jornal lampião - 23ª edição

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Jornal-laboratório I Jornalismo UFOP I Ano 6 - Edição Nº 23 - Julho de 2016 Arte: Deborah Alves

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O Jornal Lampião é uma publicação laboratorial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto. Julho de 2016

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Page 1: Jornal Lampião - 23ª Edição

Jornal-laboratório I Jornalismo UFOP I Ano 6 - Edição Nº 23 - Julho de 2016

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Page 2: Jornal Lampião - 23ª Edição

2ARTE: CAROLINA CARLI

Julho de 2016

Fazer-ver o que nos toca

Como ver o mundo e fazer-ver? Essas são inquietações que nos acompanham duran-te o percurso de aprendizado no curso de Jornalismo. Por vezes, sentimos um incômodo provocado pela percepção da incapacidade de se falar da realidade do jeito que a sen-timos. É sabido que o “ide-al da objetividade” caiu por terra, mas temos que conviver com o fato de que nossa ta-refa é reportar acontecimen-tos e as “verdades” próprias deles. E assim vivemos essa busca por aquilo que nunca alcançaremos de fato.

O que fazemos é desnatu-ralizar essa realidade fugidia e empreender o ato de narrar. Nessa operação, as “verda-des” se transformam em pro-cesso e escrevemos por ten-tar dar sentido a elas. Sentido, nesse caso, como direção, ca-minho que é aquele pelo qual nos damos conta das contra-dições da vida. À vista disso, expomos os problemas e pa-radoxos que nos tocam e des-sa maneira nos tornamos con-tadores de histórias que se importam com o mundo.

É preciso lembrar que pri-meiro o jornalista é afetado pelas coisas para depois as relatar. Recuperar esse passo inicial que damos até termos um texto publicado é justa-mente entender que o jorna-lismo inevitavelmente se afeta.

Portanto, temos que tomar este fato como condição da nossa feitura jornalística e também as-sumi-lo para pensar nossa ética diante da sociedade.

Quando seguimos ao encon-tro do outro, realizamos nosso ofício. Aprendemos com o filó-sofo Spinoza que se nesse mo-mento as pessoas aumentam as suas potências de agir no mun-do, aí temos um bom encontro. Desse modo, construímos possi-bilidades para fazer a mudan-ça que queremos. Perceber es-tas operações faz diferença e é reafirmar as questões éticas que nos movem.

Tal qual o velejador Amyr Klink, partimos em direção a ter-ras desconhecidas e retornamos com nossas experiências e nar-rativas. Em seu livro Mar sem Fim ele diz “Um homem preci-sa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arro-gância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não sim-plesmente como é ou pode ser”. Afinal, contar essas histórias é uma tentativa de se reorientar em nossa realidade desconcertante.

Partindo disto, a edição 23 do LAMPIÃO se revela como atenta ao que a afeta. Nela damos atenção aos distritos de Mariana e Ouro Preto. Em Antônio Pereira, as mães e filhos abandonados pelos pais trabalhadores temporários de mineradoras. Em Lavras Novas, a obra não concluída

da ponte que dá acesso à localidade. Em Miguel Burnier, a reinvindicação de melhorias na infraestrutura da região quase que esquecida pelo poder público.

No especial tocamos em um ponto delicado, traumas. Nele falamos sobre as pessoas que veem-se abaladas psicologica-mente pelo rastro da lama em suas vidas e como elas es-tão fazendo para se reinventar. Essa capacidade de criar mo-dos de vida possíveis que po-demos chamar de resistência. Ato que também está presente na iniciativa de um espaço cul-tural em um bairro periférico que se inscreve fora do circuito turístico de Ouro Preto.

Nas outras páginas, man-temos a sintonia com o que acontece em nossa região. As implicações sociais do porte de arma de fogo pela Guarda Municipal de Mariana. Como andam as obras de restaura-ção das igrejas no primeiro município de Minas. E por fim, no ensaio fotográfico, músicos e suas cordas que fazem eco-ar pelas ruas, respiros sonoros no corre-corre diário.

A partir do que vimos e sentimos, retornamos na espe-rança de que bons encontros sejam possíveis. Nessa lida, so-mos tal qual ponte pela qual fazemos as narrativas do outro reverberarem, tornando-as visí-veis pela luz de um lampião.

O coração que teima em bater

Jornal-laboratório produzido pelos alunos do curso de Jornalismo - Instituto de Ciências Sociais e Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto - Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza, - Diretor do ICSA - Prof. Dr. José Benedito Donadon Leal, - Chefe de Departamento: Profa. Dra. Virgínia Alves Carrara, - Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Jan Alyne

Barbosa Prado - Professoras Responsáveis: Karina Gomes Barbosa (Reportagem), Ana Carolina Lima Santos (Fotografia) e Talita Aquino (Planejamento Visual) - Editor-chefe: Matheus Santiago - Editora de Texto: Ticiane Alves - Sub-editora de Texto: Luana Carvalho - Editora de Arte: Deborah Alves - Editora de Fotografia: Jéssica Corona - Editor Multimídia: André Ferrari - Repórteres: Amanda Granado, Ana Paula Bitencourt, André Nascimento, Caio César Gomes, Caio Franco, Caroline Borges, Iara Campos, Ingryd Rodrigues, Isabela Resende, Janaína Oliveira, Luísa Campos, Mariana Macedo Botão, Mariana Viana, Mateus Carvalho, Priscilla Rocha, Rayssa Amaral - Fotógrafos: Ana Rafaela, Andressa Goulart, Caroline Fernandes, Júlia Rocha, Laís Stefani, Luccas Gabriel, Matheus Gramigna, Paula Locher, Priscila Santos, Samuel Consentino - Diagramadores: Brunello Amorim, Carolina Carli, Gabriela Vilhena, Mariana Ferraz, Moises Mota, Nathalia Fiuza - Repórteres Multimídia: Felipe Augusto Passos Macedo, Mariana Brito - Designer Multimídia: Felipe Nogueira - Repórter Audiovisual: Thatiana Zacarias - Revisão: Anna Chaves, Wendell Soares - Monitoria: Carol Vieira, Caroline Hardt, Clarissa Castro, Hariane Alves - Tiragem: 3000 exemplares - Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro, Mariana – MG. CEP: 35420-000

JÉSSICA CORONA

EDITORIAL OMBUDSMAN

CRÔNICA

Ticiane alves

Nenhum lugar é tão nosso quan-to aquele que nos dá o sentimen-to de casa. Ofício nenhum é tão bom quanto aquele que nos apai-xona. Nunca haverá nenhuma pes-soa que nos pareça mais querida do que aquela que escolheu seguir com a gente. A ditadura social nossa de cada dia corrompe as convicções dos humanos sobre o que ser, quem amar e pelo que lutar. Nosso corpo dói em cada esquina.

Não adianta tentar explicar o porquê do amor às pequenas certe-zas da vida, pois outras pessoas, até terem vivido isso, não vão conse-guir entender. Ninguém sabe men-surar o quão único era aquele lugar-zinho que se perdeu na lama ingrata,

a não ser quem por lá viveu e sen-tiu a dor de ver sua história se trans-formar em escombros. É preciso, às vezes, dizer não à opinião de quem julga saber só porque leu em algum lugar que é assim.

O jornal é uma esperança para contar o que temos que saber. Con-tudo, será que é ainda possível fazer um jornalismo diferente, em tem-pos de padronização da mídia regida por interesses políticos? O jornalis-mo precisa se apoiar na vontade de querer vencer a sua própria arrogân-cia e dar razão aos que dele realmen-te precisam. Ver a dor do outro é vi-tal para a continuidade do mundo. Todos entendem isso?

A cidade está tão violenta, os amores, tão fugazes, nós sabemos bem. A política está repleta de pes-

soas nas quais a gente não se re-conhece. Entretanto, ainda assim há no que acreditar. Existe for-ça vindo das minorias que neces-sitam aparecer para sobreviver ao caos do dominador.

De silenciosos espaços vêm as vozes dos indivíduos que estão à margem do mundo. A pichação do ônibus nos diz que alguém tem sede de mostrar sua arte para o mundo. Há quem não queira se envolver, é fato, mas existem também pessoas que querem usar seu conhecimen-to, ou mesmo seu prestígio, para fa-zerem bem ao próximo. Vale a pena contrariar as expectativas de quem é contra a luta do povo oprimido. É urgente a resistência ao que nos toma o direito de escolher digna-mente como viver.

FOI MAL

A matéria especial “Moradias à margem”, publicada na edição 22 do LAMPIÃO, trouxe dados incorretos. O nome do Conjunto Habitacional em que foram construídas 90 casas é Vila Alegre, e não Alto do Beleza, como foi informado. O bairro de Ouro Preto é São Francisco, não Morro do Santana.

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“Estou tentando entender”naTália GoularT*

Na edição 22, “Propriedade de quem”?, o LAMPIÃO (re)volta-se. Trazer, mais uma vez, testemunhos da tragédia que assolou Bento Ro-drigues para testemunhar. Proble-matizar e deixar vir à tona questões do cotidiano que se repetem e vio-lentam a margem todos os dias é, sobretudo, tentar buscar um sen-tido. Além disso, “trazer a públi-co as exigências para uma socieda-de mais justa”, nos diz o editorial da edição anterior.

Assim, o LAMPIÃO volta. A escrita, as fotos, tudo ainda ela-bora. Voltar... Não para resgatar e completar o passado, tarefa im-possível, mas, para testemunhar a desmemória, um ‘sopro de vida’. Voltar, para testemunhar o des-caso dos governantes locais da região e sua cegueira.

Ao ir tentando escrever e en-tender o fio desse texto, me vie-ram à memória duas classificações que aprendemos no curso de Jor-nalismo, mais exatamente, a respei-to da notícia. Uma delas é a divi-são entre notícia quente ou fria. A notícia quente, e o nome já diz, é a notícia do instante. A fria, digamos que é passada, velha. Nesse senti-do, uma norma é imposta ao texto, aos acontecimentos, ao tempo.

Ora, o texto jornalístico é só isso, um texto quente ou frio? Do presente ou do passado? Mas, pergunto outra vez e repi-to uma questão que, acredito, per-segue alguns discursos jornalísti-cos: a escrita jornalística pode, para além das divisões?

Já havia dito, ao comentar a edi-ção 21, que é preciso pensar para além do número 2, ou seja, para além do pensamento binário. E o aprisionamento do tempo do texto só faz repetir as polarizações, as cai-xas. Isso de voltar não diz respeito a

uma notícia fria, velha, mas a uma tentativa de (re)criar, com a palavra, alguns pedaços já esquecidos e que, rapidamente, nós sabemos, perdem valor, se esgotam para alguns. Po-rém, o tempo do texto é outro, é, na verdade e será, o tempo do leitor. E o tempo do leitor nós não sabemos e, por vezes, nem ele mesmo sabe.

Roland Barthes nos abre uma li-ção, a de que o texto é múltiplo, aberto, possuí várias vozes, é tex-tura, tem camadas, está inscrito em outra instância temporal. Tal-vez seja preciso que a escrita volte, que o LAMPIÃO volte, como fez na última edição, para então, rein-ventar-se. É preciso voltar a Bento Rodrigues... Recordar, repetir, ela-borar, nos convida Sigmund Freud. “Estou procurado, estou procu-rando, estou tentando entender”, nos apresenta Clarice Lispector, a travessia, o por vir.

*Natália Goulart é jornalis-ta e participou da 1ª edição do LAMPIÃO

Page 3: Jornal Lampião - 23ª Edição

3ARTE: CAROLINA CARLI

Julho de 2016

Mais armas em Mariana Além da Polícia Militar, Guarda Municipal também será armada; prazos de implantação e investimentos ainda não estão definidos

CIDADES

Vigilância. Câmeras monitoram pontos centrais da cidade

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Atuação. Agentes exercem trabalho preventivo e educativo; armamento amplia natureza das operações

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Janaína oliveira

e rayssa amaral

O Estatuto Geral das Guardas Municipais determina alguns princí-pios básicos de atuação, como pro-teger de forma preventiva a socieda-de civil, garantir os direitos humanos fundamentais, e auxiliar nos serviços de segurança pública. Já no estatuto vigente para outra categoria de segu-rança pública, a Polícia Militar (PM), a estrutura prioriza conceitos como hierarquia, ordem, disciplina, força e, principalmente, combate. Apesar de ambos não exercerem a mesma função, a lei nº 13.022 de 2014 per-mite o uso de armas de fogo para as guardas em municípios com mais de 50 mil habitantes. É isso que Mariana, com 60 mil moradores, irá fazer em breve.

Embora a medida seja polêmica, principalmente para grupos de direi-tos humanos, o porte de armas pelas guardas já foi implementado por ci-dades como São Paulo, Rio de Janei-ro e, recentemente, Belo Horizonte. Além das grandes capitais, Mariana oficializou, no dia 18 de abril, o inte-resse no armamento da Guarda Mu-nicipal. O requerimento n°42/2016, de autoria do presidente da Câmara de Mariana e integrante da guarda, Tenente Freitas (PHS), foi aprova-do por unanimidade entre os 15 ve-readores. Segundo o comandante da GM, João Maurício Correa da Silva, o pedido veio a partir dos próprios agentes, baseado no Estatuto do Desarmamento, de 2003, que insti-tui as normas gerais para as Guar-das Municipais, e que prevê a per-missão do armamento para cidades acima de 500 mil habitantes - medi-da modificada pela lei de 2014.

Para debater o tema, no dia dez de maio foi realizada uma audiên-cia pública promovida pela Prefeitu-ra, no Centro de Convenções, com a presença do Ministério Público, das polícias Civil e Militar, da Prefeitu-ra Municipal, além da sociedade ci-vil. Quem falou foi a favor do arma-mento da GM, que teve a permissão assinada pelo prefeito Duarte Junior (PPS) após a audiência.

Segundo o comandante Maurí-cio, Mariana é uma cidade diferente de outros municípios, onde a guarni-ção é dividida por setores e a equipe local realiza diversos trabalhos com apenas um comando. Os 122 agen-tes atendem a diversas demandas, como o administrativo, preservação da ordem pública, ações educativas, guarda patrimonial, rondas escolares e a defesa civil.

Na atuação, eles se deparam com diversas modalidades de de-litos como roubo e apreensão de armas de fogo ilegais com possí-veis conflitos. Na tentativa de res-guardar a segurança do agente, ad-mitem que diversos chamados não são atendidos. “Vendo a necessida-de de prestar uma segurança mais efetiva e pensando na proteção dos agentes, vimos que é primordial ter uma guarda armada e mais trei-nada para situações de conflito”, destaca o comandante.

Maurício ainda esclarece que, com o armamento, o órgão irá rea-lizar o mesmo trabalho, respeitando

outras instituições ativas no municí-pio, que são as polícias Civil e Mili-tar. “As armas só serão utilizadas em situações de conflito, como o caso das armas não letais que foram en-tregues ao comando.” Com um ano do recebimento das pistolas Sparks, as chamadas armas de choque, só foram utilizadas duas vezes, segun-do o comandante, e em casos de le-gítima defesa dos guardas.

Segurança pra quem?Um agente de segurança pública

consultado pelo LAMPIÃO acredi-ta que as guardas não deveriam re-alizar o trabalho da Polícia Militar. Para ele, as mudanças podem causar novos problemas, e não soluções. “O poder de polícia para um guar-da municipal é problemático, porque ele não tem prerrogativas de um po-licial. A partir do momento que se armarem, vão partir para o confron-to, não vão acionar a PM. Assim, podem existir o maior dos proble-mas que é a troca de tiros. Isso pode tirar a vida de pessoas inocentes ou a vida do guarda. Além disso, ele (o guarda) não possui a mesma imu-nidade que um militar, e isso pode gerar problemas para ele mesmo se algo fugir do controle”, explica.

O agente ainda questiona a falta de investimento em efetivo da PM e afirma que o treinamento dado à guarda não é suficiente. “Nesse caso, por que não aumentar o efetivo da Polícia Militar? A PM possui coman-do, treinamento e ainda assim ocor-rem diversas irregularidades. O guar-da municipal não tem preparo para se armar, nem é essa a função dele. O próprio nome já diz: a função é de ‘guardar’ o patrimônio, o bem públi-co e auxiliar os serviços de seguran-ça dos municípios”, destaca.

Para o secretário municipal de Defesa Social, tenente Braz Azeve-do, a falta de um maior efetivo da PM em Mariana tem relação com a crise econômica e a evasão de milita-res na região. “Tem a questão do in-vestimento, o Estado passa por di-ficuldades financeiras. Além disso, tem aqueles militares que passam em concursos e são designados para

ficar longe de casa. Existe a vontade de pedir transferência. Então, o efe-tivo que se forma hoje na PM não dá conta de suprir a necessidade pra fa-zer frente à criminalidade”, justifica.

O efetivo para segurança públi-ca é preocupante na cidade. A Com-panhia da Polícia Militar de Mariana conta com 72 policiais, distribuídos em quatro locais: Mariana, a cidade de Diogo de Vasconcelos e dois dis-tritos, Santa Rita Durão e Monse-nhor Horta. Para o capitão da PM Giovanni Mendes, a guarda cumpre um papel complementar da seguran-ça, que, mesmo armada, não teria a mesma função que a PM. “São duas instituições distintas. A Polícia Mili-tar não tem nenhum convênio com as ações realizadas pela guarda.”

Contradições Dados do Fórum Brasileiro de

Segurança Pública (FBSP) mos-tram que todo o Brasil está gastando mais, embora não necessariamen-te melhor, na área de segurança. As despesas do país com essa finalidade representaram quase R$ 50 bilhões em 2010; em 2003, foram menos da metade, R$ 22,6 bilhões. Apesar do alto investimento, a taxa média brasileira de homicídios aumentou com o passar dos anos. O percen-tual saltou de 21,9 mortes para cada 100 mil habitantes em 2011 para 28,9 homicídios em 2014. Isso por-que, segundo a pesquisa, o país pre-fere investir mais em repressão do que em prevenção.

Segundo informações da Polí-cia Militar de Mariana, a taxa anual de homicídios entre os anos de 2012 e 2015 não ultrapassou 17 casos. O ano mais violento foi 2014, com 175 ocorrências que envolveram agres-sões, uso de armas brancas (qual-quer tipo de instrumento de ataque ou defesa), além de armas de fogo. O investimento em segurança pú-blica da PM vem do Estado de Mi-nas Gerais. Além das armas calibre .40, a PM ainda dispõe de equipa-mentos como bastão Tonfa, bastão de madeira, gás de pimenta, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha.

Já o valor do investimento no uso do armamento pela Guarda Municipal ainda não está previsto. O processo depende da liberação da Polícia Federal e do Convênio de Cooperação Técnica com a Polícia Civil, para saber quanto a Prefeitura deve gastar. Além disso, para se ar-mar, a Guarda de Mariana precisará cumprir requisitos da Polícia Fede-ral como corregedoria Interna, feita pela própria guarda; ouvidoria exter-na, realizada pela prefeitura; treina-mento físico e psicológico, atualiza-do a cada dois anos, feito por uma escola credenciada pela PF, no caso de MG, a Academia de Polícia Ci-vil de Minas Gerais (Acadepol). Para fiscalizar as etapas desse proces-so, uma comissão foi criada dentro do órgão e conta com três agentes Franks Ricardo Vieira, João Marcos Oliveira e Júnior Vicente Gomes.

O comandante Maurício explica que essa parceria é essencial para di-minuir os custos com o armamento da Guarda. Segundo ele, o valor in-vestido ficará em torno de R$ 300 mil. Com a parceria aprovada, o trei-namento fica a cargo da Acadepol, o que reduziria em 50% os custos.

Se a Guarda Municipal de Mariana adquirir o armamento, a quantida-de de policiais e agentes com por-te de armas na cidade pode pas-sar de 72 para 194, quase o triplo da situação atual.

Tecnologia para a segurança pública

Segundo o Capitão da Polícia Mi-litar, Giovanni Mendes, todo o siste-ma da Polícia Militar é informatiza-do, utilizando o Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), que integra todas as ocorrências a um sistema estadual. O problema do recurso é a falta de integração das Guardas Municipais, que realizam o armaze-namento das ocorrências em siste-ma próprio. Como não está conec-tado ao sistema estadual, não gera estatísticas sobre criminalidade.

Sem outros investimentos pelo Estado para a segurança pública, a PM utiliza a rede social Whatsapp para integrar a comunidade ao tra-balho de prevenção de delitos. Em Mariana foram criados dois gru-pos, “comerciante seguro” e “vizi-nhos protegidos”. Pela rede, os ci-dadãos informam a PM sobre os crimes suspeitos, para que uma via-tura possa ser enviada para o local.

Além do uso de segurança priva-da, como câmeras e alarmes que aju-dam a polícia a identificar suspeitos, existe uma rede de câmeras espalha-das por diversos pontos de Mariana, com uma central que mantém três agentes em quatro turnos para co-brir as filmagens em tempo integral. Mas o que deveria promover a se-gurança nem sempre é eficaz. Com 32 câmeras, apenas 20 estão fun-cionando. O restante depende de manutenção pela prefeitura.

Segundo o comandante Maurí-cio, o investimento das câmeras fi-cou em torno de R$ 2 milhões. A posição das câmeras é estudada para serem remanejadas para lo-cais que realmente necessitem de atenção. Além do problema da fal-ta de manutenção, o sistema de vi-gilância armazena as imagens por apenas 15 dias. Após esse período, as imagens são apagadas.

PREÇOS DE EQUIPAMENTOS E ARMAS NÃO LETAISBomba de gás lacrimogênio

R$800,00

Bala de borrachaR$115,00

(cartucho com 12 balas)

Granada de luz e som

R$205,22

Spray de pimenta

De R$29,99 a R$99,90

Colete à prova de balas

De R$1000,00 a R$4000,00

Pistola Sparks

R$2100,00(cada munição R$100,00)

Page 4: Jornal Lampião - 23ª Edição

4ARTE: NATHALIA FIUZA

Julho de 2016

Entre promessas e descasoMunicípio e Estado liberaram verba para reinvidicação antiga dos moradores de Lavras Novas, mas a obra não foi concluída até hoje

ex-prefeito Ângelo Oswaldo mandou rezar uma missa no local, ainda sem finalizar os trabalhos. Júlio César Ribei-ro dos Reis, atual secretário de Obras de Ouro Preto, não res-pondeu até o fechamento da edição por que a reforma da estrada de Lavras Novas não continuou em 2013, mesmo com o dinheiro liberado.

O projeto da Epsilon En-genharia, aprovado na licita-ção, já alertava para importân-cia do asfaltamento da área e do alargamento da ponte des-de 2012, época em que o dis-trito recebia o triplo da po-pulação aos fins de semana e cerca de 500 carros passavam pela estrada. De acordo com a visão do projeto, calculou-se uma taxa de aumento do volu-me de carros em 2,5% ao ano. Para os moradores o desca-so é perceptível. “Perdi a es-perança politicamente” reite-ra Manoel Maia, 75, morador .

População pede melhorias

Precariedade. Distrito de Miguel Burnier sofre com negligência do poder público

DISTRITO

Mariana Macedo Botão

Motoristas que atravessam a ponte todos os dias em ca-minhões, ônibus, carros e mo-tos têm medo. Quando chove, a lama toma conta do espaço estreito e buracos dificultam a passagem. A obra de asfalta-mento entregue, incompleta, no fim de 2012 já precisa de manutenção. Moradores e tu-ristas reclamam da dificuldade causada por buracos e trechos que não foram pavimentados. A reinvidicação é um sonho antigo dos residentes.

Dos sete quilômetros que compõem a estrada de aces-so a três distritos (Lavras No-vas, Santa Rita de Ouro Pre-to e Santo Antônio do Salto), e que deveriam ser atendidos pela pavimentação, apenas cinco km foram asfaltados. Foram previstas iniciativas da prefeitura e do Governo Esta-dual. Nenhuma foi concluída.

Além disso, próximo ao quilômetro dois, há uma di-visão na estrada que está es-quecida: a ponte. Conhecida como “Ponte do Rio Falcão” ou “Ponte dos Taboões”, ti-nha reforma integrada ao pro-jeto de asfaltamento. De acor-do com a licitação 19/2011, aprovada pela Comissão Per-manente de Licitação de Ouro Preto em 14 de fevereiro de 2012, a Etros Engenharia es-tava apta a receber o valor de R$ 3.465.650,15 para realizar a obra completa da estrada.

Segundo o engenheiro Re-nilson Martins, servidor da Prefeitura de Ouro Preto en-carregado de fiscalizar e con-trolar a execução dos serviços, a obra foi interrompida devi-do à mudança de governo. Jú-lio Maia, 52 anos, morador do distrito, contrapõe esse argu-mento e diz que a gestão pas-sada chegou a inaugurar o tra-jeto inacabado e mal feito. O

PavimentaçãoA obra começou em mar-

ço de 2012. A empresa Etros Engenharia, vencedora da li-citação, ficou responsável por pavimentar 5,3 km da estrada, incluindo a ponte. Mas isso não aconteceu. O LAMPIÃO apurou que há menos de três cm de asfalto em alguns tre-chos, enquanto o projeto esta-belece cinco cm de espessura, seguindo a norma 031/2006 do Departamento Nacional de Infraestrutura de Trans-portes (DNIT). “Não vi en-genheiros medindo asfalto e nem a ponte, até porque ela nunca foi feita. O que vi foi uma obra eleitoreira, na maior rapidez”, diz Júlio Maia.

Os taludes deveriam ga-rantir a estabilidade da encos-ta para não acontecer desli-zamento de terra na estrada, mas já estão caídos. Oscar Ne-ves, morador do distrito, rela-ta que a Prefeitura de Ouro

Preto joga terra na estrada e na ponte para tentar ameni-zar a profundidade dos bura-cos. O problema é que a terra escoa com a água da chuva e traz consequências para o Rio Falcão, como o assoreamento.

PonteOscar sofre com a poei-

ra avermelhada diariamente. Por morar em uma casa qua-se em frente à ponte, acompa-nha o aumento do volume de carros durante feriados e fins de semana e diz que o trecho já chegou a ficar engarrafado, impossibilitando a passagem.

De acordo com a proposta da Etros Engenharia, o valor destinado à reforma da pon-te foi de R$ 67.828,27. Porém segundo todos os moradores entrevistados, a ponte nunca foi reformada. O LAMPIÃO solicitou as medições e relató-rios dessa obra mas a Secre-taria de Obras de Ouro Preto afirmou que os documentos não se encontram no órgão.

ContradiçõesRenzo Luciola, diretor fi-

nanceiro da Etros, afirma que o ex-prefeito Ângelo Oswaldo mandou parar a obra pela ne-cessidade de uma licença am-biental. Porém, a licença emi-tida pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente foi en-tregue por Ângelo Oswal-do, perto do fim do mandato, pessoalmente a Wander Les-sa, então presidente da Mesa Administrativa Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas. “Os mo-radores querem saber o real motivo pelo qual não foi dado andamento da obra naqueles trechos”, diz Wander.

Em entrevista, Renzo afir-ma que recibos da obra já es-tão no “arquivo morto” e não

se lembra quanto foi pago pela prefeitura. No entanto, no contrato a Etros assume a responsabilidade de prestar manutenção até cinco anos após entrega. Isso significa que tem que corrigir e recons-truir imediatamente toda ou parte da estrada em que se ve-rificarem os defeitos.

O LAMPIÃO recebeu de um morador de Lavras No-vas um dossiê que aponta R$ 3.465.650,15 em tabela de pa-gamentos da prefeitura, mon-tante similar ao valor da lici-tação. Contudo, no site da Transparência da Prefeitura não há dados de pagamentos de 2011 e 2012, mas em 2013 há R$ 46.601,55 destinados à Etros Engenharia também para obras de pavimentação.

Caminhos de MinasO Governo Estadual, por

meio do Departamento de Estradas e Rodagens de Minas Gerais (DER/MG), custearia o calçamento de 1,8 km da es-trada, trecho que faz parte da Serra de Lavras Novas. Em áudios divulgados pelo Jornal Tribuna Livre em 2012, Ânge-lo Oswaldo confirma a parti-cipação no programa Cami-nhos de Minas, previsto para terminar em março de 2013. Até hoje, nenhum quilômetro do trecho foi calçado. No site do DER consta ainda o valor de R$ 1,5 milhão para asfalta-mento do distrito, referente a uma licitação de 2009.

Por meio da assessoria da Secretaria de Cultura de MG, Ângelo Oswaldo informa que tomou “todas as medidas ca-bíveis e pertinentes à con-clusão da obra” e destaca o princípio da continuidade da administração pública. A Pre-feitura de Ouro Preto não res-pondeu a reportagem.

Atraso. Interrupção no asfaltamento da estrada dos Taboões, prevista para 2013, dificulta acesso a localidades

caroline Borges

Localizado a cerca de 40 km de Ouro Preto, Miguel Burnier é o distrito de maior extensão territorial dos 13 pertencentes à cidade. O aces-so se dá por estradas de terra e no caminho é possível reco-nhecer a ação mineradora na região, que vem desde o sécu-lo XVIII e hoje se concretiza com a empresa Gerdau Aço-minas, atuante desde o iní-cio dos anos 2000. O distrito sempre teve a ocupação urba-na associada à exploração de recursos naturais e passa por um acelerado êxodo popula-cional. Apesar do fenômeno urbano, a população local re-siste e atualmente conta com 256 habitantes. No entanto, enfrenta diversos problemas referentes à qualidade da vida precária e encara dificuldades para atender suas demandas.

Para o morador Valdir Pinto da Rocha existe défi-cit de serviços e muitas ques-tões urgentes a serem atendi-das, como educação, saúde, transporte e asfaltamento da região. Foram esses proble-mas que levaram os morado-res a procurar o promotor de

justiça Domingos Ventura de Miranda Júnior, da 4ª vara da Comarca de Ouro Preto. Ao saberem que uma verba seria liberada para a restauração de uma igreja e de um forno, he-rança da antiga Usina Wigg na região, habitantes de Miguel Burnier pediram que o dinhei-ro fosse revertido na pavi-mentação das vias que levam à cidade, já que a poeira levanta-da pelos caminhões é a maior queixa dos residentes. Para eles, é necessário que os pro-blemas do distrito sejam re-solvidos primeiro, para depois investirem no patrimônio.

“Essas verbas são investi-mentos da Gerdau para cum-prir condicionantes ambien-tais, estipuladas em 2013 em um contrato com a Prefei-tura de Ouro Preto, e fazem parte de medidas paralelas aos investimentos públicos, de modo que o dinheiro não pode ser revertido para ou-tro fim”, esclarece o promo-tor. Segundo ele, o contrato prevê uma série de ações am-bientais e culturais para que a empresa continue atuando na região. Dentre essas condicio-nantes estão a reforma da es-tação ferroviária do distrito, a

musealização da antiga Usi-na Wigg e a apresentação de proposta de restauração e es-tudos visando o tombamen-to das igrejas Nossa Senhora Auxiliadora dos Calastróis e Nossa Senhora do Chiqueiro dos Alemães, ambas do século XVIII. A Gerdau não se ma-nifestou sobre o assunto.

A fiscalização da empre-sa é responsabilidade do mu-nicípio de Ouro Preto, assim como a prestação de qualida-de de serviços à região. Ape-sar das iniciativas, é impossí-vel não notar o abandono e descaso em Miguel Burnier. “Muitas vezes faltam as coi-sas, as ruas, a iluminação, al-guma área de lazer que aqui a gente não tem. Tem também a escola, que só vai até o 9º ano, depois temos que nos deslo-car até Congonhas, enfren-tando a BR-040 toda dia, um trecho perigoso, no meio da mineração da Gerdau. Con-tudo a questão mais impor-tante é a saúde”, elenca Waly-son Roberto de São Severino Bonifácio, 20 anos. “Meu avô está com 80 anos e tem que se deslocar daqui para Cacho-eira do Campo para fazer um exame de sangue. O postinho

(posto de saúde da região) só faz o básico”, reclama.

A apropriação da minera-dora sobre a região é outro as-sunto recorrente. Na tenta-tiva de preservar o distrito, o governo do estado toma me-didas junto a órgãos federais. Desde 2012 são feitos licen-ciamentos ambientais que vi-sam expandir o empreendi-mento da Gerdau Açominas acompanhados pelo Minis-tério Público. Neles constam

diversos possíveis impactos ambientais como redução da abundância e riqueza das es-pécies, alteração da qualidade da água distribuída, dos níveis de qualidade do ar pela emis-são de gases e da pressão so-nora por conta do aumen-to dos equipamentos usados. Essa expansão também gera-ria mais incômodos aos mora-dores, devido ao aumento do ruído e da poeira pelo maior tráfego de veículos de grande

porte, além da possibilidade de acidentes envolvendo a po-pulação que circula com fre-quência nas proximidades da empresa. Algumas das condi-cionantes são cumpridas, no entanto é preciso um constan-te acompanhamento dos em-preendimentos da Gerdau. “Esses licenciamentos estão em andamento para não per-mitir que o crescimento da mineração sufoque o distri-to”, relata o promotor.

LAÍS STEFA

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5ARTE: NATHALIA FIUZA

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pressão durante ou após o parto ou até um afastamento da função ma-terna. Pode haver uma posição da mãe em rejeitar o filho por não ser uma criança desejada, já que o pai não está mais ali”, explica.

Para tentar combater a incidência de gravidez indesejada no distrito, as empresas apostam em cursos sobre educação sexual nas escolas como forma de orientar sobre os diversos métodos contraceptivos. “São proi-bidas festas e a entrada de mulheres nos alojamentos. É claro que toda regra tem sua exceção, mas se o tra-balhador for denunciado, ele é demi-tido”, conta Sônia Carvalho, técnica do Centro de Referência de Assis-tência Social de Antônio Pereira.

No entanto, as empresas não se comprometem com as mães deixa-das em Antônio Pereira. O auxílio na investigação do paradeiro do pai é viável, já que os dados dos traba-lhadores são obrigatoriamente regis-trados durante o processo de contra-tação. Muitas mulheres não sabem por onde começar a busca, quan-do a justiça precisa apenas de infor-mações simples, como nome, ende-reço e número de documento para localizar e dar entrada no processo de registro de paternidade.

O histórico de filhos deixados com as mães é grande. De acordo o Censo Escolar 2012, mais de 5 mi-lhões de crianças não têm o nome do pai na certidão de nascimento. É feita vista grossa para uma cultu-ra de abandono paterno que é co-mum, mas não normal. De acordo com a professora de Serviço Social Sara Martins, é cobrado da mulher o amor e cuidado pela criança, eximin-do o pai da função. “O homem pode sair e ganhar o mundo, viajar, estu-dar, trabalhar fora. Ele não precisa ter esse compromisso com os filhos, porque não é dado a ele o papel de amor incondicional e de afeto. Isso que aparece naturalizado é construí-do a partir da exploração do homem sobre a mulher”, acredita.

A responsabilidade da criação é um dever que não deve ser negligen-ciado ou cumprido por apenas uma das partes, e recusas ao reconheci-mento legal são injustificadas e ile-gítimas, afirmam as especialistas. O afeto familiar é um direito funda-mental da criança garantido pelo Es-tatuto da Criança e do Adolescente, e é independente das condições em que foi gerada. “Há essa ideia de que o homem pode abandonar, material-mente e afetivamente. Isso tem a ver com uma cultura extremamente pa-triarcal e que resulta no machismo, que vai criminalizar e culpar a mu-lher. Isso é muito comum”, expli-ca Sara. A pesquisadora lembra que, nessa cultura, o julgamento vai sem-pre sobre a mulher: “A mulher que não se preveniu, que não se cuidou, que não evitou a gravidez. A culpa vai ser sempre da mulher”.

*Nomes fictícios para preservar a identidade das crianças.

Histórias das mulheres de Antônio Pereira abandonadas grávidas

Priscilla rocha

Com cerca de 4.500 habitantes, o distrito de Antônio Pereira rece-be um grande fluxo de trabalhadores durante as chamadas “expansões” das mineradoras. A população flutu-ante, que chega a milhares durante os meses de atividade, vem de diver-sos lugares do país e se hospeda em alojamentos garantidos pelas empre-sas. Com o distrito cheio, é comum o envolvimento entre as mulheres locais e esses homens. Às vezes, a relação resulta em uma gestação não planejada, em muitos casos marcada pelo abandono paterno.

A incidência da partida do pai após a descoberta da gravidez em Antônio Pereira é grande. Quando encerram a atividade para a qual fo-ram contratados, esses trabalhadores voltam para suas cidades e não pres-tam auxílio às mulheres. Muitos for-necem informações falsas a fim de não serem encontrados pelas mães dos filhos que abandonam no distri-to. Assim, retornam para suas vidas, suas famílias, e desprezam mães e filhos que deixam para trás.

Em agosto de 1991, prestes a completar 30 anos, Maria da Lapa conheceu José, recém-chegado à ci-dade para trabalhar durante alguns meses. “Fidel”, como era chamado, rapidamente se tornou amigo da fa-mília, quando auxiliava nos cuidados do patriarca, que sofria de um grave quadro de trombose e perdera gran-de parte dos movimentos. Em uma das noites, após apagarem as luzes da casa, ele foi até o sofá onde Ma-ria dormia e a despiu sem seu con-sentimento. “Não sei o que me deu na cabeça, eu não queria, mas não tive reação. Não mandei parar. Não sei explicar como aconteceu”, lem-bra. A relação sexual, que durou “se-gundos”, foi o suficiente para gerar uma criança. “Tentei empurrar ele, ele tentou me abraçar e não deixei. E aí morreu o assunto.” Eles nunca mais tiveram qualquer tipo de con-tato físico. Três meses depois, veio a desconfiança da gravidez, confir-mada com um teste. “Entrei em um desespero total, ficava pensando que filho eu queria, mas não dessa for-ma. Eu queria planejar um pai.”

Assustada com o que enfrentaria a seguir, desabafou com uma amiga e em pouco tempo a notícia se es-palhou. Maria havia conhecido um rapaz no casamento de seu primo e começaram a namorar. Ao ouvir os rumores da gravidez da companhei-ra pelo boca a boca dos minerado-res, o namorado foi embora sem se despedir. “Ele nunca nem ouviu de

Desamparo. Ana Laura e Cristiana compartilham drama de maternidade marcada pela carência da figura paterna de homens que trabalharam e foram embora da região

mim, sumiu sem falar nada. E tive que segurar tudo sozinha”, revela.

Na época, funcionária de uma entidade filantrópica mantida pelo auxílio de igrejas, Maria foi demitida, grávida, porque “iria envergonhar as crianças da associação”. Mesmo acionando a Justiça do Trabalho, o ex-patrão não compareceu à audiên-cia e não cumpriu o acordo finan-ceiro proposto. Os fiéis da igreja que ela frequentava exigiram do pas-tor que a expulsasse, considerando sua conduta “inadequada” para uma cristã. Maria lidou ainda com a des-confiança de José, que negava ser o pai da criança. Com a finalização do serviço em Antônio Pereira, foi em-bora com a promessa de que voltaria em breve para conhecer e registrar a filha. Nunca mais voltou. “Consegui superar o que passei na gravidez de-pois que ela nasceu”, recorda.

Seis anos depois, Maria desco-briu a localização de José com a aju-da de antigos patrões dele e levou a filha, de surpresa, para conhecê-lo. Ele se justificou, alegando que “não deu” para visitá-las no tempo que passou. Esse foi o único contato en-tre pai e filha, que recém completou 24 anos, em meio à quinta tentativa de conciliação na Justiça, para o re-gistro na certidão de nascimento.

Realidade semelhante à de Cris-tiana*, que engravidou aos 18 anos, durante uma breve relação com um minerador. Já separados após a des-coberta da gestação, o pai permane-ceu em Antônio Pereira e não assu-miu o filho. A criança conta com o auxílio dos avós, responsáveis pelos cuidados enquanto a mãe trabalha durante todo o dia para arcar com as despesas. Cristiana descarta a pos-sibilidade do pai a procurar e assu-mir o menino de dois anos. “Ele não cuida nem do outro filho dele, que teve com outra mulher, não vai cui-dar do meu”, sentencia.

Especialista em Direito das Fa-mílias, Iara Antunes de Souza adver-te que é necessário dados pessoais, como no mínimo nome completo e localização do suposto pai para re-querer a paternidade. “A mãe pode chamá-lo amigavelmente no car-tório para o registro. Caso ele não compareça, o Ministério Público tem uma ação de perfilhação com-pulsória, que é a obrigação legal de investigar a paternidade da criança.” Esse trâmite pode envolver a justi-

ça e exames de DNA, caso o pai não compareça voluntariamente ao car-tório para tratar de suas obrigações referentes ao filho gerado.

Em Ouro Preto, o Juizado da Criança e do Adolescente e o Fó-rum Cível oferecem orientação para a solução desses conflitos ocasiona-dos durante ou após a gestação. De-pois do registro, é preciso entrar em acordo sobre a guarda e questões fi-nanceiras. “A criança tem direito à pensão alimentícia, que é de respon-sabilidade do pai e da mãe. Ambos precisam contribuir e têm respon-sabilidades para com a manutenção daquele filho”, esclarece Iara.

Direito requerido por Nicole* e sua mãe, Ana Laura*. Mesmo regis-trada, o pai nunca auxiliou nas des-pesas da filha, hoje com 20 anos. “Quando a Nicole fez 17 anos, ele deu a entender que estava interes-sado, chamando de ‘minha filha’ e isso e aquilo. Quando o juiz deter-minou o pagamento de pensão, su-miu. Apareceu pedindo o DNA”, conta Ana Laura, que tem outros dois filhos também de relações com trabalhadores da mineração. “Entrei na Justiça porque achei um desaforo. Ele criou os dois outros filhos que tem e nunca ofereceu ajuda a mi-nha mãe, foi ela que sempre me deu tudo, foi mãe e pai”, revela Nicole.

Embora a negligência do pai não tenha interferido na vida de Ana Laura e Nicole, de acordo com a psi-cóloga Daniela Freire é recorrente a existência de um trauma, quando o grande prejuízo para mãe e filho é a questão afetiva. “O desenvolvimen-to humano se dá a partir das rela-ções parentais. Quando o pai inter-rompe esse processo, a mulher que se sente enganada pode sofrer os malefícios do abandono, como de-

Entrei em um desespero total, ficava pensando que filho eu queria, mas não dessa forma. Eu queria planejar um pai.”

Maria da Lapa

Quando a Nicole fez 17 anos, ele deu a entender que estava interessado, chamando de ‘minha filha’ e isso e aquilo. Quando o juiz determinou o pagamento de pensão, sumiu. Apareceu pedindo o DNA”.

Ana Laura

Memória. Maria recorda com carinho trajetória com filha, apesar de sofrer com ausência do pai da menina

Os filhos da mineração

DISTRITO

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6ARTE: GABRIELA VILHENA

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própria vida. O apoio da família foi essencial para Odete superar o ponto mais grave da depressão. “Se meu filho não tivesse ficado três meses comigo, eu teria feito alguma coisa, não estaria aqui para contar história.” Ela ainda lida com os reflexos do trauma e recebe tratamento de profissionais da saúde mental contratados pela Samarco. Entretanto, Odete reclama do abandono das autoridades e da mineradora frente ao caos instalado em Barra Longa. “Somos atingidos pela lama, atingidos pelo governo. Nossos direitos foram todos violados.”

As marcas invisíveis, após a perda de objetos, certezas e sen-timentos, são compartilhadas por diversos moradores, que re-sistem em manter identidades em uma cidade transformada em canteiro de obras. Desde novembro de 2015, a Samarco contra-tou cerca de 500 funcionários para remover a lama do municí-pio. Com esse acréscimo populacional, os moradores afirmam que a tranquilidade cotidiana foi substituída pelo ritmo de traba-lho da mineradora.

Além das obras para reconstrução do município, consta no Mapa de Ações a contratação de profissionais para atendimento à saúde física e mental dos atingidos. Procurada pelo LAMPIÃO para especificar as ações, a mineradora informou que “desen-volveu um plano prevendo todas as ações necessárias nas ci-dades de Mariana e Barra Longa”. De acordo com a empre-sa, foram contratados 27 profissionais especializados em saúde mental. Somente Mariana recebeu 24 desses profissionais, sen-do um psiquiatra, 11 psicólogos, três assistentes sociais, sete te-rapeutas ocupacionais e dois arteterapeutas. Para Barra Longa, a mineradora destinou apenas um psiquiatra e dois psicólogos.

Descaso

Maria Aparecida, 38, é conhecida em Barra Longa como Ci-dinha. Cabeleireira há 14 anos, não mora nem trabalha na beira do Rio do Carmo, porém convive com os impactos da lama na cidade. Ela criou os quatro filhos e construiu a casa com a renda do salão. Hoje, tem dificuldade para dormir. Com o rompimen-to da barragem, o número de clientes no estabelecimento dimi-nuiu cerca de 30% e as dívidas surgiram. A cabeleireira atribui a queda na clientela à falta de eventos sociais e ao fechamento de espaços coletivos, devastados pela lama. Agora ganhando men-salmente cerca de R$ 1.000, Cidinha se preocupa em manter o bom nome. A moradora não recebe o cartão de auxílio finan-ceiro da Samarco. Segundo ela, a empresa não a considera dire-tamente atingida.

Manoel Trindade, 60, é artesão e teve a produção afetada pelo estresse. “Tenho um ateliê no fundo de casa. Com essa ba-rulheira de caminhão, máquinas e de operário, não consigo pro-duzir, minha mente não tem sossego.” O morador afirma que a empresa não ofereceu apoio psicológico domiciliar, como estava previsto no Plano de Ação. Manoel conta que ligou para a cen-tral de atendimento da Samarco e nenhum profissional da saúde mental foi atendê-lo em casa. Na segunda ligação, o morador foi informado que teria que ir à policlínica para agendar um atendi-mento em consultório. “É obrigação da Samarco trazer um psi-cólogo na minha casa pra eu conversar”.

em andamento, de outros 33 imóveis, a distribuição de 249 cartões para auxílio financeiro, a entrega de 3 mil cestas básicas e o fornecimento de 9 mil litros de material de limpeza. Moradores reclamam que o diálogo com a empresa não acontece de forma humanizada. “Eles falam em obra, eu falo em sentimentos. Eles falam em cerca, eu falo nos meus pés de feijão. Toda hora eles vêm me perguntar o que eu quero plantar no meu quintal. Ninguém nunca me perguntou o que quero plantar no meu coração”, afirma Elaine.

Odete Cassiano, 58, se mudou para Barra Longa há oito anos. Sempre viveu na zona rural, onde trabalhava com o cul-tivo de hortas e árvores frutíferas. Ela escolheu um terreno à beira do Rio do Carmo e planejou plantar, nos fundos da casa, todos os vegetais e frutas que possuía no antigo quintal. Além da aposentada rural, na residência viviam seus pais, ambos com 87 anos.

A lama que atingiu Barra Longa destruiu o pomar e ocupou todo o porão de Odete. Após o trauma, ela teve o quadro de depressão agravado e viveu os meses seguintes com auxílio psicológico e medicamentos. A psicóloga e especialista em Saúde Mental Pós-Trauma Lilian Garate comenta que, assim como a Barragem de Fundão, as histórias dos atingidos foram rompidas. “O desastre rompe o domínio do indivíduo com a própria vida.”

Odete enfrentou momentos difíceis, tentando cuidar de si e dos pais em meio à destruição. Parte da identidade da moradora foi perdida quando a lama desmanchou toda a plantação. Foram meses turbulentos que culminaram na tentativa de dar fim à

No dia 6 de novembro de 2015 a lama de rejeitos da Barragem de Fundão chegou a Barra Longa, a 60km de Mariana. Plantações, animais, casas e histórias foram dizimados conforme o barro avançava pelo município. Sete meses depois, ainda há lama para ser retirada, casas para serem reconstruídas e espaços públicos em recuperação.O percurso da lama pelo município alterou a vida dos moradores. As cicatrizes internas causadas por um trauma não são quantificadas. A saúde mental dos barralonguenses não aparece nos dossiês nem nas estatísticas oficiais.

TexTo: Luísa Campos e mariana Viana

FoTograFia: pauLa LoCher

“Não tenho vontade nenhuma de sair de casa. Parece que fico vigiando alguma coisa. Tenho a sensação de que não posso sair daqui.” A vigília de Elaine Etrusco, 61 anos, tem início todas as noites. Desde que o quintal foi invadido pela lama da Barra-gem de Fundão, na madrugada do dia 6 de novembro de 2015, as horas de sono da professora foram alternadas para o dia. Elai-ne passa as madrugadas em claro e se descobriu em permanen-te estado de atenção, com o sentimento frequente “de que algo ainda está por vir”.

A casa passou por gerações da família Etrusco, guardando memórias nos detalhes de cada cômodo e nas fotografias do passado. O quintal acolhia um pomar, uma horta e a criação de pequenos animais. O terreno termina no Rio do Carmo, afluen-te do Rio Doce, que teve a correnteza tingida de marrom após o rompimento da barragem. Com a corrente d’água veio a lama e, com ela, o medo de perder as recordações da família. Os objetos ainda encaixotados são reflexo da espera atenta da professora. “Posso perdê-los a qualquer hora.” Hoje, Elaine luta para recu-perar o pomar, os pés de feijão, o sono e a esperança no futuro.

De acordo com a Samarco, um Mapa de Ação “específico para as demandas da localidade”, foi desenvolvido com foco em projetos humanitários em Barra Longa. Dentre as ações estão a entrega de 67 casas e 26 estabelecimentos comerciais, a reforma,

Marcasinvisíveis

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João Pedro, 6, não sabia o que era uma “varra-gem”. Enquanto a mãe, Paula, zarpava na moto ‘’Be-renice’’ pelas ruas de Bento Rodrigues, avisando aos moradores que a Barragem de Fundão rompera, o menino corria ao lado da avó, Maria Lúcia, para uma região inclinada. As perninhas não davam conta da velocidade e a cabecinha curiosa tentava entender o que se passava naquela situação incompreensível.

Após sete meses, o estrondo da força da lama ainda está presente nos dias de João. Ao ouvir baru-lho de chuva, helicóptero ou trator, o menino repe-te “barragem de novo,  não!”. A mãe conta que João precisou de acompanhamento psicológico para en-frentar o medo de ruídos que se assemelham ao rompimento da barragem.

Paula afirma que ao longo do auxílio psicológico, o filho foi superando o medo de ruídos, mas mes-mo assim não consegue dormir sozinho. “Em Bento ele dormia no mesmo quarto que eu, mas na cama dele”, relembra. Além disso, a família tem observado que João apresenta sintomas de ansiedade.

Mesmo vivendo em Mariana desde janeiro, Ma-ria Lúcia e Paula não se familiarizaram com a cidade. Consideram-se pertencentes a Bento e saem pouco de casa. “Quando saio vejo tanta gente, dá até ago-nia. Nós estamos em terras estrangeiras”, diz a avó. A psicóloga Débora Rosa, que atua no setor de saúde mental de Mariana, informa que os impactos psicos-sociais nos ex-moradores de Bento estão presentes na dificuldade de adaptação do meio rural para o ur-bano, refletida principalmente pelo distanciamento geográfico entre os vizinhos, pela perda da memó-ria afetiva com o local de origem e pela mudança no modo de viver.

A psicóloga, que tem acompanhado os atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, realiza, jun-to a outros profissionais da área, ações em bairros de Mariana e faz visitas domiciliares. Segundo o co-ordenador da Rede de Atenção Psicossocial da cida-de, Sérgio Rossi, o número de profissionais que es-tão atuando após o  rompimento de Fundão subiu de 29 para 54. Já a média de atendimentos mensais cresceu 20% desde novembro.

O desejo de mãe e avó é morar novamente na co-munidade de Bento Rodrigues, que será reconstruí-da no terreno de Lavoura. Lúcia não se diz ansiosa, mas acha fundamental voltar às suas raízes. “Sabe-mos que lá nos sentiremos estranhos no início, mas com o tempo será nosso lugar.”

Serviço gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio:

Eles falam em obra, eu falo em sentimentos. Eles falam em cerca, eu falo nos meus pés de feijão. Toda hora eles vêm me perguntar o que eu quero plantar no meu quintal. Ninguém nunca me perguntou o que quero plantar no meu coração’’

Elaine Etrusco

Com essa barulheira de caminhão, máquinas e de operário, não consigo produzir, minha mente não tem sossego.”

Manoel Trindade

Somos atingidos pela lama, atingidos pelo governo. Nossos direitos foram todos violados’’.

Odete Cassiano

Nenhuma autoridade nos avisou sobre o risco da lama. Falaram que não chegaria nem na pracinha, por isso não saímos de casa.’’

Íris Lana

Medo de dormir sem a mãe

O estresse e as mudanças de humor e do sono, compartilhados por Elaine, Cidinha, Odete e Manoel, são os sinais internos da passagem da lama pela cidade. De acordo com a psicóloga Lilian Garate, são sintomas de um trauma alterações no sono, no apetite, sentimento permanente de ameaça, estresse agudo, palpitação e falta de ar. “Se eles persistirem após quatro meses do evento traumático, já podem ser considerados um indício da Síndrome do Stress Pós-Traumático.”

“Nenhuma autoridade nos avisou sobre o risco da lama. Falaram que não chegaria nem na pracinha, por isso não saímos de casa.” Íris Lana, 67, só conseguiu deixar a casa no dia 7 de novembro, quando três moradores a buscaram de canoa. A bordadeira mora às margens do Rio do Carmo. No local, a lama avançou pelo quintal, destruiu plantações, atravessou a casa e chegou à altura das janelas. Todos os objetos foram perdidos. Porém para Íris, o valor material tem menor importância do que as memórias. “Foi muito triste sair da minha casa e deixar tudo pra trás, mas a perda material não é tanta. Tinha mui-tas fotos do meu filho que morreu, do meu pai, e objetos de família.”

Íris foi, por muitos anos, presidente da Associação de Bordadei-ras de Barra Longa e enxerga a arte de tecer como terapia, que ajuda a enfrentar os traumas. A bordadeira convive com a Doença de Parkin-son e, após o rompimento de Fundão, o quadro piorou. “Não estava andando nem falando, piorei muito. Todo mundo ficou preocupado.”

O quadro de Maria Geralda Bento, 78, também piorou após o rompimento. A lama invadiu sua propriedade em Gesteira, distrito de Barra Longa, onde os 35 membros da família se reuniam aos fins de semana. Mãe, avó e bisavó, Geralda sente o afastamento familiar, já que a casa ampla foi substituída por um apartamento de dois quartos, alugado pela Samarco. Além disso, os problemas cardíacos e a osteo-porose se agravaram. Os remédios que utiliza não são pagos pela em-presa, que exige provas para considerar a piora de quadro uma con-sequência da tragédia. A dona de casa passou a ser acompanhada por um ortopedista e um fisioterapeuta, ambos em Ponte Nova.

A psicóloga Lilian Garate pondera que históricos clínicos podem se agravar em consequência da experiência traumática. Além disso, se não houver acompanhamento, o trauma pode aumentar a intensida-de das marcas internas de um indivíduo.

De acordo com a Secretaria de Saúde de Barra Longa, as consul-tas com psicólogos e psiquiatras acontecem na policlínica da cida-de. A psicóloga Laura Lana atende diariamente no centro de saúde. Desde novembro, a profissional já realizou mais de 500 consultas e os transtornos mentais detectados na população variam entre insô-nia, ansiedade, depressão, sinais de estresse pós-traumático e aumen-to do alcoolismo.

Segundo a psicóloga, a insônia foi a maior queixa dos moradores. Muitos ficavam com medo de dormir à noite, já que a lama atingiu a localidade durante a madrugada. Posteriormente, os quadros avança-ram para a ansiedade, que atualmente “parece estar aumentando. As pessoas querem ir logo para as suas casas e ver o quintal reconstruí-do. Querem retomar o antigo ritmo de vida”, afirma Laura. Casos de depressão também são identificados.

Já o psiquiatra contratado pela Samarco Leonardo Magalhães afir-ma que somente identificou quadros temporários de estresse pós-traumático. O profissional reitera que desenvolveu, junto com a psicóloga do centro de saúde, um plano de acompanhamento dire-cionado aos atingidos pela lama. Os atendimentos psiquiátricos acon-tecem uma vez por semana, na policlínica da cidade. De acordo com o profissional, a carga horária destinada para serviços psiquiátricos na policlínica de Barra Longa é adequada para a demandados atingidos e do restante dos moradores. “Trabalho 40 horas mensais, 10 horas se-manais. Ofereço um tratamento justo e necessário para a população.”

A psicóloga Lilian Garate aponta que “o emponderamento dos atingidos é fundamental para que eles se sintam novamente donos da própria vida”. Odete Cassiano participa do Movimento dos Atingi-dos por Barragens (MAB), desde dezembro de 2015, e credita à or-ganização parte de sua recuperação. “Tomei conhecimento dos meus direitos.” O movimento tem atuado na região desde o rompimento de Fundão para esclarecer os moradores sobre os impactos sociais e ambientais, além de impulsionar a força da coletividade. O coordena-dor do MAB Thiago Alves atua junto à comunidade de Barra Lon-ga, e afirma que a dimensão da destruição da lama na cidade invadiu esferas da sociedade e do bem estar mental. “A lama transbordou a vida social.”

Procurada pelo LAMPIÃO, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais informa que “não há nenhuma evidência até o momen-to de agravos (psicossociais) que possam ser relacionados ao rompi-mento da barragem, bem como não há relatos de suicídios conecta-dos ao evento”. Em nota, a Samarco afirma desconhecer dados sobre suicídios, assim como tentativas. “Nenhum estudo foi apresentado à empresa pelos órgãos ou entidades da área da saúde.” Até o fecha-mento desta edição, a Secretaria de Saúde de Barra Longa não se ma-nifestou sobre o andamento dos atendimentos psicológicos e psiqui-átricos, e não informou a respeito de projetos voltados para a saúde mental da população.

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8 Julho de 2016

ARTE: MOISES MOTA

Mateus Carvalho

Os impactos deixados pe-los rastros da lama nos arredo-res de Mariana e dos distritos atingidos chegaram também à produção agropecurária. Os resultados das pesquisas são preocupantes. De acordo com os últimos relatórios da Em-presa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG), os produtores rurais atingi-dos, dos municípios de Maria-na, Barra Longa, Ponte Nova e Rio Doce, tiveram um pre-juízo calculado em aproxi-madamente R$ 23,2 milhões. Segundo a Prefeitura de Ma-riana, a Secretaria de Agricul-tura, em parceria com a Ema-ter, tem feito um trabalho com os produtores rurais das áre-as atingidas pelo rompimento da barragem da Samarco.

Além das perdas para os produtores, a cidade enfrenta inflação momentânea. O au-mento da demanda pelos pro-dutos causada pela vinda dos moradores de Bento Rodri-gues para Mariana, frente a uma oferta estável, pressiona os preços, especialmente de alimentos, explica o profes-sor de Economia da Univer-sidade Federal de Ouro Preto Chrystian Mendes. Entretan-to, com o passar do tempo, esses preços devem se nor-malizar novamente, princi-palmente no setor de habita-ção. “Além do crescimento populacional, o desemprego também desempenha papel determinante para o desequi-líbrio econômico da região. A pouca oferta de empregos fragiliza o poder de consu-mo da população de maneira geral”, aponta Chrystian.

O professor conta que al-guns valores aumentaram de

maneira notável depois da tra-gédia, segundo pesquisa re-cente conduzida por ele. Os altos picos de inflação no mu-nicípio são causados pela cri-se nacional e pelos avanços no Índice de Preços ao Con-sumidor (IPC) do município de Mariana desde a tragédia. Em praticamente todos os se-tores do comércio, de serviços ao varejo, houve alta nos pre-ços. Os consumidores estão, a todo custo, se adaptando à contenção de despesas para segurar os gastos fixos do mês, considerando a manutenção do valor dos salários.

AntigoNesse cenário, a comi-

da barata parece uma realida-de cada vez mais distante em Mariana. Os alimentos indis-pensáveis à dieta diária como frutas, legumes e verduras, com preços mais acessíveis, têm se tornado uma oferta de difícil acesso no varejo. Além do contexto econômico na-cional, a crise de arrecadação fiscal do município, segundo

os recentes levantamentos da Prefeitura, é outro fator.

O problema da comida não é recente em Mariana. O desenvolvimento econô-mico da Região dos Inconfi-dentes se deu a partir de his-tórias pautadas pela procura do ouro. A preferência pela mineração, em detrimento de outras formas de crescimen-to, trouxe recorrente escassez da oferta de alimentos.

Essa condição proporcio-nava valores exorbitantes aos produtos trazidos de fora para atender os consumidores lo-cais que não tinham como cultivar seus alimentos em um pedaço de terra. O ouro con-centrava uma procura excessi-va, despertando interesse de exploração no país inteiro.

Devido à falta de atividades monocultoras, a fome de mui-tos contrastava com a acumu-lação de riquezas pela extra-ção mineral no século XVIII. Um dos ramos de serviços que mais obteve lucro, nes-sa época, foi o transporte de cargas, que, em seu auge, tra-

zia frotas de animais carguei-ros do Rio Grande do Sul até Minas Gerais. Os investimen-tos no transporte escoavam a extração aurífera e traziam produtos de fora, principal- mente alimentos e vestuário.

PrioridadesTrezentos anos separam a

era do ouro de Vila Rica do rompimento da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues. Entretanto, a negligência em relação às atividades fora do eixo da mineração permanece.

Em meio a isso, o debate a respeito de novas alternati-vas econômicas para a região tem tido destaque. A prefeitu-ra prevê a construção de um distrito industrial na cidade. O secretário adjunto da In-dústria e Comércio de Maria-na, Heliélcio Vieira, aponta que o projeto pretende im-plementar uma diversificação econômica do município, au-mentando a participação de outros ramos de investimento, como a agricultura e a pecuá-ria. Entre eles estão laticínios,

fruticultura e os processos de produção que surgem após a colheita, muito embora ainda exista prioridade aos focos de investimentos relacionados ao ramo da mineração. A licença de implementação do distrito foi concedida recentemente, segundo afirma o secretário adjunto. Os prazos de conclu-são ainda são indeterminados, mas estão previstos.

Enquanto Mariana sofre com a alta dos preços, Antô-nio Barbosa, 33 anos, ex-mo-rador de Bento, se preocu-pa com a ociosidade em que se encontram muitos de seus antigos vizinhos do distri-to. “Acredito numa interven-ção mais efetiva para o repa-ro de nosso danos”, defende. “Por que a gente não pode-ria produzir o que a Samarco precisa comprar de alimentos e roupas por exemplo, ge-rando emprego para o povo que já sofreu tanto e que hoje está em Mariana com-pletamente deslocado, sem trabalho, sem o costume da atividade de antes?”, indaga.

Futuro incertoAtingidos não reclamam

só da condição atual. O novo espaço a ser construído pela Samarco para os ex-morado-res de Bento Rodrigues, em Lavoura, tem previsão de con-clusão de dois anos. A distri-buição de água no terreno é pouca, segundo o ex-morador João dos Santos. A área ain-da é bem próxima a um ater-ro sanitário, cerca de 1,8km de distância, o que preocu-pa Aparecida dos Santos. Ela, acostumada com a boa qua-lidade da água que havia em Bento, conta com receio que a acumulação do lixo pode gerar contaminação do solo, por meio do lençol freático.

Ailton Barbosa, 63, ex-morador de Bento Rodrigues, é aposentado pelo ramo da mineração. “Morei no Ben-to durante 41 anos e levei 30 para construir a minha casa própria, com muito dinhei-ro suado vindo do meu traba-lho.” Agora ele mora em Ma-riana, no bairro Dom Oscar, em um dos aluguéis custea-dos pela Samarco. Assim que chegou à morada provisória, deu de cara com um jardim na entrada do edifício.

“Lá em Bento, meu quin-tal era grande, tinha de tudo”, conta. “Chegamos aqui, vi-mos esse pedacinho de terra, é comum a gente ver o pes-soal montar jardim. Daí esco-lhi plantar umas couves aqui mesmo. Percebi que o espa-ço era pouco e resolvi plan-tar ali, do outro lado da rua. Vou a qualquer mercado aqui em Mariana, quatro fo-lhas couve saem a R$2”, con-ta Ailton. A pequena horta de verduras recém-montada fica do outro lado da calçada, que dá para um córrego, fora das grades do prédio.

aManda Granado

A diferença de preços en-tre homens e mulheres nas ca-sas noturnas e também nas festas em repúblicas é presen-te em Mariana e Ouro Pre-to. Em Mariana há três casas noturnas, a boate Nomad, o pub Ten Bells e o café-teatro Sagarana, nas quais pode-se observar essa desproporção.

O abismo entre os preços chega a 66% nas casas notur-nas de Mariana e até 400% na festa “Bem vindo ao rock”, feita por 17 repúblicas parti-culares de Ouro Preto. A desi-gualdade de preços por gênero toca no direito do consumidor e na cultura do estupro.

Segundo o artigo 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei”. O princípio da isonomia também está no artigo 4º, que garante “o bem de todos, sem precon-ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Já o Código de Defesa do Consu-midor (CDC) diz que o forne-cedor não pode diferenciar os consumidores entre si, seja por gênero, raça ou cor, oferecen-

do a mesma condição a todos.A gerente do Procon de

Mariana, Thaís Celeste Fer-reira de Souza, esclarece que “de acordo com o CDC é um direito básico do consumi-dor a igualdade nas contrata-ções. Essa semelhança se re-fere também ao gênero, ou seja, homem e mulher devem contratar de forma igual, sen-do iguais em direitos e obriga-ções. Nenhum estabelecimen-to pode impor diferença de preço por questão de gênero”.

Segundo a advogada do Procon de Mariana, o consu-midor que se sentir lesado deve comunicar o Procon de sua ci-dade, o Juizado Especial ou até mesmo o Ministério Público, sob pena de aplicação de mul-ta para os estabelecimentos.

Na festa “Bem vindo ao rock”, em Ouro Preto, são cobrados R$1 para as mulhe-res, R$35 para organizadores e R$40 para homens que não organizadores. Segundo Ar-thur Santos, morador da repú-blica Canil, uma das organiza-doras da festa, a diferenciação de preços por gênero “é tradi-ção, com o objetivo de chamar atenção do público feminino”.

Os organizadores da fes-ta não responderam ao LAM-PIÃO o porquê de quererem mais mulheres no evento. O representante de outra festa es-tudantil em Ouro Preto, “Festa da Vila dos Tigres”, classificou a questão de “mimimi”. Implí-cita, está a fragilização propo-sital da mulher nesses espaços por meio da bebida. Jussara de Cássia Soares Lopes, pes-quisadora de questões de gê-nero da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica que o termo “cultura do estu-pro” diz respeito a um conjun-to de ações que naturalizam a violência contra a mulher.

Além de pagar menos na entrada, muitas vezes a mulher tem bebida liberada até certo horário. Jussara afirma que isso “coloca a mulher como objeto, que está ali para ser usada, para chamar mais homens, alimen-tando uma ideia de que se ela não estiver sóbria, vai ser mais fácil para pegar”, explica.

O estudante de economia Pedro Henrique Silveira Pes-soa afirma que as mulheres fi-cam bem mais vulneráveis por estarem embriagadas, e assim estão sujeitas a qualquer assé-

dio masculino. Ainda assim, ele é contra os preços igualitá-rios, pois acredita que haverá menos mulheres. Além disso, não se sente prejudicado em pagar mais para o aceso.

O dono da boate Nomad em Mariana, Victor Hugo Cota de Miranda, garante que a diferença de preços por gê-nero e a liberação de bebida são apenas lucrativas. A res-ponsabilidade em relação ao consumo de álcool é do in-divíduo. Além disso, diz que “a maior parte das mulhe-res que frequentam a boate prefere pagar menos”.

Já a gerente do pub Ten Bells, Fernanda Rodrigues de Oliveira, afirma que a primei-

ra pergunta que fazem a ela quando há festas no bar é so-bre o preço para mulheres. Diz ainda que “quando faz um evento para o público de Ma-riana, o preço é R$20 para ho-mem e R$10 mulher”. Quan-do o público é voltado para estudantes, a entrada inteira é R$10 e a meia R$5.

Quanto à vulnerabilida-de das mulheres, Fernanda diz que “a partir do momento que uma pessoa bebe, está vulne-rável para qualquer coisa, mas dentro da casa os seguranças já interferiram e resolveram brigas de casais”, acrescenta.

Jussara Lopes acredita que “é preciso romper a cultura machista, promover a igualda-

de de gênero”. Para ela, a mu-dança só acontece com a edu-cação, “ensinando os homens a respeitar e não as mulheres a temer”. Pela legislação brasilei-ra, se a mulher estiver incons-ciente ou incapacitada para ne-gar o consentimento (inclusive devido à embriaguez), também é estupro e a pena pode chegar a cinco anos de reclusão.

A discussão nos movi-mentos feministas é com relação à prática do incenti-vo de boates e festas, entre outros, a que mulheres con-sumam álcool em excesso. Por meio da entrada mais ba-rata e liberação de bebida elas perderiam a condição de negar o consentimento.

Terra além dos minérios Rompimento da barragem impacta agropecuária, que não recebe investimentos para se tornar alternativa de desenvolvimento

Diferença ilegal e perigosa

Cultivo. Ailton, ex-morador do Bento, aproveitou o espaço de jardim do lar provisório para plantar hortaliças

MATHEUS GRAMIGNA

ECONOMIA

Page 9: Jornal Lampião - 23ª Edição

9Julho de 2016

ARTE: MOISES MOTA

ana Paula BitenCourt e isaBela resende

Ouro Preto reúne e preser-va um dos conjuntos arquite-tônicos símbolo do barroco brasileiro. Segundo a Secreta-ria de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, apesar de o Cen-tro Histórico ganhar mais des-taque, 99% dos patrimônios tombados não se encontram nessa localidade, mas sim em outros segmentos do municí-pio. De acordo com a secreta-ria, responsável pelo inventa-riado e caracterização de todos os bairros da cidade, há uma questão de planejamento ur-bano e ênfase a determinados ícones, em detrimento dos que não estão na área central.

O bairro Padre Faria é lo-calizado a 1,4 quilômetro do centro da cidade e foi o pri-meiro vilarejo que deu origem à cidade, em 1698. Possui 41 patrimônios inventariados, en-tre acervos religioso e urba-no. Está inserido no conjun-to arquitetônico e urbanístico de Ouro Preto, tombado em 1938 pelo Instituto do Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e no con-junto arquitetônico tombado no município em 1931. Com-preende também bens tomba-dos em nível federal, como a Capela Nossa Senhora do Ro-sário e o Chafariz do Alto da Cruz. Apesar da importân-cia histórica e cultural, o bair-ro não pertence à rota turística principal. “Tais elementos pre-cisam ser reconhecidos e valo-

rizados pela comunidade e por pessoas que visitam o local”, afirma Douglas Aparecido, 33 anos, morador do bairro.

A falta de transporte públi-co coletivo é um dos fatores negativos, junto com a mer-cantilização do turismo. Os responsáveis pelas rotas turís-ticas recebem comissões de pousadas, hotéis e restauran-tes, a maioria localizada no centro, conforme explica o guia de turismo Willian de Je-sus Ramos, 41. Segundo Patrí-cia Souza, assessora da Secre-taria de Turismo, o Padre Faria não passa despercebido, pois é incluído em eventos como o Festival de Arte e Verão, o carnaval e datas religiosas, mas ainda não há planejamentos de descentralização do turismo. Rita de Cássia Rodrigues, 44, vive no Padre Faria desde que nasceu. Para ela, os atrativos explorados pelos turistas fo-ram colocados na área central da cidade, enquanto os bairros periféricos e sua importância na consolidação da história e cultura foram ignorados.

GuettoO projeto Guetto surge a

partir da necessidade dos mo-radores de se identificarem como população ouro-pre-tana. Os criadores Douglas Aparecido e Diego Assunção “Xingu”, morador de Passa-gem de Mariana, apoiam-se na ideia de emponderamen-to da comunidade, exercitan-do o reconhecimento sobre o lugar em que vivem.

Os idealizadores propõem ainda o resgate da cultura ne-gra e a conscientização dos que moram no bairro, para que eles não tenham necessi-dade de vislumbrar a saída da periferia, mas percebam que são nessas áreas que a histó-ria se mantém. Douglas expli-ca que Guetto é “exatamente o lugar onde o indivíduo está, com um ‘t’ a mais, que é o da transformação”. O resgate da história e da cultura está pre-sentes nas oficinas, brincadei-ras, rodas de música e poesia, que acontecem no “Buteko Kultural”, mais conhecido como um ponto de encontro para a comunidade.

O Guetto é um apêndice de um outro programa, o Outro Preto, que trabalha com hor-ta orgânica, turismo comunitá-rio e ações de produção cultu-ral e artística. O projeto busca mostrar uma outra Ouro Pre-to, além do olhar dos artistas, dos turistas e das câmeras fo-tográficas. “Já que ninguém pensa na periferia, nós temos a atitude de pensar e fazer, pois Ouro Preto é muito maior que Centro Histórico e Bauxi-ta”, afirma Diego. Em conver-sa com integrantes do proje-to, contam que desde a criação do Guetto os turistas passa-ram a reconhecer um pou-co mais o Padre Faria como um lugar que merece ser visi-tado. “Vamos às minas, faze-mos trilhas e pretendemos fa-zer uma expedição”, comenta Augusto Mendes, 42.

João Roberto Mendes, 26,

morador de Padre Faria, rea-firma a importância do proje-to: “Aproxima a comunidade através do resgate da cultura, estreitando os laços entre os moradores. Assim, todos têm a chance de contribuir, partici-par e conhecer melhor o lugar onde vivem, valorizando a im-portância do patrimônio”.

IniciativaO programa Sentidos Ur-

banos, também voltado para a educação patrimonial, é ou-tra iniciativa ouro-pretana para descentrar o olhar. Ele teve iní-

cio com um projeto de exten-são sobre roteiros sensoriais, coordenado pelo professor Juca Villaschi, do Departa-mento de Turismo da Univer-sidade Federal de Ouro Preto.

Com o interesse do Iphan e da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop), a parce-ria foi consolidada com o tra-balho direcionado ao recur-so dos cinco sentidos: tato, paladar, visão, audição e olfa-to. O Sentidos Urbanos ainda tem como parceira a Prefeitura Municipal de Ouro Preto, que sugeriu a inserção dos roteiros

sensoriais nas escolas da rede pública da cidade. Esses rotei-ros também podem ser feitos por grupos marcados.

De acordo com a coorde-nadora do programa, Simo-ne Fernandes, o objetivo do Sentidos Urbanos é trabalhar o empoderamento do jovens. “O roteiro sensorial é uma porta de entrada. Damos en-foque nas referências culturais, na situação de pertencimento, ampliação da visão e alteridade desse cidadão perante a cida-de. Identidade, memória e pa-trimônio é o que nos move.”

Coletivo valoriza periferiaMoradores do Padre Faria sentem que estão esquecidos diante do destaque oferecido aos monumentos tradicionais de Ouro Preto

inGryd rodriGues

Mariana foi o município mineiro que mais recebeu ver-ba para reformas de seus pa-trimônios por meio do PAC Cidades Históricas, que é um braço do Programa de Acele-ração do Crescimento do go-verno federal. Segundo a co-ordenadoria do projeto foram 15 ações com 19 obras aprova-das e R$ 67 milhões estão pre-vistos para esse financiamento.

Os primeiros prédios histó-ricos a serem reformados são a Igreja da Sé, primeira catedral de Minas e também a primeira no interior do Brasil, e a Igre-ja do Rosário, conhecida como “Igreja dos Pretos” devido à sua construção ter sido feita

majoritariamente por escravos. Contudo, ainda não há previ-são de qual será o próximo patrimônio a receber reformas.

A prefeitura vem insistin-do junto ao Governo Federal para conseguir esse financia-mento desde 2001. Mas foi so-mente em 2013 que o Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-tístico Nacional (Iphan) apro- vou os projetos solicitados.

Segundo Flora Passos, ar-quiteta do Iphan responsável pelo PAC Cidades Históricas em Mariana, os monumentos passaram por uma averiguação de data de conservação. A pre-feitura, em parceria com o ins-tituto, após analisar a situação das obras, chegou a uma lis-ta de imóveis que estavam em

estado de conservação precá-rio e que precisavam de uma obra completa de restaura-ção. Isso porque as obras pon-tuais de manutenção já não resolveriam o problema.

Flora ressalta que, diante da conjuntura econômica da cidade, é preciso buscar ou-tras alternativas para geração de renda, e que a restauração das igrejas impulsionará o tu-rismo local. “Uma forma de tentar reverter essa situação seria um um turismo planeja-do junto com a comunidade local, que parte de uma neces-sidade inicial de conservação e restauração de bens”, explica. A arquiteta questiona como a cidade pode contar com uma arrecadação vinda do tu-

rismo histórico de conjun-to tombado “com monumen- tos precários e irregulares”.

A modificação da Igreja do Rosário dos Pretos começou restaurando os elementos ar-tísticos. Essa igreja possui no teto uma obra de Manoel da Costa Ataíde, ilustre artista do barroco-rococó mineiro. Por-tanto, é importante primeiro fixar essa pintura, para que ela não sofra nenhuma vibração. O restaurador Adriano Ramos explica que fazer essa interven-ção é um trabalho muito me-ticuloso, “quase cirúrgico, de forma que se altere o mínimo possível a obra do pintor”.

As reformas tiveram inicio em janeiro e, segundo Anna de Grammont, coordenadora do projeto, a Igreja da Sé tem pre-visão de conclusão da parte ar-quitetônica em 18 meses, mas não há garantias que a parte artística será reformada.

A restauração mal come-çou e já surpreende com acha-dos inusitados. Na igreja do Rosário, a equipe de restau-ração descobriu pinturas de grande valor histórico atribuí-das ao filho de Mestre Ataíde. Elas foram encontradas nas tábuas do camarim dos altares colaterais, muito bem conser-vadas, levando em conta que podem ter quase 200 anos. Na Igreja da Sé, foram encontra-das ossadas humanas que es-

tão sendo analisadas por um especialista do Iphan, e que ainda não foram identificadas.

Em contrapartida, o tem-po que as igrejas perma-necem fechadas preocupa os comerciantes. Adalton So-ares, 58 anos, dono de uma loja de joias no centro da cidade, é pessimista com relação à previsão de conclu-são da reforma. Ele afirma: “A gente está sofrendo direta-mente na pele, porque Maria-na tem a crise nacional, a crise da lama e a crise das igrejas fe-chadas. Estou cogitando até ir embora da cidade. Moro aqui há 13 anos e nunca vi um ce-nário desse”.

Durante a reforma, oito das poucas vagas do es-tacionamento rotativo fi-cam inutilizadas no Cen-tro Histórico de Mariana, na Rua Frei Durão, como medi-da de segurança em virtude das obras na Igreja da Sé.

Raimunda Cláudio dos Santos, 82, aposentada e fre-quentadora assídua das mis-sas na Sé, afirma que as mu-danças são positivas e que está ansiosa para saber os resulta-dos. “Acho muito bom as re-formas. A igreja vai ficar mais bonita, não vejo a hora de ver como vai ficar. Mas o lado ruim é que agora temos que subir muito mais morro para ir à missa”, acrescenta.

Programa resgata passado

Empoderamento. Douglas, idealizador do Guetto, aposta na arte produzida no bairro

Matriz. Em reparo, catedral de Mariana deve permanecer fechada até julho de 2017

CAROLINE FERNANDES

CARO

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ES

Obras do PAC- Catedral da Sé e da Casa Capitular (Museu de Arte Sacra)- Igreja de São Francisco de Assis e Casa do Conde de Assumar (Museu do Imaginário)- Igreja do Rosário dos Pretos e implantação do Museu Vieira Servas- Igreja de São Caetano (Monsenhor Horta)- Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Camargos)- Igreja Matriz de Bom Jesus do Monte- Igreja de Santana (ao lado do cemitério)- Igreja Nossa Senhora das Mercês- Capela de Nossa Senhora Rainha dos Anjos (Arquiconfraria de São Francisco)- Requalificação da antiga Prefeitura (Centro Cultural/Artesanato)- Casarão dos Morais- Capela de Santo Antônio e requalificação do Largo- Capela da Boa Morte e do Centro Cultural do ICHS/UFOP- Casa de Câmara e Cadeia (Câmara de Vereadores)- Sobrado da Rua Direita, 61/65 (Implantação do Museu)

PATRIMÔNIO

Page 10: Jornal Lampião - 23ª Edição

EDUCAÇÃO

10 Julho de 2016

ARTE: MARIANA FERRAZ

África em segundo planoAndré nAscimento

No Brasil, a escravidão é um passado não muito distante que ain-da deixa marcas visíveis de desigual-dades nas relações sociais. Por isso, as ações afirmativas, políticas fo-cadas em grupos que foram viti-mados por algum processo de ex-clusão, têm por finalidade reparar danos causados a essas pessoas. A lei 10.639, de 2003, é uma ação afir-mativa que acrescenta na Lei de Di-retrizes e Bases (LDB) para a edu-cação a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas de ensino fun-damental e médio. O objetivo é va-lorizar e reconhecer a atuação e o pensamento negro no proces-so histórico de formação do Bra-sil. Em Mariana, palco da escravi-dão, após 13 anos da lei em vigor, os conteúdos voltados para a his-tória europeia prevalecem nos pla-nos curriculares e pouco se vê das propostas afirmativas das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs).

As DCNs para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, de 2004, são um plano político com orientações de como funcionam as alterações na LDB. Além de reparar desigualda-des, a proposta objetiva maior auto-nomia na expressão e manifestação das visões de mundo dos afro-brasi-leiros. Em Mariana, especificamen-te, a adoção dessa política toca no processo de formação da cidade.

O Censo Demográfico de 2010 aponta que 67,2% da população ma-rianense se autodeclaram preta. Se-gundo o historiador Tercio Veloso, que estuda a formação urbana de Ouro Preto e Mariana, esse núme-ro pode ser entendido como um re-

flexo da sociedade do século XVIII, quando aproximadamente 80% da população eram de pessoas não brancas, alforriadas ou não. “O nú-mero de escravos, no início do sé-culo XVIII, aproxima-se a 50% da população. Já no final do século, quando a mineração entrou em de-cadência, estima-se que eram cer-ca de 35%. Contudo, o número de pessoas não brancas continua por volta dos 80%”. Ele reforça que a escravidão em Minas Gerais funcio-nou em um sistema de proximida-de. Com isso, a possibilidade de as pessoas escravizadas saírem dessa situação era maior. Para o historia-dor, “essa proximidade se dá, tam-bém, porque as pessoas viviam em cidades. Além disso, há o fator do ouro. Isso fez com que as pesso-as buscassem, pela riqueza, transi-tar entre esses estamentos sociais de forma mais fluida”.

Nos registros cadastrais da Câ-mara Municipal de Mariana, data-dos de 1752, das 917 propriedades cadastradas, apenas uma é referida como senzala. Segundo Tercio, há alguns registros de ex-escravos que se tornaram proprietários de terras e de terras pertencentes a mulheres forras, que usavam da liberdade para proteger outros negros. Esses são casos que as escolas podem explorar para planejar ações que dialoguem com as diretrizes. O Plano Curricu-lar da Secretaria Municipal de Edu-cação (SME) de Mariana para a rede municipal foi pensado obedecendo os Parâmetros Curriculares Nacio-nais, documento do Ministério da Educação com orientações para a construção do plano curricular. Para a disciplina de História dos anos fi-nais do ensino fundamental, 6º a 9º ano, o planejamento contempla a LDB, pois orienta a aplicação de

conteúdos que permitem um apro-fundamento nas questões das rela-ções étnico-raciais, principalmente quando se fala da história de Minas e das culturas brasileiras. Mas apro-fundar nesse assunto fica a cargo do professor, pois o plano curricu-lar é usado para guiar a elaboração do plano de aula.

Afro-educaçãoComo muitos professores ainda

não têm formação pensada nos con-teúdos exigidos pela lei 10.639/03, uma alternativa é a troca com gru-pos que trabalham com as questões raciais. Na Ufop, o Programa Insti-tucional de Bolsa de Iniciação à Do-cência (Pibid) “História, Cultura e Literatura Africana e Afro-brasilei-ra” – Pibid Afro – é uma opção para as escolas de Mariana e Ouro Preto se adequarem às mudanças na LDB. A iniciativa tem a missão de valori-zar a formação de alunos de licen-ciatura das universidades, permitin-do uma experiência real nas escolas. O programa funciona sob tutela da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Ca-pes), e os alunos participantes ga-nham bolsa para desenvolver proje-tos nas escolas e oferecer cursos de formação para professores.

O Pibid Afro envolve bolsistas dos cursos de Letras, História, Peda-gogia, Música e Artes Cênicas. Ele funciona desde 2012 em escolas da região promovendo ações que bus-cam uma mudança nas relações edu-cacionais, apresentando metodolo-gias criativas e trabalhando com as múltiplas habilidades dos alunos. A professora do Departamento de Le-tras e coordenadora do Pibid Afro, Kassandra Muniz, defende que mu-dar a forma de olhar para os alunos e levar em consideração as particu-

laridades é importante na relação em sala de aula. “Obviamente, isso gera uma melhora no nível de letra-mento, na leitura, escrita e na for-mação das práticas orais. Além dis-so, a gente trabalha com temáticas voltadas para o continente africano e para a Diáspora, ou seja, trabalha em um contexto do que é ser negro no Brasil, na América afro-caribe-nha e por aí vai”. Ela salienta que os planos curriculares atendem a lei, no sentido de uma adequação à norma. O que não quer dizer que os con-teúdos são aplicados obedecendo as orientações das DCNs.

Atualmente, apenas a esco-la municipal Monsenhor José Cota é atendida pelo programa em Mariana. Além dela, o Pibid está pre-

sente em mais duas escolas de Ouro Preto, estrategicamente escolhidas, levando em consideração a loca-lização e o perfil dos alunos. A in-tenção é atingir principalmente as periferias e a população negra. De-vido aos cortes na educação, o pro-jeto reduziu as suas atividades e pode encerrar os trabalhos em julho deste ano. O Pibid já havia sofrido uma ameaça de corte de 50% dos projetos no antigo governo. Há um debate para mudar o programa para um formato que foi rejeitado pela Ufop e por outras universidades. “É uma discussão feita por buro-cratas da educação e políticos. Eles querem transformar o Pibid em um reforço escolar.” afirma a coordena-dora Kassandra Muniz.

iArA cAmpos

Cores, formas e elementos. O lo-cal é ocupado por crianças corren-do, rindo e se exercitando. Quem vê de longe logo imagina uma lona de circo que remete à infância. Quem vê de perto percebe o empe-nho na realização de mais uma aula. Junto aos alunos, que mesclam diversão, aprendizado e empe-nho, está toda a dedicação de um jovem professor.

Rodrigo Júnior Ferreira, 23 anos, morador de Ouro Preto, ex-aluno

Eles vivem da arte circensede 2006. No início era apenas um aluno deslumbrado com tudo o que conhecia. Influenciado por um amigo, nunca imaginou que a ino-fensiva visita a uma aula de circo despertaria uma paixão que perdu-raria por tanto tempo. Dedicação e empenho fizeram com que “Dim-dim”, apelido carinhoso dado pe-los amigos, se interessasse cada vez mais pelo assunto.

Atuante como aluno de 2006 a 2010, tornou-se monitor. Porém, por não conseguir conciliar estu-dos em período integral e cursinho à noite com o projeto, ficou dois anos afastado, mas o apego fez com que ele, depois de formado, se aprofundasse mais em tudo o que envolve circo. Voltou decidi-do a ser professor, para de alguma maneira oferecer às crianças o que já havia vivenciado como aluno.

A paciência e o carinho com que realiza as atividades e a amizade que mantém na relação com as crianças tornou Wallison um espelho para os alunos. Desde os pequenos detalhes como corte de cabelo até atitudes, modo de falar e agir são tomados como base para os jovens e refletem as suas posturas.

Professor de acrobacia aérea, Wallison acredita que o projeto, criado em 2009, tem poder trans-formador: “possui a missão de mos-trar para os jovens que existe uma outra opção além da que eles estão acostumados a vivenciar”.

e atual professor do projeto Circo da Gente, é apaixonado pelo ofício. Teve contato com o universo que hoje faz parte da sua vida em 2006. Na época, com 14 anos, era o típi-co perfil do adolescente rebelde que dava trabalho na escola e em casa.

Quando ingressou no projeto era estudante da escola Bom Senhor, de Ouro Preto, e soube dele pelo co-légio. Rodrigo, sem saber o porquê, aceitou o convite para ingressar no projeto, que selecionava alunos para ocupar o tempo deles com as ativida-des oferecidas pelo circo.

Em um espaço totalmente dife-rente de todos em que já havia con-vivido, seu primeiro contato com o circo foi marcante: acostumado a frequentar aulas de futebol e de can-tarias (escultura de pedras), identifi-cou-se com o malabarismo, o equi-líbrio, o espetáculo e com a plateia que compõem o mundo circense.

Como aluno, participou do pro-jeto de 2006 a 2008 e cultivou um amor que o levou a se especializar no tema. Participou de oficinas de capacitação oferecidas pelo proje-to com o intuito de se tornar pro-

fessor algum dia. Em 2008, após um período turbulento, Rodrigo se dedicou com mais empenho para não deixar a iniciativa acabar, pois segundo ele, “nessa época o progra-ma estava numa fase muito boa, em que era importante para a sociedade de Ouro Preto manter uma proposta como essa”.

Rodrigo, junto com outros alu-nos e o coordenador do projeto na época, Eduardo, se mobilizou e conseguiu vale-transporte e o em-préstimo do ginásio do Ouro Preto Tênis Clube, o OPTC, que fez com que as coisas caminhassem. Depois disso, o envolvimento só aumentou e o sonho de se tornar professor do projeto tornou-se realidade.

Exigente, porém amigo, Rodrigo acredita que a boa relação entre pro-fessor e aluno é essencial. “Quando os alunos superam as dificuldades é gratificante, você sente a felicidade deles”, diz. A proximidade dos bair-ros Morro Santana e Piedade faz com que eles mantenham boa con-vivência fora do ambiente circense e isso os integra. Casado com uma bailarina e pedagoga, Rodrigo divide os acontecimentos diários das au-las com a companheira. Muitas ve-zes, instruído por ela, tenta manter uma relação próxima com os alunos e acaba por sentir as emoções deles.

O circo também mudou a vida de Wallisson, paixão que hoje faz parte do cotidiano de sua vida. A rotina é a mesma, o ato de dar aula

e os exercícios se repetem a cada semana. As cores e objetos circen-ses dão forma e vida ao lugar, pen-sado para outra coisa. Uma simples quadra do OPTC, quando cheia de alunos, professores, saltos e diver-são, torna-se quase uma tenda cir-cense. Fechando os olhos dá para imaginar um espetáculo digno de aplausos. O professor de tudo isso? Um homem simpático, humilde e apaixonado pelo que faz.

Wallison da Silva Celino, 24 anos, morador de Ouro Preto, pertence ao mundo do circo des-

Ensino de história e cultura africana e afro-brasileira estão previstos em lei, mas medida tem aplicação limitada

JÚLIA

ROCH

A

CULTURA

Debate sobre a BNCCO Plano Nacional de Educação (PNE) entrou

em vigor em 2014 e estabelece a criação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), documen-to que determina conteúdos mínimos a serem desenvolvidos nas escolas do Brasil, além de guiar professores e coordenadores na hora de construir os planos curriculares. A primeira versão do documen-to gerou polêmica devido à retirada de temas, como Revolução Francesa e Literatura Portuguesa, para in-cluir conteúdos históricos e literários afro-brasileiros e latino-americanos. A segunda versão, apresentada para consulta pública no dia 3 maio deste ano, foi re-formulada com os conteúdos de maneira equilibrada.

A BNCC foi pensada por 116 especialistas de 37 uni-versidades do Brasil. A proposta foi apresentada em 16 de setembro de 2015. O documento recebeu mais de 12 milhões de sugestões e contribuições on-line. O prazo para entrega do texto final da base, que seria dia 24 de junho, foi estendido para novembro deste ano. De 23 de junho a 4 de agosto, o Conselho Nacional de Se-cretários da Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Muni-cipais de Educação (Undime) realizarão seminários para discutir a segun-da versão do texto para determinar as ações que constarão na versão final. Em Minas Gerais, os seminários acontecerão nos dias 2 e 3 de agosto.

LUCCA

S GA

BRIEL

Rodrigo. Talento com arcos

Dimdim. Acrobacias no ar

Quando os alunos superam as dificuldades é gratificante, você sente a felicidade deles.”

Rodrigo Ferreira

Page 11: Jornal Lampião - 23ª Edição

Julho de 2016

ARTE: MARIANA FERRAZ

11

Falta pouco para o Paço

Restauração. Antiga Santa Casa de Ouro Preto será transformada em ponto turístico

Máquina movida a rock

A obra no prédio histórico tem previsão de conclusão para o fim do ano, mas funcionamento do centro ainda não está definido

LUCC

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Festival. Gerador, que inspira nome do Rock Generator, é motor para o cenário musical

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cAio césAr Gomes

Em uma casa simples, no centro da cida-de de Mariana, está guardado o objeto princi-pal de um evento que vem tomando conta da cena musical de Ouro Preto nos últimos anos. Ao lado dos mais diversificados instrumentos musicais, se destaca o gerador responsável pe-las últimas quatro edições do Rock Genera-tor, um festival de rock and roll independen-te que acontece desde março de 2012. Fruto da união de músicos das duas cidades, o Rock Generator foi idealizado no ano de 2011 de-vido à falta de espaço para apresentações de rock autoral. Segundo Douglas Michael, gui-tarrista da banda Los Pollos Caipiras e mem-bro do projeto, “as bandas de rock underground

tinham pouco acesso aos festivais e casas de show da região”.

Foi então que membros das bandas Ar-queologia Siderúrgica, Fuckin’ Noise e Selva-gens compraram um gerador à gasolina, no valor de R$ 300, capaz de sustentar o objeti-vo de ocupar espaços públicos subutilizados e também de promover cultura, lazer e convi-vência social, em torno da música e de outras artes. As duas primeiras edições ocorreram em Mariana e foram realizadas em um terre-no particular cedido por um morador. As de-mais sete edições foram no Morro da Forca, no centro de Ouro Preto, que se tornou casa e marca do projeto. Nem mesmo o roubo do primeiro gerador foi capaz de desanimar os envolvidos. Em 2014, a falta do objeto central

questão de ressaltar outros pontos que obser-vou durante as edições em que esteve presen-te. “Vi uma coisa interessante: famílias. Havia muitas crianças soltando pipa, jogando bola e até prestando atenção e curtindo os shows”. Marcelo ainda elogia a organização: “Em ne-nhuma delas vi qualquer tipo de confusão, o público se mostrou bastante sossegado e é notável o espaço dado para a música autoral”.

Diego Assunção faz questão de enfatizar que a relação entre o público e o coletivo é bastante intensa: “a população de Ouro Pre-to abraçou o nosso projeto”. E isto fica claro ao fim de toda edição do festival, quando os muitos equipamentos musicais descem as es-cadas do Morro da Forca nos braços do pú-blico. A gratidão, porém, se estende a mais pessoas que fizeram o possível para ajudar o projeto desde o seu começo. Segundo Dou-glas Michael, duas delas se destacam: “não podemos deixar de citar a importância dos pais do Paulo Victor neste processo”. Berna-deth Azevedo e Paulo Vitor abrigaram, du-rante meses, os instrumentos do festival.

A consolidação do Rock Generator na cena musical de Ouro Preto não deixa os en-volvidos no projeto relaxarem. Pelo contrá-rio. No meio de tantas ideias, há também muitos sonhos naquele grupo de dez amigos. Sonhos que envolvem desde um estúdio mu-sical gratuito para o público até uma grande turnê do festival pelo país. Por agora, focam numa coletânea com todas as 28 bandas de seis cidades diferentes que já tocaram nas edi-ções passadas e pensam nas próximas duas, inicialmente idealizadas para os dias 16 de ju-lho e 3 de setembro de 2016.

causou um leve hiato no andamento do festi-val, mas, com uma festa beneficente realizada em Passagem de Mariana, foram arrecadados os fundos necessários para a aquisição de um equipamento novo e mais potente.

Junto com a novidade, veio também a von-tade de fazer mais. Diego Assunção e André Fabriccio, também membros do coletivo, acre-ditam que “o roubo do primeiro gerador foi um verdadeiro divisor de águas”. Em 2015, o Rock Generator contou com três edições e só não contou com a quarta por conta das fortes chuvas em Ouro Preto. Aos poucos, artistas de outras cidades se interessaram pelo movi-mento, que agora conta com acentuada me-lhora na questão musical. O intercâmbio com outras cenas culturais de Minas Gerais permi-tiu ao festival ganhar um notável reconheci-mento no underground do estado. Esse cresci-mento fez com que seus produtores criassem um cadastro digital, capaz de reunir mais de 50 bandas de várias cidades do país com ape-nas uma regra a ser seguida: ter pelo menos metade da produção autoral.

O crescimento não se ateve só à parte mu-sical. O festival começou a dialogar também com artesãos, artistas plásticos e cênicos de Ouro Preto, preparados para abranger o con-ceito cultural já enraizado na origem do pro-jeto. O público se tornou fiel, o que chamou a atenção de Paulo Victor Azevedo, produtor do evento: “Na última edição, quando muitos viajaram para suas cidades por conta do dia das mães, o festival contou com pelo menos 300 pessoas, o que nos mostrou que o projeto já tem um público próprio”. Marcelo Camê-lo, morador de Mariana, é exemplo disso e faz

CULTURA

cAio FrAnco

Ouro Preto pode ganhar um novo espa-ço cultural no final do ano. Localizado na Rua Padre Rolim, o Paço da Misericórdia – Cen-tro de Artes e Fazeres de Ouro Preto será um espaço dedicado à cultura local. A constru-ção antiga passa pela fase final de revitaliza-ção para que possa ser entregue ao município.

A Secretaria Municipal de Turismo, In-dústria e Comércio, responsável pelo espaço, afirma que as previsões de abertura são para o fim deste ano. O edifício está em obra há oito anos, devido à paralisação para readequar o espaço que se encontra na encosta de um morro, em área de risco. Outro motivo que vem estendendo esse tempo são os atrasos de repasse de verba por parte do poder público municipal e do Banco Nacional de Desenvol-vimento Econômico e Social (BNDES).

As obras seguem ritmo acelerado nes-te momento. A parte interna deve passar por acabamentos finais, como colocação de forro e pisos, instalações nos banheiros e cozinhas, e a seção externa passa por obra nas facha-das e no estacionamento. A Capela de San-tana, parte avançada da reforma, carece ape-nas de organização do espaço. Essa capela é integrada ao espaço interior do prédio e se-gue o modelo das capelas de outros hospitais geridos por irmandades.

A Agência de Desenvolvimento Econômi-co e Social de Ouro Preto (Adop), responsá-vel pela gestão da obra, também garante que o local estará pronto até o final de 2016. A arquiteta responsável pela execução do proje-to, Deise Lustosa, entende que o prazo dado para finalização é possível, apesar de aper-tado. Caso esse cronograma atrase, será por pouco tempo, ficando para o começo de 2017 a abertura do espaço.

Deise pensa que o Paço da Misericórdia é um presente para Ouro Preto. Para ela, a cida-de, conhecida mundialmente como roteiro tu-rístico, carece de locais “vivos”. Ela diz que o espaço vai além do turismo e deve ser ocupa-do pelos cidadãos do município.

De acordo com o gestor do núcleo de pro-jetos da Adop, Vandeir Assis, o momento de discussão acerca da obra em si já se encerrou e o que será discutido agora é como o Paço da Misericórdia funcionará e suas possibilidades

concretas de utilidade. Ele entende que um plano de diretrizes com bases técnicas deve ser feito para garantir que a obra não se torne um “elefante branco”.

A formulação dessas diretrizes foi encami-nhada pela Secretaria de Turismo e apresen-tada no dia 07 de junho na forma de Lei Or-dinária na Câmara dos Vereadores, onde está em tramitação. Trata-se da criação de Conse-lho Municipal cuja finalidade é gerir o Paço.

São diversos equipamentos e espaços in-ternos que irão gerar empregos para 300 pes-soas, entre lojas, estandes, salão multiuso, pátio externo com possibilidade de ser um an-fiteatro, restaurante e espaço para oficinas. Há ainda um local destinado à memória da Santa Casa da Misericórdia e da Capela de Santana.

Enquanto a obra avança, permanece como incógnita o que realmente será o Paço da Misericórdia. Procurada pelo LAMPIÃO, a Secretaria de Turismo não soube dar deta-lhes do funcionamento do local. O projeto em tramitação inicial especifica a criação do conselho com membros da sociedade civil e do setor público, no entanto ainda não foi colocado em prática.

A edificação pertence à Prefeitura Mu-nicipal de Ouro Preto, que pode transfor-má-lo em qualquer tipo de equipamento pú-blico, por isso a importância do conselho, que será permanente, com revezamento dos membros a cada dois anos.

Há intenção de levar os artesãos de pe-dra sabão e pessoas da culinária local para o Paço da Misericórdia. Ambas as catego-rias possuem representação no futuro conse-lho, mas ainda não há nomeação desses re-presentantes. Os espaços destinados para memória da Santa Casa e da capela tam-bém caminham no mesmo sentido de inde-finição, pois seriam espaços com gestões pró-prias do hospital e da paróquia responsável pela capela, respectivamente.

A ideia de levar artesãos para o prédio gera reações contrárias por parte da catego-ria, por significar reorganização do espaço da feira de pedra sabão do Largo da Coim-bra. Fontes informam ao LAMPIÃO que isso poderá descaracterizar o espaço da tradicio-nal feira, além de implicar em novos custos por parte desses trabalhadores, que deverão passar por formalização.

A revitalização foi aprovada e financiada para ser um centro cultural, porém até o mo-mento não há diálogo eficaz por parte do se-tor público com setores da cultura e arte lo-cais para que esse ideal se cumpra.

RessignificaçãoA construção data do século XVIII e abri-

gou a polícia local até o ano de 1885, após isso, a Santa Casa da Misericórdia, que ficou instalada no prédio até o final do ano 2000. O Paço da Misericórdia dará novo signifi-cado ao conjunto histórico, que desde 2000 se encontra fechado.

A Adop assumiu o papel de articular as instituições envolvidas e de captar verba para a obra desde 2006, viabilizando a revitaliza-ção do complexo por meio da Lei de Incenti-vo à Cultura (Lei Rouanet). Após ser aprova-do pelo Ministério da Cultura (MinC), deu-se início à recuperação do espaço em 2008.

O projeto foi criado pelos arquitetos Ma-risa Machado Coelho e Fernando Macu-lan, após a compra da edificação pela Pre-feitura em 2005, com apoio do BNDES e do MinC. O investimento total foi de cerca de R$ 12 milhões e veio de parceria entre a Prefeitura e o BNDES.

Para atender a normas arquitetônicas do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-

tístico Nacional (Iphan) foram feitas revi-sões no projeto em 2008 e 2010. A empre-sa local Hexágono Engenharia assumiu o projeto em 2012.

Após o repasse da verba da prefeitura em outubro de 2015, foi possível retomar as ativi-dades de restauro. Até o fechamento do jornal foram captados mais de R$ 6 milhões, soman-do os repasses do poder público municipal e do BNDES. Apesar de apertado, para a equi-pe gestora do projeto, tudo segue como pre-visto no cronograma.

ComplexoAcontece também ao lado a restauração

do que será o Museu Boulieu – Caminhos da Fé, que divide o espaço de estacionamento com a antiga Santa Casa. A junção do Paço da Misericórdia e do Museu torna a região próxi-ma à rodoviária e também a acesso ao Centro Histórico referência para o turista.

O projeto de revitalização desse segun-do espaço é de autoria de Deise Lustosa. As obras ainda não foram iniciadas, mas isso não impedirá a inauguração do Paço da Misericór-dia, pois os locais possuem entradas princi-pais distintas. O casal que dá nome ao mu-seu, Jacques e Maria Helena Boulieu, doou cerca de mil peças de sua coleção para a Arquidiocese de Mariana

Page 12: Jornal Lampião - 23ª Edição

12ARTE: BRUNELLO AMORIM

Julho 2016

ENSAIO

Foto e texto: Priscila santos

Há quem diga que quando se mora em uma cidade dita como “do interior”, os dias costu-mam se arrastar serenos e si-lenciosos. Enganam-se aqueles que assim pensam. Mariana é uma cidade que corre. Carros, motos, pessoas, cachorros, bi-cicletas, aqui nada vai devagar. Há sons por toda parte, se-jam dos sinos ou do trem que vai e volta. E dentre tantas sonoridades distintas, hoje quero falar da música que emerge das ruas, que resis-te ao tempo, aos valores, às tradições, aos teatros e à rotina. Em tempos de resistência, eles resol-veram fazer da rua o seu próprio palco. Fazem dos sorrisos e trocados rece-bidos incentivo para conti-nuar persistindo (resistindo) naquilo que seus dedos esco-lheram proferir: notas embaladas de poesia e sons.

Raphael Lima, o violinista sério e de olhos fe-chados ao tocar. Jonathan Guimarães junto ao violão de doze cordas, que esbanja simplicidade e altruísmo. Ouvi-los pelas ruas dessa cidade his-

tórica – feita de ferro, de gente e de lama – pode ser, para muitos,

só mais um dia, mas é certo que, para outros, será mais uma terna lembrança dos caminhos que pi-sam. Estar na rua tocando seu instrumento é para Raphael um

“fluxo imprevisível de sons, pes-soas, energias e acontecimentos”.

Há sempre muita gente passando, al-gumas nem olham, outras param e pa-

recem transcender. As crianças são as que mais impressionam. Jonathan lem-

brou de um caso de quando uma criança jogou seu brinquedo no chapéu que ele usa para reco-lher o dinheiro que ganha. En-quanto eu fotografava, uma menina interpelou a mãe: “Espera! Deixa eu admirar o rapaz”, disse, batendo um dos pés no chão. É surpreen-dente a capacidade que uma criança tem de se maravilhar com o outro. Por que perde-mos isso ao crescer? Não sei.

O que sei é que esses músicos estão na rua para somarem, contri-

buindo culturalmente para as comu-nidades que ocupam. Você pode não vê-los, mas eles veem você. Não tocam apenas pelo dinheiro ou por aplausos. Tocam porque desejam que ou-tros sintam, pela música, o mesmo que eles sen-tem, isso é, poesia, amor e arte. Gratidão.