josé de alencar: religião, história e poder no império do ... · expressão “império do...

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1 José de Alencar: religião, história e poder no império do Brasil. Adriano Ribeiro Paranhos 1 . “Pela cruz, pela coroa, pela lei: caminhai à glória”. Introdução. Esse trabalho está ligado ao projeto de pesquisa, intitulado Senti, pensar e agir em José de Alencar: ideias jurídicas e cultura política no Segundo Reinado, e tem como objetivo analisar o campo intelectual no Brasil de meados do século XIX, a partir dos sentimentos políticos, do pensamento político, da prática política de José de Alencar (1855 — 1877), buscando mostrar a amplitude das ações políticas (os caminhos escolhidos, os grupos aos quais ele pertenceu e as relações sociais estabelecidas por ele) desse intelectual. A temporalidade escolhida para esse projeto leva em consideração o ano de 1855, quando Alencar iniciou a publicação de crônicas no Correio Mercantil, e o ano de 1877 ano de seu falecimento. Alencar começou sua carreira de bacharel (formado em 1850) estagiando com o advogado da Casa imperial Caetano Alberto. Foi professor de História do Colégio Pedro II e também do Instituto Mercantil, integrante do Partido Conservador, deputado e jornalista (carreira iniciada ainda no período em que cursava a faculdade de Direito, quando fundou o jornal acadêmico “Ensaios literários”) e funcionário (burocrático) do ministério da justiça, e depois ministro da justiça no Gabinete 16 de Julho. Também foi consultor dentro do mesmo ministério, ocupando o cargo até 1868. Ademais, reconhecidamente um romancista importante para a literatura nacional. Um ponto importante é pensar o intelectual como um agente dentro da sociedade, que atua politicamente elaborando o que deve ser memorado e o que deve ser esquecido, politizando o passado de acordo com seus posicionamentos diante dos campos de forças que formam as disputas sociais, sobretudo pelo poder. Por isso, devemos problematizar como ele construiu temporalidades, projetos e sujeitos sociais. O que se entende é que memória e história são articuladas politicamente. Ao contar uma determinada história, quem escreve escolhe o papel social e como cada um vai ser mostrado, tudo isso em consonância com o texto. * Doutorando no PPGHIS – UFF, membro do Laboratório Cidade e Poder. Bolsista do CNPQ.

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Page 1: José de Alencar: religião, história e poder no império do ... · expressão “Império do Brasil” (herdeiro da raça latina), numa ... E mais do que isso, há uma assunção

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José de Alencar: religião, história e poder no império do Brasil. Adriano Ribeiro Paranhos1.

“Pela cruz, pela coroa, pela lei: caminhai à glória”. Introdução.

Esse trabalho está ligado ao projeto de pesquisa, intitulado Senti, pensar e agir em

José de Alencar: ideias jurídicas e cultura política no Segundo Reinado, e tem como objetivo

analisar o campo intelectual no Brasil de meados do século XIX, a partir dos sentimentos

políticos, do pensamento político, da prática política de José de Alencar (1855 — 1877),

buscando mostrar a amplitude das ações políticas (os caminhos escolhidos, os grupos aos

quais ele pertenceu e as relações sociais estabelecidas por ele) desse intelectual. A

temporalidade escolhida para esse projeto leva em consideração o ano de 1855, quando

Alencar iniciou a publicação de crônicas no Correio Mercantil, e o ano de 1877 ano de seu

falecimento.

Alencar começou sua carreira de bacharel (formado em 1850) estagiando com o

advogado da Casa imperial Caetano Alberto. Foi professor de História do Colégio Pedro II e

também do Instituto Mercantil, integrante do Partido Conservador, deputado e jornalista

(carreira iniciada ainda no período em que cursava a faculdade de Direito, quando fundou o

jornal acadêmico “Ensaios literários”) e funcionário (burocrático) do ministério da justiça, e

depois ministro da justiça no Gabinete 16 de Julho. Também foi consultor dentro do mesmo

ministério, ocupando o cargo até 1868. Ademais, reconhecidamente um romancista

importante para a literatura nacional.

Um ponto importante é pensar o intelectual como um agente dentro da sociedade, que

atua politicamente elaborando o que deve ser memorado e o que deve ser esquecido,

politizando o passado de acordo com seus posicionamentos diante dos campos de forças que

formam as disputas sociais, sobretudo pelo poder. Por isso, devemos problematizar como ele

construiu temporalidades, projetos e sujeitos sociais. O que se entende é que memória e

história são articuladas politicamente. Ao contar uma determinada história, quem escreve

escolhe o papel social e como cada um vai ser mostrado, tudo isso em consonância com o

texto.

*Doutorando no PPGHIS – UFF, membro do Laboratório Cidade e Poder. Bolsista do CNPQ.

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Evidente que é preciso teorizar sobre o intelectual do qual se fala, no entanto, é de

grande importância também entender na prática como esse intelectual agiu. Ver o que ele

valorizou como parte da cultura e da história do país e o que ele rechaçou. No caso de

Alencar, tal análise é possível, haja vista que a metodologia tem que ser compatível com o

que se pretende estudar.

Escolhemos como fundamento teórico a História intelectual, cujos elementos

articulam a vida profissional, a política e a pessoa, buscando analisar todas as suas

influências. Baseamo-nos na proposta metodológica de Carl Schorske, na obraViena fin-de-

siècle. Essa escolha se deu pelo fato de entendermos que o intelectual José de Alencar fez

diagnóstico, prognósticos, tentou interferir na sociedade de variadas formas. Ele se colocou

nos espaços públicos, como os jornais e o próprio parlamento, para expor suas ideias sobre

variados temas sociais. Desse modo temos como objetivo metodológico investigar como as

vivências de José de Alencar marcaram sua ideia da realidade social brasileira do século XIX.

Entendemos a experiência intelectual como uma experiência social, e buscamos como

a vivência política de José de Alencar se expressou na sua atuação como teatrólogo,

romancista, jornalista, jurista e político.Assim, é possível entender como a parcela que dirigia

o país pensava a nação (funcionamento da sociedade e das instituições políticas e jurídicas)

como um todo, tentando guiar os seus caminhos, os intelectuais do século XIX tinham como

características de se colocar no papel de “conhecedores da verdade”.

Religião, história e poder.

A epígrafe nos dá o tom da maneira como devemos tratar o pensamento político de

José de Alencar. É preciso dizer logo de início que vamos trata-lo como um intelectual filiado

política e religiosamente ao catolicismo. Uma tríade importante para problematizarmos as

relações de poder no Brasil do século XIX. E mais: é possível com isso entendermos como

mundo ibérico foi influenciado pelo tomismo e como se deu a apropriação de elementos

teológicos pela esfera secular, sobretudo no campo jurídico. O sentido histórico para a política

brasileira seria chegar à glória resguardado o país pelo autoritarismo e violência representados

pela cruz e pela lei.

Nos seus panfletos, escritos jurídicos ou nos romances as ideias religiosas dão sentido

às ações, à história e ao poder estabelecidos dentro da sociedade brasileira. Visamos com esse

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trabalho analisar o modo como Alencar pensou o papel da religião, como tal instituição deu

sentido a hierarquia, submissão e obediência na sociedade patriarcal do Brasil.

Todas essas ideias apresentadas a seguir, José de Alencar expôs durante sua intensa

participação política durante a década de 1860. Nesse período ele publicou um número de

panfletos que tentavam mobilizar a opinião pública para suas ideias. Foi nesse mesmo

período, depois de mostrar publicamente ao imperador o seu viés monarquista, Alencar

chegou ao seu mais alto cargo político, o de ministro da justiça.

Uma característica do pensamento político de Alencar foi a de que o Brasil era o país

“escolhido”. “Cumpre não esquecer que o Brasil representa na América a civilização da raça

latina, a quem indisputavelmente compete a primazia intelectual, como a raça saxônia a

atividade industrial” (ALENCAR:1881:134). Nesse trecho, ele expressa a ideia de nação

escolhida dentro os povos americanos. E o que está subscrito nessa passagem é o fato de ser

fundamental nessa “escolha” uma aliança harmônica que tinha como pontos fundamentais a

submissão e a obediência para que fosse ratificado tal destino.

Alencar defendeu um império, que por si já mostra o viés que ele deu a sua forma de

pensar a história e o poder no Brasil dos oitocentos. Dessa forma, é possível dizer que o tipo

de sociedade projetada por ele tinha sim um caráter autoritário. Não por acaso, ele defendia a

expressão “Império do Brasil” (herdeiro da raça latina), numa clara alusão à formação

histórica brasileira e à força que tal dizer tinha. No processo de constituição do país enquanto

nação independente. Alguns aspectos ligavam religião e poder político, que a partir desse

momento chamaremos de teologia política.

Fica evidente também nos escritos de Alencar uma “fantasia (nada mais é do que a

expressão de um desejo) do escolhido” (CERQUEIRA FILHO:2005:19), e isso nos dá indício

para pensar como essa questão estava ligada à política como missão e também a pensarmos

como Alencar estava imerso numa ideia política de longa duração. E o que representa essa

fantasia, senão um desejo de Alencar? Mas ao falar isso publicamente, ele expôs também o

desejo dele, de chegar ao poder e poder mandar de acordo com suas ideias políticas.

É interessante dizer também que, mesmo com o pensamento de país “escolhido”,

Alencar mostrou uma preocupação grande com o avanço do republicanismo junto à atores

políticos importantes da sua época. Isso explicita uma ambivalência nessa questão do

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“escolhido”: se era escolhido, a sua formação deveria ser a condutora para o final “feliz”; mas

havia um quê de tristeza nas falas dele sobre os rumos do país.

Para Alencar a constituição era:

Constituição é o direito interno revelado; é a natureza civilizada reconhecendo no homem os direitos que lhe foram conferidos pela natureza inculta e primitiva. Constituição é a fonte de que emana toda a lei interna, como Deus é a fonte de toda a lei racional, da qual a lei positiva é somente a expressão viva. Eis a lei das leis; a lei-mãe, a lei criadora.

No trecho acima, produzido quando se discutia a codificação civil na década de 1860,

o que fica evidente é o fato de José de Alencar trabalhar com a ideia de direito revelado,

marcando o seu posicionamento político. Um pensamento que tem em si um caráter secreto,

portanto, um caráter de revelação. Dessa forma, algumas pessoas dentro da sociedade eram

“iluminadas” para estabelecerem as normas jurídicas, (no caso dele, os juristas). Em outras

palavras, a constituição brasileira de 1824 tinha sido inspirada pela divindade revelada ao

“sacerdote” terreno pelo “sacerdote” supremo, bem como o poder que tal carta depositava no

imperador. Logo, tinha em si também um sentido de verdade, de algo imutável e

inquestionável. Uma evidente influência do direito canônico.

E mais do que isso, há uma assunção do modelo divino de governo, cujo poder terreno

deveria ser à imagem e semelhança do poder divino. Uma ideia que se fundamenta na

transcendência do poder. Por esse motivo, falamos em teologia política, haja vista que o

pensamento político moderno se apropriou de elementos religiosos para a administração do

secular. O governo “bom” seria aquele que seguisse o exemplo do governo de Deus, que

também legava à sua “criação” as leis perfeitas (e “sagrada”) para regularem as atividades

humanas.

A importância que Alencar deu à religião católica nos ajuda a entender esse modo de

pensar e a maneira como ele buscava legitimidade para o seu pensamento e para a instituição

que defendia, tornando a Constituição uma espécie de “livro sagrado” do país. Haja vista que

naquele instrumento jurídico estavam escritas as palavras que deram sentido à criação do

Brasil como nação, idealizando-o como um mito da criação das instituições brasileiras e

retirando o aspecto político existente na elaboração do Estado brasileiro.

A partir disso, o homem teria alguns direitos “naturais”. Era a constituição que dava o

padrão para toda e qualquer legislação que fosse feita dentro do país, sendo comparada com a

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lei divina, que era o “espelho” para as legislações. Desse modo, Alencar também colocou a

racionalidade subordinada à autoridade de Deus. O desenvolvimento da razão humana tinha

que estar em conformidade com as leis divinas. Um pensamento pré-moderno no que se refere

às leis. Isso porque toda e qualquer lei tinha uma mesma fonte: Deus.

Sobre a constituição brasileira é fundamental perceber um sintoma claro dos interesses

que pautaram sua criação. Centralização política, preocupação com a integridade territorial,

forma de governo monárquico, além da religião oficial. O que se evidencia é uma

preocupação em primeiro lugar com pontos que dariam forma ao Estado nascente. Tal

situação faz saltar aos olhos que as pessoas ficaram em segundo plano, ou seja, submissas ao

plano de governo e poder estabelecidos.

Sem dúvida, a religião merece um destaque maior. A eleição do catolicismo como

religião oficial deve ser visto além da busca pela legitimidade para o novo país através da

referida instituição. É fundamental que olhemos para essa escolha como parte do projeto de

poder estruturado por D. Pedro. Ele se colocou como defensor perpétuo do Brasil, e mais

como um imperador augusto, ou seja, divino, por consequência, todas as outras pessoas que

vivessem no império seriam súditas, quer dizer, submissas a ele. Isso foi importante para o

projeto e a forma como o poder foi estabelecido na sociedade brasileira no século XIX. Muito

mais do que sacralizar a política, D. Pedro escolheu uma religião que tivesse bases fundadas

na hierarquia e harmonia social (pensamento tomista), com expectativa de obediência e

submissão, afinal de contas os movimentos de contestação nos mostram que nem todos

aceitavam tal ordem.

Esse pensamento hierárquico se mostra com clareza quando o tema é a cidadania.

Primeiro que havia qualificação entre as pessoas e segundo porque algumas delas jamais

poderiam exercer de maneira igual todos os direitos que constavam da carta constitucional,

como era o caso dos libertos, que ficavam impedidos de exercerem a cidadania plena.

Portanto, foi uma constituição que não universalizou os direitos dos cidadãos para atender um

projeto de poder das classes dominantes, pois foi com o apoio dessa parcela da população que

a monarquia, o escravismo e a propriedade permaneceram como pilares sociais.

Tal qual o Brasil, o imperador Pedro II foi imaginado por Alencar com grandeza. Até

mesmo com um sentimento de soberba em relação ao poder que o imperador tinha em suas

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mãos, colocando também a nação com um papel de subserviência necessária ao domínio

estabelecido pela monarquia.

Em nome da liberdade que estava na constituição (dentro do paradigma da

modernidade, o que estava na lei era o que importava), o imperador ocupava uma posição de

poder que lhe dava um dever: velar pela nação. Esse dever pode ser entendido como uma

forma de ocultar os desejos daqueles que eram súditos do imperador. Assim, o imperador

tinha que vigiar, proteger e não abandonar a nação que lhe dera poder, pois tinha sido aquela

nação que “abdicara” da sua dignidade em favor dele.

O poder moderador do qual o imperador D. Pedro II era detentor não era,

evidentemente, um poder comum. Diferenciava-se pelas suas “atribuições superiores”,

destacando-o diante dos demais e quase pertencendo a Deus, dada a sua importância. Todo

esse poder estava nas mãos de um homem à altura: o esplendoroso Pedro II. E o mais

importante: a nação, em prol do “bom” governo e de uma “proteção perpétua” havia legado

ao monarca brasileira seu poder. A soberania do imperador governava as liberdades da nação.

Alencar acrescenta à sua construção do sistema de poder em torno do imperador:

Situado na cúpula do sistema, neutro e inacessível, o monarca, poder nacional, plaina sobre os outros, meros poderes políticos. Ele não exprime somente, como a legislatura, uma delegação; exprime um depósito permanente e sagrado. O imperador é mais do que o primeiro representante da nação; é seu defensor perpétuo, o magistrado supremo do estado (ALENCAR:1866:57).

De maneira análoga a Deus, o lugar ocupado pelo imperador, de acordo com Alencar,

não poderia ser alcançado jamais por qualquer que fosse o ser humano. Era um poder superior

e supremo, exatamente por ser sagrado, sendo inviolável por qualquer força abaixo de Deus.

O imperador, a partir do modelo de “príncipe perfeito”, é marca do pensamento tomista em

Alencar.

De acordo com a proposta de trabalho apresentada, é preciso entender igualmente o

sentido litúrgico do poder, ao qual Alencar se filiou. Governar exigia também uma cerimônia.

Era preciso glorificar e aclamar, mostrando o fascínio e encantamento com o poder do qual o

Imperador era a principal figura representativa. Sobretudo em público, com panfletos que

tinham como estratégia de divulgação o nome do monarca.

A força ativa do poder moderador é sobreconstitucional, ele se exerce em um espaço superior, intermédio entre a constituição, soberania escrita e anterior,

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e o voto, soberania latente a atual (...) nenhum poder, nem mesmo o povo, tem no domínio da constituição, faculdade igual (ALENCAR:1866:64).

Sua concepção autoritária, dentro do constitucionalismo moderno, foi colocada

claramente outra vez. Nesse momento, a intensidade do poder do imperador foi mostrada mais

absoluta ainda. Dentro do constitucionalismo moderno, no qual a constituição passou a ser o

elemento jurídico que limitava o poder, Alencar colocou o poder moderador num espaço que

suplantava a constituição. A mesma constituição que ele lutou para defender. Isso mostra a

filiação política dele, que foi muito mais do que ser um agente ativo do partido conservador,

de alguém que conformava ideias teológicas com a política.

O poder do monarca era tamanho que foi caracterizado como “sobreconstitucional”.

Desse modo, nem mesmo a constituição teria força para limitar sua ação. Temos, assim, mais

um elemento que nos mostra que Alencar se apropriou das ideias modernas para legitimar seu

pensamento com traço forte de autoritarismo. O poder moderador era mais forte do que a

constituição que o criara.

A constituição brasileira, promulgada por um príncipe heróico, elaborada por conspícuos varões, não podia deixar imperfeita a cúpula do grandioso edifício. A coroa aí está revestida de tal pujança, que sendo necessário pode fazer parar a nação um instante, como Josué fez parar o sol (ALENCAR:1866:67).

Nesse caso, ao considerar a constituição de 1824 “promulgada”, Alencar ratifica mais

uma vez seu posicionamento político no período. Ademais, a noção tomista de perfeição é

outra marca da maneira como ele construiu o seu pensamento político. Os autores da

constituição, nessa perspectiva da perfeição, não deixariam a lei máxima do país com

qualquer que fosse o erro, reunindo todas as qualidades para o funcionamento do sistema

político. A perfeição foi de tal modo, que o imperador ocupava um lugar além da própria lei

que “limitava” os poderes no país.

A perfeição da constituição estava no fato de ela servir a um modelo de sociedade

hierarquizada, cujos atores eram qualificados ou desqualificados de acordo com a estrutura

projetada, que tinha como mote a exclusão social, sobretudo de uma maioria escravizada e

mestiça.

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O imperador era investido da autoridade divina para governar. Sua “escolha” se dava

para a organização e conservação da organização social e política estabelecidas pelos

“fundadores” do império. Dessa forma, é possível marcar alguns pontos: o monarca como o

símbolo de “pai” e como divindade; sem deixar de ser aquele que dava “amor”, mas também

castigo. Aquele que cobra a submissão e a obediência como moeda para a sua ação.

É preciso ainda dizer que, o Imperador, investido com todo o poder defendido por

Alencar, se transformava em “senhor do ser”. Era ele, em última instância, que decidia a vida

e a morte, fosse das pessoas condenadas às penas capitais, fosse do país, que na visão de

Alencar estava sendo destruído pela corrupção das instituições. Sendo assim, o que podemos

destacar nesse trabalho é a forma como Alencar absorveu o modelo hobbesiano que tinha

como mote a produção da submissão através do medo e do terror. Ademais, a obsessão pelo

controle político brasileiro.

Considerações finais.

Concluímos dessa maneira que, José de Alencar se valeu do paradigma teológico

político para justificar suas ideias e ações políticas, o que nos dá a possibilidade de pensar

como Alencar defendeu instituições liberais sem o ser. Pensamos que a religião foi uma das

instituições que contribuíram de modo contundente nos caminhos autoritários assumidos por

Alencar.Podemos perceber também em Alencar um sintoma claro, que foi o desejo de

mandar. Ele parecia se realizar na figura do monarca, que era quem expressava a maior força

decisória no Brasil dos oitocentos. Para “sentir” a realização do seu desejo através da ação do

imperador, Alencar se colocou de modo submisso ao monarca, mostrando sua opção política

diante do público. E isso nos deixa claro como a submissão foi eficaz na vida dele.

Fontes.

ALENCAR, José de. Esboço jurídico. Rio de Janeiro: B L Garnier Editor, 1881.

ALENCAR, José de. Discursos parlamentares de José de Alencar – Deputado Geral pela

província do Ceará (1861 a 1877). Brasília: Câmara dos deputados, 1977.

ALENCAR, José de. Ao imperador: Cartas de Erasmo. Rio de Janeiro: Tipografia de

Candido Augusto de Melo, 1866.

Bibliografia.

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LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Ensaios sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro:

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QUINET, Antônio. A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.

_______________ Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed, 2004.

SCHORSKE, Carl. Viena fin-de-siécle: política e cultura. São Paulo: Companhia das letras,

1988.