jornal das famílias. tomo 3, novembro de 1865, p. 330 … · - É um dia bem feliz para...

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Jornal das Famílias. tomo 3, novembro de 1865, p. 330-333 “Dolores” I O LOCOTORIO Era um dia solene e de há muito esperado n`uma instituição de meninas. Acabava de ter lugar a distribuição dos premios. Uma brilhante reunião escoava-se pelos porticos do pateo de honra. As plysionomias animadas apresentavão ao observador um espectaculo interessante: senhoras de alta classe, com ar singelo, esperavão por suas equipagens; altas burguezas esqueccião sua dignidade chamando a seus criados; familias atarefadas com bagagens procuravão carros de de aluguel; uma extremosa mài enchugava lagrimas de prazer, outra reprehendia uma alunna por só ter obtido uma corôa, ao passo que sua prima obtivera duas, circumstancia aggravante, pois n`este tempo de igualdades fôra preciso, para bem fazer, decretar a igualdade das distincções; as autoridades que havião accupado a presidencia enchugavão a fronte; os pais nobres bocejavão olhando para o relogio que lhes marcava a hora do jantar: os irmãos e os primos fazião com ingenua curiosidade a inspecção das educandas que desfilavão ante seus olhos com vestidos brancos, fitas azues postas a tiracollo, e grande quantidade de coróas. É um quadro que todos podem ter presenciado. No locutorio, proximo ao pálco de honra, se havião refugiado os pais que havião querido subtrahir-se às emoções, ou quiçá à fadiga da ceremonia, e alli esperavão pelas meninas, quer para leval-as em férias, quer para sahirem do collegio por haverem ultimado os estudos, que, segundo o programma, as havia tornado perfeitas. Diversos grupos se tinhão formados por familias, ou conhecimentos. Os mais communicativos havião travado conversa com os que lhes ficavão proximos. Uma senhora attrahia particularmente todos os olhares. Tinha pretenções de mocidade, apezar de lh`o poder contestar seu estado civil; não pretendia menos ser elegante; se houvesse porém submetido seus adornos ao jury dos arbitros do bom gosto, elles augumentarião o numero dos recusados. Ostentava-se pensativa sobre um diran; sua posição tinha o natural abandono de uma artista que exagera seu papel. Iluminava-se por vezes seu rosto de uma celeste alegria, porém como não queria prender a attenção dos circumstantes voltava-se para dissimular sua emoção. Ella esperava por uma alunna que ia voltar ao tecto materno; era mais do que uma filha, pois não fóra do nascimento que a confiára a seus cuidados: era sua filha adoptiva, a filha de sua escolha, a linda e amavel Dolores, que dizia um eterno adeos ao collegio, e quem ia cercar de maternaes caricias. - É um dia bem feliz para vós,senhora, disse-lhe.um assiduo que com interesse seguia sua pantomima, ides poder occupar-vos com a felicidade de vossa cara filha. Ella faz honra á vossa escolha e á vossa solicitude: belleza, espirito, talento e graça, tudo está n`ella. - Não é feia, disse a senhora em voz baixa, parecendo fazer uma concessão, mas ainda é uma criança; seus talentos são os de uma collegial. Ainda é cedo para fallarmos de seu espirito, e Deos nos livre de uma moça de espirito: seja ella submissa, e é tudo o que lhe pede. - Acaso seus olhos não respondem de seu coração? Crêde-me, senhora, vos ides gozar da companhia d`essa encantadora menina, que se não póde ver sem admiral-a. Quem com tanto ardor tomava a defesa de Dolores era um homem de uma bella presença, alto, e de andar seguro e elegante. A cansada expressão de seus traçosappariç physionomicos, contrastando com os progressos da chimica não eram estranhos a esses signaes de juventude. Sua delicada mão ornada de anneis e as correntes de ouro que brilhavão sobre seu collete davão a medida de suas pretenções. Era n`esse ponto digno de hombrear com a senhora que acompanhava. Folgava em ser o orador do auditorio, e por isso voltando-se para um homem que lhe ficava ao lado e que esperava igualmente por uma educanda disse-lhe: - Não achais maravilhoso e providencial esse ensino dado em commum que approxima as classes, faz dasapparecer os preconceitos e estabelece entre as alunnas uma verdadeira fraternidade, fazendo abstracção da posição e da riqueza? É mais uma conquista da nossa revolução . - Senhor, respondeu-lhe o interrogado, não nego a benefica influencia da fraternidade: porém a igualdade que se acha em nossas leis ainda não se introduziu em nossos costumes: e é n`esse ponto de vista que não me parece um notavel progresso a igualdade das pretenções. Vão sahir por esta porta jovens duquezas em ricas equipagens e plebeas em tilburvs. As moças destinadas a uma vida laboriosa talvez que se considerassem mais felizes se lhes houvessem dada uma educação pratica mais conveniente á sua humilde condição. O desconhecido comprimentou com civilidade ao acabar esta curta resposta e facil era de ver-se que desejava pór termo á conversação. Havia um sensível contraste entre os dous personagens que acabavão de trocar algumas palavras. Tanto o primeiro se esforçava para affectar a vivacidade da juventude, quanto o segundo folgava em dar-se a apparencia da idade provecta. 77

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Jornal das Famílias. tomo 3, novembro de 1865, p. 330-333 “Dolores”

I O LOCOTORIO

Era um dia solene e de há muito esperado n`uma instituição de meninas. Acabava de ter lugar a distribuição dos premios. Uma brilhante reunião escoava-se pelos porticos do pateo de honra. As plysionomias animadas apresentavão ao observador um espectaculo interessante: senhoras de alta classe, com ar singelo, esperavão por suas equipagens; altas burguezas esqueccião sua dignidade chamando a seus criados; familias atarefadas com bagagens procuravão carros de de aluguel; uma extremosa mài enchugava lagrimas de prazer, outra reprehendia uma alunna por só ter obtido uma corôa, ao passo que sua prima obtivera duas, circumstancia aggravante, pois n`este tempo de igualdades fôra preciso, para bem fazer, decretar a igualdade das distincções; as autoridades que havião accupado a presidencia enchugavão a fronte; os pais nobres bocejavão olhando para o relogio que lhes marcava a hora do jantar: os irmãos e os primos fazião com ingenua curiosidade a inspecção das educandas que desfilavão ante seus olhos com vestidos brancos, fitas azues postas a tiracollo, e grande quantidade de coróas. É um quadro que todos podem ter presenciado. No locutorio, proximo ao pálco de honra, se havião refugiado os pais que havião querido subtrahir-se às emoções, ou quiçá à fadiga da ceremonia, e alli esperavão pelas meninas, quer para leval-as em férias, quer para sahirem do collegio por haverem ultimado os estudos, que, segundo o programma, as havia tornado perfeitas. Diversos grupos se tinhão formados por familias, ou conhecimentos. Os mais communicativos havião travado conversa com os que lhes ficavão proximos. Uma senhora attrahia particularmente todos os olhares. Tinha pretenções de mocidade, apezar de lh`o poder contestar seu estado civil; não pretendia menos ser elegante; se houvesse porém submetido seus adornos ao jury dos arbitros do bom gosto, elles augumentarião o numero dos recusados. Ostentava-se pensativa sobre um diran; sua posição tinha o natural abandono de uma artista que exagera seu papel. Iluminava-se por vezes seu rosto de uma celeste alegria, porém como não queria prender a attenção dos circumstantes voltava-se para dissimular sua emoção. Ella esperava por uma alunna que ia voltar ao tecto materno; era mais do que uma filha, pois não fóra do nascimento que a confiára a seus cuidados: era sua filha adoptiva, a filha de sua escolha, a linda e amavel Dolores, que dizia um eterno adeos ao collegio, e quem ia cercar de maternaes caricias. - É um dia bem feliz para vós,senhora, disse-lhe.um assiduo que com interesse seguia sua pantomima, ides poder occupar-vos com a felicidade de vossa cara filha. Ella faz honra á vossa escolha e á vossa solicitude: belleza, espirito, talento e graça, tudo está n`ella. - Não é feia, disse a senhora em voz baixa, parecendo fazer uma concessão, mas ainda é uma criança; seus talentos são os de uma collegial. Ainda é cedo para fallarmos de seu espirito, e Deos nos livre de uma moça de espirito: seja ella submissa, e é tudo o que lhe pede. - Acaso seus olhos não respondem de seu coração? Crêde-me, senhora, vos ides gozar da companhia d`essa encantadora menina, que se não póde ver sem admiral-a. Quem com tanto ardor tomava a defesa de Dolores era um homem de uma bella presença, alto, e de andar seguro e elegante. A cansada expressão de seus traçosappariç physionomicos, contrastando com os progressos da chimica não eram estranhos a esses signaes de juventude. Sua delicada mão ornada de anneis e as correntes de ouro que brilhavão sobre seu collete davão a medida de suas pretenções. Era n`esse ponto digno de hombrear com a senhora que acompanhava. Folgava em ser o orador do auditorio, e por isso voltando-se para um homem que lhe ficava ao lado e que esperava igualmente por uma educanda disse-lhe: - Não achais maravilhoso e providencial esse ensino dado em commum que approxima as classes, faz dasapparecer os preconceitos e estabelece entre as alunnas uma verdadeira fraternidade, fazendo abstracção da posição e da riqueza? É mais uma conquista da nossa revolução . - Senhor, respondeu-lhe o interrogado, não nego a benefica influencia da fraternidade: porém a igualdade que se acha em nossas leis ainda não se introduziu em nossos costumes: e é n`esse ponto de vista que não me parece um notavel progresso a igualdade das pretenções. Vão sahir por esta porta jovens duquezas em ricas equipagens e plebeas em tilburvs. As moças destinadas a uma vida laboriosa talvez que se considerassem mais felizes se lhes houvessem dada uma educação pratica mais conveniente á sua humilde condição. O desconhecido comprimentou com civilidade ao acabar esta curta resposta e facil era de ver-se que desejava pór termo á conversação. Havia um sensível contraste entre os dous personagens que acabavão de trocar algumas palavras. Tanto o primeiro se esforçava para affectar a vivacidade da juventude, quanto o segundo folgava em dar-se a apparencia da idade provecta.

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Este ultimo estava envolvido em uma comprida sobrecasaca da antiga moda; sua grossa bengala de castão de ouro parecia indispensavel para armal-o; a branca cabelleira perfeitamente harmonisaria com a pallidez do seu rosto, se os supercilios de masiadamente accentuados não protestassem contra essa velhice anticipada, e houvera sido difficil verificar se seu olhar, velado por oculos de cor, conservava ainda vislumbre de sua antiga chamma. No mais, um attento observador não houvera acreditado mais na velhice apparente d`esse personagem do que na affectada mocidade de seu interlocutor. No momento que acabava o dialogo que temos referido, algumas das alunnas esperadas entrarão no Locutorio. As primeiras que apparecerão não podião deixar de attrahir a attenção dos espectadores. Uma d`entre ellas, mademoiselle Mathilde de IIauterive, empallidecia seu tão sonoro nome. Era baixa e cachelica. As vivas cores de seu vestido desfavorecião sua tez pallida e enferma.

Em compensação, se lhe faltavão os dotes da belleza, expremia seu olhar uma ineffavel doçura; e o orgulho de ter em suas mãos as de Dolores, cuja modestia soffria com a quantidade de corôas que de seu braço pendião, suppria-lhe a falta d`esses distinctivos de talento e applicação. Quanto á linda moça que fora o objecto da conversação que ouvimos, provou, pela admiração que em todos os rostos se pintou ao entrar no locutorio, que nada de mais se dissera a seu respeito relativamente á sua esplendida belleza realçada pelo esplendor de sua loura cabelleira, por sua estatura e todas as graças de sua pessoa. Não era comente a belleza antiga que Phidias houvera tirado do marmore da Paros; havia mais esses divinos dons que o chistianismo derramou no coração da mulher, esse sentimento, essa elevação, essa ternura, essa caridade cuja intelligencia collocou a arte chistã tão acima das concepções do paganismo. A belleza plastica de Dolores não era mais do que uma encantadora revelação de sua alma. É assim como que em extasis diante de sua inesperada apparição. “É para elle que Mathilde arrastou sua amiga sem dar-lhe tempo de olhar em torno de si. - Meu querido tio, disse-lhe ella, é Dolores, é a minha inseparavel amiga de que tantas vezes vos fallei. - Mademoiselle, respondeu o mysterioso personagem, cujo grão de parentesco nos será ulteriormente explicado, espero que faremos mais amplo conhecimento, pois minha sobrinha não pode dispensar a vossa companhia: por ora espero que não recusareis apertar-me a mão. - Com a melhor boa vontade, respondeu Dolores, pois devo á amizade de Mathilde as horas mais felizes da minha vida. Agora, disse voltando-se para sua amiga, temos de separar-nos e quem sabe se não será para sempre!!!

- Nada poderá separar-nos, exclamou Mathilde abraçando-a, e se algum dia fores infeliz lembra-te do que me prometteste.

- Não vos vexeis de mim, disse com a mais decorôsa voz que lhe foi possivel a mâi adoptiva de Dolores appoximando-se do grupo. - Perdão, minha tia, disse timidamente a moça a quem essa apostrophe se dirigia, não vos tinha visto. - Supponho que não me procuraste muito, madermouselle; mas retiremo-nos, porque todos nos ouvem e vos olhão com uma curiosidade que julgo não vos desagradar. Como não desejo attrair a attençao acho conveniente que não prolongueis por mais tempo essa conversa. Segui-me pois e apressai-vos em mandar collocar no carro que nos espera a vossa bagagem. A senhora, tomando o braço de seu cavalleiro, sahio com magestade. Dolores seguia-os. Lançou um derradeiro olhar a Mathilde e a seu tio, que nada havião perdido d`essa significativa scena, e olhou depois com terror para o obsequioso companheiro de sua mái adoptiva

(Traduzido por Paulina Philadelphia).

Jornal das Famílias. tomo 3, dezembro de 1865, p. 370-373 “Dolores”

II DE PARIS A SÉVRES.

Dous braços abertos! Os dous braços abertos de uma mài que espera, recebe e abraça uma filha; como é terno e

commovedor! É uma intima união, uma fusão duas almas que se approximão, se encontrão e se confundem. Uma mái que abraça sua filha é sempre bella; é o quadro vivo da eterna mocidade, o mais terno symbolo da nossa religião, e a mais sublime inspiração da arte. O olhar de uma mài diz sempre: “Esqueci as dòres que tua primeira infancia causou-me, só me lembro das dòres que te reserva o futuro; estarei sempre a teu lado para defender-te?!” O olhar da filha diz: “Amo-te, sou fraca, protege-me!” é os braços de uma mài cruzando-se com os d`ella n`um ineffavel complexo revelão cousas tão bellas que jámais a palavra tentou expremir. Dolores, porém, mais infeliz que as companheiras que acabava de deixar, não ia encontrar dous braços abertos; ella era orphà.

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A senhora que lhe fazia as vezes de mài, isto é, do que nada substitui n`esta vida, a pretenciosa senhora de quem acabamos de esboçar o retrato, fazia-se chamar M’’’’ de Louvain; fosse por modestia, ou por prudencia, contentava-se em assignar-se nos papeis: Viuva Louvain, omittindo a particula nobiliaria. Ficára encarregada do cuidado, que de bom grado dispensára, de criar a pequena Dolores, sobrinha de seu marido e orphã. Não tendo filhos, divertio-se a senhora de Louvain, no primeiro anno de sua viuvez, em enfeitar como a uma santa a linda menina, o que lhe attrahia muitos comprimentos. Isto a remoçava, dava-lhe ares de uma joven mài, e proporcionava-lhe a occasião, que nunca desprezava, de ostentar toda a sua sensibilidade; essa velleidade porém foi-se dissipando á medida que a menina crescia. Nada é mais tocante do que ver a terna dedicação de uma mulher da sociedade, que após uma inconsolavel dòr encontra lenitivo na maternal affeição que dedica a uma creatura abandonada; conhecemos alguns d`esses admiraveis exemplos: não se imitão porém os sacrificios do coração. Talvez que a senhora de Louvain já estivesse de representar o seu papel. Quanto ao cavalleiro Banco, que acompanhava a tia de Dolores, ganhára sem duvida suas esporas na secretaria de alguma ignota chancellaria estrangeira´e constellava-lhe o largo peito uma fita de variadas còres. Entrou a senhorade Louvain no carro apoiando-se no braço do cavaleiro.

Este apresentou a Dolores a mão com affectada polidez; ella porém apressou-se em subir sem tocar na mão que lhe era offerecida. Sentou-se o cavalleiro em frente das duas senhoras, e o carro dirigio-se para a aldèa de Sèvres, habitual residencia da senhora de Louvain. Durante o trajecto o cavalleiro Banco tentou ser amavel. Fallava a Dolores de seus trabalhos de collegio, de seu talento, de seus triumphos collegiaes, e fallava-lhe de sua amiga; mas Dolores não se prestava a conversar, olhava com indifferença para o empoeirado caminho que se estende através das charnecas de Point-du Jour e de Billancourt; seus olhos, assim como seu pensamento, fixavão-se com preferencia na mysteriosa linha do horizonte que sempre attrahe as almas tristes. A moça que entra no mundo, depois de haver gozado da affeição de suas companheiras, necessita de um apoio, de um lar, de uma familia. É como uma trepadeira que procura suspender seus ramos para resistir ás futuras procellas. Dolores não tinha nem lar, nem familia, estava só no mundo. Ignorava a historia de seus pais; havião-lhe dito que era orphã; não tinha reminiscencia alguma dos primeiros annos da sua infancia; a mais antiga imagem que conservava sua memoria era a da senhora de Louvain, que se encarregára de sua educação. Ella desejava ser grata, e lamentava não encontrar em seu amante coração um sentimento de ternura para com essa tia que parecia fazer por ella grandes sacrificios; pois a senhora de Louvain dispunha de poucos meios, e o elegante collegio em que Dolores fora educar-se não estava em relação com seus modestos haveres. Quando em sua mente comparava as ternas manifestações de amizade de suas companheiras, e o amigavel adeos que lhe havião dito ao separarem-se, com o glacial acolhimento que lhe estava reservado em casa de sua tia, desejava remontar o curso dos annos, e não ousava encarar o futuro. Algumas vezes, em vez de ensoberbecer-se de seu talento e saber, lamentava com admiravel bom senso de não ter sido criada com a simplicidade conveniente á sua desgraça. Inveja a sorte das orphãs da caridade, que vira passar vestidas de panno azul e touca preta, sob a vigilante guarda de uma religiosa que lhes servia de mài. Ignorava Dolores que depois de haver entrado no collegio como externa captára de tal modo a affeição de todos, que a directora não consentira em apartar-se d`ella, quando pela morte do Sr. de Louvain sua viuva a quiz retirar, por motivo de economia. Foi pois Dolores educada n`esse brilhante collegio sem onus para sua tia. Esse segredo foi guardado, por sua generosa preceptora, com extrema delicadeza, e a Sra. de Louvain não tinha pressa nem interesse em revelal-o. A espereza da Sra. de Louvain provinha das perfeições da linda Dolores, que fora até então tratada como criança, mas cujo desenvolvimento de graças e belleza podia ferir o amor-proprio femenino de sua tia, ou deveremos attribuil-a ao peso e responsabilidade que lhe acarretava a volta d`essa menina que por tanto tempo afastára de si. Nas relações da Sra.de Louvain para com sua sobrinha o coração não tinha parte; pois nada fazia para alcançar a affeição de Dolores, e seus exagerados excessos de ternura erão subitamente substituidos por perfidas insinuações.

Dolores devia pois temer a existencia que lhe estava reservada. Não entrevia nenhuma das perspectivas que naturalmente se apresentão à imaginação da mais innocente moça. Não podia dispor de si; e lançando um olhar para o cavalleiro Banco temia os projectos que sua tia poderia formar sobre o seu futuro. Era seguindo com os olhos o horizonte longinquo que Dolores fazia essas reflexões, emquanto que atravessava a pulverosa planicie de Billancourt o carro que arrastava o seu destino à ponte de Sevres. A paisagem que n`esse ponto da estrada se desenha attrahio por um momento sua attenção. Tinha á sua direita as frescas sombras do parque de Saint-Cloud e os cimos do monte Valeriano, á esquerda as collinas verdejantes de Meudon e Bellevuem, que dominão o rio. Lançou seus olhos sobre essas ondulosas linhas. Esse doce espectaculo serenou por um momento sua alma, aberta ao sentimento de tudo o que é bello; teve uma aspiração de liberdade, qual o passaro que ve aberta a porta de seu carcere. Mas que houvera a misera feito d`essa liberdade? Todavia, parecia-lhe ainda mais triste o jugo sob o qual ia viver.

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Passou-se diante do parque de longas perspectivas, diante da celebre manufactura de porcellanas, e por fim parou o carro em frente a uma pequena casa da rua que serpeja o estreito valle de Sevres, dominando por toscas penedias. Esse desfiladeiro, que vio passsar as equipagens das antigas cortes, parece ter sido conservado em seu primitivo estado para contrastar com as magnificencias de Paris e Versailles, a quem serve de traço de união. O cavalleiro presidio, como era de seu dever, à descarga das bagagens, que forão silenciosamente recebidas por uma silenciosa criada da Sra. de Louvain; depois, comprimentando com respeitosa affectação, e promettendo uma proxima visita, foi para sua residencia de verão, sita na encantadora aldea de Bellerue, que, como se sabe, senhoria de suas alturas os cachopos de Sevres. Jornal das Famílias. Tomo 4, julho de 1866, p. 207- “Dolores”

III A BOA NOITE

Já ia o dia adiantado; e a Sra. de Louvain foi para seu quarto, que era no primeiro andar, sem importar-se com sua nova hospede. Deitou-se sobre um divan, esperando a hora do jantar, e pôz-se a meditar na conducta que d`alli em diante lhe conviria ter para com sua sobrinha. Dolores, ajudada pela criada, collocou suas bagagens no modesto quarto que lhe fora destinado. Essa boa mulher, que era desde muitos annos o factotum da Sra. de Louvain, não tinha por certo uma sinecura essa casa. Chamavão-a Crucifixo. Nunca nome symbolico fora mais bem applicado, pois ella carregava verdadeiramente a sua cruz. Tinha por dever fazer todo o serviço e ouvir impassivel todos os actos de accusação que lhe erão incessantemente dirigidos, sem que pudesse invocar em sua defesa circumstancias attenuantes. Era de origem alsaciana, e fallava soffrivelmente mal o francez, o que pouco a prejudicava, pois raramente fallava. Era uma pobre rapariga desgeitosa, e di-se-hie que era feita de uma só peça. Reservava sem duvida para sua ama toda a elegancia do seu talento de costureira, pois contentava-se com o adorno de um vestido de fazenda parda, enfeitado de um avental do mesmo estofo e côr. Parecia ter de trinta a sessenta annos; houvera sido porém difficil precisa da uma idade a esse rosto de soldado velho, para o complemento do qual tinha até um pronunciado signal de bigodes. Quanto aos cabellos, que sem duvida possuia, e não occultados por uma touca chata, cujos ornatos descião lhe sobre suas ossosas faces e orelhas de cachorro deitado. Essa pobre mulher havia sempre estimado Dolores, apezar de vêl-a só em raros intervallos, pois desde que crescera e se tornára linda, vivendo a Sra. de Louvain com parcimonia não ia buscal-a sempre que no colllegio lhe facultavão a sahida; contentava-se em fazer-lhe algumas ceremonosas visitas, acompanhada pelo cavalleiro Banco, nas quaes sempre deixava a infeliz menina cheia de desanimo e mào humor. Crucifixo achava Dolores bonita e muito crescida. Ao achar-se a sós com ella em seu pequeno quarto não sabia o que lhe dissesse; ficava em admiração diante d`ella em vez de ajudal-a em alguma cousa. Estava contentissima por ver na casa um rosto novo, rosto joven e agradavel; em primeiro lugar, porque uma sympathica e bella physionomia é sempre grato ver-se; e em segundo, porque talvez que internamente dissesse: seremos duas para carregar a cruz. Arrependendo-se porèm immediatamente d`esse mao pensamento, teve compaixão da moça.

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- Que desgraça! Exclamou por fim levantando seus compridos braços. No mesmo instante, como que aterrada do que dissera, e quiçà de ouvir sua propria voz, afastou-se com assombro pondo um dedo sobre a boca e apontando com outro para o andar superior, onde residia a terrivel dona do lar.

Apezar de afflicta achou Dolores a alegria de seus primeiros annos, e não pode impedir-se de rir do accento estrangeiro e trágico gesto da boa mulher; estendeu-lhe a mão, fazendo-lhe um signal de intelligencia e agradecimentos, pois não era pequena ventura para a triste abandonada de achar um honrado coração que se lhe affeiçoasse.

No mesmo instante um estridente som da campanhia da Sra. de Louvain veio provar a Crucifixo que por mais tempo não houvera podido ficar em silenciosa contemplação diante do amigável e seductor semblante de Dolores.

Na precipitação com que sahio encontroou no portal. Ouvio-se-lhe redobrar na escada o passo militar para mais promptamente acudir ao chamado de sua ama, cuja impaciência conhecia.

Estava Dolores occupada no arranjo do seu quarto e em mudar um vestido, quando novo som de campanhia, mais estridente que o primeiro, se fez ouvir. Não suppondo que a pudessem chamar por tão insólito modo, não lhe deu atenção, vendo porem que o som continuava, cada vez mais irritado, comprehendeu que só a ella podia ser dirigido. Aconselhava-lhe o amor próprio offendido que não fosse ao chamado, mas sua razão e dever dizião-lhe que obedecesse, decidio-se pois ir. A Sra. de Louvain já tinha sentado à mesa. Sentou-se Dolores por sua vez diante do prato que lhe era destinado, mas com o rubor nas faces. Aceitando tão áspera hospitalidade parecia-lhe que mendigava. - Menina, disse a Sra. de Louvain, começando seu discurso depois de ter mandado retirar a Crucifixo e achar-se a sos com sua sobrinha..... - Chamai-me Dolores, disse a moça, eu não sou mais de que uma pobre menina que socorrestes e que podeis abandonar quando vos aprouver; o titulo que me dais é uma ironia. Farei tudo para agradar-vos, minha tia, mas peço-vos que não me chameis de menina, pois não sou mais do que uma serva n` esta casa. - Entendo-vos, respondeu a Sra. de Louvain com malévolo sorriso, è o toque da campainha que offendeu vosso melindre, pois minha cara, è preciso não agastar-se por tão pouca cousa, e aceitar a posição que nos dão quando não se tem onde escolher. Aqui, como vereis, não sera o xadrez nosso entretenimento, assim, ainda há pouco retivestes ao pe de vós minha criada por tanto tempo.

- Porem, minha tia, foi a boa Cricifixo.... - Sei que nunca vos achareis culpada, mas já que não quereis ver em mim uma mái, advirto-vos que vossa tia não

admitte respostas. No mais, já que encetámos este assumpto, tenho de fazer-vos uma observação. Não tocarei na leviandade que tivestes occupando-vos de vossa amiga Hauterive e da pessoa que a acompanhava estando eu à vossa espera...

- Deverei repetir-vos, minha tia, que não vos tinha visto? - Está bem. Tenho porem duas palavras para vos dizer acerca do tom que adoptastes para com o cavalleiro nas mais insignificantes cousas. Deixai esses ares de princesa ultrajada, e respondei-lhe como uma menina de collegio que ainda sois, e contai que se não fizerdes travessuras elle vos trará doces. Quanto ao trágico nome de Dolores, única herança que tendes de vossos pais, digamol-o de passagem.. vós o tomais muito ao serio, elle me fatiga; e, se não lhe achais inconvenientes, chamar-vos-hemos Laura.

- E permitindo responder? perguntou Dolores humilhada pelo escarneo. A Sra.de Louvain acendeu uma vela e deu-a a Dolores dizendo-lhe.. - Basta por hoje. Vós me fatigastes. Preciso de uma existência mais tranquilla. Boa noite, Laura, apresentou a

Sra. de Louvain, depois de uma curta pausa. Dolores tomou a luz e sahio sem ter podido articular uma palavra. Quando achou-se só e em seu quarto, entregue às tristes reflexões que lhe suggeriao os acontecimentos do dia,

ouvio através da porta a voz de Crucifixo, que ousava dizer-lhe “boa noite” passando, e bem depressa. Essa boa noite amigável e sincera foi para ella um balsamo consolador.

IV Resoluções

A magoada Dolores não podia deitar-se. Conservava-se sentada e inactiva diante de uma mesa de costura. A compaixão que inspirara a boa Crucifixo ainda mais oppressivo fazia parecer-lhe o rigor d´ aquella que dispunha de seu destino, e que tentava despojal-a de seu próprio nome, único bem que possuía de seus pais. - Achou na oração uma nova força para supportar as provações que lhe estavão reservadas; e tendo assim feito um acto de humildade, entregou-se a Providencia, como a ave que sorprendida pela tormenta luta ao principio contra a procella, mas deixa-se depois confiantemente balouçar pelo impetuoso vento. É forte aquelle que effeitua o sacrifício da sua vontade, pois já se não exhaure em intermináveis lutas; acha um seguro guia na inspiração divina., e nem pode mais apartar-se do bom caminho.

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Não era uma existência mais ou menos commoda que a preoccupava; não mirava à elegancia nem ao triumplo., tinha a consciência de sua belleza, mas summamente acostumada a captivar os olhares sentia-se mais confusa que orgulhosa d`essa vantagem, o de bom grado se houvera apagado, se isso lhe fosse possível. A mais humilde profissão paracia-lhe invejável. Ganhar com suas mãos o pão quotidiano e entregar a Deos o cuidado dia de amanhá que sonho encantador!!... Ignorava porem todas as antes, e quando as houvera sabido, de que lhe servirão?ella não era livre, estava condemnada a viver do pão da caridade. Ambicionava fazer por merecer esse pão e diminuir-lhe o amargo tornando-se util e agradavel, tentando fazer-se amar, e esforçando-se por agradar á Sra. de Louvain, da qual queria estudar os gostos e fantasias. Segredava-lhe um certo orgulho que não se deve gabar o que se desapprova, mas dizia-lhe sua indulgencia que era a Sra. de Louvain sua bem feitoria, e que emfim emprehendêra sua tia uma obra de caridade da qual não tirava proveito algum. Chegou a explorar-se de não ter feito assaz para agradecer esse beneficio, e formulou para o dia seguinte as melhores resoluções, sem ir com tudo até vencer a repugnancia que tinha pelo cavalleiro Banco, cuja solicitude a constrangia e molestava. Havia n’isso para ella uma questão de dignidade que devia sobrepujar a qualquer compromisso. Tendo acabado de meditar trançou distrahidamente seus compridos e louros cabellos, de que já por mais de uma vez lastimára o brilho, e olvidando momentaneamente suas mágoas entregou-se a um pesado somno, como a criança que adormece depois de amargurado pranto.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 4, agosto de 1866, p. 242-245 “Dolores”

V APRESENTAÇÕES

Na grande rua de Sèvres, em que os habitantes vivem por gosto no limiar de suas portas, não pôde passar desapercebida a chegada de Dolores. Os amigos e vizinhos da Sra. de Louvain transmititão-se as noticias; tinhão-a visto; contavão suas perfeições; dizião que tinha olhos grandes, cabellos da cor do sol, o andar gracioso, e que havia de ser a perola do bairro: não se saciavão emfim! A curiosidade ajudava a sympathia; e por isso no dia seguinte vio a Sra. de Louvain succederem-se as visitas que a vinhão comprimentar, e felicitar de ter formado com seus cuidados uma tão bella natureza, e receber feliz compensação dos trabalhos que tivera. Perguntavão-lhe se não destinava fazer apparecer essa linda menina. De bom grado houvera a Sra. de Louvain perdoada essas effusões, se não fosse lembrar-se que devia representar o papel de terna mãi. Chamou Crucifixo ao som da campainha, e ordenou-lhe que fosse chamar á sua sobrinha. Crucifixo admirada foi executar a ordem, sem nada poder comprehender do que se passava - Ella chamava-se Dolores, disse com emoção aos circumstantes a Sra. de Louvain; mas, como esse nome serve para rememorar-lhe as desgraças de sua família, eu a chamo Laura, afim de afastar d`essa pobre menina toda a idéia penosa.

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- Como isso é tocante! Disse a Sra. Paintendre, uma das mais intimas amigas da Sra. de Louvain, consultando o circulo que augmentava progressivamente. Todo forão da sua opinião. Dolores ao entrar na sala foi saudada por um murmurio de approvação. Depois do que se passara entre ella e sua tia na vespera ficou maravilhada ao ver que ella a abraçava extremosamente antes de apresental-a ás pessoas que alli estavão. Os exagerados elogios que lhe prodigalisára intimidárão-a excessivamente. Não exigia tanto. Fòra mais de seu gosto uma vida modesta e calma. Todas as senhoras quizerão abraçal-a, e os homens por não podèl-as imitar desfazião-se em comprimentos. Quando a Sra. de Louvain, volteando a sala com Dolores, chegou ao lugar do padre coadjutor (seu visitador constante), elle exclamou, tocado pela nobre rondueta da Sra. de Louvain e pelo ar modesto e affavel de Dolores: - È o que eu esperava! Eis mais um anjo para a nossa freguezia, accrescentou o bom pastor tomando as mãos de Dolores; mas ainda não é tudo, minha linda menina, tereis de pagar o tributo de vossa chegada. O talento e a belleza são laços que por vezes nos arma o inimigo, e tambem dons dados por Deos para que os appliquemos á sua gloria o que não me entendeis, disse elle, eu me explicarei melhor: ouvi-me pois. Dolores conservava-se modestamente diante do padre, ouvindo-o com respeitosa attenção. Esperavão os circumstantantes com curiosidade o que elle ia dizer. - Minha menina, disse o padre, teremos no proximo domingo uma festa de caridade, que é sem duvida o melhor modo de honrar a Deos. Não ignoramos a perfeição com que tocaveis orgão no collegio; não façais signaes negativos, pois vossa tia trahio-vos para com o senhor cura mostrando-se orgulhosa de vosso talento, e eu já vos fui ouvir; por isso não tenteis persuadir-me do contrario. Vós não nos recusareis de substituir, por esta vez, nosso organista que se acha ausente. - Exagerarão o meu saber, Sr. padre, disse Dolores, mas se vos contentais com a musica de uma collegial, estou ás vossas ordens, uma vez que não esteja expostas ás vistas do publico. - Ganhei! disse o emprehendedor padre; mas, deveis a Deos até o sacrificio de vossa modestia. Que sejais vista é o que justamente desejamos. Nossos parochianos são uns pobres peccadores que se altrahem pelos ollhos. Se vós lhes apresentardes a salva onde tenhão de depór a oblata não olharão á quantia. Concordo que seja isso um mal, mas não podemos refazar a pobre humanidade; assim pois, aceitemol-a tal qual é. - Desculpai-me, disse Dolores extremamente perturbada. - Como? Exclamou o coadjutor, acaso recusais esmolar por nós? vossa recusa equivale a um roubo feito aos pobres orphãos de que nos occupamos. Todas as pessoas gradas da vizinhança alli estarão presentes, e crede que os que a vos darão moedas de ouro, só terão para o pobre padre. “Como em chumbo vil mudou-se o ouro”, diz o terno Racine, pois tenho tambem meu repertorio profano. – Como deverei responder ao poeta?é porque a linda Dolores recusou esmolar para os orphãos? Que dizeis a isto? accrescentou voltando-se para a mãi adoptiva da moça. Contrariava as vistas da Sra. de Louvain o collocar no primeiro plano aquella que desejára apagar, e pezava-lhe ter gabado o talento de sua sobrinha para lisongear a cura; porém, como ter de apparecer em numerosa assembléa contrariava a Dolores, foi esse motivo sufficiente para que a quizesse contrariar. Lembrava-se ao mesmo tempo que teria parte na gloria que a sobrinha obtivesse quando em torno d`ella ouvisse dizer que fora a tia da misera abandonada que tudo fizera em seu prol. Annuio aos desejos do padre por antever n`isso honras e considerações para si. - Substitui-me, disse Dolores á sua tia, eu vol-o peço. Tocando orgão não posso obstar a que meu vestuario fique inapresentavel. - Quereis dizer, interrompeu o padre, que se não tocar os sinos e acompanhar a procissão; a caridade, minha filha, não conhece impossiveis. Não são vossos adornos que nos interessão, mas sim vosso persuasivo olhar, em que está personoficada a caridade. É bem verdade que seria a Sra. de Louvain uma linda collectora, accrescentou elle como um habil diplomata que deseja manter as boas relações de ambos os lados, porém d`esta vez sois vós que desejamos, Deos o quer. A senhora vossa tia tem um lugar reservado na ceremonia. Minha filha, disse a Sra. de Louvain, quando de tão poucos meios se dispõe para fazer bem é deshumano e irreligioso não aproveitar as ocasiões. Vossa modestia soffrerá com isso; mas, como diz o nosso bom padre, deveis sacrifical-a a Deos. Demais, o bem-estar de que gozais não vos deve fazer esquecer que existem orphãos infelizes. A quem dizia isso a Sra. de Louvain?! Não era materia estranha á pobre Dolores. - Não deveis constranger-vos, minha filha, disse o bom padre vendo o ar consternado da moça, Deos só quer os corações que a elle se chegão em toda liberdade.- Dizei-o, fazeis voluntariamente? - Eu o farei por obediencia e por dever, respondeu ella. - Nume dimittis, exclamou o feliz coadjutor, vou transmitir tão boa nova ao Sr. cura, de quem não sou aqui senão o embaixador. Todos os circumstantes juntarão seus agradecimentos aos do padre; e toda a população de Sévres, desde as primeiras casas da margem do rio até os confins de Chaville, limite opposto do paiz, soube que no proximo domingo a

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sobrinha e filha adoptiva da Sra. de Louvain, a linda Dolores emfim, tocaria orgão na festa da caridade, e collectaria no fim do sermão. - Então, Laura, disse a Sra. de Louvain quando se achou a sós com sua sobrinha, estais contente? O desejo de apparecer é natural na vossa idade, mas é conveniente não manisfestal-o; começais a ageitar-vos; bem védes que fui boa companheira, e que vos repliquei como se me houvesseis suggerido a resposta. - Oh! minha tia, exclamou Dolores envergonhada d`essa insinuação, podereis crer?... - Não façais de innocente, retorquio-lhe a Sra. de Louvain com ingenuidade; e ide ver se nada falta ao que vos é preciso para brilhardes; terei grande prazer em annunciar aos vossos desejos. Dolores nada tinha para responder; ficou pois demonstrado que ella estava encantada de representar o primeiro papel na solemnidade.

VI Preparativos

Toda a semana foi empregada em preparar-se para a ceremonia em que Dolores tinha de apparecer. Por manobra inesperada, e com o fim de sobresahir na apresentação de sua sobrinha, esqueceu a Sra. de Louvain por um momento seu habitual mao humor; e quis enfeitar a Dolores como um relicario. A pobre menina poderia n`essa occasião suppôr-se voltada aos primeiros annos de sua infancia, quando sua tia, que então parecia brincar com uma boneca, descobriu sempre meios de attrahir as vistas dos viandantes com os excentricos enfeites e extravagantes penicados que lhe fazia. Teve Dolores de defender-se contra as fantasias da Sra. de Louvain, que teimava em medir um vestido de baile, notavel pelo excessivo brilho das cores e inconveniente decotamento. - È preciso sobresahir, dizia a Sra. de Louvain, segurando com alfinetes as partes defeituosas do vestido; se fossies difforme como vossa amiga Mathilde, que tambem escolhestes a esse respeito, eu comprehenderia vossos escrupulos; mas, já que não sois feita, e que por único dote possuis a mocidade, e o que denominão vossa belleza, é preciso não perder a propicia occasião que tendes de patentar esses dons: e quem sabe se não haverá entre os circumstantes alguem que, aceitando-se como moeda corrente, venha pedir-vos em casamento? - Nunca me lembrei d`isso, respondeu Dolores, e depois..... - Pois a mim interessa bastante para que n`isso pense, e de meu parecer sobre este assumpto, interrompeu a Sra. de Louvain, por isso quero que vos enfeiteis. É o que deveis fazer para me agradar; pois há aqui uma questão de amor proprio para mim. Tambem, se offerecesse uma occasião conveniente..... Essa insinuação fez suppòr a Dolores que se tratava do cavalleiro Banco, cuja assiduidade era animada pela Sra. de Louvain, que adivinhado esse pensamento lhe disse: - Qual é pois vossa tenção? não obstante a minha boa vontade, de que já vos dei inequivocas provas, não posso, minha cara, ter-vos eternamente a meu cargo. - Trabalharei, respondeu timidamente Dolores. - Trabalharei?!! como se diz isso depressa. É nas legendas e nos romances que vistes lindas meninas tirarem proveito de suas prendas? Que seria de nossos romancistas se não occultassem suas officinas de pintura, seus albuns, seus cadernos de musica e seu repertorio de convenção? Supponho que não tomais ao serio essa comedia. Se tivesseis um talento de primeira ordem!... - Ai de mim! interrompeu Dolores, vejo a minha inaptidão. Coserei então, minha tia, e servir-vos-hei tanto que me conservareis em vossa companhia. - Não vos dé isso cuidado, Laura; tornaremos a fallar sobre esse assumpto; deixai-vos guiar por minha experiencia, que não tereis de arrepender-vos. Não era uma evidencia para Dolores, cujo espirito era justo e o coração recto, a experiencia e o bom senso de sua tia. Desanimada entregou-se às modistas e costureiras, protestando sempre contra os exagerados adornos que lhe propunhão. Teve de fazer dous ensaios na igreja de Sevres para experimentar o instrumento diante da cura, e escolher as peças que teria de tocar. O bom exito dos ensaios desembaraçou-a, e inspirou-lhe confiança. - Continuar-se-há.-

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 4 , setembro de 1866, p. 271-275 “Dolores”

VII

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O reverso da medalha. Durante a primeira semana apresentou-se o cavalleiro Banco diversas vezes em casa da Sra. de Louvain. Como se mostrára captivado pela belleza de Dolores, devemos suppor que conservava para com ella ainda os mesmos sentimentos, apezar de não ser-lhe estranha a desagradavel impressão que causára no animo da moça. Como habil tacttico, que era, adoptou para com ella uma nova linha de conducta. Ostentava grande solicitude para com a Sra. de Louvain, procurando fazer sobresahir uma leve tintura de melancolia. Abstinha-se de fallar com Dolores, a quem só comprimentava ao entrar, affectando esquecel-a em todo tempo que durava sua visita. Essa affectação servia de allivio à pobre moça. Ao principio houvera a Sra. de Louvain podido attribuir a seus encantos a assiduidade de seu visinho, e um resto de vaidade femenina contribuio talvez para augmentar-lhe o maior humor que resentio com a volta de Dolores para sua companhia. Houve evidentemente em seu espirito uma luta, em que succumbio a vaidade, dando lugar a outros calculos. Tornou-se mais razoavel, e formulou idéias relativamente a um futuro pacto. Parecia-lhe muito natural exigir do pretendente uma indemnisação dos gastos que fizera em dinheiro e sensibilidade para a educação de sua sobrinha. Não era o cavalleiro Banco destituido dos bens da fortuna; assim o fazia suppòr a abastança com que vivia, quer na cidade, quer no campo. Inculcava-se admirador apaixonadissimo da arte, e admirador da belleza plastica. Era officioso amigo dos artistas celebres, e o protector dos juvenis talentos, que ordinariamente explorava em seu proveito. Tinha por esse meio sua casa de Bellevue adornada com os mais seductores specimens das bellezas da arte, que aos encantos do espirito e qualidade do coração; mas julgava sem duvida uma gloria possuir o thesouro que havia descoberto. Figurava-se-lhe o effeito que faria no mundo artistico o apparecimento de Dolores, illiminando seus salões com o brilho de sua maravilhosa belleza; e que satisfação teria se ouvisse na sociedade perguntar-se: quem é este novo astro?!... e se igualmente ouvisse responder: é a joven esposa do cavalleiro Banco. Pensava que haveria talvez um seguro meio de ser procurado, e de chegar a tudo com um pouco de habilidade, no prestigio de uma tal belleza. A Sra. de Louvain, como o dissemos, conhecia o valor da realisação d`esse desejo, e entendia que era de toda justiça lucrar na transacção. Começavão esses dous personagens a entenderem-se mutuamente, e poder-se-hia prever que começaria em breve o jogo em que a pobre Dolores seria a parada. Quem ousaria affirmar-nos que em minutos casamentos da melhor classe da sociedade a questão de mais peso não é a do dinheiro? No vislumbre de consciencia que ainda possui não achava a Sra. de Louvain o menor escrupulo em dispôr assim do futuro de sua sobrinha: julgava proporcionar-lhe um brilhante amparo, para agradecimento do qual acceitaria, em caso de necessidade, uma recompensa. Estava pois a sagaz de Dolores satisfeita de ter uma occasião de apresentar sua sobrinha diante de uma numerosa assembléa, para attribular d`este modo o cavalleiro Banco, e obrigal-o a declarar suas intenções, em vez de cifrar-se em improductivas e estereis admirações.

VIII A COLLECTORA.

Não asseverámos já que é sempre bella uma mài quando aperta em seus braços seu filho: Diremos mais. Que uma pobre igreja é sempre bella quando tem seus filhos reunidos sob suas arruinadas abobadas. É sobretudo quando a Igreja celebra as festas da caridade que tem uma belleza intelligivel, até para o menos perspicaz. A fé vacillante liga-se a esse symbolo de amor. Os que ainda não esclareceu a verdadeira luz tornão-se n´esse dia fieis convictos, ao tempo que o coração vai-se-lhe abrindo á verdade. A pequena igreja de Sèvres, que, devemos dizêl-o, não pode aspirar a ser classifica entre os monumentos historicos, nem por seu caracter, nem pelos detalhes de sua architectura, estava radiante n`esse dia de domingo consagrado a uma boa obra. Tudo n`ella tomava uma significação comprehensivel. Achava-se com effeito na entrada do còro o bando das orphãs abandonadas que havião sido reunidas e abrigadas por alguma das jovens irmãs da caridade. Por um prodigio da vontade forão essas meninas decentemente vestidas para essa circumstancia; as mulheres porém, que as havião adoptado, erão demasiadamente pobres para poderem proteger e alimentar suas pequenas disciplinas. Possuindo unicamente o coração, que havião dado à sua juvenil familia, esperavão confiadamente pelo pão do dia seguinte. Nada nos parece mais tocante, ou digamos melhor, nada mais arrebatador do que esse milagre do amor incessantemente renovado sob nossos olhos. Essas jovens mulheres de rosto calmo e encantador renunciárão a todos os gozos d`este mundo! Educadas para o amor mystico, acima de todos os interesses humanos, não se refugião no quietismo do claustro. Preferem soffrer. Querem amar e socorrer os que soffrem. Se derão a Deos sua alma, seus braços, sua vida e coração pertencem aos desgraçados.

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Aos que não é dado chegar a essa perfeição, os que são retidos pela servidão do mundo, sentem-se abalados por esse admiravel quadro e enebriados pelo subtil perfume que exhala o puro calice d`essa flôr que desabrochou no solo christão, é que se chama caridade. Cumpre desculpar esta digressão que suspendeu o curso da nossa historia. É um privilegio de que por vezes abusa o narrador. Ao ver porém o interesse com que erão olhadas essas infelizes crianças, póde suppór-se que erão essas as reflexões de uma parte dos assistentes. Antes da hora da missa achava-se na igreja uma brilhante reunião de pessoas, que tinhão vindo de todas as casas circumvizinhas por convites especiaes. Os retardatários não achando mais lugar formavão grupos vestibulo. Começou o santo sacrificio. O talento dos cantores, cumpre confessal-o, estava aquem da altura da ceremonia. O auditorio achou ampla compensação da estridente voz do fagote, que acompanhava o cantochão, na exacta e expressiva execução de Dolores, que parecia gemer e implorar pelos desgraçados, cuja miseria devia commovél-a mais que aos outros. Nunca as modestas abobadas da pequena igreja havião sido abaladas por tão verdadeiros e intelligiveis accentos. Lamentamos por mais de uma vez em nossas lindas igrejas que os artistas que ahi exhibem seu talento musical se elevem por vezes a tal altura que os fieis os não possão acompanhar. O bom pastor havia preparado o caminho para a linda esmolar, a qual, conduzida pelo adjunto, adiantou-se precedida do porteiro com grande pennacho, e seguida em distancia pelo sacristão adornado com uma sotaina bipartida, preta e encarnada. Defendendo-se da influencia de sua tia, havia Dolores podido obter um vestido isento de exagerações, e convenientemente feito. Seu esbelto talhe, seu pisar graciosa, e sua incomparavel belleza, tornarão a mais de um fiel culpado de distracção. Era essa a parte mais constrangedora de sua tarefa que Dolores começava. A fixidade dos olhares perscrutadores que sobre ella se fixavão não a tranquillisava. Algumas senhoras, para contemplarem por mais tempo essa doce physionomia, essa belleza de aureola de ouro, affecctavão não achar a moeda que procuravão, e depunhão-a depois pausadamente na bolsa, dirigindo á moça um sorriso de sympathica. Quanto à Sra. Paintendre, estava tão commovida, que deixou cahir o dinheiro, e desappareceu por baixo das cadeiras para procural-o, emquanto passava a linda collectora. Dolores, um pouco deslumbrada por tão numerosa assembléa, confusa pelas meias palavras que em torno de si ouvia, e fatigada de passar no estreito caminho que lhe estava traçado, seguia machinalmente o porteiro de brilhante trajo, e pagava com um agradecimento cada obolo que cahia em sua bolsa de velludo. A Sra. de Louvain, em trajo de ceremonia, sentava-se na mesa do recebimento, onde causava, a seu grande aprazimento, todo o effeito que prevíra. Quando Dolores adiantou-se, respeitosamente, para apresentar lhe a bolsa, parecia-lhe ouvir dizer por todos os olhares: “é a mãi d’essa linda menina; ou ainda mais, é sua bemfeitora, a que teve cuidado da menina abandonada e a tornou uma moça completa”. A esmola passou: e a pouca distancia d’alli achou-se em frente de uma moça que entrevimos no começo d’esta historia. Era Mathilde de Hauterive, que achando-se com sua mãi na chacara de Chaville, tinha vindo assistir á ceremonia, por convite de seu tio. - Que feliz encontro, disse Mathilde em voz baixa e apertando a mão de Dolores. Nossas chacaras estão proximas, nós nos veremos. - O tio de Mathilde tendo na mão uma moeda de ouro levantou a cabeça, e reconheceu a esmola, que sua má vista lhe impedíra de ver, e cujo aspecto o tocára de admiração, no primeiro encontro que com ella tivera, na distribuição dos premios. - Desculpai-me, senhora, disse elle, eu me enganei; e tirando da carteira um bilhete do banco envolveu n’elle a moeda que devia ser a sua primeira offerenda. - Vedes? disse em voz baixa a Dolores o adjunto que lhe dava a mão; o senhor coadjutor bem o havia previsto, vós mudais o cobre em ouro. Esse encontro servio para augmentar a pertubação de Dolores. Parecia-lhe que a oblata encerrava alguma cousa que a ella directamente se dirigia, pois que tão altamente se lhe modificára o valor ao reconhecer-se a collectora. Como se tratava porém de uma obra de caridade, só quis ver n’isto um signal de sympathia da parte do companheiro de sua amiga. Pensou repetidas vezes em sua bondade paternal e profunda piedade. Os que soffrem carecem tanto de consolação que lhes basta um bom olhar e uma boa palavra para attrahil-os e commovel-os. Exprobrava-se de fazer reflexões tão pessoaes, em vez de pensar unicamente na obra de caridade que lhe estava confiada.

Acabada sua tarefa desappareceu, e na ultima parte da ceremonia só se ouvio a voz do orgão, cujas acções de graças assemelhavão-se ao concerto dos anjos; emquanto que os jovens acolytos balançavão o thurybulo diante do tabernaculo, illuminado por feixes de luzes.

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A multidão escoou-se depois, e os trens desfilárão ruidosamente em todas as direcções. As caridosas irmãs, e suas protegidas, esperavão na sahida a collectora, que se conservára em distancia, e reunírão-se-lhe em torno.

Voltando Dolores para casa, acompanhada por sua tia, consolava-se da empresa, lembrando-se do feliz encontro que tivera, e considerando que o primeiro emprego que fizera de seu pouco saber fôra em proveito das pobres crianças, cuja miseria a sensibilisava profundamente, pois era a sua propria miseria.

Foi Crucifixo porém a que esteve mais orgulhosa de seu dia. Não que estivesse mais expansiva que do costume, mas é que rejeitando a louca preta pavoneára se n’esse dia com uma branca, o que n’ela era muito significativo. Seguia em distancia sua ama carregando os livros da missa e endereçando aos que encontrava um triumphante olhar, no qual parecia dizer: “eis como nós somos e como executamos a musica”.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 4., outubro de 1866, p. 310-313 “Dolores”

IX A orphã

Fôra o Sr. Prieur vivamente tocado pela graça, belleza e talentos de Dolores. Teve, cumpre confessal-o, mais de uma distracção durante a ceremonia; como lhe despertassem porém só idéas de caridade não tinha remorsos d’ellas. Menos profunda houvera sido a impressão que Dolores lhe causára, se através d’essa grande belleza não houvesse lobrigado em seu olhar e conjunto os mais elevados sentimentos. Não que sob a impressão de um primeiro olhar houvesse resolvido encher de favores da fortuna a orphão que tanto lhe gabára sua sobrinha, mas é que dotado de uma alma generosa conhecia-se inhabil para a caridade, e parecia-lhe que o bem que desejava derramar teria um decuplo valor se fossem as mãos, voz e sorriso de Dolores que o dispensassem. Figurava-se-lhe que radiante apparição seria Dolores junto ao leito dos desgraçados, quando lhes prodigalisasse, qual bom anjo, soccorros e consolações em seu nome. A caridade é uma arte; os que soffrem são por vezes susceptiveis, irritaveis e injustos. Cumpre tocar-lhes as chagas com mão extremamente delicada; é o que por vezes esquecêrão bemfeitores animados das melhores intenções.

“Livra-me antes do perigo. E arengar-me-has depois, amigo”.

Estava o Sr. Prietur persuadido de que o olhar e o sorriso de Dolores serião a mais doce e persuasiva arenga. Estaria acaso o tio de Mathilde dominado pelo prestigio de uma illusão, ou seria Dolores verdadeiramente digna de ser a encantadora ministra de sua caridade? É o que apressou-se em verificar; salvo apparecerem mais tarde difficuldades que se oppuzessem á realisação de seus projectos. Como não podia dirigir-se á Sra. de Louvain, pareceu-lhe que a mestra de Dolores estaria habilitada para dar-lhe as mais completas informações. Recebêrão-o com todas as attenções devidas ao tio de Mathilde de Hauterive, e derão-lhe relativamente a Dolores os mais edificantes e lisongeiros testemunhos. A directora do estabelecimento exprimio-lhe o desejo que nutria de

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reter sua educanda junto de si, e prover a seu futuro, se acaso um dia fosse livre em suas acções. Foi igualmente n’essa fonte que o Sr. Prieur colheu a narração das desgraças que affligirão a familia de sua joven protegida. Ella nascêra na Martinica, onde tinhão ido seus pais em busca de fortuna. Não contava ainda um anno quando morrêra seu pai, acabrunhado pela dôr que lhe causára a sua ruina; pois é em casos taes que as dôres do dinheiro são dôres do coração. Deixava sem meio algum sua mulher e a filha, que ella ainda amamentava. Morto seu marido, resolveu a mãi de Dolores abandonar immediatamente a ilha em que fôra tão infeliz. Os fracos meios de que dispunha empregou-os em pagar a passagem. Contava achar soccorros na familia de seu marido, do qual n’esse caso seguia as ultimas instrucções. O que mais affligia a pobre senhora era julgar-se a causa principal da sua desgraça. Fôra ella que induzira seu marido a ir buscar a fortuna além dos mares; ao que elle penosamente se prestára. Exprobrava-se de ter aspirado a mais do que á aurea mediocridade de que gozava em seu paiz. Durante a viagem apertava de encontro a seu peito a innocente creatura, mas seu leite desapparecêra com os soffrimentos; ella cahio doente. Os passageiros e a equipagem interessavão-se vivamente pelos seus males, sem que em nada a pudessem alliviar; pois não ha remedio para o desespero. Chegou emfim um dia fatal! Um dia de luto! O capitão, homem bom e generoso, exprimia sua dôr por toda sorte de imprecações. - Eis uma linda missão, dizia elle, em linguagem que obrigadamente adoçamos; e tão facil como pôr um annel no dedo, fazer viajar a mãi e a filha! Nós lançaremos a mãi ao mar, mas a filha quem se encarregará? Quanto a mim, tenho mais que fazer, accrescentava elle tomando a mimosa Dolores em seus braços e beijando-a enternecido. Eu não sou ama secca. - Pois daí-m’a, disse-lhe uma irmã de caridade que voltava á França por ordem de sua superiora. Chamava-se a boa mulher, irmão Marcella; em vão ella prodigalisára á infeliz mãi mil cuidados até seu ultimo momento. - Sei que não vôl-a devo recommendar, disse-lhe o capitão, a cada qual pertence seu officio. Não póde estar melhor que em vossas mãos. Agora, vou dar-vos todas as informações que pude obter da infeliz senhora, pois eu já antevia este fatal desfecho. Tomai, aqui tendes o endereço de seu cunhado, a quem deveis entregar a menina mais feliz em ter a sorte de sua mãi, do que em sobreviver-lhe. Mas não, accrescentou elle, arrependendo-se do máo pensamento que tivera e olhando para a innocente; fôra uma lastima se morresse; é tão bonita. - Porque duvidais da Providencia? Perguntou a irmã Marcella recebendo a linda e infeliz menina. Talvez que Deos reserve para ella todas as suas bençãos. - Deos vos ouça, e me perdôe, irmã, disse o capitão descobrindo-se com humildade e fitando respeitosamente o céo. Nessas palavras e acto mostrou que o sentimento religioso domina nos corações intrepidos. Feitas as orações do costume, e coberto o esquife com uma vela branca, foi o corpo entregue ás vagas, que ao recebêl-o jorrárão de sobre o abysmo liquidas gavelas de perolas. Exigua foi a somma do dinheiro encontrado na bagagem da defunta. Os passageiros cotisárão-se e o producto foi entregue á irmão Marcella para com elle prover ás primeiras necessidades da menina, logo que chegasse á França. O Sr. de Louvain, que n’essa época habitava Paris, recebeu em um dia uma carta vinda de Bordéos e assignada por uma religiosa. Dava-lhe ella os tristes pormenores que acabamos de narrar, e dizia-lhe que não podendo ir a Paris punha a innocente á sua disposição. Não tinha o Sr. de Louvain podido dissuadir a seu irmão d’essa fatal viagem, mas nem por isso perdêra-lhe a affeição. Aceitou pois sem hesitação a herança da desgraça, e foi buscar pessoalmente a infeliz menina, que cercou de mil cuidados durante sua vida, e recommendou-a aos de sua mulher na hora do passamento. Já vimos como sua viuva, a Sra. de Louvain respeitava as recommendações de seu marido. A irmã Marcella viera repetidas vezes a Paris, e n’ellas visitára sempre a sua protegida. Foi por ella que soubera a educadora de Dolores de todas estas circunstancias. A narração d’esses infortunios ainda mais captivou o Sr. Prieur. Como elle ganhára seus haveres affrontando os perigos do mar parecia-lhe que devia uma compensação á victima do perdido elemento. A affeição que a mestra consagrava á sua discipula era para elle uma poderosa recommendação. Entregou-se pois sem reserva á sympathia que o arrastava para Dolores, e resolveu fazêl-a a ministra de suas boas obras.

Traduzido por Paulina Philadelphia.

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Jornal das Famílias. Tomo 4, ; novembro de 1866, p. 319-323 “Dolores”

X

O CONVITE Voltamos á austera e sombria habitação de Sévres, onde após passageiras agitações reina uma apparente calma. A Sra. de Louvain, querendo ser amavel para com sua sobrinha, dignava-se de elogiar-lhe sua musica e seus triumphos. Inquietava-se Dolores com essa insolita amabilidade, pois notara que taes alterações no caracter de sua tia erão sempre precursoras de grandes tempestades. Esmerou-se em não dar suas palavras lugar a novas reprehensões, ou diremos ainda melhor, em ser uma placida ouvinte; único meio de ser poupada. A não assistencia do cavalleiro Banco a festa da caridade tranquillisára sobremodo a Dolores, que temeis ser por elle conduzida na ocasião da collecta. A idéa de dar publicamente a mão ao homem cujas assiduidades a fatigavão, e cujo silencio era-lhe ainda offensivo, causava-lhe uma enexplicavel afflição; facilitava-se pois de haver escapado de uma crise que tornaria quiça decisiva sua obstinada recusa. Não se illudia porém prevendo nas insinuações da Sra. de Louvain que brevemente seria essa questão discutida. Com effeito, em um dia que ambas se achavão na sala, occupadas em trabalhos de agulha, estabeleceu-se o seguinte dialogo: - Sabeis, Laura, disse a Sra. de Louvain largando o bordado que tinha entre as mãos, que fostes mais perspicaz do que eu? - Não sei a que vos referis, minha tia. - Sabeis-lo tanto como eu; adivinhastes que o cavalleiro Banco tinha inclinação por vós, quando eu ainda o não queria crer. - E porque o credes agora? - Porquê? e ainda m’o perguntais, menina? pois não é isso claro como a luz do dia? Não notais seu ar afficto e a consternação de que está possuindo desde que o trataste com glacial frieza? Houvestes-vos tão bem para com elle que a afastastes d`aqui, privando-me assim de um dos meus melhores amigos. - Não ignorais, minha tia, que sou pobre de mais para pensar em casamento, e mesmo quando isso fosse possivel, fòra preciso... - Vejamos, o que é que vos seria preciso? pois já vejo que quereis impor condições. - Fora preciso, respondeu Dolores timidamente, que houvesse entre nós conveniencias de idade, de sentimentos e de posição; e nada d`isto existe. - Concordo n`isso, se vos parece que podeis escolher; mas não vos illudais, e crede que são rarissimas as pessoas desinteressadas. Os pretendentes que apparecerem perguntarão, logo após o pedido, quanto tendes de dote; e bem sabeis, minha cara, que é facilimo fazer-se a conta. O cavalleiro nada pergunta; esse facto merece consideração. - Mas, minha tia..... - Não vos defendais nem coreis, minha filha, não há aqui constrangimento; admittireis da minha parte o maior desinteresse, ou por outra, que não tenho outro além do de vossa felicidade. - Não duvido, minha tia, mas ainda sou tão moça.... vós mesma no outro dia o disseste. Não posso tomar ao serio os comprimentos que o cavalleiro divertia-se em prodigalisar-me e de que hoje se abastem. - Não fallemos mais n`isso, disse a Sra. de Louvain com ar agastado: desejára offerecer-vos cousa melhor. Temo que vos não hajão voltado a cabeça os triumphos que obtivestes no lindo papel de collectora que tão bem desempenhastes.

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Dolores quiz responder que fôra mão grado seu e para obedecer-lhe que cedera ás instancias do coadjutor. Acertou porém em guardar um silencio que algumas visitas vierão felizmente interromper, e que começava a ser um tácito protesto. Era o Sr. Cura, que vinha pessoalmente agradecer á Sra de Louvain e á sua sobrinha o obsequio que lhes havião feito. Seguio-se-lhe a superiosa das religiosas, cuja visita tinha um igual fim. Pouco depois soou de novo a campanhia, e Crucifixo annunciou a chegada de Mathilde de Hauterive e seu tio o Sr. Prieur. Entre dous sorrisos olhou a Sra. de Louvain para Dolores com uma expressão que parecia dizer-lhe: estou reduzida a receber vossos amigos ao passo que vejo-me, por vossa causa, privada de ver os meus! O Sr. Prieur, cuja perspicacia tudo adivinhára, affectou não comprehender essa má vontade, e disse-lhe: - Senhora, minha irmã, cuja saude impede de sahir, manda-vos comprimentar por meu intermédio, e remetter esta carta. Ha dias tivemos a ventura de assistir a uma ceremonia cuja alma foi vossa sobrinha, ou ainda melhor, vossa filha. Minha sobrinha encontrou alli felismente sua amiga do collegio, de quem magoadamente se apartára. Ousamos esperar que, cedendo ás instancias de minha irmã, lhe fareis a honra de passardes um dia em sua quinta de Chaville com vossa sobrinha. - Senhor, respondeu-lhe friamente a Sra. de Louvain, penhora-me profundamente a delicadeza da senhora vossa irmã, mas a reclusão em que vivo e minha saúde exigem innumerosos cuidados, e por isso temo a fadiga; peço vos pois que vos encarregueis de agradecer-lhe em meu nome o seu gracioso convite e de desculpar-me para com ella. Dolores, que estava sentada ao pé de sua amiga, disse-lhe n`um olhar: bem t`o havia dito, nada devemos esperar. Mathilde, que comprehendèra essa negociação, e que não obstante a fraqueza physica de que era dotada possuía uma resolução que não admitia meios resultados, nem contrariedade a seus menores desejos, pelo habito em que estava de vel-os sempre satisfeita, não sahio da arena por tão fútil motivo. - Senhora, disse ella por sua vez, não obstante o pezar que nos causa vossa recusa, não ousamos insistir, recciosos de importunar-vos; mas, se nos privais do jubilo que teríamos em possuir-vos, concedei-nos então Dolores. Minha mãi vio-a muitas vezes no collegio, e deveis estar lembrada que já tivestes a bondade de nol-a confiar uma vez. Ardentemente desejava a Sra. de Louvain affirmar que sua sobrinha nunca a deixara e que a não podia entregar aos estranhos; mas o cura deu-lhe o ultimo golpe tomando a palavra e dizendo-lhe cheio de bondade: - Minha cara senhora, esta linda menina fez tanto pelas nossas orphãzinhas, que corre-me a obrigação de voar em seu socorro pois fácil é de adivinhar-se por seus olhos que arde em desejos de passar um dia entre os verdores do campo; não é assim, minha boa Dolores?

- Eu obedecerei á minha tia, respondeu a moça suspirando. - Isso não é responder, exclamou o cura; mas nós vos comprehendemos com meias palavras... Eia, senhora, deixai-vos commover; não a poderies entregar em melhores mãos. A religiosa veio apoiar o pedido do cura. A Sra. de Louvain houvera desmanchado o papel de terna mãi resolvèra representar se por mais tempo resistisse. Lamentava não poder retirar os motivos que dera para não aceitar o convite. Cedeu pois com visível mao humor por ver quão facilmente desistiào de sua presença. - Já que assim o quereis, disse ella dirigindo-se ao Sr. Prieur, tende a bondade de dizer-me: para que dia é o convite? - Porque não será hoje? Exclamou alegremente Mathilde, temendo algum contratempo. Vem Dolores, tua tia cede a nosso desejo. Ella arrastava sua amiga pela mão, mas Dolores consultou com um olhar sua tia e pedio-lhe licença para ir mudar o vestido e por um chapéo. - Tendes uma encantadora menina, disse o Sr. Prieur á Sra. de Louvain, usando do privilegio que sua idade parecia dar-lhe. - È um verdadeiro peso para mim, replicou ella, mas terei constancia até o fim da minha tarefa. Esta menina não é de minha familia, como se poderia crer: é uma sobrinha de meu marido que eu quis arrancar da miséria... Dolores entrou radiante na sala e interrompeu sem o saber uma confidencia bem pouco generosa. Trajava um vestido cor de rosa e um chapéo próprio para um passeio compestre, o que a tornava completamente linda. Foi apertar a mão de sua tia com signaes de gratidão. - Não me abraçais, minha filha? disse-lhe a Sra. de Louvain. Repugnava a Dolores representar essa comedia aos olhos dos espectadores. Apresentou todavia a testa para n`ella receber o osculo de sua terna mãi.

- A que hora deverei mandal-a buscar? Perguntou a Sra. de Louvain. - Não vos daremos esse trabalho, disse o Sr. Prieur, nós teremos a honra de vôl-a trazer: só temos um quarto de

hora de caminho vindo de carro. - È desnecessario recommendar-vol-a, disse a tia Dolores com affectada ternura.

- Velaremos sobre ella como sobre uma filha, respondeu o Sr. Prieu.

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Mathilde fez iguaes promessas de vigilancia, e mostrando-se summamente agradecida sahio apertando as mãos de Dolores, que se não considerava inteiramente feliz prevendo que podia sahir-lhe cara essa forçada concessão. Se tivesse sorpreendido o ultimo olhar de sua tia talvez que houvesse renunciado ao prazer que esse passeio promettia.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 4, ; dezembro de 1866, p. 360-364 “Dolores”

XI UM LINDO DIA

Como a mocidade esquece promptamente!!... O pezar é pouco natural n`essa idade em que tudo são flôres, primavera e luz. Um raio de sol, ou um sorriso de amizade, basta para seccar n`um rosto juvenil o mais sentido pranto. Dolores tinha mágoas: não lhe concedêra Deos as doçuras da familia; vivia sob o jugo de uma tia cuja affeição era por demais duvidosa e cujos projectos a seu respeito começavão a inquietal-a. como póde sob tão inhospito tecto desenvolver-se tão bella natureza? Era qual lirio dos Alpes florecendo sobre aridos rochedos: nada devendo á terra e recebendo dos ethereos espaços a substancia e o brilho. Ao achar-se Dolores no carro que a devia conduzir a seu destino experimentou um salutar allivio. Não lhe ocorreu que soaria em breve a hora do regresso. Respirava sofregamente as livres ondas do ar que lhe beijava o rosto e afagava seus dourados cabellos. Mathilde segurava-lhe a mão contemplando-a cheia de felicidade. Em seu magro e doentio rosto brilhava quase um raio da belleza de Dolores. - Querida, lhe dizia ella, nós te raptamos, és nossa por todo este dia. Pudessemos viver juntas como duas irmãs! Como velarias por mim até meu ultimo momento! Asseguro-te que elle não se fará esperar, disse a moça pondo a mão sobre o coração que apressadamente batia. - Ès muito cruel, disse o Sr. Prieur a sua sobrinha: pódes fallar assim? Queres affligir tua amiga no único dia que ella te póde consagrar? - Perdão, exclamou Mathilde, eu não repetirei o que acabo de dizer! Quis tornar-me interessante e provar a Dolores que a não posso dispensar. - Minha querida, respondeu Dolores, eu te amaria tanto, e velaria sobre ti de modo tal que acharias em breve restabelicida; não sonhemos porém com tanta felicidade. Sou prisioneira; posso acaso aspirar a libertar-me? Fòra esquecer tudo o que minha tia fez por mim. Procurarei obter suas boas graças á força de humildade para com ella; por ora gozemos dos curtissimos momentos que nos forão concedidos. - Approvo o que dizeis, interrompeu o Sr. Prieur, e não vai errado quem segue por essa trilha. O futuro vos recompensará; mas por hoje, apreciando este bello céo e linda campina, não penseis senão nos amigos que estão felizes de vos possuir. De há muito que o carro deixará a monotana rua de Sévres. Tomou á esquerda, e passando por baixo de um viaducto subio a ladeira que conduz aos accidentados e pittorescos bosques de Chaville. A terna amizade de Mathilde, a voz doce e sympathica de seu tio, junto a belleza do tempo, diversidade de objectos, grata liberdade e o canto dos passaros que passavão: tudo encantava a joven prisioneira e dava a seu rosto uma expressão de serenidade e segurança que lhe não era habitual. A casa da Sra. de Hauterive estava habilmente collocada junto á aba dos bosques e o jardim descia com suave pendor até o fundo do valle que mais se alargava á medida que se afatava de Sévres. Os arrabaldes de Paris são dos mais favorecidos. Para serem porém devidamente apreciados devêrão estar mais afastados de nós. Das alturas de Chaville descotinão-se prados, bosques, e o vasto cinto do parque de Saint-Cloud; por um

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intervallo que há no fundo do valle descobrem-se quase que os limites da grande cidade, cujas armas são de um baixel que parece fluctuar no horizonte em um mar azulado. Achava-se a Sra. de Hauterive em um pequeno jardim que separava a casa da estrada. Levantou-se custosamente, em consequencia da longa enfermidade que soffêra, e fez a Dolores um maternal acolhimento. - Minha filha, disse ellla, desejára ter ido visitar a vossa tia, talvez que assim a resolvesse a acompanhar-vos. Mathilde, nossa menina querida, já não podia estar sem vós; ella desejaria ter-vos sempre a seu lado. Consagrai-lhe ao menos este dia emquanto esperamos por cousa melhor. Meu irmão fará as minhas vezes mostrando-vos o parque, ou antes o jardim, onde já encontrareis companheiras, pois se todas as meninas da vizinhança tornárão-se amigas de Mathilde. Deixou-vos a liberdade até a hora do jantar. Dolores manisfestou-lhe quanto era grata a tão amigavel acolhimento, e foi para o jardim, onde encontrou reunidas muitas meninas e moças que folgavão alegremente sobre a relva. Era um quadro encantador de ver-se. A infancia tem o instincto da belleza que a attrahe para as bellas e excepcionaes naturezas. Segurava Dolores as mãos de duas das meninas, que já a não querião deixar. Em breve juntou-se o Sr. Prieur ao alegre bando. Tinha um livro na mão, mas não o lia attentamente; olhava com interesse para Dolores, cuja esbelta estatura dominava o grupo, parecendo uma joven mãi de sua pequena familia. Logo que as meninas percebêrão o Sr. Prieur pedírão-lhe que lhes contasse uma das lindas historias que sabia. Sem muito fazer-se rogar sentou-se debaixo de umas arvores, cercado-se do alegre bando. Dolores tinha ao pé de si as duas inseparaveis. Era formoso o aspecto de todos esses grandes e limpidos olhos fixados no narrador, como se lhes houvessem querido roubar as palavras que ia proferir ao contar-lhes a historia sempre nova do Príncipe encantado. Não foi Dolores a que achou menos graça n`esse lindo conto; ella amoldava-se ao gosto de suas companheiras com toda a candidez da infancia. O encanto da varinha que transformou o monstro em lindo principe no momento em que a moça da historia consentia em ser esposa, para salvar a seu pai, foi devidamente apreciado. Numerosos applausos compensárão o Sr. Prieur do trabalho que tivera em divertil-as. - O que acabais de contar, meu tio, é bom para as crianças, mas para nós, que somos grandes, devereis ler-nos alguma d`aquellas bonitas poesias que tendes em vosso livro.

- Talvez que vossa amiga não goste de poesias, respondeu elle. - Nós a ouviremos com prazer, disse Dolores, porque confiamos em que sabereis escolher. - Tendes razão, respondeu o Sr. Prieur, pois de há muito que os poetas fazem-nos duvidar da verdadeira poesia, é preciso escolher; creio porém que vos agradarão os versos que se offerecem a meus olhos n`esta pagina. As crianças, vendo que nada as divertiria no que se ia ler, dispersárão logo que o Sr. Prieur abrio o livro e se póz a ler uma poesia intitulada Versos dourados. Esta poesia, lida com a devida expressão, deu lugar a uma séria conversa sobre os deveres, o destino e mil outras cousas. Com admiração ouvia o Sr. Prieur as reflexões feitas por Dolores, em assumpto que parecia não estar a seu alcance ainda. A desgraça é grande mestra de idéas e reflexões, e a pobre moça fôra educada n`essa escola. O tio de Mathilde não quiz porém reter a mocidade sob tão graves reflexões. N`um kiosque pittoresco achava-se um piano; emquanto dava o Sr. Prieur os primeiros preludios, Mathilde e Dolores trouxerão docementes para alli a Sra. de Hauterive e aposentárão-a n`uma poltrona de relva. Começou então o Sr. Prieur a tocar uma tarantella, cujo alegre andamento pôz em dansa todo o bando juvenil. Dolores tomou parte n`esse folguedo, que só terminou quando as meninas, por extremamente cansadas, se deixárão cahir sobre a relva. Essas lindas meninas, essas moças, flôres vivas e volitantes sobre as flôres do campo, essa alegre musica e a decoração de verdura que se via, formavão um admiravel conjuncto. Pedírão a Dolores que tocasse por sua vez. Ella começou uma valsa tão provocadora, que o Sr. Prieur, approveitando-se da liberdade do campo, tomou uma das moças pela mão e pôz-se com ella a valsar em movimento rapido.

- Meu irmão, disse a Sra. de Hauterive, esqueceis a vossa idade; quando é que tereis juizo se ainda não vol-o derão esses cabellos brancos?

Tão justa era essa observação, que contentou-se o Sr. Prieur em reparar os estragos que a rapidez da valsa produzira em seus cabellos.

Variárão-se depois as distracções: visitarão a gruta em que havia uma nascente d`agua ferrea, brilhante qual prata liquida. Se essa agua solutar existisse longe e bem longe nossos medicos mandarião para lá todos os doentes que já se não pudessem mexer. Esse manancial alimenta um pequeno ragato que é retido por mil tortuosidade no pendor do jardim para impedil-o de chegar rapidamente ao fim do valle de Sévres. Dolores estava encantada, mas não apreciava o que viu como uma collegial em férias, outra cousa a preocupava. O que sobretudo a impressionava era o encanto d`essa familia onde houvera achado talvez uma mãi, uma irmã, e quiça um

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pai disposto a aml-a. Tinha a felicidade ante seus olhos e lhe não era dado possuil-a; não era livre. Em algumas horas ia achar-se encarcerada na estreita casa de Sévres, onde, exceptuando a sincera sympathia de Crucifixo, não podia contar com mais nenhum benevolo sentimento para com ella. Era tão lindo o dia que se não puderão decidir a entrada em casa, e por isso jantárão no jardim, junto ao susurro da fonte; estava a mesa coberta de flôres, e passaros familiares misturavão-se aos convivas. Os corações e a natureza improvisão festas completas e encantadoras; a esta nada faltava. Dolores estava junto de sua amiga, e o Sr. Prieur esquecia o peso dos annos em sua alegre amabilidade. Regozijava-se da feliz familiaridade que sua idade lhe proporcionava, e d`ella se aproveitava para fraternisar com os que erão moços. - È pena, disse elle, que já decline o dia, que mais rapido passou do que devia. Armamos um laço para prendermos um raio do sol, mas elle nos escapa. A perspectiva da separação sombreava com effeito o declinar do dia. Projectárão reunirem-se o maior numero de vezes que fosse possivel sem desagradar á Sra. de Louvain. Ao annunciar o criado que o carro estava prompto, Mathilde, não obstante sua debil saude, quiz reconduzir sua amiga juntamente com seu tio. Dolores fòra tão simples e familiar, que já a consideravão como da familia. A Sra. de Hauterive ao despedir-se d`ella disse-lhe que esperava vêl-a de novo brevemente. Quando chegavão ao viaducto do caminho de ferro espantárão-se os cavallos com o sibilo e a chamma que sahia de uma locomotiva que arrastava o trem com grande velocidade; perturbou-se o cocheiro e abandonou o carro a uma desenfreada carreira. - Não vos assusteis, disse o Sr. Prieur ás duas moças, e sobretudo não tenteis sahir d`aqui. Esperou um momento favoravel, e calculando com mathematica precisão o impulso conveniente, saltou ligeiro ao chão e conseguio apossar-se das redeas que o cocheiro abandonára. Depois de haver retido e acalmado os cavallos entrou ligeiro no carro, e sentou-se ao lado das duas moças, que lhe exprobrárão, extremamente commovidas, a imprudencia que commettéra. Elle tranquillisou-as dizendo-lhes que nada era mais simples do que o que acabava de fazer, e explicou-lhes então a theoria da agilidade adquirida, que trata-se de não a contrariar para evitar-se uma quéda. Foi esse o assumpto da conversa ate chegarem á casa da Sra. de Louvain, que lhes não querendo apparecer fez-lhes constar por Crucifixo que não era visivel. Dolores despedio-se de seus amaveis hospedes renovando-lhes seus agradecimentos e recommendado-lhes mais cautela na volta.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 5, fevereiro de 1867, p. 53-55 “Dolores”

XII Pacto Verbal.

Mal sahíra Dolores da casa da Sra. de Louvain, que n´ella entrava o cavalleiro Banco depois de uma curta ausencia. Ficou maravilhado de não encontar alli o lindo objecto de sua admiração e ambições matrimoniaes. - Chegastes tarde, cavalleiro, disse-lhe a Sra. de Louvain, e se não fôrdes mais vigilantes raptar-vos-hão vossa heroina. - Que fizeste de Dolores? perguntou-lhe o velho namorado. - Acaso me encarregastes de guardal-a? respondeu-lhe a tia de Dolores; alguem mais solicito do que vós veio buscal-a. Foi hoje passar o dia com Mathilde de Hauterive e o Sr: Prieur, que parece-me não desgotar d`ella; mas tranquillisai-vos; esse seductor não me parece perigoso. - Depois do que haviamos combinado não podies retél-a ? Não tendes autoridade sobre ella? - Era cousa bem difficil; não pude oppór-me, Laura já não é criança, e dia virá em que governar-se-há por si. Meus poderes não são regulares. Se chegarmos a um accordo sobre certos pontos, quem sabe se ella não nos opporá uma resistencia invencivel? - Daí-me o vosso consentimento, e eu me encarrego do resto, disse o cavalleiro. Conheceis a minha lealdade; eu sou S. João Boca de ouro. Tenho na sociedade uma honrosa posição, magnificas relações, riqueza suficiente, um bom gosto pouco commum, e creio portar-me como um perfeito cavalleiro pondo tudo quanto possuo aos pés de vossa encantadora sobrinha, pedindo-vos unicamente vosso consetimento, sem exigir de vós o menor sacrificio para o seu dote.

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- E não é um sacrificio o separar-me d`ella, e renunciar ás doçuras de sua companhia, depois de benevolamente ter-lhe prodigalisado meus cuidados em sua infancia? - Comprehendo quanto soffrerá com isso o vosso coração, mas ainda quando fosseis sua mãi não deixaria por isso de soar a hora de separação. Se é para mim que formastes esse thesouro compete-me recompensar vossos cuidados. - È nobre de mais meu coração para que desça a especular com os beneficios que faço, disse a Sra. de Louvain com affectada dignidade. Não exijo nem as sommas que despendi para fazer d`essa menina uma moça completa. - N`esse raro desinteresse vejo vossa delicadeza; mas permithir-me-heis poder-vos offerecer um pequeno testemunho de minha gratidão. - Calai-vos, cavalleiros, o mundo é tão mão! Olhai, nós cuidamos nos interesses d`essa querida menina. Eu posso morrer e não quero que ella fique sem arrimo. Recuso vossa generosa offerta, acceitando unicamente uma indemnisação pelos meus cuidados; pois tudo isso póde ser mal interpretado; cumpre-nos sermos cautelosos. - Por certo, disse o cavalleiro, só os nobres corações é que vos poderião comprehender, pois que o vulgo é incapaz de apreciar os vossos sentimentos. Que dirieis vos se eu deixasse um contrato em vossas mãos? A Sra. de Louvain, nunca esquecendo seus interesses, ainda não descera bastante para aceitar um documento de tão gravosa demonstração para sua consciencia. - Dispenso vossa escriptura e vossa palavra, disse ella com fingida indignação; ainda não possuis vossa heroina; ainda é preciso que lhe agradeis: e não serei eu que obrigue a isso essa querida menina. - Só vos peço que sejais neutra n`este negocio e me deixeis guial-o por mim só. Não podeis recusar-me de acceitar o convite que vos faço de passar um dia com vossa linda sobrinha na cabana suissa que tenho em Bellevre. Hei de receber qualquer d`estes dias uma brilhante sociedade em minha casa, julgar-me-hei feliz se vos puder apresentar a ella. - Não é isso tão facil como pensais. Não conheceis ainda aquella cabecinha? É capaz de fazer-nos algum escandalo. - E porque não irão em vossa companhia algumas pessoas do vosso conhecimento? isso a tranquillisaria. - Reflectirei sobre isso, disse a Sra. de Louvain comprimentando o cavalleiro. Separárão-se as duas personagens depois de haverem concluido com meias palavras o seu pacto verbal.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 5, julho de 1867, p. 210-212 “Dolores”

XIII A REVELAÇÃO.

Não suppomos que o leitor creia sinceramente na provecta idade do Sr. Prieur. Não obstante a longa e branca cabelleira de que usa, a bengala de castão de ouro, os oculos azues, que mal deixão suspeitar seus olhares, e toda a solicitude que despende para envelhecer-se, escapão-lhe por vezes laivos de mocidade que nos podem esclarecer. Não prolongaremos por mais tempo esta incerteza, e diremos o que tem de ser mais tarde demonstrado, já que o Sr. Prieur é um máo actor, que pouco artisticamente desempenha o seu papel. Não o vimos acaso tendo na mão um livro de poesias ler versos ás duas moças com todo o accento da mocidade? contar a historia do principe encantado como para nos advertir que dia virá em que lançando a cabelleira ás ortigas e pondo os oculos em sua caixa se nos apresentará em toda virilidade? Por que motivo usa o Sr. Prieur d`esse estratagema de opera comica?

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Devemos a esse respeito algumas breves explicações. Tem esta aventura alguma cousa de singular e romanesca, e é por isso que merece de ser contada. Samuel Prieur, irmão da Sra. de Hauterive, é dotado de um espirito aventureiro e emprehendedor, nunca pudera sujeitar-se ao estreito circulo do commercio interno. Educado na escola da Inglaterra, tinha altas vistas, e ambições para mais vastos horizontes. Tendo enviuvado expatriou-se com o filho Heitor, e anticipando a época. Hoje tão proxima, em que nossas relações com a China serão tão faceis como as que temos com a feira de Baucaire, fundou em Chandernagor um importante escriptorio. Inundou o oriente com os productos francezes; e mandou para Paris diamantes, e sedas sufficientes para fartarem o amor do superfluo, se é que esse amor possa fartar-se. A fortuna acompanhou-o, quer na Europa, quer na Asia, e uma immensa riqueza premiou sua intelligente coragem. Dispunha-se a voltar á França para fruir em paz do fructo de seu trabalho, pois que o Francez não tende a colonisar. Espalhamos por todo o mundo o nosso espirito, mas não lhe confiamos nosso pó; olhamos incessantemente para nosso campanario; aspiramos rever a patria; e é sobre seu seio que queremos morrer, e em seu eterno amplexo repousar. Encontrando difficuldades commerciaes na definitiva liquidação da casa Prieur e C., vio-se constrangido a ficar ainda algum tempo. Insistio porém para que seu filho partisse sem mais demora, visto dizerem os medicos que não respondião pela sua vida se por mais tempo se demoresse sob a influencia d`esse malefico clima. Com summo pezar cedeu Heitor ás supplicas de seu pai, que promettia-lhe ir reunir-se a elle em Paris logo que ultimasse seus negocios. Faltou-lhe porém a necessaria coragem no momento decisivo. A timidez e repugnancia que tinha para contrahir novas relações fez-lhe encarar como tarefa acima de suas forças sua entrada no mundo parisiense, que desejára conhecer melhor antes de entregar-se-lhe indefeso. Parecia-lhe que a fortuna de que era possuidor tornal-o-hia o alvo de pretenções e cubiças. Foi n’essa occasião que seu pai, temendo por sua vida, fez-lhe uma concessão a que podemos chamar fraqueza. Nada sabia negar a esse filho, único objecto de todo o seu affecto. Heitor, cuja parecença com seu pai era extraordinaria, obteve licença de apresentar-se em Paris, na casa de sua familia, com o nome de Samuel Prieur. Sua tia, a Sra. de Hauterive, que só o víra em pequeno, não poderia suspeitar da fraude, e demais, tencionava pedir-lhe perdão do seu disfarce no dia em que por qualquer motivo quizesse, ou precisasse lançar longe de si seus suppostos cabellos brancos. Encantado d’esse aventuroso projecto, que muito convinha a seu espirito romanesco e lhe facultava a possibilidade de tudo observar sem arriscar-se, operou contente a sua transformação, os vestigios de uma grave enfermidade, o quasi total aniquilamento de suas forças e a alteração de suas feições favoreciào-lhe a fingida idade. O trajo e uma cabelleira branca completárão a illusão. Era das mais innocentes essa substituição, pois nada tinha de commercial, e é muito presumivel que seu pai avisasse confidencialmente á sua irmã d’essa fantasia de um espirito enfermo.

É por isso que desde o começo d’esta narrativa vimos Heitor Prieur desempenhar, ora bem, ora mal, o papel de tio de Mathildes.

Como elle o previra, a Sra. de Hauterive não pareceu suspeitar de seu disfarce, o que o tranquilizava, deixando-lhe apenas o cuidado de acautelar-se contra a perspicaz curiosidade de Dolores.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 5, agosto de 1867, p. 244-247 “Dolores”

XIV

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UMA PERFIDIA

Esse personagem, que por uma d’essas venturas que mais se encontrarão nos romances do que na vida real e que

tão a proposito chega-nos das lndias, figurará provavelmente em nossa historia como um bom Gênio, cuja missão providencial é lutar sem interrupção contra o espirito do mal. A enthusiastica descripção que Mathilde fazia de sua amiga, e a cândida admiração que por ella tinha, inspirarão-lhe innocente curiosidade de conhecer pessoalmente essa maravilha. Desde o seu primeiro encontro deixou entrever um terno interesse para com Dolores, e se a prudencia lhe faz conservar a mascara, não devemos suppòr que seja para mão fim. Se vemos pois nossa heroina exposta sem defesa ás exigencias de sua tia, e ás ambições do astucioso cavalleiro, podemos esperar que conjurará a tempestade com sua lealdade e firmeza, emquanto a não protege um incognito protector. Não é pois tranquillisadora a sua posição actual. Ella considera como um dever de gratidão o não libertar-se de uma sujeição voluntaria, e seus amigos, cujas boas intenções nos são patentes, não tèm o direito de intervirem para escudal-a com sua proteccão. A franca entrada do cavalleiro Banco na casa da Sra. De Louvain facilitava-lhe os meios para chegar a seu fim; e a tia de Dolores, cujo interesse está estreitamente ligado ao d’elle, não era demasiadamente escrupulosa. A prudencia aconselhava a esses dous personagens certo grão de circumspecção, e lhes fazia ver que nada obterião pela violencia; por isso modificárão seu programma. Mediante a nova resolução, Dolores já não era tão infeliz com sua tia, que se esforçava em dissimular o natural azedume e ser amavel a seu modo. A pobre moça exprobrava-se de acolher com instictiva desconfiança os primeiros passos que para ella davão. Voltára o cavalheiro á sua habitual assiduidade para com a sua cumplice, pois reflectíra que se Dolores penetrasse as suas intenções nada a poderia vencer. Affectou pois para com ella a mais completa indifferença, sem comtudo deixar de compromettèl-a em publico, para obrigal-a por esse meio a entregar-lhe a sua sorte. Apresentou um dia o astuto cavalleiro á Sra. De Louvain um pintor de grande talento, que na sua qualidade de protector das artes e dos artistas tomára sob sua égide, e pediu-lhe licença para que deixasse executar por esse grande artista o seu retrato. Uma indigna machinação encerrava-se n’esse innocente pedido. O retratista chamava-se Frank, e tinha um leve accento allemão que mostrava a sua origem. Fôra recommendado ao cavalleiro Banco, o qual com a generosidade que ostentava promettèra-lhe fazè-o conhecido em Paris, no mundo das artes. A verdade porém é que o cavalleiro, pensando unicamente em seus interesses, descobríra no pintor uma aptidão extraordinaria para reter de memoria as feições das pessoas que tinha de retratar. Experimentou por vezes esse talento, e quando esteve bem seguro d’elle fel-o seu innocente complice na traição. - Meu filho, disse-lhe um dia, eis-vos no caminho da gloria. Quero propòr-vos uma aposta, e se a ganbardes está feita a vossa fortuna. Eis do que se trata. Pintastes-me uma Danáe cujo admiravel conjuncto será devidamente apreciada na proxima exposição; mas confesso-vos que não me agrada a cabeça que lhe fizestes. É uma linda Parisiense, mas não a filha do rei de Argos, reservada a tão altos destinos, segundo a mythologica tradição. - Fiz o que pude, respondeu-lhe rindo o pintor; onde quereis vós que eu ache a filha do rei de Argos?! - E se vos mostrar por quatro vezes uma belleza incomparavel, tal ramo a escolherieis para seduzir os Deoses, prometteis-me de apossar-vos bem de suas feições? - Nada é mais facil, respondeu o moço, mas fòra-me preciso poder fazer ao menos um debuxo vendo de perto o original. Foi então que o cavalleiro, recommendando todo o cuidado a seu complice, tiver a idéa de fazèl-o retratar a Sra. De Louvain, prevendo que Dolores não consentiria em servir de modelo. No primeiro encontro a Sra. De Louvain, que ainda não estava na confidencia, mas cuja vaidade se achava sobremodo lisongeada com essa preferencia, escusou-se com encantadora modestia, dizendo que sua sobrinha seria um modelo mais favoravel ao artista. Se o amor da arte e a admiriação do bello não fossem predicados dos pintores fòra temerario o olhar que Frank fixára no rosto de Dolores.

- Concordo, disse elle, respondendo á Sra. De Louvain, que esta linda menina fornecer-me-hia um incomparavel modelo, mas é facil de adivinhar, pela expressão de seus olhos, que me não permittiria ensaiar uma tão diffícil empresa; e demais, senhora, é vosso retrato que me foi encommendado pelo Sr. Cavalleiro, e acho em vossa physionomia finissimos e delicados matizes dos mais elevados sentimentos de extrema ternura a caridade que me encarrego de exprimir em algumas sessões. Essa linguagem ia diretamente tocal-a em seu lado fraco. O cavalleiro foi inteiramente da opinião de Frank.

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O pintor, que durante o estio tinha uma officina provisoria no alto de Belvene, para estar mais proximo de seu Mecenas, mudou para a casa da Sra. De Louvain toda sua bagagem de pintura, cavalletes, tela, côres, e marcou o dia da primeira sessão Começou-se o retrato, mas notou o pintor que seu modelo se entristecia sempre que não via Dolores; por isso pedio á moça que fizesse a leitura de algum livro interessante, para alegrar a Sra. De Louvain emquanto elle a retratava. Obteve com esse estratagenia a presença constante de Dolores, se escondido atrás da tela, que approximára da janella, fez um rapido esboço d’essa innocente belleza, e escondeu-o repidamente em sua caixa de cores. Dolores não podeia negar-se ao innocente pedido que lhe era feito, sob pena de pouco delicada; prestou-se pois a fazer a pedida leitura, e levada por vezes pelo interesse que tomava no que lia dava a suas feições uma expressão mas viva, e illuminava-se seu rosto com fugitivos matizes que o pintor aproveitava sem que ella o suspeitasse. Progredia-se maravilhosamente o retrato da Sra. De Louvain. A diminuição de alguns annos, o argumento de alguns cabellos que já lhe rareavão, olhos um pouco maiores que os modelos, uma boca mais pequena, e contornos mais puros e menos asperos, todas essas transições emfim devidas á poluidez do artista, parecião á Sra. De Louvain as provas da mais viva semelhança. O cavalleiro applaudia-se do estratagema que imaginária. Não lhe importava a efligie da Sra. De Louvain, mas achava fielmente copiadas as feições da linda Dolores. O brilho de seus louros cabellos molduravão como uma aureola de ouro sua refulgente tez e suas nobres feições. Antolhava-se ao cavalleiro o effeito que produziria em sua sala o quadro de Danáe, quando explicasse a seus numerosos amigos que esse era o retrato da sua noiva. Esperava que Dolores assim compromettida e privada de qualquer socorro não insistiria por mais tempo na recusa de sua mão, e que o faria arbitro da sua sorte. Quanto ao pintor, não devia esperar remuneração alguma pelo seu trabalho. Não estava elle generosamente pago?! Quem falaria em seu nome, ainda hontem desconhecido se o cavalleiro lhe não tivesse aplanado as difficuldades de sua carreira?! Como leitor não ignora, era mui seriamente que o cavalleiro dava se ares de Francisco fazendo-se por officio e por interesse o protector das artes.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 5, setembro de 1867, p. 276-278 “Dolores”

XV O CASO DE CONSCIENCIA

Eu seria d’este conto se o nosso pintor fosse digno do cavalleiro Banco? Felizmente porém é Frank um moço honesto. É bello ver-se reunido em um só ente o talento e um coração honesto e probo. Elle estudou a astuciosa physionomia da Sra. De Louvain. Raramente um artista se equivoca, e por isso não foi o pintor por muito tempo illudido por sua affectada doçura. Começava tambem a conhecer melhor o cavalleiro, grande fazedor de promessas e empalmador de quadros, que ainda lhe não havia procurado uma d’essas grandes encommendas que lhe promettéra, mas que, em sua substituição das marquezas e duquezas de que lhe fallára, incumbíra-o de fazer o retrato de uma duzia de heroinas que irão popularisar seu nome n’uma sociedade um tanto menos escolhida. Frank admirou, em sua qualidade de artista, o encanto profundo, a candura, a submissão e a tristeza mal dissimulada d’essa linda menina creada para felicidade. Elle observára esse lar, e notára a affectação do cavalleiro, o intermittente azedume da Sra. De Louvain, a palidez de sua sobrinha, e os terrores da pobre Crucifixo, que, embora nada dissesse, via-se andar qual uma sombra protectora de alguma existencia ameaçada. Passando a vida em procura do ideal da belleza, comprehenderia a inspiração de um admiravel modelo de que se utilisasse para um quadro; mas perguntava por vezes a si mesmo qual podia ser o interesse do cavalleiro em obter por uma fraude a imagem de uma moça, para reproduzil-a n’uma pintura mythologica, que devia ser exposta aos olhos de um numeroso publico. Suspeitou que houvesse alli outro interesse além do da arte, e pareceu-lhe descobrir gradualmente uma intenção compromettedora, e uma proxima infamia. O que ao principio escapára á sua inexperiencia tornava-se uma realidade á medida que mais attentamente examinava a moça exposta a seus olhares, sem a menor desconfiança. Já não podia duvidar de que assitia a um drama intimo, que resolveu esclarecer, sem suscitar suspeitas, antes que mais se adiantasse.

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Frank poderia perder um protector, e o preço da Danáe, que, conforme lhe compromettèra o cavalleiro, devia admirar a todos na proxima exposição das bellas-artes; mas teria em compensação a sua independencia, o prazer de frustar um odioso trama, e o de salvar, emfim, de um immenso perigo a essa moça que, além de possuir uma rara belleza, de que era admirador, inspirava-lhe o mais sincero e vivo interesse. Desastrado cavalleiro que escolheu tal complice para seus tenebrosos designios! Quos vult perdere Jupiter dementat :isto quer approximadamente dizer que os máos perdem o uso da razão, e entregão-se por si mesmos. Não era sem algum remorso que o pintor continuava com o mysterioso esboço, ao qual lançou o ultimo olhar antes de encerral-o na mencionada caixa das côres.

Olvidámos talvez de dizer que a sala onde Frank postára sua ambulante officina de pintura era ao do chão, e que collocára o cavallete proximo á janella.

Crucifixo passando pelo jardim proximo à dita sala lancára os olhos para o quadro, e víra ao lado d’elle um pequeno esboço, reproduzindo maravilhosamente as feições da linda Dolores, cheia de vida e cercada de sua loura e rediante coma.

A muda Crucifixo abrio uma enorme boca, arregalou os olhos, e destendeu os enormes braços, assemelhando-se n’essa occasião ao signal da Redempção, de que trazião venerado nome.

A Sra, de Louvain vio toda essa pantomima, mas attribuio-a á fidelidade com que o pintor reproduzia a sua imagem, e dignou-se de sorrir-se. A posição em que Frank se sentára não lhe premittia ver o que se acabava de passar, e por isso cria sempre que esse segredo só era conhecido por elle e o traidor cavalleiro, que estava em continua vigilancia para obstar a que Dolores e a Sra. De Louvain se approximassem do pintor, antes que elle tivesse o tempo necessario de esconder a linda cópia que fazia por contrabando, em prejuizo do modelo que orgulhosamente ostentava suas envelhecidas graças.

Grande é o prazer de um coração honesto quando póde mystificar um traidor. Frank promettia-se essa doce satisfação, no caso que lhe não fosse muito e muito provado que a inexplicavel conducta do cavalleiro em nada podia comprometter essa pobre moça, que começava a tomar debaixo de sua protecção.

O que Frank experimentava por Dolores era uma candida syampathia, que lhe inspirava admiração e respeito, pois seu coração estava dado, e tinha, como um honesto Allemão que era, uma noiva que o esperava além do Rheno, e cujos olhos azues o seguião por toda a parte.

Parecia-lhe que tornando-se defensor de uma belleza opprimida prestava homenagem á sua noiva, a quem contaria em sua volta este episodio de sua vida de artista.

O nosso pintor annunciou á Sra. De Louvain que acabaria seu retrato com mais duas ou tres sessões, o que lhe permittia de considerar ainda sob diversos aspectos a physionomia de Dolores, de quem já não temia attrahir as vistas agora que já fizera desapparecer a sua imagem (seu corpo de delicto). O cavalleiro fez-lhe um signal de intelligencia; dirigio-lhe muitos comprimentos sobre a perfeição da obra e prometteu-lhe de novo um brilhantissimo futuro. Ao sahir, o pintor comprimentou Dolores mais respeitosamente que do costume, como para pedir-lhe perdão de levar occultamente o seu retrato, e prometteu-lhe tacitamente, no intimo de sua alma, que não seria complice de uma traição.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 5, outubro de 1867, p. 306-308 “Dolores”

XVI ESTRADA SINUOSA

Deixando a larga estrada que do fundo de Sèvres conduz ao cimo de Meudon, encontra-se, serpejando á dereita, um atalho que encurta o caminho. Frank, todo pensativo entranhou-se n’essa vereda para ir ter á sua officina, onde ia guardar a caixa das còres e retocar o esboço que fizera de Dolores emquanto tinha presentes na memoria as feições do modelo. Estava absorvido n’essa contemplação intima do pintor que tem a faculdade de ver tão fielmente como n’um espelho a imagem que passou diante de seus olhos. N’esse estado concentra toda sua attenção ao espetaculo interior, torna-se estranho á vida real e nada vê do que se passa em torno d’elle.

O cèo estava sombrio, o caminho deserto, e o vento d’oeste, prenuncio de uma proxima tempestade, soprava entre as sarças espinheiros e roseiras bravas que ornavão a escarpa do barranco. No atalho por que vai Frank há um lugar que, contornando um campo vizinho, torna-se mais estreito e ingreme. Foi n’essa volta que o pintor vio surgir diante de si uma estranha apparição.

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Vendo á margem do caminho um velha acocorada a despeito da proxima borrasca, e os arbustos vergando em desordem na quebrada, poderia crer em sua fantastica e pensativa imaginação na presença de uma d’essas feiticeiras que saem deitar má sorte aos viajantes. Seria uma sylphide ou uma naiade que quizesse assutal-o sob a mascara da velhice, no intento de arrastal-o ao seu palacio de esmeralda? Contemplando essa magra e silenciosa creatura que para elle estendia os braços, como se lhe quizesse obstar a passagem, figurou-se-lhe esses quadros em que o esphinge está acocorado ao pé de um rochedo, ao passo que Édipo procura decifrar o enigma, que é para elle uma questão de vida ou de morte. Frank, porém, menos feliz que Édipo, não sabia a explicação do enigma, e por isso procurava passar adiante segurando vigorosamente na caixa em que lavava a prova de sua fraude. A feiticeira levantou-se então, e com um de seus longos braços acenou-lhe para a caixa que sobraçava, como para indicar-lhe que existia alli a causa de sua colera. Frank, olhando-a attentamente, reconheceu, sob a manta que puzera na cabeça para se resguardar da chuva, a cômica figura de Crucifixo. - Que fazeis aqui com esse tempo, minha boa mulher? lhe disse elle. O vento é demasiadamente rijo, antes da chuva só teremos o tempo necessario para regressarmos ás nossas casas. - Não, respondeu a velha acenando com a cabeça. - Não, dizeis vós?!! e quem me há de impedir que eu vá para minha casa? - Eu, disse Crucifixo. - É curiosa esta noticia! Mas poderei saber com que direito me quereis impedir de passar? será pelo direito do mais forte? - Sim, respondeu, ella, pondo a mão sobre o coração. - É pois o vosso coração que é mais forte do que eu? - Sim, retorquio-lhe sem perturbar-se. - Mas que fiz eu, boa mulher, para que estejais tão contra mim? Crucifixo apontou novamente para a accusadora caixinha. Esse novo aceno foi para Frank como um raio de luz. - Pois bem, disse elle rindo-se, esta caixa é das minhas côres. A velha fez um signal negativo. - Sabeis então que há aqui alguma cousa? - Sei-o tão bem como vós, pareceu responder-lhe o esphinge. - Ah! é isso que vos molesta, disse o moço pintor, sentando-se no declive do caminho; então a linda Dolores não permitte que a retratem? - Não. - E sabeis vós poque fiz seu retrato? É para mim, por ter encontrado um incomparavel modelo, do qual quero conservar a lembrança para meus futuros trabalhos. - Não, tornou a repetir Crucifixo. - Suppondes que seja para o cavalleiro? Acaso a formosa Dolores o não ama? - Oh! não ! não! Exclamou Crucifixo erguendo os braços. - E a Sra. de Louvain quer casar sua sobrinha com o cavalleiro? - Sim, mas não é isso, pareceu dizer a velha. - E vós, boa mulher, tendes amizade áquela menina? - Se lhe quero?!! disse ella. - E que podeis vós fazer em favor d`ella? - Nada, respondeu Crucifixo, deixando cahir seus enormes braços com desanimo. - Tem ella ao menos alguns amigos com os quaes possa contar? - Sim, alguns, respondeu a velha apontando para Chaville. - Ah! estão perto d’aqui? Pois bem, boa mulher, eu vou tranquillisar-vos para que me deixeis passar. Crêde-me, eu não sou tão mão como pareço. Pedi aos amigos d’essa moça que me venhão fallar qualquer d”estas manhãs, antes do meio-dia. Eis o meu endereço, daí-lh’o, e guardai-me segredo. - Obrigada, disse Crucifixo, pondo o dedo sobre a boca e afastando-se com uma rapidez que se não houvera attribuido á sua idade, mas que se explica pelo terror que lhe inspirava sua ama

(Traduzido por Paulina Philadelphia)

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Jornal das Famílias. Tomo 6, janeiro de 1868, p. 25-27 “Dolores”

XVII ASTUCIA POR ASTUCIA

Frank, apesar de não ter pratica da sociedade comprehendeu instinctivamente que nem á sua idade, nem á modesta condição que tinha assentava o convidar os sinceros amigos de Dolores para virem á sua casa, embora fosse para um fim que a todos interessava. Levantára-se muito cedo lembrando se do singular encontro que tivera na vespera, na estrada sinuosa, quando se erguêra diante d’elle uma fantastica apparição como o espectro de sua consciencia. Vestio-se e foi apressadamente para Chaville, emquanto tudo ainda estava silencioso na casa da Sra. Louvain. A vigilante Crucifixo porém estava de pé, lavando a porta da entrada com tão copiosa porção d’agua, que ao approximar-se foi Frank quasi que inundado por ella, o que provocou o riso de Crucifixo, á qual pedio o endereço da casa da Sra. d’Hauterive, e mais alguns esclarecimentos que ella lhe deu, sempre temerosa de ser sorprendida, por sua terrivel ama, n’essa criminosa conversação. Frank, sem perda de tempo, dirigio-se para Chaville. Foi recebido pelo Sr. Prieu, que ouvio com tanta admiração quanto interesse a estranha narração do retratista. - Senhor, disse por fim o tio de Mathilde, a vossa lealdade conduzio-vos ao bom caminho. Somos realmente os unicos amigos da sympathica Dolores. Minha sobrinha, que logo vos apresentarei foi por muito tempo sua companheira no collegio. Vistes por vós mesmo em que maleficas mãos cahio a pobre orphã. Nós somos, é verdade, conhecidos da Sra. de Louvain, mas com que direito iremos nós intervir? Todavia, se essa infeliz menina correr algum risco far-me-hei um dever de socorrêl-a. - Se precisais, disse Frank, de minha cooperação, contai com ella; pois interessa-me vivamente a posição d’essa menina; e como testemunho de minha boa vontade, aqui trouxe, para dar á vossa sobrinha, o retrato que fiz de sua amiga. Não devo possuir esse esboço que obtive fraudulentamente. - Mas que dirá então ao cavalleiro Banco? Que fareis vós da Danaide que elle vos encommendou? Se tiverdes de ficar com ella peço-vos que me deis a preferencia na compra; disse o Sr. Prieur. - Não me inquieto com o que há de acontecer, disse Frank negligentemente. Quanto á Danaidade, eu me encarrego de causar com ella uma sorpresa divertida. - No momento em que Frank tirava de sua carteira a imagem de Dolores, entrou Mathilde na Sala. Ao ver a esse retrato soltou um grito de admiração e alegria, e não sabia como agradecesse a seu tio a agradavel sorpresa que lhe preparára. - É a este senhor que deves esta linda pintura, disse o Sr. Prieur á sua sobrinha, e muito mais devemos á sua lealdade. Espero que teremos occasiões de provar-lhe o nosso reconhecimento. Pelo specimen que aqui tenho, disse Heitor a Frank, julgo não poder-me dirigir melhor do que a vós para uma encommenda de alguns quadros de que preciso para adornar o meu novo aposento de Paris. Foi mister contar a Mathilde a singular historia d’esse retrato clandestino, e as maleficas intenções do desleal cavalleiro, neutralisadas felizmente pela lealdade do pintor. - Crede, senhor, disse Frank, que quando aqui vim, não foi para negocio. Foi para cumprir com um dever; mas se quizerdes ter a bondade de visitar a minha officina, que pouco dista de vossa casa, tereis talvez occasião de confiar mais um pouco em meu talento, ou pelo menos em minha boa vontade. - Nós lá iremos, disse o Sr. Prieur, e vós conhecereis no prosseguimento de nossa amizade que é sempre a rectidão a melhor de todas as negociações. Foi n’esse tom que continuou ainda por algum tempo a conversa, recahindo a cada momento sobre Dolores, cuja imagem parecia praticar com elles a pedir-lhes protecção. No dia seguinte, preoccupado pelas communicações que recebêra, foi muito cedo o Sr. Prieur á officina de Frank. O famoso quadro da Danaide occupava o primeiro lugar. Esse assumpto tantas vezes reproduzido, por todos os pintores, de todas as escolas, era alli tratado de uma maneira magistral. O elevado sentimento que predominava no trabalho do artista fazia esquecer a frivolidade do assumpto, pois a arte é sempre casta. Sustentou o Sr. Prieur que a cabeça tão criticada pelo eximio conhecedor, o cavalleiro Banco, devia ser conservada, e que se não podia sem perigo modificar a concepção do artista. - Não senhor, respondeu Frank com essa prodigalidade do moço que sente sua força, abro mão de minha Danaide, abandono-lh’a. Far-lhe-hei um trabalho correspondente á remuneração que d’elle espero; já que assim o quis, será o Sr. cavalleiro servido a seu aprazimento. A zombaria de Frank fazia presentir um projecto decidido.

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Não procurou o Sr. Prieur participar do segredo do retratista, mas como entra sempre um pouco de egoismo ainda nas melhores intenções, quis elle certificar-se de que o interesse de Frank por Dolores não provinha de um sentimento mais terno do que a rectidão de sua consciencia. Procurou captar a confiança do artista, e ouvindo-lhe a narração de sua vida soube que deixára na Allemanha uma sincera affeição. - Já que não quereis receber remuneração alguma pelo admiravel esboço que fizestes. E que tem para nós um valor incalculavel, espero ao menos que não recusareis vender-me estas duas lindas paizagens, nas quaes encontro os mais pittorescos sitios d’este lugar. Com difficuldade consentio Frank em aceitar a avultada somma que lhe dava o Sr. Prieur pelos dous quadros, repugnando-lhe ver transformar-se em um negocio o que fizera unicamente para tranquilisar a sua consciencia. Retirou-se o visitante assegurando ainda uma vez ao pintor a sua amizade e instando-o para que repetisse suas visitas a Chaville. - Agora nós Sr. cavalleiro, disse Frank sentando-se para trabalhar no quadro do protector das artes.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 6, fevereiro de 1868, p. 54-58 “Dolores”

XVIII CRESCENDO

A medida que o rio, depois de innumeros rodeios, approxima-se do termo de sua carreira, mais rapida é a sua corrente. No ponto a que as cousas chegárão, Dolores tem de succumbir ás machinações que a ameação, ou apparecer qual a estatura do Commendador impellindo para o terceiro plano, como no festin de Pedro, a esse velho D. João. O Cavalleiro tem igualmente pressa de aceitar o desfecho; qual o lenhador que cavou ao redor de um olmo e julga só faltar-lhe um derradeiro golpe para derribal-o triumphantemente. Por isso logo que vio acabado o retrato da Sra. de Louvain o seu primeiro cuidado foi, não de pagar a Frank o importante de seu trabalho, mas sim o de ir perguntar-lhe se a Danaide tinha passado por uma feliz transformação. Frank, que já se impacientava com os artisticos conselhos d`esse perfeito conhecedor das artes, não o recebeu em sua officina, mas sim na sala que a precedia.

Meu caro mestre, disse o pintor, deve deixar-se ao artista alguma iniciativa; achastes que a minha Danaide tinha ares de uma costureira parasiense, e vistes que não me formalisei com isto; mas quanto á filha do rei de Argos, que me encommendastes, desejo não ser influenciado relativamente a ella. Asseguro-vos que nada perdereis com isso; mas preciso de tempo, e de uma absoluta liberdade.

- Apraz-me esta independencia, disse o Cavalleiro, eu fio-me de vós. Com o lindo modelo que vos proporcionei, espero que me fareis um primor d`arte. Sabeis que vosso quadro tem de apparecer na festa campestre que vou dar em Bellevue na proxima semana; haverá n`ella artistas, amadores, e pessoas da alta sociedade, que folgaráõ de conhecer-vos; será emfim para vós um magnifico ensejo de apresentação. Não me agradeçais. Isto me offende. Tenho passado a minha vida a sacrificar-me pelos outros; não me posso gabar de ter sido por isso devidamente abençoado; mas que importa? Está na minha natureza. Faço o meu dever. É a minha divisa. Emfim, meu caro Frank, conto comvosco; sempre em vosso interesse.

- Podeis contar, disse o pintor conduzindo-o até á porta, e crede que se não ficardes contente a culpa não será minha.

- Satisfeito com a resposta do artista, pôz-se a caminho para ir visitar a Sra. de Louvain, que ainda não admittíra na confidencia, temendo seus escrupulos. Ficou o Cavalleiro desagradavelmente sorpreendido de encontrar em seu caminho com um carro no qual vio Dolores e outra moça.

Difficilmente fez-lhe a Sra. de Louvain comprehender que sua autoridade sobre Dolores podia ser-lhe contestada, e que não pudera deixar de conceder-lhe licença para passar alguns dias em casa de uma familia honesta. - Alguns dias? exclamou o Cavalleiro. Bem, já que sois tão tolerante não me recusareis de levar vossa sobrinha á festa que tenciono dar na proxima semana em Bellevue; é indispensavel para o bom exito de nossos projectos; já annunciei a sua presença alli; se hesitardes faltareis ás nossas convenções e eu duvidarei da vossa boa vontade. - Julgais-me tão imprevidente que eu accedesse ao seu pedido sem ser com a condição de ella comparecer em vossa casa? Ao passo que esses dous personagens meditavão seus honestissimos projectos, os moradores de Chaville estavão loucos de alegria pela posse que tinhão de Dolores por alguns dias.

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O Sr. Prieur mostrou-se sorprendido d`essa visita, que provocou talvez, mandando como habil parlamentaria a emprehendedora Mathilde. - Ah! minha boa Dolores, dizia Mathilde abraçando sua amiga, se estivessemos sempre assim! que bonitos dias para nós! que felicidade para mim! Tu me restituirias a vida, querida, e eu ficaria tranquilla sobre o teu futuro sabendo-te ao abrigo dos mãos. Não poderemos apossar-nos d`essa felicidade que nos está tão perto? - Talvez que tua amiga tenha outros projectos, disse o Sr. Prieur á sua sobrinha. Quem te assegura que ella se acharia feliz em nossa companhia? Talvez que ella considerasse ter mudado tão sómente de prisão. - Não me tenteis, exclamou Dolores, é para junto de vós que o coração me impelle. Sabeis que sois meus unicos amigos, e que sem vós estaria só no mundo; mas não me aconselheis que falte ao meu dever! No caso de tornar-se-me impossivel a residencia em casa de minha tia, com que titulo poderia eu tracal-a pela de vossa casa? - E que farás então? perguntou Mathilde. - Trabalharei, respondeu alegremente Dolores, e depois irei ver-vos a miudo. Não preciso de muito para viver. - Entendo, entendo, é por orgulho que rejeitas nossa casa. Julgas não precisar de nós, sem te inquietares com o pezar que isso nos causaria! Dizei alguma cousa. Fallai vós, meu tio, disse Mathilde. - Eu bem o quizera, disse hesitando o Sr. Prieur, mas é por demais difficil de exprimir o que teria de dizer-lhe. - Há muito que eu o sei, disse inconsideradamente Mathilde. - Não senhora, disse gravamente o Sr. Prieur; vós não o podeis saber. Sois ainda muito criança para fallardes em cousas sérias. - Julgais isso, meu tio? Pois bem, quereis que eu vos diga desde que dia é que pensais em cousas sérias? Eu vo-lo digo, mas é preciso que Dolores não nos ouça; e fallando ao ouvido de seu tio disse-lhe pausadamente: é desde o dia... - Não, disse o Sr.Prieur, não quero saber das tuas supposições. Tudo isto era bastante para corações que adivinhão. Essa reticencia fizera comprehender a Dolores que se tratava de sua pessoa. Dolores comprehendêra de há muito tempo o affecto que lhe consagrava o Sr. Prieur. A despeito da idade que ostentava havia tanta mocidade em seu olhar e sua voz, e manisfetava-lhe em suas palavras um tão terno e respeitoso interesse, que ella sentia-se protegida com a sua presença; ella que estava só no mundo, e que fôra sempre privada de uma sincera affeição! Com que prazer lhe houvera dedicado a sua vida. Se achasse uma irmã como Mathilde, e um pai como o Sr. Prieur, que faltaria á pobre orphã? Talvez que o coração de Dolores se encarregasse de dar a resposta que o tio de Mathilde não quis ouvir. Por uma admiravel previsão da Providencia há flôres fecundadas pelo dourado pó que um alado insecto suga n`um calice e vai deposital-o loucamente no seio de outra, sem o que ficarão estereis essas flôres isoladas. É assim que Mathilde confudia o dourado pó que existia occulto no fundo d`esses dous corações e os havia fecundado com uma só palavra que nem mesmo pronunciára. Grande era o encanto que dava esse mysterio ás conversações que se seguirão. Fallou-se em cousas indifferentes, mas a conversação parecia-se com essas vagas symphonias nas quaes a imaginação do auditor encontra como que um écho de seus mais intimos sentimentos. Para Dolores, escoavão-se com demasiada rapidez os poucos dias de que obtivera de passar n`essa doce intimidade. Mathilde, que não queria separar-se de sua amiga nem durante a noite, fazia-lhe partilhar de seu quarto, e a Sra. d’Hauterive testemunhava-lhe uma extremosa amizade. Obstada por seus padecimentos de tomar parte em todos os passeios que Mathilde proporcionava a Dolores, fazia-se substituir pelo Sr. Prieur Um dia em que estes tres inseparaveis se achavão no jardim foi Mathilde chamada por sua mãi, ficando assim Dolores involuntariamente a sós com o Sr. Prieur, que absteve-se de aproveitar-se d`esse colloquio para pronunciar as tres palavras que lhe roçavão os labios. Quasi que já sabia o que desejava saber. A affeição que Dolores lhe deixava conhecer era tão candida, tão pura e tão filial, que elle se exprobraria de agitar essa tão bella alma por um sentimento mais forte. Versou pois a conversação, como que naturalmente, sobre motivos frivolos. Essa segurança que dispensa os interlocutores de todo o constrangimento e esforço de espirito é uma felicidade que foi por vezes apreciada pelos verdadeiros amigos. Ainda uma vez porém veio a louca Mathilde lançar uma pedra n`esse limpido lago, perturbando com um palavra a calma d`essa amizade. Chegou correndo e lançou-se offegante nos braços de Dolores dizendo-lhe a meia voz: “Querida tia, fica comnosco, nós te queremos tanto!” Cruel palavra para a pobre orphã. Sentio-se ferida por ella como por uma lamina, talvez porque nada nos perturba mais do que a revelação de um sentimento de que nos queremos defender. Quem poderá sondar os mysterios do coração humano! Talvez que attrahida pela amizade que lhe testemunhava o Sr. Prieur, e sabendo que elle antolhava ventuoros dias, mas bem depressa afastou essa idéa. Por isso, ao ouvir Mathilde chamal-a de tia, vio n`essas palavras uma cruel ironia á sua sorte; e tão abalada ficou que pôz um dedo sobre os labios de sua amiga e conservou-se pallida e sem movimentos.

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- Que tendes? perguntou-lhe o Sr. Prieur com interesse; e tu, Mathilde; que lhe fizeste?

- Estou com frio, disse Dolores levantando-se com esforço. Voltemos para casa, disse ella apoiando-se no braço de Mathilde. Recusára instinctivamente o braço do Sr. Prieur, que seguia extremamente inquieto.

Passou a noite agitada e amanheceu com febre. Immediatamente foi o Sr. Prieur buscar um medico, que em vão tentou descobrir a causa d`esse accidente. Fez a

competente receita, recommendando muito repouso, e retirou-se convencido de que essa indisposiução não era das que a Faculdade sabe curar.

Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 6, abril de 1868, p. 123-125 “Dolores”

XIX DANAIDE.

Proximo estava o dia marcado pelo protector das artes para a festa campestre projectada. Os convites havião já sido feitos, e todos aceitados. Já não podia recuar. Nada porém ia a seu aprazimento. A Sra. de Louvain fôra informada do grave incommodo que acommettêra sua sobrinha, e nas insolentes cartas que escreveu ao Sr. Prieur disse-lhe que sabia devidamente apreciar a supposta enfermidade de Dolores, e na ultima que lhe dirigio ousou traçar a palavra desviamento. O tio de Mathilde não se dignou de responder-lhe; mas não querendo vergar ao peso d`essas insinuações, e para salvar a sua responsabilidade, consultou a um magistrado, seu amigo, a quem fez parte de seus projectos. N`essa occasião soube mais alguns detalhes relativamente ao Cavalleiro; de quem já conhecia as intenções por Frank e Crucifixo, e comprehendeu que havia chegado a occasião de desmascaral-o. O Cavalleiro esperava sempre pelo quadro da Danaide, que o pintor dizia estar retocando para aperfeiçoal-a. chegou o dia da festa e o quadro não appareceu; mas como Frank lhe promettêra ser exacto, sob sua palavra, elle contava com a sua encommenda até á ultima hora. Com muita antecedencia chegarão os numerosos convidados do Cavalleiro, que forão logo admirar a magnificiencia do jardim e do pavilhão, que ornavão grande profusão de flôres, grinaldas, lanternas, inscripções e emblemas. Era uma sociedade heterogenea. Muito familiar com seu amphitryão e assaz livre em suas palavras; o que evidentemente mostrava não ser ella composta em seu todo de notabilidade da boa sociedade. Se Dolores alli estivesse não sabemos qual seria seu papel em uma tal reunião. A Sra.de Louvain ostentava orgulhosa o brilho de seus lindos adornos. Uma sineta reunio todos os convivas na sala de jantar para satisfazerem o appetite que lhes augmentará o passeio. O almoço foi esplendido, muito animado, e mesmo tumultuoso logo que a variedade dos vinhos influenciou os convivas. Para tranquillisar a Dolores, com quem contavão n`esse dia, havião sido convidadas algumas pessoas de Sévres; e é por isso que ahi vemos figurar a Sra. de Paintendre, inseparavel amiga da Sra. de Louvain. O Cavalleiro; que se animara gradualmente para dar o exemplo, propôz uma saude á sua noiva, de quem prometi fazer admirar o retrato antes de anoitecer, se o pintor que estava incumbido de fazêl-o não lhe faltasse com a palavra.

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Frank não perdia no emtanto seu tempo. Aproveitou-se do tumulto produzido pelo estrebilho de uma canção cantada em côro, fez conduzir e collocar na sala em que os convidados tinhão de tomar café o tão suspirado quadro. Recommendou grande silencio aos criados, disendo-lhes que queria causar uma sorpresa ao Cavalleiro afim de alegrar a festa. O quadro estava coberto com um véo que só devia ser desprendido pelo Cavalleiro . Tendo tudo disposto, Frank fez sua entrada na sala de jantar, pedindo muita desculpa pela demora, e annunciou aos convidados que a Danaide já os esperava na sala. Esta noticia foi enthusiasticamente applaudida pela ruidosa assembléa, que activou o fim do banquete para ir contemplar a tão gabada pintura. Logo que todos se acharão reunidos o Cavalleiro fez cahir com um gesto magistal o véo que encobria a Danaide. Houve um momento de attenção, depois de sorpresa, alguns sorrisos, e por fim alguns ceremoniosos comprimentos dirigidos á sra. de Lovain, que estava extraordinariamente confusa. Nenhum dos circumstantes hesitou em reconhecêll-a, tal era a fidelidade dos traços. Todos fallavão n`esse assumpto, e dava cada um seu parecer. Era doloroso de ver-se essa joven belleza de Danaide desfigurada sob a pretenciosa mascara da Sra. de Louvain. Havia um irritante contraste entre esse estylo largo e severo d`esse lindo esboço de mulher, e a affecatação d`esse rosto demasiadamente burguez, que parecia sahir da tela com os cabellos encrespados, as maçãs do rosto illiminadas, e os olhos chammejando qual a explosão de uma pistola de dous canos. Só um gaiato se lembraria de uma tal profanação. - Que maravilhosa fidelidade! exclamou a Sra. Paintendre que sentia a necessidade de approvar sempre; mas eu não quereria me retratar sob a figura de uma damnada, com o receio de que isso me acarretasse alguma desgraça. A infeliz senhora tomára uma chuva de ouro que cahia do alto do quadro, segundo indica a mythologia, pelas chammas do inferno, e entendêra damnada em vez de Danaide. O consternado Cavalleiro não teve a coragem necessaria para explicar-lhe que se tratava da filha do rei de Argos. Algumas das moças que alli estavão, e das quaes Frank já fizera o retrato, offendêrão-se de que as não houvesse escolhido para modelo, e motejavão da escolha que fizera para a sua Danaide. A observação da Sra. Paintendre fez reapparecer a hilaridade. O cavalleiro procurava com os olhos o perfido pintor para descarregar sobre elle todo o peso de sua colera; mas Frank, contente com o effeito que produzíra a sua obra, já não se achava alli. O desgraçado amphitryão dissimulou o seu resentimento; mas teve muito a proposito uma indisposição que o obrigou a retirar-se para seu quarto, abandonando a casa á sua ruidosa e imprudente assembléa.

Em sua ausencia foi a Sra. de Louvain considerada como a dona da casa; e ella aceitou esse papel com uma calculada modestia; ficando assim evidente para todos os convidados que era ella realmente a noiva do Cavalleiro.

- Continuar-se-há.- Traduzido por Paulina Philadelphia

Jornal das Famílias. Tomo 6, maio de 1868, p. 156-158 “Dolores”

XX O DESAFIO.

A eterna amizade de que estava Dolores cercada pouco e pouco restituo-lhe o socego de espirito. Durante a sua convalescença, o Sr. Prieur tornou-se mais assiduo e expansivo; á moça já não era licito duvidar dos seus projectos. Ousou elle perguntar-lhe um dia, na presença de Mathilde, se não teria ella demasiado aversão á sua idade e cabellos brancos; se, com a sua mocidade, espirito e belleza, não teria outras aspirições; e finalmente se ella seria assaz generosa para consagrar-lhe sua vida, com o consentimento de sua mãi adoptiva. Em externo commovida, conservava-se Dolores silenciosa; a afouta Mathilde, porém, encarregou-se da resposta. - Meu caro tio, disse ella com alegria, se Dolores gostasse dos cabellos pretos, não tinha ella bom ensejo? Não podia encontrar melhor que o cavalleiro Banco. Não obrigues esta pobre menina a fallar; se ella não vos disse não, quer isto dizer sim. E’ pois necessario explicar-vos tudo? Dolores, meio vencida, estendeu a mão para Mathilde e reclinou a cabeça sobre o hombro da sua amiga. O Sr. Prieur tomou a mão que ficára livre, e Dolores não a retirou.

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Entretanto a moça, logo que sentio-se capaz de supportar a viagem de carro de Chaville a Sévres, quis tornar para casa de sua tia. Por decoro não se podia oppôr a isso o Sr. Prieur, apezar de que essa casa, aberta ao cavalleiro, se lhe tornasse odiosa. A familia de Hauterive, fluctuando em grande incerteza, considerava tão difficil conservar Dolores como entregal-a em mãos perigosas, quando o tinir da campainha veio muito a proposito pôr termo a tal embaraço. Era a Sra. de Louvain, a qual, acompanhada do cavalleiro Banco, vinha raclamar sua sobrinha. O primeiro impeto do Sr. Prieur fôra despedir sem mais ceremonia o Sr. Banco; lembrou-se porém que tinha de dirigir-lhe um breve discurso, e que não encontraria melhor opportunidade. Não julgou todavia este personagem digno de pisar o lumiar da casa, e foi no jardim que deu audiencia aos visitantes. O cavalleiro vio-se obrigado a passar em frente do pintor Frank, que se tornára frequentador da casa de Chaville; fulminou o traidor com um olhar de desprezo, e o gaiato Frank respondeu com uma cortezia tão respeitosa como ironica. - Comprehendo, disse o Sr. Prieur, a presença da senhora; podereis porém dizer-me, senhor, com que titulo vos apresentais? - Com o titulo de amigo da familia, replicou mui serio o Sr. Banco. Demais, não vos occultarei que eu formára alguns projecto sobre o futuro da Sra. Dolores; tinha tambem direitos que me concedêra o consentimento da senhora, sua terna mãi adoptiva. Mas desde a sua ausencia e estada prolongada na vossa casa, é-me licito mudar de resolução, e os meus votos volvêrão-se para outro lado. Ao ouvir estas palavras, a Sra. de Louvain, recordando-se da danaide, julgou dever abaixar os olhos com modestia.

- Mas, Sr. Banco, tornou o Sr. Prieur com vivacidade, não vos perguntamos quaes são os vossos projectos e no que possão estar mudados; a vossa presença aqui deve ter motivo. - Poderies tomar a minha presença por um desafio, se a vossa idade não vos puzesse ao abrigo de qualquer perigo. - Sr. Banco, interrompeu o Sr. Prieur rindo, sou eu que vos farei logo um dasafio, se me derdes licença. Primeiro, porém, tenho de dar-vos um conselho; é o de pagar, em bem da vossa liberdade, certas lettras protestadas que não duvidei aceitar, convencido de que fareis honra á firma do cavalleiro Banco. - Não sei o que quereis dizer, respondeu o cavalleiro com embaraço; há de haver algum equivoco. - Não senhor, é claro como o dia; o meirinho dar-vos-há a explicação. Agora prestai-me ainda um instante de attenção, e depois podereis retirar-vos: eu vos desafio a que atireis a vossa cabelleira tão longe como eu vou atirar a minha. E desatando sem ceremonia a sua comprida cabelleira branca, atirou-a por trás das saças, com grande sorpresa dos espectadores. Não podia ter a pretensão de reclamar a prioridade d`este desafio, que recorda uma anecdota muito conhecida; cada qual, porém, toma seu aonde o encontra. O cavalleiro Banco pudera supportar a injuria que lhe fizera o pintor, a proposito da Danaide; víra-se ameaçado sem corar da prisão por dividas; este golpe, porém, este ultimo golpe o aterrava. Punha a sua maior vaidade no falso cabello, que tratava com tanta arte, e quem casava, por meio de matizes tão felizmente combinados, com as suas largas suiças. Via-se traido, estava vencido. Fez a sua retirada em desordem. Passando ao lado do malicioso Frank, que presenciava feliz esta festa de familia, enterrou o chapéo na cabeça, como se receiasse alguma zombaria ou via de facto. A Sra. de Louvain, que não era absolutamente má, mas a quem faltava rectidão e bom senso, perdoára talvez ao cavalleiro a sua cobardia; desculpára-lhe ainda o não fazer honra á sua firma, ao passo que esbanjava o dinheiro em festas a indifferentes na casa de Bellevue; absolvêra-o em qualquer occasião; mas ella que, depois da scena da Danaide, começava a tornar ao serio o seu papel de noiva do cavalleiro Banco, não lhe perdou a sua cabelleira.

- Como enganou-me esse homem! disse ella ao Sr. Prieur com amargura e indignação. O Sr. Heitor Prieur despíra o grande sobretudo, e, com o seu vestuario elegante, seu talhe esbelto, sua fronte

descoberta, sua physionomia aberta; não parecia ter mais de trinta annos. - Sim senhora, disse elle, este cavalleiro de industria, que captára a vossa confiança, nutria detestaveis projectos; proval-o-hemos. Agora que não vos resta illusões a seu respeito, pergunto-vos se consentireis que a Sra. Dolores case conforme as inclinações de seu coração. A menos, accrescentou tomando a mão de Dolores, que a senhora não se digne perdoar o meu ardil e a minha transformação.

Dolores estava mais confusa que feliz com este incidente inesperado; comprehendia que fôra enganada; porém a sua verdadeira alegria era ver-se livre para sempre das assiduidades do cavalleiro. - Não era o senhor que eu amava, disse ella com hesitação ao Sr.Prieur, era o tio de Mathilde. - Cara Dolores, tornou Heitor, socegai, que os meus cabellos brancos voltaráõ; até então, porém, ainda tenho muitos annos para servir-vos e amar-vos.

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A Sra. de Louvain, que perdêra toda autoridade trilhando por caminho errado, pouco estava em estado de oppôr-se; além de que, não deixava de resultar-lhe algum interesse em ligar-se a essa rica familia. Emprehendeu pois fazer crer que fôra ella quem combinára este casamento, e Deos sabe se não acabou por acredital-o. - Bem vedes, disse ella, que não foi sem alguma previsão se eu permitti á minha sobrinha demorar-se junto de sua amiga. Não me dava cuidado algum o deixal-a em vossa casa. Não vo-la podia entretanto lançar nos braços. Mas ainda hontem eu dizia á Sra. Paintendre: Verá a senhora que breve lhe dei de apresentar a Sra. prieur. Então, enganei-me? As varias personagens que assistirão a esta scena nenhuma vontade tinhão de contradizêl-a: olhavão com olhos arregulados, e esse olhar parecia dizer: - E’ muito descaramento, mas deixemo-la fazer; assim vai a cousa pelo melhor. Ficou convencionada que era a Sra. de Louvain que casava sua sobrinha com um dos mais ricos e dos mais honrados proprietarios de Chaville. A Sra. Paintendre encarregou-se de exaltar, por toda a comprida rua de Sevres, as virtudes d`essa terna mãi, que arranjara com tanta solicitude um rico estabelecimento para sua filha adoptiva. - Continuar-se-há.-

Traduzido por ***

Jornal das Famílias. Tomo 6, junho de 1868, p. 181-184 “Dolores”

XXI PAINEL.

Um estatistico sustentou que a conversação de uma familia poderia formar um volume em um só dia. Agora que só temos algumas paginas á nossa disposição não nos demoraremos para ouvir todos os discurso que provocou, na casa de Chaville, a inesperada transformação que alli se operou. Dolores, vendo-se livre de todos os seus pezares e constrangimento, gozava de uma doce serenidade. As lindas côres de seu rosto havião reapparecido em suas pallidas faces, e sua esplendida belleza tinha o brilho do primeiro desabrochar da flôr. Extremamente admirada ficou quando Heitor Prieur mostrou-lhe a sua imagem tão fielmente reproduzida por Frank; e perguntou a si mesma por que sortilegio pudera elle obter o seu retrato, não se tendo nunca feito retratar. Mathilde apresentou-lhe o pintor que ella conhecêra em casa de sua tia, e que lhe manifestára tanto interesse; lembrou-se então da fixidade com que a olhava, quando devera estar todo absorvido no rosto da pessoa de quem fazia o retrato. - Eis o magico disse Mathilde; mas o que não sabes, minha querida, é que esse lindo retrato foi encommendado pelo cavalleiro Banco. Felizmente o nosso Frank não quis ser complice de uma traição.

- Senhora, disse Frank, desde que tive a ventura de conhercer-vos comprehendi que o Cavalleiro não era digno de possuir a vossa imagem. Observando-o com attenção sorprendi-lhe projectos que me indignárão a ponto de resolver frustral-os. Nunca eu me poderei esquecer da comica occasião que o acaso me deparou de fazer justiça ao meu modo; e quando voltar ao meu paiz terei grande satisfação em contar á minha noiva este alegre episodio da minha vida de artista. - Não há acaso n’isso, disse o Sr. Prieur, só há a deducção rigorosa da honra e da rectidão. Quanto ao vosso regresso para a Allemanha, meu caro artista, ainda dista muito; pois que apenas principiastes as paisagens que vos encommendei, e previno-vos tambem que minha sobrinha é quase tão magica como vós, pois compromette-se a mostrar-vos o retrato fiel da vossa noiva. - Seu retrato? disse Frank. Ah! comprehendo agora o porque me fizeste dar tantos esclarecimento relativamente a ella, e á sua familia; porém-nós os artistas, não cremos muito na photographia. Agradeço-vos sinceramente esta prova de amizade, mas crede que esta fria imagem só fracamente me poderá recordar a graça da minha doce Margarida, esta linda filha da floresta Negra. - Peço-vos, Sr. incredulo, que não condemneis o meu retrato antes de vêl-o, disse Mathilde agastada; emprazo-vos para jantardes comnosco ai mesmo, hoje, ás cinco horas da tarde. Heitor Prieur, feliz com o desfecho de sua aventura, de que devia o triumpho á rectidão de Frank, abria alegremente sua alma ao reconhecimento e á espansão. Queria recompensar por uma agradavel sorpresa a honradez de Frank e retêl-o ao pé de si. N`isso não fizera mais do que obedecer á iniciativa Mathilde, essa flôr da caridade que definhando-se derramava seu derradeiro perfume, e que queria ver desabrochar em torno de si as ephemeras flôres da felicidade. Nada é impossivel ao desejo de servirmos aquelles que nos são caros. Mathilde tinha em Bade uma familia reconhecida que ia regressar a Paris, á qual pedio que trouxesses em sua companhia Margarida e sua mãi.

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Os parentes de Margarida, ricos estalajadeiros das margens do Rheno, sabedores da protecção que Frank encontrára na familia Hauterive, não se recusárão a coadjuvar a sorpresa que seus amigos queriam proporcionar. Tudo estava prompto; Margarida e sua mãi achavam-se em Paris, de posse da amizade de toda a familia pela sua graça e condulta. Crucifixo estava aos seus serviços. Em sua qualidade de Alsaciana vivia perfeitamente com Rhenanas, com as quaes era menos silenciosa do que nas precedentes scenas em que a vimos figurar. Não ha noiva allemã sem uma flôrinha azul á beira d`agua. Abundavão felizmente os myosotis nas margens do pequeno rio que serpejava no sombreado jardim de Chaville. Foi ahi que na hora aprazada aposentou mysteriosamente o Sr. Prieur as duas senhoras allemãs, e onde Frank foi pontual em comparecer. - Vinde, disse-lhe Mathilde tomando-o pela mão, dizei-me se o meu quadro não é superior ao vosso. Dolores, radiante de felicidade, acompanhava sua amiga. A debil Sra. d`Hauterive, apoiada no braço de Heitor, quiz assistir ao reconhecimento dos noivos, e a Sra. de Louvain, que conservára intacto toda sua sensibilidade, fazia parte da comitiva. Frank deixava-se conduzir sorrindo. Elle que tantas vezes se ríra em prejuizo alheio, esperava ver mystificado por seus amigos, pois via através da folhagem uma senhora idosa vestida como as camponezas da floresta Negra, com seu rico toucado bordado de ouro, que fiava tranquillamente debaixo dos salgueiros. - E’ sua mãi, exclamou alegremente Frank fitando a dita senhora, mas vos enganastes n’uma geração, pois sua filha (minha noiva) é mais moça do que ella. - Não duvido, disse Mathilde, mas chegai mais perto Sr. incredulo, e não façais barulho. Margarida, que se achava curvada na margem do rio, levantou-se e apresentou a Frank um ramo d’essas flôres azues cujo o nome é não te esqueças de mim. O magnifico effeito d’esse quadro fôra imaginado por Mathilde. Essa fresca e loura Allemã erguia as flôres acima de sua cabeça, ria-se d’esse bom riso que descobre todos os dentes, estendia a mão a Frank e falla-lhe n’uma lingua ignorada pelos espectadores, mas da qual apreciavão a harmonia e comprehendião approximadamente o sentido. A mãi de Margarida veio juntar seu animado dialogo ao dos dous felizes noivos, e Crucifixo, encantada d’esse encontro, fez em seu dialecto um commentario tão desharmonioso, que mais de uma circumstantes lamentou o tempo em que parecia muda. Ao passo que esse par ditoso continuava sua doce conversação, debaixo dos salgueiros, Dolores apreciava n’essa empreza toda a bondade de sua amiga. - Porque, perguntou ella ao Sr. Prieur, vos escondeis para praticardes o bem? Porque não me dissestes com franqueza quaes erão vossas idéas a meu respeito e dissimulastes por tanto tempo vossos projectos affectando a gravidade de um velho? - Foi para melhor vos conhecer e amar, e tambem porque tereis receiado da minha mocidade. Não vos teria podido attrahir para esta casa, ao passo que meus cabellos brancos vos inspiravão confiança. Meu pai, que conhece meus projectos, vai chegar em breve para amar-vos como mereceis. - Não foi sem premeditação, meu tio, disse Mathilde, que há tempo nos contastes uma linda historia de fadas. Lembras-te, Dolores? Tua amizade quebrou-o encanto e restituiste a belleza e a mocidade a este tio de comedia. - Emfim, disse Heitor Prieur á Sra. d’Hauterive, confessai, minha querida tia, que não desempenhei mal o meu papel. - Meu filho, respondeu a boa senhora, fizestes tudo para o bem. Vossas intenções erão tão puras que só temos de applaudir-vos e ajudar-vos. Mathilde, a quem vosso disfarce divertia, rogou-me de não oppôr ás vossas intenções; por isso é que vos dei plena liberdade. - Como? disse Heitor Prieur, quereis fazer-me crer que me havieis reconhecido apezar do meu disfarce? - Nada suspeitámos, meu sobrinho; porém nada mais facil de saber-se, visto que vosso pai nos prevenio por uma carta. Ha pouco recebêmos noticicias d’esse bom pai, de que vos tendes descuidado ultimamente e que ignorais ter de abraçal-o em breve. - Assim, disse o Sr. Prieur, ao passo que o julgava lograr a mathilde, era ella que mofava de mim? - Ingrato primo, disse ella. A mim competiria fazer-vos essa exprobração pela vossa falta de confiança. Não é a mim que deveis o conhecimento de Mathilde? Não vos dou eu o que tenho de mais caro, depois de minha mãi? O contentamento geral obstava a que fossem sérias essas recriminações. A vida humana compõe-se de acontecimentos inverosimeis tão contestaveis como as ficções dos romancistas. O que o autor d’este quase veridico romance nunca se exprobará, sempre no interesse de seu bom exito, é o feliz desfecho de suas pequenas historias. A pluralidade dos livros celebres, quer se refirão á verdade, que á ficção acabão de uma modo lastimavel; desde a Illiada, o Paraiso Perdido, o poema de Rolando, a Epopeia napoleonica, até Clara Harlowe, Manon Lescaut, Paulo e Virginia, Faust, Werther, etc., etc., poder-se-hia dizer que tudo o que é bom acaba mal.

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Page 32: Jornal das Famílias. tomo 3, novembro de 1865, p. 330 … · - É um dia bem feliz para vós,senhora, disse-lhe.um assiduo que com interesse seguia sua pantomima, ides poder occupar-vos

O autor das Legendas quiz poupar o delicado temperamento de seus leitores, e é graças a essa attenção, que elle, em sua humildade, explica o bom acolhimento de suas obras litterarias. Vê-se cahir o panno sobre a ultima scena d’este drama, mas se lançarmos um derradeiro olhar sobre esses personagens que se retirão, saudando os espectadores, veremos a fraca Mathilde, que só viveu para felicidade alheia, dando a mão a Dolores e Margarida; Frank e Heitor Prieur acompanhando suas noivas e sonhando venturas para o futuro; e a Sra. d’Hauterive, que olhando compassivamente para sua filha sente-se feliz de dar-lhe por companheira a terna e encantadora Dolores. Quanto á Sra. de Louvain, tranquilla sobre o seu futuro, enxuga uma imaginaria lagrima, figurando-se ter ella mesma combinado esse feliz consorcio. ( Todavia, a condescendencia de Heitor não se estendia até conservar sob seu tecto a ex complice do Cavalleiro.) A dedicada Crucifixo vemo-la ficando ao serviço de sua querida Dolores, e o traidor Cavalleiro perseguido pelos credores e repellido para o ultimo plano, para grande satisfação das almas bem formadas!

Traduzido por Paulina Philadelphia

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