jornal mural - beatriz carrer

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Era preciso fazer alguma coisa. Diante da morte de Édson Luis e da sexta-feira sangrenta era preciso agir, protestar, juntar as indignações e ir às ruas. Jornalistas, intelectuais e arstas começaram o movimento. Fizeram um acordo com o governa- dor do Rio de Janeiro, Negrão de Lima, para que a cidade esvesse livre de policiamento e pudessem fazer um protesto pacífico. Eles só não esperavam algo tão grande e com tanta força. A Passeata dos 100 Mil, como o próprio nome diz, reuniu milhares de pessoas contra- riadas com as os fatos que haviam acabado de acontecer. Muita gente diferente lutando pela mesma coi- sa: o fim da violência, dos choques entre estudantes e militares, da di- tadura. Vladimir Palmeira, perseguido pela polícia por seu caráter revolucioná- rio, estava clandesno a um mês, mas não aguentou ficar em casa. Tomou sua função e liderou o povo carioca pelas ruas da cidade. Mães, estudantes, professores, arstas, padres, jornalistas. Às 13h45, de- pois de muitos discursos, todos o seguiram em direção à Candelária. Os cartazes e gritarias mostravam bem a divisão das es- querdas. De um lado, alguns dizeres “Só o povo armado derruba a ditadura”, de outro “Só o povo organizado der- ruba a ditadura”. Os espectadores deram atenção especial para a comissão das persona- lidades mais ilustres do Rio e da cultura brasilei- ra. Chico Buarque, Ca- etano Veloso, Gilberto Gil, Nana Caymmi, Ode- te Lara, Norma Blum, Norma Bengell. Todos eles estavam lá. A ala do clero também foi lembra- da. Depois da cena de três meses atrás, quando se uniram para pro- teger a saída das pessoas contra o cerco policial, após a missa de Éd- son Luis, foram aplaudidos das cal- çadas e de cima dos apartamentos. Às 16 horas a passeata já estava na Candelária e uma comissão para ir até o palácio presidencial e exigir a soltura dos estudantes presos nas úlmas manifestações foi formada. Os intelectuais optaram por Hélio Pellegrino como representante. Ire- ne Papi foi a escolhida pelas mães. O clero enviou o padre João Bas- ta. Em nome dos professores, José Américo Pessanha. A indicação dos alunos foi por Franklin Marns e Marcos Medeiros. Quando chegaram ao palácio, pas- saram trabalho para poder entrar, já que nem todos estavam vesdos adequadamente, de terno e gra- vata. Depois de muita discussão o presidente autorizou e todos subi- ram para a Sala dos Ministros, onde foram recebidos por Costa e Silva. Durante a conversa, outro impasse. O presidente concordava em soltar os estudantes presos, desde que não houvesse mais passeatas. Os representantes não concordaram e a discussão foi finalizada pelo mare- chal sem um acordo definido. De qualquer maneira o dia termi- nou com uma vitória da sociedade. A concentração na Cinelândia foi um marco simbólico para o país. Eles acreditaram que podiam fazer a diferença, só não esperavam pelo o que viria em dezembro. Prisioneiros Florianópolis, 29 de novembro de 2012 - Ano 1 - Edição 1 É inaceitável que o Exército trate os estudantes como se fossem uma horda de inimigos - Carlos Lacerda Z uenir Ventura, em 1968 – O ano que não terminou, co- meça sua narrava numa festa de virada de ano na casa de Heloísa Buarque de Holanda, onde vários estudantes e intelectuais especulavam sobre como seria o ano seguinte. Os pri- meiros capítulos são para contextu- alizar o que acontecia na época: a censura cada vez maior às artes (ao cinema, ao teatro e a música po- pular); o choque de pensamentos no movimento esquerdista, entre radicais e moderados; e a expecta- va que os jovens nham de acabar com a ditadura militar através dos movimentos estudans. Quatro anos depois do golpe militar de 1964, na políca o clima era de tensão. Quanto mais os jovens sa- íam às ruas para protestar contra a ditadura, cada vez mais o cerco policial se aproximava. No fim da tarde de 28 de março daquele ano, cerca de 300 estudantes protesta- vam contra o aumento de preço das refeições no restaurante universi- tário Calabouço, como faziam qua- se todos os dias, e se preparavam para mais uma passeata. Houve um choque entre estudantes e policiais e um dos PM acertou o jovem Éd- son Luís Lima Souto, de 16 anos, com um ro no peito. A morte do primeiro estudante pela ditadura parou a cidade do Rio de Janeiro no dia seguinte. 50 mil pessoas acom- panharam o corpo de Édson Luís ao cemitério São João Basta. Foi após esse episódio que o movimento es- tudanl começou a ganhar apoio popular, culminando na Passeata dos 100 mil. Antes de narrar a Passeata, Ventura conta do choque entre a população (dessa vez não apenas estudantes) e a polícia. Na conhecida como sexta-feira sangrenta, o centro do Rio de Janeiro foi palco de batalhas campais como nunca haviam sido vistas antes. Foram quase 10 horas de luta entre o povo e a polícia. Pes- soas do alto dos edicios jogavam garrafas, cinzeiros e até uma má- quina de escrever sobre os polícias. Em um trecho do capítulo o escritor conta que “a morte de Édson Luís já nha provocado uma grande como- ção, a repressão na porta da Cande- lária chocara e indignara, mas o que de fato levou a população a tomar pardo, a se revoltar, a entrar fisi- camente na guerra, foi a sexta-feira sangrenta”. Na quarta-feira seguinte, dia 26 de junho, aconteceu a Passeata dos 100 mil. Depois de um acordo feito com o governador do Rio de Janei- ro, o movimento estudanl conse- guiu consenmento para realizar a passeata sem confrontos com a polícia. A consequência de todos os protestos foi uma ditadura ainda mais rígida. Teatros foram fecha- dos, estudantes foram presos e os militares criavam conflitos arficiais para pressionar Costa e Silva a to- mar uma atude frente aos oposi- tores. No dia 13 de dezembro o pre- sidente cede à pressão e cria o Ato Instucional número 5 (AI-5). Acaba de vez o que sobrara da democracia no país. Zuenir Ventura faz bem o seu traba- lho ao recordar o ano de 1968. Ele conta os fatos com o maior núme- ro de detalhes possíveis, mas deixa que o leitor re suas próprias con- clusões sobre os episódios, sem fa- zer juízo de valor. Apesar de não possuir imagens, a narrava literária de Ventura trans- forma palavras em imagens na men- te do leitor. O escritor sabe como fazer um livro baseado no modelo do Novo Jornalismo. Em uma mes- cla de fatos reais com literatura, o autor faz uma reconstuição base- ada em depoimentos, lembranças e documentos colhidos dos principais fatos de 1968. Ventura colheu 42 depoimentos de pessoas que vivenciaram 1968 e os usou em sua própria narrava, dando a impressão que ele mesmo estava presente durante todos os eventos contados. Também con- seguiu informações com a CIA que nunca haviam sido divulgadas an- tes. Além disso, estudou diversos livros e colheu vários dados em jornais, entre eles: Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, O Estado de S. Pau- lo, O Globo, Folha de S. Paulo e Cor- reio da Manhã. Trabalhou também com as revistas: Realidade, Veja, Claudia, Revista Civilização Brasilei- ra e Revista Violão e Guitarra. O autor descreve o ano de maneira cronológica, entretanto em algumas passagens ele cita primeiro o fato em si, para depois explicar como aconteceu, o que causa certa con- fusão no começo da leitura. Muitas vezes ele quebra o clima de tensão, quando o leitor está se perguntan- do “o que vai acontecer agora?”, e insere capítulos aleatórios, sobre o III Fesval Internacional de Canção, por exemplo, para contextualizar o cenário políco, arsco e social da época. A quebra da expectava funciona para açar ainda mais o leitor. Além disso, acrescenta à obra conteúdo e informações relevantes que não seriam apresentadas se o livro tratasse apenas dos aconteci- mentos mais importantes de 1968. “Assim, debaixo de uma apagada e vil tristeza, o ano chegava ao fim – o ano, o capítulo e o livro. Os dois úl- mos por falta de autor -, também ele, como todo mundo, levado pelo arrastão.” É dessa forma que Zuenir Ventura dá desfecho ao romance de sua geração, jamais esquecida. O Brasil não esquece as marcas de 1968 Livro de Ventura relembra as dores do ano em que Costa e Silva criou um novo ato institucional Histórias de uma geração e seus heróis Editora Planeta Passeata mobiliza o Rio de Janeiro Zuenir Carlos Ventura é es- critor e jornalista e trabalhou nos mais importantes órgãos da imprensa nacional, com destaque para a revista Visão, onde foi colega de Vladimir Herzog, Paulo Francis e Fer- nando Morais. De Vlado, tor- turado e assassinado durante a ditadura militar, Zuenir foi mais do que um companheiro de profissão, foi um amigo. O escritor também foi víma do Brasil de 68. Preso em dezem- bro, logo depois da instuição do AI-5, o jornalista só pode ser solto graças a ajuda de Nelson Rodrigues, que ape- sar de ser a favor da ditadura, acabou se tornando um gran- de amigo. Em 2008 lançou uma edição revisada de seu best-seller, com o tulo 1968 - O Que Fizemos de Nós. O livro traz pequenas reportagens que retratam os tempos atuais, em contraste com os relatos de 1968. Também traz entre- vistas com nomes importan- tes da época, nas quais falam do passado e do presente. Em 1995 ganhou o Prêmio Jabu na categoria reportagem, pelo livro Cidade Parda. Em julho deste ano lançou o livro Sa- grada Família, romance que mistura memórias próprias com memórias emprestadas – além de ficção pura e simples. A obra foi a mais vendida na Festa Literária Internacional de Paraty. Mas Zuenir não teve sucesso desde sempre. Nasceu em Além Paraíba, numa família pobre e teve que começar a trabalhar aos 11 anos como pintor para ajudar seu pai na profissão. Mais tarde teve a chance de estudar de graça em troca de dar aulas no en- sino primário. Por seu amor a leitura, decidiu cursar letras e se mudou para o Rio de Ja- neiro, onde começou a traba- lhar como jornalista. Aos 81 anos, Zuenir ainda não pensa na morte. “Me surpreendo, várias vezes, fazendo planos para daqui a 20 anos. De re- pente, me toco: ‘Daqui a 20 anos eu vou estar com 101!’” Um menino pobre que se tornou um grande repórter O autor pesquisou por dez meses Milhares de pessoas caminharam da Cinelândia até a Candelária para clamar contra a ditadura Prisioneiros Curso de Jornalismo da UFSC - Atividade da disciplina Edição - Professor Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Beatriz Carrer Serviços editoriais: O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja - Impressão: Gráfica Postmix Novembro de 2012 Arquivo Estadão Elza Fiúrza - Agência Brasil 1-A

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Jornal Mural apresentado para a disciplina de Edição do curso de Jornalismo da UFSC.

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Era preciso fazer alguma coisa. Diante da morte de Édson Luis e da sexta-feira sangrenta era preciso agir, protestar, juntar as indignações e ir às ruas. Jornalistas, intelectuais e artistas começaram o movimento. Fizeram um acordo com o governa-dor do Rio de Janeiro, Negrão de Lima, para que a cidade estivesse livre de policiamento e pudessem fazer um protesto pacífico. Eles só não esperavam algo tão grande e com tanta força. A Passeata dos 100 Mil, como o próprio nome diz, reuniu milhares de pessoas contra-riadas com as os fatos que haviam acabado de acontecer. Muita gente diferente lutando pela mesma coi-sa: o fim da violência, dos choques entre estudantes e militares, da di-tadura. Vladimir Palmeira, perseguido pela polícia por seu caráter revolucioná-rio, estava clandestino a um mês, mas não aguentou ficar em casa. Tomou sua função e liderou o povo carioca pelas ruas da cidade. Mães, estudantes, professores, artistas, padres, jornalistas. Às 13h45, de-pois de muitos discursos, todos o seguiram em direção à Candelária.Os cartazes e gritarias mostravam

bem a divisão das es-querdas. De um lado, alguns dizeres “Só o povo armado derruba a ditadura”, de outro “Só o povo organizado der-ruba a ditadura”. Os espectadores deram atenção especial para a comissão das persona-lidades mais ilustres do Rio e da cultura brasilei-ra. Chico Buarque, Ca-etano Veloso, Gilberto Gil, Nana Caymmi, Ode-te Lara, Norma Blum, Norma Bengell. Todos eles estavam lá.A ala do clero também foi lembra-da. Depois da cena de três meses atrás, quando se uniram para pro-teger a saída das pessoas contra o cerco policial, após a missa de Éd-son Luis, foram aplaudidos das cal-çadas e de cima dos apartamentos. Às 16 horas a passeata já estava na Candelária e uma comissão para ir até o palácio presidencial e exigir a soltura dos estudantes presos nas últimas manifestações foi formada. Os intelectuais optaram por Hélio Pellegrino como representante. Ire-

ne Papi foi a escolhida pelas mães. O clero enviou o padre João Batis-ta. Em nome dos professores, José Américo Pessanha. A indicação dos alunos foi por Franklin Martins e Marcos Medeiros. Quando chegaram ao palácio, pas-saram trabalho para poder entrar, já que nem todos estavam vestidos adequadamente, de terno e gra-vata. Depois de muita discussão o presidente autorizou e todos subi-ram para a Sala dos Ministros, onde foram recebidos por Costa e Silva.

Durante a conversa, outro impasse. O presidente concordava em soltar os estudantes presos, desde que não houvesse mais passeatas. Os representantes não concordaram e a discussão foi finalizada pelo mare-chal sem um acordo definido.De qualquer maneira o dia termi-nou com uma vitória da sociedade. A concentração na Cinelândia foi um marco simbólico para o país. Eles acreditaram que podiam fazer a diferença, só não esperavam pelo o que viria em dezembro.

PrisioneirosFlorianópolis, 29 de novembro de 2012 - Ano 1 - Edição 1

É inaceitável que o Exército trate os estudantes como se fossem uma horda de inimigos- Carlos Lacerda

Zuenir Ventura, em 1968 – O ano que não terminou, co-meça sua narrativa numa festa de virada de ano na casa de Heloísa Buarque de

Holanda, onde vários estudantes e intelectuais especulavam sobre como seria o ano seguinte. Os pri-meiros capítulos são para contextu-alizar o que acontecia na época: a censura cada vez maior às artes (ao cinema, ao teatro e a música po-pular); o choque de pensamentos no movimento esquerdista, entre radicais e moderados; e a expecta-tiva que os jovens tinham de acabar com a ditadura militar através dos movimentos estudantis.Quatro anos depois do golpe militar de 1964, na política o clima era de tensão. Quanto mais os jovens sa-íam às ruas para protestar contra a ditadura, cada vez mais o cerco policial se aproximava. No fim da tarde de 28 de março daquele ano, cerca de 300 estudantes protesta-vam contra o aumento de preço das refeições no restaurante universi-tário Calabouço, como faziam qua-se todos os dias, e se preparavam para mais uma passeata. Houve um choque entre estudantes e policiais e um dos PM acertou o jovem Éd-

son Luís Lima Souto, de 16 anos, com um tiro no peito. A morte do primeiro estudante pela ditadura parou a cidade do Rio de Janeiro no dia seguinte. 50 mil pessoas acom-panharam o corpo de Édson Luís ao cemitério São João Batista. Foi após esse episódio que o movimento es-tudantil começou a ganhar apoio popular, culminando na Passeata dos 100 mil.Antes de narrar a Passeata, Ventura conta do choque entre a população (dessa vez não apenas estudantes) e a polícia. Na conhecida como sexta-feira sangrenta, o centro do Rio de Janeiro foi palco de batalhas campais como nunca haviam sido vistas antes. Foram quase 10 horas de luta entre o povo e a polícia. Pes-soas do alto dos edifícios jogavam garrafas, cinzeiros e até uma má-quina de escrever sobre os polícias. Em um trecho do capítulo o escritor conta que “a morte de Édson Luís já tinha provocado uma grande como-ção, a repressão na porta da Cande-lária chocara e indignara, mas o que de fato levou a população a tomar partido, a se revoltar, a entrar fisi-camente na guerra, foi a sexta-feira sangrenta”.Na quarta-feira seguinte, dia 26 de junho, aconteceu a Passeata dos 100 mil. Depois de um acordo feito com o governador do Rio de Janei-ro, o movimento estudantil conse-guiu consentimento para realizar a passeata sem confrontos com a polícia. A consequência de todos os protestos foi uma ditadura ainda mais rígida. Teatros foram fecha-dos, estudantes foram presos e os militares criavam conflitos artificiais para pressionar Costa e Silva a to-mar uma atitude frente aos oposi-

tores. No dia 13 de dezembro o pre-sidente cede à pressão e cria o Ato Institucional número 5 (AI-5). Acaba de vez o que sobrara da democracia no país.Zuenir Ventura faz bem o seu traba-lho ao recordar o ano de 1968. Ele conta os fatos com o maior núme-ro de detalhes possíveis, mas deixa que o leitor tire suas próprias con-clusões sobre os episódios, sem fa-zer juízo de valor. Apesar de não possuir imagens, a narrativa literária de Ventura trans-forma palavras em imagens na men-te do leitor. O escritor sabe como fazer um livro baseado no modelo do Novo Jornalismo. Em uma mes-cla de fatos reais com literatura, o autor faz uma reconstituição base-ada em depoimentos, lembranças e documentos colhidos dos principais

fatos de 1968. Ventura colheu 42 depoimentos de pessoas que vivenciaram 1968 e os usou em sua própria narrativa, dando a impressão que ele mesmo estava presente durante todos os eventos contados. Também con-seguiu informações com a CIA que nunca haviam sido divulgadas an-tes. Além disso, estudou diversos livros e colheu vários dados em jornais, entre eles: Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, O Estado de S. Pau-lo, O Globo, Folha de S. Paulo e Cor-reio da Manhã. Trabalhou também com as revistas: Realidade, Veja, Claudia, Revista Civilização Brasilei-ra e Revista Violão e Guitarra.O autor descreve o ano de maneira cronológica, entretanto em algumas passagens ele cita primeiro o fato em si, para depois explicar como aconteceu, o que causa certa con-fusão no começo da leitura. Muitas vezes ele quebra o clima de tensão, quando o leitor está se perguntan-do “o que vai acontecer agora?”, e insere capítulos aleatórios, sobre o III Festival Internacional de Canção, por exemplo, para contextualizar o cenário político, artístico e social da época. A quebra da expectativa funciona para atiçar ainda mais o leitor. Além disso, acrescenta à obra conteúdo e informações relevantes que não seriam apresentadas se o livro tratasse apenas dos aconteci-mentos mais importantes de 1968. “Assim, debaixo de uma apagada e vil tristeza, o ano chegava ao fim – o ano, o capítulo e o livro. Os dois úl-timos por falta de autor -, também ele, como todo mundo, levado pelo arrastão.” É dessa forma que Zuenir Ventura dá desfecho ao romance de sua geração, jamais esquecida.

O Brasil não esquece as marcas de 1968Livro de Ventura relembra as dores do ano em que Costa e Silva criou um novo ato institucional

Histórias de uma geração e seus heróis

Edito

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Passeata mobiliza o Rio de Janeiro

Zuenir Carlos Ventura é es-critor e jornalista e trabalhou nos mais importantes órgãos da imprensa nacional, com destaque para a revista Visão, onde foi colega de Vladimir Herzog, Paulo Francis e Fer-nando Morais. De Vlado, tor-turado e assassinado durante a ditadura militar, Zuenir foi mais do que um companheiro de profissão, foi um amigo. O escritor também foi vítima do Brasil de 68. Preso em dezem-bro, logo depois da instituição do AI-5, o jornalista só pode ser solto graças a ajuda de Nelson Rodrigues, que ape-sar de ser a favor da ditadura, acabou se tornando um gran-de amigo.Em 2008 lançou uma edição revisada de seu best-seller, com o título 1968 - O Que Fizemos de Nós. O livro traz pequenas reportagens que retratam os tempos atuais, em contraste com os relatos de 1968. Também traz entre-vistas com nomes importan-tes da época, nas quais falam do passado e do presente. Em 1995 ganhou o Prêmio Jabuti na categoria reportagem, pelo livro Cidade Partida. Em julho deste ano lançou o livro Sa-grada Família, romance que mistura memórias próprias com memórias emprestadas – além de ficção pura e simples. A obra foi a mais vendida na Festa Literária Internacional de Paraty. Mas Zuenir não teve sucesso desde sempre. Nasceu em Além Paraíba, numa família pobre e teve que começar a trabalhar aos 11 anos como pintor para ajudar seu pai na profissão. Mais tarde teve a chance de estudar de graça em troca de dar aulas no en-sino primário. Por seu amor a leitura, decidiu cursar letras e se mudou para o Rio de Ja-neiro, onde começou a traba-lhar como jornalista. Aos 81 anos, Zuenir ainda não pensa na morte. “Me surpreendo, várias vezes, fazendo planos para daqui a 20 anos. De re-pente, me toco: ‘Daqui a 20 anos eu vou estar com 101!’”

Um menino pobre

que se tornou um

grande repórter

O autor pesquisou por dez meses

Milhares de pessoas caminharam da Cinelândia até a Candelária para clamar contra a ditadura

PrisioneirosCurso de Jornalismo da UFSC - Atividade da disciplina Edição - Professor Ricardo Barreto

Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Beatriz CarrerServiços editoriais: O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja - Impressão: Gráfica Postmix

Novembro de 2012

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WEles tinham carabina e metralhadora e nós tínhamos apenas foguetes, pedras e molotov

- José Dirceu

O discurso que destruiu a Constituição

O AI-5 é resultado do ano conturbado que foi 1968. Além da Passe-ata dos 100 mil, entre outros eventos impor-

tantes e que culminaram no Ato Institucional podem ser citados a sexta-feira sangrenta, o XXX Con-gresso da UNE e a ocupação militar da Universidade de Brasília (UnB). Mas foi o discurso de um homem que foi definitivo para a criação do novo ato adicional. Márcio Moreira Alves começou sua locução advertindo que o sete de setembro estava próximo e as “cúpulas militares” iriam pedir aos colégios que desfilassem “junto aos algozes dos estudantes”. O deputa-do tentou convencer os pais de que “a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas”. Ainda perguntou: “Até quando o Exército vai ser o valha-couto de torturadores?”. Esse foi o pretexto para Costa e Silva criar o AI-5, quase 100 dias depois e sob pressão dos militares, principal-mente do então ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva.Depois de mais de três meses, no dia 12 de dezembro, o pedido de li-cença de Gama e Silva à Câmara dos Deputados para processar o depu-

tado Márcio Alves perante o Supre-mo Tribunal Federal foi derrotado por 216 votos contra, 141 a favor e 12 em branco. No mesmo dia o Pa-lácio das Laranjeiras reuniu dezenas de militares querendo saber o que Costa e Silva faria a seguir e cobran-do atitudes drásticas. Apesar da in-sistência, principalmente de Gama e Silva, o presidente afirmou que só se pronunciaria na manhã seguinte. Foi o que aconteceu. Às 11 horas do dia 13 de dezembro de 1968, o ma-rechal se reuniu com o seu alto co-mando no Laranjeiras. Gama e Silva propôs seu primeiro ato, mas era tão radical que nem outros generais aprovaram. O ministro da Justiça propunha o recesso do Supremo Tribunal Federal e o fechamento definitivo do Congresso, das As-sembleias e das Câmaras de Verea-dores. Não era o que o presidente queria. O ministro não se abalou e tirou rapidamente da pasta o rascu-nho de outro texto menos drástico. Costa e Silva levou suas anotações das medidas a serem tomadas e, no final, pediu a Gama e Silva e ao de-putado Rondon Pacheco que trans-formassem o esboço no que viria a ser o AI-5. Depois de uma hora Costa e Silva já estava realizando a abertura 43a sessão do Conse-lho de Segurança Nacional com as

24 autoridades mais poderosas do país. Após deixar que todos lessem o rascunho do AI-5, deu a palavra a Pedro Aleixo, seu vice-presidente.Em seu discurso, descrito no livro 1968 – O ano que não terminou, Aleixo afirmou: “Da leitura que fiz do Ato Institucional cheguei à sin-cera conclusão que, o que menos se faz nele é resguardar a Consti-tuição. Da Constituição que é, antes de tudo, um instru-mento de garan-tia dos direitos da pessoa humana e da garantia dos di-reitos políticos, não sobra absolutamen-te nada.” Mesmo com o dis-curso de Aleixo, todos os 22 eleito-res votaram a favor da edição do AI-5 sem apresentar ob-jeções, acabando com o que restara da democracia no Brasil. O Ato durou dez anos e puniu mais de 1.600 pessoas, censurou cerca de 500 fil-mes, 450 peças de teatro, mais de 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas e mais de 500 letras de música.

Márcio Moreira Alves, que chamou o Exército de “valhacouto de torturadores”, propiciou a criação do AI-5

São estes os principais artigos do AI-5, disponível na íntegra no site do senado e decretado em 13 de dezembro de 1968: Art. 1º - São mantidas a Consti-tuição de 24 de janeiro de 1967

e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Na-cional, das Assem-bleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complemen-tar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando

os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. § 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previs-tas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.Art. 4º - No interesse de preser-var a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as

limitações previstas na Cons-tituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos fede-rais, estaduais e municipais.Art. 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamo-vibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.Art. 7º - O Presidente da Repú-blica, em qualquer dos casos previstos na Constituição, pode-rá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo.Art. 8º - O Presidente da Repú-blica poderá decretar o confisco de bens de todos quantos te-nham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuí-zo das sanções penais Art. 10 - Fica suspensa a garan-tia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a econo-mia popular.Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

O que o país se tornou

Jovens revolucionam a cultura

Jornalismo é censurado

Mais do que uma revolução po-lítica, o ano de 1968 foi singular também para a cultura. Apesar do crescente sucesso da televisão bra-sileira, as atrações principais daque-le ano eram provenientes do teatro e da música. Era uma geração mo-vida por grandes festivais. Estava na moda questionar tudo o que era considerado certo: o casamento, a monogamia, a fidelidade, o ciúme, a virgindade. Surgia uma geração de jovens intelectualizados, que re-agiam contra o tradicionalismo cul-tural e sexual. No cinema, nomes como Gláuber Rocha e Jean-Luc Godard já apare-ciam. Mais do que uma indústria ou divertimento, para a jovem van-guarda, produzir filmes significava participar da atividade política do país. Um ano antes, Garota de Ipa-nema, de Leon Hirszman, foi a gran-de produção em cores do Cinema Novo. Em 68 era a vez de Macunaí-ma, Os herdeiros e Dragão da mal-dade. Apesar disso o cinema ainda não era uma referência cultural no país. Os jovens liam muito e muito bem. Nas listas de best sellers os nomes de Marx, Guevara, Mao, Lukács e Marcuse eram uma constante. O li-vro O capital teve sua primeira edi-ção integral em português.O teatro era uma das maiores re-presentações do momento. Peças como Roda-viva, Um rei da vida, Um bonde chamado desejo, atraí-am a atenção de uma geração eu-fórica e com muita sede de cultura.

Apesar de vontade de atuar, muitos profissionais sofre-ram com ameaças e violência. Na estreia de Roda-viva, por exemplo, foram distribuídos panfletos que diziam: “Hoje preservaremos as instalações do teatro e a integridade fí-sica da plateia e dos atores. Amanhã, não!”. Cenas de nu-dez chocaram o público e dois artistas foram sequestrados depois do primeiro espetácu-lo, o que forçou todo o elenco a voltar de Porto Alegre para São Paulo por medo das ame-aças. A temporada deveria se estender por 27 dias, mas aca-bou no primeiro. A música passava por uma nova fase. Com o surgimento da tropicália muitos artistas se consagraram naquela épo-ca, especialmente quatro: Ca-etano Veloso, Tom Zé, Chico Buarque e Geraldo Vandré. Na terceira semana de setembro aconteceu o III Festival Internacio-nal da Canção. Caetano Veloso, an-tes sequer de terminar de cantar a música É proibido proibir, foi alvo de algumas dúzias de ovos, toma-tes, cebolas e vaias. Para compen-sar, ele fez um dos seus discursos mais brilhantes. “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês jamais conterão ninguém! Vocês são iguais sabe a quem? Àqueles que foram ao Roda--vida e espancaram os atores.” E completou: “Vocês estão querendo

policiar a música brasileira.”Os famosos versos “vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer” fizeram sucesso entre os jovens contrários a ditadura. Ca-minhando fez a glória do composi-tor e a desgraça do cidadão Geraldo Pedroso de Araújo Dias Vandregísi-lo. Depois do Festival, Vandré pas-sou a ser uma das pessoas mais visadas pelos militares. Após o AI-5 foi uma das mais caçadas do país. A música de dois acordes virou um hino da época.

Antes sequer de anunciar o AI-5, na quinta-feira a noite, véspera da decretação do ato, os censores do presidente invadiam os principais jornais do país. No dia seguinte, o Estado de S. Paulo foi proibido de circular e parte da edição do Jor-nal da Tarde foi apreendida. No Rio muitos matutinos também não pu-deram ser publicados, assim como em todo país. Os que eram encon-trados sendo comercializados esta-vam completamente censurados. Começava, nesse dia, a década com maior número de obstáculos para o jornalismo de qualidade.A edição do dia 14 do Jornal do Bra-sil conseguiu chamar atenção dos leitores e criou uma tendência. O editor-chefe do diário, Alberto Di-nes, com autorização do diretor, Manuel Nascimento Brito, lançou uma publicação histórica. Com mu-danças que violentavam suas rigo-rosas normas de estilo e bom gosto, era visível que algo estava errado. Naquele dia o jornal foi publicado cheio de clichês, o que não existia no jornal desde a reforma gráfica e redacional de 1956. Mas isso era o de menos. Apesar dos dias ensolarados, a previsão do

tempo anunciava “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está ir-respirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.” No lugar dos edi-torias, foram publicadas duas fotos. Em uma delas um lutador gigante de judô dominava um menino. A ironia da imagem foi acompanhada por seu título: “Força hercúlea”.A revista Realidade, criada dois anos antes, também sofreu mui-to com a repressão e foi uma das maiores perdas no jornalismo bra-sileiro. Continuou sendo comerciali-zada depois da criação do AI-5, mas suas melhores matérias não eram publicadas. As grandes reportagens investigativas perderam o tom de denúncia. O modelo de jornalismo literário, inovador no Brasil, com grandes reportagens em primeira pessoa, fotos criativas e denúncias políti-cas deixou de existir aos poucos e a revista perdeu sua singularidade, tornando-se apenas mais um canal de notícias. A criação da Veja, em setembro daquele ano, prejudicou ainda mais as vendas da Realidade, que em 1976 foi extinta e passou a existir apenas nas lembranças dos jornalistas e leitores.

A peça teatral Roda-viva foi alvo de polêmicas

Chic

o Bu

arqu

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Costa e Silva presidiu de 67 a 69

PrisioneirosFlorianópolis, 29 de novembro de 2012 - Ano 1 - Edição 1

PrisioneirosCurso de Jornalismo da UFSC - Atividade da disciplina Edição - Professor Ricardo Barreto

Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Beatriz CarrerServiços editoriais: O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja - Impressão: Gráfica Postmix

Novembro de 20121-B