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JOSÉ BRISSOS-LINO

Ânsia de eternidade

POEMAS

A Ovelha Perdida

2019

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ÍNDICE

Abertura / 05

Poemas

A ansiedade de Baruque / 06

A razão dos pobres / 07

Abraão e Loth / 08

Amor / 09

Ânsia de eternidade / 10

À porta de Samaria / 11

Bethel / 12

Caminhos direitos / 13

Cefas / 14

Cisternas / 15

Éden / 16

Em paz me deito / 18

Estico os olhos sobre a Tua lei / 20

Eu sei que voltarás / 21

Eu tenho uma estrela só para mim / 22

Fé / 23

Há caminhos / 24

Há qualquer coisa no céu / 25

Há um rio / 26

Imensa e absurda era a voz / 27

Jericó / 28

Na saturação do Amado / 29

Não temas, ó pequeno rebanho / 30

No esconderijo do Altíssimo / 31

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O Cordeiro / 32

O Eterno esforça-se por entrar nos templos / 33

O hálito de Deus / 34

O olhar do anjo / 35

Ontem ouvi um anjo e calei / 36

Oração do pão / 37

Oração / 38

Samaritano / 39

Semeador de estrelas / 41

Neste Natal / 42

Neste Natal não tenho sapato / 43

O regresso dos magos / 44

Os magos / 45

Os pastores / 46

Notas biográficas / 47

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ABERTURA

A presente obra reúne um conjunto de pequenos poemas dispersos sobre

temática espiritual e religiosa, escritos ao longo de alguns anos e ainda não

publicados em livro.

As questões da fé e da eternidade, a revisitação de figuras, imagens e

episódios bíblicos, em particular os tocantes às temáticas da transcendência e da

relação com Deus, pairam claramente sobre a paisagem poética aqui apresentada,

assim como alguns exercícios livres de meditação ou elevação (chamemos-lhe

assim).

No fundo trata-se do discurso poético de um homem de fé, desenvolvido

mais em jeito de reflexão pessoal. E o que é a Poesia senão isso?

Como bem dizia Miguel de Unamuno “acreditar em Deus é antes de mais

e sobretudo querer que ele exista” (Do Sentimento Trágico da Vida, 1913).

É por isso que esta obra pode constituir inspiração significativa para quem

for capaz de a saber ler, e elevação espiritual para quem aspira à eternidade e sente

que ela está a passar por aqui.

O Autor

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A ANSIEDADE DE BARUQUE

Não, Baruque, não queiras apenas

um salvo-conduto

que te livre da fome, da peste e da guerra

só a ti

não peças para pisar um chão

de algodão

não temas a vida, nem a morte

o futuro é uma janela virada ao mar

seca as lágrimas com a música

das estrelas

ao som da voz do Eterno

e descansa.

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A RAZÃO DOS POBRES

Sempre terás contigo

os pobres

para te lembrares de que és pó

e que a ele voltarás

para dares um copo de água a Jesus

como a um necessitado

sempre terás contigo

a oportunidade dos pobres

para exerceres misericórdia

na terra do egoísmo

para não perderes de vista

a imensa fragilidade que te habita

para entenderes que o cerne da vida

está escondido dentro do peito

para desviares os olhos de ti

para os outros

e poderes ver-te ao espelho

à tua volta sempre estarão os pobres

enquanto fores pobre e egoísta

como Judas, o Iscariotes.

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8

ABRÃO E LOTH

Livro de Génesis, 13

Os espaços confinados do clã afastam sempre

os corações do rebanho

suscitam ambições, aventuras

numa quase ilusão de liberdade

tornam as escolhas imprevisíveis

mais difíceis do que parecem

no topo das colinas do mundo somos todos cegos

nem sempre o verde é verde

nem sempre o brilho é luz

nem sempre a vastidão dos espaços compensa

o aconchego da paz

só depois da separação das águas o patriarca

recebeu a terra e a semente própria

gerada nos seus lombos

em forma de promessa

só depois se deu conta de que os números

podem ser uma pedra dura

no caminho.

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AMOR

“O que me interessa é que se viva e se morra pelo que se ama.”

Albert Camus, “A Peste”

O amor é o alfa e o ómega

o fio condutor da História

dá sentido ao som do sino

à língua dos anjos

ao martírio do corpo esgotado

o amor não se engana porque não conhece

os trejeitos de ser talvez

nem a linguagem do se

não assenta os pés no chão

pelo amor se nasce e se vive

por ele se morre

mas o que mata não é amor

são desencontrados equívocos e dissonâncias

as zonas interiores de sombra

que nos habitam

se eu morrer um dia que seja por amor

já que é por ele que vivo.

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10

ÂNSIA DE ETERNIDADE

O turno da noite, a monótona passadeira do dia

as horas inéditas

clamam juntamente por eternidade

chamam-na com renovada insistência

a vida toda não chega

tem que haver mais

o pulsar de um coração pleno

empenhado e completo

transborda o cálice

de todos os tempos

supera as vasilhas vazias

disponíveis no mercado das almas

empurra para cima

agarra o devir.

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À PORTA DE SAMARIA

À porta de Samaria recolhia ele

despojos antigos

alguns traumas assírios

ódios de estimação

velhas desconfianças

e anunciava o reino aberto

à beira do poço

contava ele

formigas no carreiro

ao cantar das águas

como quem escreve

no chão do templo

aos pés da Samaritana

colava ele

inúmeros cacos de vida breve

quebrados na esquina das lágrimas

bordadas de incompreensões

colava as sandálias da paz

nuns pés pequenos

delicados e doridos

de mulher.

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BETHEL

Sobre a velha pedra branca

em Bethel

construí a paz de que precisava

despois de descobri a entrada perdida

subindo ao céu toda a noite

sem frio nem calor

por entre anjos, suspiros e nuvens

naquela casa de Deus

encontrei a paz do caminhante

na pausa das peregrinações

em busca do seu justo lugar onírico

de repouso

prazer

e futuro.

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CAMINHOS DIREITOS

“Há caminhos que ao homem parecem direitos.”

Da Bíblia

Os caminhos nunca são direitos

cavam-se com os pés na terra dura

afastadas as pedras

a vida não conhece régua

nem esquadro

cada dia segue-se a uma noite

vão-se equilibrando à vez num trapézio

sem rede

em exercício irrepetível

e arriscado como um hesitante improviso

ao piano

há caminhos que parecem direitos

segundo a ilusão do olhar.

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CEFAS

Cefas quis fazer do mar tapete

em horas revoltosas

desafiou o Mestre

lançou um boomerang com a boca

e foi toda uma adrenalina a saltar

para fora da zona de conforto

Cefas tornou-se pedra pesada

um Pedro afundado na humidade da noite

entre um vento sibilino e cortante

e a incerteza cavalgante de ondas sucessivas

a bordarem rendilhados de espuma

debaixo dos pés calosos do pescador

só uma mão providencial o separou

dos peixes acordados

a mesma que havia de ser perfurada

por pregos brutais

em forma de escárnio religioso

depois de ter ouvido cantar um galo

desafinado e insistente

fora de tempo.

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CISTERNAS

“ (…) a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas

rotas, que não retêm águas.”

Jeremias 2:13

As cisternas não têm que ser rotas

não têm que se ficar

pela contagem das horas

não têm de reflectir a custo

o céu dos pardais

embora não sejam manancial

nem mar

nem rio

comportam mais do que devem

além das águas

enquanto se não acham

vazias

melhor seria que fossem fontes

agitação em vez de veludo sem carácter

o melhor era que se entregassem

sem condições.

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ÉDEN

No princípio era uma inocência sem mantos

Na infância do anthropos o céu era um puro azul

oceânico

e a noite esmagava de prazer

na quadratura do silêncio

a criação sagrada sem fertilizantes químicos

entre animais curiosos

desvairadas criaturas

árvores a povoar um mesclado e imenso verde

águas sem pecado a cantar baixinho

nas pedras.

Depois aconteceu

uma escolha e vieram nuvens prenhes

das águas de cima

abertas as fontes superiores

mais o furioso ribombar dos céus

montanhas a vomitar das entranhas

fogo

e ódio primitivo

alguém matou toda a inocência

pela calada

e a terra provou o sangue quente

e jovem

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Cobriram-se então os corpos iniciais e belos

com peles toscas e ensanguentadas

de caminho inventaram a vergonha

a culpa

e as horas mortas

as gémeas doença e dor lamberam os beiços

em coro

Então já ninguém parava um momento

para ver a arquitectura duma flor singular

em reverente silêncio.

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EM PAZ ME DEITO

Em paz me deito

sobre amáveis nuvens de espuma

peregrino nos trilhos da paz

e caminho com sapatos de algodão

no sótão onírico das fantasias

aconchego temores insistentes

numa flor eterna e macia

a pairar no espelho de um lago

na quietude da tarde parada

não, não quero acordar sem conseguir

desvendar o segredo

da nuvem sem tempo que insiste

imóvel

em olhar-me de cima

como quem tenta desvendar

o impossível.

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19

ERA UMA VEZ UM CORDEIRO MUDO

Era uma vez um cordeiro mudo

caído discretamente do céu

como orvalho numa manhã limpa

a refrescar o acampamento dos homens. Comeu o pó

de velhos e desencontrados caminhos

bebeu o fel da maldade

até que o puseram no altar do holocausto

perante sacerdotes mortos

por dentro.

E de repente sobreveio um silêncio gélido

que apagou o sol

e no vermelho do sangue derramado

estava reflectida a cara das nuvens

lá no alto.

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20

ESTICO OS OLHOS SOBRE A TUA LEI

Estico os olhos sobre a Tua lei

aos poucos como quem cresce

por dentro

avanço sem esforço para alcançar

os altos segredos

as Tuas letras mantêm-me direito

olho em frente com atenção

para agarrar o Teu elevado pensamento

e propósito.

Sopro o pó dos livros sagrados

com cuidados mil

descubro neles o sabor do mel de Jeremias

do sal do Mar Morto

sinto o incenso do Templo.

Agora só me resta voltar ao início

enganar o desconforto do corpo

nas tábuas

e aprender tudo outra vez.

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21

EU SEI QUE VOLTARÁS

Voltarás tal como a aurora

que sempre se levanta

logo depois da treva nocturna

como a onda retorna à praia

uma e outra vez

farei minhas as vozes das aves

na contemplação das horas

sempre que um tímido silêncio

se equilibrar de pé

esperarei o restolhar dos anjos

por entre suspiros profundos

de um cansaço branco

as muitas águas não afogarão

este pássaro verde

nem as luzes feéricas da cidade

ou as palavras loucas dos homens

eu sei que voltarás.

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22

EU TENHO UMA ESTRELA SÓ PARA MIM

“(As estrelas) cintilavam só para mim no regaço do céu.”

Pablo Neruda

Eu tenho uma estrela só para mim

lá longe

mas tão perto

arde de paixão celeste no azul

ilumina os olhos por dentro

aquece as veias em dias sombrios

preenche o regaço onde se resguarda

toda a esperança do mundo

chamam-lhe Estrela da Manhã

porque está sempre lá. Mesmo depois

da noite.

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23

“Ele tinha imenso medo das pessoas que acreditavam em Deus.”

Kenzaburo Oé

Como o avassalador Sol do meio-dia

ou um manto branco de luar

que cobre a noite toda

como o rio nervoso e revolto

ou a imensidão de um lago aquietado

como a solidez esmagadora da montanha

ou um vale estreito e verde

bordado de encantos floridos

como o elefante majestoso

ou uma garça graciosa no sapal

assim é o homem que crê

assim se vê a força da fé

o vento indomável que faz da vida

razão

sentido

propósito

e a estica para lá do impossível

nos interstícios de Deus.

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24

HÁ CAMINHOS

Há caminhos

que ao homem parecem tortos

mas endireitam as direcções

da vida

esperam-se longos

e são directos

as margens são frutas

coloridas

diversas

de sabor incerto

o caminheiro faz o caminho

e tece o destino.

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25

HÁ QUALQUER COISA NO CÉU

Há qualquer coisa no céu

por entre nuvens envolventes

será o Sol irado

um anjo desbocado

ou um disco voador

prenhe de energia

a querer romper?

Há qualquer coisa na terra

como uma luz misteriosa e bela

que provoca cá em baixo

um incrível teatro de sombras.

Há qualquer coisa mais do que

o recorte da árvore no fundo ocre.

Qualquer coisa que está para além

dos sentidos

que a pressentem.

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26

HÁ UM RIO

No dia da notícia da descoberta de um rio subterrâneo no Amazonas, com milhares de

quilómetros.

Há um rio que corre debaixo dos pés

nem Amazonas nem Hamza

refresca as ardentes profundezas

do ser

um subterrâneo fluxo de vida

nem Hades nem Aqueronte

uma corrente de águas que corre

debaixo das fundações do templo

de Ezequiel

à maneira do Éden

nem Tigre nem Eufrates

apenas uma presença serena

uma marca registada

de Autor.

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27

IMENSA E ABSURDA ERA A VOZ

"Ninguém falava dela, porque

era imensa."

Herberto Helder, Fonte - I

Imensa e absurda era a Voz

dentro de mim

transbordava quente pelas margens

dos olhos

e inundava sem custo

a insustentável angústia

do peito

era uma voz serena e bastante

despida de palavras

na eloquência de todos os silêncios.

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28

JERICÓ

Buzinas quebraram grossas muralhas

tecidas de silêncios e soberba

nem os vigias cananitas conseguiram

saber a tempo o som telúrico

arremessado contra os muros

e evitar a derrocada

do orgulho secular

as pedras de Jericó clamaram

que passado um revolto Jordão

tudo o mais era possível

na reivindicação duma promessa

de leite e mel

onde até a vida escondida de Raabe

acabou transformada em genealogia

surpreendente

e redentora.

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29

NA SATURAÇÃO DO AMADO

Em memória do meu antigo pastor, Alfredo Machado

Voz forte na proclamação da fé

gerada por convicções quentes

brota das profundezas da alma

ressoa na eternidade

plantado nos campos da Palavra

o pregador ajuda tantos a erguer

a sua casa na Rocha

assim é o homem de Deus. Agora descansa

do esforçado labor e aguarda

em lugar sem tempo

nem espaço

na saturação do Amado.

24/6/13

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30

NÃO TEMAS, Ó PEQUENO REBANHO

Não temas ó pequeno rebanho

que o céu

embrulhado no negrume

não se precipitará

sobre vossa cabeça

não temas porque há águas tranquilas

à vista

amanhãs de pastos ainda verdes

não temas que vosso pastor está

à distância de um piscar de olhos

podeis repousar em sossego

que a brisa lambe o rosto

o óleo na cabeça afasta os parasitas

o melancólico som da flauta aquieta

faz transbordar

vosso cálice da paz.

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31

NO ESCONDERIJO DO ALTÍSSIMO

“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo”

Salmo 91

No esconderijo do Altíssimo dou largas ao desejo

em segurança me liberto

e sou

é lá que viajo num tempo sem tempo

mergulho num lago de abundância

e respiro a paz dos dias inteiros

na intimidade do amor

à volta de um nome

solto um vulcão de riso

e prazer incontido.

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32

O CORDEIRO

Jovem e perfeito à vista

o Cordeiro satisfaz em pleno

a exigente justiça divina

transporta em si o sangue rubro

e redentor

que projecta vida

ad eternum

assume inteiramente o sacrifício

como missão maior

na reconciliação

entre a miséria humana

e o Criador

O Cordeiro restaura a Esperança

recupera o futuro.

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33

O ETERNO ESFORÇA-SE POR ENTRAR NOS TEMPLOS

O Eterno esforça-se por entrar nos templos

onde invocam o Seu Nome

quase em vão

envia ousados jorros de luz para inundar

as sombras do sofismo religioso

destruir silêncios de pedra fria

túmulos de vaidade travestidas

de boas vontades

méritos próprios

desvairadas penitências.

O Eterno está cansado

de ficar do lado de fora

junto dos sem-abrigo que muito ama. Mas o Eterno

não esquece os adoradores de deuses estranhos

aconchegados nos recantos dos templos

erigidos em Seu Nome. Nem todas as almas sinceras

peregrinam por entre gloriosas penumbras

de joelhos doridos

ouvidos engasgados

a escutar sustenidos onde não há

e a remeter os olhos vazios

para uma longa espera. Vacilam no tempo

entre soluços

e bocejos.

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34

O HÁLITO DE DEUS

O pássaro grandioso rasga no azul

uma evolução suspensa

só o vento escuta a ambição

rapace

a beleza distante

esmagadora

que cobre o chão

não consegue distrair o olhar

cirúrgico

telescópico

aquilino

treinado em ver o mundo

a partir de cima

apenas o rei Sol se permite

sentar um pouco mais acima

nada como lavar os olhos de águia

na paisagem soberba

rarefeita

e caminhar com as asas

nas alturas

mesmo à beira do hálito

de Deus.

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35

O OLHAR DO ANJO

O olhar levantado do anjinho barroco

preso num quadro

ensaia expectante curiosidade

no regaço da manhã

mas a postura de um corpo cansado

desgastado

as asas toscas

o cabelo desgrenhado

a boca que exibe uma espécie de sorriso

ao contrário

nada faz pensar que não seja apenas

mais uma fantasia barata

de feira.

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36

ONTEM OUVI O ANJO E CALEI

Ontem ouvi o Anjo e calei

telúricos ruídos de fundo

a voz sem voz riscou a ar rarefeito

e nem espantou os pardais

interiores

apenas mexeu com ouvidos de ouvir. E lá fora

as nuvens deslizaram no azul

ainda mais devagar.

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37

ORAÇÃO DO PÃO

Dai-me, Senhor, o pão nosso de hoje

ajuda-me a mastigar bem o de ontem

antes que chegue o de amanhã

dai-me, pois, esse pão

mesmo que o encontre depois de muitos dias

sobre as águas da existência

ajudai-me a repartir esse pão abençoado

que não é meu

mas nosso

como se desse ao próximo

um pedaço de mim mesmo

como tu Te deste a nós

mas todo.

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38

ORAÇÃO

Na hora de estar perto

procuro e encontro

peço e recebo

bato à porta

e diante de mim

alguma coisa se abre

na hora de estar perto

o tempo não conta

centelhas únicas de intimidade

agarram-me ao momento

e esqueço o século

na hora de estar perto

o beijo ou a palavra

suportam-me o peso dos dias

e descubro dentro de mim

um super-homem que voa

confiante

por cima de todos os muros.

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SAMARITANO

Não ficaram retratos do homem de Samaria

mas parece que tinha uns olhos insistentes

e dificuldade em afastar o rosto. Não viajava sozinho

tinha a compaixão por companhia

e no alforge um coração simples

e atento

sem arestas ancestrais

desencantou a desgraça à beira da vida

ousou pousar a mão de veludo sobre ela

era o único ser humano nas redondezas

num dia de tempo parado o sol ardia na pele

nem a brisa provocada pelo movimento sedoso

das vestes limpas da hipocrisia

amainou

o insuportável calor da indignação

naquele dia Jerusalém cruzou-se com Samaria

no tortuoso caminho para Jericó

Deus disse que até o animal do samaritano

escolhera marchar nos trilhos da misericórdia

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E assim se conclui que a diferença entre uns olhos

preguiçosamente altivos e os compassivos

está apenas no colírio

é que os olhos não enganam.

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SEMEADOR DE ESTRELAS

Eis que o semeador saiu a semear

traçou em gestos largos

um brilhante rasto de estrelas no ar rarefeito

com o fulgor dos diamantes

como quem canta pela fresca da manhã

lançou carinhosamente

no tapete escuro da noite

um brilho de glória

sem baixar a cabeça

nem a alma

inspiração para todos os homens pequenos

que ousarem erguer os olhos do chão fechado

e lançar o coração ao alto

como quem beija.

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NESTE NATAL

Neste Natal não me saiu

nada de novo

apenas uma criança

a povoar de mistério

uns olhos cansados

e a pontilhar de luz

e de glória

os ouvidos do mundo.

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NESTE NATAL NÃO TENHO SAPATO

Neste Natal não tenho sapato

nem meia de lã

penduro apenas

um pé descalço

na minha oração

e um olhar líquido

no rumor dos anjos.

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O REGRESSO DOS MAGOS

No Oriente depositaram

com mãos gentis

a luz guardada

nos olhos

no regresso de Belém efrata

como se já nenhuma noite

os intimidasse

e mais nenhum mistério houvesse

no céu.

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OS MAGOS

Os magos regressam

a casa

descobrem novas estradas

para Oriente

vão carregados de luz.

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OS PASTORES

Os pastores voltam aos rebanhos

da noite

levam uma canção

no ouvido

e uma estrela dentro.

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Notas Biográficas

José Brissos-Lino nasceu em Lisboa (1954), é casado, tem dois filhos e um neto.

Doutorado em Psicologia, Especialista em Ética e em Ciência das Religiões, é

director do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, em

Lisboa, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e investigador.

Desenvolve há muitos anos intensa actividade em instituições culturais,

humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Foi presidente

da Liga dos Amigos do Hospital de São Bernardo, fundador e reitor da

Universidade Sénior de Setúbal.

Fundou e presidiu à Direcção da BARA-Associação Evangélica de Cultura e

dirigiu a revista cultural da mesma. Integrou a Direcção da Aliança Evangélica

Portuguesa assim como a respectiva Assessoria de Teologia e Ética. É pastor

protestante.

Conferencista e autor com obra publicada nas áreas de ficção (romance), poesia,

ensaio, e cronista na imprensa regional e nacional, em 1974 assinou com Joanyr

de Oliveira e J. T. Parreira o “Manifesto por uma Nova Poesia Evangélica” em

Portugal.

Integra o Consejo Asesor Iberoamericano da Red Iberoamericana de Poetas y

Críticos Literarios Cristianos TIBERIADES.

O autor escreve, dentre outros sítios, na VISÃO online, a maior newsmagazine

de Portugal – www.visao.sapo.pt/autores/2018-08-23-Jose-Brissos-Lino - e no

blogue A Ovelha Perdida - www.ovelhaperdida.wordpress.com

OBRAS DO AUTOR

* Vestígios de Azul. Lisboa: Calipso, 2019.

* Poemas da Graça/Poemas de la Gracia. Edição bilingue. Santiago do Chile: Hebel /

Salamanca: Tiberíades, 2019.

* Aquele falar estranho. Lisboa: Ed. Universitárias Lusófonas, 2018.

* Fado – a torcer o destino. Romance. Lisboa: Ed. Novos Autores, 2013

* O homem que vivia para trás. Romance. S. Mamede de Infesta: Ed. Edium, 2012.

* A Poesia do Natal. Org. Sammis Reachers. (antologia poética). Rio: Ed. Online,

2012.

* O Grito da Semente. S. Mamede de Infesta: Ed. Edium, 2010.

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* Nada onde pousar o sonho. Org. João Tomaz Parreira. (antologia poética). Lisboa:

Ed. Desafio Miqueias, 2010.

* Uma Aventura em Família. Setúbal, Ed. JubiLivro, 2007.

* As Ferramentas do Carpinteiro. Setúbal: Ed. JubiLivro, 2007.

* Partilha de Emoções. Org. Alexandrina Pereira. (antologia poética). Setúbal: Ed.

Autores, 2006

* 28 Poetas Sadinos. Org. José-António Chocolate. (antologia poética). Setúbal: Ed.

Casa da Poesia, 2004.

* A Luz e as Sombras: como distinguir uma igreja de uma seita. Setúbal: Ed. IEC.

1998.

* Salmo Presente. Poemas. Setúbal: Ed. IEC. 1996.

* Procurar Deus. Setúbal: Ed. IEC. 1993.

* Antologia Águas Vivas #1 (poetas evangélicos contemporáneos). Org. Sammis

Reachers. Rio: Edição do autor, 2009.

* Antologia Poética. Org. S. R. Pinheiro. (antologia poética). Lisboa: Ed. BARA. 1981.

* Antologia da Nova Poesia Evangélica. Org. Joanyr de Oliveira. (antologia poética).

Rio: Ed. CPAD, 1977.