, a produo dos meios para a
satisfao dessas necessidades, a produo da prpria vida
material, e este , sem dvida, um ato histrico, uma condio
fundamental de toda a histria, que ainda hoje, assim como h
milnios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,
simplesmente para manter os homens vivos.
Karl Marx e Friederich Engels, A Ideologia Alemii
O historiador das economias antigas est, portanto, obrigado a
restringir seu emprego [das categorias da cincia econmica
moderna] a um uso, por assim dizer, indireto ou reflexivo: no
para imediata e simplesmente descrever, mas para formular
conceitos capazes de descrever. Apenas assim a inevitvel
comparao entre o antigo e o moderno pode traduzir-se numa
pontual anlise das diferenas (o conhecimento histrico nada
mais do que conhecimento pelas diferenas), e no numa
assimilao confusa e estril.
Aldo Schiavone, Uma Histria Rompidaiii
i Marc Bloc, Apologia da Histria. Ou o ofcio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.54 ii Karl Marx e Friederich Engels, A Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p.33. iii Aldo Schiavone, Uma Histria Rompida. Roma Antiga e o Ocidente Moderno. So Paulo: Edusp, 2005, p.71, nota 30.
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Resumo
Esta pesquisa analisa a racionalidade das prescries sobre os trabalhadores escravos no De Agri Cultura de Cato e no De Re Rustica de Varro. A hiptese inicial de trabalho que Cato e Varro ilustram um processo de racionalizao das atividades produtivas e do controle social da mo-de-obra nos campos italianos dentro de um quadro ideolgico tipicamente escravista e patriarcal, fazendo frente s transformaes e contradies fundamentais do sistema econmico-social que se desenvolvia na Itlia tardo-republicana. Contudo, identificamos que o conceito neoclssico de racionalidade, amplamente utilizado como premissa dos estudos sobre a economia antiga, se baseia em premissas equivocadas e no serve como bom referencial de anlise. A partir disso, propomos uma nova abordagem ao problema, a partir do conceito de Racionalidade Ideolgica. Este conceito nos leva a ressaltar a importncia da anlise das relaes sociais que marcam a Villa, forma de apropriao do solo e de explorao do trabalho que estes autores tinham em mente ao compor seus tratados, para o estudo da Racionalidade. Para tal, em um primeiro momento, analisamos como os tipos de atividades produtivas realizadas nas Villae e as formas de circulao de seus produtos esto ligadas ao problema da extrao de excedentes dos produtores diretos. J em um segundo momento, identificamos as formas de relaes sociais de produo e a centralidade da escravido para a forma de insero social das Villae nas comunidades rurais. Tendo por referncias essas problemas das relaes sociais que marcam a Villa, analisamos as prescries de Cato e Varro sobre a mo-de-obra escrava, identificando a Racionalidade Ideolgica que fundamenta suas preocupaes bsicas.
Palavras-Chave: Roma Antiga, Economia Antiga, Escravido Antiga, Racionalidade,
Ideologia, Cato, Varro.
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Abstract
This study examines the rationality of the prescriptions on slave workers in Catos De Agri Cultura and Varros De Re Rustica. The initial hypothesis is that Cato and Varro illustrates a rationalization process of productive activities and manpowers social control in the Italian countryside within a typically slavery and patriarchal ideological framework in line with the changes and the fundamental contradictions of the socio-economic system that developed in late-Republican Italy. However, we identify that the neoclassical concept of rationality, widely used as a premise in studies on the ancient economy, relies on questionable assumptions and it isn`t a useful concept for this study. We propose a new approach to the problem, the concept of Ideological Rationality. This concept will lead us to emphasize the importance of the social relations that mark the Villa (form of land appropriation and work exploitation that these authors had in their mind when composing these treatises) for the study of the Rationality. At first, we analyze how the types of productive activities carried out in Villae and the forms of production circulation are linked with the problem of surplus extraction from direct producers. In a second step, we identify the forms of social relations of production and the centrality of slavery to the form of social insertion of Villae in rural communities. In face with these problems of social relations that mark the Villa, we analyze the prescription of Cato and Varro on slave labor, identifying the Ideological Rationality that underlies their basic concerns.
Key-Words: Ancient Rome, Ancient Economy, Ancient Slavery, Rationality,
Ideology, Cato, Varro.
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Sumrio
Nota sobre as fontes citadas .......................................................................................................... 6
Introduo ...................................................................................................................................... 7
Captulo 1: Racionalidade Econmica da Aristocracia Romana: conceitos e debates ......... 14
1. A Racionalidade Inexistente: o paradigma de Finley ............................................. 16
1.1. Weber, Polanyi e as premissas de Finley sobre o Econmico ............. 18
1.2. Tradio, Costume e Empiria .............................................................. 24
2. A Racionalidade Limitada: o paradigma neomodernista .................................... 27
2.1. A racionalidade dos investimentos conservadores .............................. 29
2.2. New Economic History e Economia Antiga......................................... 32
2.3. Neoinstitucionalismo e Economia Antiga ........................................... 36
2.4. Crtica ao conceito neoclssico de racionalidade................................. 42
3. A Racionalidade Singular: propostas alternativas .................................................. 46
3.1. A Gesto aquisitiva no-mercantil ................................................... 49
3.2. Racionalidade Imperial ........................................................................ 55
3.3. Racionalidade do Sistema Escravista................................................... 62
4. A Racionalidade Ideolgica: uma nova proposta ................................................ 67
4.1. Materialismo Histrico, Ideologia e Estrutura Social .......................... 68
4.2. Por um conceito materialista histrico de racionalidade ..................... 75
Captulo 2: Os tratados de Cato e Varro e o estudo da racionalidade ............................... 82
1. Os agrnomos latinos na historiografia .............................................................. 83
2. O De Agri Cultura de Cato ................................................................................... 88
2.1. O Autor ................................................................................................ 88
2.2. Composio do De Agri Cultura ......................................................... 89
2.3. Contexto poltico e cultural da composio ......................................... 91
2.4. De Agri Cultura como fonte para a Histria Econmica ..................... 97
3. O De Re Rustica de Varro ................................................................................... 100
3.1. O Autor .............................................................................................. 100
3.2. Composio da De Re Rustica ........................................................... 101
3.3. Contexto poltico e cultural da composio ....................................... 108
3.4. De Re Rustica como fonte para a Histria Econmica ...................... 110
4. Estruturalismo Gentico e Anlise de Contedo .................................................. 114
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Captulo 3: A Villa Rustica: conceito e primeiros elementos de anlise ............................... 117
1. Estrutura Fundiria e Demografia na Itlia Republicana ..................................... 117
1.1. Arqueologia rural e a heterogeneidade da estrutura fundiria ........... 119
1.2. O problema demogrfico ................................................................... 123
2. O Conceito de Villa .............................................................................................. 128
2.1. Crtica concepo de Villa tpica ou ideal ............................... 128
2.2. A Villa e a reorganizao do espao rural ......................................... 145
3. Atividades Econmicas nas Villae........................................................................ 149
3.1. Produo de vinho e leo de oliva ..................................................... 150
3.2. Outras produes agro-pastoris ......................................................... 154
3.3. Outras atividades econmicas ............................................................ 157
4. Circulao dos produtos das Villae....................................................................... 163
4.1. Caracterizao do Comrcio na Economia Antiga ............................ 163
4.2. Comercializao dos Produtos da Villae ........................................... 170
Captulo 4: As relaes sociais de produo nas Villae Escravistas...................................... 178
1. Os trabalhadores externos ................................................................................. 181
1.1 Trabalho Livre e a Vizinhana da Villa em Cato e Varro ........... 181
1.2. Trabalho livre? ................................................................................... 199
2. Os trabalhadores fixos ....................................................................................... 204
3. A Importncia da escravido nas Villae ............................................................... 218
3.1. Escravido e a alienao das relaes sociais .................................... 218
3.2. Escravos e o surgimento de Sociedades Escravistas ......................... 220
3.3. Escravido e as Relaes Agrrias na Itlia dos sculos II e I a.C. ... 225
3.4. Roma teve uma economia genuinamente escravista? ........................ 234
Captulo 5: Controle e Explorao dos Trabalhadores Escravos nas Villae ....................... 238
1. As relaes entre senhores e escravos: violncia e cooptao .......................... 239
1.1. Controle dos escravos: a historiografia e seus conflitos .................... 239
1.2. A ausncia da violncia em Cato e Varro ...................................... 246
2. A hierarquia na organizao do trabalho: os chefes escravos .............................. 251
2.1. Varro e as caractersticas necessrias aos chefes ............................. 253
2.2. O Vilicus ............................................................................................ 256
2.3. Outros chefes: magister pecoris, custos e uilica ................................ 268
3. Tratamento dos Escravos ...................................................................................... 275
3.1. Aplicao ao trabalho e fidelidade ao senhor .................................... 275
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3
3.2. Peclio: controle social e brecha camponesa ................................. 280
3.3. Peclio e Raes: o problema da alimentao dos escravos.............. 284
3.4. A Famlia Escrava: no ergstulo, uma flor? ...................................... 289
4. A Racionalidade Ideolgica do Escravismo ......................................................... 293
4.1. Tipos de atividades produtivas e formas de controle ......................... 294
4.2. A questo do Paternalismo ............................................................. 298
4.3. Patriarcalismo e Racionalidade .......................................................... 301
Concluso ................................................................................................................................... 306
Bibliografia ................................................................................................................................. 311
1. Edies das Fontes ................................................................................................ 311
2. Bibliografia Citada................................................................................................ 311
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ndice de Figuras
Figura 1 - Estimativas para a Populao Italiana entre 200 a.C. e 1900 d.C. ............. 125
Figura 2 - Nmero de referncias a produtos agro-pastoris no De Agri Cultura de
Cato ....................................................................................................................................... 137
Figura 3 - Nmero de referncias a produtos agro-pastoris no De Agri Cultura de
Cato distinguindo Consumo e Produo ............................................................................... 137
Figura 4 - Planimetria reconstruda de um edifcio rural prximo a Pompia (R-34) 160
Figura 5 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Agri Cultura:
denotao de estatuto ou de ofcio .......................................................................................... 179
Figura 6 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Re Rustica: denotao
de estatuto ou de ofcio ........................................................................................................... 180
Figura 7 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Agri Cultura: trabalho
fixo e trabalho temporrio ....................................................................................................... 180
Figura 8 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Re Rustica: trabalho
fixo e trabalho temporrio ....................................................................................................... 180
Figura 9 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores
residentes na Villa no De Agri Cultura ................................................................................... 205
Figura 10 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores
residentes na Villa no Livro I da De Re Rustica ..................................................................... 207
Figura 11 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores
residentes na Villa no Livro II da De Re Rustica.................................................................... 213
Figura 12 - Categorizao das Aes do Vilicus em Cato e Varro.......................... 262
ndice de Tabelas
Tabela 1 - Demanda anual de novos escravos se as estimativas de Brunt estiverem
corretas .................................................................................................................................... 126
Tabela 2 - Atitudes e sentimentos que devem ser estimulados entre os Escravos,
segundo Varro ....................................................................................................................... 279
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Nota sobre as fontes citadas
As edies do De Agri Cultura, de Marco Prcio Cato, e do De Re Rustica, de
Marcos Terncio Varro, utilizadas como referncia neste trabalho so as presentes na
publicao conjunta das obras na conceituada srie Leob Classical Library, da Harvard
University Press, organizada por William Davis Hooper e Harrison Boyd Ash1. Tal
publicao utiliza os textos latinos estabelecidos pelo fillogo alemo Goetz nas edies
Teubner da De Agri Cultura, de 1922, e da De Re Rustica, de 1929. A obra de Hooper e Ash
encontra-se em domnio pblico e est disponibilizada na internet nos seguintes endereos:
De Agri Cultura, de Cato:
http://penelope.uchicago.edu/thayer/e/roman/texts/cato/de_agricultura/home.html
De Re Rustica, de Varro:
http://penelope.uchicago.edu/thayer/e/roman/texts/varro/de_re_rustica/home.html
As citaes desses dois textos ao longo do nosso trabalho sempre traro o texto
original, para garantir a verificabilidade das interpretaes propostas, antecedido de uma
traduo para o portugus, com o intuito de facilitar a leitura do trabalho. As citaes
traduzidas do De Agri Cultura e do Livro I do De Re Rustica foram feitas a partir das suas
tradues para o portugus apresentadas por Matheus Trevizam na sua tese de Doutorado em
Lingstica pela Universidade Estadual de Campinas2. Apenas em um ou outro caso optamos
por manter o termo original mesmo na traduo, omitindo a traduo utilizada pro Trevizam.
As citaes dos livros II e III da De Re Rustica foram tradues feitas por ns a partir do texto
em latim estabelecido por Goetz e tendo por referncia a traduo para o ingls de William
Davis Hooper e Harrison Boyd Ash.
As demais fontes foram citadas a partir da bibliografia referente aos temas trabalhados
na pesquisa; deste modo, as referncias dessas citaes sero fornecidas em cada um dos
casos. Como no empreenderemos anlises detalhadas dessas outras fontes, omitiremos o
texto original em latim ou grego e citaremos apenas a traduo para o portugus.
1 Cato, On Agriculture & Varro, On Agriculture. William Davies Hooper e Harrison Boyd Ash (Eds.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1935. 2 Mateus Trevizam, Linguagem e Interpretao na Literatura Agrria Latina. Campinas: IEL-UNICAMP (Tese de Doutorado), 2006.
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Introduo
Este exerccio de reflexo crtica parte do reconhecimento de que no h um ponto acima ou ideal do qual podemos descortinar o processo scio-histrico ou produzir conhecimento. Ao contrrio, mergulhado nele que o conhecimento se enriquece das inmeras determinaes que compem o real, evidenciando suas asperezas e contradies, e no as ocultando. Baseia-se, portanto, na compreenso de que a vida social composta por bilhes de seres que, no agir, produzem sua existncia. Somos seres concretos, de carne e osso. Precisamos continuar concretos para produzirmos alimentos, casas, roupas, bens variados, festas, cultura, amizade, mltiplas linguagens. Somos seres annimos, que encontramos um mundo organizado de uma dada maneira, que nos parece natural. Nele, nos tornamos o que somos, ora satisfeitos, ora enraivecidos como nossa sorte. Sabemos que a vida social histrica e pode se modificar, mas nem sempre sabemos como fazer para que isso ocorra. Este livro pretende socializar um conhecimento que, adquirido em instituies pblicas, refinado e polido nas lutas sociais, procura partir do mundo real, de seres sociais concretos e manter-se nele. Se puder contribuir para que as lutas emancipatrias tornem-se mais aguadas, terei atingido meu objetivo.
Virgnia Fontes, O Brasil e o Capital-Imperialismo3
A epgrafe acima no pode servir para balizar este trabalho. Cito-a mais como uma
referncia ao que acredito ser o ideal de um bom trabalho de pesquisa do que para descrever o
que foi de fato realizado nesta dissertao de mestrado. E to pouco eu poderia reivindicar o
mesmo tipo de enquadramento de meu trabalho na atuao poltica que faz Virgnia Fontes,
de imensa relevncia na historiografia e nos movimentos sociais. Porm, ao ler tal passagem
da obra da professora Virgnia, no pude no pensar no que ela significaria para o meu
trabalho. Mais especificamente, me levantou a difcil questo de para que(m) serve meu
trabalho de pesquisa? Obviamente, minha pesquisa dialoga com debates tericos e
historiogrficos que julgo relevantes para o desenvolvimento dos estudos nas reas de
conhecimento em que busco me inserir, e talvez eu pudesse me dar por satisfeito com isso. No
entanto, acredito que este trabalho pode ir um pouco alm.
Sendo otimistas, podemos esperar que a crise econmica global que teve incio em
2009, mesmo ano em que comecei o mestrado no Programa de Ps-Graduao em Histria da
Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), talvez marque o fim de uma era em que
imperou nos debates econmicos a perspectiva da existncia de um pensamento nico. A
teoria econmica de base neoclssica, h bastante tempo hegemnica e alada ao status de
3 Virgnia Fontes, O Brasil e o Capital-Imperialismo. Rio de Janeiro: EPSJV e EdUFRJ, 2010, p.16.
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Ortodoxia, tornou-se um pensamento quase sacrossanto, desafiado apenas por hereges que, ou
no percebiam que defendiam idias anacrnicas, afinal o socialismo teria sido derrotado com
a queda do muro de Berlim e o capitalismo triufara, ou que no tinham capacidade intelectual
de perceber o bvio, a cientificidade inquestionvel e absoluta da teoria neoclssica e o erro
marxista ao insistir no conceito de valor-trabalho.
Obviamente, este estado de coisas no flutua na histria das idias sem qualquer
contato com o mundo social e econmico. A nova fase de expanso do capitalismo (ou como
melhor define Virgnia Fontes, capital-imperialismo4) iniciado em meados da dcada de 80,
juntamente com a queda dos regimes que reivindicavam o Marxismo como fundamentao
terica e poltica, criou o contexto scio-poltico favorvel disseminao do mito da
existncia do pensamento econmico nico, ou da economia ortodoxa, que no se podia
contradizer impunemente. Vivamos a poca do there is no alternative, da primeira-ministra
inglesa Margareth Tatcher. O crescimento do PIB em boa parte do mundo ocidental na dcada
de 90 e, especialmente, na primeira dcada do novo sculo acabou servindo de apoteose para
esse mito.
Como poder ser visto ao longo deste trabalho, uma das pretenses mais srias da
minha pesquisa foi combater o pilar epistemolgico da economia neoclssica, o tosco
conceito de racionalidade econmica que sustenta sua reflexo pois esta abordagem da
teoria econmica serve de base para importantes posies terico-metodolgicas da
historiografia econmica que pretendo superar neste trabalho. Sendo assim, esta dissertao
de mestrado pretende contribuir para o esforo de derrubada do mito do pensamento nico
neoliberal ou da economia ortodoxa, mostrando como o que se considerou nestas ltimas
dcadas como nica possibilidade de pensamento econmico cientificamente vlido se
sustenta sobre bases epistemolgicas extremamente frgeis.
A crtica ao pensamento econmico nico fundamental para demonstrarmos que, ao
contrrio da idia que se consolidou nas ltimas dcadas, as solues para os problemas da
humanidade no passam pelo maior desenvolvimento do capitalismo. Mais mercado! tem
sido um mantra repetido ad nauseam nas ltimas dcadas como resposta para todo e qualquer
problema identificado nas sociedades contemporneas e esse estado de coisas deriva
justamente da consolidao do tal pensamento nico neoliberal. Hegemonizou-se a idia de
que o desenvolvimento do Mercado seria a nica resposta cientfica e racional para a soluo
dos problemas da humanidade.
4 Ibidem, passim, especialmente p.145-155.
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9
Desta forma, o combate a essa hegemonia da Teoria Econmica Neoclssica uma
ponte para a defesa da superao do capitalismo (e no de seu desenvolvimento) como o
caminho para a soluo das encruzilhadas da sociedade contempornea. Mostrando as
singularidades do passado, podemos historicizar o presente. Historicizando o presente,
podemos desenvolver alternativas para sua superao. Acima de tudo, portanto, esta
dissertao pretende ajudar no esforo de demonstrar que o rei est nu, ou de que o mito tem
ps de barro.
De qualquer forma, os problemas que incitam um trabalho de pesquisa possuem uma
trajetria intelectual de construo, e sua explicitao muitas vezes ajuda bastante a
identificao dos mesmos por parte do leitor. Para tanto, posso dizer que em meados do ano
de 2007, ainda no curso de graduao em Histria na UFF, comecei uma pesquisa de
iniciao cientfica, sob orientao da professora Snia Regina Rebel de Arajo, cujo tema era
A escravido no De Re Rustica de Varro. Meu interesse pela escravido neste texto, um
tratado sobre as coisas do campo escrito no sculo I a.C. na Roma Antiga, surgira do que se
poderia chamar de histria comparada intuitiva: ao ler diversos estudos sobre a escravido
nas Amricas relacionando modificaes e reformulaes nas prticas e nas ideologias
escravistas a grandes episdios de sublevao de escravos5, me perguntei sobre os tipos de
mudanas que poderiam ter ocorrido nas prticas e ideologias escravistas romanas aps as
famosas guerras servis dos sculos II e I a.C. que ocorreram no sul da Itlia e na Siclia.
Certamente, esta seria uma problemtica de pesquisa complexa e profunda demais
para uma pesquisa de iniciao cientfica e, portanto, busquei um recorte temtico mais
delimitado. O texto sobre as coisas do campo de Varro me pareceu ideal para um estudo
inspirado neste questionamento, pois o autor foi contemporneo da ltima dessas guerras
servis a Revolta de Esprtaco (73 a.C.-70 a.C.). Desta maneira, desenvolvi uma pesquisa
sobre a forma como Varro preconizava a administrao da mo-de-obra escrava, partindo da
hiptese de que o medo de novas revoltas causado pela violncia e magnitude das grandes
revoltas servis fez a classe proprietria romana rever suas prticas e suas ideologias
escravistas6.
5 Cf., por exemplo, Silvia Hunold Lara, Do singular ao plural: Palmares, capites-do-mato e o governo dos escravos in: Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes, Liberdade por um fio. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, especialmente p.83-88; Joo Jos Reis, Rebelio Escrava no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, especialmente p.509-515 e 525-536; e Keith Bradley, Slavery and Rebellion in the Roman World. Indiana University Press and B.T.Batsford, 1989, p.13. 6 Jos Ernesto Moura Knust, Escravido, Produo e Controle na De Re Rustica de Varro. Niteri: Departamento de Histria, Universidade Federal Fluminense (Monografia de concluso de curso), 2008. A possibilidade de relacionar alguns dos conselhos varronianos sobre o controle dos escravos com as guerras servis
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Como costuma ocorrer com todas as pesquisas, ao aprofundar minhas reflexes sobre
esta temtica me deparei com problemas mais fundamentais que eu no havia previsto
inicialmente. Ao tentar entender as razes dos conselhos de Varro sobre a relao do
proprietrio com seus escravos, emergiu um problema mais profundo a ser resolvido: a
abordagem de Varro sobre os trabalhadores rurais, em especial os escravos, permeada por
uma racionalizao da atividade produtiva e das relaes de controle social? A polmica
envolvendo esta questo considervel, j que durante dcadas a historiografia,
principalmente anglo-sax, foi dominada por uma caracterizao minimalista e
primitivista da Economia Antiga, negando a possibilidade de qualquer tipo de crescimento
econmico e do desenvolvimento de qualquer espcie de pensamento econmico na
Antiguidade. Moses Finley, o autor fundamental desta percepo da Economia Antiga, por
exemplo, afirmava que os autores de tratados sobre a agricultura da Antiguidade nunca iriam
alm de observaes rudimentares baseadas no senso comum em seus textos7.
Como durante a pesquisa de iniciao cientfica no era possvel desenvolver uma
questo desta profundidade, acabei deixando-a de lado. Foi esse questionamento no-
resolvido que me fez retornar s consideraes de Varro sobre os escravos em seu tratado
sobre o campo.
Nesta retomada do problema, achei importante expandir um pouco o corpus
documental incluindo nesta nova pesquisa o tratado similar de Cato (anterior ao de Varro)
por ele ter sido produzido em um perodo (incio do sculo II a.C.) que alguns autores,
especialmente aqueles que no concordam com a abordagem minimalista de Finley sobre a
Economia Romana, apontam como de grande transformao da economia rural italiana.
Temos, ento, como fontes primrias, dois tratados que foram escritos em momentos que
teriam sido crticos para possveis processos de racionalizao da atividade produtiva e das
relaes de controle social, o objeto de pesquisa neste trabalho.
A centralidade dessas fontes nesta pesquisa no significou a ignorncia de todas as
outras fontes que podiam ser relevantes para pesquisa. Muitos estudiosos, a fim de evitar
generalizaes abusivas, buscam um recorte do objeto de pesquisa bastante especfico,
circunscrevendo fontes determinadas e remetendo-se exclusivamente ao universo conceitual
identificvel nessas fontes. Acredito que existem melhores formas de evitar generalizaes
abusivas do que este procedimento que acaba, muitas vezes, empobrecendo pesquisas muito
j fora aventado por Zvi Yavetz em Slaves and Slavery in Ancient Rome. New Brunswick and London: Transaction Publishers, 1988, p.127-128 7 Moses Finley, A Economia Antiga, Porto: Edies Afrontamento, 1981, p.22-23.
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bem realizadas. O problema da racionalidade identificvel nos tratados de Cato e Varro
serviu como eixo ao longo do trabalho, mas muitas vezes outras fontes foram citadas para o
estabelecimento do quadro explicativo.
O prprio dilogo historiogrfico estabelecido ao longo dos captulos me levou a
contemplar, ainda que de maneira indireta, outras fontes primrias. Porm, uma diferena
importante na apreciao dessas fontes poder ser percebida ao longo da leitura deste
trabalho. Enquanto os tratados de Cato e Varro foram exaustivamente analisados, e
interpretaes originais foram oferecidas, a abordagem a outras fontes sempre se deu a partir
de interpretaes j estabelecidas por outros pesquisadores e apenas debatidas ao longo do
trabalho.
A realizao destes dilogos com a historiografia foi importante neste trabalho devido
insero desta pesquisa na encruzilhada de dois debates historiogrficos clssicos sobre o
mundo antigo: as caracterizaes da Economia Antiga e da Escravido Antiga. Ademais,
minha proposta de abordagem insere estes debates historiogrficos em um debate fundamental
da teoria social: o problema da racionalidade do comportamento humano, o que acredito ter
possibilitado novas abordagens frutferas a reflexo sobre estes temas clssicos.
A hiptese inicial de trabalho a de que Cato e Varro ilustram um processo de
racionalizao das atividades produtivas e do controle social da mo-de-obra nos campos
italianos dentro de um quadro ideolgico tipicamente escravista, fazendo frente s
transformaes e contradies fundamentais do sistema econmico-social que se desenvolvia
na Itlia tardo-republicana. Porm, como pretendi demonstrar, possvel falar neste processo
de racionalizao somente a partir de uma reconstruo do conceito de racionalidade,
abandonando o aporte da teoria econmica neoclssica referncia bsica quando se fala em
racionalidade. Tal reconstruo do conceito de Racionalidade pode ser feito a partir de
referenciais marxistas de autores como Maurice Godelier, Wiltold Kula, Lucien Goldmann,
Edward Thompson e Ellen Meiksins Wood e da associao direta desse conceito com o
conceito de ideologia.
As definies do objeto de pesquisa, das fontes a serem utilizadas e do aporte terico
estabelecem dois problemas iniciais: o que exatamente entendemos por racionalidade? Que
tipo de abordagem das fontes empreender para poder realizar este estudo? Estes so os temas
dos dois primeiros captulos deste trabalho. No primeiro captulo so analisados diferentes
tipos de abordagens historiogrficas sobre o problema da racionalidade econmica dos antigos
romanos que derivam de diferentes conceitos de racionalidade utilizados. Meu intuito
identificar a importncia de cada uma destas abordagens para o desenvolvimento do debate,
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mas tambm seus problemas e limitaes, tudo isto a fim de delimitar o conceito de
racionalidade que ser utilizado no trabalho, definido no termo racionalidade ideolgica. A
detalhada reviso historiogrfica e terica empreendida neste captulo, porm, no visa apenas
definir pontualmente o que entendo por racionalidade nesta pesquisa. Pretendo neste captulo
identificar o que acredito ser o maior problema dos estudos sobre a racionalidade econmica
antiga: a falta de uma boa definio do conceito de racionalidade. Alm disso, o cotejamento
de uma ampla bibliografia pretende tambm identificar certos insights teis para reflexes nos
captulos seguintes.
No segundo captulo, a vez de enfrentar o problema metodolgico fundamental: qual
a forma de abordagem dos tratados permite o estudo da racionalidade a partir deles? Para
responder a tal questionamento, a forma tradicional de abordagem desses tratados na
historiografia e a crtica contempornea que se faz a essa abordagem so identificadas. A
partir desta crtica, so discutidas separadamente as singularidades de cada um dos tratados
para estabelecer suas formas de composio, suas caractersticas e seus objetivos poltico-
ideolgicos. Com isto, acredito ser possvel estabelecer como abordar estes tratados para
atingir os objetivos da pesquisa, determinando, por fim, os parmetros metodolgicos para a
pesquisa a partir do dilogo com o Estruturalismo Gentico e com a Anlise do Discurso.
Este trabalho terico-metodolgico nos dois primeiros captulos define a importncia,
para nosso trabalho, da correta identificao das estruturas e transformaes scio-
econmicas da histria agrria romana. O terceiro e o quarto captulos, que, como o leitor
poder perceber, formam uma unidade coerente, tratam deste problema. A questo
fundamental identificar o que era uma uilla e os diversos problemas analticos que tal
conceito traz consigo.
Tradicionalmente os tratados de Cato e Varro so identificados como descries de
um tipo especfico de propriedade, as uillae. Como mostramos no segundo captulo, esta idia
parte da premissa equivocada de que Cato e Varro pretendiam descrever a realidade dos
campos italianos. Porm, em parte, concordamos com a idia de que estes autores tinham em
mente, ao escrever seus tratados, este tipo especfico de propriedade mas no sem discordar
veementemente da forma rgida e equivocada em que as uillae tm sido definidas.
A partir disso, discutimos no incio do terceiro captulo como definir de uma maneira
mais interessante o fenmeno da uilla, enfatizando o problema da insero social desta forma
de propriedade no contexto rural. A partir das consideraes sobre este problema, levantam-se
trs questes importantssimas: as atividades econmicas realizadas nas uillae, as formas de
circulao de sua produo e as relaes sociais de produo deste tipo de propriedade. As
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duas primeiras questes so discutidas ainda no terceiro captulo, mostrando a centralidade do
problema da extrao de excedentes dos produtores diretos para entend-las.
A terceira questo, as formas de relaes sociais de produo da uilla, no por acaso
mereceu uma anlise mais cuidadosa, e por isso a ela dedicamos todo o quarto captulo. Neste
captulo identificamos as diferentes formas de trabalho que existiam no contexto da uilla, que
podem ser basicamente divididas entre o trabalho fixo, residente, realizado por escravos, e o
trabalho temporrio ou sazonal, realizados por camponeses livres. Ao longo deste captulo
buscamos entender qual a importncia do escravismo no contexto da uilla.
No quinto captulo, so analisados detalhadamente os preceitos defendidos por Cato e
Varro acerca da mo-de-obra. O captulo comea como uma discusso sobre a importncia
da violncia no controle dos escravos e uma explicao sobre a pouca ateno dada a este
elemento nas prescries dos nossos dois autores. Depois disso, identifico a importncia dada
s hierarquias entre os trabalhadores, destacando o importante papel desempenhado pela
figura do escravo encarregado da administrao da propriedade, o uilicus. O terceiro tema do
captulo so as formas de tratamento dos escravos, analisando os objetivos dos preceitos deste
tratamento e sua incorporao em uma racionalidade da organizao do trabalho agrcola e do
controle dos trabalhadores. Concluindo o quinto captulo, tentamos caracterizar a
Racionalidade Ideolgica que identificamos nestes preceitos.
Por fim, a concluso busca retomar as idias centrais do trabalho, identificando como
a organizao da unidade produtiva e, especialmente, a organizao do trabalho descritas nos
tratados de Cato e Varro podem ser analisadas dentro do quadro conceitual da
Racionalidade Ideolgica.
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Captulo 1: Racionalidade Econmica da Aristocracia
Romana: conceitos e debates
Os estudos sobre a Economia Antiga so dominados h mais de um sculo pelo debate
entre duas diferentes abordagens bsicas, iniciado ainda no sculo XIX, sob forte impacto do
grande desenvolvimento da economia industrial capitalista. Por um lado, economistas da
Escola Histrica Alem, como Karl Rodbertus e Karl Bcher, defendiam a idia de que o
Mediterrneo Antigo pertencia a uma fase inicial do desenvolvimento econmico-histrico
universal, que seria justamente a anttese do desenvolvimento industrial capitalista que lhes
era contemporneo. A economia antiga seria, desta forma, marcada pela economia
domstica, essencialmente agrcola e voltada para a auto-suficincia das unidades
produtivas, e por isso desprovida de relaes comerciais relevantes. Esta posio ficou
conhecida como primitivista.
Por sua vez, renomados classicistas da virada do sculo XIX para o sculo XX, como
Eduard Meyer e Michail Rostovtzeff, defendiam uma viso mais corrente no senso comum
sobre o mundo clssico Greco-romano: to imponente sociedade, vista como espcie de mito
fundador da civilizao ocidental, no poderia ser sustentada por uma economia to dbil
como a postulada pelo primitivismo; pelo contrrio, haveria de possuir uma economia similar
ao capitalismo moderno. Esta posio ficou conhecida como modernista. Entre o final do
sculo XIX e a dcada de 60 do sculo passado, a viso modernista dominou os estudos sobre
a economia antiga talvez por apresentar uma viso mais convergente com a viso geral que
se tinha sobre o mundo Greco-romano, ou talvez por lidar melhor com as fontes histricas,
abundantes no que pareciam exemplos de trocas comerciais e produes mercantilizadas8.
A partir da dcada de 60, porm, Moses Finley iniciou uma releitura da histria
econmica greco-romana crtica ao modernismo dos autores mencionados, que visava
recuperar muitos dos aspectos do primitivismo, especialmente de Karl Bcher. Influenciado
por Karl Polanyi e Max Weber, Finley afirmava que os antigos no possuam uma economia
autnoma da sociedade e que a cidade antiga era essencialmente um centro de consumo e no
de produo9. Como brilhantemente identifica o historiador dinamarqus Peter Fibiger Bang,
as teses de Finley surgiam no contexto do choque ps-colonial, um perodo no qual idias
8 Aldo Schiavone, Uma Histria Rompida. Roma Antiga e Ocidente Moderno. So Paulo: EdUSP, 2005, p.82. 9 Finley, A Economia Antiga, op.cit. passim.
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crticas ao Ocidente capitalista ganharam fora. Nesta poca, os povos no-europeus, que
durante o perodo ureo do imperialismo neocolonialista haviam sido repetidamente taxados
de primitivos, atrasados e brbaros, passaram a ser analisados de maneira mais positiva e os
estudos antropolgicos sobre esses povos ganharam maior influncia10. Caracterizar as
sociedades fundadoras do mundo ocidental, Grcia e Roma, a partir de insights produzidos
por esses estudos deixou de ser algo to assombroso ou reprovvel dentro do senso comum
historiogrfico e as teses de Finley tiveram amplo espao para circulao.
A obra de Finley era um ataque muito bem elaborado contra vises anacrnicas do
mundo romano e contra o uso indevido de mtodos quantitativos a partir das fontes primrias
Greco-romanas. A importncia da obra deste autor para os estudos scio-econmicos da
Antiguidade inegvel, visto que sua abordagem se tornou paradigmtica desde a dcada de
60 e fixou alguns problemas centrais em torno das quais se desenvolveram os estudos
posteriores sobre a economia antiga. Um desses problemas centrais que Finley estabeleceu foi
a questo da racionalidade econmica. A partir de sua obra, muito se discutiu o quanto os
investimentos de recursos pelos antigos, especialmente da elite proprietria de terras,
refletiam de fato uma racionalidade econmica. A compreenso dos critrios que definiam o
comportamento dessa elite na relao com suas propriedades fundirias passou a ser vista
como um elemento chave para a caracterizao qualitativa da economia romana, permitindo
distinguir as caractersticas especficas dessa economia com a de outros perodos da histria11.
Atualmente, existe uma preocupao muito grande no debate acerca da economia
antiga em estabelecer a magnitude e as possibilidades de crescimento do produto interno bruto
do imprio romano a partir de abordagens inspiradas no neoinstitucionalismo de Douglass
North12. Sem diminuir a importncia desse tipo de estudo, acreditamos que fundamental sua
complementao por perguntas mais primordiais sobre as relaes sociais de produo que
estruturam tal economia, sendo o estudo da racionalidade econmica da elite proprietria de
terra uma das chaves para este empreendimento. Caso contrrio, ficaremos eternamente refns
dos termos do debate oitocentista, que estabelecia que, ou a economia romana era
subdesenvolvida e, por isso, diferente da economia capitalista, ou era desenvolvida e, por isso,
10 Peter Fibiger Bang, Antiquity between "Primitivism" and "Modernism", Workpaper 53-97, Centre for Cultural Resarch, University of Aarhus, 1997, verso online disponvel em www.hum.au.dk/ckulturf/pages/publications/pfb/antiquity.htm (acessado em 24/11/2010) 11 Dennis Kehoe, Investment, Profit and Tenancy. The Jurists and Roman Agrarian Economy. Ann Arbor: Michigan University Press, 1997, p.1 12 Cf., por exemplo, Alan Bowman e Andrew Wilson (Eds.), Quantifying the Roman Economy. Methods and Problems. Oxford: Oxford University Press, 2009, em especial os artigos de Elio Lo Cascio, Urbanization as Proxy of Demographic and Economic Growth, Willem Jongman, Archaeology, Demography and Roman Economic Growth, e Walter Scheidel, New ways of studying incomes in the Roman Economy.
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similar a economia capitalista sem pensar diferenciaes qualitativas entre os diversos
sistemas econmicos histricos.
Analisando as obras que, nos ltimos quarenta anos, vm debatendo o problema da
racionalidade econmica dos grandes proprietrios de terras romanos, identificamos trs tipos
bsicos de abordagem: 1) aqueles que identificam racionalidade econmica com o
comportamento tipicamente capitalista e negam a existncia deste tipo de comportamento
entre os antigos isto , que advogam a inexistncia de racionalidade econmica na
Antiguidade; 2) aqueles que tambm identificam racionalidade econmica com o
comportamento capitalista, mas acreditam que este tipo de comportamento existe em algum
nvel na Antiguidade, mesmo que limitado por fatores fundamentais ou seja, que advogam a
existncia de uma racionalidade econmica limitada na Antiguidade; 3) e, por fim, aqueles
que advogam a existncia de mltiplas racionalidades econmicas na histria, distintas da
racionalidade capitalista, e que buscam identificar a racionalidade econmica especfica da
Antiguidade. Analisaremos alguns dos principais autores que defenderam cada uma destas
posturas ao longo destes quarenta anos de debates, buscando identificar as potencialidades e
os limites de suas abordagens.
Trs sero as pretenses dessa anlise: demonstrar os termos superficiais em que o
conceito de racionalidade vem sendo tratado nos estudos sobre economia antiga, identificando
isto como o principal problema dos termos em que o debate vem sendo colocado; identificar
aspectos inspiradores e insights nos modelos analisados (especialmente entre aqueles que
identificam singularidades na racionalidade antiga) a serem utilizados neste trabalho; e
construir uma nova proposta de abordagem para este conceito a ser utilizada em nossa
pesquisa, que permita contribuies mais ricas ao debate sobre a caracterizao da economia
antiga.
1. A Racionalidade Inexistente: o paradigma de Finley
Ao discutir a produo agrcola romana, no captulo Senhores e Camponeses de A
Economia Antiga, Moses Finley apresenta sua principal contribuio ao problema da
racionalidade econmica dos grandes proprietrios de terras da Antiguidade clssica. Ele
critica a tendncia modernista de imputar aos proprietrios de terras da Antiguidade
raciocnios produtivistas comuns realidade moderna, afirmando que os pesquisadores fazem
isso a revelia da analise emprica por no acreditarem que os gregos e romanos tivessem sido
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to incapazes de melhoramentos to simples13. Contrariando estes modernistas, Finley
afirma que a estabilidade e riqueza obtidas pela elite romana a partir de suas propriedades
rurais eram conseqncias da magnitude de suas posses e riquezas, e no de qualquer forma
qualitativamente diferente de encarar a produo agrcola14. A idia bsica a de que os
fatores que hoje chamamos econmicos, maximizao de rendimentos (...) ou clculos de
mercado15 no exerciam um papel importante no comportamento dos antigos papel
exercido, na verdade, por valores fundamentais16. Deste modo, a economia no possua um
carter autnomo, visto que, acima de tudo, a satisfao de necessidades no se dava pelo
mercado, o que, para Finley, torna impossvel uma anlise do comportamento econmico dos
antigos pois se no h maximizao de rendimentos atravs de clculos de mercado nem
sequer existiria um comportamento econmico a ser analisado17.
Para fundamentar empiricamente a idia de que no havia racionalidade econmica
entre os grandes proprietrios romanos, Finley identifica uma srie de comportamentos que
ele considera constituintes da racionalidade econmica e que no podem ser identificados
entre esses proprietrios. O primeiro deles a economia de escala, isto , a minimizao
dos investimentos necessrios para gerir a produo atravs da utilizao de fatores de
produo fundamentais em larga escala18. O segundo a inexistncia de incentivo ao aumento
da produtividade das tcnicas agrcolas. Finley afirma que a direo e controle do trabalho,
tema recorrente nas fontes antigas devido ao absentesmo dos proprietrios, insistia no
problema da honestidade dos trabalhadores e no na melhoria qualitativa da eficincia da
fora de trabalho atravs da utilizao de melhores tcnicas agrcolas que ajudassem a poupar
trabalho19. Por fim, Finley afirma que o investimento em terras nunca foi uma questo de
decises sistemticas e calculadas, daquilo a que Weber chamava racionalidade econmica,
pois no havia conceitos claros de distino entre custos de capital e de trabalho, ou
reinvestimento planejado de lucros, emprstimos com fins produtivos ou nada que se
assemelhe com uma contabilidade bem desenvolvida. Isto , economias de escala, incentivo
ao aumento da produtividade atravs de melhores tcnicas agrcolas e tcnicas contbeis bem
desenvolvidas caracterizam, para Finley, o comportamento econmico racional e nenhum
desses fatores est presente na Antiguidade.
13 Finley, A Economia Antiga, op.cit., p.149. 14 Ibidem, p.150. 15 Ibidem, p.55. 16 Ibidem, p.80. 17 Ibidem, p.26. 18 Ibidem, p.153-155. 19 Ibidem, p.156
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A abordagem de Finley em A Economia Antiga seguida de perto por Richard Saller e
Peter Garnsey nos captulos sobre economia em seu influente manual The Roman Empire:
Economy, Society and Culture. Saller e Garnsey afirmam que a Economia Romana deve ser
caracterizada como subdesenvolvida, pois a maior parte da populao vivia em um nvel
prximo ao da subsistncia20. Uma das chaves para a explicao deste nvel de
subdesenvolvimento, ao lado do baixo nvel tecnolgico, o comportamento da elite romana.
Dois aspectos deste comportamento so fundamentais: os proprietrios romanos eram
essencialmente consumidores, e no investidores; e as riquezas investidas no eram
direcionadas para atividades que buscassem o lucro na produo manufatureira em larga
escala. Isto , no existia uma classe de empreendedores capitalistas no mundo romano; as
riquezas eram desviadas para emprstimos (empregados no consumo poltico ou social
ostentatrio, e no em investimentos produtivos) e para a compra de terras. Estas eram vistas
como um investimento seguro que garantia uma renda estvel, mas atraam a elite,
especialmente, por garantir prestgio e poder poltico, sendo o caminho de entrada para a
aristocracia. Ou seja, o comportamento comum de investir riquezas em terras se devia mais a
fatores sociais e polticos do que econmicos. Isto ocorria devido predominncia de valores
aristocrticos, que subjugavam o empreendedorismo e a habilidade nos negcios, decorrncia
do fato de um sistema de valores que premiava a ostentao de riqueza no ser compatvel
justamente com o reinvestimento produtivo da riqueza21.
1.1. Weber, Polanyi e as premissas de Finley sobre o Econmico
Finley parte de duas premissas equivocadas: primeiro, que racionalidade econmica
significa busca por aumento da produtividade e diminuio de custos atravs de clculos
econmicos refinados; segundo, que o termo economia limita-se maximizao de
rendimentos a partir de clculos de mercado. Garnsey e Saller fazem as mesmas
identificaes equivocadas, buscando contrapor o empreendedorismo capitalista ao
comportamento aristocrtico da elite romana. necessrio lembrar que esses autores esto
fazendo uma crtica direta a abordagem modernista que imputava um ethos burgus,
capitalista e moderno aos grandes proprietrios de terras gregos e romanos, e dentro desta
crtica que sua nfase na inexistncia de comportamentos capitalistas na Antiguidade precisa
20 Peter Garnsey e Richard Saller, The Roman Empire: Economy, Society and Culture. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1987, p.43. 21 Ibidem, p.44-45 e p.74
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ser compreendida. Para contrapor-se a autores que defendiam a existncia do capitalismo na
Antiguidade, Finley, Garnsey e Saller identificavam o comportamento econmico racional
tipicamente capitalista como inexistente no mundo antigo. Porm, para o avano do debate
sobre o problema da racionalidade, fundamental lembrar, tambm, que mesmo dentro
daquilo a que Weber chamava racionalidade econmica, essas duas premissas de Finley,
seguidas por Garnsey e Saller, podem (e em nossa opinio, devem) ser criticadas. Mais do que
isso, as duas premissas que estruturam a tese de Finley sobre a inexistncia de comportamento
econmico entre os antigos (da qual tambm partem Saller e Garnsey) podem ser criticadas a
partir dos prprios ensinamentos dos dois autores que, aparentemente, mais o influenciaram:
Max Weber e Karl Polanyi.
No captulo sobre Sociologia Econmica de Economia e Sociedade, Weber distingue
dois tipos fundamentais de racionalidade econmica: a racionalidade formal e a racionalidade
substantiva. A racionalidade formal nada mais que o desenvolvimento de tcnicas de clculo
da forma mais precisa e eficiente de resolver problemas atravs de regras abstratas e
universais. J a racionalidade substantiva aquela que direciona a ao dentro de um
postulado de valores. Num sentido mais estritamente econmico, refere-se ao grau em que o
abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas (...) ocorre conforme determinados
postulados valorativos22. Os trs comportamentos que Finley identifica como constituintes
da racionalidade econmica e inexistentes entre os antigos pertencem essencialmente ao
campo do conceito weberiano de racionalidade formal. Ou seja, apesar de reivindicar a obra
do socilogo alemo, Finley ignora por completo a idia weberiana de racionalidade
substantiva, limitando a racionalidade econmica a racionalidade formal.
Este procedimento compromete o melhor desenvolvimento das idias de Finley. Sua
percepo de que o comportamento dos grandes proprietrios romanos difere em pontos
fundamentais do comportamento capitalista correta. Contudo, ao identificar racionalidade
exclusivamente com o comportamento tipicamente capitalista, Finley se limita a caracterizar a
racionalidade econmica dos antigos negativamente, chegando concluso final (inevitvel
ao partir dessa identificao equivocada) de que no existia qualquer racionalidade deste tipo
no mundo antigo. Mesmo atuando dentro dos referenciais weberianos, reivindicados por
Finley, no possvel afirmar que um comportamento deixa de ser racional por no estar
baseado em clculos economizantes, mas em valores, pois para Weber um comportamento
22 Max Weber, Economia e Sociedade, Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Vol.1. 3 Ed. Braslia: EdUnB, 1994, p.52.
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baseado em postulados valorativos pode ser to racional quanto aquele baseado no clculo
economizante, possuindo o que ele chama de racionalidade substantiva.
Essa limitao da racionalidade econmica racionalidade formal um modus
operandi bastante comum. Isto se explica pelo fato de o termo racionalizao ser amplamente
utilizado por Weber em seus estudos sobre a formao do mundo moderno, o que acabou
levando-o a ser associado completamente idia de expanso do Capitalismo e do Estado
Burocrtico Moderno - processos histricos ligados a profundos desenvolvimentos de
racionalidades formais. Mesmo Weber toma este caminho nos trabalhos sobre o mundo antigo
que escreveu entre 1891 e 1897, tentando identificar comportamentos racionais e irracionais a
partir das possibilidades de formalizao e acreditando que tal procedimento permitiria
estabelecer a existncia ou no do capitalismo na Antiguidade. John Love, em um importante
trabalho de anlise da obra weberiana e sua relao com o estudo da economia antiga,
identifica, precisamente, que no momento da carreira em que escreveu estes trabalhos sobre
Antiguidade, Weber equalizava racionalidade, racionalidade formal e comportamento
capitalista, s percebendo o equvoco desta formulao em suas obras sociolgicas do final da
carreira, notadamente em Economia e Sociedade23. Segundo o prprio Love, um ardoroso
weberiano, a abordagem a partir destas obras sociolgicas muito mais promissora para o
estudo da economia antiga do que a abordagem a partir das obras sobre o mundo antigo,
aparentemente o caminho tomado por Finley.
Desta forma, em Economia e Sociedade, racionalizao no necessariamente aquela
ocorrida no Ocidente moderno, mas a busca pelo controle da realidade por um princpio de
racionalizao, que busca banir percepes particularizadas e ordenar a percepo de mundo
em regularidades inteligveis, coerentes e consistentes com um sistema de valores24. Isto ,
no existem racionalidades absolutas e universais, possivelmente derivadas de um
racionalismo formal baseado no clculo, mas inmeras racionalidades substantivas que
dependem de sistemas de valores especficos. Mesmo a racionalizao capitalista do Ocidente
moderno, vista por Weber como aquela que melhor desenvolveu a racionalidade formal e por
Finley como o padro universal da racionalidade econmica, depende de seus valores
especficos, como o prprio socilogo alemo estudou em seu famoso tica Protestante e o
Esprito do Capitalismo.
23 John Love, Antiquity and Capitalism: Max Weber and the sociological foundations of Roman civilization. Londres e Nova York: Routledge, 1991, p.34. 24 Stephen Kalberg, Max Webers types of rationality: Cornerstones for the analysis of rationalization processes in history. The American Journal of Sociology, Maro de 1980, Vol.85, n5, p.1155-1157 e 1160.
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Os problemas desta viso limitada do conceito de racionalidade econmica esto
intimamente ligados ao problema da segunda premissa equivocada de Finley: identificar o
mercado como o elemento chave para a definio de economia. Finley cita um conceito um
pouco confuso de economia, pinado do economista Erich Roll, segundo o qual o problema
central da investigao econmica a explicao do processo de troca ou, mais
particularmente, a explicao da formao de preo25. Porm, ao equalizar troca formao
de preos e, principalmente, ao identificar comportamento econmico com maximizao de
rendimentos atravs de clculos de mercado, percebemos que Finley tributrio da concepo
marginalista que define economia como cincia que estuda a alocao racional de recursos
escassos entre fins alternativos, cunhada pela primeira vez pelo economista britnico Lionel
Robbins26.
Finley constri uma dicotomia entre economia de mercado, na qual esta definio
formalista funcionaria e na qual o comportamento econmico existe e deve ser estudado, e
sociedade sem economia autnoma, na qual no existe comportamento econmico. Esta
dicotomia condizente, em parte, com a construo terica de Polanyi, j que o antroplogo
hngaro tambm considera que o formalismo marginalista til anlise do mundo
capitalista. Porm, Finley subverte a percepo polanyiana ao considerar que, no existindo
este comportamento descrito pelo formalismo nas sociedades sem mercado, no h
comportamento econmico.
Polanyi diferencia Economias de Mercado e Economias sem Mercado, e no
Sociedades com Economia e Sociedade sem Economia, como acaba fazendo Finley ao
afirmar que no existe comportamento econmico sem mercado. Polanyi prope, em
substituio ao conceito formalista de Economia, justamente um conceito substantivo de
economia, que a define como a necessidade humana de um meio fsico de subsistncia e a
relao dos homens com a natureza e seus semelhantes para obter os meios materiais para a
satisfao de suas necessidades (materiais ou no)27. Toda sociedade humana precisa deste
meio fsico de subsistncia construdo a partir das relaes dos homens com a natureza e seus
semelhantes; logo, toda sociedade humana possui uma economia em sentido substantivo.
25 Finley, A Economia Antiga, op.cit., p.26. 26 Carlos guedo Nagel Paiva e Andr Moreira Cunha, Noes de Economia. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2008, p.22, n.10. 27 Karl Polanyi, A Iluso da Economia. Editora Joo S da Costa, 1997, p.23-24 e Idem, La Economia como actividad institucionalizada, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y Mercado en los Imperios Antiguos. Barcelona: Labor Universitria Monografias, 1976, p.289 e 291.
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Polanyi v a chave para a compreenso do comportamento econmico humano em
outra abordagem que no a anlise das escolhas individuais, como faz o marginalismo. E aqui
se percebe a clara diferena entre a fundamentao funcionalista de Polanyi e o
individualismo metodolgico da anlise econmica marginalista. O importante para Polanyi
entender a economia em seu sentido substantivo como atividade institucionalizada. Estudo da
atividade sugere identificao de movimentos, e para Polanyi existem dois tipos fundamentais
de movimentos econmicos: de situao (no qual ele inclui a produo e o transporte) e de
apropriao (que ele classifica como circulao, no caso de transaes entre dois ou mais
sujeitos, ou como administrao, no caso de disposies unilaterais). As atividades
econmicas so compostas por diversos elementos que podem ser agrupados como
ecolgicos, tecnolgicos ou sociais28.
Porm, as atividades econmicas, para garantirem a subsistncia econmica dos
homens, precisam estar integradas e estabilizadas no tempo e isto ocorre com a
institucionalizao dessas atividades. A institucionalizao garante a unidade e a estabilidade
da atividade econmica, permite a constituio de uma estrutura com uma funo determinada
e canaliza o interesse sobre valores, motivaes e a atuao prtica29. Para analisar tal
institucionalizao deve-se comear pelo que d unidade e estabilidade s atividades
econmicas, que para Polanyi so as formas de integrao de suas partes. Existiriam trs
formas fundamentais de integrao das atividades econmicas: a reciprocidade, a
redistribuio e o intercmbio30.
Sem entrar em maiores detalhes sobre tais formas de integrao, por que isto fugiria de
nossos objetivos aqui, ao analisarmos como Polanyi v a institucionalizao dessas formas de
integrao, percebemos bem a concepo de explicao do comportamento econmico dele.
Existe uma preocupao exaltada em afirmar que a institucionalizao dessas formas de
integrao no ocorre pela agregao de condutas individuais estas so, para Polanyi,
insuficientes para explicar as estruturas institucionais. Os efeitos sociais de integrao
propiciados por determinados comportamentos no dependem apenas da existncia de tais
comportamentos, mas peremptoriamente da existncia de determinadas condies
institucionais. Comportamentos desviantes enfrentaro um duplo problema: sua eficincia
ser extremamente limitada, devido inexistncia de instituies adequadas para auxiliar sua
28 Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit., p.293-294. 29 Ibidem, p.295. 30 Ibidem, p.296.
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performance; e suscitaro uma forte reao coercitiva por agir fora dos canais sancionados
pelo costume31.
A institucionalizao das atividades econmicas pode se dar nos mais diversos tipos
de instituies, e da que vem a idia de economia integrada, incrustada ou submersa32
na sociedade. Uma distino importante passa a ser, desta maneira, a entre sociedades nas
quais a atividade econmica se institucionaliza em instituies no-econmicas e aquelas em
que se institucionalizam em instituies econmicas33. disto que Finley deriva sua idia de
Sociedades sem Economia. Acreditamos que Polanyi cria uma confuso terminolgica neste
ponto, que gera interpretaes equivocadas de sua proposta, como julgamos ser o caso de
Finley. O sentido de econmico em instituies econmicas parece ser justamente aquele
que o prprio Polanyi combateu, isto , identificam-se como instituies econmicas as
instituies mercantis. Desta forma, para manter a prpria linha de argumentao de Polanyi,
seria melhor falar em sociedades nas quais as atividades econmicas se institucionalizam em
instituies mercantis e aquelas sociedades nas quais isto ocorre em instituies no-
mercantis, do que utilizar instituies econmicas.
A diferena entra a institucionalizao das atividades econmicas em instituies
mercantis ou no cria, de fato, questes importantes. O mercado, como entendido por Polanyi,
uma instituio integradora de imenso poder, pois unifica em um nico sistema a
apropriao de uma gama quase ilimitada de bens e servios34. Nas sociedades sem mercado,
este princpio homogeneizante do mercado no existe. As atividades econmicas se
institucionalizam em diversas e distintas instituies. Com isso, cada um dos acontecimentos
das atividades econmicas se funde com diversas lgicas das instituies onde esto
integradas, impossibilitando a visualizao dos agentes de uma lgica unificada do econmico
(no sentido substantivo). Ademais, como se integram em instituies diversas, as atividades
econmicas de um mesmo processo econmico muitas vezes no so percebidas pelos agentes
desta maneira, devido descentralizao de sua performance35. Essa impossibilidade de
identificao do econmico como uma unidade, porm, no impede que os indivduos
realizem suas atividades econmicas cotidianamente; pelo contrrio, uma hipottica
identificao unificadora do econmico apenas causaria confuso na ao de um indivduo,
31 Ibidem, p. 296-298. 32 Na verdade vrias formas no muito boas de traduzir o termo original de Polanyi, embedded 33 Polanyi, Aristteles descubre la economa, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y Mercado... op.cit., p.117 e Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit. p.295 34 Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit., p.309. 35 Idem, Aristteles descubre la economa, op.cit., p.118.
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pois as atividades econmicas da realidade social na qual ele est inserido esto fragmentadas
em diversas instituies diferentes, que se regem por lgicas diversas36.
Desta forma, ao falar em sociedades sem Economia, Finley est interpretando de
maneira equivocada a proposta polanyiana. Todas as sociedades possuem economia muitas
no possuem mercado, mas, se de fato isto cria singularidades importantes para a anlise do
comportamento econmico nestas sociedades, no impede de maneira alguma o estudo de tal
comportamento, como pretende Finley.
1.2. Tradio, Costume e Empiria
Ao adotar estas premissas equivocadas, identificadas acima, Finley forado a
assumir uma posio ainda mais criticvel ao tentar explicar o comportamento da elite
proprietria romana em relao produo agrcola. Segundo ele, Tradio, hbito e regras
empricas so os determinantes deste comportamento. Estes so conceitos extremamente
problemticos que Finley utiliza sem fazer qualquer definio mnima, como se fossem
pontos pacficos. Mas o que ser que Finley entende por cada um deles? Como ele no nos d
definies claras e diretas destes conceitos, precisamos investigar sua argumentao mais
detalhadamente para descobrir isso.
Comecemos pelo ltimo dos trs conceitos: regras empricas. Para entend-lo,
preciso lembrar que Finley afirma no primeiro captulo de A Economia Antiga que a
inexistncia de um desenvolvimento verdadeiramente cientfico do pensamento econmico na
Antiguidade indcio da inexistncia de uma economia autnoma nesta sociedade. Citando
Schumpeter, Finley contrape o verdadeiro pensamento econmico surgido com o capitalismo
aos conhecimentos pr-cientficos baseados meramente no senso comum, existentes no
mundo antigo37. Ou seja, Finley iguala racionalidade econmica e teorias econmicas
modernas, contrapondo a isto a reflexo emprica cotidiana a que se limitariam os
proprietrios de terras da Antiguidade. Novamente Finley ignora aspectos importantes da
sociologia weberiana. Alm da tipologia que contrape racionalidade formal e racionalidade
substantiva, que apontamos acima, Weber contrape, em outra tipologia, mais dois tipos de
racionalidade: a racionalidade prtica e a racionalidade teortica. Como podemos inferir de
suas denominaes, a racionalidade prtica a avaliao cotidiana das prprias aes pelos
36 Ibidem, p.117 e 119. 37 Finley, A Economia Antiga, op.cit. p.22-23 e Idem, Technical innovation and economic progress in the ancient world. Economic History Review, vol.18, 1965, p.40.
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agentes para que seus objetivos sejam alcanados, enquanto a racionalidade teortica a
construo de concepes abstratas sobre a realidade (e no a ao na realidade propriamente
dita)38. Esta distino weberiana impede que se cometa a confuso em que Finley incorre: a
reflexo emprica pode ser to racional quanto o pensamento cientfico; so tipos ideais
diferentes de racionalidade e precisam ser analisadas respeitando suas especificidades. Desta
forma, afirmar que os proprietrios romanos agiam por regras empricas, e no baseados por
uma reflexo cientfica, no impossibilita a existncia de uma racionalidade que fundamenta
as decises desses proprietrios. certo que Cato, Varro e outros autores que aconselhavam
como os grandes proprietrios de terras deveriam gerir suas propriedades no estavam
estabelecendo uma cincia econmica como a que conhecemos no capitalismo. Porm, ao se
basearem em suas experincias prticas ou na conversa com outros proprietrios de terras,
estes autores poderiam estar refletindo acerca de um conhecimento prtico que exprimia a
racionalidade construda pragmaticamente a partir das relaes de produo destas
propriedades.
Sobre os conceitos de hbito e de tradio, o problema mais complicado. Dentro do
quadro terico weberiano existe a distino entre dois tipos de ao social economicamente
orientada: a tradicional e a racional referente a fins39. Weber no detalha o que entende por
ao econmica tradicional, mas podemos pens-la em paralelo com a ao social
tradicional, descrita como reao surda a estmulos habituais que decorre na direo da
atitude arraigada40. Aparentemente, Finley se baseia nesta distino weberiana entre tradio
e racionalidade para contrapor o comportamento tradicionalista dos grandes proprietrios de
terras da Antiguidade ao comportamento verdadeiramente racional da sociedade de
mercado. O problema neste ponto que Weber e, conseqentemente, Finley encaram a ao
tradicional como dada, pensando-a como algo que existe por si, espcie de reminiscncia
inconsciente da histria, sem necessidade de explicao. Porm, o comportamento costumeiro
precisa ser problematizado, pois se ele existisse por si s, sem necessidade de explicao para
seu surgimento e, principalmente, reproduo, no existiria explicao para a transformao
histrica. Isto , a existncia do comportamento costumeiro precisa ser explicada,
especialmente as condies que estimulam sua reproduo, pois se um comportamento
repetido por muitas pessoas por um longo espao de tempo a ponto de passar a ser visto como
tradicional ou costumeiro, faz-se necessrio explicar justamente o que faz estas pessoas
38 Kalberg, Max Webers types of rationality, op.cit., p.1152 39 Weber, Economia e Sociedade, op.cit., p. 41. 40 Ibidem, p.15.
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repetirem tal comportamento tantas vezes e a inrcia nunca uma boa explicao para
historiadores. Para conseguir este tipo de explicao sem ir muito longe do aporte terico
reivindicado por Finley, podemos recorrer ao antroplogo noruegus Fredrik Barth, cujas
formulaes tericas coincidem com o individualismo metodolgico de Weber, porm,
apresentando uma explicao bem mais interessante para o comportamento tradicional ou
costumeiro.
Barth defende uma teoria da ao social focada na importncia da construo de
estratgias racionais de interaes pelos agentes sociais que buscam a maximizao daquilo
que eles consideram valioso a partir de seus sistemas de valores, posio prxima, de certa
forma, do conceito weberiano de ao econmica racional referente a fins. Porm, depois de
desenvolver toda a teoria baseado nesta percepo do conceito de racionalidade, Barth matiza
sua teoria afirmando que ele no considera que os agentes, de maneira geral, constroem
estratgias de ao a todo tempo. Na verdade, eles agem guiados pelas suas aes rotineiras
em situaes similares anteriores, caso tais comportamentos no tenham sido obviamente
desastrosos e tenham recebido a aprovao social. De um ponto de vista estratgico, porm,
essa forma de ao faz sentido: reduz a necessidade de informaes para a tomada de deciso
e aumenta a previsibilidade das conseqncias do comportamento. Isto , dentro de um
sistema hiper-complexo de relao de fatores a serem levados em considerao para a tomada
de deciso, como a vida em sociedade, o comportamento costumeiro uma forma eficiente
de ao ao reduzir os riscos assumidos41.
Por outro lado, porm, isto no significa que Barth esteja apenas chegando a uma
percepo automatista do comportamento humano salientando certa racionalidade nesse
procedimento. Ele afirma que apesar da fora do comportamento costumeiro, as pessoas esto
a todo o tempo fazendo julgamentos na vida, analisando as performances sociais de si
prprias e dos outros. Isto por que as pessoas: tm impresses inter-relacionais do que devem
ser as prestaes nas relaes sociais; tm expectativas e traam planos nos termos destas, por
mais inadequados que possam ser suas informaes sobre a realidade; se no so
oportunistas, tambm no deixam de perceber quando as coisas vo bem ou mal para si
prprias; e esto realisticamente preocupados em buscar o melhor para si e sabem que se no
o fizerem, outros tiraram vantagem delas42.
41 Fredrik Barth, Process and Form in Social Life. Selected essays of Fredrik Barth: Volume I. Adam Kuper (ed.). London, Boston, Prenley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p.98-99. 42 Ibidem, p.100.
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Desta forma, Barth foca sua ateno no processo de institucionalizao dos
comportamentos costumeiros. Segundo ele, o conceito de racionalidade maximizadora de
valores no nos prov um modelo geral para anlise das decises individuais, mas ilumina o
processo de institucionalizao dos comportamentos. Isto ocorre de duas maneiras: 1) Quando
um agente adota um curso de ao prximo ao que seria a estratgia mais racional nos termos
de seus valores, so grandes as chances de ele interpretar os resultados de tal comportamento
como benficos e repetir tal curso de ao em outras oportunidades similares; 2) Quando este
processo descrito acima ocorre com outra pessoa, e a situao e comportamento so
replicveis por um agente que o observa, o comportamento daquele servir de exemplo para
este, que conseqentemente ser estimulado a reproduzir o tal comportamento. Percebemos,
desta forma, que para Barth o comportamento costumeiro resultado de um movimento
convergente dos agentes na direo de estratgias timas. Explica-se, portanto, o
comportamento costumeiro pela institucionalizao processual de uma estrutura racional de
comportamento43.
Sendo assim, mesmo o comportamento costumeiro pode ser explicado atravs do
conceito de racionalidade e, portanto, a dicotomia entre hbito/tradio e racionalidade,
reivindicada por Finley sem maiores definies ou argumentos, no se sustenta pacificamente.
Desta maneira, acreditamos que tanto as premissas finleynianas que sustentam a identificao
da inexistncia de racionalidade econmica quanto os conceitos utilizados pelo historiador
estadunidense para explicar a relao da elite com suas propriedades fundirias se baseiam em
posturas tericas equivocadas.
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