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José Cardoso Pires De Profundis, Valsa Lenta precedido de “CARTA A UM AMIGO NOVO” 1

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José Cardoso Pires

De Profundis,Valsa Lenta

precedido de “CARTA A UM AMIGO NOVO”do Prof. João Lobo Antunes

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7ª edição

Publicações Dom Quixote

Lisboa

1997

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CARTA A UM AMIGO-NOVO

Meu caro Zé:

Acabo de receber o seu manuscrito. Li-o com o

alvoroço da primeira visita a um recém-nascido cuja

gestação se acompanhou de perto. Fiquei encantado.

Trazia ainda marcas do parto: os traços da sua belíssima

caligrafia letra de escritor que tanto me faz lembrar a de

outro seu colega de ofício, íntimo de ambos.

Ao Editor terá V. transmitido o desejo que eu lhe

acrescentasse um punhado de palavras à guisa de

Prefácio. Não mo pediu directamente, porque temia

talvez que eu não aceitasse a incumbência, porque,

embora tendo eu o “gosto pela escritas, estou bem

consciente de até onde deve ir o sapateiro, e Prefácio

para obra sua era demais para este ramendão.

É claro que não me falta experiência na análise e

censura de manuscritos científicos, menos para lhes

corrigir o estilo que tantas vezes nem lá está mas para

posar do rigor do método, espiolhar os resultados,

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conferir as citações, apurar da lógica das conclusões.

Embora haja, talvez sem V. querer, ciência no seu livro e

da mais fina -, qualquer correcção que neste sentido lhe

sugerisse, iria irremediavelmente estragar-lhe o paladar.

Poderia, é certo, elaborar a chamada “epicrise” do

caso clínico, enunciando os sintomas iniciais,

descrevendo o quadro estabelecido e a sua evolução,

extraindo doutras conclusões sobre o tipo de lesão e a

sua localização, rejubilando-me, com a discrição que é

própria das coisas científicas, pelo êxito do tratamento,

que confesso não sei qual foi, mas desconfio que o

resultado final se ficou a dever simplesmente ao triunfo

de um cérebro optimista.

Julgo-me capaz de tal tarefa, mas iria roubar a

oportunidade a outros de se debruçarem sobre o seu

“caso”, que dá o que se chama agora um excelente

“case-study”. É que está na moda este tipo de exercício,

como é também popular auscultarem-se manequins (de

borracha, entenda-se), simular situações patológicas

com actores treinados para o efeito, e outras invenções

pedagógicas que permitem ao aluno aprender sem tocar

em doentes de carne e osso, tudo isto, a meu ver, por

um entendimento vesgo de como se deve ensinar o oficio

hipocrático. É claro que assim é impossível os

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aprendizes conhecerem o estado único de “humanidade

ferida”, no fundo a essência de qualquer moléstia.

Confesso que foi mais difícil resistir à tentação de

dissertar sobre a relação entre a doença e a criação

artística que sempre me fascinou e que Sandblom tratou

com exemplar erudição no seu “Creativity and Disease”.

Mas tanto já foi dito sobre a influência de pragas antigas

e contemporâneas: Keats, as Bronte, Júlio Dinis, António

Nobre, Thamas Mann e tantos mais que sofreram ou

sucumbiram à tuberculose, e mais as cataratas de

Monet, e a sífilis de Nietzsche, etc., etc.

Mais interessante para mim é a experiência de

Chekhov, médico, doente e escritor que dizia ser a

Medicina a mulher legítima, e a literatura, a sua amante;

quando de uma delas se cansava, passava a noite com a

outra. Reconhecia, no entanto, que, se apenas pudesse

contar com a imaginação para construir a sua obra

literária, pouco teria para escrever.

Os seus colegas de ofício que se debruçaram sobre

a minha profissão, com possível excepção daqueles que

a cultivavam, raramente eram amáveis para nós.

Recordo-lhe o veneno de Voltaire que dizia que as três

pragas da humanidade eram a guerra, os podres e os

médicos, e Montuigne, Molière, Bernard Shaw não lhe

ficavam atrás. Noutro género, V. talvez conheça a

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gravura de Goya em que este se retrata, no leito, em

grande sofrimento, com um enorme jericó a tomar-lhe o

pulso. O meu amigo não sofre desta pecha e não

procurou ocultar a sua gratidão. Não me surpreendeu,

pelo que conheço de si, mas gostava de lhe contar que,

um dia, o mestre que me ensinou a filosofia da arte e

muito da sua técnica, me declarou, impaciente:

“gratitude is a killing sentiment”. Nunca o percebi...

Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária

sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é

que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou

perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se

não impossível, explicar aos outros como se dissolve a

memória, se suspende a fala, se embora a sensibilidade,

se contém o gesto. E, muitas vezes, a agressão, como

aquela que o assaltou, deixa cicatriz definitiva, que

impede o retorno ao mundo dos realmente vivos. É por

isso que o seu testemunho é singular, como é única a

linguagem que usa para o transmitir. Eu explico-me

melhor: o conhecimento científico das alterações das

funções nervosas superiores obtém-se em regra por

interrogatórios exaustivos, secos, monótonos, e

recorrendo a testes padronizados, ou seja, perguntas

idiotas cientificamente testadas e estatisticamente

aferidas dizem os autores.

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Propositadamente, V. nada quis saber sobre o

substrato neurológico do que lhe ocorrera, e disso dou

testemunho. Um jantar arranjado com essa intenção, em

restaurante apropriado da sua Lisboa, em que o dono

me imortalizou a seu lado em “instantâneo” já

devidamente pendurado, serviu tão-somente para eu

conhecer melhor o amigo a quem escrevo e lhe prestar

esclarecimentos elementares sobre a matéria em estudo.

V., que tem espírito geométrico, e não foi matemático

porque não quis, fugiu a dar ao tema qualquer

tratamento científico. Não conseguiu contudo evitar dar-

lhe tratamento literário, e o texto tem naturalmente o

estilo que lhe confere uma experiente e riquíssima

linguagem literária. E, como alguém disse, o que

caracteriza esta é a técnica que a impede de se tornar

numa “forma utilitária de comunicação”. Mas, em minha

opinião, a sua “história clínica” só poderia ser contada

ao seu modo, o que significa que os fenómenos que

descreve são mais facilmente apreensíveis através dos

seus instrumentos narrativos do que através de um

relatório minucioso de um qualquer neuropsicólogo.

Tentei no passado, sem êxito, devo confessar, que

pacientes meus, com patologias e equipamento algo

semelhante ao seu inteligência, sensibilidade, poder de

análise, talento discursivo, distanciamento introspectivo

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-, partilhassem com outros a sua história. Uma delas,

mulher de excepcional perspicácia, ia-me descrevendo a

sua recuperação motora e as estratégias que para o

efeito utilizava, com tal lucidez, que eu aposto que ela ia

recriando exactamente o programa genético que põe um

bebé, primeiro de gatas, depois de pé, e finalmente a

andar.

Uma outra, música brilhante, ia-me contando como

a sua relação com a música se alterara, desde a

enunciação do solfejo, ao dedilhar das notas, e como o

instrumento se tornara num realejo de impávida

brutalidade, sem modulação de sentimento ou emoção.

Depois de tão longa introdução, pensará V. que,

afinal, temos prefácio. Não, meu caro, isto foi apenas o

pretexto para o que se segue, foi o preâmbulo desta

“carta a um amigo-novo”. Novo num sentido duplo:

primeiro, porque renovado na saúde (e a sua história dá

força particular à ideia, que eu gostaria de tratar um dia

com outra profundidade, da Medicina como triunfo do

regresso); novo, para mim, ao aceitar-me no círculo, que

eu sei acanhado, daqueles que estima. Esta é uma das

benesses acessórias, mas não menos preciosas, da

profissão que escolhi.

Creio ter entendido ser sua vontade que eu

prestasse um teste muito especializado, embora

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naturalmente acessível ao leitor leigo, sobre o que lhe

sucedeu. Aqui vai portanto, começando pela

reconstituição dos factos.

Um sábado de manha, dois dias depois do início da

crise, e obedecendo à ordem de um amigo inquieto

(transmitida por outra amiga inquieta), entreguei-me à

missão, bem portuguesa, de me “inteirar do seu estado

de saúde”. É convicção arreigada na alma lusitana que a

interferência de médico graúdo apura o tratamento,

apressa a cura, empresta enfim ao paciente esta tudo de

maior fidalguia. Além disso, sempre é “informação

directa”, como se diz das peças mais caras, nos

catálogos dos leilões chiques. Encontrei assim o escritor

cuja obra eu admirava, e cuja lenda atingirá para mim

dimensão mitológica, numa enfermaria de precárias

condições, mas, como se veio a provar, único local

apropriado para recolher um artista do seu génio,

tombado por acidente deste tipo. Prefiro acidente ao

“ataque isquémico transitório” da literatura anglo-

saxónica, com que, com alguma boa vontade, se poderia

carimbar o seu caso, pois a sua aflição durou mais de um

dia. Quanto ao “ataque”, lembro-me sempre de um passo

de Jules Romains “A banda atacou o hino russo, que se

defendeu bem!”.

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Quando o visitei, levava eu as tais calças de xadrez

de palhaço “snob” conforme V. inadvertidamente

teledifundiu, pormenor agora omitido, mas registado na

altura por uma memória desgovernada que gravou

também, insolitamente, a imagem da pulseira bordada

da neurologista que de si cuidava. Da brancura da

paisagem que o envolvia iam nascendo fugazes fantasias

Aromáticas. É natural que tal sucedesse: Mondrian que

soube, melhor que ninguém, simplificar estas coisas,

dizia que são o traço e a cor e as relações entre eles que

põem em jogo o registo sensual e intelectual da

totalidade da vida interior.

O grande choque, para mim, foi o seu discurso. Não

havia dúvida, o José Cardoso Pires sofria de uma afasia

fluente grave, ou seja, não era capaz de gerar as

palavras e construir as frases que transmitissem as

imagens e os pensamentos que algures no seu cérebro

iam irrompendo. A sua fala era um desconsolo:

atabalhoada, incongruente, polvilhada de parafasias

palavras em que os fonemas estavam parcial ou

totalmente substituídos. Sem fala, escrita e leitura, a

Agência Lusa foi peremptório: morte cerebral,

diagnóstico escandalosamente errado do ponto de vista

médico, mas humanamente certeiro.

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Também eu executei os tais testes, e lhe fiz as tais

perguntas idiotas da praxe, para tentar perceber até

onde a doença amordaçara a voz que tantas liberdades

proclamara. Sei, agora, que uma nave espacial o tinha

entretanto transportado para outra galáxia metáfora que

eu prefiro à sua, mais anedótica, da ilha dos três

náufragos -, onde palavras como óculos, relógio, cama

não tinham préstimo ou sentido, e onde, para designar

todos os objectos conhecidos, e os mais que havia ainda

por inventar, se aplicava o neologismo

extraordinariamente eufónico que V. criara: “simoso”.

Saí, desanimado e inquieto, pensando onde raio iria

encontrar relojoeiro que o consertasse. Havia, no

entanto, uma réstia de esperança. A tomografia axial

computorizada (o “TAC” ou o “taco” como o povo lhe

chama) era normal. Esperança débil, porque é sabido

que no início, nestes acidentes, o tecido cerebral

mantém, com um resto de “coquetterie”, a sua imagem

intacta. Para averiguar da profundidade e da

reversibilidade do mal, é preciso, pois, recorrer a

técnicas de outra sofisticação que permitem fazer o

correcto levantamento dos estragos. Era claro, para

todos nós, que um minúsculo coágulo de sangue se

esgueirara a partir da sua paciente bomba cardíaca, ou

de artéria grossa, parcialmente enferrujada, e viajara

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até parar e entupir, ou, então, houvera birra da

canalização local. De qualquer modo, um grupo de

neurónios, dos de melhores pergaminhos, ficara

subitamente privado de oxigénio para respirar e de

açúcar para se alimentar. Quando tal sucede por um

período prolongado de tempo (e não é preciso muito), a

célula nervosa começa a sofrer, e a primeira coisa que

se altera é a sua membrana, dama de permeabilidade

aristocraticamente selectiva. Entram então sódio e

cálcio, e sai potássio, e produzem-se substâncias a que

os químicos chamam radicais livres, causadores dos

maiores malefícios, como qualquer de nós poderia

adivinhar, pois radicais não são para andar à solta. A

pouco e pouco esgota-se a energia, a célula desfalece e

morre.

Acontece, porém, que, quando esta privação de

oxigénio e nutrientes não é total, a célula entra numa

espécie de hibernação, no universo a que os

especialistas chamam de penumbra isquémica ou, o que

é ainda mais poético, transforma-se em bela

adormecida. As frentes da lata terapêutica buscam a

reconstituição da permeabilidade do vaso entupido, o

prolongamento quanto possível deste estado de

hibernação protectora, e a estabilização da membrana,

como que reforçando a polícia das fronteiras.

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Se nesta área o progresso conceptual dos últimos

anos é notável, as vitórias decisivas vão surgindo mais

lentamente. É claro que em séculos não muito remotos,

em situações de apoplexia, diagnóstico inevitável em

caso como o seu, se recorria logo à sangria. O pobre rei

Luís XIII sofreu num só ano 47, além de 212 purgas e

215 clisteres. É escusado dizer-lhe que morreu jovem.

É claro que lhe podia enunciar cientificamente os

possíveis mecanismos pelos quais se operou a sua

“restituição integram”. Não sei, nem para o caso

importa muito, quais eles foram. Eu tenho duas outras

explicações originais, uma talvez pouco científica, e a

outra digna de mais madura reflexão.

A primeira, é que V. simplesmente teve sorte, e não

há nada de mal nisso. O inimigo queixava-se de

Napoleão por ele ter Generais com sorte, ao que o

Imperador retorquia que não gostava de Generais sem

sorte, principio para mim fundamental na prática da

profissão.

A segunda, é que a área que temporariamente V.

deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia,

tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a

do comum dos mortais. E isto não é treta, porque se

sabe hoje que os donos do ouvido absoluto, que lhes

permite identificação imediata de qualquer som e

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Mozart tinha-o, e de forma admirável -, têm a área

auditiva do córtex cerebral indiscutivelmente

hipertrofiada.

Embora tenha prometido fugir à exegese

neurológica do seu texto, não posso deixar passar em

branco alguns pontos que obrigarão à reflexão dos

estudiosos e que justificam a minha tese de ser o seu

manuscrito contribuição importante para a matéria.

O primeiro toca o mistério que desde sempre tem

intrigado os afasiologistas e que se refere ao estado

mental dos afásicos, ou seja, o que pensa e como pensa,

aquele que não consegue de modo algum comunicar o

pensamento. Aliás, esta questão é tão inquietante como

a de tentar perceber o que sentem aqueles que se

encontram no chamado “estado vegetativo persistente”,

em cuja intimidade receamos penetrar, esquecendo

talvez que as flores também sofrem.

Penso que o puder de narrar toda a intensidade do

sofrimento ou o bálsamo do esquecimento

inconscientemente aplicado suavizaram a sua descrição

da angústia da perda de identidade, do seu isolamento,

sem nome, sem assinatura e sem memória. Este é um

dos pontos mais intrigantes do caso, porque nos nossos

esquemas anatómico-funcionais a memória não vive na

zona lesada no seu caso. Curiosamente, V. prende

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sempre a memória à imaginação, afinal ingredientes

indissociáveis e indispensáveis à sua criação literária.

Num mundo sem coordenadas de tempo ou de distancia,

“afásico” portanto, inundado da luz gelada, do “néon” de

um cale de província, V. Não temeu!

As lágrimas dos amigos deixam-no perplexo. É certo

que outro hemisfério, o não-dominante, lá ia

trabalhando, ocupam a vigiar a caldeira das emoções.

Lesões desse hemisfério o direito causam dano à

capacidade de organizar uma narrativa contar uma

história, escrever unia carta ou rir com uma anedota.

Disto V. escapou.

Também do ponto de vista semiológico, é fascinante

o uso surrealista da escova de dentes, que aliás V.

interpreta, talvez correctamente, como mais uma

partida de uma memória traquina

E que dizer da misteriosa escrita, quase cirílica que

inventou? Por mim, passo adiante, em respeito pela

beleza da sua interpretação, ignorante também do seu

sentido fenomenológico.

Toda a sua narrativa abala ainda mais os pilares em

que se erigiu a Neurologia tradicional, que hoje só se

mantém de pé por razões operacionais e operatórias. De

facto, o entendimento clássico é que uma lesão numa

área determinada causa a perda de uma função

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específica, ergo esta função tem ai sua sede. Haveria,

assim, zonas eloquentes, de que fujo como o Diabo da

Cruz, já que a sua invasão equivale a desastre, outras,

chamadas na nossa ignorância de não-eloquentes campo

aberto para as minhas batalhas com o Inimigo.

É evidente que este esquema é de confrangedora

simplicidade mas serviu, por exemplo, para que um

psiquiatra patusco do século passado fosse extirpar a

sua área, para fazer calar a alucinações auditivas dos

esquizofrénicos.

Sabe-se, hoje, que não existem centros

individualizados, mas redes neuronais sincronizadas,

ligando múltiplas áreas funcionais. Ao mesmo tempo,

vamos tentando perceber a arquitectura neural de

funções tão complexas como a consciência a atenção, a

vontade, a própria memória, para não falar já de outras,

parece que únicas da raça, como o juízo moral ou o

génio artístico.

Um dia, V. regressa, escritor que veio do branco, e

imediatamente se põe a observar e a absorver, os dois

pássaros arruinados que o destino colocou ao seu lado, e

enreda-os na sua trama criativa, instrumentos inocentes

de uma terapia ocupacional que o redime. Aí, até eu

participo, feito Godot ou General do seu labirinto. E a

musica de cena era canção de esperança, “Forever”, não

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o “Nevermore” do corvo agoirento. E foi retomando a

leitura e a escrita, em pequenos passas, em golinhos

sorvidos com delicadeza.

Estava finalmente pronto para a partida,

recuperadas as coordenadas do espaço, do tempo e de

todos os outros sentidos que são afinal mais que cinco. E

Lisboa, que já dera por sua falta, abre-lhe os braços.

Mas a história não acaba aqui. Como V. conta,

algures entre a terra e o céu, alguém estaria então a

reconstruir o cérebro do seu personagem, quem sabe se

ao som do “Quarteto das Dissonâncias”, o K 465 de

Mozart. Que escolha inspirada esta!

Talvez não saiba o que sobre esta obra admirável

escreveu Maynard Solomon, em biografia recente do

compositor: “aqui (no primeiro andamento, o Adágio),

Mozart simula o próprio processo da criação,

mostrando-nos os elementos do caos e a sua conversão

em forma (...) a transição da escuridão para a luz, do

mundo subterrâneo para a superfície (...) e agora, no

Alegro, o tema emerge, elevando-se, já liberto,

transcendido o medo da aniquilação”. Como vê, a

harmonia é total.

A carta já vai longa de mais, e disso me penitencio.

Creia no entanto que muito mais teria para dizer,

sobretudo para lhe demonstrar que este seu “brainchild”

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é um testemunho impressionante de como o génio

criativo floresce no sofrimento.

Uma última palavra. Para Keats, o desafio da poesia

do futuro era “thinking into the human heant”. Os

cientistas deste e de próximo século sabem que a tarefa

é “thinking into lhe human brain”, pois continuamos

todos sem saber porque é que o “binómio de Newton é

tão belo como a Vénus de Milo”. Mas como dizia o

personagem do nosso Eça, certas coisas não se sabem e

é preferível não se saberem. Não será melhor assim?

Ab imo corde

João Lobo Antunes

Páscoa 1997

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“Quando perdeste o sonho e a certeza tornaste-te

desordem e fizeste-te nuvem”

Simónides de Kéos, Epitáfio nas Termónilas

Janeiro de 1995, quinta-feira.

Em roupão e de cigarro apagado nos dedos, sentei-

me à mesa do pequeno-almoço onde já estava a minha

mulher com a Sylvie e o António que tinham chegado na

véspera a Portugal. Acho que dei os bons-dias e que,

embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa

manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas

a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o

olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da

varanda. Parei na chávena de chá e fiquei. Sinto-me mal,

nunca me senti assim, murmurei numa fria

tranquilidade.

Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus

olhos.

De repente viro-me para a minha mulher:

“Como é que tu te chamas?”

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Pausa.

“Eu? Edite.”

Nova pausa.

“E tu?”

“Parece que é Cardoso Pires”, respondi então.

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“E agora, José?

[...] você marcha, José!

José, para onde?”

Carlos Drummond de Andrade

Ainda hoje estou a ouvir aquele “é”. Espantoso

como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro

alguém, noutro personagem menos imediato e menos

concreto.

Nesta introdução à perda de identidade que um

transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o

que me parece desde logo implacável e irreversível é a

precisam com que em tão rápido espaço de tempo fui

desapossado das minhas relações com o mundo e

comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um

processo de despersonalização, eu tinha-me transferido

para um sujeito na terceira pessoa (Ele, ou o meu nome,

é) que ainda por cima se tornava mais alheio e mais

abstracto pela imprecisão parece que. Além disso, a

circunstância de ter respondido à Edite com o apelido e

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não com o meu primeiro nome, o mais cúmplice entre

marido e mulher e o único que nos era natural, é outro

indício do distanciamento provocado pelo golpe de azar

que me destituirá de memória e de passado.

Ele, o Outro. O outro de mim. Em menos de nada, já

a Edite falava ao telefone com os médicos sobre esse

alguém impessoal que eu estava a começar a ser. Ouvia-

a do meio do hall em grande serenidade. Sabia, tenho

essa ideia, que alguma coisa se estava a passar comigo,

uma coisa oculta, activa, mas nessa altura já principiava

a ouvir e a sentir só de passagem, sem registar. (Mesmo

assim tinha algum conhecimento da ansiedade que me

rodeava: Isto não vai ser nada, creio ter dito à Sylvie

quando a descobri no corredor, atenta aos telefonemas

da Edite.)

Lembro-me de que essa manha foi invadida por um

aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e

pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque

quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir

de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa

de banho a barbear-me com a passividade de quem está

a barbear um ausente e foi ali.

Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se

uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar

e naquele instante que eu, frente a frente com a minha

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imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi

para um Outro sem nome e sem memória e por

consequência incapaz da menor relação passado-

presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém

ou do real com a visam que o abstracto contém. Ele. O

mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada

garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que

não a considere apenas um facto, uma presença) exacto,

esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não

tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes

antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa

Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira

surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório

do quarto.

Dias depois, quando?

Sem memória esvai-se o presente que

simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida

anterior. E a interior, bem entendido, porque sem

referências do passado morrem os afectos e os laços

sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as

imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as

datam e as tornam significantes, também isso. Verdade,

também isso se perde porque a memória, aprendi por

mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser

medido como sentido. Assim, ao ver o meu Outro eu a

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pentear-se com uma escova de dentes num quarto de

hospital (conforme me contaram depois) pergunto-me

quantas vezes lhe aconteceu aquilo e logo de instante

vejo uma enfermeira a aparecer-lhe por trás e a trocar-

lhe a escova pelo pente, sem um comentário, sem uma

palavra sequer, pura e simplesmente na prática de quem

executa uma rotina. E ele a obedecer-lhe sem a menor

resistência, ele como que a cumprir a parte que lhe

compete nessa rotina. Sempre este jogo?, pergunto.

Talvez. É possível que a aceitação apática do erro

se devesse à sua incapacidade mnemónica de relacionar

e portanto de questionar. Possível. Para ele, agora ou

ontem tudo era outrora, mundo alheio ou como tal. E

desinteresse. O constante e desinteressado desinteresse

do homem desabitado de pessoas e de lugares, de tempo

e de sentimentos.

Apatia, nesse caso? Nesta fase do processo admito

que não se tratasse propriamente de apatia, os médicos

é que poderão dizer. Que eu saiba, ele ao principio

sabia-se doente. Ou teria uma percepção limiar da

impossibilidade de se conjugar com os outros, uma

impossibilidade com a qual convivia numa aceitação

natural. Recordo-me até de que ao observar uma coisa

que lhe chamasse a atenção a punha instintivamente de

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parte porque tinha como certo que um segundo depois a

iria esquecer.

Ouvir e perceber enquanto ouvia mas apagar

prontamente, era o traçado em que ele se movia. Ouvir e

apagar logo-logo. Apagar. E ver, ver também contava.

Ver pessoas (figuras) através dum vidro mudo e perdê-

las acto contínuo. Tudo sem angústia, como quem

preenchesse o tempo numa serenidade terminal. Como

quem, na desertificação que o invadia, fosse avançando

para a morte cerebral num cenário de contornos

indiferentes.

Nas Poesias de Drummond de Andrade que tenho

acolá na estante, José marchava. Mas para onde, José?

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“Já não sou eu, mas outro que

mal acaba de começar”

Samuel Beckett

Brancura hospitalar, murmurada e sonâmbula, está

aqui.

Uma atmosfera de quietude sulcada por palavras

sem rasto. O universo para onde desertou esse Outro

que eu acompanhei com as esvaídas recordações que

trouxe dele ou com os relatos da minha mulher e dos

amigos que me visitaram era assim.

Da mesa onde agora estou a escrever, sigo-me

nesse discurso. Ou, antes, sigo-o a Ele desde que entrou,

lado a lado com a Edite, na recepção do Hospital onde o

esperava um médico das nossas relações. Suponho que o

reconheceu. Reconheceu-o com certeza mas

provavelmente só de figura, isolado de qualquer

contexto. Ou não? “Sabe quem eu sou?”, perguntou-lhe

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o médico. “Sei”, foi a resposta, “não me lembro é do

nome.”

Dito isto, nem mais uma palavra. Subida ao Calvário

num elevador carregado de macas com doentes de olhos

fechados (foi a imagem que eu fixei) e lá muito no alto,

muito no fim, uma voz de óculos cintilantes numa

primeira observação: “O mais provável é ter de ficar

internado.”

E logo Ele muito rápido: “Internado, não.” (Ai já se

deixa ver que era ainda um último resto de mim que

protestava.)

Desse momento em diante vi-o, de corredor em

corredor, a ser conduzido aos puzzles da tecnologia

clínica, chapa a chapa, registo a registo, análises,

electrocardiografias, exames da fala e da escrita, um

TAC, uma inspecção às carótidas, mas o que é que eu

estou a fazer aqui, perguntava ele quando o deixavam

sozinho com a mulher.

Se nessa altura ainda falava com clareza ou se já

tinha começado a desmantelar as palavras com o silabar

consonântico que toda a gente fingia ignorar, não sei,

não posso dizer. Mas por intuição ou pelo quer que fosse

ele devia ter alguma percepção dessa afasia porque

muitas vezes cortava a frase ou parava de se exprimir,

fazendo um gesto de desistência com um sorriso de

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resignação. Deixem, não vale a pena, era o que aquilo

significava. Dava a ideia de que por enquanto sabia o

que pretendia comunicar mas que já não comandava as

palavras.

Continuo a segui-lo. A principio houve uma ou outra

situação em que nos confundimos e fomos um só.

Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões

de consciência. Mas em menos de nada já ele se tinha

perdido de mim e ia, hospital fora, a arrastar uma névoa.

O relatório neurológico foi terminante: acidente

vascular cerebral de gravidade muito acentuada, um

coágulo de sangue que tinha subido (do coração?) até à

zona nobre do cérebro, bloqueando duramente a artéria.

Não era um problema hemorrágico, antes fosse, e por

isso não havia o recurso à cirurgia com largas

perspectivas de solução, explicou à Edite um

especialista do Serviço de Neurologia. Assim,

acrescentou ele, a situação apresentava-se bastante

difícil, um caso de isquemia com recuperação lenta e

frequentemente incompleta. Do ponto de vista motor

nada que justificasse preocupações, o doente bastava-se

a si próprio. Mas o centro da fala e da escrita estava

profundamente afectado e podia conduzir a uma

sobrevivência em incomunicabilidade total.

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Incomunicabilidade, pois. Incomunicabilidade total.

Nem voz nem escrita e nem leitura tão-pouco. Morte

cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa

passou a notícia à Imprensa para o outro lado dos muros

do Hospital de Santa Maria. Morte branca, aponto eu ao

alto desta página em que estou a reconstituir passo a

passo esse Outro que, de mão na mão com a Edite, se

encaminha para o quarto onde vai ser internado.

Vai sem ver, percebe-se. Vai, foi. Seguiu. E quando

lá chegou não sei se já estava entregue por inteiro à

sem-vontade que o alheava do que acontecia nele e à

volta dele, não sei, não faço ideia. Mas, estivesse ou não

estivesse, no quarto que lhe tinham destinado havia dois

vultos a espiá-lo em duas camas. Viam-no também sob

lençóis mas de rosto ao alto e a sorrir. A sorrir? Seria

um traço pálido na palidez geral que se supôs dirigido à

enfermeira que o estava a ligar ao soro, embora não a

olhasse sequer. Ou um sorriso para com ele e mais

ninguém, outra hipótese. De qualquer maneira estava

imóvel e a sorrir, imagine-se. Assim o viam os dois

doentes com quem ele ia ficar e assim o estou eu a

descrever, passados dois anos sobre essa hora: branco,

branco, em luz gelada e com a mulher à cabeceira a

segurar-lhe a mão. Preso a ela mas todo voltado para a

distância.

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Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica

que o veio observar com as primeiras perguntas no tom

de quem vem de recado pensado.

Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos

foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e

como tal, com respostas prontas é que a devia

despachar. Estropiadas ou não, respostas prontas e o

rosto eternamente apontado para uma vastidão

qualquer. Seria realmente uma vastidão, um espaço

ermo, para onde ele olhava? Pouco importa. Horizonte,

interrogação ou nada, era nessa direcção que ele estava

a responder ao exame e infelizmente com o descaso e a

irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a

médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos

desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que

lhe tinha sido atribuído, confirmava a médica com o

silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme,

“agora”, despediu-se ela, “o que é preciso é pôr-se bom

depressa para voltar a escrever. De acordo?”

Escrever?

O que restaria de mim no homem que ficou para ali

estendido à espera de coisa nenhuma?

Deve ser uma abstracção nebulosa estar-se assim,

numa ilha de náufragos, preso ao soro que nos chega

por um fio ligado a uma hipótese de vida. Três náufragos

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ao todo: não esquecer que naquele quarto há ainda dois

vultos tão nulos que os toma como ausentes. Insisto

nisto porque aos olhos dele essas criaturas devem ser

duas sombras, pouco mais. Duas sombras espalmadas

em dois leitos de hospital, a observá-lo para o

decifrarem, saber de quem se trata, qual o seu porquê e

o seu rumo. Uma dessas sombras durante a noite ronca

estrepitosamente, mas o Outro que eu sou ali dará por

isso? Se der, esquece.

Deixaram-no atrás duma janela sem paisagem, em

tempo velado, oco. Quando menos espero descubro que

alguém se aproxima dele com uma ficha de doente na

mão. Outra médica. Fala-lhe com simpatia atenta,

perguntas sobre perguntas. Aponta-lhe a chávena que

está em cima da mesa de cabeceira: Que é isto? Pára.

Espera, a olhá-lo. A seguir uma esferográfica: E isto? E

isto?, pergunta ainda, com uma chave ou outra coisa na

mão.

Ele percebe que o estão a investigar, por mais

anulado que se encontre não se considera tão à margem

como isso. Percebe, não tenho dúvida (recordo essa

minha reacção no primeiro interrogatório) mas o que ele

ignora é que já não identifica os objectos que lhe

apresentam: um lenço, um anel, a moeda tirada ao acaso

do bolso da bata, na prática objectos mais que simples

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da circulação comum, e principalmente relógios,

relógios de pulso, os ponteiros e a leitura das horas.

Pois, relógios. O Outro de mim naturalmente que os

conhece como peças, instrumentos, sem interior, sem

razão, mas eu diria que só de vista porque os isolara de

referências. Exactamente como lhe acontecia com as

pessoas que outrora lhe tinham sido mais próximas.

Tempo depois, quando a família e os amigos me

descreveram a passear de alma ausente pelo anoitecer

da memória, é que eu soube como era desvairada a

nomenclatura que ele atribuía aos objectos questionados

ou àqueles que, de longe em longe, pretendia enunciar.

“Simosos” (?), por exemplo, funcionava a vários

significados. Tanto podia ser “gilete” como “óculos” ou

“arrastadeira”, dependia de qualquer indecisão de

momento, quer-me parecer. “Cachimbo”, uma peça que

nunca na vida teve alguma coisa a ver comigo, tomou-a

ele como sinónimo de “chinelas, chinelas de quarto”. E,

como estas, várias outras designações de sentido

aleatório ou incapazes de ser traduzidas por que

inclusivamente as pronunciava com distorções.

Se não o entendiam quando perguntava esquecia e

passava adiante (remetia-se ao seu horizonte

descambado). Mas quando era perguntado (nos exames

iniciais da memória, é daí que me vem essa lembrança)

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entendia ou intuía que o estavam a experimentar em

perspicácias ingénuas e com o seu quê de ridículo. Eram

um estendal de desperdícios mais que vistos e sabidos,

aqueles testes. Um jogo em faz-de-conta frustrado logo à

partida, pensaria ele naquela altura e quem sabe se não

sorriria tristemente por dentro. No fundo, essa atitude

não era mais que a costumada desconfiança do doente

em terreno de risco e de valores desconhecidos, a

sempre prevenção contra a subestima ou a humilhação

ao julgar-se avaliado por um teste primaríssimo em que

colaborava, que remédio, com uma complacência

resignada e até com uma sombra de ironia. Ironia, seria

nisso que ele tentava compensar-se?

Determinadamente, não. Assumir a observação que

pressupõe a ironia com a captação de sinais que ela

requer não me parece fácil nas condições em que o meu

Outro divagava. No entanto, muito para com ele e para

comigo, houve pelo menos uma vez em que essa

intenção teve lugar. Com alguma clareza ou quase e de

tal modo que ainda hoje tenho como certo que mesmo

num farrapo de indivíduo a despojar-se de memória (e

portanto de imaginação) podem despontar por vezes

fragmentos de ironia como instintos culturais, se assim

lhes é possível chamar, que são resíduos do passado que

ele apagou. Será uma ironia coitada, não digo que não,

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mas de qualquer modo uma ironia. Um esforço de

resposta muito para ele, muito para se compensar da

situação de desvantagem em que se pressente. Um

esbracejar do seu lado crítico, direi agora, um

esbracejar. Um iludir o caos da irreflexão.

A prova dum impulso de afirmação deste tipo está

na minha resposta ao exercício que um dia me propôs a

neurologista que dirigia o meu tratamento (“Onze menos

nove quantos são?”) apresentando-lhe a primeira

solução engenhosa, pretendia eu que me veio à cabeça:

“Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é

nada.”

(O segredar da infância a assaltar-me numa

brincadeira de tabuada, apetece-me anotar neste ponto

da minha narração. Eu há anos, há séculos, na Escola

Primária do Largo do Leão, em Lisboa, a declamar o

“nove, noves fora, nada”.)

Acrescento ao comentário que foi no decorrer desse

interrogatório que fixei como uma marca pessoalíssima

daquela médica a correia bordada a cores no relógio que

ela usava.

Demoro-me um pouco sobre as fotocópias da

caligrafia desse homem nos testes da fala e da escrita

que tenho à minha frente. São um desfiar de caracteres

cuneiformes traçados a desdém que ele nem se deve ter

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dado ao trabalho de olhar. Dessa caligrafia enlouquecida

só nas últimas provas é que a assinatura tem alguma

aproximação com a que me era verdadeira; nas outras

mostra-se cerrada, apenas o J se mantém reconhecível.

O J de José. A letra menos espontânea da minha

identificação.

Sem nome e sem assinatura este que eu sou entre

paredes dum hospital encontra-se numa paisagem

anónima com gente anónima (o pessoal, os visitantes).

Sem nome, vejam só. E contudo, “os nomes penetram-

nos até aos ossos”, afirmava Hemingway, esse viajante

das mortes, em The Garden of Eden. Simplesmente, no

meu homem sem memória tanto o nome que lhe

pertencera como o das personagens que lhe cobriram a

existência tinham enquistado e desfizeram-se em pó.

Apesar disso, uma vez por outra ainda dava mostras de

procurar recuperá-los:

“Eu tenho filhos, não tenho?” pergunta ele à Edite.

(Eu. Uma vez mais o sujeito solitário, repare-se.) “Como

é que eles se chamam?”

“Temos duas filhas. A Ana e a Rita”, responde ela.

“Rua?”

“Não. Rita”, diz a Edite.

E ele: “Pois, Rua.” (Pensava ter dito Rita, é

evidente.)

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“Então e o António Nuno?”

Edite: “O António Nuno era teu irmão, morreu há

muito tempo. Nós, além das filhas, temos dois netos.”

Ele: “Pois, dois netos. Como é que eles se

chamam?”

Edite: “Joana e Rui.”

Ele: “Rui. Que nome tão feio.”

Os nomes. A preocupação de se reconhecer vivo,

identificando-se pela identificação dos outros. Durante a

travessia das trevas brancas os diálogos com a Edite

foram em grande parte uma busca de referências, um

inquérito em total inconsciência na tentativa de se

recapitular para voltar a ser indivíduo com passado. A

família e os visitantes que lhe apareciam quem eram?

Donde vinham e que ligações tinham com ele? O pior é

que rarissimamente se preocupava em os situar na sua

vida (tinha aceitado que não era capaz, foi a impressão

com que eu fiquei até hoje) e, quando muito, punha-se a

olhá-los sem os ver.

Ali o tenho, anulado e discreto. Ali me tenho, com a

Edite à cabeceira. No quarto onde o arrumaram há os

tais dois vultos a comunicarem de cama para cama, duas

sombras falantes, se bem que as sombras mesmo que

falem nunca têm voz. De modo que permanece deserto e

sem sobressaltas, a dias vagos e sonos limpos. Está à

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mercê dum coágulo que lhe trava a circulação do

cérebro e anuncia um fim assustador mas ele

desconhece isso, não pressente sequer. Está distante,

está longe. Que longe, meu Deus, pensará a Edite.

De resto, a desmemória não só o isolou da realidade

objectiva como o destituiu, pode dizer-se, de

sentimentos. Perdeu os estímulos de aproximação

porque, sem a consciência da identidade que nos

posiciona e nos define num framework de experiências e

de valores, ninguém pode ser sensível à valia humana do

semelhante. As suas virtudes ou os seus males só podem

ser reconhecidos como significantes sentimentais em

contraponto com a consciência da nossa identidade, isto

é, com a tradição da comunicação que praticamos com a

sociedade e com a nossa memória cultural. A ele tal

coisa estava-lhe vedada, memória onde tu já ias. Da' a

total indiferença em que navegava à tona das comoções

e dos afectos, uma indiferença extrema que, sucedesse o

que sucedesse, não o levava a perturbar nem ao de leve

a disciplina ambiente. Na verdade, não sabia de todo

onde se encontrava, a razão era essa.

Atentem, atentem nele: chegam amigos a visitá-lo

mas ficam-lhe no limiar da recordação. Pelo desfocar da

vista, por certas expressões evasivas ou por certas

insensibilidades, percebe-se que não é capaz de os

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localizar com clareza. A um deles, sei eu que lhe viu os

olhos toldados de lágrimas e que teve um impensável

vislumbre de estranheza, o que era aquilo, parecia

perguntar mas frio, terrivelmente frio.

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“Na véspera de não partir nunca...”

Álvaro de Campos

Há pouco, ao transcrever aquela frase do

Hemingway, lembrei-me de mim a tropeçar no meu

nome quando, depois de ter sido desligado do soro, me

passeava no corredor como numa galeria sem história.

Evadido do quarto e dos dois vultos de gaiola que

saltitavam palavras mudas um para o outro como se

fossem sopros de fumo, deslizava por entre portas e

paredes duma brancura macia.

Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de

mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a

atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas

pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a

planar dentro duma redoma de vidro, é como me

imagino naquela altura.

Nesse período, já o disse, as palavras que me

chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia

haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto

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escrevo é que me dou conta disso) não havia sombras

não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá

Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de

algures de mim e a desfocar-se por si só não se sabe em

que direcção nem com que objectivo uma sombra branca

cor-ida no branco como foi que desse apagamento

consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é

coisa que ainda estou para entender mas retive retive

mesmo? Retive melhor assim.

Verdade, melhor assim.

Paredes mansas, as tais paredes em alvura-pérola;

por entre elas, os sons, as figuras e o tempo, tudo num

deslizar suave, sem densidade. Eu, em pessoa de

coisíssima nenhuma, cumpria as tardes de hospital num

vaguear inocente. Mesmo assim, aconteceu saltar-me ao

caminho o meu nome. Saltou-me poucas vezes é certo,

três ou quatro se tanto mas era um nome que andava a

monte repetido e desfigurado nos ficheiros da terapia da

fala um nome a acenar-me a acenar-me José José José

numa espécie de provocação à distancia José que nome

tão feio considerava eu.

“Feio”. No vocabulário das trevas brancas o meu

qualificativo-chave era esse e provavelmente só utilizado

na refutação dos nomes das pessoas. Estava longe de

adivinhar que ao voltar um dia à comunidade dos vivos,

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iria ouvir o mesmo comentário da boca dum herói de

Wim Wenders no filme Lisbon Story. O mesmo, sem tirar

nem pôr. Com o mesmo sujeito e com a mesma frase,

até. Viajante exótico no exótico duma cidade de que

desconhecia em absoluto a língua, o passado e o

presente (como me acontecera a mim no enquadramento

para onde a doença me tinha atirado) o personagem de

Wenders pretendia descobrir uma cidade de gente

através de sons e só de sons, desabonados de quaisquer

referências culturais (sons ausentes de memória, diria

eu).

Uma sofisticação ociosa, essa de se querer reduzir a

comunicação entre humanos a uma essencialidade tão

artificiosamente concebida. Seria, mas Wenders tentou.

Deve ter ficado tão encantado com a ideia que não

perdeu tempo em enviar um viajante de microfone em

punho à cidade de Ulissipo para a descobrir em

metáfora num amontoado de palavras sem alma.

Mas aconteceu que ao longo das suas gravações o

homem de Wenders deparou com alguém a pronunciar a

palavra José. E achou insólito: José? Compreendeu que

se tratava dum nome próprio, mas não conseguia mais

do que classificá-lo como um articular de sílabas pobres.

“Que nome tão feio”, comentou de frente para a câmara.

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Textualmente como eu me tinha comentado a mim

próprio no Hospital de Santa Maria.

Adiante. Corredor para a frente, corredor para trás,

o Outro que se desdobrou de mim comporta-se naquele

planeta como um figurante gratuito que o destino

acrescentou à paisagem.

Continuo a recordá-lo não tem hora nem lugar é a

impressão que dá uma afabilidade incolor no trato com

os médicos e com as enfermeiras que o acompanham e

calmo sempre calmo praticamente sem palavras mas de

quando em quando com a luz discreta dum meio sorriso

para manifestar presença ou como uma deferência para

com as pessoas com quem se cruza.

Atenção - aqui, atenção, porque alguém o viu pegar

num jornal e ficar com ele dependurado sem o abrir.

Dizem que ficou a observar durante alguns segundos

uma fotografia de Cavaco Silva na primeira página e que

passou passou-se está impossibilitado de ler

impossibilitado mas não se perturba segue por cima.

Por vezes vamos encontrá-lo diante dum televisor

onde as imagens lhe aparecem sem conotações umas

com as outras num discurso conflituoso. Sei desse

desenrolar confuso ou julgo que sei. E também sei que

ele recebia as vozes como ecos desligados das pessoas, a

menos que essa, como outras rememorações, não passe

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duma “visam auditiva” que eu tivesse construído no

limbo da pós-libertação da morte branca.

Jogo dos ecos, nesse caso. Falsa visam.

Seria?

Pausa agora no inverno, sol ameno. Por cima do

arvoredo do hospital há um palácio de cristais dourados

um palácio não exagero vê-se da janela do quarto e eu

fixo-o com interesse ele também mas passado um

segundo já o perdeu apesar de continuar a olhá-lo. Esta

figuração cintilante repete-se a qualquer momento em

que se aproxime da janela mas assim que se afastar é

como se tivesse abandonado uma vidraça deserta.

Andar andar sempre a andar. Internamento de

Neurologia, cama janela lavabos corredor corredor para

a frente corredor para trás de cada lado só vê quartos

de porta aberta com camas a meio sono em determinado

recanto estão sentados três ou quatro doentes num

banco. Em roupão (sempre os mesmos?) e de frente para

a entrada dum elevador que nunca chega. Na postura

impassível de personagens que se ignoram entre si

parecem estar a aguardar a partida para uma viagem

confidencial.

Passos. Os passos dele: perdidos. Para a frente e

para trás, perdidos. O Costume. Se voltar ao televisor,

os doentes que irá encontrar diante do écran estarão

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todos sem rosto ou é como se estivessem porque os

esquecerá assim que os tocar com o olhar se é que os

toca.

O mesmo lhe acontece com os dois companheiros

de quarto entregues aos seus diálogos de vultos.

Prossigo o inventário. Por cima duma porta não sei

onde havia um letreiro que me obrigava a um soletrar

intrigado:

BANHOS.

Aquilo parecia-me uma grafia cirílica. Alfabeto

eslavo?

Cada vez que passava por lá com a Edite apontava-o

sem mais nada e ela, já sem levantar os olhos, respondia

BANHOS.

Então sim, eu conseguia ler e reconhecia a palavra.

BANHOS.

Era isso devia ser isso mas imediatamente revertia

à forma inicial

BANHOS BANHOS BANHOS

de tanto o estudar a sós e de o saber impossível o

letreiro fez com que me interrogasse sem exactidão de

consciência é certo sem sobressalto mas a interrogar-me

se não estaria a caminhar para a loucura.

Inacreditável. Eu, o Outro de mim, em viagem de

passas perdidos e a interrogar-me se não estaria a

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caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante

ou não, a pergunta aconteceu. E para maior surpresa,

não a esqueci. Loucura, caminho para a loucura, a

questão chegou-me com uma insistência passadeira mas

no estado em que me encontrava o que seria para mim a

loucura? Como é que eu, impessoal e tão a esmo, me

tinha lembrado de tal coisa a propósito dum letreiro?

Pensando-a a esta distância, admito que essa

perturbação se possa dever a um eco da minha

identidade do passado: ao enfrentar aquele letreiro

como uma provocação da leitura e da escrita era o ex-

autor de livros que estremecia na cegueira em que tinha

mergulhado e que tirava do fundo da sua razão perdida

o esboço duma interrogação à loucura. Seria?

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“A notícia da minha morte foi um exagero.”

Mark Twain

em telegrama à Associated Press

Até que certa manha acordo em claridade aberta

com gargalhadas a creditarem à minha volta. Dum

momento para o outro, o sentido de presença. E tudo

concreto, tudo vivo. O quarto: para lá da janela, o

palácio de cristais dourados (que era o Hotel Penta,

quem diria) e à minha frente dois vultos que me faziam

companhia a desafiarem-se à gargalhada de cama para

cama, um deles com um braço paralisado ao longo do

corpo, o outro um velho de auscultadores ao pescoço,

com um walkman debaixo do lençol. Cada qual a rir, a

rir, e a acenar com um lagarto de plástico que soltava

uma língua em tremular de labareda.

Acredite-se ou não, naquele quarto estavam dois

candidatos à morte no maior dos carnavais. Dois

passardes arruinados, pelo menos quanto ao aspecto. E

eu, no meio de tanto riso, descobri (sem espanto, sem

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assombro, custa a crer) que acabara de me libertar

duma doença mais que maldita, duma cegueira ou dum

apagamento por onde andara sem norte e sem dias e

que numa viragem sem aviso pessoas e luz, palavras e

matéria, tudo tinha voltado à realidade. Existência

palpável, o mundo deixara de ser anónimo. Agora o

roupão e os meus óculos apresentavam-se como

evidências familiares e até o lugar onde eu me

encontrava parecia circunstancial. Um tanto ao acaso,

avancei para o lavatório e ao aproximar-me reconheci-

me no espelho: Eu. Eu, saído da névoa, a ir ao encontro

de mim na superfície dum vidro emoldurado e com a

sensação ou com a certeza (ah sim, com a certeza, a

mais que certeza) de que encontrara a memória.

Incrível, a memória tinha reaparecido, o coágulo de

sangue, esse selo que me estrangulara o cérebro,

diluíra-se no segredo do corpo e eis-me livre, renascido,

diante de dois estranhos que não paravam de improvisar

malícias entre si.

Dois passarões arruinados. Quanto mais os ouço

mais os vejo nessa figura. Em regime rigoroso

aguardavam que lhes fosse marcada a hora de serem

operados ao cérebro (“tirar a tampa” ou “arejar a

mioleira”, como eles diziam) um assunto em que o do

braço caído se mostrava confiante e quase com vaidade.

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Estava destinado ao Professor A (“destinado”, a

expressão dele era essa) e na realidade o prestigio

científico daquele neuro-cirurgião representava um

privilégio e uma garantia que o doente não se cansava

de proclamar diante do seu companheiro dos

auscultadores.

O que o inquietava era que o professor não lhe

aparecia, andava por congressos ou por aulas magnas e

quem sabe se àquela hora não estaria, rodeado de toda a

sua equipa, a operar uma alma desentendida ao som de

marchas militares. Marchas militares, porque não? E

quem dizia marchas militares, dizia sonatas ou grandes

sinfonias, um cirurgião de toda a autoridade tinha

direito aos seus caprichos, esclarecia o meu vizinho do

braço esquecido. Ramires de seu nome e construtor civil

apessoado, dispunha de relações nos hospitais e na

classe médica e afirmava-se ao corrente de tudo e mais

alguma coisa que respeitasse ao Professor. Contava-o e

sublinhava-o numa toada a anuviar para o lendário, e eu,

de retorno ao mundo dos vivos, ouvia-o com prazer.

Mas mais do que eu ouvia-o o doente da outra cama

que ignorava quais as mãozinhas que lhe iriam trabalhar

o cérebro. Caso para saber se o entregariam a um

remendão de palpites azarentos, ninguém estava livre

disso, ou a um cirurgião acabado de sair das fraldas,

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Page 49: José Cardoso Pires - De Profundis (doc)(rev).doc

uma vez que sem sacrificados não há principiante que

chegue a bem sucedido. E uma doutora? Também era

capaz de haver gente dessa, doutoras de esquartejar.

Nos tempos que corriam as mulheres não tinham regra

nem bandeira, embora estivesse mais que provado que

doutoras a cortar e a coser só na costura de alinhavos,

ou não seria assim? Não se preocupe, amigo Martinho,

sossegava-o o outro a transbordar de generosidade, isto

da mioleira é só renda aos labirintos e para de lá sair o

melhor doutor não faz mais que fechar os olhos e seja o

que Deus quiser. E o Martinho: Estou a ver, estou a ver.

Um bom sacaninha é que você me saiu, amigo Ramires.

E riam a bandeiras despregadas, cada qual nos seus

lençóis do medo.

Pelo que vim a saber, este Martinho era

comerciante na Nazaré. Velho e sem família que se lhe

conhecesse, explorava uma casa de bar e snooker que

tinha bem à vista, contou ele, o aviso de

PROIBIDA A ENTRADA A MENORES

OU A ADULTOS AO COLO

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“Para que o assombro da doença dure

sempre

em coisa da memória te mudei”

Ana Akhmatova

Abrindo caminho por entre ditos e gargalhadas,

chega a Edite com as nossas filhas. Vêm iluminadas,

felizes, e depois delas a neurologista do relógio da

correia bordada que traz um sorriso a condizer com a

sua sobriedade natural.

Quando ela sai do quarto passamos ao corredor.

Alguém me dá os parabéns como se tivesse sido eu o

autor deste triunfo e um psiquiatra meu amigo expõe o

fundamental da recuperação surpreendente,

surpreendente, repetiu ele, que me tinha acontecido.

Ouvindo-o, penso no cérebro como o atlas vivo das

grandes marchas do homem. Uma massa luminosa capaz

de abranger os infinitos da mais impossível grandeza, do

maior sempre maior ao mais ínfimo dos mais ínfimos,

mas que se revolve ou se retém a um minúsculo sopro

de pó; que se descodifica e resta neutro, terminado; que

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se recompõe e nos torna de novo vivos a um traço

calculado da ciência.

Sinto-me tomado de gratidão. Isto de alguém se

recomeçar assim depois de nulo é algo que deslumbra e

ultrapassa.

Nessa noite foi acordar com um desfilar de vozes

femininas na escuridão do corredor. Enfermeiras?

Cantavam Forever (uma canção que eu conhecera há

muitos anos) como se viessem no rescaldo duma festa

para entrarem no turno de serviço, pensei eu. Era uma

procissão nocturna murmurada em inglês, um quase

ritual que me fazia duvidar da minha recuperação.

Delírio? A tal marcha para a loucura que me viera à

cabeça no corredor dos passas perdidos? De ouvidos no

escuro fiquei à espera que tudo acabasse. Acabou. O

coro amorteceu como se fosse a afastar-se e por fim veio

o silêncio. Na janela uma cortina de inverno em chuva

miudinha.

Mas há o roncar dum avião a rasgar a noite, um

resfolegar poderoso a caminho do Aeroporto. E como se

obedecesse a uma ordem, na cama à minha esquerda o

empreiteiro Ramires começa a ressonar em crescendo,

acompanhando a marcha do aparelho. Estremece em

vibrações, aumenta o som à medida que o sente

aproximar-se, aumenta mais e mais, e quando o tem

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mesmo por cima do hospital lança-lhe um trovejar de

rugidos que abala o quarto de alto a baixo;

inversamente, começa depois a baixar o tom, gradual,

gradualmente, até o avião desaparecer do mapa da

noite. Só então se dá por satisfeito e recolhe ao respirar

compassado do sono.

No escuro, junto a dois homens adormecidos, tento

ver para trás do meridiano da morte que acabei de

dobrar esta manha mas só encontro névoa luminosa.

Dentro de uma ou duas horas, com as recordações da

Edite e dos amigos em visita, vou continuar o

reconhecimento da geografia sonâmbula por onde

naveguei e que não era mais do que uma transfiguração

do universo do meu quarto e de uns tantos passas à

margem dele. Serão, rapaz, os teus últimos passeias do

exílio, dai em diante saúde e baile é que é preciso.

Mas o corredor das portas abertas e das camas a

meio sono deixou de ser a estrada sem limites que eu

percorria nos cegos tempos. A sua brancura já não é de

vazio e solidão nem de extensões de luz fria. Pelo

contrário, é quase intima, hospitalar, e, ponto

importante, exibe doentes a desfilarem em parada de

toilettes. Três ou quatro, não mais, e todos os dias os

mesmos.

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Olho-os. Passam por mim roupões acabados de

estrear, chinelas de aconchegar sossegos; à saída duma

porta, um infeliz de perna arrastada compõe o seu

burguês casaco de quarto com alamares; mais adiante

outro internado avança em rode com monograma e

lenço de seda ao pescoço mas por razoes que só a ele

dizem respeito calça luvas de lã grosseiríssima; outro

ainda, um tipo enorme de cabelo grisalho, mostra-se de

peito aberto num quimono de judoca e calções colados à

coxa, exibindo umas pernas ilustradas por adesivos que

cobrem enxertos de artérias ou algo assim. Brilhos de

presença e uniforme: desejo de sobreposição ao

anonimato ou à marginalizarão para que nos empurra a

doença?

Numa porta volto a dar com o letreiro

BANHOS

que me perseguiu até à obsessão sob a máscara

bizantina de

BANHOS

e que é uma das raras imagens que me ficaram do

tempo cego.

Do tempo nulo. Ou passivo. Como se queira.

De quando em quando vou até ao quarto e lá está o

amigo Martinho de auscultadores nos ouvidos a receber

a música que lhe vem debaixo dos lençóis e a magicar

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lucubrações. Na cama em frente o companheiro Ramires

permanece de olhos fechados, agarrado ao braço inerte.

Ou dorme ou são as dores de cabeça que o obrigam a

estar naquela postura; mas se dorme, é garantido que

logo que um boeing ou um airbus apareça no

firmamento não deixará de dar o alarme, desatando a

ressonar em crescendo. “O ressonar do avião”, chama

Martinho a esse estrondoso toque de peito que, por

razoes imponderáveis, é menos desvairado nos sonos de

dia do que de noite.

Mas também pode acontecer que, quando modo e

de pálpebra tombada, o nosso Ramires esteja apenas

fechado em pensamentos e se assim for, entre ele e o da

outra cama não tardará a recomeçar o costumado baile

das malícias:

“Ou muito me engano ou é amanha que o Professor

me vai marcar a operação.” (Ramires abrindo os olhos,

com o ar de quem saiu duma meditação devidamente

meditada.)

Sorriso de Martinho: “Operação com música ou sem

música?” Nenhuma resposta do lado de lá; e o Martinho

outra vez: “Pois eu, amigo Ramires, a noite passada

sonhei que o doutor me estava a tirar a tampa do

intrínseco.”

“Doutor? Qual doutor?” (Ramires.)

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“Um qualquer, não interessa. Sonhei que ele me

estava a decifrar de tampa aberta e que do meio dos

miolos me saiu uma data de borboletas.”

“De vespas, quer você dizer.” (Ramires, rindo

baixinho.)

E Martinho: “Ou isso. Realmente, antes vespas que

borboletas porque as borboletas são muito atreitas às

flores de cemitério. (Riso). Na primavera, bem

entendido.” (Primavera dos cemitérios: mariposas,

mariposas, pétalas a adejar por cima de campas ao sol.

Ao redigir este diálogo, lembrei-me da “mariposa-

caveira” (Acherontea antropos, L.) que os mexicanos

adaptaram como figurante das procissões de Carnaval)

Ramires: “Eu cá não sonho. Tenho a consciência

tranquila, compreende?”

Martinho: “Sonhar não é fácil.”

Ramires: “Ah, pois não.” Faz-se desinteressado; e

de repente: “Diga-me uma coisa”, agarra o braço

paralítico, puxa-o mais para si, “uma coisa, amigo

Martinho: o amigo lá no sonho sabia quem era o doutor

que lhe estava a tirar a tampa? Sim, o operador, o

cirurgião. Sabia? Claro que não sabia, o azar é esse. E

quem não sabe, é garantido: acorda com uma coroa de

flores e uma data de borboletas ao de cima.”

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“Com vespas, amigo Ramires. Peço desculpa mas

eram vespas.”

“Vespas ou borboletas vem tudo a dar no mesmo.

Eu, ao menos, se alguma vez sonhasse que me estavam

a tirar a tampa havia mas era de me sair um anjinho de

asas brancas a tocar cometa pela pauta.”

Gargalhada pronta do Martinho: “Pois é. E atrás do

anjinho ia você a caminho do Pai do Céu sem o Professor

lhe dizer adeus.”

Comerciante de muito traquejo no ramo de bar e

bilhares, Martinho lançou a carambola e deu o assunto

por arrumado, tornando a emparedar-se entre os

auscultadores para ouvir uma música muito sua.

Nisto entrou uma enfermeira que se pôs às voltas

pelo quarto, o termómetro, onde estava o termómetro,

perguntava ela, nenhum dos senhores ali presentes

tinha visto o termómetro? Martinho levantou um dos

auscultadores: “O termómetro? Deve andar por aí.” E o

construtor Ramires, de olhos fechados: “Se calhar

derreteu-se com a febre.”

A enfermeira não só já se tinha habituado aos

entremezes daquele par de corvos como fazia por lhes

copiar o tom nos dias de boas marés. “Machista”,

chamara ela ainda há pouco ao desgraçado do Martinho

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que na ocasião parecia uma caveira deposta sobre a

almofada porque tinha tirado a dentadura.

“Machista é que o senhor é, fique sabendo.” E com

esta deixara-o de boca às moscas porque machista devia

ser uma palavra que não lhe constava lá muito bem.

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“Sai depressa, depressa.

Já quase morram esta noite os ecos.”

Herberto Helder

Mais dois, três dias, e iria levantar ferro da ilha dos

náufragos para reviver a casa e o mundo e voltar à

escrita e aos livros nas últimas linhas em que os

abandonara.

Num golpe repentino tinha perdido a inteireza da

fala, no mesmo golpe tinha perdido os valores da grafia

e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente

também, retomara tudo isso mas foi preciso algum

tempo para começar a ter consciência de tamanha

felicidade.

A princípio, por prudência instintiva ou por quase

superstição, evitava comprovar a realidade que me tinha

sido restituída e experimentar-me em coisas que me

eram essenciais. Para reabrir os livros receava que

ainda não fosse a hora, havia que não perturbar a

recuperação. Escrever, nem uma linha depois da prova

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salvadora com que os médicos arrumaram de vez o meu

dossier. Ler, lia os jornais e sem a curiosidade que seria

de esperar talvez porque o fosso que separava a

fortaleza do hospital da humanidade exterior ainda não

estivesse instintivamente vencido.

Não, leitura poucas. Pelo menos por enquanto. E no

que tivesse a ver com escrever, nem pensar. Até sair do

hospital jamais me quis abordar (inquietar, para ser

mais preciso) como sujeito de livros e de escrita, uma

identificação pessoal que eu só muito depois viria a

relacionar com o letreiro-fantasma

BANHOS BANHOS BANHOS

que me perseguira ao longo da minha erosão da

memória e que foi a única recordação que sobreviveu

integralmente a todo esse aniquilamento. (A única não.

A hipótese de loucura, por exemplo, foi outro episódio

de que guardo uma lembrança objectiva)

Quanto ao mais, o desfazer das trevas brancas

repunha-me numa normalidade que me impressionava

por ser tão nítida e tão espontânea, tão decorrente. O

minuto interrompido e, ao fim de todo este tempo,

continuado como se nada tivesse acontecido; o livro

aberto, à espera, as anotações à vista; a frase

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abandonada a meio e prosseguida naturalmente tudo

assim, nada mais simples.

Entretanto, até ao final do internamento ia sabendo

notícias do Outro que eu fora pelas descrições de quem

o tinha visto na névoa antiga, e então nomes, pessoas e

casos voltavam a povoar-me a memória. Sobretudo ao

almoço com a Edite e nos passeias pelo corredor

recapitulava-me e recapitulava o pesadelo quase amável

donde eu me tinha libertado, embora não tivesse trazido

de lá mais do que vislumbres fugazes, instantes ou

insinuações.

Ao percorrer agora o território do hospital que

correspondia a esse cenário, encontrava muito de raro

em raro pormenores que me sugeriam alguns sinais da

aridez da morte branca, atmosferas ou como que

atmosferas, reflexos de luzes. Mais: de passagem, um ou

dois apontamentos casuais levaram-me a reconstruir

momentos concretos da minha marcha de sonâmbulo

iluminado. Os passageiros sem viagem, por exemplo.

Afinal, em frente do elevador o banco onde antes se

dizia que eu tinha visto pessoas-em-estátua (a expressão

não seria minha certamente mas foi assim que a

traduziram) pois bem, esse banco estava lá, existia.

Existia mas vazio, embora me tivessem ouvido falar de

ocupantes “esquisitos” (doentes sem rosto?).

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Praticamente sem ninguém, pode dizer-se, estava

igualmente a sala do televisor que era mais uma

passagem do que outra coisa e que me parecia um

espaço ao abandono com imagens a sucederem-se na

penumbra. Mais adiante ficava um gabinete de

enfermagem de que nunca me tinha dado conta, depois

o corredor, o corredor que fora dos passos perdidos,

depois as toilettes, depois novamente o quarto, e ponto

final, ali acabava o mundo.

Acabava, não. Agora que eu tinha despertado o

mundo recomeçava a partir dos dois companheiros de

hospital que iria deixar em breve e que até lá eram os

meus personagens de cada dia. Vivia-os com atenção.

Com afecto, até, e de certo modo com admiração.

Contava-os à Edite para não lhes perder o fraseado nem

o adejar em torno da vida e da morte.

Cruzado de risos e de dores, Ramires, de olhos

fechados, sonhava com o médico da sua redenção e

esbravejava em roncos infernais para expulsar os aviões

que lhe vinham invadir o sono. Por seu lado, Martinho, o

velho, passava uma parte do tempo entre parênteses, ou

seja, fechado muito com ele nos auscultadores que lhe

davam música para esquecer o só Deus sabe que lhe

estaria reservado. Volta não volta, os dois, para

desentorpecer, metiam-se em tropelias de conversa com

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gargalhadas à mistura e em momentos especialíssimos

Martinho punha-se a dissertar em voz pensada sobre as

artes do bilhar.

Suponho que assentara naquele tema por explorar

um bar de snookers na Nazaré e o snooker não lhe

merecer particular consideração. Segundo ele, o

snooker era bilhar de cavalgada americana (vinte e uma

bolas à procura dum buraco) e se o escolhera para ramo

de negócio a culpa cabia ao triste gosto do público da

Nazaré, essa praia de calçados. Para ele, bilhar, o que se

diz bilhar, só o francês e mais nenhum. Aí é que sim. Aí,

com três bolas em sujeito, predicado e complemento, o

artista de mão de seda traçava uma oratória geométrica

em cima do pano verde que era um pasmo de se ver.

Só tive conhecimento deste discurso no dia da

minha despedida, mas pelo ar enfastiado com que o

empreiteiro Ramires o ouviu depreendi que não tinha

sido novidade para ele. Para mim foi, e de certo modo

tomei-o como um adeus que o velho me endereçava. Eu

partia, sorte minha, ele ficava. Mas pelo sim e pelo não,

queria que eu levasse comigo uma imagem apropriada

da sua pessoa. A dissertar numa cama de hospital em

carambolas à meia volta, efeitos na conta certa, massés

e tabelas de preciosidade, o velho era como se pairasse

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longe dali e da morte, presidindo a uma constelação de

estrelas loucas a rolarem em céu aberto.

Últimos preparativos para a partida. Papéis da

secretaria para assinar; eu, de gravata e gabardina, à

espera da Edite.

Mas era cedo, continuava a ser cedo. Ia ao

corredor, espreitava à janela o arvoredo do hospital, lia

a linhas soltas um semanário desportivo diante dos meus

companheiros que se manteriam, não tinha dúvida, de

olhos bem abertos até à minha despedida. Martinho

desligara o walkman, Ramires não dizia palavra. Eu

verificava a mala, olhava o relógio. Lá fora estava uma

manha luminosa.

No quarto um silêncio em suspenso.

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Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora,

passados meses, já sentado diante destas folhas de

papel, redijo-me em capitulo de liberdade a atravessar a

capital com a Edite ao volante. Escrevo: é um meio-dia

de inverno.

Só que enquanto escrevo tenho chuva na janela à

minha esquerda e isso obriga-me a acrescentar que o

meio-dia que estou a rememorar era (foi) um rasgão de

céu e de luz numa estação sombria. Regressava a casa

em saudação de primavera em pleno mês de Janeiro.

Para trás ficava a pesada babilónia do Hospital de Santa

Maria onde àquela hora estaria um cirurgião rodeado de

toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de alguém

suspenso entre a terra e o céu. Ponho-lhe música de

fundo, uma música burlesca, se possível, como o

“Quarteto das Dissonâncias” de Mozart. Música, porque

não? No renascer de cada vida a música é um privilégio

abençoado, já lá dizia o empreiteiro Ramires por outras

palavras. E por Ramires, lembro-me da tarde em que o

companheiro dele, recostado na cama, se saiu com esta

para o informar devidamente:

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“Amigo Ramires, amigo Ramires, o amigo anda para

aí todo seguro do seu Professor mas sabe o que é que

alguns hospitais fazem agora?”

(Suspensão. Ramires de olhos no tecto, à espera.)

“Fazem”, recomeçou Martinho, “uma manigância

que nem você nem o mais astuto é capaz de

desmaranhar. Levam-no para a sala das operações, está

a compreender, mostram-lhe um cirurgião de

primeiríssima, põem-lhe música se for caso disso,

música para eles é um abelhar para entontecer, depois

atiram-lhe com um anestesista para cima, picadela,

coisa e tal, e assim que o amigo fica a ressonar em ponto

morto, em vez do propriamente cirurgião entregam-no a

um velhadas de prateleira ou a um doutorzeco qualquer

que ande por aí aos caídos. Topou?”

Eu pela minha parte apreciei o aviso, aprecio, quero

eu dizer, e parece que ainda estou a ver o nojo

impassível com que Ramires ouviu aquele cantar de

velhaco, salvo seja. Ouviu, deixou pousar, e como

resposta ao maldizente, convidou-me em voz alta e bem

sonante para uma festa de lagosta, ostras bravas e

champanhe francês que andava a estudar com todos os

pormenores para o dia em que se visse livre daquele

estaleiro de entrevados, disse ele.

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Dois anos. Já dois anos sobre isto e só hoje é que

dou por encerrada para sempre a minha viagem à

desmemória, arquivando-a nestes apontamentos escritos

à deriva por indícios trazidos na corrente. Vou

interrogando e retendo, apurando a caligrafia da

recomposição, e quando chego ao convite do meu

companheiro de hospital para uma celebração de

lagosta com champanhe, não hesito em fechar e pôr

assinatura no texto.

Disse e vivi, Acta est fábula.

Como despedida, a festa anunciada parece-me uma

vinheta condigna mas, se me é permitido, acrescento-lhe

um fio de música.

Janeiro de 1997

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Entrelinhas de uma memória

I)

Memória, Memória Descritiva e, dai, Memória duma

Desmemória poderia chamar-se a este relato se o rigor

científico me tolerasse um título de metáfora tão esguia

e o gosto da escrita o não rejeitasse por exibicionismo

fácil.

Todavia, culpa minha, foi na memória ou na

tragédia da memória que, com maior ou menor erro,

concentrei o acidente vascular cerebral que acabo de

redigir. Se esse enforcamento é aceitável do ponto de

vista neurológico não sei, mas foi a experiência sofrida

que mo ditou na interpretação forçosamente diletante

em que a tentei descrever.

“Uma das minhas filhas diz que o pai opera

memórias”, referiu o Prof. João Lobo Antunes numa

entrevista. Uma expressão feliz, é assim que eu sinto

muito no Intimo esta definição do neurocirurgião. Estou

mesmo em crer que dificilmente encontrarei outra

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melhor nem uma síntese mais expressiva do fenómeno

que designei por morte branca.

Bem sei, a morte branca não existe, eu estive lá.

Tudo o que me aconteceu nessas paragens cabia aos

outros, não me tocava.

Era um glaciar, a morte branca. A memória

congelada.

Se o sonho é já por si uma memória, sem memória

poderá o indivíduo sonhar?

II)

Nas entrelinhas desta Memória ou como se lhe

queira chamar há acontecimentos pessoais que, embora

ocultos, me parecem bastante próximos do acidente

cerebral que acabei de descrever, em particular um

desastre de automóvel ocorrido três meses antes.

Relembro-o:

Tudo aconteceu pela mão do Diabo, tudo

fulminante, brutal. Uma viagem solitária de dez horas ao

volante desde Burgos até Lisboa, um jantar tardio com

António Tabucchi e Marcello Mastrolanni no restaurante

Comida d'Urso e, horas depois, um monte de destroços,

com o meu carro enfiado noutro carro à saída do Parque

Eduardo VII.

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Insensibilidade cerrada a seguir à colisão.

Comportamento automático e memória “automática”,

digamos assim, nas respostas às situações mas tudo num

aturdimento em casulo opaco: factos, pessoas e lugares

fechados ali para sempre.

Entrada nos cuidados intensivos do Hospital de

Santa Maria com três costelas cravadas na pleura.

Dessas longas horas de meia inconsciência, apenas uma

recordação: o flash nocturno dum enorme salão de

pedra com dois ou três médicos a discursarem em

espanhol diante da maca onde eu me encontrava.

Imagens de árvores a escorrerem chuva lá fora as

árvores da cerca do Hospital, possivelmente. Apesar de

o meu traumatismo cerebral não ter sido uma sequela

deste acidente, a alienação da memória que ele

determinou constituiu para mim uma referência

perturbadora. A memória como exponencial comum a

dois desastres.

III)

No que escrevi procurei não ceder a especulações

de circunstancia pela prudência que obriga a cingir ao

factual e ao mais estrito para não cair em domínios que

não me caberiam.

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Intencionalmente, também, não recorri no meu

trabalho à colaboração de quaisquer especialistas. Não

pretendi nem poderia pretender transmitir uma

experiência tão complexa com a segurança, aproximada

sequer, daquela com que a literatura médica já a tem

certamente mais que descrita. Em vez disso,

interessava-me apresentar o testemunho dum homem de

formação corrente na sua abordagem à perda de

identidade que lhe ocorreu em resultado dum acidente

cerebral.

Assim sendo, os erros, imprecisões, preconceitos ou

ideias feitas que tenham sido verificados ao longo da

narrativa devem permanecer como indispensáveis à

espontaneidade elementar e declaradamente pessoal

que lhe pode conceder algum direito para vir a público.

Os erros ou as imprecisões são dados que ilustram a

atitude cultural face à doença do dito homem corrente e,

juntamente com o seu “modo de contar”, podem revelar

a sintaxe dum comportamento de crise e porventura

alguns complexos da sua interioridade.

IV)

Uma prevenção atenta contra as seduções que a

ficção tende a extrair da natureza dum tema carregado

de efeitos e de dramatismo.

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Sobretudo no Diálogo a Duas Máscaras,

interpretado pelos meus companheiros de quarto, esse

risco de apropriação pressente-se à primeira leitura

como não podia deixar de ser, uma vez que se está

diante duma recriação de personagens reais e só como

recriação elas poderiam ser transmitidas.

Hoje Ramires e Martinho estão vivos e

integralmente recuperados. Ouvindo-os, conheci uma

imagem terrena e quase mítica do médico, ao mesmo

tempo dignificante e plena de humor sacrificado no

discurso sobre a morte. Eles não interrogavam os

mistérios da doença, interrogavam a verdade de quem a

poderia derrotar. Os dois, em contraponto, situando o

médico como referência final, transformavam-no em

dramatis personna da sua “commédia della paura”.

V)

Uma última palavra: penso que nenhum escritor

que ama realmente a vida se justifica com a posteridade

no seu esforço de perfeição e nos seus fracassos e que

nenhum trabalha a sua obra como se tecesse um

Requiem de si próprio. Este relato é, pois, uma

comunicação de circunstância. Um apontamento

pessoal. Mas é também um desabafo de gratidão pela

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competência e pela solidariedade que me foi prestada no

meu internamento hospitalar.

Aí verifiquei uma vez mais que assim como a

Literatura não é uma academia de frases também a

Ciência não é um sacrário de tecnologias. Isso tem a ver

directamente com a Ciência como humanismo superior

no enquadramento universal que ainda há pouco foi

sublinhado entre nós por Um Modo de Ser, de João Lobo

Antunes. Uma tal concepção afirma-se no verso de

Álvaro de Campos “O binómio de Newton é tão belo

como a Vénus de Milo” e prolonga-se num dos maiores

génios da física do nosso tempo, Leo Szilard, quando

defende que “o cientista criador tem muito em comum

com o artista e o poeta”.

É nessa sensibilização que manifesto aqui o meu

reconhecimento ao Prof. Rui de Lima e aos Drs. João

Cravino e Luís Beija, da Cirurgia Cardiotorácica do

Hospital de Santa Maria e do mesmo modo ao Prof.

Castro Caldas e Dra. Teresa Pinho e Melo, dos Serviços

de Neurologia daquele estabelecimento hospitalar.

J.C.P.

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Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure :

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http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

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