jornal resistência - nov/2013

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH JORNAL RESISTÊNCIA – SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS ANO 36 – NOVEMBRO/2013 Segue o massacre de povos tradicionais por grandes projetos PG 3 CASO DEZINHO: uma absolvição que pune toda a sociedade PG 5 A luta por direitos humanos e a guerra à cidadania PG´s 6-7 Chile registra suas memórias do golpe militar. Pará segue endividado PG 10 MOVIMENTO CHEGA: uma carta dos que já estão pelas tabelas PG 11 Arthur Leandro e Maria Rita Kehl metem o dedo na ferida cultural brasileira PG 12

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Edição de novembro de 2013 do Jornal Resistência, veículo de comunicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH)

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Page 1: Jornal Resistência - Nov/2013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH 1

JORNAL RESISTÊNCIA – SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS ANO 36 – NOVEMBRO/2013

Segue o massacre de povos tradicionais por grandesprojetos PG 3

CASO DEZINHO: umaabsolvição que pune todaa sociedade PG 5

A luta por direitoshumanos e a guerraà cidadania PG´s 6-7

Chile registra suas memóriasdo golpe militar. Pará segueendividado PG 10

MOVIMENTO CHEGA: umacarta dos que já estão pelastabelas PG 11

Arthur Leandro e Maria Rita Kehlmetem o dedo na ferida culturalbrasileira PG 12

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH2

O JORNAL RESISTÊNCIA é uma publicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), criado em 1978. Todas as opiniões conti-das nos artigos são de responsabilidade de seus respectivos autores.SDDH – PRESIDENTE: Marco Apolo Santana Leão.VICE-PRESIDENTE: Elisety Maia.SECRETÁRIO GERAL: Marcelo Costa.CONSELHO FISCAL: Marcelo Freitas; Antônia Melo e Aldalice Oterloo.COORDENAÇÃO AMPLIADA: Renata Soraia Sampaio (coordenadora Administravo-Financeira); Marcelo Moreira (coordenador do Provita); Roberta Amana-jás (coordenadora do PAJ internacional); Anna Lins (coordenadora do PAJ nacional); Erika Morhy (coordenadora de Comunicação).SEDE: Av. Governador José Malcher, 1381 – Nazaré – Belém – Pará – CEP: 66.060.230.APOIO INSTITUCIONAL: Fundação Ford; Fundação Henrich Böll (HSB); Pão Para o Mundo (PPM); amigos e amigas; conselheiros e conselheiras da entidade.

JORNAL RESISTÊNCIACOORDENAÇÃO GERAL: Elisety Maia, Erika Morhy e Thiago SilvaEDIÇÃO: jornalista Erika Morhy (DRT-PA 1325)PROJETO GRÁFICO/DIAGRAMAÇÃO: 91 8802 5286 | [email protected] DE CAPA: Marcelo Lelis, Maurício Matos, Jean Brito e Arquivo Coletivo Popular da Juventude/PACOLABORAÇÃO: Jones Santos NOSSAS MÍDIAS VIRTUAISCOORDENAÇÃO GERAL: jornalista Erika Morhy (DRT-PA 1325)SITE: www.sddh.org.brBLOG: www.jornalresistenciaonline.blogspot.comFACEBOOK: Jornal ResistênciaTWITTER: @resistenciaSDDH

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EE D I T O R I A L Defendo a tese de que a capacidade que

uma organização social possui de mobili-zar recursos está intimamente relaciona-da a outras capacidades, que denomino

dimensões estratégicas da gestão de ONG´s. As demais são: concepção institucional e programáti-ca; articulação institucional; comunicação; e gestão interna. Assim, resumidamente, quanto mais signi-ficativa é a contribuição de uma organização so-cial ao enfrentamento de certos problemas, quanto mais articulada estiver a outros atores nesse en-frentamento, quanto mais for reconhecida como relevante por determinados conjuntos de público, quanto mais convincente for sua pauta de questões e argumentos, melhores chances a organização terá de influenciar certas fontes de recursos.

Mobilização de recursos, nesta abordagem, sig-nifica capacidade de convencimento e de manter a adesão obtida. Manter-se relevante no contexto é decisivo. Como o ambiente em que tais organiza-ções operam é de muita turbulência, onde atuam forças contrárias, mas onde sua própria atuação provoca mudanças, é imperativo atualizar-se, isto é, ser capaz de definir e redefinir seus rumos diante dos problemas que surgem ou que se modificam. E este é um imenso desafio, pois o ambiente social e político mais amplo é de crise sistêmica do capita-lismo, com restrições de direitos, característica do período de acumulação flexível.

No Brasil, enfrenta-se o debate sobre a demo-cratização dos recursos públicos, central na agenda da superação das desigualdades sociais, e ainda sobre um marco legal que reconheça a existência de organizações de direitos.

Temos, então, duas ordens de questões ao tra-tar da mobilização de recursos: uma diz respeito ao ambiente em que as organizações sociais atuam e outra, à sua gestão interna. Muitas encontram di-ficuldades em realizar este debate, carregado de tensões pela própria natureza da ação política. E, a meu ver, a natureza da ação política está no cerne da questão. Creio que tratar da questão da ges-tão no seio da política pode ser muito esclarecedor. Organizações que lutam por direitos são organiza-ções de caráter político, pois a disputa que travam é eminentemente política. Enfrentam, no cotidiano, no terreno de sua ação, as contradições sociais. Para conquistar alguns avanços, é necessário de-finir e redefinir a agenda, costurar alianças, ter cla-reza quanto ao foco das lutas, operar em muitas frentes. E, em nossa história, há milhares de pe-quenos avanços que as organizações sociais bra-sileiras ajudaram a imprimir na realidade social e política do país; seus traços estão inscritos na cena política, apesar das dificuldades. Então, a própria história indica que há possibilidades, mesmo em situações críticas.

Se mobilizar recursos significa mobilizar apoios, as possibilidades de hoje apontam no sentido de am-pliar o leque de alianças estratégicas dentro da socie-dade brasileira, ao mesmo tempo em que se constrói um outro, imaginário – uma cultura de direitos.

OUTRAS FORMAS DEMOBILIZAR RECURSOS

Na promoção de direitos, os recursos de comunicação são essenciais. Ética e estética são aliadas poderosas.

Profissionais de comunica-ção podem ser mobilizados a criar maneiras alternativas de atingir públicos estratégicos. Os espaços públicos podem ser uti-lizados na promoção de pautas políticas, com “ocupações” esté-ticas, que informam e ajudam a educar.

Conjuntos de pessoas po-dem ser mobilizados a contribuir financeiramente: membros de associações profis-sionais, funcionários de empresas públicas e priva-das, estudantes universitários. Com os recursos de comunicação disponíveis, podem ser organizadas redes de apoio abrangendo pessoas também em outros países. Há pessoas dispostas a colaborar financeiramente se estiverem convencidas da rele-vância de determinadas questões e se forem infor-madas a respeito.

Professores e estudantes universitários podem ser mobilizados a contribuir com os recursos de in-formação, conhecimento e habilidades de pesqui-sa; as pesquisas em que estão envolvidos podem ser conectadas aos temas das organizações e, eventualmente, gerar parcerias mais duradouras.

É possível mobilizar o apoio de entidades so-ciais diversas em torno, por exemplo, da realização de alguns eventos que ajudem a divulgar pautas específicas.

Há prêmios e editais de organismos diversos, no Brasil e em outros países.

Existe possibilidade de obter apoio de empresas privadas, do pequeno negócio no bairro às grandes empresas. Há recursos financeiros a serem mobili-zados em empresas públicas.

Não há uma fórmula. Cada organização precisa definir suas necessidades e construir suas redes de apoio. Em algumas situações, sua atuação pode requerer uma ação conjunta com organizações aliadas, outro recurso a ser potencializado.

Certamente, os padrões de gestão interna pre-cisam ser repensados, pois continuar operando as pautas políticas no ambiente atual requer estar or-ganizado de outra forma. É possível que parte do trabalho seja realizada em padrões de militância política, ou seja, baseada no compromisso indivi-dual assumido; ou que seja realizado com recursos de colaboração – indivíduos que doam parte de seus serviços, porque também estão comprometi-dos. Isto mexe também com cargos, hierarquias, remuneração, poder.

Diante da esfinge, são as organizações que pre-cisam encontrar suas respostas. E toda mudança implica romper limites.

MOBILIZAÇÃO DE RECURSOS:A POLÍTICA, A ARTE, A TÉCNICA

Por Liliane da Costa Reis*

*Liliane da Costa Reis é so-cióloga, mestre em Adminis-tração, atua como consulto-

ra em gestão de ONG´s

Ainda que boa parte das notícias que trazemos nesta edição seja motivo de luto, podemos dizer que a razão de nos man-termos no processo de resistência é por estarmos certos de que há esperança em construirmos um mundo mais belo e justo de se viver. Nem tudo é motivo de choro e ranger de dentes. Assim, colocamos em debate alguns temas que tanto nos põem de frente com aberrações sociais, quanto nos fazem pensar em alternativas para vi-rarmos o jogo, ainda que se rompam algu-mas cuias.

Voltamos à vizinha Colômbia, que tam-bém esteve presente na edição anterior. Mas agora é a vez da visão de uma an-tropóloga, abordando justamente um tema recorrente na Amazônia brasileira: os im-pactos nefastos de grandes projetos em populações locais. Pois, sim, vários vizi-nhos padecem deste mal.

Registramos dois casos, infelizmente, muito recorrentes em culturas oligárquicas nas regiões onde impera o latifúndio: a vio-lência contra trabalhadores, que seguem anos a fio sem que seja feita justiça sobre suas mortes, como passou com o sindica-lista Dezinho e o tratorista Welbert, ambos no Pará. Em uma série de ocasiões, é pre-ciso que vítimas e testemunhas dos crimes sejam protegidas, para que não venham a sofrer novas violações de seus direitos. Um dos programas voltados para esse segmento, o Provita, é assunto de artigo nesta edição.

Diante desse contexto, é urgente a ne-cessidade de se pensar o que tem sido feito na região amazônica em termos de segurança pública, justamente nossa pau-ta central e que não é muito alentadora. Ali-ás, a reflexão tem sido feita por organiza-ções em diferentes países, como fizemos questão de relatar. Uma das contribuições da SDDH é exatamente a primeira edição do caderno “Direitos e Democracia – Lutas Criminalizadas no Pará”.

No entanto, mais que tratar das feri-das abertas, entendemos que vale a pena aviarmos a velha receita da prevenção. E aí entra um tema estrutural: a educação, com densa formação para a cidadania. Por isso trazemos artigo sobre o tema, que passa tanto por um projeto de análise de conjuntura e propostas de solução, adota-do pela SDDH, quanto pelas atividades de formação em comunidades locais.

Uma visão libertária sobre a conjuntura política do Brasil chega em bom momento, especialmente quando o tema da reforma política diz que vai, mas não vai, no Bra-sil; quando o Chile celebra os 40 anos do fim do golpe militar no país e a Argentina, seus 30 anos de democracia; quando, em meio a insurgências sociais de diferentes setores e regiões brasileiras, a juventude mostra seu protagonismo, pressionando pela abertura de arquivos da ditadura e pelo que não foi compromissado, a justiça; e quando a cultura é a bandeira de cada artista que já está pelas tabelas.

Desejamos boa leitura!

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH 3

Ainda que a citação anterior não seja uma realidade pró-pria do contexto colombiano, houve um reforço à doutrina

neoliberal em nosso país, aliado ao clima de segurança que vem se apre-sentando desde meados de 2005, com a Política de Segurança Democrática, do ex-presidente Álvaro Uribe Vélez; e com a atual política de Prosperidade Democrática, do presidente Juan Ma-nuel Santos, que é fundamentada em duas grandes estratégias: confiança econômica e estímulo à produção mí-nero-energética, trazendo como resul-tado um crescimento considerável de megaprojetos extrativos e energéticos.

Nosso país possui, de fato, impor-tantes reservas, cuja exploração se torna muito mais rentável à medida que, no mercado internacional, o pre-ço de certos recursos, como o carvão, o petróleo, a água e alguns metais, se incrementam. É assim que, em nome do desenvolvimento, se levanta a ban-deira para levar a cabo diversos mega-projetos em nosso território.

O Estado se apressa a outorgar direitos de propiedade a empresas extrangeiras e nacionais, para a ex-ploração de recursos naturais, mas se mostra incapaz de assegurar os di-reitos humanos a todos seus habitan-tes, especialmente os das populações mais vulneráveis, que são, em geral, as que se encontram mais próximas destes empreendimentos.

Diante desta realidade, os resulta-dos desfavoráveis não demoram a che-gar: marginalidade sócio-econômica para centenas de famílias; exploração intensiva de recursos naturais; mudan-ça de padrões culturais tradicionais; insegurança alimentar; fragmentação das organizações sociais de base; co-optação de líderes; e reconfiguração dos processos de cidadania, inclusive, em muitos casos, um flagrante estado de insegurança e medo ante um ressur-gimento de conflito armado. No entan-to, tudo isso é o oposto à imagem que se oferece por trás dos megaprojetos, cuja bandeira sempre é o desenvolvi-mento econômico e o bem-estar social.

NEM TUDO É DESALENTADOR

As recentes intervenções da Corte Constitucional colombiana - ao cons-tatar que o aumento da presença de mega-projetos em territórios historica-mente ocupados por grupos étnicos tem gerado violações a direitos funda-mentais, como o da consulta prévia ao território - se constituíram em garantia importante de defensa e/ou proteção a esses grupos.

Do mesmo modo, o ativismo de algumas orga-nizações sociais c a m p e s i n a s , afro-descenden-tes e indígenas expôs ações de resistência frente aos mega-proje-tos e a vulnerabi-lidade de direitos a que estão sen-do submetidos. Isso atraiu a con-seqüente apari-ção de conflitos sócio-ambientais, que buscam ge-rar reivindicações de fundo, conver-tendo-se em uma fonte importante de ação política.

O rechaço das comunidades expos-tas a estas intervenções e à imposição de decisões do governo federal sem serem consultadas tem aumentado. O crescimento de ações coletivas e de organizações sociais mostra ventos fa-voráveis que, além de buscarem visibi-lização, também pretendem maior de-manda de participação ao exercício de uma cidadania cada vez mais compro-metida com a defesa de seus direitos e da gestão adequada de seus recursos naturais, com o qual buscam incidir de maneira real na tomada de decisões. Se não peco por otimismo, espero que estas reivindicações consigam inserir na agenda pública a discussão de mo-delos de desenvolvimento alternativos.

Para denunciar a violência sofrida por índios, quilom-bolas, trabalhado-res rurais e outras populações do campo e da cida-de, a Sociedade Paraense de De-fesa dos Direitos Humanos (SDDH) lançou a primeira edição da série “Direitos e Democra-cia”, com o título “Lutas Criminalizadas no Pará – Caderno 1”. A publicação traz o debate sobre a criminalização dos movimentos sociais e de defensores dos direitos humanos na Amazônia pa-raense.

A advogada Anna Lins, organizado-ra da publicação, explica que o obje-tivo deste trabalho é levar informação qualificada sobre violações de direitos humanos à população em geral, focan-do no contexto regional. “Os conflitos na Amazônia são cada vez mais pre-ocupantes, porque os governos prati-

cam a velha fórmula de desenvolvimento a qualquer custo, como pode ser visto no caso dos grandes projetos de hidrelé-tricas. Quem paga o preço disso são as populações que resistem às diver-sas violações ori-

ginadas por estes mega-projetos, como indígenas, ribeirinhos, campesinos e vários outros”, diz a advogada.

Ela explica que, quando existe esta resistência por parte de populações tra-dicionais ou outra comunidades e movi-mentos sociais, a estratégia do Estado tem sido de criminalização dessas pes-soas, o que dificulta o processo de de-fesa de seus direitos. “Nos últimos três anos, a SDDH recebeu muitas denún-cias de criminalização, das quais acom-panha diretamente mais de 40 pessoas em 18 processos judiciais”, diz Anna.

DIREITOS HUMANOS, MEGA-PROJETOS E DESENVOLVIMENTO NA COLÔMBIA

Por Isabel Preciado Ochoa*

“Na ilha Uruana, no rio Orinoco, Alexander Von Humboldt advertiu que os índios não recolhiam boa parte dos ovos que as tartarugas deixavam na praia, para que a reprodução continuasse, mas os europeus não haviam mantido esse bom costume e sua voracidade estava extinguindo uma riqueza que a natureza havia posto ao alcance das mãos” (Eduardo Galeano - Espejos. Una historia casi universal).

Segundo o artigo “A febre mineradora”, de María Teresa Ronderosen, publicado na revista Semana, de 06 de setembro de 2011, uma série de reformas destinadas a facilitar os investimentos orientados à exploração dos recursos naturais e a configuração de um terreno para o livre mercado vêm se apresentando com mais força na última década. Des-de 2001, empresários e empresas pediram títulos para 20 mil concessões de exploração e pesquisa de minas – um título serve para ambas – que cobrem 22 milhões de hectares dos 114 milhões que têm o país. E o governo anterior outorgou quase 9.000 títulos, sem respei-tar páramos (ecossistema de alturas, que produz grande parte da água colombiana), nem parques nacionais, nem resguardos indígenas, nem territórios coletivos afro-descendentes.

O Registro Mínero Nacional indica que 1.717 empresas detêm títulos vigentes de con-cessões para explorar ou pesquisar minas. E os empresários têm cerca 7.200 títulos mais. Buscam prata, platina, molibdênio, níquel e zinco; e ainda os minerais que abastecem a construção, como calcário, areia e argila.

Além desse tipo de exploração, também há um número cada vez maior de projetos hidrelétricos de grande envergadura, como o caso de El Quimbo (400 MW) e Hidroituango (2400 MW), claros expoentes do boom hidrelétrico.

*Isabel Preciado Ochoa é antropóloga colombiana

PUBLICAÇÃO RELATAVIOLÊNCIA CONTRAPOPULAÇÕES TRADICIONAISE MOVIMENTOS SOCIAIS

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH4

Se o futuro da Amazônia depende da educação como a temos hoje, estamos fadados ao deses-pero. A frase pode soar como um exagero linguís-tico, mas é a conclusão a que posso chegar após

visitar os dados da educação na Região Norte, que compro-vam: o Direito Humano à Educação não tem sido garantido de maneira uniforme e igualitária em nosso país.

No caso da Amazônia, a imensidão da região que tan-to orgulha o povo brasileiro apresenta especificidades de várias ordens que afetam a educação. Essas particularida-des podem ser observadas através da realidade do Estado do Pará, marcado pelo vasto território e baixa densidade demográfica, bem como pela mistura de saberes, conhe-cimentos e tradições, como os das populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas, ou ainda pela exploração ilegal de trabalho infantil, violação de direitos humanos, conflitos socioambientais, entre outros. Tais situações refletem nos índices educacionais atribuídos à região, e desconsideram um amplo grau de saberes e conhecimentos, que poderiam ser utilizados em nome da melhoria da educação, se não estivessem sendo, continuamente, ignorados por entraves políticos, financeiros, jurídicos e logísticos, que se somam a particularidades geográficas, gerando um contexto de ex-ploração e desrespeito.

Posso afirmar que nesta breve análise até aqui realizada, o mais perverso dos aviltamentos ao Direito Humano à Edu-cação é a negação ao processo de alfabetização. A história do Brasil e da Amazônia mostra a existência de incontáveis programas cujo objetivo é a erradicação do analfabetismo. Não é objetivo deste artigo enumerá-los. Entretanto, é pre-ciso observar que as atuais políticas públicas para comba-te ao problema, especialmente entre jovens e adultos, são marcadas por dois aspectos de caráter socioeconômicos que são complementares entre si.

O primeiro dele é a situação paradoxal que o país e, especialmente, a Amazônia, estão inseridos: por um lado, convivem com elevados números de analfabetismo absolu-to e funcional, sem contar as baixas taxas de conclusão do Ensino Fundamental e Ensino Médio; e, por outro lado, es-tes dados não desencadearam no Estado medidas efetivas de redução das desigualdades regionais. Acrescento a esta questão o fato de que o discurso hegemônico diz atribuir

à educação o peso de elevar o País e a região amazônica a um lugar de destaque no âmbito econômico nacional e internacional. Assim, a educação representaria uma via de superação das desigualdades, tanto regional, quanto entre indivíduos da sociedade. No entanto, suas possibilidades enquanto direito efetivamente garantido continuam a ser diuturnamente cerceadas. Não se pode explicar esta ques-tão por apenas um argumento, de caráter determinista. Um ponto importante decorre de opções de ordem econômica e política que repercutem de forma incisiva na seara edu-cacional e que precisam ser ponderadas em favor de uma distribuição de verbas educacionais que recupere o histórico de desigualdade que tem marcado as regiões Norte e Nor-deste do país.

A segunda ponderação consiste nesta necessidade de superação de uma dívida educacional que o estado brasilei-ro possui. Em contraponto com outras nações, o Estado bra-sileiro pouco investiu, durante toda sua história, na formação de uma infraestrutura adequada à sua extensão territorial e seu contingente populacional e, quando o faz, no caso ama-zônico, o faz de forma danosa social e ambientalmente. Em outras palavras, em mais de 500 anos de existência poucas foram as iniciativas que possibilitaram a consolidação de um quadro de professores devidamente qualificados, a produ-ção de materiais didático-pedagógicos adequados ao pleno aprendizado e à própria formação de uma rede de prédios, laboratórios, centros de pesquisa, entre outros elementos de infraestrutura que possibilitem a construção contínua de uma rede de fortalecimento da educação. Assim, o que ob-servo no Brasil é uma dívida educacional difícil de ser com-batida e custeada, especialmente com relação à Amazônia, região que tem sido, desde 1950, o escoadouro das crises nacionais (de desemprego, de pagamento da dívida e ou-tras) e espaço privilegiado das migrações incentivadas ou não pelo governo central.

Todas estas questões demandam o maior aporte de re-cursos financeiros acompanhados de uma gestão eficaz. Ressalto que, em contraponto a uma pretensa arguição de escassez de recursos para custear a educação, deve-se re-cordar que o Estado do Pará, no ano de 2010, possuiu a maior contribuição em relação ao PIB nacional dentre todos os estados da Região Norte, com um PIB de R$ 77.848.000.

Participação dos estados no PIB nacionalRegião Norte – Unidades da FederaçãoAno: 2010

Concluo ponderando que são necessários novos arranjos, que te-nham na sociedade civil seu ponto fundamental. É preciso ouvir os mar-ginalizados da educação, tarefa que Paulo Freire divulgou ao longo de suas obras; aproximar-se deles, pois o direito humano à educação não pode ser mais compreendido como uma relação hierárquica em que bas-ta ao Estado produzir a lei, para que, num passe de mágica, sejam dadas todas as soluções.

O esforço da sociedade nesse aspecto é indispensável. São neces-sárias estruturas que lhes garanta voz na elaboração orçamentária e conhecimento, de forma transparente, sobre o financiamento da educação. Sem essa relação, nenhuma propos-ta, por maior grau de excelência que possua, se concretizará e produzirá efeitos neste país e, em especial, na Amazônia.

Estados PIB (em R$ 1 000)[14] % do PIB nacional PIB per capita

Pará 77.848.000 2,1 10.259

Amazonas 59.779.000 1,6 17.173

Rondônia 23.561.000 0,6 15.098

Tocantins 17.240.000 0,5 12.461

Acre 8.477.000 0,2 11.567

Amapá 8.266.000 0,2 12.361

Roraima 6.341.000 0,16 14.051

Fonte: IBGE (2010)

EDUCAÇÃO E FUTURO NA AMAZÔNIA: BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DO PASSADO

Por Flávia Marçal*

*Flávia Marçal é advogada e coorde-nadora do projeto Direito Humano à

Educação, da SDDH

Page 5: Jornal Resistência - Nov/2013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH 5

O ano de 2013 é marcado por disputas de rua, onde a le-gitimidade do ato de gover-no é posto em xeque por

não atender direitos fundamentais das maiorias. Em junho, o país explodiu pelo direito à mobilidade urbana atra-vés de transporte coletivo de massas. No segundo semestre, a retomada da luta nos estados e por educação pú-blica com a bandeira do piso nacional do magistério. A re-lação entre luta po-pular e radicaliza-ção da democracia é direta e pouco ou nada se viu contem-plada nas remen-das de reforma po-lítica que circulam pelo justamente mal afamado Congresso Nacional após os protestos.

Como sempre ocorre, a parte sana da proposta institucional foi abortada. O relator da razoável reforma política mínima, deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), trazia em seu projeto elementos de experimentalismo institu-cional, com o advento da democracia digital. Parecia que o parlamentar es-tava antevendo o tumulto. No texto que

fora enterrado por uma ampla maioria – não tendo consenso nem na interna petista – Fontana propunha tramita-ções de projetos-lei e possibilidades de plebiscitos ou referendos através de coleta de assinaturas digitais. Assim, teríamos a chance de legislar em cau-sa própria, literalmente, mas sem cair em conflito de interesses, o que ocorre a todo instante com a representação através de elites políticas.

Debates sem fim levaram à con-clusão, por parte da academia e de estudiosos da po-lítica, que apenas uma Constituinte Exclusiva teria con-dições de evitar que alguém, detentor

de mandato popular, ousasse legislar contra os próprios interesses. Diante da crise de representação, o Planalto inteligentemente coloca esta Assem-bléia Soberana e revisora como “bode na sala”, sem ter intenção de aprová--la, tal como não teve esforço algum no período da relatoria da reforma que não houve. Aprofunda-se a crise de re-presentação.

Nas ditas democracias consolida-

das, esta se dá pelo afastamento en-tre eleitor e eleito, representante e re-presentado, governos e governados. Diminuir esta distância e tornar o ato de governo como a execução do bem comum para as maiorias – silenciosas ou não – é o desafio democrático, o qual não o percebo realizável em uma sociedade capitalista de tipo algum. Precisaríamos de tempo social desti-nado à participação, assim como para a produção, do ócio e da vida coletiva. Para tanto, temos de radicalizar a de-mocracia em todos os seus aspectos, entendendo-a como “mando do povo” - em sentido amplo e não oligárquico - incidindo sobre o governo e o processo decisório.

Esta “novidade” já é professada – mas, sem implantação - por tanto tem-po como as demais idéias políticas do ocidente. Poucas linhas de pensamen-to vêem a igualdade também no cam-po da política. Já a tradição libertária só enxerga justiça distributiva com liberdade de pensamento. No Brasil, só superaremos a crise de represen-tação por outras formas de tomada de decisão, as quais estejam incluídas a participação direta, sem sermos reféns da sobre-representação de setores do-minantes.

No dia 25 de outubro, um dia após a absolvição dos acu-sados pelo assassinato do sindicalista Dezinho, foi pro-

duzida a carta que reproduzimos a se-guir, sob assinatura da Federação dos/as Trabalhadores(as) na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri-PA), Comis-são Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, Comitê Dorothy, Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade (MMCC), Grupo Pela Vida (GPV), Sin-dicato dos(as) Trabalhadores(as) Rurais de Rondon do Pará (STTR) e Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH).

Treze anos após o assassinato do ex-presidente do Sindicato dos Tra-balhadores e Tra-balhadoras Rurais de Rondon do Pará, José Dutra da Costa (Dezinho), dois dos acusados pelo crime - o fazendeiro Louri-val de Sousa Costa e seu empregado, Domício de Sousa Neto (Raul) - foram absolvidos pelo tribunal do júri, na noite do dia 24 de outubro de 2013, na capital do Pará. A maioria dos jurados entendeu que não havia provas suficientes para a con-denação. Outro acusado, o fazendeiro Delsão, sequer tem data para sentar

no banco dos réus.As investigações

que resultaram na inclusão do fazendei-ro Lourival de Sousa Costa (Piruncha) e seu empregado Do-mício no processo foram marcadas pelo descaso da Polícia Civil e pelas ações equivocadas de al-guns promotores que atuaram no Mi-nistério Público de Rondon do Pará. Logo após o crime, a polícia chegou aos nomes de Lourival e Domício por meio de testemunhas que afirmaram, em depoimento, terem visto o fazen-

deiro rondando a casa de Dezinho em companhia de um desconhecido e indicando a resi-dência onde mo-rava o sindicalista. Uma testemunha confirmou também que a arma usada

para assassinar Dezinho pertencia a Domício, gerente da fazenda de Lou-rival. A razão pela qual Lourival e ou-tros fazendeiros de Rondon do Pará queriam a morte de Dezinho está re-lacionada a seu apoio a trabalhadores rurais, que reivindicavam terras públi-

cas para criação de projetos de assen-tamento de reforma agrária, em terras ocupadas ilegalmente por fazendeiros de Rondon do Pará, entre eles Louri-val, Delsão e outros.

A polícia iniciou as investigações, que apontavam para a participação dos dois acusados, mas abandonou o inquérito sem aprofundar ou concluir o processo investigatório. O inquérito passou seis anos nas gavetas do Fó-rum de Rondon do Pará, sem qualquer movimentação processual. No mesmo período, foram emitidas diversas deci-sões de reintegrações de posse (des-pejo) em Rondon e pelo Pará afora, o que demonstra a parcialidade com que parte do judiciário age em causas en-volvendo o interesse de fazendeiros no estado do Pará. Ainda nesse período, uma testemunha ocular foi assassi-nada e outra testemunha passou seis anos incluída no Programa de Prote-ção a Testemunhas (Provita) sem ter

sido ouvida pela autoridade judicial uma única vez, o que a fez desistir de continuar em proteção e de prestar seu depoimento.

O descaso da polícia em investigar, a atuação equivocada de alguns re-presentantes do Ministério Público e da Justiça durante a fase de instrução do processo na comarca de Rondon do Pará favoreceu, anos depois, de forma decisiva, para a absolvição dos dois no julgamento de 24 de outubro. Infelizmente, esse caso é um exemplo do que vem ocorrendo em muitos pro-cessos que apuram a responsabilidade por assassinatos no campo no Pará. Quando os acusados não são favore-cidos pela ausência total de investiga-ção, acabam sendo beneficiados pelo desinteresse do poder público em pu-nir todos os culpados, principalmente quando estes detêm alto poder econô-mico e influência política no Estado e nos seus municípios.

CRISE DE REPRESENTAÇÃO E TRADIÇÃO LIBERTÁRIA DE DEMOCRACIA

Por Bruno Lima Rocha*

*Bruno Lima Rocha é doutor em Ciência Políti-ca e professor de Relações Internacionais

(www.estrategiaeanalise.com.br / [email protected])

CASO DEZINHO:ABSOLVIÇÃO QUEPUNE A PRÓPRIASOCIEDADE

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É O DESAFIO DEMOCRÁTICO, O QUAL NÃO O PERCEBO REALIZÁ-VEL EM UMA SOCIEDADE CAPITA-

LISTA DE TIPO ALGUM.

O INQUÉRITO PASSOU SEIS ANOS NAS GAVETAS DO FÓRUM DE

RONDON DO PARÁ, SEM QUALQUER MOVIMENTAÇÃO PROCESSUAL.

Page 6: Jornal Resistência - Nov/2013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH6

Recentes fatos e decisões tomadas pelo Governo Federal fizeram com que movimentos sociais e ONGs que atuam na defesa de direitos

humanos, do meio ambiente e da terra fi-cassem em estado de alerta máximo: o des-membramento do Comando Militar da Ama-zônia (CMA) - que cria o Comando Militar do Norte (CMN), uma das organizações es-tratégicas do Exército brasileiro na Amazô-nia; o decreto presidencial n.º 7.957/2013, que modificou as regras para a atuação da Força Nacional; e a tentativa do Governo do Pará de “regulamentar as manifestações públicas”. Essa clara militarização vem junto a um forte esquema de criminalização dos movimentos sociais, principalmente daque-les que lutam e resistem a grandes projetos, como as usinas hidrelétricas e a mineração.

Sempre nos lembramos como o mo-mento mais contundente da criminalização de movimentos sociais e de seus militantes a instauração da Ditadura Militar, em 1964. Também é deste período a legislação que, vigente até os dias de hoje, criou diversos delitos que expressam bem a criminaliza-ção patrocinada pelo Estado, tal como a Lei de Segurança Nacional, que, após as ma-nifestações de junho deste ano de 2013, volta a ser utilizada.

Continuamos a conviver com uma condição de vulnera-bilidade e desigualda-des no país, apesar do chamado período de “avanço democrá-tico”. A escalada da violência é fruto de boa parte desse dese-quilíbrio. No entanto, o Estado, principal-mente por meio de seus poderes - como o Judiciário e o Executivo, leiam-se as forças policiais -, age de modo inverso a enfrentar a natureza de nossos problemas socioeconômicos. Não é incomum que as manifestações por direitos sejam recebi-das com repressão em vez de serem re-cebidas por agentes públicos com poder de decisão, recepcionando as demandas e negociando com os movimentos sociais.

A atuação estatal vem reproduzindo uma lógica de guerra às lutas populares e se utiliza de técnicas de operações militares que vão desde espionagens, infiltrações de agentes, ameaças, força física, campanhas de desmoralização, presença constante nos canteiros de obras, toques de recolher e presença regular e contundente de diver-sas forças, como a Força Nacional, o Exér-cito e os policias militares estaduais. Nem a guarda municipal escapa desta lógica de militarização e vem atuando em algumas cidades, como Belém, sufocando de forma violenta as manifestações de rua.

ESPIONAGEM DE MOVIMENTOSCONTRA BELO MONTE

Uma das táticas ainda muito utilizadas hoje em dia é a da espionagem que, no Brasil, não é considerada crime e não são de hoje as notícias de que militantes de di-reitos humanos, jornalistas, procuradores federais e juízes foram espionados pela

AS LUTAS POR DIREITOS NA AMAZÔNIA SOB A MIRA DE FORÇAS POLICIAIS:DECLARAÇÃO DE GUERRA À CIDADANIA?

Por Anna Lins, advogada e coordenadora do PAJ - Programa Acesso à Justiça - SDDH. Nildon Deleon Garcia, advogado - SDDH.Antonio Alberto Pimentel, acadêmico de Direito -SDDH.

Agência Brasileira de Informação (Abin), conforme já bastante veiculado desde o ano de 2008.

Uma coluna publicada no Jornal O Globo , em 2011, noticiou que a Abin pro-duziu relatório confidencial sobre a ação de Organizações Não-Governamentais (ONG´s) estrangeiras nos protestos con-tra a Usina de Belo Monte. O relatório diz também que ONGs nacionais recebem fi-nanciamento de fora.

O relatório 0251/82260/Abin/GSIPR, de 9 de maio de 2011, concluiu que: “Tais campanhas têm disseminado, no Brasil e no exterior, posicionamento ideológico maniqueísta, norteado por suas sedes in-ternacionais”.

Tão preocupante quanto uma versão deturpada dos fatos apresentada pelo re-latório da Abin é o próprio fato de que as organizações estão sendo espionadas e suas atividades sendo objeto de investi-gações secretas por parte de órgãos de inteligência do governo brasileiro. Assim, uma das técnicas utilizadas, a da desmora-lização pública, está em curso, pois a visão expressa nesta postura é a de considerar as organizações, movimentos e defensores

de direitos humanos como criminosos, ou ao menos em poten-cial, que precisam ser monitorados por agen-tes de segurança.

Em 2013, foram descobertas espiona-gens realizadas por grandes corporações como Vale S.A e Con-

sórcio Construtor Belo Monte. Em feverei-ro deste ano, por exemplo, tivemos uma denúncia do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, que descobriu um “agente” infil-trado no grupo durante reunião de plane-jamento. O tal agente, pelo que se sabe, amador, foi contratado pelo consórcio. O movimento solicitou a abertura de procedi-mento investigatório no Ministério Público Federal (MPF) e pediu informações à Abin, que negou sua participação no episódio. O Consórcio Construtor Belo Monte, por sua vez, silenciou sobre o fato de o agente ter mostrado seu contracheque que prova sua ligação trabalhista.

No segundo semestre de 2013, foi a vez da descoberta de uma rede de espio-nagem que a empresa Vale vem pratican-do contra os movimentos sociais e ativis-tas, como Danilo Chammas e padre Dario, da ONG Justiça dos Trilhos, de Açailândia (MA). Esse fato provocou que parlamen-tares propusessem a realização de uma audiência pública.

GUERRA À CIDADANIA?

Assim, o sentido da militarização na Amazônia relacionada aos grandes proje-tos tem mira certa: os movimentos sociais e o uso de estratégias e táticas militares. Será que o Estado declarou guerra à ci-dadania?

O fato é que essa ofensiva militar não é fenômeno novo nas últimas décadas. Principalmente depois das descobertas de

grandes jazidas minerais, inaugurada em 1967, com a mega jazida de 18 bilhões de toneladas de minério de ferro de alto teor na Serra de Carajás, a Amazônia se converteu num território estratégico para as grandes corporações internacionais. Seu grande potencial hídrico tem levado a ser projetado, desde a década de 1970, grandes projetos de aproveitamento de seu potencial energético. Isso levou a uma corrida ocupacionista do território, alinha-do dentro de uma estratégia de integração nacional, que começa a dar um grande salto na ditadura militar, com a Operação Amazônia, em 1966.

Trata-se da região mais rica em biodi-versidade do mundo e, ainda assim, a sua marca é a da exclusão, que deve ser atri-buída às opções políticas de investimen-to adotadas pelo Estado brasileiro, como abertura de mega-projetos de infra-estru-tura para exploração de recursos naturais – dos quais podem ser citados a Transa-mazônica, o Projeto Carajás, as eclusas de Tucuruí, a BR-163 e o Pólo Siderúrgico de Marabá.

Desde então, colocou-se em marcha um grande projeto de integração da Ama-zônia, que está pensado dentro dos inte-resses das grandes corporações transna-cionais, em que as políticas dos governos federal e estaduais seriam o de garantir a apropriação, exploração e controle priva-do de nossas riquezas, concentrados em grandes corporações econômicas: Vale S.A, Bunge, ADM, Alcoa, Hidro e outras.

RESISTÊNCIA POPULAR E ASARMAS DE REPRESSÃO

Este processo de invasão do território é marcado por lutas e resistências por par-te dos povos tradicionais que começaram a serem expropriados, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos; pelos operários e campesinos migrantes, que vieram em busca da sonhada terra prometida. Com isso, os conflitos na disputa pelo território e pelo controle da riqueza sempre foi uma constante, mas que vêm se acirrando com a presença de atores que não aceitam ser espoliados e muito menos deixar de ser consultados sobre projetos.

Analisando o período mais recente, data de 13 de março de 2013 a criação

do Comando Militar do Norte, que é um desmembramento do Comando Militar da Amazônia, criado desde o final da década de 50. A necessidade de criação do CMN, por parte dos militares, é que, diferente-mente do lado ocidental do antigo CMA, em que o emprego da força está mais voltado aos delitos fronteiriços, como o narcotráfico, o contrabando e os crimes ambientais, do lado oriental (Pará, Ama-pá e parte do Maranhão), o emprego da força precisa estar à disposição em ações de garantia da lei e da ordem, objetivando proteção de obras de infra-estrutura estra-tégicas e combate a conflitos sociais. Esse desmembramento foi amplamente difundi-do na imprensa e contou com as declara-ções explícitas do Exército e de seus obje-tivos no lado oriental da Amazônia.

Os objetivos da atuação do Exercito no PA, AP e MA são claros e admitidos pu-blicamente: a proteção das grandes obras chamadas de interesse nacional e, por conseguinte, o monitoramento e a repres-são aos movimentos sociais.

A SDDH tem recebido e acompanhado ações sistemáticas das forças militares para reprimir e conter qualquer iniciativa de luta e resistência. Caso mais exemplar no momento é o grande quartel criado dentro dos canteiros de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, com o fim de conter as ocupações dos canteiros pelos indígenas e demais movimentos de atingi-dos pela obra da região, bem como inibir as greves dos trabalhadores.

A Defensoria Pública do Estado tam-bém vem recebendo denúncias e já reque-reu ao Ministério Público Federal investi-gações sobre a atuação da Força Nacional de Segurança Pública, pois os trabalhado-res da obra vêm denunciando ações trucu-lentas destas forças dentro dos canteiros de obras, com notícias até de toques de recolher. Defensores públicos em visita aos canteiros de obras colheram depoi-mentos de trabalhadores que dizem estar sob pressão e permanentemente vigiados até dentro dos refeitórios e com imposição de lei do silêncio à noite.

O fato é que nenhuma força de segu-rança pública poderia estar à disposição de qualquer empreendimento privado, devendo apenas ser acionada em situa-ções concretas de riscos efetivos. No en-

CONTINUAMOS A CONVIVER COM UMA CONDIÇÃO DE VULNERABILI-DADE E DESIGUALDADES NO PAÍS, APESAR DO CHAMADO PERÍODO

DE “AVANÇO DEMOCRÁTICO”.

Page 7: Jornal Resistência - Nov/2013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH 7

AS SEGUINTES ORGANIZAÇÕES INTEGRAM A REDE INCLO:

American Civil Liberties Union – ACLU (Estados Unidos)Association for Civil Rights in Israel - ACRI (Israel)Canadian Civil Liberties Association - CCLA (Canadá)Centro de Estudios Legales y Sociales - CELS (Argentina)Egyptian Initiative for Personal Rights - EIPR (Egito)Hungarian Civil Liberties Union - HCLU (Hungría)Irish Council for Civil Liberties - ICCL (Irlanda)Kenyan HHRR Commission – KHRC (Kenia)Legal Resource Centre - LRC (Sudáfrica)Liberty (Reino Unido)

INFORME COMPLETO:http://www.cels.org.ar/common/documentos/INCLOProtestaSocial-Espanol.pdf

A Rede Global de Organizações de Direitos Civis (Inclo, conforme si-gla em inglês) realizou sua primei-

ra apresentação pública em Nova York e lançou o informe “Ocupem as ruas: re-pressão e criminalização de protestos no mundo”. Segundo o Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), que atua na Se-cretaria Executiva da rede, o informe é o primeiro aporte da Inclo para colocar em debate este fenômeno global de protes-tos massivos em distintos países, desde uma perspectiva dos direitos humanos. Os casos incluídos na publicação são exemplos contemporâneos de diferen-tes reações governamentais diante de protestos sociais na Argentina, Canadá, Egito, Israel e territórios ocupados - Qu-ênia, Hungría, Sudáfrica, Reino Unido e Estados Unidos. Documentam situações de uso letal da força, respostas discrimi-natórias, restrições legais desnecessá-rias e criminalização de líderes sociais.

Ainda que os casos analisados na publi-cação provenham de diferentes países, com problemáticas e contextos sociais variados, pode-se identificar uma quan-tidade de desafios comuns.

Todos os casos apresentados mos-tram o papel que desempenham as or-ganizações da sociedade civil na prote-ção do direito democrático fundamental. Cada uma das organizações que con-tribuiu com esta publicação reconhece que uma sociedade democrática deve promover a participação e a luta social. E cada organização opera de maneira ativa sob a premissa de que, para além da causa ou questão subjacente, o direi-to de um indivíduo ou grupo a protestar deve ser protegido. As vozes dissidentes devem ser ouvidas e devem ter seu lugar ― tanto legal como físico ― para que se expressem.

Livre tradução: Erika Morhy.

tanto, o Ministério da Justiça reconhece a presença da Força Nacional e legitima sua presença: o objetivo seria “garantir a integridade física dos trabalhadores, dos demais cidadãos e do patrimônio, além da manutenção da ordem pública”, diante do “histórico de conflitos no local, provocados por pequenos grupos, mas com conse-qüências materiais significativas”.

A propósito, a Força Nacional de Segu-rança Pública foi criada a partir do decre-to nº 5.289, de 29 de novembro de 2004, que cita como amparo legal os artigos 144 e 241 da Constituição Federal. Segundo diversos especialistas, aí reside sua pri-meira inconstitucionalidade, visto que não há referência alguma à Força Nacional de Segurança Pública. Não se perca de vista que o § 7º, do art. 144, determina que a “lei” (lei, em sentido formal, elaborada a partir do processo legislativo, previsto no art. 59 e seguintes da Constituição Federal) disci-pline a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança públi-ca e assim não pode um decreto criar ne-nhuma força policial.

No ano de 2013, este obscuro decreto foi alterado através do decreto presidencial n.º 7.957/2013. Promulgado em março, alterou diversos aspectos do funcionamento da Força Na-cional de Segurança Pública , possibilitan-do que ministros convoquem as tropas, mesmo sem aval dos respectivos gover-nantes locais. Um claro atentado ao pacto federativo nacional. Na prática, a mudança confere ao Poder Executivo Federal força policial própria. Esta substancial alteração provocou reações dentro da sociedade ci-vil e no parlamento brasileiro.

Além disso, o recente decreto cria uma “Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública”. Essa nova divisão operacional dentro da Força Nacional terá por atribuições: apoiar ações de fiscalização ambiental, atuar na prevenção a crimes ambientais, executar tarefas de defesa civil, auxiliar na investi-gação de crimes ambientais, e, finalmente, “prestar auxílio à realização de levanta-mentos e laudos técnicos sobre impactos

ambientais negativos”.A Constituição Federal determina em

seu artigo 144 que a responsabilidade por ‘polícia ostensiva e a preservação da or-dem pública’ é das polícias militares dos estados, subordinadas aos respectivos governadores. À União restam duas pos-sibilidades: intervenção federal no estado (art. 34) ou decreto de estado de defesa (art.136), situações excepcionalíssimas de garantia da segurança e integridade nacio-nais, em que serão acionadas as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáuti-ca)”.

Logo após a promulgação do decre-to, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, convocou tropas para proteger 80 técnicos, para que fizessem levantamen-tos necessários para o Estudo de Impacto Ambiental de construção de hidrelétricas no rio Tapajós e Teles Pires, projeto que também enfrenta resistência de indígenas

e ribeirinhos. Ora, a medida tem um alvo certo e determinado: os movimentos so-ciais e as populações a serem impactadas com as obras, como indígenas, pesca-dores e ribeirinhos, que já resistem e de-

monstram sua força de mobilização. Esta incursão às terras dos indígenas da etnia Munduruku foi uma verdadeira operação de guerra, pois invadiu terras, inclusive áreas de caça das aldeias indígenas, além de aterrorizarem os povos daquela região. Atualmente, o uso da força policial tem se dirigido às populações tradicionais, como quilombolas e indígenas. Exemplo disso foram as operações (Eldorado e Tapajós) em que a Polícia Federal e a Força Nacio-nal atuaram na região, intimidando e até mesmo executando indígenas.

Outro exemplo de violência policial con-tra populações tradicionais ocorreu na re-gião nordeste do Pará, em que a empresa Vale S.A investe na expansão do agrodie-sel, avançando em territórios quilombolas. Há ainda conflitos antigos e não resolvidos com terras quilombolas na ilha do Marajó, com pessoas criminalizadas e uso indevi-do de força de segurança pública, como agência privada de segurança por parte de

1 Ilimar Franco, “Cobiça Externa”, O Globo, 19/06/2011 http://oglobo.globo.com/blogs/ilimar/posts/2011/06/19/salto-no-escuro-387175.asp

2 A alteração foi tema do artigo publicado pela Repórter Brasil “A nova guarda pretoriana de Dilma Rousseff”, de João Rafael Diniz, advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais – SP. http://reporterbrasil.org.br/2013/04/a-nova-guarda-pretoriana-de-dilma-rousseff/

UM OLHAR GLOBALSOBRE A REPRESSÃODE PROTESTOS SOCIAIS

fazendeiros e agora os arrozeiros presen-tes na região.

Ainda há situações recentes ocorridas no município de Jacareacanga (PA), em reuniões públicas, em que já há relatos de abusos da Força Nacional e demais forças policiais contra jornalistas e militantes de movimentos sociais e populações afeta-das por obras, já relatadas ao Ministério Público Federal e demais órgãos respon-sáveis.

Importante lembrar também que a pró-pria Secretaria de Segurança Pública, no final do ano passado, propôs ao Conselho Estadual de Segurança Pública (Consep) uma resolução que visava limitar, coibir e controlar qualquer tipo de manifestação de rua. Esta proposta foi duramente criticada pela sociedade civil - que possui assento no conselho, sob chancela da SDDH, Ce-deca, Cedenpa e OAB-Pa - e teve parecer desfavorável apresentado pela advogada Celina Hamoy. O Secretário de Segurança retirou a proposta.

Cabe à sociedade civil se posicionar e impedir que institutos jurídicos e técni-cas atávicas voltem a ser aplicados na atualidade. Aos avanços contidos no pe-ríodo de redemocratização no Brasil e na Constituição Federal de 1988 não cabem retrocessos e nem negociações. Nenhum

A AMAZÔNIA SE CONVERTEU NUM TERRITÓRIO ESTRATÉGICO PARA

AS GRANDES CORPORAÇÕES INTERNACIONAIS.

interesse econômico ou político privado ou dito público deve ficar acima do respeito aos direitos humanos e nenhuma força deve ser capaz de reduzi-los, ao contrário, o conteúdo ético e emancipatório contido nos direitos humanos deve ser sempre no sentido de ampliações de direitos.

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Page 8: Jornal Resistência - Nov/2013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH8

Recentemente, foi aprovado na Co-missão de Direitos Humanos, da Câmara dos Deputados, o projeto de Lei 1411/11, que insere na Lei 7716/89 a desobrigação de enti-

dades religiosas de “efetuar casamento religioso em desacordo com suas crenças” e descriminali-za a recusa das mesmas quanto “a permanência de cidadãos que violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias”. Que cada religião estabeleça suas próprias regras isso é óbvio, afinal, o debate pela separação entre Estado e religiões existe e é pertinente desde o fim do século XVIII. Então, por que a necessidade de lo-calizar isso em uma lei que pune discriminação de raça, cor, etnia, religião ou proce-dência nacional? Em uma lei penal, oras! Enquanto a lei não tem outra finalidade senão o reconhecimento da proteção especial de seg-mentos vulnerabilizados, o projeto de lei tutela a per-missividade da exclusão desses mesmos grupos. Tanto na justificativa do autor do projeto (dep. Wa-shington Reis – PMDB-RJ), quanto do relator que o aprovou com parecer favorável (dep. Jair Bolso-naro – PP-RJ), frisa-se a “atenção ao fato da práti-ca homossexual ser descrita em muitas doutrinas religiosas como uma conduta em desacordo com suas crenças” e a necessidade de diferenciação de “discriminação de liberdade de crença” (?) É tão ilógico que faz com que os reacionários a este movimento vejam perigo em uma lei que sequer recepciona seus maiores alvos.

Os que barram LGBT’s em templos religiosos e emperram a possibilidade de isso ser conside-

rado crime de discriminação são os mesmos que minam a qualquer custo o reconhecimento deste segmento como mais um ser protegido sob a égi-de da lei (que o digam as frentes parlamentares contrárias à aprovação do PLC122/06). “Quanto à prática do exercício de culto religioso”, tal perma-nência se refere às “fileiras” religiosas ou ao lugar de culto? Essa tipificação é no mínimo dúbia e de tão mal redigida dá margem à pergunta: Via públi-ca é lugar de culto? Em dois momentos Feliciano (presidente da falida comissão) abusou de seu cargo e influência para abafar protestos contra si na rua - Santarém/PA e São Sebastião/SP.

Poder político confabula com o poder religioso em to-dos os níveis, favorecendo--lhe por vezes até em apoio financeiro de eventos em locais públicos é justo, pois, em vista dessas condições, usurpar do caráter democrá-tico da rua enquanto espaço de livre manifestação para arrendá-lo politicamente,

usando inclusive o poder repressor da segurança pública estatal (e por vezes do abuso de autorida-de) para garantir a viabilidade dos mesmos? Que o presidente, a comissão, o autor do projeto e o relator tenham em mente que a adesão a uma re-ligião é individualizada, pessoal, e como tal não é prioridade pública, nem pode ser estatizada. Essa não é uma discussão de caráter ético entre liber-dade de expressão (incluindo da sexualidade) e liberdade de culto, mas um ralo intento de rea-firmar a arbitrariedade da opção pela cisão ou a união do poder estatal com poder teocrático no que convier.

A CORDA-BAMBA ENTRE PODER ESTATAL E PODER TEOCRÁTICO

Por Diogo Monteiro*

*Diogo Monteiro é advogado, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Combate

à Homofobia da OAB_PA

Dados publicadospela CPT, em seumais recente relatórioatestam que na região amazônica seencontra a maioriados conflitos nocampo:

- 58,3% dos assassinatos- 84,4% das tentativas de assassinatos- 77,4% das ameaças de morte- 62,6% de presos porconflitos - 63,6% de agressões

ENQUANTO A LEI NÃO TEM OUTRA FINALIDADE SENÃO O RECONHECI-

MENTO DA PROTEÇÃO ESPECIAL DE SEGMENTOS VULNERABILIZADOS, O PROJETO DE LEI TUTELA A PERMIS-

SIVIDADE DA EXCLUSÃO DESSES MESMOS GRUPOS.

Anna Lins, advogada da SDDH, e familiares de Welbert, em reunião na OAB-PA

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-PAO ASSASSINATO DO TRATORISTA WELBERT CA-

BRAL COSTA, em 24 de julho deste ano de 2013, reafirma o lamentável posicionamento do Pará no ranking dos esta-dos brasileiros com maior índice de violência no campo. E, numa escala ainda mais perversa, região onde os crimes não chegam ao mais razoável nível de justiça. Tendo se deslocado até a fazenda Vale do Triunfo, de propriedade da Agropecuária Santa Bárbara, em São Félix do Xingu, para cobrar dívidas trabalhistas, Welbert terminou morto à bala, tendo seu corpo sido encontrado às proximidades fazenda. Divo Ferreira, autor dos disparos, e Maciel Nascimento, que ajudou a esconder o corpo, foram presos semanas depois. Os dois também eram funcionários da fazenda. Nenhum mandante foi apontado e a polícia tem o caso por encerrado.

Cada dia pesou como uma via crucis para a família de Welbert, que teve de pedir ajuda para fazer valer seus direi-tos. Rivelino Zarpellon, advogado e conselheiro da Socieda-de Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) na região de Xinguara, e Frei Henry des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Xinguara foram cúmplices da maratona da família junto aos órgãos de segurança pública do Pará desde o dia 07 de agosto. Passaram a fazer parte da mobilização, a Comissão de Direitos Humanos da OAB--Pa, a Federação de Trabalhadores em Agricultura (Fetagri) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).

No dia 20 de agosto de 2013, familiares chegaram à sede da OAB-PA, em Belém, e foram acolhidos pelo presi-dente da entidade, Jarbas Vasconcelos; pela presidente da Comissão de Direitos Humanos do órgão, Luanna Tomáz; pela advogada da SDDH, Anna Cláudia Lins; pela ouvidora do Sistema de Segurança Pública do Estado do Pará, Elia-na Fonseca; e pelo advogado Julian Lennon, assessor do deputado federal Cláudio Puty.

O secretário de Segurança Pública do Estado foi aciona-do e recebeu oficio requerendo algumas diligências essen-ciais para qualificação das investigações, dentre elas.

Page 9: Jornal Resistência - Nov/2013

SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH 9

A proteção a testemunhas

e seus familiares, vitimas

de violência, surge em 1996,

por iniciativa do Gabinete de

Assessoria Jurídica às Orga-

nizações Populares (Gajop),

entidade de direitos humanos

situada no estado de Pernam-

buco, e do Movimento Na-

cional de Direitos Humanos

(MNDH), tendo como finalida-

de enfrentar a criminalidade,

através do combate à impu-

nidade, possibilitando a se-

gurança necessária às teste-

munhas, para que pudessem

quebrar o silêncio e colaborar

com a Justiça.

Em 1998, o Ministério da

Justiça, reconhecendo o

êxito da experiência, financia

um projeto de ampliação para

os estados do Rio de Janeiro,

Espírito Santo, Bahia e Rio

Grande do Norte. A partir daí,

outros estados se incorpora-

ram ao processo, somando

hoje 16 estados com progra-

mas em funcionamento, mais

o Programa Federal de Assis-

tência a Vitimas e Testemu-

nhas Ameaçadas.

A lei nº 9807/99 é fruto

dessa experiência e foi

construída no I Encontro In-

terestadual sobre Proteção à

Testemunha, realizado em ju-

nho de 1997, em Recife. Ela

se pauta na Declaração dos

Princípios Básicos de Justiça

para Vitimas de Delitos e de

Abusos do Poder, resolução

da Assembléia da ONU nº

40/34, de novembro de 1985,

e atende as orientações do

Programa Nacional de Direitos

Humanos.

O modelo de funcionamen-

to do programa inaugu-

ra, no âmbito da política públi-

ca, uma nova modalidade de

co-participação entre órgãos

públicos e entidades não-go-

vernamentais, bem como pri-

ma pela descentralização dos

serviços entre a União e os Es-

tados Federados; os poderes

Executivo, Judiciário, Legislati-

vo e Ministério Público.

A arquitetura do programa

estabelece quatro instân-

cias de execução: o conselho

deliberativo, integrado por re-

presentantes do Estado e da

sociedade civil; o órgão exe-

cutor do estadual convenente;

a organização da sociedade

civil, responsável pela execu-

ção das medidas protetivas,

através de equipe técnica in-

terdisciplinar, composta de

advogados, psicólogos e as-

sistentes sociais; e a rede vo-

luntária de proteção.

Além dessas instâncias

previstas na lei federal e

reproduzidas nas leis estadu-

ais, existem as instâncias de

articulação e monitoramento

interno do programa, quais

sejam: Colégio Nacional de

Presidentes de Conselhos De-

liberativos dos Programas de

Proteção a Vitimas e Testemu-

nhas Ameaçadas, Fórum Na-

cional de Entidades Gestoras

dos Programas de Proteção a

Vitimas e Testemunhas Amea-

çadas, Fórum Nacional do Sis-

tema de Proteção a Vitimas e

Testemunhas Ameaçadas e a

Câmara Técnica do Monitora-

mento.

As atividades da prote-

ção desenvolvidas pe-

las entidades gestoras partem

da perspectiva dos direitos

humanos, ou seja, garantem

vidas com reinserção social,

possibilitando àqueles que co-

laboraram com a justiça, com

o fortalecimento do Estado

Democrático de Direito à pos-

sibilidade de, em novo territó-

rio, diferente do local do risco,

restabelecerem, com segu-

rança, novas perspectivas de

vida. Para tal, demanda-se

uma série de medidas concre-

tas do estado, às quais vêm

sendo pautadas nos encon-

tros nacionais desde 1997 até

2012, ano do último encontro

nacional.

Estas reivindicações histó-

ricas foram sistematiza-

das na Carta de Brasília, pro-

duto do Encontro Nacional de

Programas de Proteção a Viti-

mas e Testemunhas, o primei-

ro realizado com caráter deli-

berativo, o qual contou com a

participação dos vários atores

dos Programas de Proteção a

Vitimas e Testemunhas Amea-

çadas: CGPT-SDH-PR; Fórum

Nacional de Entidades Gesto-

ras; Colégio de Presidentes

dos Conselhos Deliberativos;

equipes técnicas dos progra-

mas; representantes dos go-

vernos estaduais; membros

do Ministério Público, Poder

Judiciário, Conselho Nacional

de Justiça e Conselho Nacio-

nal do Ministério Público.

O referido documento de-

fine diretrizes norteado-

ras para a Política de Prote-

ção a Vítimas e Testemunhas

Ameaçadas, tendo sido orga-

nizado em nove (09) eixos: se-

gurança e direitos humanos;

desafios da proteção (capaci-

tação, supervisão e termo de

compromisso); enfrentamento

à impunidade; marco normati-

vo; acesso a políticas públicas

com segurança; transferência

de local do risco (permuta);

visibilidade do programa; con-

vênios/prestação de contas/

sigilo; e metodologia de rein-

serção social dos usuários.

Todos esses itens, consi-

derados imprescindíveis

à implementação da política

pública de proteção a viti-

mas e testemunhas, nascida

da necessidade de garantir a

preservação da vida daqueles

que colaboraram com a Justi-

ça, através da prova testemu-

nhal, será objeto de avaliação

no próximo encontro nacional

a ser realizado em 2014.

Por fim, ressalta-se que o

êxito desta política, nas-

cida de um diagnóstico de re-

alidade, formulada pela socie-

dade civil, é a vitória de todos

os lutadores e lutadoras de

direitos humanos e seu aper-

feiçoamento não pode pres-

cindir da atuação de todos os

atores que integram o sistema

de proteção a vitimas e teste-

munhas ameaçadas.

PROVITA: UMAPOLÍTICA PÚBLICADE NOVO TIPO

FÓRUM NACIONAL DO SISTEMA DE PROTEÇÃO A VITIMAS E TESTEMU-NHAS AMEAÇADAS:

Em março de 1999, no II Seminário Nacional de Proteção a Tes-temunhas surge a proposta de criação de um Sistema Nacional de Proteção a Vitimas e Testemunhas que unisse as ações da socie-dade civil e dos órgãos governamentais, bem como a necessidade de criação de um conselho nacional de proteção a testemunhas.

*Josiane Gamba é advogada e coordenadora Geral do Provita pela SMDH, entidade gestora do programa.

Por Joisiane Gamba*

FORMAÇÃO PARA A CIDADANIAA defesa dos direitos humanos depende, entre outras coisas, do conhe-

cimento que povos e comunidades possuem a respeito desses direitos. Por isso, a SDDH tem realizado oficinas para compartilhar conhecimentos com comunidades tradicionais. Duas das mais recentes, em Curuçá e Marudá, unindo mulheres, trabalhadores rurais, representantes de associações comu-nitárias, pescadores e pescadoras, jovens.

A ação chamada de “Diálogos com a comunidade” faz parte do Programa de Cidadania e Acesso à Justiça (PAJ), da entidade, que atua juridicamente em casos exemplares de violações de direitos humanos e também realiza ações pedagógicas com base neste conceito.

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SOCIEDADE PARAENSE DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS - SDDH10

shington, do ex-chanceler chileno Orlando Letelier. O regime dissolveu a já notória Dire-ção de Inteligência Nacional (Dina), corpo de polícia política que se reportava diretamente a Pinochet, e introduziu uma lei de anistia. O Decreto-Lei 2191, de 1978, foi uma auto--anistia desenhada para assegurar impuni-dade a agentes dos serviços de segurança. A Dina foi substituída pela Central Nacional de Inteligência (CNI), que exerceu a repres-são entre 1978 e os últimos dias do regime.

Em 1988, foi celebrado um plebiscito para determinar se Pinochet devia seguir no poder. O regime perdeu por uma margem relativamente estreita e, em 1989, foram celebradas eleições livres. Uma coalizão de centro-esquerda, composta por 17 partidos e conhecida como “la Concertación”, ganhou a Presidência, na pessoa do democrata cris-tão Patricio Aylwin. La Concertación seguiria no poder durante três períodos presidenciais mais. Em 2010, foi afastada logo que o de-mocrata cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle, que já havia exercido a Presidência entre 1994 e 2000, perdeu para ao candidato de direita Sebastián Piñera nas eleições de 2009.

Livre tradução: Erika Morhy.

A 40 ANOS DO GOLPECÍVICO-MILITAR NO CHILE

Por ocasião de mais um aniversário do golpe cívico-militar que derrubou o gover-no democrático de Salvador Allende, no dia 11 de setembro de 1973, o Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels) difunde um extrato sobre a situação do processo de justiça por crimes de lesa humanidade no Chile, que estará incluído no capítulo “América Latina na busca da memória, verdade e justiça por crimes de lesa hu-manidade”, do Informe Anual 2013.

É importante destacar que, assim como o golpe no Chile inaugurou uma sé-rie de ditaduras sangrentas na região, a detenção de Augusto Pinochet em 1998, em Londres, deu início a um incipiente processo de justiça por crimes de lesa hu-manidade em distintos países da região.

Cabe destacar que, atualmente, Argen-tina e Chile são os países que mais têm avançado na investigação e sanção dos responsáveis por violações graves aos di-reitos humanos. O CAPÍTULO COMPLETO ESTÁ DISPONÍVEL NO SEGUINTE LINK:

http://www.cels.org.ar/common/documentos/Adelanto%20Informe%20Anual.pdf

Dentre as diversas mobilizações construídas por movimentos so-ciais populares, centrais sindicais e partidos políticos no ano pas-

sado e neste ano de 2013, uma bandeira histórica do povo brasileiro não foi esque-cida: a luta pela memória, verdade e jus-tiça. Essa bandeira se destacou por sua capacidade de unir diversos setores da es-querda brasileira; das vitórias alcançadas, destaca-se principalmente a instalação da Comissão Nacional da Verdade.

Nos meses de março e maio de 2012, o Levante Popular da Juventude protago-nizou ações inspiradas em movimentos de juventude latino-americanos que também reivindicam a luta pela memória de seu povo, de sua pátria. Os chamados “escra-chos” denunciaram agentes de um dos pe-ríodos mais sombrios da história brasileira, a ditadura civil militar (1964-1985). Desta forma, diversos colaboradores da tortura (como médicos, espiões etc) e torturado-

res foram expostos em suas residências e locais de trabalho, para que, assim, toda a sociedade conhecesse o que realmente aconteceu no Brasil em um período ainda próximo, e, além disso, a denúncia de que aqueles envolvidos permaneciam desco-nhecidos em meio a tantos fatos obscuros.

Todas as vitórias conquistadas a nível nacional desdobraram em diversas vitórias também em âmbito estadual. No Pará, ti-vemos um fortalecimento do Comitê Pa-raense pela Memória, Verdade e Justiça (composto por uma diversidade de orga-nizações e ativistas políticos) que resultou em uma vitoriosa audiência pública com mais de 200 participantes, processo esse que possibilitou e fortaleceu a instalação da Comissão da Verdade do Sindicato dos Jornalistas; a construção do Grupo de Tra-balho em Memória, Verdade e Justiça do Conselho Regional de Psicologia PA/AP; e, no ultimo mês, foi aprovada na Univer-sidade Federal do Pará (UFPA) a Comis-

são “Cesar Moraes Leite”, que tem por objetivo resgatar as violações de direitos humanos ocorridas na universidade no período da ditadura militar.

Porém, parece que todos os avan-ços obtidos no últi-mo período não significam muito para o go-verno do estado do Pará. Em meados do ainda então ano de 2012, membros da Co-missão Nacional da Verdade e do Comitê Paraense se reuniram junto ao governador Simão Jatene, que imediatamente sinali-zou a disposição do estado para legitimar e instalar uma Comissão Estadual, tendo assim a responsabilidade de apurar uma diversidade de fatos nas diversas regiões de nosso estado, que foi um dos maiores cenários de violência da ditadura militar.

Esta é sim uma das bandeiras mais democráticas de nosso país, pois é a oportunidade de re-construirmos nossa história, escrita des-sa vez pelo próprio povo. É necessário, portanto, intensifi-carmos a luta nes-

te período, propondo uma ampla unidade entre os setores da sociedade que nunca esquecerão os crimes dos quais sofreu. Temos que exigir de forma rigorosa do estado paraense a imediata instalação da Comissão Estadual da Verdade, que pode e deve ser um pólo aglutinador de diversas investigações a serem realizadas.

Coletivo Levante Popular da Juventude - Belém (PA).

PARÁ MANTÉM DÍVIDA COM SUA MEMÓRIA

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OS CHAMADOS “ESCRACHOS” DENUNCIARAM AGENTES DE UM

DOS PERÍODOS MAIS SOMBRIOS DA HISTÓRIA BRASILEIRA, A DITADURA

CIVIL MILITAR (1964-1985).

DADOS SOBRE OPROCESSO DE JUSTIÇA NO CHILE

As cifras, elaboradas pelo Observató-rio de Direitos Humanos da Universidade Diego Portales, dão conta de que o país possui 1342 causas criminais por execu-ções extrajudiciais, desaparições, tortu-ras, exumação ilegal ou associação ilícita cometidas entre 1973 e 1990. Destas, ao menos 150 são sentenças finais confirma-das pela Corte Suprema. Estas causas envolvem aproximadamente 75% das ví-timas de execução política ou desapari-ção forçada reconhecidas. Existem, ainda, cerca de 24 causas por torturas físicas ou psicológicas, detenção ilegal e homicídio frustrado contra aproximadamente 200 so-breviventes.

Desde o ano 2000, 777 ex-agentes das Forças Armadas ou de segurança têm sido processados e/ou condenados por crimes de repressão cometidos entre 1973 e 1990. Desse total, cerca de 260 recebe-ram condenações finais e 74 estiveram detidos em algum momento do processo.

Em seguida, reproduzimos o texto in-trodutório e o link para acessar o capítulo completo.

DITADURA E TRANSIÇÃO:1973-1990

Chile emergiu em 1990 de um regime militar de direita imposto após um violento golpe de Estado encabeçado, em 1973, pelo então comandante em chefe do Exército, Au-gusto Pinochet. Motivado por um estridente anticomunismo e pela Doutrina de Segurida-de Nacional, o regime se dedicou a erradicar os projetos políticos de esquerda que haviam alcançado sua máxima expressão no gover-no da Unidade Popular (1970-1973), enca-beçado pelo socialista Salvador Allende. Integrantes do governo deposto; dirigentes políticos, sindicais ou sociais; líderes estu-dantis; artistas, e todo possível simpatizan-te da esquerda política foram perseguidos, presos, exilados, torturados, executados ou desaparecidos por serviços de segurança oficial e clandestino. As cifras oficiais certifi-cam 3216 pessoas mortas ou desaparecidas e outras 38.254 encarceradas por razões po-líticas e/ou torturadas no período.

A pronta formação de organizações de defesa e denúncia alimentou críticas inter-nacionais ao regime, que, em 1978, mode-rou sua prática repressiva a partir da reação negativa dos Esta-dos Unidos ao as-sassinato, em Wa-

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Chega! Nós estamos é atrasados vinte anos! Uma geração inteira de artistas sem nenhum porvir, surgindo e produzin-

do sem qualquer estímulo, muito pelo contrário. Uma geração inteira de paraenses que perdeu qualquer ligação com a Cultura, que passou a ser considerada algo distante, de mais velhos, ou pior, sendo apenas, talvez, uma música de fundo, estímulo para beber, pular e nada mais. Estamos atrasados! Permitimos que no cargo de Secretário de Estado de Cultura fosse co-locado alguém que nada tem a oferecer. Que nada entende de administração cultural. Pior, que coloca em prática apenas gostos pessoais, duvidosos, sem qualquer base. Que não aceita diálogo. E esse alguém, sem que conseguísse-mos expulsá-lo, permanece encastelado duran-te vinte anos. Vinte anos, uma vida. Estamos atrasados. Em vinte anos, no mundo todo, a Cultura profissionalizou-se. Passou a ser uma das maiores fontes de renda, de emprego, de impostos. Arma estratégica de dominação. Me-nos aqui. Estamos atrasados, mas antes tarde do que nunca. Chega!

Um grupo de artistas invadiu um evento fe-chado, produzido com dinheiro do povo, para poucos eleitos e, aproveitando que havia até transmissão pela tv estatal, deu o grito de Che-ga! E foi aplaudido até pelos músicos que lá estavam ganhando seu pequeno, mas provi-dencial cachê. Em seguida, vieram reuniões no Teatro Cuíra, que em seus cem lugares apenas, recebeu mais de trezentos artistas e interessa-

dos. Houve passeata e um pedido de demissão do Sectário (perdão, Secretário). Houve pedi-dos, por parte do governo, para abrir um diálo-go com outros representantes de sua adminis-tração. Dissemos não. Houve ataques dizendo que havia motivação partidária. Não há. Na estréia de caríssimos espetáculos de ópera, no Teatro da Paz, para poucos eleitos, artistas de todas as áreas foram para a Praça da Repúbli-ca mostrando seus trabalhos e gritando Chega!

Até dentro do teatro, de repente, desceu uma faixa pedindo a democratização das ver-bas culturais. Chega! Não queremos cargos, DAS, nada. Não temos partidos políticos. Que-remos poder exercer nossas atividades. Quere-mos que o governo fomente a Cultura de manei-ra que possamos leva-la até o povo em palcos onde o povo todo possa usufruir de nossa Arte. Queremos viver dignamente, sustentar nossas famílias. Queremos correr por todo o imenso Pará, mostrando e ouvindo, vendo, admirando o que outros paraenses fazem. Queremos ad-ministração cultural de verdade, para todas as formas de arte. Há uma grande incógnita a res-peito dos motivos que fazem deste Secretário, merecedor do cargo por vinte anos, sem nada de efetivo ter feito pela Cultura, dando margem inclusive a dúvidas cruéis. Chega!

Estamos juntos, unidos. Não desistiremos. Insistiremos. Travamos o bom combate. Have-remos de vencer. Chega!

Coletivo CHEGA – Belém (PA)

UMA CARTA DE QUEM JÁ ESTÁ PELAS TABELAS

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Estamos na terceira edição da Conferência Nacional de Cul-tura, e pela terceira vez em 11 anos estamos novamente deba-

tendo (e propondo) políticas para a diver-sidade cultural. Já passamos da etapa municipal e estamos no fim dos proces-sos de mobilização em cada um dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.

O estado de mobilização social re-nova a esperança da democratização das verbas na cultura, mas enquanto os agentes de culturas afro-brasileiros, os artistas, os fazedores de cultura, os mes-tres da cultura popular, os representan-tes de povos indígenas e de povos e co-munidades tradicionais e de toda a sorte da diversidade brasileira se mobilizam para diretrizes de políticas diversificadas,

QUANDO O MERCADO DOMINA A CULTURA, OU A FALÁCIA DADIVERSIDADE NA CULTURA CAPITALISTA DE UM PAÍS RACISTA

*Por Arthur Leandro

o Ministério da Cultura (MinC) investe na industria cultural e usa de argumentos de mercado para manter o financiamento da cultura como privilégio de poucos.

Recentemente, Marta Suplicy usou poder atribuído legalmente por sua prer-rogativa de ministra para aprovar um projeto de desfile de moda em Paris para Pedro Louren-ço, estilista paulis-ta; um projeto que não havia passado na avaliação da Comissão Nacional de Incentivo à Cul-tura (Cnic), que é quem decide quem pode captar via Lei Rouanet, e justificou seu ato utilizando o “soft power” - con-ceito que propõe fortalecer a imagem do país no exterior a partir de bens imate-riais. Mas que imagem projetada é essa? É a imagem da diversidade? Enquanto uma “canetada” ministerial resolve o des-tino de quase 3 milhões de reais para a realização de um desfile em Paris de um único estilista e via renúncia fiscal, baia-nas do acarajé têm de enfrentar uma ba-talha, inclusive judicial, para terem suas banquinhas funcionando durante a Copa do Mundo de 2014 nos arredores do es-tádio da Fonte Nova, em Salvador/BA, e a cultura popular ainda corre riscos de ter de alterar calendário de festas tradicio-nais em função do evento esportivo da Federação Internacional de Futebol As-sociado (Fifa).

Já faz 11 anos que festejamos com euforia a vitória de Lula nas eleições do ano 2002. Naquele momento, parecia que bastava tomar o poder e governar com um presidente operário que todas as mazelas sociais seriam resolvidas; o sentimento era da democracia que sor-ria pros brasileiros e, por conseguinte, que também iria sorrir para a diversida-de cultural. Porém, passada a euforia, hoje mesmo, se somarmos o orçamento anual do MinC com o montante do Fundo

Nacional de Cultura e do financiamento direto através de renúncia fiscal, vamos chegar a um resultado de aproximada-mente cinco ou seis bilhões de reais de investimentos anuais em arte e cultura no Brasil. É verdade que ainda é pouco, mas é um valor considerável; o proble-

ma é que ele não é democraticamente distribuído, nem geograficamente e nem, tampouco, considera a diver-sidade ética e ra-cial brasileira.

Durante a se-gunda conferência nacional de cultu-

ra, em março de 2010, foi divulgado le-vantamento estatístico do MinC que nos mostrava que, enquanto menos de 1% da verba estatal da cultura era destina-da para a região norte, cerca de 36% do montante das verbas federais ficavam na zona sul da cidade de São Paulo, ou seja, no centro do poder econômico, e embora não tenhamos informações de quais as manifestações culturais que foram e são financiadas, é fácil concluirmos que o to-tal de investimentos para a diversidade cultural foi, e é, de menos de 2 milhões, menos de 5% do total da soma dos 5 bi-lhões.

O paradoxo com que o MinC trata o financiamento estatal para as diferentes manifestações culturais brasileiras nos leva a crer que, embora se fale muito na diversidade cultural e que até tenha-mos experimentado algum financiamen-to para culturas afro-brasileiras, para as culturas de povos indígenas e para as culturas populares, muito pouco mudou desde o tempo do Brasil como colônia

portuguesa e que a cultura em razão de estado ainda é a cultura de origem euro-péia, uma cultura que nos aproxima do primeiro mundo pela aparência, mas que nos distancia de nós mesmos. E talvez seja por isso que Marta Suplicy interve-nha com tanta rapidez para garantir o desfile do estilista da elite paulistana em Paris e não tenha tanta destreza para garantir essa “imagem soft-power” para as culturas afro-brasileiras, para as cultu-ras indígenas e de povos e comunidades tradicionais e para as culturas populares aqui mesmo dentro do Brasil, que espera turistas estrangeiros em grandes eventos esportivos.

A postura em relação à política cultu-ral ainda parece menos diversificada e mais próxima da frase: “os ricos devem ficar mais ricos para que, por sua vez, os pobres possam ficar menos pobres”, que explica a política econômica no discurso de posse do ditador Emílio Garrastazzu Médici, em 1972. O Estado se aliou ao mercado contra a natureza e a cultura, e Marta parece que levou a sério os princí-pios econômicos da ditadura militar bra-sileira e age menos para a diversidade cultural e mais para a concentração das verbas públicas da cultura em endereços das elites econômicas nas zonas sul do Rio de Janeiro e, principalmente, de São Paulo.

O que precisamos discutir é pra onde vai o dinheiro público, e essa distribuição de recursos mais democrática vai de-pender de uma política afirmativa eficaz para o MinC; da mesma forma que o Mi-nistério da Educação (MEC) adotou co-tas sociais que consideram o percentual de auto-declaração racial para o acesso aos ensino superior nas universidades e nos institutos federais de educação tec-nológica, precisamos que o MinC tenha a mesma postura e adote um percentual de distribuição de verbas para as cultu-ras brasileiras de matriz africana, para as culturas de povos indígenas, populares e tradicionais e, com uma política afir-mativa e inclusiva, quem sabe um dia a gestão pública da cultura tenha alguma influência na promoção da diversidade das culturas brasileiras.

“ESTADO SE ALIOU AOMERCADO CONTRA ANATUREZA E A CULTURA”

A CARTA DE MARIA RITA KEHL À MARTA SUPLICY

“Prezada Ministra Marta, como vai?

Escrevo para lhe dizer que concordo com a sua afirmação: moda é cultura. Alta culinária também. No entanto, eu não penso que sejam estas as expres-sões culturais que precisam dos incenti-vos do MinC.

O argumento de que desfiles sofis-ticados “melhoram a imagem do Brasil no exterior”, a meu ver, é inconvenien-te. Esta era uma preocupação dos go-vernos militares: enquanto havia tortura aqui dentro, eles se preocupavam com a imagem do Brasil lá fora. Ora, só o fim da ditadura poderia melhorar nossa ima-gem frente aos países democráticos.

Hoje, em plena democracia, a tortura só é praticada nas delegacias da perife-ria, contra negros e pobres cujas famílias são intimidadas para que as denúncias não cheguem nem à sociedade local,

quanto menos à comunidade internacio-nal. Então, oficialmente, vivemos em ple-na democracia. Mas o que é que “man-cha” a imagem do Brasil no exterior? Não é a falta de alta costura/alta cultura. É a permanência da desigualdade, que nem os programas sociais dos gover-nos petistas conseguem debelar de fato, embora tenham sim diminuído significa-tivamente a miséria que excluía milhões de brasileiros dos padrões mínimos de consumo.

A desigualdade que persiste no Bra-sil já não é a que impede o povo brasi-leiro de se alimentar. É a que impede o acesso das classes baixas aos meios de produção. Pescadores perdem as condi-ções de pescar – e com isso, sua cultura tradicional – expulsos de suas comuni-dades para se tornarem, na melhor das hipóteses, trabalhadores braçais não qualificados. Lavradores, quilombolas e

grupos indígenas perdem suas terras – e com isso, as condições de manter suas práticas culturais – expulsos pela ganân-cia do agronegócio.

Os Pontos de Cultura criados na ges-tão Gilberto Gil estão abandonados em muitas regiões do país. Músicos e poe-tas das periferias das grandes cidades não conseguem recursos para mostrar sua arte para o resto do país. Pequenos grupos de teatro, que sobrevivem graças à Lei do Fomento criada na sua gestão na Prefeitura de São Paulo, dificilmente conseguem levar sua produção cultural para outros Estados, muito menos para outros países.

Não prossigo indefinidamente com exemplos que sei que são de seu conhe-cimento. Termino com uma afirmação que me parece até banal: em um país tão desigual quanto o nosso, fundos pú-blicos só deveriam ser utilizados para

possibilitar o crescimento de quem não tem acesso ao dinheiro privado.

Tão simples assim. Por isso estou cer-ta de que, a cada vez que o MinC, o MEC, o Ministério da Saúde e quaisquer outros agirem na direção oposta à da diminuição da desigualdade, a sociedade brasileira vai se indignar. As expressões dessa justa indignação é que hão de “manchar a ima-gem do Brasil no exterior”’.

Respeitosamente, Maria Rita Kehl.

*Maria Rita Kehl, psicanalista, ensaísta, críti-ca literária, poetisa e cronista brasileira. Em 2010, foi vencedora do Prêmio Jabuti de Lite-ratura na categoria “Educação, Psicologia e Psicanálise” com o livro O Tempo e o Cão.2 3 e recebeu o Prêmio Direitos Humanos do governo federal na categoria “Mídia e Direitos Humanos”.

“A desigualdade que persiste no Brasil é a que impede o acesso das classes baixas aos meios de produção”

VAMOS CHEGAR A UM RESULTADO DE APROXIMADAMENTE CINCO OU

SEIS BILHÕES DE REAIS DE INVESTI-MENTOS ANUAIS EM ARTE E

CULTURA NO BRASIL.

*Arthur Leandro/ Táta Kinamboji é Kisikar’Ngomba no Mansu Nangetu; arquiteto e historiador, é representante titular das culturas afro-brasileiras no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC/MinC); professor na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA) e atua no Grupo de Estudos Afro-Amazônicos da UFPA.