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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE RAFAEL FONSECA SANTOS JORNALISMO LITERÁRIO E CINEMA: Uma análise de O que é isso, companheiro? São Paulo 2016

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

RAFAEL FONSECA SANTOS

JORNALISMO LITERÁRIO E CINEMA:

Uma análise de O que é isso, companheiro?

São Paulo

2016

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RAFAEL FONSECA SANTOS

JORNALISMO LITERÁRIO E CINEMA: uma análise de O que é isso, companheiro?

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie,

como requisito parcial à obtenção do título de Doutor

em Letras

ORIENTADORA: Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi

São Paulo

2016

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S237j Santos, Rafael Fonseca

Jornalismo literário e cinema: uma análise de O que é isso,

companheiro? / Rafael Fonseca Santos. – 2016.

103 f. : il. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie,

São Paulo, 2016.

Orientadora: Marlise Vaz Bridi

Bibliografia: f. 100-103

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À minha esposa, Tábitah, meu grande amor;

Aos meus pais, em quem me espelho;

Aos meus sogros, pelo constante incentivo e apoio;

Aos meus irmãos, Juliana e Guilherme, a quem amo.

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Agradecimentos

A Deus, que me amou primeiro e me susteve ao longo de todo o projeto, por sua bondade

e graça.

À Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi, querida orientadora, que marcou profundamente minha

vida e de quem jamais me esquecerei. Minha eterna gratidão.

Aos meus familiares, que me deram todo amparo necessário para a conclusão deste

projeto. Sem vocês, eu não chegaria até aqui.

Aos meus irmãos da Igreja Presbiteriana de Higienópolis, pela amizade, orações e

suporte, mesmo diante de minhas falhas.

Aos meus professores e amigos do trabalho, que muito me ensinam a cada dia.

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“Eu sou pobre e necessitado, porém o Senhor cuida de mim;

tu és o meu amparo e o meu libertador;

não te detenhas, ó Deus meu!”

Salmo 40.17

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Resumo

Na década de 1970, período em que o Brasil esteve sob um regime ditatorial militar, que

duraria até 1985, muitas das liberdades de expressão e de circulação de informações foram

ameaçadas. O AI-5, Ato Institucional número 5, de 1968, coloca em xeque a boa prática

jornalística que, por sua vez, se vê obrigada a se reinventar para conseguir cumprir com seus

deveres. Assim, não foram poucos os jornalistas que se aventuraram na literatura em busca de

novas vozes e novos caminhos para a resistência, inclusive política. Esta tese investiga as

relações, implicações e possíveis efeitos de sentido resultantes da aproximação entre jornalismo

e literatura, por meio do exame da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, de

1979, e de sua posterior transposição para o cinema, em 1997, pelo diretor Bruno Barreto. O

escopo de análise também perpassa os elementos do jornalismo literário, especialmente os do

Novo Jornalismo: descrição, narrativa cena a cena, uso de diálogos e pontos de vista da terceira

pessoa. Diante desses elementos, esta tese investiga, ainda, como se deu seu deslocamento do

texto escrito para o produto audiovisual.

Palavras-chave: O que é isso, companheiro?; jornalismo literário; cinema; ditadura

militar; Fernando Gabeira; literatura e resistência.

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Abstract

In the 1970s, a period when Brazil was under a military dictatorship that would last until

1985, many of the freedoms of expression and of information flow were threatened. The AI-5,

Institutional Act No. 5, 1968, puts into question the good journalistic practice, which in turn, is

forced to reinvent itself to get fulfill its duties. Thus it were not few journalists who ventured

in the literature for new voices and new ways of resistance, including politics. This thesis

investigates the relations, implications and possible meaning effects resulting from the

rapprochement between journalism and literature by examining Fernando Gabeira's work O que

é isso, companheiro?, and his subsequent transposition to the cinema, in 1997, directed by

Bruno Barreto. The scope of analysis also pervades the elements of literary journalism,

especially those of the New Journalism: description, narrative scene to scene, use of dialogues

and points of view of the third person. In view of these elements, this thesis also investigates

how the written text was moved for the audiovisual product.

Keywords: O que é isso, comapnheiro?; literary journalism; cinema; military

dictatorship; Fernando Gabeira; Literature and resistance.

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Lista de Imagens

Imagem 1 – Capa de 1979, editora Codecri ................................................................. 20

Imagem 2 – Capa de 1979, editora Codecri .................................................................. 21

Imagem 3 – Capa de 1981, editora Codecri .................................................................. 22

Imagem 4 – Capa de 1982, editora Nova Fronteira ...................................................... 23

Imagem 5 – Capa de 1984, editora Nova Cultural ........................................................ 24

Imagem 6 – Capa de 1996, editora Companhia das Letras ........................................... 25

Imagem 7 – Capa de 1998, editora Companhia das Letras ........................................... 27

Imagem 8 – Capa de 2009, editora Companhia das Letras............................................28

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Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11

1. O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? ...................................................................... 19

1.1 O objeto livro ......................................................................................................... 19

1.2 Enredo .................................................................................................................... 29

1.3 Clímax .................................................................................................................... 45

2. ANÁLISE DO FILME O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? ............................. 51

2.1. Preparação ............................................................................................................ 51

2.2. Entrada ................................................................................................................. 57

2.3. Clímax ................................................................................................................... 65

2.4. Saída ...................................................................................................................... 85

3. JORNALISMO LITERÁRIO NO CINEMA ....................................................... 89

3.1. Diálogos ................................................................................................................. 91

3.2. Descrição ............................................................................................................... 94

3.3. Pontos de vista da terceira pessoa ...................................................................... 95

3.4. Narração cena a cena ........................................................................................... 96

CONCLUSÃO ............................................................................................................. 98

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 100

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Introdução

Este trabalho se propõe a investigar as relações entre o jornalismo, a literatura e o cinema

por meio da análise da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1979) e a sua

posterior transposição para um longa-metragem, no filme homônimo de Bruno Barreto (1997).

O livro foi publicado em meio à ditadura militar brasileira (1964-1985), período em que tanto

a literatura quanto o jornalismo se tornaram instrumentos de resistência e de contestação

política. O filme, por sua vez, estreou quase duas décadas depois, quando o país já vivia sob

um regime democrático, com os militares de volta aos quartéis.

Embora trate de duas artes distintas, o cinema e a literatura, este é um trabalho sobre

jornalismo. Mais especificamente, de que maneira o jornalismo literário traspassa as fronteiras

de seu campo e influencia e é influenciado pelo cinema. Há que se reconhecer a vasta literatura

acadêmica acerca do jornalismo literário e as suas muitas nuances; no entanto, são poucos os

estudos que se dedicam às relações deste com o cinema.

O jornalismo carrega em sua essência a contestação. A natureza jornalística é

investigativa, crítica e de questionamento social. Segundo Kunczik (2001, p. 16), “o jornalismo

é considerado a profissão principal ou suplementar das pessoas que reúnem, detectam, avaliam

e difundem as notícias; ou que comentam os fatos do momento”. Reunir, detectar e avaliar

notícias é o âmago crítico do jornalismo, ainda que o desenvolvimento dos gêneros jornalísticos

evidencie diferentes nuances da ciência jornalística, sua natureza crítica e investigativa

permanece. Concorda com essa tese, Manuel Chaparro (1994, p.22): “A âncora ética do

jornalismo, da qual deriva a responsabilidade moral de cada jornalista pelo seu fazer, é o direito

individual e universal de investigar, receber e difundir informações e opiniões”.

O jornalismo brasileiro, por exemplo, nasceu com essa perspectiva. Considerado o

primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, editado por Hipólito José da Costa (embora

ele mesmo não tenha assinado sua publicação), chega ao Brasil em 1808 questionando os

deveres cívicos dos cidadãos já na Introdução (1808, p. 3):

O primeiro dever do homem em sociedade he ser útil aos membros della; e

cada um deve, segundo as suas forças Phisicas, ou Moraes, administrar, em

benefício da mesma, os conhecimentos, ou talentos, que a natureza, a arte, ou

a educação lhe prestou. [...] Ninguém mais útil pois do que aquelle que se

destina a mostrar, com evidência, os acontecimentos do presente, e

desenvolver as sombras do fucturo. Tal tem sido o trabalho dos redactores das

folhas publicas, quando estes, munidos de uma critica saã, e de uma censura

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adequada, represêntam os factos do momento, as reflexoens sobre o passado

e as soldidas conjecturas sobre o futuro.

Desde o Correio Braziliense, crítico ao governo de D. João (1808) e fazendo um

jornalismo de contestação, até os modernos blogs em que jornalistas analisam cenários

políticos, propostas econômicas, movimentos globais etc., o jornalismo aponta sua

proeminência nas discussões mais profundas da sociedade.

O jornalismo é também a intermediação dos membros de uma sociedade entre si. Em

citação aos “Cânones do Jornalismo”, adotado pelo Comitê de Ética da “American Society of

Newspaper Editors”, Fortes (2005) salienta:

A função primária dos jornais é comunicar à raça humana o que seus membros

fazem, sentem e pensam. O jornalismo, portanto, exige de seus praticantes o

mais amplo alcance de inteligência, de conhecimento e de experiência, assim

como poderes naturais e treinados de observação e raciocínio. As suas

oportunidades como cronista estão indissoluvelmente ligadas a suas

obrigações como professor e intérprete. (p.23-24).

Essa afirmação é altamente representativa, uma vez que suscita a aproximação do fazer

jornalístico com a interpretação do mundo e, portanto, da literatura. Além de levar ao

conhecimento público notícias e reportagens, o jornalismo é determinante para a própria

formação da opinião pública.

Essas funções intrínsecas ao fazer jornalístico aparecem como primeiro ponto de

destaque para sua relação com o poder. Sem dúvida, a comunicação (e o seu eventual controle)

constitui peça fundamental nos projetos governamentais desde o Antigo Regime1, quando reis

usaram pinturas, peças de teatro e até impressões em moedas nacionais para construir imagens

mais favoráveis de si mesmos.

O cardeal Richelieu, que governou a França junto com o rei Luís XIII entre

1630 e 1643, pode ter aprendido muito sobre a importância da mídia naquela

crise. Ele inspirou a fundação de um jornal oficial em 1631, a Gazette, e

ocasionalmente mandava para o editor notícias a serem publicadas. Jean-

Baptiste Colbert, o ministro mais importante de Luís XIV, entre 1661 e 1683,

tinha ainda maior consciência do alcance da mídia do que Richelieu. A criação

de uma imagem favorável do rei para público estrangeiro e interno, por meio

de reportagens na imprensa, histórias oficiais, poemas, peças, balés, óperas,

pinturas, estátuas, gravuras e medalhas, foi produzida por uma equipe de

1 Período de regimes absolutistas ao final da Era Medieval, por volta dos séculos XVI e XVII.

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artistas e escritores supervisionados por Colbert. (BRIGGS; BURKE. 2006,

p. 92).

A relação entre comunicação e poder será melhor apresentada e discutida no capítulo 1

desta tese, tendo por base as argumentações do contexto histórico brasileiro dos anos de 1960,

período em que se instaura no país um regime ditatorial militar.

Há definições que dão conta da notícia como aquilo que o público precisa conhecer.

Dessa maneira, pode-se traduzir o jornalista não apenas como emissor de notícias, mas como o

próprio meio pelo qual a mensagem chega ao seu receptor. Se essa mensagem é

conscientizadora, intrigante e formadora da criticidade do receptor, então o jornalismo cumpriu

seu papel comunicacional de transformação social.

O jornalismo literário é uma vertente da área que traz para os textos de reportagens

recursos estéticos da literatura que contribuem para maior cadência de leitura, tornando textos

jornalísticos mais agradáveis ao leitor.

Essa não é, absolutamente, uma ideia nova. É possível perpassar alguns períodos

históricos a fim de verificar a aproximação do jornalismo com a literatura. De fato, os dois

sempre caminharam muito próximos. Quando, no século XVII, surgem os primeiros jornais

(BRIGGS; BURKE. 2006), seus autores eram, em sua maioria, escritores de ofício, isto é,

literatos. Os jornais eram conduzidos pelos intelectuais de seu tempo, homens letrados e com

certa influência social.

Embora a proximidade dos literatos com as redações fosse muito íntima, o texto

dedicado aos jornais foi ganhando uma linguagem própria, distinta da literária. Seus

mecanismos de construção foram se erigindo em torno das bases do jornalismo moderno:

apuração da informação, ênfase à função referencial da linguagem, uso de entrevistas, discurso

direto, texto claro e objetivo. Tais mecanismos se construíram ao longo dos anos, moldados

pela percepção das redações e dos próprios leitores, não sendo, portanto, uma mudança pontual

ou radical.

Dessa forma, observa-se já no século XIX a diferenciação entre texto jornalístico e texto

literário. A maior delas ficou por conta da mensagem em si, que poderia ser calcada no real ou

não. O jornalismo não admite o ficcional em seu território.

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Seria da natureza do jornalismo tomar a existência como algo observável,

comprovável, palpável, a ser transmitido como produto digno de

credibilidade. Com isso, prestaria- ou desejaria prestar uma espécie de

testemunho do “real”, fixando-o e ao mesmo tempo buscando compreendê-

lo... A natureza da literatura, por sua vez, parece ser outra e até oposta à do

jornalismo. Trata-se de dotar a linguagem verbal de uma dimensão em que ela

não é meio, mas fim; tomá-la como matéria em si, portadora de

potencialidades expressivas. Na literatura, a linguagem não é mera figurante,

mas centro das atenções. (BULHÕES, 2007. p 12).

Bulhões (2007) mostra a diferenciação básica que se vai construir, teoricamente, acerca

do jornalismo e da literatura. Os jornais se apegam ao real, por mais fluída que possa ser tal

definição. Por sua vez, a literatura dedica-se à estética, usando ficção ou realidade como

referencial. Concordam com Bulhões, Contrera, Figueiredo e Reinart (2004):

O jornalismo sempre postulou o seu compromisso de identificar, selecionar e

esquadrinhar essa realidade como ponto de referência para realizar a sua

missão de informar, difundir o conhecimento, entreter, permitir a reflexão e a

vigília e, em alguns momentos, a transformação. (p. 7).

As autoras colocam como missão essencial da práxis jornalística o compromisso com a

realidade. A esse compromisso, deu-se o nome, no meio jornalístico, de credibilidade. Há um

contrato social pelo qual a sociedade concede aos jornalistas o dever de buscar as informações

necessárias à opinião pública, atendendo a certos critérios, crendo que este profissional o fará

de forma idônea.

Este preceito de credibilidade é essencial na tarefa jornalística. Não é possível que o

redator de um jornal apresente em um texto a realidade tal como ela é. O texto é uma

representação (e constituinte) do real. É, dessa maneira, construído, forjado nos processos de

estruturação textual, sujeito à vontade de seu autor.

1) O jornalismo é um processo social de ações conscientes, controladas ou

controláveis – portanto, fazeres combinados com intenções. 2) Porque as

ações são conscientes, controláveis e intencionadas, cada jornalista é

responsável moral pelos seus fazeres. 3) Se uma intenção se refere unicamente

à execução de um fazer, então as intenções dos fazeres jornalísticos estão

necessariamente vinculadas aos motivos éticos próprios do jornalismo.

(CHAPARRO, 1994, p. 22).

A notícia não é, a rigor, informação. Como qualquer mensagem, ela porta

informação em diversos níveis. Também não precisa ser necessariamente

atual. Mais correto seria pensar a notícia como um meio através do qual

acontecimentos são atualizados. E a questão da verdade da notícia se converte

num tema extremamente questionável. Existem notícias falsas e tal

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peculiaridade não lhes retira seu funcionamento como notícia. Ela é um relato

e não o fato em si. (HENN, 2003, p. 32).

Entender que o produto jornalístico não é a realidade em sua essência, não é o fato,

permite libertar-se de certas amarras estéticas. A ideia de que o texto jornalístico não pode

atribuir juízo de valor ou de que a subjetividade fere a credibilidade do que se noticia acabou

por reduzir os jornais a textos insossos e mecanizados. Os manuais de redação, que vão surgir

no Brasil desde o Diário Carioca, nos anos de 1930 (SODRÉ. 1998), trarão a ideia de

formatação do texto para uma publicação. É um valor conceitual jornalístico moldando a

estética de seu texto.

A partir da noção de que o jornalismo se afastara de uma estética textual mais rica,

muitos jornalistas empreenderam esforços no sentido de restituir aos textos de jornais a beleza

da literatura, a sutileza lexical, o drama possível por meio da estética. Retoma-se a ideia de

jornalismo literário.

Da mesma maneira, é possível traçar um papel-chave da literatura na construção moral

e política das sociedades modernas. Como uma forma de comunicação extremamente

persuasiva, a literatura tem se mostrado um agente influenciador dos mais relevantes. Nos

séculos XVIII e XIX, por exemplo, vê-se um enorme ganho de prestígio e força dos romances,

que eram, por sua vez, referências para os intelectuais e formadores de opinião.

A proposta deste trabalho, portanto, consiste em investigar as relações entre jornalismo

e literatura sob alguns aspectos: de que maneira jornalistas se utilizaram da literatura nos anos

de 1970 como forma de resistência política; como se deram as relações de poder entre a obra

analisada e o governo vigente; de que modo tal obra contribui para registro e compreensão

histórica do período, analisando, inclusive, o processo editorial do livro; quais as estratégias

estilísticas literárias e jornalísticas utilizadas pelos autores a fim de questionar o poder vigente

e moldar a opinião pública; como se deu a transposição de técnicas do jornalismo literário para

a linguagem cinematográfica; e que impactos essa transposição acarreta, tanto no âmbito

jornalístico quanto estético.

Entre os anos 1964 e 1985, o Brasil viveu sob um regime ditatorial, centralizador e

repressor, comandado pelas Forças Armadas Nacionais e amparado pelos movimentos políticos

conservadores e de direita. Permanecer por tanto tempo no poder exigiu dos governantes um

cuidado especial com as comunicações. Assim, com o intuito de manter-se nesta posição, foi

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criado um departamento oficial responsável por verificar a prudência das publicações

(jornalísticas e literárias, entre outros) que saíam no território brasileiro, a fim de que não

houvesse nenhum tipo de incitação a revoltas ou questionamentos ao regime vigente.

Deste contexto, surge o questionamento sobre de que maneira jornalismo e literatura se

uniram como forma de crítica, resistência e documentação histórica nos anos de 1970 no Brasil,

bem como de que maneira essa resistência foi reinterpretada na transposição de O que é isso,

companheiro? para o cinema. Tal indagação se justifica, uma vez que o período da ditadura

militar brasileira foi de extrema repressão aos direitos de liberdade de expressão e de liberdade

de imprensa (afetando literatura e jornalismo). Desse modo, a criatividade estética e a

resistência política forjaram mecanismos para burlar a repressão, e registrar e contestar o regime

vigente. Uma vez mais, o jornalismo buscou na literatura ferramentas para cumprir com seus

objetivos. De igual modo, a literatura se serviu de estratégias jornalísticas para exercer

resistência.

O objetivo desta tese é investigar como se deram as relações entre jornalismo, literatura

e cinema e identificar pontos de contato entre as áreas, a fim de contribuir para o entendimento

do impacto estético desse contato. Essa investigação se dará a partir da análise literária da obra

de Gabeira (2009) e do filme de Barreto (1997).

O que é isso, companheiro? foi escrito por Fernando Gabeira em 1979, quando, após

sua intensa participação em um movimento revolucionário contra a ditadura e, posteriormente,

captura e tortura, resolve contar o que vivenciou.

O envolvimento de Gabeira com o jornalismo é antigo. Ele trabalhou como redator no

Jornal do Brasil (JB), do Rio de Janeiro, de 1964 a 1968. Ainda hoje tem programas na rádio

CBN e no canal de televisão Globo News, ambos da maior empresa de comunicação do país,

Rede Globo. Sua experiência jornalística contribuiu para seu desenvolvimento como escritor.

Quando ainda era redator do JB, envolveu-se na luta armada contra o regime militar. O

que é isso, companheiro? conta a história de quando ele e seu grupo planejaram e executaram

o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, com o fim de negociar a liberdade de outros

companheiros da luta contra a ditadura. Seu texto, ao contar a história, é certamente marcado

pelo jornalismo que fez parte da sua vida.

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Apesar de ser uma obra literária, O que é isso, companheiro? se assume real. Gabeira

cria um narrador-personagem como um repórter de si mesmo, constrói um texto muito mais

rápido que os anteriores, privilegia, ao que parece, o conteúdo em detrimento da estética

(característica marcante do jornalismo, com sua função referencial sempre à vista). Por essa

razão, a obra de Fernando Gabeira se torna relevante nesta tese, aproximando literatura e

jornalismo.

Este pesquisador não pretende categorizar o livro aqui analisado, mas buscar elementos

intertextuais que tragam novas significações para a obra e para os estudos nas áreas de Letras e

Comunicação. Dessa maneira, observar os dialogismos possíveis entre jornalismo e literatura

contribuirá tanto para pesquisas acerca do jornalismo literário brasileiro, quanto para estudos

sobre jornalistas escritores.

Outrossim, a investigação literária dos anos 1970 joga luz sobre os estudos de um dos

períodos políticos mais inquietantes da história nacional, que carece de exames mais profundos

em sua relação com o jornalismo e a literatura como formas de resistência.

O filme, dirigido por Bruno Barreto (1997), surge em um contexto democrático, quando

muitos passaram a (re)discutir a história brasileira. O enredo é um recontar da obra de Gabeira,

adaptado, evidentemente, para um produto audiovisual. Os anos de 1990, ainda foram

marcantes para o mercado cinematográfico nacional, uma vez que estabelece um novo patamar

de qualidade nas produções.

No primeiro capítulo desta tese, o leitor se deparará com uma análise da obra O que é

isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (2009), a partir de uma discussão sobre as técnicas

literárias empregadas pelo autor para a construção de um relato realístico. São investigadas as

construções dos personagens, o papel do narrador-personagem, além de uma contextualização

histórica do momento político que o Brasil vivia à época da narrativa e da publicação. Também

são analisados elementos do objeto-livro, especialmente suas capas.

O segundo capítulo constrói-se a partir da investigação da construção narrativa do

longa-metragem O que é isso, companheiro? (BARRETO, 1997), que usou como referência o

livro de Gabeira (2009). A discussão se dá em torno do olhar cinematográfico para um episódio

marcante da história brasileira. Investiga-se o uso de técnicas literárias e jornalísticas na sua

transposição para o cinema e suas possíveis implicações na produção de novos significados.

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Também se analisa o uso de estratégias audiovisuais para a composição do enredo e dos

personagens.

O último capítulo apresenta uma comparação, ponto a ponto, dos elementos do Novo

Jornalismo (movimento norte-americano que reaproximou literatura e jornalismo) usados no

livro de Gabeira (2009) e como essas estratégias estilísticas aparecem no produto audiovisual

de Barreto (1997). Assim, é possível analisar as facetas literárias e jornalísticas no filme O que

é isso, companheiro? (1997).

As conceituações teóricas que serviram de escopo para o desenvolvimento desta tese

surgem à propósito das análises das obras. Dessa maneira, não há um capítulo de explanação

teórico que anteceda as investigações, uma vez que, entretecidos ao texto, os fundamentos

empíricos ganham maior relevância na leitura e dinâmica de pesquisa.

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1. O que é isso, companheiro?

1.1 O objeto livro

A obra de Fernando Gabeira, publicada pela primeira vez em 1979, é narrada em

primeira pessoa e conta a história de um dos idealizadores do grupo Dissidência Comunista,

que mais tarde assumiria o nome de MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro, em

referência à data de morte de Che Guevara), e de como participou do sequestro do embaixador

dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. Conta também

como foi perseguido pela ditadura, preso, torturado e exilado.

A obra é dividida em dezesseis capítulos, sendo os quinze primeiros curtos e o último

maior, contendo quase 40% de toda a obra. A divisão inicial dos capítulos segue um pouco o

fluxo de consciência do narrador, com títulos não muito explicativos, mas instigantes. Esta

primeira metade da obra remete a episódios de uma novela, lembrando a ideia dos folhetins,

muito comuns no século XIX.

Além disso, em uma primeira análise, a obra aparentemente tinha como público-alvo o

jovem brasileiro dos anos de 1980. Por vezes é possível identificar o narrador se referindo ao

leitor como alguém novo e interessado nos movimentos revolucionários que questionaram a

ditadura militar. O início do terceiro capítulo, por exemplo, faz, mais claramente, referência a

esse leitor:

O amigo(a) talvez fosse muito jovem em 64. Eu mesmo achei a morte do

Getúlio um barato só porque nos deram um dia livre na escola. Um golpe de

Estado, entretanto, mexe com a vida de milhares de pessoas. Gente sendo

presa, gente fugindo, gente perdendo o emprego, gente aparecendo para

ajudar, novas amizades, ressentimentos... (GABEIRA, 2009, p.22)

Este trecho mostra como o narrador entende que o seu leitor provavelmente era “muito

jovem em 64”. Ao se apresentar como uma criança em um momento político extremamente

relevante para a história política brasileira, o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de

agosto de 1954, o narrador traça um comparativo entre o que ele viveu (e como enxergou o

episódio) com o que o seu leitor pudesse ter vivido em 1964. Isso aponta para uma série de

implicações que serão discutidas ao longo desse capítulo, por ocasião de argumentações acerca

dos encadeamentos da construção literário-jornalística da obra.

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Ainda com um olhar sobre o objeto livro, as capas das primeiras edições, publicadas

pela editora Codecri2, fundada pelos jornalistas do lendário jornal O Pasquim, traziam uma

imagem enegrecida do jovem Fernando Gabeira, evidenciando o autor em detrimento da obra.

Apontar para a foto do autor na capa induz o leitor a entender que o narrador em primeira pessoa

é um personagem à semelhança do autor (indução confirmada mais ao longo da obra, quando o

narrador se apresenta como Gabeira).

O fato de publicarem estas capas em cores amareladas ou avermelhadas remete a um

furor esquerdista, típico do movimento revolucionário defendido por Gabeira à época. As cores

vermelho e amarelo são símbolos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),

Estado que polarizou o mundo em contraponto aos Estados Unidos e que foi o berço do

comunismo. A obra de Gabeira terá como pano de fundo ideológico, justamente, a disputa entre

comunistas e capitalistas no Brasil. Assim, as primeiras edições dando destaque a essas cores

evidenciavam o caráter ideológico do livro.

Imagem 1 – Capa de 1979, editora Codecri.

2 Codcri foi uma editora fundada pelos redatores do lendário jornal O Pasquim, que fez ferrenha oposição ao

regime militar, mas que se utilizou de inovações estéticas até então pouco exploradas no jornalismo brasileiro.

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Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed5667.html - Acesso em:

15/04/2015.

Também merece destaque a foto ser no formato retrato, em que o rosto da pessoa é o

grande destaque. Retratos geram identificação, principalmente, por conta dos olhos. No entanto,

nas capas da Codcri, os olhos de Fernando Gabeira estão escuros e apagados, trazendo um certo

desconforto à imagem. Os olhos enegrecidos deixam também a subjetividade apagada, isto é,

não há vida naquela foto, é um retrato indiferente, sem vigor. O leitor se identifica e ao mesmo

tempo se afasta da fotografia.

Imagem 2 – Capa de 1979, editora Codecri.

Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed142046.html - Acesso em:

03/11/2016.

Em 1981, a Codecri lança uma nova capa para o livro. Desta vez, não é um retrato de

Gabeira, mas uma imagem irônica, com aspecto cômico. Trata-se de um painel de tiro ao alvo,

todo perfurado por marcas de balas, aparentemente de um circo (observa-se uma lona listrada

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em azul e amarelo no canto superior direito). Os objetos-alvo são patos com capacetes, alvos

circulares e canhões. Emoldurando a imagem, na parte superior há o título da obra e, na inferior,

o nome do autor.

A imagem provoca a ideia de militares e tiros, temas da obra em destaque. Contudo, o

uso de um painel de tiro ao alvo remete a jogos e infantilidades, quebrando um pouco a

seriedade do assunto. Uma possível leitura é a de que os movimentos revolucionários foram

alvos fáceis para a ditadura, que massacrou grupos guerrilheiros ao longo dos anos de 1960 e

1970. É possível também fazer a leitura contrária, de que os grupos guerrilheiros e o sequestro

narrado no livro colocaram os militares contra a parede, inertes e sem reação. De qualquer

forma, é uma capa divertida e muito colorida, bem ao estilo de O Pasquim.

Imagem 3 – Capa de 1981, editora Codecri

Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed168615.html - Acesso em:

03/11/2016.

Edições seguintes dos anos 1980, como a de 1982, pela editora Nova Fronteira, e a de

1984, pela Nova Cultural, traziam imagens mais provocantes. A Nova Fronteira trazia o

desenho de um homem com raios e faixas saindo de sua cabeça, enquanto um enorme ponto de

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interrogação emoldura o fundo da imagem. Esta capa assinala as inquietações do narrador e

ilustra a aflição ideológica que o livro carrega, exaltando um ponto central da obra: a dúvida.

O enredo, como será discutido mais a frente, muitas vezes mostra o narrador questionando seus

próprios ideais, sobre a maneira de enfrentar uma ditadura, sobre quem eram os “mocinhos” da

história, etc.

Em tempo, o personagem que aparece em primeiro plano é interessante. Ele está com a

cabeça aberta, em uma simbologia de pensamentos incontroláveis, de loucura. Ele também está

vestido de terno e sua gravata está ligeiramente desajustada. Faz referência a um intelectual,

com suas ideias irrefreáveis, com certo desleixo para as aparências ou as convenções sociais,

aludindo ao personagem principal da história.

Imagem 4 – Capa de 1982, editora Nova Fronteira.

Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed96864.html - Acesso em:

15/04/2015.

A capa da Nova Cultural trazia o desenho de um pássaro em uma gaiola com o

Congresso Nacional compondo o segundo plano da imagem. A imagem do poder político

brasileiro ao fundo é significativa, uma vez que avulta a obra para o ambiente de discussões

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políticas. Da mesma maneira, o pássaro na gaiola salienta a impotência do personagem principal

diante do cenário político, como também pode apontar para a criação de ideologias circunscritas

em si mesmas, sem poder observar além.

A foto e o texto estão ligeiramente inclinados para a diagonal esquerda. Essa inclinação

carrega um aspecto de inquietude e de desordem, fatores que serão explorados nas discussões

do livro e, posteriormente, na versão cinematográfica também. Os tons avermelhados ao fundo

do Congresso remetem a violência e exprimem força.

Imagem 5 – Capa de 1984, editora Nova Cultural.

Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed93904.html - Acesso em:

15/04/2015.

De qualquer maneira, essas capas remetem mais ao conteúdo desafiador da obra, do que

propriamente a seu autor, o que é uma estratégia ideológica e mercadológica interessante,

assumida pelas respectivas editoras.

É importante salientar que as capas anteriormente discutidas foram publicadas enquanto

o Brasil ainda vivia sob o regime militar. As capas de 1979 surgem em meio à Lei de Anistia,

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que marca o início da abertura política brasileira. As edições seguintes, dos anos 1980,

encontram um contexto mais ameno e menos repressor da ditadura, posto que os anos de

chumbo já se tornavam insuportáveis à população, que pressionava por mais liberdade, e as

lideranças militares começavam a afrouxar suas amarras. Assim, essas capas se tornam ainda

mais impactantes, porque desafiaram a censura e os governos militares.

Em um contexto bem diferente, a Companhia das Letras publicou, em 1996, uma edição

do livro com uma capa mais simplória, sem desenhos ou fotos. Apenas a retomada das cores

amarelo e vermelho, como das primeiras edições da Codecri. No ano desta edição, o país já

vivia um regime democrático, tendo como presidente eleito em um processo eleitoral livre,

Fernando Henrique Cardoso.

Imagem 6 – Capa de 1996, editora Companhia das Letras.

Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed147103.html - Acesso em:

03/11/2016.

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Em 1997, é lançado o filme O que é isso, companheiro?, que alcança um público de

mais de trezentos mil espectadores em bilheterias3 de cinema, o que alavanca o interesse do

público pelo livro que o inspirou. No ano seguinte, a Companhia das Letras publica uma nova

edição da obra, utilizando-se do cartaz do filme para a capa.

A imagem da capa é uma montagem de uma fotografia do Rio de Janeiro anoitecendo,

acima, e uma fotografia da primeira página do jornal O Globo sobre uma mesa, junto a um

revólver. A imagem do Rio de Janeiro mostra o Corcovado com o Cristo Redentor em seu topo

e, ao lado, o Pão de Açúcar, que são símbolos da paisagem carioca. Essa imagem foi largamente

usada no filme como cena de transição e seus tons avermelhados contribuem para o efeito de

tensão do filme.

A chamada do jornal estampado na parte inferior da capa diz “Exército caça

sequestradores”. A chamada, composta na imagem com o revólver, induz o leitor mais ao

caráter de ação do enredo do que suas discussões ou críticas políticas. Traz para o livro, o apelo

do audiovisual.

Imagem 7 – Capa de 1998, editora Companhia das Letras.

3 Segundo dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual, o público do filme nos cinemas foi de 321.450

espectadores, rendendo R$ 1.787.262,00 a seus produtores.

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Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed22211.html - Acesso em:

03/11/2016.

Já a edição mais utilizada nesta tese, a da Companhia das Letras (GABEIRA, 2009),

traz um grande destaque para o nome do autor, escrito em letras graúdas ocupando a parte

superior da página, mas também trabalha com uma imagem interessante para a obra: um avião

parado, com sua escadaria à postos e três silhuetas negras descendo da aeronave. A imagem se

faz interessante porque, aparentemente, não ilustra nenhuma cena específica da obra, mas faz

uma referência a dois momentos: quando são libertados os presos em troca do embaixador

americano sequestrado e a parte final da obra, quando o próprio narrador desembarca, exilado,

na Argélia. O fato de não apresentar nenhuma crítica evidente, ou qualquer relação com política,

violência ou aspectos ideológicos, pouco carrega de significados a capa. Torna-se uma capa

apenas visualmente atraente, mas sem discussões políticas mais aguçados.

Imagem 8 – Capa de 2009, editora Companhia das Letras.

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Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed35857.html - Acesso em:

15/04/2015.

Esta mesma edição de 2009, da Companhia das Letras, traz um prefácio escrito pelo

autor em 1996. Neste texto introdutório, o autor faz alguns comentários sobre a construção da

obra. A primeira frase do texto, “Publicado logo após a anistia” (GABEIRA, 2009, p.09), é

muito representativa porque situa leitor e obra em um contexto histórico extremamente

relevante. Em agosto de 1979, o então presidente, Gal. João Baptista Figueiredo, promulga a

chamada Lei da Anistia (lei nº. 6.683), em que concede perdão aos exilados políticos e aos

torturadores. Essa informação aponta para a pertinência da obra em uma conjuntura ainda muito

confusa na política brasileira. Além disso, tal indicação temporal coloca o leitor a par dos

possíveis impactos e relações que a narrativa assumirá.

Ainda no prefácio, Gabeira indica que realizou alterações textuais a partir de indicações

do embaixador dos Estados Unidos, à época, que se tornou personagem da história, Charles

Burke Elbrick. Ele é figura-chave na história, uma vez que trouxe ao grupo MR-8 (a Dissidência

Comunista) os holofotes da luta armada no Brasil. Gabeira usa anotações que o embaixador fez

em seu exemplar do livro para “reeditá-lo, com ligeiras alterações” (2009, p.09). Essa

preocupação do autor em aproximar-se da realidade em sua obra é uma marca de seu veio

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jornalístico, que tenta trazer ao leitor um relato extremamente verossímil. Em outras palavras,

aponta para o compromisso jornalístico da veracidade dos fatos.

O autor ainda argumenta que há milhares de maneiras de contar a luta/resistência armada

à ditadura militar no Brasil. Essa inferência levanta a discussão de que um mesmo fato pode ser

relatado a partir de diferentes perspectivas e, ainda sim, ser calcado no real. Assume, portanto,

que a obra é, na verdade, a sua experiência relatada, não é o real, mas uma percepção do real.

Admitir a fronteira entre o real e a ficção exprime maturidade jornalística e consciência dos

limites da obra apresentada.

Fernando Gabeira informa, também no prefácio, que nunca havia indicado o autor da

carta que foi lida em rede nacional pedindo a liberação de presos políticos, e registra que seu

autor é Franklin Martins. Em seguida, Gabeira reconhece que gostaria de ter dado mais

informações sobre outros integrantes da luta armada, mas que não o fez. Esse mea culpa

evidencia um anseio comum do jornalismo e da literatura: o de se “fazer justiça” a personagens

históricos. Entretanto, há que se discutir se esse é um papel do jornalismo e da literatura; ou,

então, até que ponto a história pode ser contada por ambos; ou mesmo se a história faz justiça.

Tais discussões serão melhor expostas conforme a análise do enredo.

Outra informação relevante do objeto livro é o que a editora Companhia das Letras traz

acerca da tiragem da obra. Segundo ela, “O que é isso, Companheiro?” já vendeu mais de 300

mil exemplares, em 40 edições. Em 2015, o livro mais vendido no Brasil, de acordo com

ranking publicado pelo Publish News (2015), vendeu 719 mil exemplares e o segundo lugar

chegou a 485 mil. Mas essas obras não são regra. A partir do 13º livro mais vendido, as obras

não chegam à tiragem de 100 mil exemplares e este número está bem mais próximo da realidade

do mercado editorial brasileiro. Dessa forma, o volume de vendas de “O que é isso,

companheiro?” coloca a obra em um patamar de significativa relevância no mercado brasileiro.

1.2 Enredo

Ainda no início da obra, o narrador se abre para o jornalismo, se abre para o narrador-

jornalista. Em dado momento, parece até que os dois (narrador e narrador-jornalista) conversam

entre si: “se escapo de mais essa, vou contar como foi tudo” (GABEIRA, 2009, p. 11). Aqui,

tem-se a impressão de que o narrador evoca o seu lado jornalístico, desafiando-se a assumir-se

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repórter e cumprir com suas obrigações de divulgar a informação. Abre-se, então, o desejo

jornalístico do narrador.

Essa natureza na área jornalística vai se tornando mais evidente com a construção da

obra, usando, por exemplo, jargões típicos do mundo dos periódicos, como “copidesque” (setor

do jornal responsável pela revisão dos textos que serão publicados), “JB” (abreviatura para

Jornal do Brasil) e “empastelamento” (fechamento de um periódico à força, normalmente

destruindo suas oficinas, por razões políticas). O narrador ambienta-se, assim, como jornalista.

A cena inicial, que se passa no Chile, aflita e tensa, é interrompida para se iniciar a

narrativa de fato. Este é um recurso que transmite uma ideia cinematográfica para a obra, dá

velocidade de leitura, oferece dinamismo. Destarte, a trama começa a ser construída muito

rapidamente, a partir de pequenas conjurações do narrador, que se questiona acerca das infinitas

possibilidades não concretizadas que poderiam alterar o rumo dos acontecimentos.

A primeira elucubração do narrador sobre essas possibilidades aparece como uma

confissão de ingenuidade:

De repente, não sei como, cinquenta pessoas se reúnem no meio da rua, tiram

suas faixas e cartazes e gritam: abaixo a ditadura. Como? Os carros não podem

se mexer: é uma passeata. Mil coisas estavam acontecendo nos telegramas

empilhados na minha mesa: guerras, terremotos, golpes de Estado. Ali, diante

dos meus olhos, cinquenta pessoas com faixas e cartazes, iluminadas pelos

faróis e meio envoltas na fumaça dos canos de descarga, avançavam contra o

trânsito. Mais verba, menos tanques, abaixo a ditadura, gritavam. Lembrei-me

da minha terra. O Guarani Futebol Clube batido mais uma vez, pelo mesmo

adversário, irrompendo na rua Vitorino Braga com sua bandeira azul e branca,

cantando “Em Juiz de Fora quem manda sou eu”. (GABEIRA, 2009, p.12)

No fragmento, o narrador tenta apontar para uma ignorância da população, que segue

sua vida normalmente, enquanto um punhado de pessoas estampam suas reivindicações

atrapalhando o trânsito. Levanta o desinteresse social por questões mais profundas do que um

jogo de futebol, por exemplo. Surge, desde esse ponto, uma discussão acerca da briga ideológica

que será travada ao longo da obra, ideológica, diga-se, a partir da visão marxista (MARX, 2007)

sobre a questão. De um lado, tem-se uma população apática, alienada (sem autonomia), vítima

da ideia de “naturalidade” das coisas, ou seja, tomar por natural algo que não é: as coisas são

como são, não há o que se fazer, não há por que protestar, o melhor a se fazer é trabalhar. De

outro lado, um movimento esquerdista que se levanta contrário ao regime instaurado,

questionador, disposto, inclusive, a pegar em armas a fim de enfrentar as forças contrárias.

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Gabeira coloca uma visão dicotômica acerca da luta contra a repressão do governo

militar no Brasil. Essa visão era típica da esquerda da época, um tanto ingênua e romântica.

Dividia-se o mundo das ideias em apenas duas partes: direita e esquerda. Ou se usava o aparelho

do Estado para prevenir um golpe comunista, ou para, de fato, criar um sistema comunista; ou

se colocavam a soberania e a segurança nacionais em primeiro lugar, ou o bem comum em

primeiro lugar. Tal divisão ideológica é o argumento da obra. Gabeira e seus companheiros

assumem-se esquerdistas, comunistas, dispostos a usar a luta armada para a resistência.

A resistência, aliás, será por ele mesmo questionada. No primeiro capítulo, o narrador

relata que era jornalista de dois periódicos, o Jornal do Brasil e o Panfleto4. Ele conta que, por

ocasião da tomada do poder pelos militares, o Panfleto fora empastelado5 e que ele, assim como

muitos outros jornalistas, pensava que resistiria, mas no fim fugiria. Mais uma vez, Gabeira-

narrador aparece desiludido, conformado que o real poder popular e jornalístico é o de fugir,

tão somente.

Segui para o JB e encontrei um grupo de jornalistas na Rio Branco. Era o que

procurava. Fomos juntos para o Sindicato dos Gráficos, onde resistiríamos. E

nós, que pensávamos em resistir, acabamos sendo envolvidos na confusão

geral que se armou para retirar os papéis, para escapar da polícia. Foi assim

também com muita gente no Chile. Você diz que vai resistir, você parte para

resistir, mas o que você vai fazer, de verdade, é fugir. (GABEIRA, 2009, p.13)

O primeiro capítulo aparece, portanto, com um ar de derrota. Derrota, porque a esquerda

brasileira havia sucumbido diante das tropas militares e da instabilidade de seus próprios

movimentos. Assim como no cinema, o frenesi da cena inicial segura o leitor, ainda que a

imagem do golpe seja de fracasso para os movimentos populares. Gabeira se valeu de

estratégias estéticas comuns na literatura para conduzir a informação (jornalismo).

No segundo capítulo, o narrador traz reflexões e questionamentos típicos de quem viveu

os anos de 1964 e 1965. Discute as relações de poder e duvida do próprio vigor da luta armada.

Essas dúvidas serão fundamentais para a compreensão dos atos do protagonista ao longo da

obra. Considerado um intelectual no movimento esquerdista, ele tenta, a todo momento,

dimensionar o impacto das ações a serem tomadas, ainda que essa não seja uma tarefa a ele

4 “Semanário da ala esquerda do PTB que, mais tarde, depois do golpe, iria sobreviver de forma autônoma como

Movimento Nacionalista Revolucionário, MNR” (GABEIRA, 2009, p.12)

5 Fechamento de um periódico à força, normalmente destruindo suas oficinas, por razões políticas.

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atribuída oficialmente. “De que adiantavam as armas se os principais partidos políticos não

tinham tensionado suas forças para resistir? E de que adiantava os partidos fazerem isso, se a

sociedade no seu conjunto não estava convencida da importância de resistir?” (GABEIRA,

2009, p.19).

Sua hesitação diante das circunstâncias e da movimentação política contrasta com sua

ousadia jornalística de questionar a insignificância simbólica das armas. Ora, o jornalismo já

foi considerado o quarto poder6, especialmente em tempos de comunicação de massa, e a

reflexão do narrador acerca da ineficiência das armas, naquele momento, aponta para sua

desilusão com o poder jornalístico. Ele, um repórter de um dos maiores jornais do Brasil, com

tiragem dominical7 na casa dos 200 mil exemplares, não acredita que seu emprego neste

periódico ajudará a mudar muitas coisas. Aliás, sua dúvida parece circunscrever mais o jornal

do que a profissão de repórter, tendo em vista que ele se propõe ao longo de toda a história a

publicar e divulgar seu Panfleto, um jornal independente que não teria amarras políticas que o

impedissem de cumprir com sua missão jornalística.

Essa investigação intelectual também alude à essência do jornalismo de apuração da

notícia, de esquadrinhar qualquer informação a fim de desnudá-la e a ponto de compreendê-la

e de dizer a verdade. A paixão da maioria dos jornalistas reside nesta apuração. Quando Gabeira

percebe que a grande mídia (composta pelos principais veículos impressos, radiofônicos e

televisivos de comunicação do país) apoiou direta ou indiretamente a tomada do poder pelos

militares, ele entende que o ufanismo jornalístico da verdade e da apuração são dependentes da

ação do homem, que por sua vez é corruptível e sujeito aos mais escusos interesses.

O terceiro capítulo, “Engolindo Sapos”, segue apresentando ao leitor o contexto político

dos anos de 1960, sempre ancorado na percepção do próprio narrador sobre os fatos.

6 A expressão Quarto Poder surgiu na Inglaterra no século XIX. “Na Europa, o jornal The Times, órgão dominante

de imprensa em Londres, se considerava, durante as décadas de 1830, 1840 e 1850, um "quarto poder". Diz-se que

quem cunhou a frase foi o historiador Macaulay, embora ele estivesse se referindo à Galeria de Imprensa no

Parlamento, e não especificamente ao The Times ou à imprensa como um todo. O conceito medieval de um

"Estado" ou "poder" — espiritual, temporal e comum — havia sido quebrado na França revolucionária, mas

sobreviveu residualmente na Grã-Bretanha nas duas casas do Parlamento, e a nova expressão "quarto poder" foi

usada como título de um livro sobre imprensa em 1850, escrito pelo jornalista F. Knight Hunt”. (BRIGGS;

BURKE, 2006, p. 192). A expressão, já no século XX, indica o caráter fiscalizador da prática jornalística,

apontando-o em equivalência de relevância social e influência com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

7 Tradicionalmente, as tiragens dominicais são mais numerosas que as semanais.

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[...] O governo Goulart nos era apresentado numa versão unilateral, a versão

dos inquisidores.

Na minha mesa de redator do JB, caíram muitas notícias sobre o período

Goulart. A algumas delas demos até um certo encanto, transformando-as em

matérias atraentes. Lembro-me de um IPM8 numa repartição oficial, onde se

apurou que o chefe beliscava a secretária, vinha diariamente vestido de terno

branco, calçava sapato marrom e branco e dava rasteira no contínuo.

Imaginem que diversão: rasteira num companheiro de trabalho. Lembro-me

de um depoimento do chefe da Casa Militar, dizendo que o mordomo do

palácio tratava mal os convidados e ajudou a isolar Jango. Lembro-me da

notícia em sua forma final: chefe da Casa Militar diz que a culpa da queda de

Goulart foi do mordomo. (GABEIRA, 2009, p.23)

Chamar os oposicionistas do governo João Goulart de inquisidores mostra como o

narrador vai compondo a imagem dos que tomaram o poder em 1964. O parágrafo destacado é

um exemplo que o narrador usa para mostrar o uso da grande imprensa na defesa de uma posição

política específica, contrariando qualquer princípio jornalístico de imparcialidade ou de sempre

mostrar todos os lados de uma notícia.

O “engolir sapos”, a que o narrador se refere, envolve diversas formas de conduzir e

cercear a opinião pública, por meio de estratégias que envolviam manobras jurídicas, políticas

e midiáticas para manutenção do poder. Outro exemplo é o comentário do narrador de que “A

supressão das eleições diretas não chegou a provocar uma reação na massa” (GABEIRA, 2009,

p.22). Este comentário sinaliza para a teoria da Espiral do Silêncio, proposta por Noelle-

Neumann (1955), que defende:

A teoria da espiral do silêncio se apoia na suposição de que a sociedade – e

não apenas os grupos em que os membros se conhecem mutuamente – corre o

risco de isolamento e de exclusão dos indivíduos que se desviem do consenso.

Os indivíduos, por sua vez, têm um medo em grande medida subconsciente

do isolamento, provavelmente determinado geneticamente. Este medo do

isolamento faz com que as pessoas tentem comprovar constantemente quais

opiniões e modos de comportamento são aprovados ou desaprovados em seu

8 Inquérito Policial Militar.

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meio, e quais opiniões e formas de comportamento estão ganhando ou

perdendo força.9 (NOELLE-NEUMANN, 1955, p.179-180).

O jornalismo exige, em sua natureza, leitores críticos. Essa é a razão do jornalismo ter

sido por anos um local de debate dos poderosos somente, já que por séculos sociedades eram

massificadamente analfabetas. Está aqui uma pista para se compreender o porquê de tão poucas

notícias e informações na grande mídia sobre a periferia e sobre os oprimidos.

Assim, é possível perceber que o jornalismo tem forte atuação na educação da

sociedade. Além de levar ao conhecimento público notícias e reportagens, o jornalismo é

determinante para a própria formação da opinião pública. Cabe ressaltar que as salas de aula

são fundamentais para sua compreensão e constituição. E aqui se encontra um grande ponto

convergente das duas áreas, educação e jornalismo.

Paulo Freire, talvez o maior educador brasileiro, defende a educação como promoção

do sujeito, como instrumento de mudança pessoal e social. Para ele, a educação tem que

promover a conscientização do educando, o que gera crítica social (mudança na opinião

pública) e, consequentemente, mudança social.

O ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo. (FREIRE,

2011, p.12).

Mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam

perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida,

o de “ler” a sua realidade, o que não será possível se não tomam a história nas

mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos. (FREIRE, 2011, p.20).

Colocar a educação como práxis de posicionamento frente ao mundo é dizer que ela é

constituinte da opinião pública, uma vez que a criticidade levantada em tal posicionamento

alicerça a construção social de opiniões sobre diferentes assuntos. Em outras palavras, Freire

fixa o conhecimento junto ao processo de conscientização do indivíduo em sociedade.

9 Tradução do pesquisador para: “La teoria de la espiral del silencio se apoya en el supuesto de que la sociedad -

y no sólo los grupos en que los miembros se conocen mutuamente - amenaza con el aislamiento y la exclusión a

los individuos que se desvían del consenso. Los individuos, por su parte, tienen un miedo en gran medida

subconsciente al aislamiento, probablemente determinado genéticamente. Este miedo al aislamiento hace que la

gente intente comprobar constantemente qué opiniones y modos de comportamiento son aprobados o desaprobados

en su medio, y qué opiniones y formas de comportamiento están ganando o perdiendo fuerza.” (NOELLE-

NEUMANN, 1955, p.179-180).

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Estabelece a fonte do aprendizado fora do ambiente de sala de aula, na vivência e história de

cada educando.

Paulo Freire preocupa-se, por toda sua obra, em despertar uma possibilidade de

educação dialógica e libertadora. Dialógica porque a educação deve ser construída a partir da

troca de experiências entre o educador e o educando. Libertadora porque, para ele, a sociedade

brasileira vive em um sistema dicotômico, dividido em opressores e oprimidos (daí sua obra

mais conhecida intitular-se “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 1987)) e a educação em seu

ver é elemento-chave para transformação dessa estratificação.

O bom jornalismo é também elemento-chave para essa transformação. Com o avanço

das populações e das complexidades sociais, o jornalismo assume um papel que a comunicação

interpessoal direta já não era capaz de suprir. Assim, ele abraça a função de amplificador

coletivo da educação que se dá no âmbito particular.

O jornalismo se tornou um espaço das elites: alimentado, comandado e direcionado por

elas. A apropriação desse meio por parte da sociedade comum é basilar para a transformação

social. Sem essa apropriação, grande parte da população cai na Espiral do Silêncio.

Essa teoria baseia-se na observação de que, quando um determinado assunto é

amplamente difundido nos meios de comunicação de massa, ele pode uniformizar a opinião

pública e faz com que opiniões contrárias percam força, esvaindo-se até que caiam em uma

espiral de silêncio. A razão principal desse processo, segundo Noelle-Neumann, é o medo da

rejeição que assume o controle das mentes opositoras, forçando-as a se calarem.

Dessa forma, o jornalismo pode funcionar como instrumento de dominação. Pode ser

uma ferramenta de manutenção do poder e não de contestação. O poderoso, quando domina o

processo comunicacional do jornalismo, vale-se desse poder para manter ou aumentar sua

opressão. O resultado, nesse cenário, é o da desinformação, em que o leitor (receptor da

mensagem) não apreende ou não recebe em sua totalidade a informação almejada.

No melhor dos casos (escreve Schulz) ele é informado superficialmente sobre

os fatos, personagens e temas em destaque que dominam as discussões dos

assuntos atuais. Não está capacitado a elaborar um conhecimento acumulativo

e uma compreensão duradoura dos contextos políticos. (KUNCZIK, 2001,

p.326).

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No contexto da redação do Jornal do Brasil, foi com o convívio de Raul Ryff, redator

no JB e ex-secretário de imprensa de João Goulart, que o narrador começou a simpatizar mais

com o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), relembrando um pouco de sua infância em uma rua

de operários. Esta lembrança mostra que, desde jovem, Gabeira vê uma direita aristocrática,

que não gosta de pobre, e uma esquerda mais igualitária.

Na tentativa de entender seu contexto político-partidário, o autor resgata a origem

anarquista do PCB (Partido Comunista Brasileiro). A partir dessa análise, critica a postura de

importação acrítica de ideias e modelos europeus, que não se sustentam em um contexto

brasileiro. Coloca este ponto como a razão da queda dos movimentos anarquistas em 1922 e

salienta que a crise que o PTB vivia em 1964 era muito parecida com o contexto daquele

período. Esses apontamentos, segundo o narrador, direcionam para grandes mudanças na

estrutura do país, que ainda eram incompreensíveis para o jovem Gabeira.

Uma possível leitura desses primeiros capítulos da obra é a de que o narrador está em

busca de significados para as transformações vividas na década de 1960. É, de certa maneira,

uma preparação para os eventos futuros da obra. Gabeira-narrador escancara sua inocência em

uma crítica velada aos movimentos esquerdistas daquele tempo.

O narrador conta que o Partido Comunista lhe era muito misterioso à época. Não sabia

direito do que se tratava:

Do Partido Comunista conhecia muito pouco, no princípio dos anos 60.

Quando menino todos os operários do meu bairro eram getulistas. Apenas seu

Milton Barbeiro era comunista e o único líder famoso que o partido deu em

Juiz de Fora foi Lindolfo Hill. A simpatia que havia por eles era a simpatia

que havia por todos aqueles de quem a polícia não gostava. (GABEIRA, 2009,

p.26)

Acrescenta que “as coisas tinham um sabor de século XIX, mas as questões que a luta

interna foi colocando diante dos meus olhos eram muito mais sofisticadas que as minhas”

(GABEIRA, 2009, p.26). Para exemplificar sua inocência conta de uma assembleia estudantil

de quando tinha 17 anos e não conseguia convencer os pais dos alunos a entrar em greve geral,

quando um senhor se levanta e faz um discurso inflamado dizendo que, como pais, eles todos

deveriam acatar a palavra de ordem da greve. Tempos depois encontra o mesmo senhor em um

bar, bebendo. Conversando com ele, descobre que o senhor não tinha filhos.

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Ao mesmo tempo em que Gabeira constrói aos poucos seu narrador e personagem

principal, também enumera alguns exemplos de jornais e jornalistas que foram resistentes a

ditadura. Faz esse levantamento, evidenciando que não eram poucos os que tentavam resistir:

No nível da imprensa, o centro da oposição estava localizado no Correio da

Manhã, de onde surgiram excelentes artigos condenando o governo. António

Callado, Oto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves e

Hermano Alves eram alguns dos autores da crítica à ditadura. Os jornais

chegavam às bancas e praticamente se esgotavam. Se a venda avulsa desse

lucro, o Correio da Manhã daquela época teria prosperado rapidamente. A

política de Castelo, que acabou culminando com a edição do AI-2, após a

vitória da oposição em Minas e no Rio, era dissecada impiedosamente. Havia

um outro jornal no Rio que se dedicava exclusivamente à oposição. Chamava-

se Folha da Semana, era publicado em cores, azul e preto. Alguns dos

articulistas eram os mesmos, como por exemplo Carpeaux e Artur José

Poerner. O Correio da Manhã foi asfixiado pelo corte da propaganda. Só com

a venda avulsa não dava para agüentar. O Folha da Semana foi simplesmente

fechado pelo Cenimar e seus diretores processados. O estopim foi

um artigo acusando o ministro Suplicy de Lacerda de tentar corromper a

liderança estudantil. Na verdade, os órgãos de segurança diziam ser o Folha

da Semana um órgão simpático ao Partido Comunista Brasileiro e iriam fazer

todo esforço para demonstrar essa conexão. (GABEIRA, 2009, p.29)

A estratégia de minar um jornal pelo corte de propaganda não era novidade na imprensa

brasileira. Nos anos de 1930 e 1940, o governo Getúlio Vargas, no Estado Novo, já exercia

influência estatal sobre as empresas (com ameaças de cortes nos contratos com o governo,

ameaças de uso da máquina pública para prejudicar empresas etc.) a fim de que o sustento da

imprensa ficasse limitado à venda em bancas.

Essa tática governamental é extremamente funcional porque a estrutura financeira de

publicações jornalísticas se dá em uma relação triangular, cujos vértices são o produtor da

informação (jornal), o público leitor e a indústria e o comércio (publicidade). Assim, um jornal,

para sobreviver, necessita da verba que procede do público, por meio de assinaturas e vendas

em bancas, e da verba proveniente da publicidade. Regido também pelas leis de mercado, as

publicações reduzem o custo para o leitor com o intuito de vender mais, e repassam esse custo

aos anunciantes, ficando “reféns” desse investimento. Quando qualquer player do mercado

financeiro atua para prejudicar os investimentos de anunciantes na imprensa, os jornais ficam

sem alternativas de sobrevivência comercial, estando fadados, muitas vezes, à falência.

É interessante notar que a asfixia comercial articulada pelo governo é uma tática muito

sagaz, uma vez que maquia a censura. A restrição autoritária do que deve ou não ser publicado

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corre nas sombras das influências do jogo político, invisível à população comum e tão perigoso

quanto um empastelamento, como foi o caso do Folha da Manhã, por parte do Cenimar10.

Aos olhos do narrador, a imparcialidade jornalística, por vezes tão defendida nas

cátedras, neste período de repressão serviu como correntes que prendiam os jornalistas aos

textos passivos e condescendentes. A criatividade se tornou um instrumento de resistência.

Quando você é repórter e quer participar da oposição, não pode usar juízos de

valor nem adjetivos como os grandes articulistas que têm um espaço a sua

disposição. O que você pode fazer é organizar os fatos de forma tal que

incomode o adversário. Foi assim comigo, que morria de inveja do que se fazia

no Correio da Manhã. (GABEIRA, 2009, p.29-30).

O personagem principal, neste começo da obra, está se formando, apresentando os

moldes que forjam seu comportamento. Sua frustração em fazer oposição nos jornais é basilar

em suas decisões, especialmente em participar da luta armada contra a ditadura. A maneira

como o narrador coloca as questões dos jornais e da repressão parece uma tentativa de

interpretação de sua futura afiliação às fileiras da luta armada.

Outro elemento formador do caráter do personagem principal é a sua ligação com o

marxismo. Sua interpretação das estratégias governamentais de arrocho salarial para contenção

da inflação (colocadas em 1964) evidencia essa linha de pensamento. “Em alguns casos,

jogavam com o pavor da dissolução das diferenças entre o trabalho intelectual e o trabalho

manual. Diziam: os estivadores estão querendo ganhar tanto quanto um médico. É um absurdo,

uma república sindicalista” (GABEIRA, 2009, p.30-31).

A ideia marxista de que se vale o narrador é a da alienação e da ideologia. Segundo este

pensamento, o trabalho é fundamental na interpretação das relações humanas, porque ele é

essencialmente condição humana. O grande diferencial do homem é o fato de ele se apropriar

da natureza por meio do trabalho. O conceito de alienação surge quando, socialmente, separa-

se do trabalhador os resultados de seu trabalho, transformando-o em mercadoria. Assim, o

trabalhador não tem autonomia: o trabalho é mercadoria e seu resultado é usufruído por outros.

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias

dominantes, ou seja, a classe que é a força material dominante da

sociedade é, ao mesmo tempo, a força intelectual dominante. A classe

10 “Centro de Informações da Marinha. Teve importante papel na repressão às organizações de resistência do

governo. Sua área de atuação era o Rio de Janeiro.” (GABEIRA, 2009, p.208)

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que tem os meios de produção material à sua disposição tem, ao mesmo

tempo, controle sobre os meios de produção mental, de modo que, em

geral, as ideias daqueles que carecem dos meios de produção mental

estão sujeitas a ela. (MARX; ENGELS apud HEYWOOD, 2010, p.19)

O grande problema apresentado é a consequência da alienação, a ideia de que é natural

que o trabalho manual seja menos remunerado que o trabalho intelectual. Essa é uma ideia

construída, não formada naturalmente no homem, o que significa que se deu por meio de

relações sociais. A construção de uma ideia por uma classe dominante (dono do capital) imposta

e difundida nas classes dominadas (força de trabalho) é o que Marx (2007) chamou de ideologia.

Para ele, a ideologia é algo que perpetua a divisão de classes e que mantém, sob o argumento

de que “as coisas são assim” (“naturalidade” das relações sociais), as classes dominadas sempre

na mesma situação.

A esse conjunto de ideias, a essas representações que servem para justificar e

explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele

mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia. Como

ela é elaborada a partir das formas fenomênicas da realidade, que ocultam a

essência da ordem social, a ideologia é “falsa consciência”. (FIORIN, 1990,

p. 28)

Da mesma forma, jamais desapareceu a prática do ocultamento através da

influência que o poder público pode exercer sobre a imprensa, através da

monopolização dos meios de comunicação de massa, sobretudo através do

exercício sem preconceitos do poder ideológico, sendo a função das ideologias

a de cobrir com véus as reais motivações que movem o poder, forma pública

e lícita da "nobre mentira" de origem platônica ou da "mentira lícita" dos

teóricos da razão de Estado. (BOBBIO. 1987, p.31)

Gabeira via no contexto político brasileiro dos anos 1960 a concretização da ideologia

marxista. Isso leva o narrador a questionar se o Brasil era ou não um país capitalista de fato e a

discutir se ainda há resquícios de feudalismo nas terras brasileiras. O que ele pontua é o mesmo

que Fiorin (1990) chamou de “falsa consciência”. Bobbio (1987) irá apontar para a ideologia

como venda social, que impede seus membros de enxergarem a realidade que os cerca. É nesse

escopo de entendimento ideológico que Gabeira (2009) sugere seus questionamentos em

relação ao poder político vigente.

Saindo um pouco da filosofia social, o narrador questiona sua própria existência na obra

e traz a discussão para a comunicação.

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As pessoas estão seguras de si, estão tranquilas, mas quando partem para o

exílio estão tristes também. Bastava surpreender qualquer um deles distraído

para captar um olhar vazio, uma cabeça que se abaixa. Saí pelo Flamengo e

creio que se estivesse num romance chutaria uma pedra e atravessaria a rua de

mão no bolso. Mas aquilo era o Brasil, eu não era um personagem e havia

muito o que fazer para estar à altura dos amigos que partiam. (GABEIRA,

2009, p.34)

Neste ponto, Gabeira não se assume personagem. Como um personagem-repórter, ele

se posiciona no real e não na ficção. É o antigo problema do jornalismo literário, em que se

discute a ficcionalidade do relato jornalístico e as técnicas literárias imbricadas na reportagem.

O narrador mostra em que ponto poderia adicionar ficção e não o faz. Apesar da impossibilidade

de se construir um texto imparcial, ele ratifica sua tentativa de fazê-lo.

Nesta tentativa de viver, dentro do texto, o real e não a ficção, Gabeira traz elementos

externos para encontrar sua realidade (identidade?). No caso citado anteriormente, o elemento

externo é o exílio vivido por seus amigos e a tristeza decorrente deste:

Mas a intensidade com a qual a personagem capta o não-Eu (e reflui para o

Eu) nos faz também sentir o quanto a realidade é para ela, em primeiro lugar,

exterioridade. Neste mundo do exterior do qual gostaria de abolir a fronteira

que a isola dele, vê sobretudo uma resistência que tanto os seres como as

coisas lhe opõem. (ZÉRAFFA, 2010, p. 152)

A questão do exílio é um assunto muito complexo que será retomado mais a frente na

obra. Neste início de livro, ele funciona mais como elemento formador do personagem

principal, que, agora, caminha para a luta armada, se envolvendo com guerrilhas, ainda que sem

muito planejamento.

“A esquerda era na época, e possivelmente ainda o seja hoje, quase que exclusivamente

urbana, enraizada no movimento estudantil e entre os intelectuais” (GABEIRA, 2009, p.43).

As guerrilhas que se formavam nos movimentos de esquerda eram, portanto, majoritariamente

urbanas e não rurais. O fato de ser enraizada no movimento estudantil e entre os intelectuais

mostra que essas guerrilhas não dispunham de um planejamento militar complexo ou efetivo.

O que se observa é uma série de tentativas frustradas de combater o poder público, incendiar as

massas e tomar o governo.

Neste ponto da história, o narrador retoma a cena inicial do livro, quando ele está na

sacada do Jornal do Brasil, observando uma passeata de estudantes. Essa passeata era um

protesto contra a Lei Suplicy de Lacerda (lei nº 4.464, de 1964), que regulamentou as

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organizações estudantis, impedindo-as de realizar atividades políticas. O capítulo 6 é, portanto,

usado pelo narrador para retomar o leitor para o ano de 1966, no centro do Rio de Janeiro, com

o próprio narrador sendo o personagem principal. Ou seja, aqui os elementos do romance

(tempo, lugar e personagens) retornam para linearidade. “Os tempos voam também sobre o

narrador. Quase na hora de pular o muro da Embaixada da Argentina e ainda nem chegamos a

68. E 68, vocês sabem, já estava se gestando nas esquinas, nas fábricas, nas redações”

(GABEIRA, 2009, p.47). Essa retomada narrativa é importante para o entendimento da obra e,

por outro lado, evidencia a amálgama jornalístico-literária construída por Gabeira até aqui.

Nesta linha, é possível observar a aproximação das áreas do jornalismo e da literatura

em suas funções históricas, a partir de estratégias de construção de texto. Antônio Cândido

(2006), observando a aproximação de história e literatura na obra Caramuru, de Frei José de

Santa Rita Durão, elenca, por exemplo, três elementos básicos nessa construção: colonização,

natureza, índio. Ele propõe uma análise literária que perpassa esses elementos,

[…] sugerindo que a função histórica ou social de uma obra depende da sua

estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal de certas

representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi

escrita. Devemos levar em conta, pois, um nível de realidade e um nível de

elaboração da realidade; e também a diferença de perspectiva dos

contemporâneos da obra, inclusive o próprio autor, e a da posteridade que ela

suscita, determinando variações históricas de função numa estrutura que

permanece esteticamente invariável. Em face da ordem formal que o autor

estabeleceu para sua matéria, as circunstâncias vão propiciando maneiras

diferentes de interpretar, que constituem o destino da obra no tempo.

(CANDIDO, 2006, p. 177).

Candido também fala sobre a genealogia da literatura, que tentou, nos idos do

Romantismo, construir um legado histórico próprio do Brasil, não importado da Europa. Neste

mesmo sentido, avulta-se a questão da resistência atrelada à literatura, à narrativa. Bosi (1996,

p. 13) defende que essa ideia de resistência vinculada à narrativa é realizada a partir de duas

perspectivas: por meio do tema e por meio dos processos de escrita.

Partindo desse olhar, a obra de Gabeira (2009) é uma obra de resistência. Sua temática

aponta para questões políticas muito específicas e contundentes. Sua técnica de escrita

contribui, outrossim, para a formação dessa ideia ao longo de todo texto. O contexto de valores

da sociedade brasileira dos anos de 1960 e 1970 é questionado por Gabeira.

O narrador cria, segundo o seu desejo, representações do bem, representações

do mal ou representações ambivalentes. Graças à exploração das técnicas do

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foco narrativo, o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional

toda uma fenomenologia de resistência do eu aos valores ou antivalores do

seu meio. Dá-se assim uma subjetivação intensa do fenômeno ético da

resistência, o que é a figura moderna do herói antigo. Esse tratamento livre e

diferenciado permite que o leitor acompanhe os movimentos não raro

contraditórios da consciência, quer das personagens, quer do narrador em

primeira pessoa. (BOSI, 1996 p. 15).

A morte do estudante Edson Luís, que se tornou um evento, foi um estopim para o

despertar de muitos movimentos para a luta armada e para a resistência ao regime militar. O

narrador conta que entrou para uma organização leninista: a Dissidência Comunista, “uma cisão

do PC brasileiro” (GABEIRA, 2009, p.66). Ele trata o assunto com certa comicidade,

mostrando sua ignorância e inocência, mas o fato é que este é o início do personagem no

movimento que o embarcaria no sequestro ao embaixador norte-americano.

O imaginário que se construiu em torno da luta armada no Brasil, influenciada, inclusive

pelos jornais da época, foi marcado pela inocência e o amadorismo dos movimentos. Na ideia,

a luta era fantasiada, mas na prática não havia glamour.

O sonho de muitos de nós era o de passar logo para um grupo armado. Em

nossa mitologia particular, conferíamos aos que faziam esse trabalho todas as

qualidades do mundo. Sair do movimento de massas para um grupo armado

era como sair da província para a metrópole, ascender de um time da terceira

divisão para o campeonato nacional. Dizíamos, é claro, que todo o trabalho,

mesmo o mais humilde, era importante. Mas isso não bastava. Os jornais

estimulavam nossas fantasias. Eram descrições mirabolantes: jovens com

nervos de aço (ainda saíamos nas páginas de polícia); louras que tiravam uma

metralhadora de suas capas coloridas. (GABEIRA, 2009, p.80)

Alguém subiu no carro da polícia e falou sobre a violência. A polícia era um

símbolo da violência dos patrões. Nós iríamos queimar o carro da polícia,

aplicando a violência dos trabalhadores. Tudo muito simples, se tivéssemos

fósforo. A gasolina já estava escorrendo pelo chão e não havia fósforo. Só

depois de alguns minutos, quando já havíamos deixado o lugar, é que o carro

começou a pegar fogo. Alguém que possivelmente não era patrão nem

trabalhador aproveitou a oportunidade para queimar um carro da polícia,

praticamente entregue de bandeja. (GABEIRA, 2009, p.75)

O episódio narrado evidencia o despreparo de parte dos grupos armados no Brasil. O

desejo do narrador-personagem de fazer parte de algum movimento revolucionário armado vai

perdendo seu romantismo ao longo da narrativa. As cenas também contribuem para o

entendimento do leitor sobre o que de fato eram esses grupos e quem os compunham, tendo em

vista que, em 1979, quando o livro foi lançado pela primeira vez, ainda existia muita ignorância

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da sociedade sobre os fatos que corriam. Lançar mão dessas histórias em seu romance, mostra

a preocupação de Gabeira em trazer luz sobre determinados assuntos que eram mantidos pelos

militares na obscuridade.

O período que se segue na narrativa, no correr dos anos 1966 a 1969, é de maior

intensidade na repressão e perda de força dos movimentos mais radicais de resistência. A

oposição ao regime mais eficiente parecia ser de movimentos mais moderados. “O AI-5,

decretado em 13 de dezembro de 68, foi um golpe dentro do golpe, um golpe de misericórdia

na caricatura de democracia. Caímos, aí sim, na clandestinidade” (GABEIRA, 2009, p.84). O

governo militar, no fim dos anos 1960, acentuou sua atuação no controle dos veículos de

comunicação. Gabeira e seus colegas insistiam, no entanto, na produção do jornal Resistência.

A linha narrativa ainda é um pouco confusa ao leitor e segue muito o fluxo de

pensamentos do narrador. Essa estrutura de linguagem permite muita velocidade no caminhar

do texto, aproximando-o do cinema, com suas cenas curtas e nem sempre explicativas. Um

possível efeito de sentido produzido nessa sequência é o da efervescência política, cultural e

social que o Brasil viveu neste período: o leitor se encontra em meio a um turbilhão de

informações. Esse fluxo só irá se abrandar no penúltimo capítulo da obra, quase na metade do

livro. O trecho a seguir mostra um pouco como se deu esse abrandamento do fluxo de

consciência do narrador-personagem.

Chega um momento em que o narrador precisa ajustar melhor suas linhas,

tensionar melhor o seu arco, tirar alguns efeitos técnicos: Todos esperam isso

dele, sobretudo na hora da emoção. Mas o narrador já aprendeu, com o tempo,

que um livro, um longo relato, não é apenas uma sucessão de histórias que se

contam num punhado de páginas brancas. Um livro não se controla. A notícia

mais simples sobre o assunto foi esta:

AP161

URGENTE

RIO DE JANEIRO, 4 (AP) – O EMBAIXADOR DOS ESTADOS UNIDOS

NO BRASIL, CHARLES BURKE ELBRICK, FOI SEQUESTRADO HOJE

NO RIO DE JANEIRO.

UM PORTA-VOZ DA EMBAIXADA CONFIRMOU A NOTÍCIA À

ASSOCIATED PRESS. (GABEIRA, 2009, p.95)

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Até este ponto do texto, o narrador se preparou (e preparou seu leitor) para o grande

clímax da história: o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil. O grupo Dissidência

Comunista, do qual Gabeira fazia parte, havia assumido o nome de MR-8 (Movimento

Revolucionário 8 de Outubro), em referência à data de morte de Ernesto Che Guevara, líder

revolucionário sul-americano e, no entanto, enfrentava uma decadência, com muitos de seus

membros presos ou desaparecidos.

O capítulo 15 (penúltimo) conta, da visão do narrador, como se deu o sequestro do

embaixador. Um dos integrantes do MR-8 percebeu que o embaixador, Elbrick, seguia de carro

para o trabalho sempre pelo mesmo caminho e que não havia carros de segurança com ele. Para

todo o grupo, aquela era uma oportunidade única de conseguir ser ouvido. Planejaram como se

daria todo o golpe, alugaram uma casa que serviria de cativeiro e esconderijo e executaram o

plano. A princípio, tudo correu perfeitamente: eles conseguiram levar o embaixador cativo até

a casa alugada sem que ninguém os seguisse.

É interessante notar alguns pontos sobre o relato do sequestro. Gabeira deixa claro em

seu texto que apenas um integrante de todo o grupo tinha, de fato, alguma experiência em

operações paramilitares. Assim, a manobra toda contou com grande sorte por parte do MR-8.

Não demorou para os militares descobrirem o local do cativeiro, bem como quem eram os

sequestradores. O que, no entanto, impediu uma intervenção precipitada do exército foram

questões diplomáticas. A representatividade de Elbrick e a possibilidade, mínima que fosse, de

que ele se ferisse em uma ação militar, deu ao grupo de Gabeira uma certa ideia de controle da

situação, ou mesmo de vitória.

A edição do livro usada por este pesquisador, de 2009, traz duas notas de rodapé neste

capítulo que são muito significativas para a relação autor/obra/leitor. Na primeira, por ocasião

da apresentação das exigências feitas pelo grupo para que libertassem com vida o embaixador,

há a seguinte demanda: “b) a publicação e leitura desta mensagem completa nos principais

jornais e estações de rádio e televisão do país” (GABEIRA, 2009, p.106). Na nota de rodapé,

aparece a informação de que o autor do manifesto é Franklin Martins, jornalista, que foi

ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom) durante os anos de 2007 a 2010, no

governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Martins já havia sido líder estudantil e foi um dos

idealizadores do sequestro. Na primeira edição de “O que é isso, companheiro?”, de 1979, a

informação de quem escrevera a carta não havia sido revelada e todos os integrantes do grupo

tinham codinomes na narrativa.

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A outra nota de rodapé que aparece se refere ao texto em que Gabeira conta sobre o

único ferimento que causaram em Elbrick. “O forte golpe que o embaixador recebeu na cabeça

se deu no momento do transbordo” (GABEIRA, 2009, p.110). O texto da primeira edição trazia

a expressão “pequeno golpe”, que aqui fora substituída por “forte golpe”. Segundo a nota desta

edição, a alteração se deu em face das anotações que o próprio embaixador fez em seu exemplar

do livro. “O exemplar do embaixador criticava esse adjetivo com uma série de pontos de

interrogação. Decidi mudar o adjetivo, porque quem leva a pancada sabe mais” (GABEIRA,

2009, p.110).

Essas duas notas representam muito do olhar jornalístico do autor. A primeira, sobre o

nome do responsável pela escrita do manifesto, mostra como ainda era muito tensa a situação

política da época em que o livro foi publicado. Fernando Gabeira assume um compromisso com

seu leitor de dizer a verdade, um contrato social acordado entre jornalistas e sociedade, mas não

consegue, em 1979, dizer os reais nomes de seus companheiros. Ele sabia que muitas represálias

poderiam surgir a partir da divulgação desses nomes e, por isso, opta por não revelá-los. Seu

compromisso jornalístico o instiga a denunciar a ditadura ainda que tenha de ocultar nomes de

suas fontes. O autor não tinha espaço nos periódicos da época para publicar essa história, já que

boa parte deles estava refém da vigilância governamental. A literatura foi a saída encontrada

por Gabeira para cumprir com seus deveres jornalísticos: a literatura aceita personagens com

nomes inventados, o jornalismo, pelo contrário, estranha. O jornalista, então, se utiliza de

estratégias literárias para a práxis jornalística.

A segunda nota também revela esse desejo por verossimilhança, que é muito típico da

práxis jornalística. O fato de o autor substituir um adjetivo por outro, produzindo um sentido

diverso da ideia inicial, expõe seu compromisso com a busca pela verdade. Manifesta, ainda, a

relevância da relação autor/leitor na produção de sentido da obra. Gabeira certamente entendeu

que as observações feitas por aquele leitor, em especial, ajudariam a compor um quadro mais

realístico em seu livro e esta é outra característica que aproxima sua obra do realismo e dos

romances de não-ficção.

1.3 Clímax

De volta à narrativa, toda a história de como se deu o sequestro, como foram as

negociações com os militares, a notícia da libertação dos presos políticos e toda a cena da soltura

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do embaixador aconteceu no capítulo 15. Apesar de acharem que a ação havia sido um sucesso,

o desfecho é tenebroso para o MR-8.

Os participantes da ação se dispersaram a partir da noite de domingo. Dois

morreram: Toledo, sob torturas em São Paulo; Jonas, o comandante militar da

ação, massacrado a pontapés pela equipe do capitão Albernaz, na Operação

Bandeirantes. Alguns foram presos e liberados, depois de cumprirem a pena,

outros foram liberados, por sequestro, e vivem em lugares diferentes, no

exílio. Alguns fugiram, e finalmente, um de nós enlouqueceu e perambula

pelas ruas de Paris, de barba e cabelo grande. Sobrevivi. E pensei que talvez

fosse interessante contar a história. (GABEIRA, 2009, p.126)

Este trecho, desolador, é dramático e nauseante. Toda a inocência e comicidade

desaparecem do texto e a narrativa, como nas peripécias dos episódios folhetinescos, envolve e

amarra o leitor para a trama final: o que acontece com Gabeira. Essa estratégia não era novidade

e tinha reascendido no meio jornalístico com um movimento norte-americano, chamado de

Novo Jornalismo, que trouxe de volta para as redações algumas preocupações estéticas típicas

da literatura. O que Gabeira construiu também foi, de certa maneira, jornalismo literário, o

mesmo que os novos jornalistas exultavam nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos.

Finalmente, o último capítulo da obra descreve como o narrador entrou na “mais

profunda clandestinidade” (GABEIRA, 2009, p.126). Depois do sequestro e do desfecho

desastroso de seus colegas, Fernando Gabeira se esconde. Ele é colocado para morar com uma

mulher, chamada Ana, que segue sua vida normalmente, enquanto ele fica restrito a viver dentro

do apartamento. Esse período em que ele fica recluso, apenas escondendo-se, se torna uma fase

de amadurecimento do personagem.

O poder, quando entra em conflito, de um modo feral parte para repressão. E

quem mais dedicado à repressão intelectual do que o intelectual que se nega?

Quem mais capaz do que ele para orientar os seus inimigos? O assustador

naquele período da exaltação ao militarismo foi o quanto andamos perto de

uma visão muito rígida e burocratizante, incapaz de libertar não apenas as

forças culturais dos setores onde atuávamos, mas incapaz inclusive de liberar

nossa própria potencialidade. (GABEIRA, 2009, p.134)

Reflexões como essa seguem ao longo das primeiras páginas do capítulo. Por vezes, o

narrador reconhece algumas de suas falhas no movimento, em outros momentos se inocenta do

calamitoso final da ação. De qualquer maneira, o leitor é levado a repensar a solidez dos

conceitos levantados pelo MR-8.

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Com um olhar mais maduro, o narrador passa a desnudar a escabrosa condição a que os

trabalhadores comuns estavam fadados durante o regime militar. Já em São Paulo, percebe a

grande quantidade de migrantes nordestinos que chegam à metrópole e são recebidos sem a

menor condição social e econômica, vivendo à margem da sociedade, excluídos, invisíveis. Pela

sua própria experiência, denuncia o abismo social que separa a elite dos operários, apontando

também para a sua própria desilusão. Ele que sonhava com os operários musculosos e

conscientes dos cartazes russos, agora enfrenta a realidade paulistana. É uma cena de

enfrentamento da realidade.

A miséria, entretanto, era ainda bem visível, e a casa onde fiquei nas primeiras

semanas era uma expressão dela. Com dois cômodos, uma sala e um quarto,

abrigava o casal de operários, sua filha maior, duas crianças e a avó. O dono

da casa era operário na construção civil, a filha trabalhava na indústria têxtil.

A mãe e a avó das crianças passavam o dia em casa. O casal usava o quarto e

os outros dormiam na sala. Não havia água corrente, mas um poço no fundo

do quintal. (GABEIRA, 2009, p.142).

Ainda na casa desta família, o narrador questiona o poder da televisão, que começava a

aparecer nas casas dos mais pobres. A TV, que chegara ao Brasil em 1950, foi muito

influenciada pelo rádio em sua linguagem e programação. Não demorou a se tornar um veículo

de massa altamente popular e influenciador. E é justamente essa influência que chama a atenção

de Gabeira.

O tempo da narrativa é a virada do ano de 1970 para 1971. Mas definir esse tempo

também é problemático. A narrativa fluida não faz muitas marcações temporais e, por vezes,

alonga-se em histórias que se passam em dias; outras vezes, acelera os acontecimentos de anos.

O grande momento de toda a história acontece quando Gabeira é preso, numa cena digna

do cinema. O “aparelho” (GABEIRA, 2009, p.88) - local onde se instalavam momentaneamente

– em que Gabeira e um companheiro estavam alojados fora desbaratado pela polícia. Enquanto

tentava fugir, foi perseguido e levou um tiro pelas costas antes de ser efetivamente detido. O

episódio remete às peripécias de uma novela, em que o herói é posto contra a parede e não

consegue fugir ao destino que lhe fora traçado. O narrador é levado ao Hospital das Clínicas no

porta-malas do camburão policial para os primeiros-socorros. Ficou um tempo internado lá, até

ser transferido para o hospital do II Exército, “onde poderiam atuar com mais tranquilidade”

(GABEIRA, 2009, p.153). Ele foi sucessivamente interrogado pelos oficiais da Operação

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Bandeirantes (destacamento paulista da repressão política), mas por ter tomado um tiro, em um

primeiro momento não foi torturado.

Seu cenário favorável logo mudaria de figura e, pouco tempo depois, ainda preso, o

narrador começa a sofrer torturas físicas em seus interrogatórios, com choques elétricos em suas

mãos (antes, havia sofrido torturas psicológicas, com xingamentos, gritarias e discursos

opressores). Neste cenário, em uma das pouquíssimas vezes ao longo da obra, o narrador se

assume Fernando Gabeira.

Às vezes éramos exibidos aos grupos que estavam montando o trabalho no

interior. Capitães do Rio Grande do Sul apareciam na porta da minha cela e

ouviam uma ligeira preleção: “Este é o Gabeira, participou do sequestro do

embaixador americano, foi preso aqui em São Paulo, por nós. Tudo bem,

Gabeira?” (GABEIRA, 2009, p.161)

O fato de lhe parecer desnecessário, pois evidente, explicar que o narrador é um outro

eu do autor, sugere técnica jornalística, uma vez que no jornalismo o narrador é sempre uma

projeção do próprio autor.

A relação do narrador e dos outros presos com os guardas, que eram da Polícia Militar

e não do Exército (a PM era conhecida por ser menos truculenta que o Exército), denunciam a

naturalidade da violência naquele contexto. Tudo parece normalidade para os guardas. O preso

não lhe dá bom-dia e ele acha que há algo errado. Aquele contexto de violência e violação de

direitos básicos da humanidade pareciam costumeiros para os militares. Aquilo não passava de

um companheiro de trabalho, de um objeto de trabalho: era como um guarda de museu. Muitos

soldados rasos e guardas de baixa patente estavam alienados das questões políticas das quais

faziam parte. Há uma retomada do conceito de alienação usado por Marx (2007). Os militares

aceitavam as condições que viviam como algo natural, do destino, não como resultado de

relações sociais e, portanto, de decisões.

A violência praticada pelas forças militares era brutal e degradante. A obra de Gabeira

atinge seu ápice, denunciando os escabrosos procedimentos a que eram submetidos os presos

pela ditadura.

Lembro-me de Augusto, um ex-oficial de cavalaria, acusado de pertencer ao

comitê central do PCBR11. Tinha um postura física irrepreensível, apesar dos

11 “Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Dissidência do Partido Comunista Brasileiro” (GABEIRA, 2009,

p.210)

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seus sessenta anos. Perto dele, com aquele tiro nas costas, eu parecia um velho

reumático. Contava histórias de 37 e dizia que, na Fortaleza de Santa Cruz, as

condições de prisão eram piores que as daquela cela grande da PE. Segundo

ele, ficavam todos dentro da água, molhados até o joelho. Ainda bem que não

estávamos em 37, pensava, tentando me consolar a respeito da nova situação.

A apenas alguns metros abaixo de nós, aconteciam coisas certamente muito

mais graves do que naquela época. Mário Alves fora trucidado e morrera com

um pedaço de pau enterrado no ânus. E de quem eram aqueles gritos agora?

(GABEIRA, 2009, p.177-178)

Criatividade para tortura e humilhação não faltavam aos militares: presos eram

obrigados a lamber chão e paredes, ouviam xingamentos sistematicamente, ficavam sem

comida, levavam choques elétricos, eram postos no pau de arara, enforcados e afogados.

A última parte da obra é uma reflexão acerca da brutalidade da ditadura militar

brasileira. Gabeira se aprofunda em questões complexas, como o caso dos inocentes que

morrem em qualquer guerra ideológica.

Um deles estava ali porque pegou uma carona para o Maracanã com um amigo

chamado Razek. O amigo era militante e tinha um ponto. Ele viajava ao seu

lado com a bandeira do Flamengo na mão, completamente despreocupado. O

amigo pediu um tempo, parou a Rural perto do passeio público e foi ao seu

ponto. Nisso, a polícia que estava no ponto prendeu Razek apontando

metralhadoras contra a sua cabeça. Ele tinha se afastado um pouco, para tentar

achar um botequim. Antes de sair, entretanto, aconselhara Razek a não

estacionar em cima do passeio. Quando voltou do botequim e viu seu amigo

cercado pensou: esses caras do Detran exageraram, por que não multar

apenas? Quando se aproximou para protestar contra a violência policial diante

de uma simples infração de trânsito, foi preso e levado também para a PE da

Barão de Mesquita, onde ficou um mês tentando entender. (GABEIRA, 2009,

p.179)

O parágrafo é interessante porque, de certa forma, o narrador reconhece sua culpa e

reconhece os inocentes da história. Eles aparecem para o narrador como o lado humano de si

mesmo. Enxerga nos inocentes o lado emocional daquela guerra: a organização e a ditadura

travavam uma guerra ideológica, no âmbito do pensamento, mas os inocentes eram a emoção,

ao menos para o narrador.

Nessas páginas, o narrador discute a podridão moral da sociedade brasileira que tolera

atitudes como as vividas na PE da Barão de Mesquita. Argumenta que ele mesmo não via bem

e mal tão divididos assim, mas que certamente saberia dizer que aquilo era podre, pré-histórico.

Por mais que nós enviássemos bilhetes da cadeia, por mais que

colecionássemos histórias escabrosas, não conseguiríamos apreender aquele

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processo em sua complexidade, antes de vivê-lo na carne. [...] Às vezes, antes

de dormir, dizia a mim próprio que nos tratavam como inimigos de guerra.

Mas era apenas um consolo. E daí? E se fôssemos prisioneiros de guerra

vindos de outro país, ou mesmo de outro planeta? Uma civilização que tratava

dessa forma seus prisioneiros de guerra precisaria ser repensada de alto a

baixo. Também eu era um produto dessa civilização. (GABEIRA, 2009,

p.180-181)

De fato, precisa ser repensada. E esse talvez seja o grande desejo do narrador com sua

obra: refazer a sociedade brasileira. Para ele, o inimigo era a tortura em si. Depois de ver

publicadas em jornal fotos do Exército executando treinamentos para suportar situações de

tortura, obviamente, treinamento de um instrumento que a própria ditadura utilizaria

recorrentemente, Gabeira insinua que tudo aquilo não passava de um grande e ensaiado balé

(2009, p. 185). No entanto, as causas nobres nunca torturam. Quase um contrassenso do

narrador, que por sua causa sequestrou um embaixador, torturando-o, portanto.

A discussão caminha, dessa maneira, para a sensibilidade das pessoas em perceber o

que as cerca. Uma discussão quase epistemológica do jornalismo. Contar essa história em livro,

é uma tentativa de tornar o discurso perene, de não se deixar ser esquecido. Embrenhar-se na

literatura, ainda que jornalista, seria um enorme desafio e a obra parece que faz um caminho de

redenção do narrador. “O governo havia decretado nossa morte oficial assinando uma pena de

banimento, mas, paradoxalmente, começávamos a viver” (GABEIRA, 2009, p.206).

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2. Análise do filme O Que é Isso, Companheiro?

2.1. Preparação

Enquanto o livro de Fernando Gabeira parece caminhar para uma tentativa de redenção

do próprio narrador, que espreme a ferida dos anos de chumbo ao contar sua história assumindo

seus erros e quebrando paradigmas, o filme de Bruno Barreto parece seguir para um outro rumo,

para a perpetuação desses estigmas. Em O que é isso, companheiro? (1997), o espectador é

apresentado a uma série de estereótipos que compõem o imaginário identitário nacional,

especialmente sobre os tempos da ditadura militar.

O início do filme é um bom exemplo disso. A obra começa com um clipe de sequência

de fotografias em branco e preto do clichê do Rio de Janeiro dos anos de 1960, precedidos pelo

letreiro “Rio de Janeiro / Início dos anos 1960” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, 1997):

baía de Guanabara, calçadão de Copacabana, cenas alegres, personagens sorridentes, contexto

de praia, mulheres bonitas, bondinho do centro, barraca de frutas, feira livre, Garrincha e o

Maracanã, além de um close nos rostos de dois homens, um negro e um branco, apontando para

a diversidade do povo carioca. Toda a sequência se dá ao som de Garota de Ipanema, de Tom

Jobim, um dos maiores clássicos da música brasileira e símbolo de uma geração.

O uso destes relatos fotográficos também sugere um tom documental ao filme. São

fotografias que, aparentemente, não foram produzidas exclusivamente para o filme, mas

imagens que realmente foram fotografadas na época. Sendo assim, encaminham o espectador

para uma expectativa de realidade, de vídeo-documentário. Este é, talvez, o primeiro elemento

passado do livro para o filme: o assumir-se realidade. No livro de Gabeira (2009), o fato de se

tratar de um jornalismo literário, faz com que o leitor espere verossimilhança no texto. Ao

iniciar o filme com tal sequência, Barreto (1997) faz o mesmo com seu espectador, dizendo a

ele que se trata de uma representação da realidade.

Essa sequência inicial é um mecanismo do audiovisual para trazer contextualização. Em

um livro escrito ou em uma reportagem jornalística, a contextualização de um período pode se

tornar muito longa, exigindo certa lógica narrativa. No produto audiovisual, não há a

necessidade de narrativas mais longas, é possível construir esses contextos com textos

descritivos, por exemplo, por meio de fotos que representem determinada época.

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Corroborando com o aspecto documental que o início do filme sugere, a sequência de

fotos é interrompida com um fade to black 12no momento em que a canção diz “Ah, por que

tudo é tão triste?”. Ao tornar-se toda preta, surgem na tela as palavras: “Em 1964 o governo

democrático é deposto por um golpe de estado militar” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?,

1997). Dessa maneira, o leitor é inserido em um contexto real, percebendo que se trata de um

retrato de algo que de fato existiu. O fato de a frase aparecer sobre um fundo preto também é

carregado de significados. Atado ao conteúdo da frase, a cor de fundo sugere escuridão, tempos

sombrios, seriedade. Se fosse uma tela branca, certamente a mensagem seria diferente.

Ainda com a frase na tela, a música Garota de Ipanema dá lugar a um coro gritando

palavras de ordem: “O povo, unido, jamais será vencido!” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO?, 1997). Há também uma transição da frase inicial para a seguinte: “Em

dezembro de 1968, a junta militar que governa o Brasil decreta o Ato Institucional nº 5 pondo

fim à liberdade de imprensa e todos os direitos do cidadão” (1997). Então, iniciam-se cenas

(não mais fotos) de uma manifestação popular, ainda em preto e branco. Há um salto temporal

na narrativa, assim como no livro, quando o narrador transita entre os anos livremente.

A sequência inicial, composta por diversas imagens que simbolizam uma determinada

época, acompanhada por uma das icônicas músicas nacionais e por símbolos da sociedade

carioca e brasileira de meados do século XX, acaba por ratificar uma imagem identitária

nacional:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas

também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso -

um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações

quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao

produzir sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais podemos

nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas

histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente

com seu passado e imagens que dela são construídas (HALL, 1998, p. 51).

Hall comenta acerca da construção de identidades por meio de histórias que são

contadas. Gabeira (2009) conta sua história em 1979, ano da publicação de sua primeira edição.

Ainda inserido nos anos de chumbo, o autor desenvolvia aspectos representativos da identidade

de sua geração. Ele não dispunha do benefício do distanciamento temporal. Ao contrário de

12 Efeito de transição de imagem que transforma a imagem, gradativamente, em uma tela preta.

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Barreto (1997), que arquiteta seu filme já com um olhar histórico para o que se passou,

permitindo-lhe maior lace em suas observações.

Dá-se, portanto, que a sequência inicial de seu filme é, sem dúvida, parte de uma

construção identitária brasileira. O que se há de criticar, ainda, é que ele irá usar tal construção

para defender ideias controversas do que tenha sido a ditadura militar e os movimentos

insurgentes de esquerda. É importante notar, outrossim, que as técnicas que serão mencionadas

a respeito de movimentos de câmera, enquadramento, diálogos e descrições são de extrema

relevância, pois formaram a linguagem audiovisual usada com esse propósito de construção

simbólica.

Neste início de filme vê-se a transposição de elementos do livro. O começo do livro

(GABEIRA, 2009) é rápido, agitado e tenso. Essa tensão é passada para o audiovisual com o

auxílio do recurso verbal (letreiros em fundo preto) e com as cenas subsequentes de

manifestações populares. Essas cenas rápidas de manifestações remontam à agitação da obra

escrita por Gabeira (2009).

Em seguida, a câmera faz um tilt down13 de uma faixa de protestos para o personagem

principal, em primeiro plano, de braços dados com companheiros de luta. Câmera, então, se

aproxima e, da esquerda para a direita, passa a mostrar os rostos dos personagens em primeiro

plano e com maior detalhe. Fernando Gabeira é o do meio. Tal maneira de construir a cena leva

em consideração o aspecto estético, na medida em que os movimentos são agradáveis ao

espectador, isto é, no âmbito sintático, a cena está coesa. No âmbito semântico, o movimento

inicial de tilt, é uma estratégia de apresentação de personagens. Essa estratégia é muito comum

no cinema, em documentários e, até mesmo, em vídeo-reportagens, uma vez que mostra o

objeto aos poucos, induzindo o olhar do espectador para algo que ele está começando a

conhecer. Contribuindo para essa apresentação do personagem, o movimento de aproximação

dos rostos demonstra ao espectador que eles serão importantes para a narrativa. É quase um

pedido do diretor: “preste atenção neles, porque serão importantes”. Ainda, o fato de Gabeira

estar em posição central indica que ele é o principal da história, ele é o herói, aquele que

conduzirá a narrativa.

13 Movimento de câmera na vertical, podendo ser de cima para baixo (down) ou de baixo para cima (up). Neste

caso, o movimento se deu com a câmera fixa em um ponto, movendo-se apenas a “cabeça” da câmera.

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A sequência seguinte apresenta o contexto particular desses personagens apresentados.

Há uma transição para cena aérea, com imagens de helicóptero, mostrando a caminhada,

aparentemente pacífica, dos manifestantes. Neste momento, surge o letreiro com o nome do

filme: “O que é isso, companheiro?”

Ao sumir o letreiro, a cena se inicia com sons de sirene. Aparece um destacamento de

militares marchando, armados, em direção aos manifestantes. Cena de corre-corre.

Manifestantes fugindo dos militares, atirando pedras em viaturas. Militares batendo com

cassetetes na população, jogando bombas de efeito moral.

Essa sequência após o nome do filme é muito agitada e carregada de tensão. Remete

claramente ao início do livro de Gabeira (2009), que comtempla as mesmas características,

usando de estratégias para o texto escrito. Foi desta maneira que Barreto (1997) concluiu sua

primeira transposição livro-filme. É de se notar, portanto, como as produções de significado do

início da obra escrita (GABEIRA, 2009) foram transpostas para o audiovisual, ainda que em

parte.

O filme apresenta nesta sequência inicial citada o contexto temporal da narrativa. Situa

o espectador no momento dos anos de 1960 no Brasil, com ênfase para lugar e tempo. A

sequência seguinte, por sua vez, irá apresentar com um pouco mais de detalhes os seus

personagens principais. A ênfase salta de lugar e tempo e vai para os personagens.

A cena que se segue acontece na casa de Fernando Gabeira. É uma cena no interior da

casa, com os três personagens que apareceram de braços dados na manifestação, agora,

assistindo à chegada do homem na lua, pela televisão. Aqui, Barreto (1997) irá usar de duas

técnicas literárias conjugadas para começar a formar seus personagens: o diálogo e a descrição.

Primeiramente, enquanto a cena alterna enquadramentos fechados dos rostos, com

contra-planos da televisão, é possível observar elementos na casa que remetem a

posicionamentos políticos de Fernando e seus companheiros. É possível observar, acima do

sofá onde estão sentados, um quadro com o rosto de Ernesto Che Guevara pendurado na parede.

Guevara é um símbolo dos movimentos esquerdistas na América Latina e, um quadro com seu

rosto em lugar de destaque da casa já inicia a construção ideológica de seu morador.

Ao mesmo tempo, a conversa entre os três também é entretecida de jargões e revela

muito sobre eles. Enquanto assistem à cena de Neil Armstrong pisando pela primeira vez na

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lua, Fernando e César menosprezam o feito, enquanto Artur defende os norte-americanos. Essa

conversa deles se torna expressiva tendo em vista que o período em que se passa a história

também é marcado pela chamada Guerra Fria. O mundo estava dividido entre capitalistas e

comunistas e as dissenções políticas brasileiras também se enveredavam com este cenário ao

fundo. Assim, Fernando e César vão se mostrando esquerdistas, defensores dos ideais

comunistas. Daí a razão pela qual menosprezavam o feito norte-americano. Fernando chega a

ironizar os Estados Unidos, dizendo que ficou realmente feliz quando Gagarin14 chegou ao

espaço, e ainda mais feliz quando enviaram a cachorrinha Laika. Dessa maneira, o

posicionamento político alinhado ao pensamento da União Soviética e, por conseguinte,

contrário à ditadura que se instaurou no Brasil fica evidente nos três amigos.

Essa sequência na casa de Fernando irá aparecer para o espectador alternada com cenas

de uma festa. A câmera caminha mostrando (descrevendo) um ambiente luxuoso, de gala.

Ouvem-se conversas em inglês. Americanos também assistem ao pouso do homem na lua,

satisfeitos: “Custou apenas 180 milhões de dólares” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

1997), chega a comentar um deles, dizendo que é o melhor programa de televisão que já assistiu

e argumentando que se tratava de um ato político (em referência à Guerra Fria). Então, Charles

Elbrick aparece sentado em um sofá, ao lado da esposa. Ele está mais sereno que os outros e

nega a afirmação do colega, chamando-o de cínico. “Está errado, John. É uma grande vitória

para o mundo todo”, afirma o embaixador. Este quadro demonstra um Elbrick estereotipado,

bom moço, alheio aos jogos de interesse políticos.

As cenas seguem alternando. De volta à casa de Fernando, a discussão continua a

mesma. Agora é possível observar na parede da sala um cartaz do filme Deus e o Diabo na

Terra do Sol, de Glauber Rocha, um dos maiores cineastas brasileiros. Glauber encabeçou o

movimento conhecido como Cinema Novo, que surgiu do descontentamento de jovens artistas

brasileiros em relação às produções cinematográficas norte-americanas.

O diálogo que se segue é, contudo, menos realista. As falas dos personagens são muito

mecanizadas e não convencem o público. Em determinado momento, Fernando diz, ainda a

respeito do astronauta: “Pelo menos ele teve a grande aventura da vida dele. Não é para isso

que estamos no mundo? Bom, vamos deixar a lua e vamos voltar para terra”. (O QUE É ISSO,

14 Cosmonauta russo. Primeiro homem a ir para o espaço.

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COMPANHEIRO? 1997). Esse tipo de frase não ajuda a evidenciar o realismo proposto pelo

diretor.

Embora não seja um diálogo realista, o assunto discutido pelos amigos auxilia no

entendimento de como a esquerda da época interpretava os acontecimentos recentes. Fernando

segue seu discurso lembrando que já estão há 6 meses vivendo sob a opressão do AI-5 (Ato

Institucional número 5), com a extrema direita no poder, e é justamente esse contexto que é

trazido como justificativa do personagem para sua entrada na luta armada. Ele e César

demonstram interesse pelo movimento de resistência armada que se articula no Brasil, enquanto

Artur, que se mostrará um excelente antagonista no filme, se posiciona de maneira contrária.

Artur é um personagem que não aparece no livro de Gabeira (2009). Sua participação

no filme é muito interessante, porque assume um papel de questionador das decisões de

Fernando (personagem), como uma ideia de duplo ou de sua consciência.

A cena que se segue é uma demonstração disso. É noite e Fernando e Artur estão

caminhando por uma calçada enquanto discutem se a decisão de entrar para a luta armada é

razoável ou não. Este diálogo é marcado por jargões da esquerda da época: “isso é um

pensamento pequeno-burguês. [...] A realidade está madura para a revolução” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997). Artur, nesta cena, aparece novamente como um outro eu de

Fernando. Ele faz questionamentos que colocam o personagem principal diante de duas opções:

reiterar suas convicções e acatar com a jornada que lhe espera ou desistir dos próprios ideais e

aceitar o contexto social e político em que vive. Essa confrontação, no livro, se dá entre o

narrador e si mesmo. Uma das melhores maneiras de transpor consciência de personagens para

o audiovisual é criando outro personagem, como no caso de Artur. Outros filmes farão isso com

conversas em frente ao espelho e monólogos audíveis. No caso de O que é isso, companheiro?

(1997), a criação de um novo personagem serve muito bem a esse propósito.

Fernando mostra-se convicto de que a luta armada é a única solução para destituir o

governo militar. Na manhã seguinte, chega um homem à casa de Fernando. Ele aparece contra

a luz, em frente à janela, com o rosto todo enegrecido, impossível de identificar. Um

personagem que é apresentado sem rosto, sem identidade pessoal. Ele é o homem que levará

Gabeira para conhecer um grupo de luta armada. Mais a frente, o espectador saberá que esse

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personagem é Marcão, codinome utilizado por Franklin Martins15, embora o filme não transmita

essa informação.

Marcão surge na narrativa sem rosto próprio, representando a obscuridade da luta

armada brasileira. Esta ausência de identidade também pode ter sido utilizada com a finalidade

de representa-lo como um cidadão qualquer, sem nada de especial. Desta forma, não é o

indivíduo que se levanta contra a ditadura, mas a sociedade. Esta não tem rosto, não tem face.

É todos e não é ninguém.

2.2. Entrada

Para compor essa narrativa, as cenas são acompanhadas de uma música de suspense. Se

inicia o ritual de entrada de Fernando no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

Marcão coloca um capuz em Fernando e o leva até um apartamento em um local desconhecido.

Neste apartamento, outras pessoas, incluindo César, o amigo de Fernando, recebem novos

nomes. Fernando passa a se chamar Paulo. César passa a ser Oswaldo. E ali conhecem Renê e

Júlio.

Marcão dá as instruções de como eles devem agir dali para frente. Depois pede para que

todos fiquem de frente para a parede, para que não vejam o rosto da líder do movimento, Maria,

enquanto ela faz um discurso sobre os princípios em que o grupo acredita e defende.

Essa cena é também muito controversa, já que não consta do livro (GABEIRA, 2009) e

foi incrementada de certa ficção de quem quer erigir uma ideia aventuresca para os movimentos

de esquerda. Martins (in REIS FILHO, 1997, p. 123), ao analisar o filme, acentua a infantilidade

desta cena. É de se questionar, de fato, quais produções de sentido a cena carrega. Por um lado,

é possível se fazer uma leitura de amadorismo da liderança do grupo, que exige posturas inócuas

de seus participantes. Por outro, é possível imaginar que toda a preocupação com as identidades

dos integrantes é uma mostra do profissionalismo do grupo. A primeira hipótese ganha mais

força no decorrer da história, tendo em vista que o MR-8 se mostrará um grupo organizado,

mas não muito experiente em guerrilha urbana, o que, inclusive, custará desde a vida de alguns

integrantes, até a captura de seus membros ao final do filme.

15 Jornalista. Foi ministro da Secretaria de Comunicação Social no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, entre

2007 e 2010.

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Até aqui, Barreto (1997) segue a lógica clássica da jornada do herói, o monomito de

Campbell (2003): apresenta o personagem principal em seu mundo comum, seguro -

apartamento onde discutia com os amigos; ele recebe um chamado à aventura – conversa com

Artur, caminhando pela rua; encontro com seu mentor, no caso Maria, que irá conduzir o herói

em sua jornada; preparação para travessia do primeiro limiar – testes, encontro com aliados e

inimigos; clímax – aproximação do desafio final; provação suprema; recompensa; e caminho

de volta.

Essa lógica narrativa já está sendo traçada em O que é isso, companheiro? Após

encontrar-se com Maria e Marcão, integrando-se ao grupo MR-8, dá-se início à preparação de

Fernando. Eles vão para uma praia deserta, onde fazem treinos de tiro. Essa cena é usada pelo

diretor para mostrar a faceta intelectual e menos operacional que Fernando desempenhará na

história. Ele evidencia-se um mau atirador, tem dificuldade em acertar os alvos e é criticado por

Maria. Os diálogos são também perpassados de jargões, como “só militares podem combater

militares” e “toda crítica deve ser aceita se ela tiver fundamento”.

Esse trecho do filme funciona como preparação para o espectador. Os personagens ainda

estão sendo descobertos, a trama central ainda está em construção. A consequência imediata é

um início de filme um tanto lento e arrastado.

A quebra da lentidão se dá nas cenas seguintes. A sequência é vibrante, agitada, viva.

Ao som de The House of The Rising Sun, da banda The Animals, uma música que se inicia

calma e que vai ganhando volume e intensidade com o tempo, as imagens seguem a mesma

lógica. O grupo está assaltando um banco e Marcão faz um discurso inflamado para os

funcionários e clientes:

Isso aqui não é um assalto, vocês estão assistindo a uma expropriação

revolucionária, nós estamos expropriando uma instituição bancária, que é um

dos suportes dessa ditadura cruel e sanguinária. Muitos dos nossos

companheiros que lutam pela liberdade e pela democracia estão sendo

brutalmente torturados nas prisões desse governo militar e vocês não ficam

sabendo de nada, porque a imprensa está censurada. Contem para seus amigos

o que está acontecendo. Nós somos o Movimento Revolucionário 8 de

outubro, o MR-8. (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Esse discurso é uma das cenas mais interessantes de todo o filme. À parte a excelente

atuação de Luiz Fernando Guimarães, o personagem é apaixonado em suas palavras. Ele

transborda emoção e é cativante. Interessante notar como o grupo entende que o que estão

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fazendo não é roubo, mas expropriação. Marcão sabe do poder das palavras sobre a opinião

pública e, por isso, não quer que as pessoas leiam seus atos de outra maneira.

Outro ponto de destaque para o discurso é a referência ao jornalismo censurado. Para o

MR-8, a imprensa não denunciava os abusos de poder da ditadura porque estava sufocada. Os

militares censuraram boa parte da grande mídia da época e trabalharam arduamente para moldar

a opinião pública em seu favor. Assim, o discurso assume também um caráter de denúncia.

A censura ao jornalismo foi uma marca do governo militar brasileiro. O discurso oficial

para repressão seguia a lógica de assegurar a segurança nacional contra o comunismo, além do

combate à corrupção. Esse não era, absolutamente, um discurso novo. Como já visto

anteriormente, a alegação de garantir a segurança e o bem-estar da maioria da população foi

usada em muitos governos autoritários, ao longo da história, com o propósito de emudecer

posicionamentos contrários ao poder vigente.

É importante lembrar que, em 1964, no momento em que os militares tomam o poder,

boa parte da mídia apoia a chamada revolução. No entanto, esse apoio logo perde força em

decorrência do posicionamento autoritário dos militares. Já na década de 1970, o governo

colocou censores nas redações e nas gráficas dos principais veículos da época. O Estado de S.

Paulo, O Pasquim, Opinião, Movimento e Veja foram alguns dos veículos que sofreram com

censores em suas redações.

Os jornais buscaram, então, alertar seus leitores de que haviam sido censurados. Os

meios mais comuns para isso foram as publicações de poesias, receitas, paródias, trechos de

clássicos, como Os Lusíadas, de Luís de Camões, faixas pretas e etc. no lugar das matérias

retidas pela ditadura. Havia nas, redações, uma lista de temas proibidos, que envolviam desde

corrupção no governo, greves, protestos estudantis, até a própria existência de censura.

As ameaças para quem não cumprisse com as determinações militares do que devia ou

não ser publicado não se davam apenas com a prisão de jornalistas ou a invasão de redações.

Questões comerciais e financeiras também eram alvo de ameaças. Licenças de rádio e televisão

eram cassadas e empresas anunciantes eram coagidas a cortar investimentos em determinados

veículos. Dessa maneira, o aparato governamental para controle dos formadores de opinião era

mais complexo do que simplesmente um grupamento militar truculento. Os chefes de governo

souberam usar das mais variadas estratégias para chegar ao seu objetivo de perpetuação no

poder.

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A questão do jornalismo censurado será, inclusive, um dos argumentos de Paulo

(Fernando), mais à frente, para justificar o sequestro de um embaixador.

Ainda no assalto ao banco, enquanto Marcão discursa, a sequência de imagens se

alterna, mostrando o grupo em ação, saindo do banco com sacolas de dinheiro. Paulo

(Fernando) é o motorista do carro que aguarda do lado de fora. Ao final do discurso, o grupo

foge em direção ao carro, mas, na saída, um policial aparece e começa a trocar tiros com o

grupo. Oswaldo (César) é baleado na perna e cai. O restante do grupo consegue entrar no carro

e fugir, abandonando, no entanto, o companheiro baleado.

Enquanto, por um momento, o espectador é apresentado às operações dos grupos

revolucionários, por outro, Barreto (1997) irá mostrar como o governo agia em casos de prisão.

A sequência de fuga é alternada para uma cena de Oswaldo sendo carregado por militares em

um corredor escuro. À frente, estão Henrique e Brandão, dois personagens que se mostrarão

importantes na história.

Esta será a primeira vez que o espectador assistirá a uma cena de tortura. Oswaldo está

em uma sala muito escura, nu, com as mãos amarradas atrás do corpo, sendo afogado em um

tanque por Brandão. Não há janelas ou pontos de iluminação externa, apenas a luz de uma

lâmpada mostrando o afogamento. Enquanto Oswaldo está com a cabeça submersa, os agentes

têm discussões banais, do dia a dia de trabalho: “vai ao aniversário do Vitor hoje à noite?” (O

QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). Oswaldo não resiste à pressão e, durante um

interrogatório, entrega os nomes dos companheiros e o endereço do apartamento que o grupo

usava como sede.

A sequência retoma para o MR-8. O grupo, agora, discute sobre o sucesso ou não da

operação. Maria discursa a respeito da seriedade dos atos do movimento, ressaltando que não

pode haver “vacilações”. Este episódio quer mostrar como se deu a concepção da ideia de

sequestrar o embaixador. Durante a conversa, Paulo (Fernando) argumenta que o que eles

precisam é de uma ação que quebre o ciclo vicioso da censura à imprensa e, por conseguinte,

quebre a ditadura. A ideia, portanto, que ele propõe é sequestrar o embaixador dos Estados

Unidos: “E para libertar o patrão, eles vão ser obrigados a libertar companheiros nossos que

estão sofrendo na prisão”. (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

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Esse trecho do filme é parte da ficção inserida na história. O livro de Gabeira (2009)

não levanta a ideia do sequestro como vinda de uma pessoa, mas algo que surgiu entre os

membros dos movimentos revolucionários.

Gabeira é apresentado como o sujeito que teve a idéia do seqüestro, escreveu

o manifesto divulgado pela TV e, por fim, foi o primeiro a fazer o balanço de

que a luta armada era um sonho derrotado e sem remédio. Isso está longe de

ser verdadeiro. Gabeira entrou e saiu da operação como um militante raso do

MR-8, ou pouco mais do que isso. Já residia na casa onde o embaixador foi

abrigado — ali deveria cuidar da imprensa da organização — e por essa razão

ficou no local. (LEITE in REIS FILHO, 1997, p. 55).

No filme, ele é o intelectual do grupo, o único que faz uma reflexão mais livre,

que teve a idéia do seqüestro (o que não é verdade, ele só soube da ação poucos

dias antes), que escreveu o célebre manifesto pedindo a libertação de 15

prisioneiros políticos (e um libelo contra a ditadura militar), lido em rede

nacional no horário nobre da televisão (na realidade, quem o escreveu foi o

hoje jornalista Franklin Martins) [...]. (SALEM in REIS FILHO, 1997, p. 48).

O que Leite e Salem (in REIS FILHO, 1997) comentam acerca do personagem de

Fernando Gabeira no filme é que ele foi romantizado. Segundo eles, Fernando é colocado como

personagem principal da história e, por isso, deveria conduzir as principais ações da trama. O

que se percebe, de fato, é que o personagem de Gabeira está elevado a um status que não possui

no livro. A transposição desse personagem para o cinema se deu com uma série de

ficcionalizações a fim de construir um herói mais cativante aos olhos do espectador.

Assim, enquanto no livro se observa um personagem ingênuo, embora intelectual, sendo

conduzido à ação por outros personagens mais atuantes nas guerrilhas, no filme, Fernando é

mais arrojado, consciente de si, maduro em suas convicções e decisões. Não surpreende, dessa

maneira, Barreto (1997) ter estruturado o personagem de Fernando desse modo. Ele está

construindo seu herói.

A cena que se segue é de uma ocasião comum ao embaixador. O filme mostra Elbrick

em seu cotidiano, no seu contexto de trabalho regular. Mas essa sequência também traz uma

crítica à sociedade carioca da época. Enquanto o embaixador está em sua mesa de trabalho, seu

secretário chega para conferir uma lista de convidados para a festa em comemoração à conquista

da lua pelos americanos. Elbrick se mostra um pouco incomodado em ter que decidir algo que

ele considera banal. Seu secretário irá explicar que, no Brasil, as festas são muito importantes

para as relações sociais e empresariais. Desse modo, a cena critica, implicitamente, como a alta

sociedade do Rio de Janeiro estava alheia aos acontecimentos políticos, e, ao mesmo tempo,

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demonstra a futilidade e promiscuidade dos relacionamentos entre os norte-americanos e o Rio

de Janeiro.

Muito embora esta seja uma crítica sutil, ela é relevante, porque busca contribuir para a

formação do personagem do embaixador. Ele está claramente abismado e descontente com

essas trivialidades inerentes ao seu ofício. Assim como em outros episódios mais a frente, ele

se mostrará um personagem complexo, um pouco fora dos muitos estereótipos exibidos no

filme.

Co-financiado pela Columbia, produzido com ambição de fazer bonito no

mercado externo — e por isso com Alan Arkin como estrela de primeira

grandeza —, O que é isso, companheiro? tem no embaixador seu maior

personagem. Elbrick tem um discurso que tenta colocar ordem no filme, seu

olhar examina e julga o que se passa. Brilhante estudioso do cinema brasileiro,

o professor Ismail Xavier, da Universidade de São Paulo, observa que, no final

“só o personagem do embaixador parece ter história, não se esfumaça, merece

referência”. O professor ficou incomodado com esse tratamento diferenciado.

“E as outras figuras desse episódio? Como lhes dar cidadania para além do

ocorrido?” (LEITE in REIS FILHO, 1997, p. 58-59).

Leite vai defender a ideia de que o embaixador é o melhor personagem da história.

Segundo ele, há uma explicação mercadológica para isso: Barreto (1997) teria interesse em

alcançar visibilidade e mercado nos Estados Unidos e, para isso, precisaria dar destaque à

representação norte-americana do filme.

De fato, em comparação ao livro (GABEIRA, 2009), o personagem do embaixador no

filme é bem mais complexo, interessante e relevante. Concorda com esta tese Almada (in REIS

FILHO, 1997), para quem não há dúvidas sobre as intenções de Barreto (1997) ao colocar

Charles Elbrick da maneira como foi posto:

Contar para o público norteamericano que o seqüestro do seu embaixador

Elbrick, em 1969 no Brasil, foi fruto da ação juvenil inconseqüente de um

grupo chamado Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), grupo esse

comandado por dois mafiosos de uma tal Aliança Libertadora Nacional, pode

ser palatável àquele mercado. Mas, ainda assim, é ingênuo do ponto de vista

político e desrespeitoso à própria memória do embaixador, homem

suficientemente corajoso para criticar, na época, a ditadura militar brasileira

com maior veemência do que aquela que o filme sugere. (GABEIRA, 2009,

p. 146-147).

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A crítica que se faz, assim, é a de que diretor, roteirista e produtores do filme

subestimaram o espectador, em benefício de seus próprios interesses, criando uma figura

fictícia, embora faça evidente referência a uma pessoa real.

Para este pesquisador, no entanto, há que se criticar a maneira como se construiu esse

personagem à luz de estratégias literárias e jornalísticas. Sob o olhar da literatura, ele é

encantador e imprevisível, um tanto romantizado, é verdade, mas com efeito um personagem

completo, que tem incertezas, fraquezas, forças, dúvidas e convicções. Sob o olhar jornalístico,

a apuração da informação não foi completa no texto pronto, tendo em vista que em muitos

momentos, como anteriormente já foram apresentados, o personagem distanciou-se demais da

pessoa que ele representa.

Voltando para a sequência da história, o espectador será apresentado à preparação da

ação de sequestro do embaixador, cena que é muito semelhante à narrada por Gabeira (2009)

em seu livro. A grande diferença é que na obra escrita, a sequência narrada segue o fluxo de

pensamento do narrador, não necessariamente a ordem cronológica dos acontecimentos.

Barreto (1997), por outro lado, opta pela sequência temporal dos fatos.

Renê finge ser uma estudante recém-chegada de Minas Gerais, ainda ingênua, em busca

de emprego na casa do embaixador. O chefe da segurança da embaixada se engraça com a moça

e, crendo na inocência de Renê, revela algumas informações importantes sobre a rotina do

embaixador, como, por exemplo, o fato de o carro principal de Elbrick não carregar bandeiras

dos Estados Unidos para não chamar a atenção de terroristas.

Os maiores levantamentos do género foram sempre feitos por mulheres.

Apesar das sucessivas notícias sobre a participação de mulheres em ações

armadas, o peso da estrutura patriarcal ainda impedia que muitos as

associassem à violência ou mesmo à coragem. Assim que a casa foi

descoberta, o primeiro contato que ela fez foi diretamente com o chefe da

segurança pessoal do embaixador. Ele se chamava António Jamir e se

interessou especialmente por aquela candidata a empregada doméstica.

"Mãos tão finas. Ah, só arrumadeira? Bem, talvez precisem, não sei. Você não

gostaria de conhecer a casa?"

Vera sentiu no ar que havia sexo e conduziu imediatamente para esse lado.

Chegou a marcar um encontro com o chefe de segurança mas antes disso fez

inúmeras perguntas. Ela dizia por exemplo: "Que lindo automóvel!". António

respondia: "Lindo, mas há outros, muito mais bonitos ainda". (GABEIRA,

2009, p. 98).

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A cena cinematográfica assemelhou-se muito ao narrado por Gabeira. Mas o livro traz

a personagem Vera como autora da investigação sobre a casa e hábitos do embaixador. No

filme, quem faz isso é Renê. Em verdade, Vera Sílvia foi transposta para o filme nas

personagens de Maria e Renê. E à segunda coube o papel de investigadora de Elbrick.

Durante a preparação, dois personagens aparecem enviados de São Paulo pela Ação

Libertadora Nacional (ALN), organização semelhante ao MR-8 criada por Carlos Marighella,

um dos maiores nomes da resistência armada na ditadura. A ALN e o MR-8 foram os

responsáveis pelo planejamento e execução do sequestro do embaixador.

Chegam de táxi, portanto, Toledo e Jonas. O primeiro é um senhor que parece trazer

mais experiência para o grupo. O segundo, mais sisudo, será representado no filme como um

companheiro firme, impaciente, arrogante e um tanto ignorante.

Na reunião de apresentação, Maria os apresenta ao restante do grupo. Seguem-se

“aplausos” (estalos com os dedos). Jonas é o primeiro a falar e começa se colocando como líder

da operação, dizendo que quem agora dá as ordens é ele. Câmera em contra-plano, faz uma

panorâmica mostrando os rostos assustados dos membros do MR-8. Essa linguagem de câmera

funciona muito bem como descritivo da situação, mostrando as reações, as expressões e o clima

do ambiente “Eu quero avisar que eu mato o primeiro que vacilar ou discordar” (O QUE É

ISSO, COMPANHEIRO? 1997), complementa Jonas. Seguem-se a isso, imagens em primeiro

plano dos rostos assustados e tensos, evidenciando a gravidade da ação que planejavam.

Começa, nesta cena, uma música de tensão, que, sutilmente, ajuda a compartilhar com o

espectador a inquietude da situação.

Em seguida, a sequência dá um pequeno salto no tempo da narrativa e os dois novos

companheiros já estão devidamente instalados na casa onde todo o grupo está hospedado. Maria

avisa Paulo que ele não irá participar da operação, ficando responsável por salvaguardar o

retorno do grupo à casa, já com o embaixador sequestrado. Em um quarto da casa, Jonas e

Toledo conversam mais intimamente e Jonas externa sua desconfiança com o MR-8. Para ele,

trata-se de um grupo de “amadores pequeno-burgueses” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

1997). Toledo, contrabalanceando a situação, defende-os argumentando que não se pode

subestimá-los, tendo em vista que conseguiram cumprir operações para levantamento de verba

(expropriação bancária) e, efetivamente, tiveram a ideia do sequestro.

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2.3. Clímax

Transição com cenas do Rio de Janeiro. Neste ponto em que o filme começa a se

encaminhar para os momentos mais dramáticos, as cenas se tornam mais avermelhadas,

sugerindo ação, sangue. Esse efeito nas cenas não é coincidência e, muito menos, aleatório.

Propositadamente, o filme assume essa coloração provocando força, movimento, tensão, calor

e paixão ao espectador.

Sobre a imagem surge o letreiro: “Quinta-feira, 4 de setembro, 1969” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997). A inserção de datas exatas sugere aspecto documental ao filme, dá

a ele caráter testemunhal. Ficção e realidade mais uma vez se sobrepõem. Os cineastas usam

essa aproximação para trazer um caráter mais realista para o filme, para lançar ao espectador a

ideia de fato e não de retrato. Na literatura, essas estratégias ganharam o nome de

verossimilhança e, no jornalismo, verdade.

Agora, a retórica do discurso jornalístico (posto que todo dizer requer sua

retórica, implícita ou explícita, formal ou informal) é, em muitos casos,

essencialmente coincidente com a do discurso literário. Com efeito, se a ficção

própria da literatura a exime das provas comprobatórias e se baseia mais em

um pacto estético do que em um pacto ético de credibilidade (como acontece

com o discurso jornalístico), podemos estar diante de ficções fantásticas (nas

que o conteúdo funciona de modo muito distinto ao mundo em que

habitualmente nos encontramos inseridos) ou diante de ficções realistas (nas

que a retórica do discurso funciona, seguindo os velhos postulados da

verossimilhança aristotélica como se se tratasse de um discurso factual).

(MEDEL in CASTRO; GALENO, 2002, p.24)

Medel coloca a retórica jornalística em paridade, muitas vezes, com a retórica literária.

O filme O que é isso, companheiro? (1997), ao se propor ficção baseada em uma obra de

jornalismo literário, se torna um produto dessa paridade retórica. O espectador fica diante do

que Medel (in CASTEO; GALENO, 2002) classificou como “ficções realistas”, ou seja, um

discurso ficcional que se traveste de discurso factual.

A grande diferença do jornalismo para a literatura está no fato de que o primeiro existe

a partir de um contrato social, no qual os jornalistas se comprometem a trazer a verdade dos

fatos para o seu relato. Em outras palavras, é esperado do jornalismo a função referencial em

seus textos. A literatura e o cinema, entretanto, não compartilham dessa expectativa do público

leitor/espectador. Eles são considerados arte, por isso esperam-se deles tratamentos estéticos

mais refinados.

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Seguindo a sugestão de realidade no filme, a cena que se segue traz um áudio do

telejornal Repórter Esso, apresentado por Gontijo Theodoro16, dando a notícia de que o

presidente americano, Richard Nixon, ordenou a retirada de 25 mil combatentes norte-

americanos do Vietnã. Embora o filme seja ficção, costurá-lo com cenas e áudios reais

cooperam para produções de sentido em favor da verossimilhança, posicionando o espectador

em uma situação crível.

Em seguida, Theodoro avisa: “o serviço de meteorologia informa...”. É possível

perceber aqui, também, uma crítica ao próprio jornalismo que dá o mesmo destaque e frieza a

notícias tão diferentes e com pesos tão distintos. Esse é um parecer muito interessante para

constar no filme, ainda que sutilmente. Isso porque, de fato, nos anos de 1960 e 1970, muito se

discutiu acerca de qual seria a linguagem ideal para o telejornalismo. Para entender melhor essa

discussão, é preciso voltar um pouco à história do jornalismo brasileiro.

O jornalismo no Brasil passa por várias fases e experimentações estéticas. Chegada

oficialmente ao Brasil em 1808, a imprensa foi, no século XIX, um instrumento da elite, tendo

em vista o baixíssimo número de leitores em um país dominado pela pobreza e pela escravidão.

No início do século XX, o empreendimento jornalístico assume feições mais profissionais,

visando lucro. Mas é a chegada do rádio, na década de 1920, que irá massificar o jornalismo

brasileiro. Inicialmente, o rádio foi também um instrumento de elite. Para se ter uma radiola,

era necessário preencher uma série de formulários governamentais, exigia-se uma planta com

o esquema do receptor, além dos custos de licença e taxa mensal para fazer parte de um radio-

clube.

Muito embora tenha sido caro ouvir rádio no início dos anos 1920, rapidamente o meio

ganhou o gosto da população brasileira, que pôde desfrutar de conteúdo jornalístico e de

entretenimento de maneira muito mais acessível que os jornais e revistas.

Os primeiros anos de jornalismo radiofônico no Brasil foram, basicamente, leituras dos

jornais escritos. Jung (2004) lembra do caso de Edgard Roquette-Pinto, considerado o pai do

radiojornalismo no Brasil, que costumava sublinhar em lápis vermelho as principais notícias

16 Gontijo Theodoro foi apresentador do Repórter Esso na TV Tupi, um dos jornais de maior credibilidade e

influência da época.

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dos jornais que seriam lidos, ao vivo, na rádio. O jornalismo de rádio ainda estava formando

suas raízes, conhecendo o meio e suas possibilidades.

A Rádio Tupi, fundada em 1935 por Assis Chateaubriand, dono do grupo Diários

Associados, vai criar uma linguagem própria para o meio em seu Grande Jornal Falado Tupi.

Este era um jornal com quatro locutores, que se alternavam no ar. A ideia era trazer mais

dinamismo para o ouvinte, separando os assuntos em grandes blocos, como política, economia,

esportes etc.

No entanto, será na Rádio Nacional que o radiojornalismo brasileiro irá ganhar suas

feições mais modernas e impactantes, a partir de uma experiência internacional.

O Repórter Esso ficou por quase trinta anos no ar, no Brasil. A sua estréia aqui

ocorreu em 28 de agosto de 1941, poucos meses antes de o país entrar na

Segunda Guerra, e a última edição foi ao ar em 31 de dezembro de 1968,

poucos meses antes de o homem pisar na lua. Ao longo desse período o

noticiário acompanhou os principais fatos sociais, políticos, econômicos, que

se transformaram na história do mundo e do país. Muitas gerações cresceram,

ouvindo e acreditando em tudo o que o Repórter Esso, representado pelos

locutores exclusivos falava do outro lado do alto-falante. Boa parte do mundo,

em quinze países, a partir da transmissão de setenta rádios que irradiavam o

noticiário, parava para ouvir as últimas informações das guerras, dos políticos,

dos cientistas, e sobre como estavam os astronautas soviéticos e americanos

que giravam em torno da terra em naves espaciais.

O Repórter Esso foi a primeira síntese noticiosa do planeta, concebida com

caráter globalizante. O noticiário patrocinado pela Standard Oil New Jersey

(Esso), teve a idealização da agência de publicidade McCann-Erickson e

produção da agência de notícias United Press Associations (UPA).O noticiário

já existia nos Estados Unidos desde 1935. (KLOCKNER in BAUM, 2004, p.

125-126)

O Repórter Esso é o jornal que vai trazer para a linguagem radiofônica alguns padrões

estilísticos, como o lide, objetividade nas notícias narradas, exatidão de informações, texto

sucinto, pontualidade (não era comum os jornais entrarem no horário correto no ar, havia casos

de atrasos de 5 minutos e atrasos de meia hora), noção exata de tempo da notícia (contam-se,

aproximadamente, 15 linhas de texto em um minuto no rádio) e impressão de imparcialidade,

fazendo um claro contraponto com os longos jornais falados que havia até então.

Diante da imensa audiência que o jornal alcançou, ele também se tornou veículo de

propaganda político-ideológica, produzindo e construindo sentidos. Havia um manual de

redação, o que, na época, aparecia apenas em jornais impressos. Seu grande locutor foi Heron

Domingues, que comandou o jornal de 1944 a 1962.

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A partir do ano de 1950, chega a televisão ao Brasil, com Assis Chateaubriand

importando toneladas de equipamentos para instalação de uma emissora. No ano anterior, a

própria Rádio Nacional chegou a fazer testes com equipamentos televisivos.

Os primeiros anos da televisão também foram consumidos apenas pela elite, uma vez

que os aparelhos eram muito caros e a transmissão ainda era insípida. Segundo Mattos (1990),

a evolução no número de televisores em uso no Brasil aumenta significativamente a partir do

final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960:

EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE TELEVISORES EM USO NO BRASIL

ANO Aparelhos P&B e cores em uso

_____________________________________________________________

1950 200

1952 11.000

1954 34.000

1956 141.000

1958 344.000

1960 598.000

1962 1.056.000

1964 1.663.000

1966 2.334.000

1968 3.276.000

1970 4.584.000

1972 6.250.000

1974 8.781.000

1976 11.603.000

1978 14.818.000

1979 16.737.000

1980 18.300.000

1986 26.500.000

1989 28.000.000

1990 (*) 30.000.000

Fonte : ABINEE (1990, p. 11)

Como se pode observar nos dados levantados por Mattos (1990), é possível falar em

massificação da televisão a partir do ano de 1962, quando há mais de um milhão de televisores

em uso no Brasil. Embora a televisão tenha ganhado, gradativamente, a audiência do rádio, sua

estrutura e base de produção foi toda herdada do próprio rádio, inclusive sua linguagem

jornalística.

O Repórter Esso, quando estreia pela televisão em 1952, traz consigo a mesma lógica

de produção do jornal apresentado na rádio, ou seja, os mesmos preceitos de objetividade,

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impressão de imparcialidade, texto sucinto etc. Assim, o Repórter Esso tornou-se referência

para o telejornalismo, ainda que sua base não tenha sido criada exclusivamente para o meio

televisivo.

Dessa maneira, nos anos de 1960 e 1970, muito se discutiu sobre a linguagem

jornalística própria da televisão. A estrutura apresentada pelo Esso agradava os militares, tendo

em vista que seu ar de imparcialidade e seriedade nas notícias facilitava o trabalho dos censores

e permitia um uso escamoteado dos jornais na televisão. Os governos militares tinham um

projeto de unificação do discurso e nenhum veículo era melhor que a televisão para cumprir

com esse propósito: era o meio mais influente e dinâmico daqueles tempos.

A sutil crítica de Barreto (1997) ao colocar um trecho do Repórter Esso comentando

uma notícia de guerra e, logo em seguida, com a mesma entonação, a previsão do tempo para o

Rio de Janeiro, está sobre o papel do jornalismo nos anos de chumbo.

A televisão se mostrou por anos um veículo facilmente manipulável pelos militares,

enquanto as publicações impressas sofriam nas mãos dos censores e da polícia. Pensar em um

jornalismo distante da realidade, a ponto de não ser possível dimensionar para seu

telespectador/ouvinte/leitor os impactos daquilo que se noticia é o próprio suicídio do

jornalismo. O jornalismo deve ser, também, um instrumento de ensino, capaz de mostrar à

sociedade não apenas a dita verdade dos fatos, mas os efeitos, causas e repercussões das

notícias.

É nesse escopo de discussão que muitos jornalistas vão buscar refúgio na literatura, em

uma perseguição por espaços mais livres e profundos. É o caso de Fernando Gabeira (2009),

com a obra analisada nesta pesquisa, como de outros jornalistas, como Nélida Piñon (1974) e

Ignácio de Loyola Brandão (2010). A literatura serviu, portanto, de refúgio para muitos bons

jornalistas.

Retomando a análise do filme O que é isso, companheiro? (1997), a sequência seguinte

às imagens do Rio de Janeiro, ao som do Repórter Esso, se alterna com cenas do embaixador

se levantando para ir trabalhar e a equipe do MR-8 à espreita para a ação. Corridos cerca de

trinta minutos de filme, o enredo começa a ganhar contornos de seu clímax.

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Essa forma de narrativa alternada, fragmentada, é uma estratégia audiovisual para

compor uma história em que os eventos ocorrem simultaneamente. É um tipo de narrativa que

evoca os romances do Novo Jornalismo, em sua montagem.

Um exemplo de uso desse fluxo narrativo seccionado se encontra em A Sangue Frio, de

Truman Capote (2003). Este, que é considerado o primeiro grande romance do Novo

Jornalismo, usa uma narrativa em cenas, seguindo uma lógica cronológica em seu relato.

Sua maneira de contar a história é muito semelhante à cinematográfica. Isso

porque ele trabalha com cenas e diversos planos, que em determinado

momento acabam se cruzando. Desde o início da obra, o leitor segue um fluxo

narrativo seccionado em cenas. As técnicas descritivas e altamente visuais

corroboram para que o leitor imagine cada cenário e mergulhe de vez no

“filme” em suas mãos. Como já discutido, essa técnica remete aos folhetins e

funciona muito bem para cativar o leitor. (SANTOS, 2013, p. 47)

No caso de Capote (2003), a narrativa fragmentada em cenas corrobora para a

construção de uma história central condutora do enredo e outras entrelaçadas a ela. A maneira

como a narrativa foi construída exerce um grande poder persuasivo sobre seu leitor, que se vê

enlaçado pelo jogo de planos narrativos, sendo apresentado a uma e outra cena, com histórias

paralelas que cativam a quem lê.

Igualmente, o filme de Barreto (1997), apresenta as histórias do grupo MR-8 e do

embaixador ao mesmo tempo. Assim, o filme gera expectativa e apreensão no espectador, em

uma espécie de preparação para a ação que se seguirá.

Para causar esse efeito de inquietude, algumas cenas são mostradas em detalhes, com

certa lentidão. Por exemplo, detalhes do embaixador amarrando os sapatos, depois dando nó na

gravata são recursos audiovisuais que prolongam o tempo da narrativa, fugindo ao padrão dos

filmes norte-americanos, que cortam cenas como essas por considerá-las lentas demais.

Outro fator que contribui para a expectativa, é o atraso do embaixador para sair de casa

naquele dia, colocando toda a equipe do MR-8 em tensão. O filme deixa transparecer certo

amadorismo do grupo, perspectiva que o próprio Gabeira (2009) levanta em sua obra.

O forte golpe que o embaixador recebeu na cabeça se deu no momento do

transbordo. Ele foi retirado para a kombi e julgou que ia ser morto ali mesmo.

Ele tentou se mexer e um dos companheiros que o mantinham pensou que

queria fugir e golpeou sua cabeça. Foi horrível para todos nós, sobretudo para

o companheiro que o golpeou. Sempre que podia, ele queria saber notícias, se

sentia dores na cabeça, se ainda sangrava. Tudo aconteceu porque estavam

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nervosos, e nada mais natural do que estar nervoso ali, no momento do

transbordo, quando ele seria enfiado num saco e a kombi rumaria para a Barão

de Petrópolis, tendo diante de si um grande obstáculo: o túnel Rebouças.

Todos podem imaginar que entrar no túnel foi muito fácil, mas foram quatro

quilómetros de ansiedade sobre o destino que encontrariam ao sair do túnel.

(p. 110).

No trecho acima, Gabeira mostra como o grupo estava nervoso no momento da ação.

Não eram pessoas experientes em ações de guerrilha, pelo contrário. À exceção de um ou dois

que já teriam participado de outras empreitadas, eram jovens estudantes, intelectuais,

sonhadores. A imagem que Barreto (1997) transmite no longa-metragem segue essa linha. No

entanto, ele faz isso antes de toda ação de fato acontecer. Ainda há, aqui, uma preparação para

a ação. O filme está se demorando, porque o embaixador está se demorando. É uma estratégia

literária para conduzir o espectador ao clímax.

E é nesse clima de suspense que acontece a cena do café da manhã do embaixador. Ar

de tranquilidade, imagens claras, bem iluminadas, movimento de câmera suave, sons de

pássaros ao fundo. A esposa de Elbrick teve um pesadelo com vampiros e conta o mau presságio

ao marido. O embaixador se ri do sonho e tranquiliza a mulher, dizendo que “até os vampiros

reconhecem a imunidade do serviço diplomático” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Enquanto isso, Jonas e Maria aguardam o sinal de Renê para darem início à ação. Em

dado momento, Renê tem a impressão de ter visto o carro do embaixador chegando e ameaça

fazer o sinal que combinaram, mas na última hora desiste, ao reconhecer que se tratava do carro

do embaixador de Portugal. Jonas, o personagem mais truculento do filme, chama Renê de

“vaca incompetente” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Finalmente se dá a cena do sequestro, que segue com música de tensão. Marcações de

violinos, com percussão acelerada. Neste caso, a construção de significados constituída por

Barreto (1997), muito se assemelha ao que foi contado por Gabeira (2009).

O sequestro se deu muito rapidamente. Na parte da manhã, nada. Na parte da

tarde, o carro apareceu na hora exata. Antes passou um outro carro negro do

corpo diplomático. O olheiro esteve a pique de fazer o sinal e desfechar a ação.

Uma vez feito o sinal, nada mais interromperia o curso das coisas. O olheiro

viu, entretanto, que o carro negro que se aproximava tinha uma bandeira. E no

carro do americano já não usavam mais bandeira. Pelo menos isso tinha dito

o chefe da segurança, quando namorava Vera. O olheiro se intrigou e decidiu

esperar um segundo mais. Foi o bastante para perceber que o carro era do

embaixador de Portugal. Ufa, deixei praticamente a pizza cair na mesa. Íamos

nos enganar de século. (GABEIRA, 2009, p. 109)

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No livro (2009), a história é contada com certa ironia por Gabeira. Essa ironia não é

passada para o filme, que narra a sequência do sequestro com tensão: cenas velozes, dinâmicas,

rostos apreensivos. Toda a sequência do sequestro ocorre muito rapidamente e marca o clímax

da história, momento em que o espectador se encontra capturado pelo filme. Depois do

sequestro efetivado, a música acalma-se. Mais suave e plácida, embora ainda um pouco tensa.

De volta à casa, agora transformada em cativeiro, o embaixador sequestrado, suando,

deita na cama. O companheiro de guarda está encapuzado. Não há um rosto que o guarde. O

mistério da identidade individual é usado para transmissão de uma identidade coletiva. Não é o

Paulo, a Renê e o Jonas que sequestraram o embaixador, é a população brasileira insatisfeita

com as atrocidades e truculências cometidas pelo governo militar. Ao menos, essa era a

mensagem que os guerrilheiros queriam passar ao americano.

Pela noite, música na rádio. Eles estão preparando capuzes, quando começa o Repórter

Esso na televisão. A cena mostra o apresentador dando a notícia do sequestro e lendo o

manifesto escrito pelo grupo. Alterna com cena da esposa do embaixador e de seu secretário

preocupados. Marcos chora ao assistir ao noticiário, enquanto todo grupo comemora a vitória.

Muito embora ainda não tenham sido atendidas todas as exigências para soltura do

embaixador, como a libertação de 15 presos políticos, o grupo celebra uma vitória, porque, de

fato, eles transpuseram a barreira da censura. Foi uma vitória política, em que um grupo armado

consegue impor sua vontade sobre um regime ditatorial complexo. O silêncio censor havia sido

burlado.

Sequência alterna para a casa de Henrique, oficial do Centro de Inteligência da Marinha

(Cenimar) e responsável pelas investigações do caso de Elbrick. Ele está em sua casa, na cama

com a esposa, preocupado ao ouvir a notícia do sequestro. Esta é uma cena importante em

produções de significados para o filme, tendo em vista que apresentará uma faceta do

personagem militar que Gabeira (2009) não traz em seu livro.

Henrique conversa com a esposa, mostrando muita preocupação com a toda a situação

que se aponta. Ao que parece, Barreto (1997) está apresentando ao espectador uma certa crise

de consciência no militar.

[Mulher] Você não está fazendo aquelas coisas que eles disseram na televisão?

[Henrique] É exatamente isso que eu estou fazendo.

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[Mulher] Você não está torturando aqueles garotos?.

[Henrique] Isso também.

[Mulher] Por que, Henrique?

[Henrique] É o meu trabalho. Fui designado para ele e faço. (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997).

Este trecho do diálogo do casal aponta para algumas considerações necessárias. A

primeira é que a pergunta da esposa revela como o povo acreditava que a discussão entre

militares e terroristas era algo distante de sua realidade. De certa forma, a população estava

alienada.

A segunda consideração é sobre o comportamento de Henrique. Durante todo o diálogo,

ele se mostra nervoso, sisudo. Soma-se a isso o som de uma nota de violino estendida. Cena

ganha linhas de tensão. Música mais triste, de descoberta de algo ruim. Seu rosto aparece

metade na luz e metade na sombra, isto é, o personagem está dividido entre o certo e o errado,

entre o bom o mau. Ele é, ao mesmo tempo, culpado pelas torturas e vítima da profissão que

escolheu. Seu rosto caminha mais para o envergonhado do que para o tenso.

[Henrique] Você pensa que eu faço isso por quê? Porque me dá prazer? Porque

eu quero essa glória no meu currículo? Olha, tenta entender. Esses terroristas,

eles se organizam como um grupo de cegos. Ninguém conhece quase nada

sobre a organização que eles atuam e as poucas pessoas que eles conhecem

usam todos nomes falsos. A tática deles é essa. Ou você tortura, e logo, ou não

avança nas investigações. É uma grande hipocrisia, mas que funciona [...] A

maioria deles são crianças inocentes e cheias de sonhos. (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997).

As palavras de Henrique evidenciam sua crise de consciência. É uma cena cheia de

contornos dramáticos, com uma paulatina construção psicológica do personagem. Henrique

tenta se justificar com o argumento de que cumpre com seus deveres, porque é o único método

possível, ao se recostar no colo da mulher. Cena se encerra com um abraço do casal, ele de

costas para a câmera. Imagem vai fechando no rosto dela, que está prestes a chorar.

O filme percorre um caminho interpretativo de amenização ou humanização dos

carrascos da ditadura, ao mesmo tempo em que apresenta os revolucionários como completos

inocentes, fato que será alvo de muitas críticas ao longa-metragem.

Só que essa interpretação — que é datada, localizada e utiliza nomes reais —

deve ter, pelo menos, um compromisso com o espírito do que de fato ocorreu.

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Pode ser que muitos torturadores tenham tido crises existenciais como

Henrique (o que é de duvidar, assim como todos os Eichmans da vida), mas

os guerrilheiros dos anos 60 não eram tão ingênuos, tolos, caricatos, como são

apresentados (à exceção de Fernando) no filme. Eram jovens que podem ter

escolhido caminhos equivocados (como a realidade, mais tarde, iria revelar),

mas eram generosos, indignados, sufocados pela ditatura nos seus anseios de

liberdade, e alguns deles foram as cabeças mais brilhantes de sua geração. É

essa generosidade, essa outra verdade que O que é isso, companheiro? não

consegue revelar. (SALEM in REIS FILHO, 1997, p. 49-50)

Gabeira (2009) aponta certa inocência nas convicções ideológicas dos movimentos de

esquerda no Brasil, mas não os coloca como inocentes ou tenta traçar auréolas sobre eles. O

filme (BARRETO, 1997), no entanto, parece trilhar justamente esse caminho. A crítica de

Salem (in REIS FILHO, 1997) exala certa revolta por se tratar de um longa-metragem inspirado

em uma história real. Os nomes, as datas, os locais e o enredo possuem correspondência no

mundo real.

Na sequência do filme, a imagem muda para a televisão escura, já desligada, onde

aparece o reflexo de Paulo. Nesta cena, Maria aparece e elogia o texto escrito por Paulo (texto

que na versão do livro de Gabeira foi escrito por Franklin Martins). Ela diz que sente orgulho

dele e lhe entrega uma lista de compras. Paulo, entretanto, aproveita o momento e beija Maria.

Ela reage com a frase “o que é isso, companheiro?”. “Isso é um beijo, Maria”, ele responde. Ela

pede que ele vá buscar as pizzas. Como pano de fundo, esse é mais um episódio que mostra a

complexidade do personagem Paulo, que é o mais instigante e verossímil. Os outros são muito

estigmatizados.

No mesmo sentido de evidenciar a complexidade de Paulo e as inquietudes dos

movimentos de esquerda, a cena que se segue é uma das mais sagazes e deliciosas do filme. Ao

buscar as pizzas para o jantar, Paulo passa em frente a um teatro, onde Artur, o velho amigo de

Paulo, o reconhece. Artur, que é ator, está vestido de um personagem do século XIX, ainda

desconhecido do espectador.

[Artur] Está com essa fome toda?

[Fernando] É uma festa.

[Artur] Algum embaixador convidado?

[Fernando] Você acha que se eu estivesse metido nisso estaria por aí

comprando pizza?

[Artur] Em situações excepcionais os juristas da ditadura sempre encontram

um modo para resolver as coisas. Acha que eu não reconheço seu estilo?

[Fernando] Você me superestima.

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[Artur] Será?

[Fernando] E você como é que se sente aí no século XIX?

[Artur] Mais próximo da realidade que você. Ibsen tem mais estilo que esse

seu teatro de horror. Sequestrar o embaixador é atirar no soldado que carrega

a bandeira branca, Fernando.

[Fernando] Não seja tão dramático.

[Artur] Vocês e os militares são a mesma ponta da ferradura, parecem

distantes, mas na verdade estão bem próximos.

[Fernando] Vou te dizer uma coisa. Um dia, quando contarem a história do

nosso tempo, todo mundo vai saber que um grupo de pessoas pegou em armas

para lutar contra a ditadura. Isso é importante, muito mais do que você pensa!

Nem todo mundo se escondeu numa casa de boneca... (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO?, 1997)

Durante toda a cena, Artur está comendo pipoca, muito descontraído, um tanto irônico.

Quando ele se afasta, a câmera aparece em plano conjunto, do outro lado da rua, mostrando o

letreiro do teatro: “Casa de Bonecas, de Ibsen”. Teatro Carlos Gomes. Este diálogo delicioso

deixa o espectador tenso e eufórico. É, também, fundamental no conjunto do filme, porque

ajuda a entender melhor o perfil e a convicção de Paulo.

Cena seguinte, Paulo toma um táxi, o que não é muito verossímil, dado que quanto mais

desapercebido ele passasse, melhor. O taxista diz “viu na televisão? Sequestraram o embaixador

americano, bem nas barbas dos milicos. Esses caras que sequestraram o embaixador são

demais! Eles e os cosmonautas!” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). Câmera fechada

no rosto de Paulo, enquanto ele esboça um sorriso. Parece uma cena de consolo ou de

confirmação de que ele era o vencedor da discussão anterior com o Artur. Dá a entender que

ele precisava de uma afirmação externa. Evidencia que o próprio Paulo está em crise existencial

sobre a legitimidade moral do sequestro.

Na sequência seguinte, a câmera passeia pela casa do sequestro, mostrando Marcão se

exercitando, contribuindo para o estereótipo do guerrilheiro atlético. Júlio, que é mais garoto,

estava olhando sua metralhadora, quando a deixa de lado para ler uma revista em quadrinhos,

Epopeia TRI: O dia do Mascarado, que era um famoso gibi de faroeste norte-americano. No

quarto, Toledo está deitado ouvindo música clássica em uma vitrola, o que também contribui

para estereótipo construído dele, de homem mais velho, requintado e experiente. Renê está

lavando a camisa do embaixador. Maria está tirando cópias, em um mimeógrafo, provavelmente

de um manifesto ou jornal revolucionário. A música é triunfalista. Jonas está encapuzado,

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cuidando do embaixador. Em um gesto de humanidade, ele apaga a luz do quarto e fica do lado

de fora, com a porta semicerrada, para não acordar Elbrick.

Cena de transição. Imagem do alvorecer, Pão de Açúcar. Cena avermelhada, ainda.

Letreiro: “Sexta-feira, 5 de setembro, 1969”. Música triunfalista e sons de pássaros.

Câmera de fora da casa, com o leiteiro entregando o leite e assoviando A Banda, de

Chico Buarque, ícone musical da luta contra a repressão militar nos anos 60 e 70. A cena muda

para o interior da casa, com imagem fechada no rosto de Jonas, que está muito sério. Depois

Toledo. Entram no quarto Maria e Paulo. Há um pequeno entrevero entre Jonas e Paulo, mas

Maria defende a presença de Paulo com o argumento de que precisavam de um intérprete.

Inicia-se um interrogatório com Elbrick. Jonas é grosseiro com o embaixador, mandando-o

calar a boca. Música de tensão e de suspense. Jonas é quem conduz o interrogatório,

perguntando quem são os homens da CIA17 no Brasil. “Você pensa que está falando com algum

palhaço?” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997), pergunta Jonas, engatilhando e

apontando a arma para a cabeça do embaixador. A todo momento, Charles Elbrick tenta explicar

calmamente aos interrogadores que seu trabalho não envolve ações da inteligência norte-

americana.

Maria pergunta: “O sr. quer dizer que desconhece que militares norte-americanos dão

aula de tortura a militares brasileiros?” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). O

embaixador nega as acusações e perguntas: “Na minha opinião, meu país não deveria apoiar

governos não eleitos democraticamente. Tais regimes costumam trazer estabilidade apenas

temporária. No fim das contas, apenas geram ódio e animosidade no povo” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997). Ele termina a frase um tanto consternado, cabisbaixo. Como quem

reconhece uma verdade diante de si, incapaz de se redimir.

A cena seguinte é uma reunião em que Paulo se posiciona contra Jonas, questionando

suas atitudes intimatórias contra o embaixador. Toledo dá razão a Paulo. Aqui, Paulo está

crescendo em autoridade e relevância, se assumindo líder, intelectual, firme em suas posições.

É importante destacar, outrossim, a maneira como o filme traz o personagem Jonas.

O sequestro seria comandado por Jonas (Virgílio Gomes da Silva), 36 anos,

um operário com nariz amarrotado de ex-boxeador, veterano da primeira leva

17 Central Inteligence Angency, em tradução livre Agência Central de Inteligência. É a agência de inteligência dos

Estados Unidos.

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enviada a Cuba, chefe do Grupo Tático Aramado, o GTA, e instrutor das

turmas que a ALN treinava num sítio em Ribeirão Preto. (GASPARI, 2014, p.

91).

Em todo longa-metragem, Jonas é apresentado como um homem turrão, muito sério e

convicto. Há momentos em que ele é mal-educado, como na cena do sequestro em que chama

Renê de “vagabunda”; há outros em que se mostra frio e violento, quando, por exemplo, diz

que mataria qualquer um que discordasse de sua liderança.

Essa imagem construída de Jonas não condiz com o que se lê a respeito dele na obra de

Gabeira (2009) e também gerou certo incômodo em muitos críticos e ativistas da época, à

exemplo de Franklin Martins, que veementemente condenou a maneira como o personagem foi

trazido para o cinema.

Entra em cena recusando o cumprimento de um companheiro, como se fosse

um campeão dos maus modos. Logo em seguida, reúne os guerrilheiros que

vai chefiar e adverte-os: a primeira bala de sua arma está destinada ao

companheiro que não cumprir suas ordens; a segunda, àquele que sair em

defesa do indisciplinado. E completa com algo mais ou menos assim:

“Estamos entendidos?” Só faltou rosnar.

[...] Terá o Jonas do filme algo a ver com o Jonas da realidade? Conheci este

último durante um período curto, de 2 a 7 de setembro de 1969, quando

participamos juntos do seqüestro do embaixador norte-americano. Nossa

convivência foi curta, mas devido às circunstâncias, intensa. Posso assegurar

que o Jonas do filme é um insulto ao Jonas da vida real. (MARTINS in REIS

FILHO, 1997, p. 118-119).

Segundo Martins, os exemplos de má educação e grosserias de Jonas são todas

“invencionices” (in REIS FILHO, 1997, p. 119) do filme. Para ele, o longa manchou o caráter

do comandante da operação em nome de um suposto posicionamento de não tomar partido ao

contar a história. Assim, o anacronismo se tornou evidente. “Ele é animalizado para que o

torturador possa se humanizar” (in REIS FILHO, 1997, p. 122). Martins coloca Jonas como

antagonista de Henrique, em uma tentativa de equilibrar os lados políticos. No entanto, a

maneira como Jonas é apresentado na história, gera certa angústia em quem assiste.

Nitidamente, ele se torna um personagem irreal para compor um drama dentro do grupo de

sequestradores. Uma estratégia cinematográfica que, em contrapartida, feriu a memória de um

guerrilheiro injustiçado pela história.

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Na continuação do filme, o grupo pede para que o embaixador escreva uma carta a sua

esposa para provar que está vivo. Enquanto ele escreve, cena alterna para Paulo entrando na

Igreja Nossa Senhora da Lapa. Imagem começa com a câmera no alto do altar, mostrando Paulo

embaixo. O ambiente é todo escuro. Cria uma ideia de alguém que estava rebaixado. Ele

caminha até um ponto iluminado. Entrementes, esse caminhar de Paulo, do lado escuro para o

lado claro, visto de cima, é uma metáfora do divino olhando para o homem que sai das trevas,

da escuridão e do anonimato e se encontra, achegando-se à luz. É quando ele se entende fazendo

o que era certo, não mais escondido em suas máscaras intelectuais: sua redenção.

Paulo não diz nada. Câmera agora em um ponto nos bancos da igreja, mostrando Paulo

de costas e com a cabeça baixa. Ele se vira, vai saindo da igreja, com a câmera acompanhando-

o, quando deixa um papel na caixa de esmolas. Na sequência, Paulo aparece caminhando pela

rua até entrar em bar para telefonar. Voz do outro lado é do Jornal do Brasil. Ele pede para

falar na redação e dá a informação de que deixou a lista com os 15 nomes a serem liberados em

troca do embaixador e a carta de Elbrick à sua esposa na caixa de esmolas da igreja.

A sequência que se segue é a carta do embaixador para sua esposa, Elvira. Enquanto o

texto é lido em off, aparecem algumas cenas emblemáticas. Cena escura, com o embaixador

comendo no quarto-cativeiro e muitas sombras. Aparece a arma próxima ao embaixador.

Música de suspense ao fundo. Ele fala dos capuzes de seus sequestradores, comparando-os aos

da Ku Klux Klan, movimento reacionário e extremista dos Estados Unidos, em mais uma

referência ao anonimato individual para destaque do coletivo.

O texto da carta funciona mais para ajudar a construir a imagem do grupo.

Fala de Julio, que tem a pele como de um bebê. Acredita ser uma criança aliciada para

a causa. Para Elbrick, é o que mais lhe assusta: “fanatic kid” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997).

Depois fala de mãos de fazendeiro, que provavelmente pertencem àquele que o ameaçou

de tortura. “Um pobre subproduto de uma Guerra Fria cujas circunstâncias estão muito além de

sua ignorância” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997), diz ele em referência a Jonas.

Música muda para algo mais tranquilo e sossegado. Cena do embaixador olhando por

uma janela o Cristo Redentor. Sobre Renê, fala da garota que lavou suas roupas, dizendo que

será eternamente grato a ela por esse toque de dignidade.

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Música volta ao suspense e tensão iniciais. Agora vai falar de Toledo, a quem ele chama

de “vampiro-chefe. Um velho, liderando uma gangue de crianças. Acho que as revoluções são

ótimas para alguém se esconder de si mesmo. Mas talvez a mesma coisa possa ser dita do

serviço diplomático” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). Enquanto analisa os

membros do MR-8 e da ALN, ele também faz uma autoanálise. Parece também uma reflexão

do papel dos EUA em todo esse contexto, afinal, o embaixador responde por seu país.

Música mais tranquila, ainda de suspense, num tom mais solto. Diz que Paulo é o que

mais lhe deixa curioso. “Muito culto e gosta de conversar, mas acredita em cada besteira!” (O

QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Cessa a leitura da carta para mostrar um diálogo de Paulo com Elbrick. Paulo fala do

movimento dos Panteras Negras, depois pergunta se o embaixador é favorável à intervenção

norte-americana no Vietnã. Elbrick fala sobre sua relação com um alfaiate português. Mostra

requinte. Encerra-se a cena com Paulo servindo um copo de água ao embaixador, um gesto

simbólico de simpatia e proximidade.

Na sequência que se segue, alguém toca a campainha da casa-cativeiro. Paulo cochilava

enquanto guardava o embaixador e acorda assustado, apontando a arma para a cabeça de

Elbrick, que também acorda muito assustado. Quando abriram a porta, viram que não era

ninguém. Elbrick acorda constrangido e pede ajuda a Paulo, uma vez que teve uma

incontinência intestinal. Paulo o ajuda a ir ao banheiro. Cena do embaixador consternado no

vaso sanitário, despido, incapaz, chorando. Câmera se aproxima do rosto, evidenciando o choro.

Parece mais um choro de vergonha que de medo. Outra vez o filme evocando um lado muito

humano de um personagem que se torna para o espectador cada vez mais interessante.

Cena de transição. Também muito avermelhada do amanhecer ou anoitecer na Baía de

Guanabara. Aparece o letreiro: “Sábado, 6 de setembro, 1969” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997).

Elvira recebe a carta do marido. Voz em off do embaixador. Desta vez, é a mesma carta

transcrita no livro, com o corte de duas frases: “Devem apressar-se em satisfazer as condições

exigidas para a minha liberdade. Estas pessoas parecem muito decididas”. (GABEIRA, p. 106).

Elvira chora enquanto lê a carta.

Querida Elviry, estou bem e espero ser libertado e te ver em breve. Por favor,

não te preocupes. Eu também trato de não preocupar-me. As autoridades

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brasileiras estão informadas dos pedidos que lhes fazem os que me têm em

seu poder. Não devem tratar de me localizar, pois poderia ser perigoso. Todo

meu amor, querida, esperando que logo estejamos juntos. Burke (O QUE É

ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Imagem volta para o interior da casa. Renê está tomando café e Marcão dormindo em

um colchão no chão, mostrando os membros do MR-8 tranquilos, seguindo rotina. Enquanto

isso, Jonas está com binóculos observando, por uma fresta da janela, homens, supostamente, da

Telefônica mexendo em um poste próximo. Toledo chega e pergunta o que acontece, Jonas

demonstra preocupação. Câmera alterna para subjetiva, com moldura oval, mostrando Henrique

vestido de funcionário da Telefônica. Jonas diz que suspeita, porque os dois funcionários estão

bem barbeados. Toledo concorda e questiona como os encontraram. Jonas diz “nosso grupinho

é meio amador e eles são profissionais” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). Enquanto

ele diz isso, câmera está na frente de Renê, compondo a conversa dos dois homens em segundo

plano, enquanto ela, em primeiro plano, percebe a conversa e preocupa-se, olhando para trás

assustada.

Do lado de fora da casa, imagem mostra os dois policiais vestidos de funcionários da

Telefônica trabalhando no poste, provavelmente grampeando o telefone. Estratégia

cinematográfica de simultaneidade. A maneira como essa sequência foi apresentada demonstra

a ideia de que as duas cenas aconteciam ao mesmo tempo. É uma estratégia também que o

jornalismo literário usa para ambientar o leitor à cena, ajudar a forjar o personagem e a situação,

o drama. A discussão dos dois é uma conversa de policiais, mesmo. Argumentavam sobre as

possibilidades de invasão da casa e de onde estaria o embaixador. Eles ligam para a casa-

cativeiro.

Interior da casa. Clima de preocupação. Toledo andando de um lado para o outro. Ele e

Jonas se olham quando o telefone toca. Renê se levanta. Corte para câmera fechada no rosto de

Jonas, mostrando tensão e suspense. Ao fechar no rosto dele, espectador se aproxima do

personagem. Quanto menor a distância, maior a intimidade. Câmera fecha em Jonas porque ele

é o líder e irá tomar a decisão no momento. Ele manda Renê atender ao telefone. Imagens

alternadas de Renê e Henrique conversando. Diálogo sobre uma Desirê. Ela diz que não

conhece nenhuma Desirê e que ele deve ter sido enganado.

Jonas agora observa por outra janela. Há um pequeno salto temporal. Outros perguntam

o que está acontecendo. Enquanto há uma certa agitação na casa, por conta da “visita” dos dois

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policiais que agora seguem para a casa, câmera enquadra Renê encostada na parede, com a arma

em punho, rezando em baixa voz, muito nervosa. Jonas mandou Julio ficar de guarda com o

embaixador e, se ouvir algum tiro, executar Elbrick.

A campainha toca e é Paulo quem vai atender e conversar com Henrique e Brandão.

Depois da pequena conversa sobre o engano, Jonas manda Paulo seguir os dois. Os policiais

estavam apenas averiguando se aquela poderia ser, de fato, a casa onde estaria sendo mantido

cativo o embaixador dos Estados Unidos. Eles voltam confirmando que reconhecem o rosto de

Paulo de alguma fotografia de manifestações políticas. Eles comentam que chegaram até a casa

por uma pista de um padeiro que suspeitou de um cliente (Júlio) que estava comprando oito

galetos de uma vez. Henrique chega a dizer que “essa gente não gosta de fazer nada, só gosta

de comprar feito” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). Mais uma vez o estereótipo do

pensamento da direita sobre a esquerda.

Paulo os segue, ainda que saibam que estão sendo seguidos. Câmera vai para o interior

da casa de tocaia da polícia, onde policiais estão ouvindo a gravação da primeira ligação.

Henrique vai para a janela e fala ao telefone com o comandante dizendo que localizaram a casa,

“não há dúvida”, diz.

Interior da casa-cativeiro. Há uma pequena discussão sobre o que a polícia pode fazer.

Jonas é duro e Maria diz que precisam decidir quem se encarregará da execução, caso eles

invadam a casa. Toledo diz que Jonas é quem chefia a operação e, portanto, deve decidir.

“[Jonas] Nós não somos carrascos, por isso não vou fazer escolhas. A minha decisão é de que

o embaixador será executado pelo companheiro que estiver com ele às 10 horas da noite. Será

morto pelo companheiro de plantão. Ou seja, por todos nós”. (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997). Enquanto ele fala, corte para planos mais fechados dos rostos de

Renê, Marcão e finalmente Paulo, que olha para Maria um tanto desconfiado e assustado. Essa

aproximação da câmera sugere intimidade e aproximação do espectador com a tensão da cena

e a seriedade dos personagens. Maria puxa um papel para conferir quem estará no plantão.

Anuncia que é o companheiro Paulo. Jonas o parabeniza, enquanto ele fica atônito.

Imagem alterna para algum quarto da casa, com isolamento acústico, onde estão Maria

e Paulo conversando. Ela diz que Jonas trocou os turnos, mostrando certa discordância.

Enquanto eles conversam, câmera subjetiva mostra Paulo olhando para a primeira página do

jornal O Globo que estava sobre a mesa. Chamada principal do jornal é: “I Exército caça

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sequestradores”. No canto superior esquerdo da página, um pouco menor que a chamada

principal aparece o texto: “Terroristas levam Embaixador norte-americano mas já há pistas”.

Paulo pergunta a Maria se ela acha que os militares vão deixar o embaixador morrer.

Maria se mostra em dúvida. Estes são os dois personagens mais complexos do grupo. Ela está

exposta, parece incapaz, de mãos atadas. Se sente desprotegida e começa a chorar. “Medo de

morrer”, ela diz sobre seus próprios sentimentos. Eles se abraçam. “[Maria] Queria ser presa.

Às vezes eu sonho em ser presa. É um alívio tão grande!” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

1997). Eles começam a se beijar em uma cena a meia luz. Quando eles se deitam se entregando

à paixão, Paulo se levanta e vai trancar a porta.

Maria diz a Paulo que sabe que o nome dele é Fernando, enquanto revela que seu

verdadeiro nome é Andreia. Esse confessar de nomes reais cria um vínculo entre os dois. Eles,

agora, compartilham segredos um do outro. Eles se abriram um ao outro, se aproximaram.

Beijam-se novamente, dessa vez entregues por completo, sem máscaras, sem fingimentos, sem

política.

Imagem externa da casa, à noite. Letreiro: “19:30 HS.”

Aparecem Henrique e Brandão em uma varanda vigiando a casa do sequestro. Henrique

acende um cigarro, um pouco ansioso. Eles discutem sobre um sargento (Peçanha) que se casou

com uma terrorista chamada Marta. “[Henrique] Peçanha pegou gosto pelo ofício da tortura.

Acabou encontrando prazer que nunca teve no trabalho burocrático”. Aqui, Henrique mais uma

vez é apresentado como um personagem experiente, inteligente, consciente e humanizado. Suas

frases sugerem que ele e Brandão não gostavam da tortura. Parece uma tentativa de inocentar

os torturadores.

[Henrique] A gente abriu um frasco perigoso que nunca deveria ter sido

aberto. As coisas fogem do controle. Você consegue dormir direito?

[Brandão] Durmo sim.

[Henrique] Eu não... (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Essa tentativa de inocentar os torturadores ou de posicioná-los como vítimas de um

sistema que os obriga a cometer atrocidades contra outras pessoas é um dos maiores defeitos

do filme. O espectador já viu, na cena de tortura de Oswaldo, que os militares não sentiam

grandes arrependimentos ou crises de consciência com suas atitudes. E esse esforço do longa-

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metragem em ponderar o imponderável chega a ser grotesco. Relatos históricos acerca das cenas

de torturas vividas nos anos de chumbo não permitem ao espectador acreditar em dois policiais

com tamanho grau de consciência de si mesmos. Um bom exemplo dessa discrepância é o

desfecho de Jonas, que não é retratado no filme.

A Oban chegou a Jonas em três dias e três lances. Ele entrou na rua Tutoia no

dia 27 de setembro e lá desapareceu. Virgílio Gomes da Silva foi o primeiro

preso a sumir após a edição do AI-5. A partir dele alterou-se no léxico do

idioma o significado da palavra desaparecido. Deixou de designar algo que se

perde de vista para qualificar os cidadãos assassinados em guarnições e

valhacoutos militares cujos cadáveres sumiam. Do que lhe aconteceu na

Tutoia restam os depoimentos de dois presos.

Seu irmão, Francisco Gomes da Silva, capturado dois dias antes, contou em

juízo que viu Virgílio “com as mãos algemadas para trás, enfrentando cerca

de quinze pessoas, dando-lhes pontapés e cuspindo neles ao mesmo tempo em

que era cuspido e agredido por todas aquelas pessoas, até que uma delas lhe

deu um pontapé na cabeça, produzindo um ferimento bastante grave”. Outro

preso revelou que estava numa sala da Oban quando Virgílio foi trazido,

arrastado, sangrando. Descreveu a cena: “Viu baterem com a cabeça de Jonas

no chão diversas vezes, presumindo que quando Jonas saiu daquela sala

estivesse morto”.

Horas depois o major Benoni de Arruda Albernaz, chefe da equipe A de

interrogadores da Oban, disse na carceragem que Virgílio fugira. (GASPARI,

2014, p. 105).

Diante de tantos outros relatos muito semelhantes a esse de Gaspari, inclusive alguns

amplamente descritos por Gabeira (2009), é impossível se compadecer dos torturadores. Assim,

o suposto equilíbrio buscado por Barreto (1997) acaba por ferir a qualidade do longa-metragem,

que perde muita força com investidas nesse sentido.

Cena do interior da casa-cativeiro. Cena da porta branca do quarto onde está o

embaixador. Surge o letreiro “20:30 HS.”. Cena muito bonita, um tanto sinistra, mal iluminada.

O enquadramento segue a proporção áurea, em que as linhas da imagem, nas relações entre si,

seguem a razão áurea, o que torna a cena ainda mais bonita. Câmera lentamente se aproxima da

porta, como numa aproximação do desfecho do filme.

Paulo rende Marcão na guarda do embaixador. Inesperadamente ele pede o capuz. “Uai,

vai usar?”, pergunta Marcão. “Não vou matar um cego”, responde Paulo. Dentro do quarto,

Paulo diz ao embaixador que ele pode tirar os óculos. Ao tirá-los, a câmera se movimenta em

aproximação do rosto do embaixador, o que mostra o ar de preocupação e tensão de Elbrick.

Esta é uma estratégia cinematográfica equivalente a uma literária, descrevendo olhares e clima.

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Embaixador volta a falar com a esposa. Enquanto ele descreve que está à beira da morte,

cena mostra a casa do embaixador, em uma panorâmica lenta, mostrando Elvira consternada no

centro da sala. Esse movimento lento mostrando o ambiente exerce a mesma função da

descrição como recurso literário, muito semelhante ao que Wolfe (2005) chamou de descrição

do status de vida da personagem.

Sons do sino de uma igreja anunciando a hora. Paulo olha para o relógio, se levanta

nervoso e vai em direção ao embaixador. Ele tira o capuz e aponta a arma para a cabeça de

Elbrick. Quando fecha os olhos para efetuar o disparo, Maria bate à porta e anuncia que os

militares aceitaram atender às demandas do grupo. Ele diz: “Ganhamos”.

Som de marcha triunfal. Toledo aparece sentado em um sofá, deliciando-se com a

sensação da vitória. Jonas entra na sala e eles se olham orgulhosos. Toledo se emociona. Na

cozinha, à mesa, os outros quatro tomam cerveja em celebração. No lado de fora da casa,

Henrique e Brandão estão contrariados ouvindo a música da casa.

Cena da Lagoa Rodrigo de Freitas em panorâmica, com enquadramento em grande

plano geral. Amanhecer ou anoitecer. Pela primeira vez, a cena de transição é azulada e não

avermelhada. Letreiro: “Domingo, 7 de setembro, 1969 / Dia da Independência”. Som de

marcha militar, das celebrações do dia da independência.

Cenas de gravações da marcha militar das comemorações da independência. Cena em

preto e branco. Soldados marchando, tanques de guerra. O grupo está assistindo à televisão,

ansioso. Começa a vinheta do Repórter Esso. Eles se agitam para ouvir melhor. “Começa o seu

Repórter Esso, testemunha ocular da história, em edição extraordinária em homenagem aos

jornalistas do Brasil”. Vídeo, provavelmente original, do Repórter Esso anunciando uma

radiofoto da chegada dos presos libertados no México pelos militares. Na foto, eles reconhecem

Oswaldo, companheiro que havia sido baleado durante o roubo ao banco. Eles comemoram,

abraçando-se.

Inicia-se, então, a sequência da libertação do embaixador. Essa sequência será

intercalada com imagens de um jogo de futebol no maracanã, um clássico entre Flamengo e

Vasco, e do grupo levando o embaixador para ser liberto.

Eles fogem em dois carros. O carro de trás, com Paulo, Renê e Júlio, percebe que está

sendo seguido. Renê pega uma metralhadora para tentar intimidar os policiais. Brandão e

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Henrique, que seguem atrás dos carros, também percebem que estão sendo, por sua vez,

seguidos. Na confusão, um carro de militares interrompe a perseguição de Henrique e Brandão

ao grupo. Eles saem do carro e brigam com os policiais, questionando se eles queriam ver o

embaixador morto. Os policiais param a perseguição.

Há helicópteros seguindo os carros. Iniciam-se cenas da saída do jogo, flamenguistas

felizes comemorando e vascaínos tristes. Ao fundo, alguns gritos de torcedores. Sequência

também funciona como texto descritivo da situação: mostra vendedores ambulantes, bandeiras,

torcedores, muito barulho.

Um a um, os sequestradores vão saindo dos carros e se misturando a multidão. Elbrick

é deixado no meio dos torcedores com a frase de Jonas: “Cai fora, gringo” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997). Ele caminha até encontrar um táxi e vai embora.

O embaixador chega a sua casa, onde muitos repórteres aguardam por notícias. Ele

abraça a esposa e diz que está tudo bem. Ao final dessa cena, o silêncio é quebrado por um

início de música de suspense. Chegando à meia hora final do filme, passa-se à história da

perseguição do grupo de sequestradores.

2.4. Saída

Cena da casa usada como cativeiro. Letreiro: “Um mês depois”.

O dono da casa avisa Henrique que havia encontrado um jornal, na parte dos

classificados, todo recortado com opções de casas para alugar. É dessa maneira, segundo o

filme, que eles encontram o grupo de Paulo. O que Gabeira (2009) e outros registros contaram,

no entanto, é que foi através de um paletó deixado na casa que os militares chegaram aos

primeiros guerrilheiros.

Na hora dos trabalhos finais de limpeza, Gabeira ficou encarregado de

recolher um paletó que pertencia a um graduado participante do seqüestro.

Descuidou da tarefa, os militares descobriram a peça de roupa, localizaram o

alfaiate e acabaram fazendo uma prisão importante. (LEITE in REIS FILHO,

1997, p. 55)

Encontrar os guerrilheiros foi mais difícil do que o filme dá a entender. O

paletó de um deles, Cláudio Torres da Silva, esquecido na casa depois da ação,

acabou sendo uma pista decisiva: ali estava o endereço do alfaiate. Ele foi

preso no dia 9 de setembro. Esta pista inicial, que desencadeou a caçada

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selvagem que se seguiu àquela Semana da Pátria, não aparece no filme.

(BUCCI in REIS FILHO, 1997, p. 225)

Leite e Bucci reafirmam a versão de que a primeira pista que os militares tiveram acesso

foi um paletó que os conduziu a um alfaiate, de onde conseguiram alguns nomes e endereços.

O fato, no entanto, da troca dessa versão pela do jornal recortado, pode ser entendido tendo em

vista a necessidade de tornar essa descoberta dos militares mais rápida no filme. O tempo da

narrativa no longa-metragem seria mais envolvente ao espectador se esse transcurso dos

policiais descobrindo o paradeiro dos guerrilheiros fosse, de fato, mais rápido.

Transição para uma cena de um bairro pobre, de chão batido. Música mais calma. Paulo

desce de um ônibus e, enquanto aparece andando pela rua, em off ouve-se ele dizendo a Maria

que precisa vê-la. Câmera se movimenta e foca em cartazes de “procurados” com as fotos do

grupo.

Ele chega até uma casa simples, onde se encontra com Maria. Imagem dos dois sentados

à mesa comendo. Eles discutem sobre o fato de que, no novo disco de Gilberto Gil, o cantor

diz, disfarçadamente, Marighela. Maria diz que tem de se tocar o disco de trás para frente para

ouvi-lo dizer. Paulo pergunta: “Mas Maria, ninguém ouve o disco de trás para frente”. Esse

diálogo mostra um pouco o desânimo e a descrença nas próprias convicções. Aqui há um resgate

de uma ideia que apareceu no livro de Gabeira (2009), de que o contar da história, no caso da

obra escrita, parecia construir um caminho de redenção do narrador. Um caminho em que ele

se redime de seus erros ao reconhecer as enormes falhas e escabrosos ideais egoístas.

“[Paulo] Foi um sonho que não deu certo. A gente está falando para o vento. Ninguém

quer ouvir o que a gente tem a dizer. Seu nome não é Maria, é Andreia” (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997), diz Paulo, reafirmando sua identidade, numa tentativa de afirmação

de si mesmos, de se trazerem de volta à vida. Maria começa a chorar. Eles se abraçam. Enquanto

isso, cena mostra carros da polícia chegando à casa.

Maria se levanta, talvez para ir ao banheiro. Paulo se recosta à parede e acende um

cigarro. Câmera subjetiva mostrando que Fernando havia visto a porta da casa semiaberta. Ele

se vira e foge, correndo. Música dramática. Câmera se vira para ele e acompanha sua corrida

para fora da casa, com efeito de slow, o que prolonga o tempo da narrativa, aumentando a

expectativa, a ansiedade e o clímax. Quando chega ao muro e tenta pular por sobre ele, toma

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um tiro pelas costas e cai. O som da música para. O silêncio gera ansiedade e nervosismo.

Velocidade da cena volta ao normal. Finalmente, Paulo e Maria estavam presos.

Cena toda escura. Simbolismo da escuridão, dos porões da ditadura, lugares que ficaram

nas sombras da história. Câmera acompanha Henrique descendo as escadas, com o rosto na

escuridão, fumando um cigarro, um simbolismo, também, do personagem descendo para

escuridão, chegando ao pior de si. Câmera vai acompanhando Henrique ao fundo e, enquanto

faz um tilt down, começa a aparecer Fernando preso em um pau de arara, de cabeça para baixo,

respirando rápido, com cara de muito assustado.

Câmera subjetiva de Fernando. Ele vê Henrique de ponta cabeça dizendo a ele,

justamente, que o seu mundo havia virado de ponta cabeça. Henrique sai do enquadramento,

que, subjetivo, remete ao olhar de Fernando. Cena se torna toda preta, apenas som ambiente.

Som de uma barra de metal, passos. Grito de Fernando.

Esta é uma cena muito forte do filme, porque retrata a violência da ditadura na cegueira

do audiovisual. O que ninguém via, não é mostrado no filme. Fica, ao espectador, o grito

angustiante de Fernando, indefeso e desamparado. Toda aquela tentativa de equilibrar o

personagem Henrique com suas crises existenciais perde consistência nesta cena, em que ele se

afunda no âmago de seu caráter, trazendo à tona violência e brutalidade. A escuridão e o

silêncio, aqui, são fundamentais para passar essa mensagem.

Fundo preto. Letreiro: “Oito meses depois”.

Câmera em dolly18 acompanhando Maria sendo empurrada em uma cadeira de rodas.

Enquanto isso, ela narra uma carta a Fernando.

Fernando, o sequestro do embaixador alemão me encheu de esperanças. Será

que você também vai estar na lista dos prisioneiros libertados? Quem sabe te

vejo no embarque para Argélia. Jonas e Toledo estão mortos. Quanto a mim,

não se assuste com o que vai ver. (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997).

Essa fala final faz o papel de narrador, contando o que se passou. Substitui uma nova

sequência de imagens. Os companheiros veem Maria chegando e todos olham assustados e

18 Espécie de trilho sobre o qual se posiciona a câmera, permitindo uma movimentação paralela ao objeto exibido.

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sérios. Estão todos na pista de um aeroporto, em frente a um avião. Eles se ajuntam e se

posicionam para uma foto, erguendo braços e fazendo sinais de vitória com os dedos.

Imagem muda para branco e preto e congela. Efeito de desfoque enquanto a música de

tensão caminha para o final.

Letreiro: “Em 1979 o governo militar, sob pressão da opinião pública, decreta anistia

geral para todas as pessoas envolvidas em crimes políticos”.

Altera para o letreiro: “Seis meses após o sequestro, o embaixador Elbrick volta aos

Estados Unidos para um exame de saúde. Sofre um derrame cerebral e não pode retornar a seu

posto no Brasil. É aposentado. Morre em 1983”.

Muda para letreiro: “Em 1989, eleições livres se realizam e a democracia volta ao

Brasil”.

Fade to White19. “Um filme de Bruno Barreto”.

19 Efeito de transição de imagem que transforma a imagem, gradativamente, em uma tela branca.

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3. Jornalismo Literário no Cinema

Assim como no material impresso, jornalismo e literatura se misturaram no audiovisual

de O que é isso, companheiro?. No jornalismo literário, o autor se utiliza dos métodos

jornalísticos para construir o realismo de sua obra. Bruno Barreto (1997) transpõe alguns desses

recursos de texto impresso para o texto audiovisual. Parte dos objetivos desta tese é investigar

como se deram as relações entre jornalismo e literatura e identificar pontos de contato entre as

duas áreas e o cinema nas obras de Fernando Gabeira (2009) e Bruno Barreto (1997).

Um dos movimentos mais icônicos dessa reaproximação da literatura com o jornalismo

foi o chamado Novo Jornalismo, ou New Journalism. Em meados dos anos 50 e 60, nos Estados

Unidos, alguns escritores e jornalistas externaram seu descontentamento com o jornalismo

cotidiano e superficial. Tornaram-se símbolo dessa geração, Gay Talese, Truman Capote,

Norman Mailer, Tom Wolfe, entre outros. O que eles propunham não era nenhuma grande

revolução estética, mas um resgate de elementos literários para as redações.

Wolfe (2005) destacou-se entre seus colegas por apresentar uma tentativa de teorização

das técnicas usadas no Novo Jornalismo. Em sua percepção, os textos jornalísticos tradicionais

careciam de atrativos ao leitor. Eram textos desagradáveis, sem preocupações com ritmo,

cadência, construção de personagens. Para ele, o jornalismo precisava se reinventar e essa

geração do Novo Jornalismo, intuitivamente, perseguiu novas ferramentas de construção

textual que pudessem aperfeiçoar seus textos.

Se se acompanha de perto o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos

60, vê-se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo do nada

as técnicas do realismo – especialmente do tipo que se encontra em Fielding,

Smollet, Balzac, Dickens e Gogol. Por meio de experiência e erro, por

“instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começaram a descobrir os

recursos que deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre

outras coisas como seu “imediatismo”, sua “realidade concreta”, seu

“envolvimento emocional”, sua qualidade “absorvente” ou “fascinante”.

(WOLFE, 2005, p. 53)

Assim, Wolfe (2005) evidencia sua tentativa de migrar recursos da literatura para o

jornalismo, em busca de um estilo novo. Fernando Resende (2002) comenta acerca do efeito de

realidade que Tom Wolfe tanto almejava. Essa era uma busca, inclusive, de praticamente todos

os escritores do Novo Jornalismo, por ser esse efeito de realidade o fato mais intrigante do

movimento. As histórias eram construídas a partir de técnicas do jornalismo e do realismo

literário, assim, assumiam uma verossimilhança que não permitia ao leitor identificar o que era

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ficção e o que era realidade nos textos. Dessa forma, a ideia de romances reais instigava a

curiosidade de leitores e críticos, dando notoriedade ao Novo Jornalismo.

Da mesma maneira, Edvaldo Pereira Lima (2009) também questiona a necessidade

jornalística de concentrar-se na informação, ignorando a estética textual.

O jornalismo impresso cotidiano padece de outro mal, além das limitações na

pauta e captação: o anacronismo de sua linguagem verbal, nas reportagens de

profundidade. Imbricada a isso está a excessiva prisão do texto à informação,

perdendo-se o alcance possível de um tratamento mais enriquecedor, de uma

exploração que traga, ao leitor, gratificação superior. (LIMA, 2009, p. 134)

Essa “exploração” citada por Lima, vai ganhar novos contornos no olhar de Wolfe

(2005). Ele é o autor do Novo Jornalismo que sistematiza as técnicas usadas no movimento,

após observações de textos dos outros escritores e experimentações próprias.

Certo, portanto, de estar falando com quem entendesse sua língua, Wolfe,

possivelmente por não conseguir se deslocar do universo factual no qual

também inseria seu texto, colocava-se bastante preocupado com o efeito de

realidade que deixaria transparecer. Seu objetivo era proporcionar ao leitor a

experiência de vivenciar os fatos na medida em que os narrava, aparentemente

acreditando que, simplesmente por fazer uso de técnicas derivadas do realismo

– a saber, construção detalhista das cenas, transcrição completa dos diálogos

etc. – e das jornalísticas, estaria viabilizando um texto em que o leitor se

encontraria, tanto no prazer da leitura, quanto na verdade dos fatos.

(RESENDE, 2002, p. 99)

O primeiro grande romance surgido a partir das ideias do Novo Jornalismo foi A Sangue

Frio (2003), de Truman Capote. A obra conta a história de uma família que foi brutalmente

assassinada em uma pequena cidade no estado do Kansas, Estados Unidos. Capote levou quase

três anos para escrever todo o texto, que foi publicado como grande reportagem na revista New

Yorker, em 1965, e compilada em formato de livro no ano seguinte. O livro possui quatro

capítulos e cada um foi publicado em uma edição, seguindo as ideias dos folhetins, do século

XIX.

Só quando chega ao livro-reportagem é que o new journalism desperta a

atenção dos literatos. Curiosamente, um certo reconhecimento – certo porque

esse novo jornalismo, como passou a ser chamado por alguns críticos a partir

de 1966, nunca teve aceitação unânime no jornalismo, muito menos na

literatura – acontece por via da contribuição de um ficcionista que resolve

fazer jornalismo. Truman Capote já era um escritor de longa data – mas estava

com a carreira em baixa – quando lança A sangue frio, denominando seu

trabalho “romance de não-ficção”. Pouco depois, em 1968, outro ficcionista

de reputação, Norman Mailer, entra no jogo do new journalism, denominando

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seu Os exércitos da noite de “história como romance, romance enquanto

história”.

Revertiam-se as posições, essa é a tese de Wolfe. Agora eram os escritores

que buscavam o jornalismo e não mais o contrário. O novo jornalismo

alcançava um status literário próprio, em 1969 já se constituiria num gênero

que não poderia mais ser considerado inferior. (LIMA, 2009, p.196, 197).

Desde Capote, portanto, muitos outros autores se enveredaram pelo caminho do

jornalismo literário, construindo textos que perpassavam as duas áreas, transpondo fronteiras.

O Novo Jornalismo reviveu, basicamente, quatro técnicas centrais para melhorar o texto

jornalístico: narração cena a cena; uso de diálogos; descrição e pontos de vista da terceira

pessoa. Essas estratégias já eram largamente utilizadas na literatura, mas não apareciam em

destaque no jornalismo.

Esses quatro elementos levantados por Wolfe também podem ser observados na obra de

Gabeira (2009) e de Barreto (1997). Este trabalho quer apontar justamente alguns recursos de

como se deu a adaptação desses artifícios para o cinema.

3.1. Diálogos

O que é isso, companheiro? é um livro muito centrado no próprio narrador. Gabeira

(2009) escreve em primeira pessoa e o enredo se desenrola como em um brainstorm, seguindo

seu fluxo de consciência. No entanto, o recurso do diálogo é usado em momentos-chave na

narrativa, notadamente para enfatizar características do próprio narrador.

Para exemplificar sua inocência, um elemento essencial na construção do narrador-

personagem, Gabeira usa uma cena com diálogo. Ele conta de uma assembleia estudantil de

quando tinha 17 anos e não conseguia convencer os pais dos alunos a entrar em greve geral,

quando um senhor se levanta e faz um discurso inflamado dizendo que, como pais, eles todos

deveriam acatar a palavra de ordem da greve. Tempos depois encontra o mesmo senhor em um

bar, bebendo. Conversando com ele, descobre que o senhor não tinha filhos.

Anos depois, voltei a Juiz de Fora e encontrei o velho bebendo num botequim,

também frequentado pelos intelectuais da terra. Ele me vê, me convida para

sentar na sua mesa e pergunta:

"Como é, já entrou para o Partido Comunista?"

"Eu não, e seus garotos?"

"Que garotos?"

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"Seus filhos."

"Que filhos? Não tenho filhos."

"Como, se você é o pai que virou a assembleia, o pai da nossa greve?"

"Olha, o negócio é o seguinte: não sou pai de ninguém. Os pais que iam à

assembleia ficaram doentes e o partido acabou determinando que eu fosse

fazer o papel de pai. Tinha cabelo branco, sabia falar. Agora já acabei com

isso. Acho muito chato."

"O que é que você está tomando?” perguntei ainda meio surpreso com aquela

história.

"Caipirinha. Tá boa. Pede uma também." (GABEIRA, 2009, p. 27)

A cena do encontro de Gabeira com o senhor poderia ser narrada com discursos indiretos

e resumidos à ideia principal. Mas, ao utilizar o recurso do diálogo, o narrador deixa para o

leitor parte da construção do personagem, que poderá interpretar perfis pelas maneiras de dizer,

pela linguagem etc.

Em outro momento da narrativa, relembrando os movimentos estudantis e as passeatas

de protesto contra a ditadura, o narrador conta de quando teve que avisar inúmeros familiares

sobre a prisão de companheiros.

Lembro-me, um pouco mais tarde, de uma queda em massa ocorrida em

Botafogo, dentro do estádio. Deram-me listas enormes de pessoas presas e

passei o fim da tarde e quase toda a noite telefonando para as famílias. Era

tanta gente que não tínhamos tempo para sutilezas, preparar os corações e

essas coisas que são necessárias.

"Minha senhora, seu filho foi preso..."

"Como? Meu Deus, que é que vão fazer com o Arnaldo?"

"Minha senhora, seu filho foi preso..."

"O que é que o senhor está dizendo? Onde, como? Quem prendeu?"

"Minha senhora, seu filho foi preso."

"Como? Hã-Hã. Tá bem, vou avisar o advogado."

"Minha senhora, seu filho foi preso..."

Pausa.

"Minha senhora, seu filho foi preso, ouviu bem?"

Pausa. Voz bastante firme:

"Era só o que faltava". (GABEIRA, 2009, p. 46)

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Neste caso, os trechos de diálogos registrados pelo narrador são muito significativos

porque também ajudam o leitor a traçar, por conta própria, os perfis dos familiares. Trazer uma

narrativa explicativa de como eram as reações dos familiares limitaria as produções de sentido

possíveis com o registro do diálogo.

Destacam-se, também, outros elementos que produzem significados e que aproximam o

texto do filme, como as indicações de pausa e de tipo de voz. Essas marcações evidenciam

sentimentos que no produto audiovisual serão preenchidos pela interpretação dos atores.

A passagem desse recurso para o audiovisual depende muito, portanto, da performance

dos atores e da direção. No filme de Bruno Barreto (1997), os diálogos são largamente

utilizados também como formas de construir personagens. Uma das melhores cenas do filme é

justamente um diálogo entre Fernando e Artur, um antigo amigo que trabalha como ator. Esta

cena, que já foi discutida no capítulo 2 desta tese, não existe no livro, mas ficou brilhante no

filme.

O grupo de Fernando Gabeira já havia sequestrado o embaixador e estavam todos na

casa usada como cativeiro, aguardando a resposta do governo sobre as exigências feitas para

libertação de Charles Elbrick. Fernando é, então, escolhido para sair e comprar pizzas para o

jantar. No caminho para a casa, ele encontra o antigo amigo em frente ao Teatro Carlos Gomes.

Artur está vestido de um personagem do século XIX, de uma peça de Ibsen (Casa de Bonecas).

Outro diálogo interessante que compõe o longa-metragem é uma conversa entre Júlio e

Jonas. Eles conversam sobre as decisões que o grupo MR-8 está tomando sobre os nomes dos

companheiros que serão libertos em troca do embaixador e o que deveriam fazer caso os

militares não aceitassem as demandas.

Nesta rápida conversa, o personagem Jonas, que é largamente explorado por Barreto

como um homem grosseiro e ranzinza, irá externar essas características.

[Júlio] Olha, eu votei no Oswaldo porque ele era um amigo, eu vi ele ser

ferido.

[Jonas] Não se preocupe com isso, companheiro. Mas você votou errado. O

companheiro vacilou, não teve coragem de atirar no guarda. Pelo menos foi o

que me disseram.

[Júlio] É, vacilou sim...

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[Jonas] É o que eu digo: companheiros muito mais corajosos foram deixados

para trás, por causa de uma camaradagem pequeno-burguesa.

[Júlio] É, eu sei, mas, quando eu votei nele, ele já estava eleito.

[Jonas] Isso não importa. Sua posição deve ser sempre sua posição. Não se

deve votar para ficar bem com os outros. (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

1997)

Os conteúdos das falas neste diálogo não são tão reveladores dos posicionamentos ou

sentimentos dos personagens. No entanto, a interpretação dos atores, aliada aos

enquadramentos que alternavam de contra plano para primeiro plano, mostravam-se muito

significativos da postura de Jonas e da maneira como ele tratava seus companheiros.

3.2. Descrição

O recurso da descrição é muito comum no jornalismo, quando repórteres e redatores

precisam apresentar cenários, objetos e situações. Como recurso literário, a descrição focaliza

estados e não ações, por isso funciona muito bem para momentos estáticos de tempo, trazendo

cadência, baixando o ritmo. Junto a isso, a descrição é ótimo recurso para trazer a narrativa para

termos mais concretos, sem abstrações. Dessa forma, pode funcionar como ferramenta de ritmo

para o texto, como pode funcionar para apresentação dos elementos citados.

No livro de Fernando Gabeira (2009), esse é um recurso que ajuda o narrador a cadenciar

a narrativa veloz. Em alguns momentos, surge para situar o leitor em determinados locais ou

ocasiões.

As grades ficavam num nível tal que, para ver o corredor e falar com as

pessoas do lado de fora, tínhamos de ficar pendurados, como macacos no

zoológico. Nessa posição incomoda abri os olhos para um problema mais sério

que o nosso: o problema dos presos comuns, os outros. (GABEIRA, 2009, p.

188).

Este trecho do texto aparece no momento em que Gabeira já está preso. A descrição da

cela e das condições a que os presos eram submetidos ajuda a construir uma crítica ao sistema

prisional brasileiro e, consequentemente, uma crítica à própria ditadura, que impunha condições

desumanas a seus presos – não apenas aos presos políticos.

No filme, a descrição é executada por meio de estratégias de movimentos de câmera,

angulações e enquadramentos. Além disso, o elemento descritivo é fundamental para que o

espectador se situe na obra.

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Barreto usa essa estratégia para delongar o tempo da narrativa construir novas

significações para determinadas cenas. A exemplo disso, há uma cena em que o grupo de

sequestradores ainda aguarda resposta do governo sobre as exigências feitas. O prazo para

resposta está chegando ao fim e Fernando é escolhido para executar o embaixador. Dentro do

quarto, Fernando chega a apontar a arma para Elbrick, preparando-se para o disparo, quando

alguém anuncia, à porta, que os militares aceitaram atender às demandas do grupo. Durante esta

cena, a câmera mostra com maior ênfase os olhares dos dois personagens. Também faz

movimentos lentos de aproximação dos rostos. Assim, o diretor está descrevendo o clima, a

tensão da situação e, ainda, diminuindo o ritmo da narrativa, da ação, criando suspense e tensão.

Por isso, é possível analisar o elemento descritivo também com funções de produção de sentido

do próprio meio, ao ditar ritmo ao produto audiovisual.

3.3. Pontos de vista da terceira pessoa

Conquanto a narrativa de Gabeira (2009) seja em primeira pessoa, em alguns momentos,

o narrador abre espaço para os pontos de vista de outros personagens, como que transitando

entre vozes.

O embaixador Burke procurava manter todo o tempo um misto de surpresa e

curiosidade para esconder sua irritação. Não apenas pelos relatos que ouvia,

mas pela confusão em que, de repente, se meteu. Ele sabia de todos os detalhes

das negociações. A primeira condição fora cumprida e as chances de êxito

eram quase que totais. Ainda assim, creio que desejou não ter se levantado da

cama naquela quinta-feira quando foi sequestrado. No princípio, sabia

mascarar bem sua tristeza por baixo das dores que sentia na testa. É

compreensível que não se queira dar ao adversário uma satisfação adicional:

a de nos ver tristes. Com o tempo, entretanto, ele ficou mais espontâneo,

começava e encerrava uma discussão inteiramente à vontade. (GABEIRA,

2009, p. 111).

Como neste episódio citado, em que o narrador abre espaço para o pensamento e a voz

de outro personagem, este elemento permite ao narrador trazer um novo olhar para o leitor. Esse

recurso foi reivindicado por Wolfe (2005), tendo em vista que o jornalismo tradicional do meio

do século XX nos Estados Unidos estava recheado de relatos individualistas de repórteres que

quase nunca abriam espaço para personagens em suas reportagens. O jornalismo literário, por

outro lado, abraça esse recurso, arejando relatos muitas vezes pesados e cansativos.

Na transposição para o audiovisual, os pontos de vista da terceira pessoa aparecem

muito comumente em câmeras subjetivas, isto é, quando a imagem simula o olhar de um

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personagem. Aparecem também em contra planos, muito usados em cenas de diálogos. Essas

estratégias foram largamente usadas por Barreto (1997), especialmente com os personagens

Paulo (Fernando Gabeira) e Charles Elbrick.

Há uma cena em que o personagem Jonas está observando o lado de fora da casa usada

como cativeiro através de binóculos. Neste momento, a imagem alterna entre a cena de Jonas

com os binóculos nas mãos e outra com um tipo de moldura ovalada, dando a sensação de ser

o que Jonas observava pelos binóculos. Essa alternância é a produção de pontos de vista dos

personagens, portanto, estratégia semelhante à da literatura.

3.4. Narração cena a cena

O último recurso, levantado por Wolfe (2005), é a narração em cenas. A divisão dos

capítulos em O que é isso, companheiro?, como já explicitado na primeira parte desta tese,

enfatiza a linha de pensamento do próprio autor, trazendo episódios curtos e sequenciados. Da

mesma forma, o cinema usualmente trabalha sequências de cenas rápidas e agitadas.

Ao narrar a história em primeira pessoa, o narrador por vezes carrega o leitor em seus

devaneios e pensamentos, trazendo fluxos de consciência em meio à narrativa mais objetiva.

Desde o início do livro é possível identificar essa linha narrativa. E é através desses devaneios

que o leitor é conduzido pelo enredo de O que é isso, companheiro?.

A história de como Gabeira se envolveu com a luta armada contra o regime militar

instaurado em 1964 começa de forma agitada e frenética. O início do livro é rápido e o narrador,

que também é o personagem principal, corre com suas próprias ideias em um frenesi que mais

parece uma tentativa de não perder as próprias ideias que avultam à mente.

Este portanto é o livro de um homem correndo da polícia, tentando

compreender como é que se meteu, de repente, no meio da Irarrazabal, se

havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para a Rio Branco, num

dos grupos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura militar que

tomara o poder em 1964. Onde é mesmo que estávamos quando tudo

começou? (GABEIRA, 2009, p.11)

Este trecho, em que o narrador aponta que a obra é sobre um homem fugindo da polícia,

se mostra muito simbólico e representativo do que o leitor encontrará nas páginas seguintes.

Destacar o personagem em fuga é apontar para sua agitação e seu ativismo, características

fundamentais para a interpretação de todo o movimento armado do período. Além disso, colocá-

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lo fugindo da polícia é também emblemático porque aponta duas posições opostas em destaque:

de um lado, a figura da autoridade, da legitimação, da força do Estado, da violência

institucionalizada; e de outro a ilegalidade, a ousadia, o atrevimento, a busca da legitimação

nunca alcançada. A obra é, dessa forma, resumida neste parágrafo com a dicotomia da força

estatal e da força revolucionária em confronto.

Todo esse sentido é conduzido e produzido em face do recurso da narração cena a cena.

O aspecto novelesco da obra se destaca sobre esse elemento. Sua transposição para o cinema,

dessa forma, se deu quase que naturalmente. A arte cinematográfica é trabalhada com narrativas

cena a cena. A velocidade com que as cenas se alternam nas sequências do filme vai ditando o

ritmo narrativo, produzindo novos significados.

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Conclusão

O que é isso, companheiro? (2009) foi publicado pela primeira vez em 1979, quando o

Brasil vivia sob um regime ditatorial imposto pelas Forças Armadas. O livro foi escrito por um

jornalista que se aventurava pelo mundo das Letras. A repressão, que se tornou marca desse

período (1964-1985), contribuiu para que muitos jornalistas buscassem refúgio na literatura,

como uma estratégia de resistência, já que praticamente todos os jornais eram censurados.

A obra O que é isso, companheiro? (2009) pode ser considerada um romance de

jornalismo literário. Sua história é baseada em eventos reais, há uma preocupação em trazer

uma notícia ao público. O enredo, como foi visto, baseia-se na participação do próprio autor,

Fernando Gabeira, no planejamento e sequestro do então embaixador dos Estados Unidos no

Brasil, Charles Burke Elbrick. É possível classificar a obra como romance, tendo em vista os

elementos básicos que o livro apresenta, como narrativa, tempo, espaço e personagens. Mais

do que isso, o relato de Gabeira transcende as folhas dos jornais, transitórias, e perpetua-se nas

páginas de um livro que já é editado há mais de 30 anos.

Publicar o relato do sequestro que se tornou símbolo da resistência armada nos tempos

da ditadura já confere à obra destaque entre as grandes produções nacionais. Além disso, esta

tese apresentou qualidades estéticas de criação narrativa e construção de personagens que

dispõem o livro em tal posição. Fernando Gabeira mostrou com sua obra que é um bom

jornalista, contador de histórias e observador de seu tempo.

Nesta tese, o leitor se deparou com uma análise do histórico de capas do livro O que é

isso, companheiro?, apontando as diferentes significações decorrentes de suas cores, desenhos

e imagens, a fim de contribuir para outras pesquisas a respeito do objeto-livro. Além da

investigação das diferentes edições, conforme demonstrado, esta tese estudou como Gabeira

(2009) valeu-se de recursos literários para arquitetar seu relato. Muito mais do que registrar

uma aprofundada apuração jornalística, ele construiu uma trama narrativa complexa, com

personagens de perfis psicológicos complicados, singulares, desejos ocultos, intempestivos,

representativos de um período histórico brasileiro. Suas ferramentas e métodos são

provenientes do jornalismo e da literatura. Além disso, sua narrativa cena a cena é quase

cinematográfica, o que provoca a produção, de fato, de um longa-metragem com a mesma

história. O leitor é acorrentado pelo fluxo de imagens construídas pelo narrador. Em tempo, o

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alto número de edições e vendas e a grande repercussão da obra ainda hoje convalidam seu

prestígio estético.

Fernando Gabeira e outros jornalistas que buscaram abrigo na literatura no período

censor da ditadura militar avultaram, novamente, as discussões da ficcionalidade no jornalismo

e do realismo na literatura. “A verdade dos fatos existe? Existe um relato perfeitamente neutro

e isento? A objetividade perfeita é possível? Não, não e não. A verdade dos fatos é sempre uma

versão dos fatos [...]. A objetividade perfeita nunca é mais que uma tentativa bem-intencionada"

(BUCCI, 2009, p. 51). Sem dúvida, essa é uma discussão que não se acabará tão rapidamente.

E talvez seja importante que não se acabe. Por em questionamento constante a prática

jornalística é salutar para o desenvolvimento da área, fortalecendo-a de tal maneira que não

permita mais que ditadores cerceiem suas liberdades intrínsecas.

Portanto, examinar conteúdos e obras do jornalismo literário não é repudiar as premissas

básicas do jornalismo, mas incorporar a ele estratégias estéticas da literatura. Um dos

movimentos mais marcantes do jornalismo literário se deu nos Estados Unidos, por volta dos

anos de 1950 e 1960, com o Novo Jornalismo. Esse movimento surge da inquietação de

jornalistas em produzir conteúdos mais completos e esteticamente mais atraentes, que buscaram

na literatura artifícios para seus textos. Tom Wolfe (2005), um dos maiores nomes do Novo

Jornalismo, resume essas ferramentas em basicamente quatro: uso de diálogos, descrição,

pontos de vista da terceira pessoa e narração cena a cena.

Usar um livro do jornalismo literário para criar uma obra de ficção para o cinema,

certamente não é tarefa fácil. Bruno Barreto (1997) constrói O que é isso, companheiro? a partir

da obra homônima de Fernando Gabeira (2009), levando para o audiovisual um enredo todo

pensado para o impresso. Pode-se perceber, no entanto, que a aproximação do jornalismo com

a literatura destacou nos textos escritos elementos que podem ser levados para o audiovisual,

construindo novos significados.

Portanto, foi possível verificar que os quatro elementos destacados do Novo Jornalismo

(vertente norte-americana do jornalismo literário) foram transpostos para o audiovisual com

êxito, no caso de O que é isso, companheiro?, produzindo ressignificações provenientes da

aproximação do jornalismo, da literatura e do cinema.

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