jornal da abi 399

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399 MARÇO 2014 IAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Jayme Leão: O legado de um desenhista militante O humor gráfico nos tempos do golpe PÁGINA 34 PÁGINA 24 PÁGINA 18 PÁGINA 6 FRANCISCO UCHA ESPECIAL Audálio Dantas, Carlos Heitor Cony, Eliakim Araújo, Juca Kfouri, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder e Tinhorão lembram o dia do golpe. Dines: o fim dos jornais nos anos de chumbo Desenho de Fortuna, publicado em 1964. DIRETORIA DA ABI ANULA ELEIÇÃO DA MESA DIRETORA DO CONSELHO PÁGINA 3

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Page 1: Jornal da ABI 399

399MARÇO2014

IAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Jayme Leão: O legado deum desenhista militante

O humor gráficonos tempos do golpe

PÁGINA 34 PÁGINA 24 PÁGINA 18

PÁGINA 6

FRANC

ISCO

UC

HA

ESPECIAL

Audálio Dantas,Carlos Heitor Cony,

Eliakim Araújo,Juca Kfouri,

Ricardo Kotscho,Rodolfo Konder eTinhorão lembram

o dia do golpe.

Dines: o fim dos jornaisnos anos de chumbo

Desenho de Fortuna,publicado em 1964.

DIRETORIA DA ABI ANULA ELEIÇÃODA MESA DIRETORA DO CONSELHO

PÁGINA 3

Page 2: Jornal da ABI 399

2 JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

EDITORIAL

A ARTE DAMISTIFICAÇÃO

DOMINGOS MEIRELLES

"Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade."Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Adolf Hitler

O que leva uma pessoa a mentir de forma obsessiva?Qual é o perfil do mentiroso? A mentira é uma doençaou uma falha de caráter? A ciência tem consumido mui-ta tinta e papel para tentar explicar o motivo que levapessoas, de diferentes estratos sociais, a criarem um ciclode mentiras e terminarem reféns de uma realidade falsana qual acreditam ou fingem acreditar. Goebbels tinhauma perna dez centímetros mais curta que a outra. Comseu aleijão, personificava ironicamente a própria mentira.

Nos seus delírios, Goebbels amparava-se em discur-sos fraudulentos como se fossem a expressão da verda-de. Ele era um espertalhão ou um psicopata como osportadores da Síndrome de Münchhausen que fantasi-am a vida que levam, exibindo-se publicamente comovítimas de supostas ofensas e agressões, apenas paradespertar a comiseração alheia?

Ao serem despejados do camping onde armavam suasbarracas, sugando em benefício próprio o pouco prestí-gio e credibilidade que a ABI ainda desfrutava, os antigosinquilinos do 7º andar passaram a disparar ofensas con-tra as diferentes instâncias do judiciário do Rio de Janeiro.

Esqueceram-se da avalanche de irregularidades queviciaram o processo eleitoral, desde o berço, com o par-to enviesado de uma comissão que deveria conduzir opleito com isenção. Os integrantes da chapa Prudentede Morais, neto acabaram provando do próprio veneno.Os atos espúrios praticados pela antiga administração,com o objetivo de impedir que a chapa Vladimir Herzogparticipasse das eleições, voltaram-se contra seus pró-prios autores (vide A Cronologia da Crise , edição 398 doJornal da ABI. O mesmo texto pode ser também encon-trado no site da Casa, na internet) .

Apanhados em flagrante delito, viram-se obrigadosa fazer as malas às pressas e a deixar os cargos que ocu-pavam de forma desonrosa. Ao serem afastados das po-sições tomadas de assalto, através de expedientes espú-rios, começaram a exibir a mesma patologia dos porta-dores da Síndrome de Münchhausen. Apresentam-seatualmente como vítimas do poder judiciário. Exageramseus sofrimentos, inventam a cada dia novos sintomas,na tentativa de chamar a atenção e angariar simpatiaentre almas de boa-fé.

Shakespeare dizia que todos nós somos atores, algunsbons, outros maus, mas com um determinado momentode entrada e saída no drama para o qual não fomos con-vidados. Os canastrões que se dizem vítimas das vilezasdo judiciário têm consciência do papel que interpretame não podem ser levados a sério. Adulteram e inventamfatos de acordo com interesses de ocasião. Ao denegriremreputações, de forma açodada, não perceberam que amentira, como Goebbels, também tem perna curta.

Não se pode acreditar em pessoas comprometidas coma falsificação da verdade. O que dizem tem a mesma cre-dibilidade e garantia do uísque escocês vendido no Para-guai. Não se pode permitir, entretanto,que continuem aspergindo acusações in-fundadas contra jornalistas com a histó-ria e o currículo de profissionais como Au-dálio Dantas, Ziraldo, Carlos Chagas,Milton Coelho da Graça, Alberto Dines,Zuenir Ventura, Flávio Tavares, JosetiMarques, Paulo Caruso, Juca Kfouri,Carlos Newton, Adalberto Diniz, JesusChediak, Tarcísio Baltar, Paulo Jerônimo,Moura Reis, Ana Maria Costábile, Orpheu Santos Salles,Ágata Messina, Silvestre Gorgulho, Múcio Aguiar, Amiuc-ci Gallo, Arnaldo Cesar, Eduardo Ribeiro, Sérgio Gomes,Andrey Bastos, Hélio Doyle e Berto Filho, entre tantosoutros que integram a chapa Vladimir Herzog.

Na insana tentativa de reconquistar os espaços ondeacampavam, continuam a cometer trapalhadas, além derecorrerem várias vezes, sem sucesso, à mesma justiça quetanto achincalham. A última lambança foi tentar vergaro Estatuto para usá-lo como estilingue na sessão do Con-selho Deliberativo convocada pela Diretoria da ABI, nofinal de março, para eleger a nova mesa do órgão.

O último ato dessa ópera bufa foi melancólico para umainstituição com o passado da ABI: elegeram para a MesaDiretora conselheiros suplentes, o que é explicitamentevedado pelo Estatuto. Cometeram ainda outra inacreditá-vel patuscada: indicaram e elegeram para a Mesa do Con-selho uma associada que sequer é conselheira. Diante detamanha demonstração de insensatez e estultice, a Dire-toria anulou a eleição em função das graves violações doEstatuto (vide matéria na página ao lado). Uma nova elei-ção foi marcada para a última terça-feira de abril.

A posse de Tarcísio Holanda na presidência da ABI, em21 de fevereiro, teve extraordinária significação simbó-lica: a recuperação do seu mandato, cassado através deexpedientes insidiosos, praticados pelos próprios compa-nheiros da chapa Prudente de Morais, neto, onde concor-ria como vice. Quatro dias depois da morte do ex-Presi-dente, Tarcísio veio especialmente de Brasília para ocu-par o cargo que lhe pertencia de fato e de direito. Na reu-nião Ordinária do Conselho Deliberativo, realizada em29 de outubro, não imaginava que seria vítima de um“golpe de Estado”.

Ao chegar à ABI naquele dia, acreditava que a sessãoseria breve, havia inclusive preparado pequeno textosobre sua longa convivência com o ex-Presidente dequem fora colega de Redação no antigo Jornal do Brasil.Não foi o que aconteceu. Ninguém estava preocupado

com o luto. Não se prestou nenhuma homenagem pós-tuma ao jornalista brilhante, mas de gênio esquentado,que ocupava sub judice a presidência da entidade, des-de a eleição de abril de 2013. Ninguém pediu sequer umminuto de silêncio em memória do seu falecimento. Nãose ouviu também nenhuma palavra que traduzisse pe-sar ou tristeza. Em nenhum momento pronunciou-se onome de Maurício Azêdo. Não se ouviu uma única vozque exaltasse suas virtudes. Era como se o presidentemorto quatro dias atrás nunca tivesse existido.

O espetáculo que se seguiu foi vergonhoso e degradan-te para uma entidade com a tradição de defesa das liber-dades como a ABI. A maioria dos conselheiros presen-tes endossou um parecer jurídico produzido sob medi-da, pelo escritório de advocacia Siqueira Castro, paraimpedir que Tarcísio fosse empossado no comando daCasa. Num passe de mágica, o Conselho atropelou oEstatuto, transformou uma Sessão Ordinária em Extra-

ordinária, cassou o mandato de Tarcísioe elegeu Fichel Davit Chargel para pre-sidir a ABI até 2016.

A assunção de Tarcísio Holanda, em21 de fevereiro, tem múltiplos significa-dos, além de estancar o acelerado processode erosão que afetava a imagem da Casae ameaçava o futuro da mais longevainstituição da sociedade civil. A sua pos-se deu a todos nós uma lufada de esperan-

ça. A presença de um prestigiado repórter político nocomando da ABI, além de deter a estatura que o cargo exige,deu também novo hálito de vida a uma instituição em es-tado comatoso. A ABI não precisa agora continuar respi-rando com a ajuda de aparelhos. Os piores momentos desua história estão sendo revertidos através de intensoprograma de gestão desenvolvido pela atual Diretoria. Oprincipal objetivo é recuperar, em curto prazo, o edifício-sede, ameaçado fisicamente de entrar em colapso. Oabandono do prédio, um dos marcos da moderna arqui-tetura brasileira, é apenas um reflexo dos desmandos e dafalta de rumo da antiga administração.

O segundo passo é a restauração da credibilidade len-tamente drenada por interesses que se encontravam emlitígio com o papel que a instituição representou no pas-sado. Apesar de sitiada por dívidas monumentais queprovocaram a penhora de todos os seus pavimentos, a ABIcomeçou a mudar para enfrentar os desafios do futuro.

A crise estimula a escolha de novos rumos. A ABI selevanta e se renova, abre suas portas para os jovens jor-nalistas e reconquista a confiança dos profissionais quedesertaram da Casa, ou continuará sendo a sombra de simesma, desfazendo-se nas dobras do tempo.

A posse de Tarcísio teve ainda outro importante sig-nificado do ponto de vista político e sanitário: impediuque a entidade continuasse a ser usada como vitrine epalanque por personagens menores que proliferavam nasáreas de sombra da Casa. Ao serem expostos ao sol, per-deram a identidade, o norte e o viço, reduzindo-se à suaverdadeira dimensão. Mesmo diante da sua pequenez nãose deram por vencidos. Voltaram a recorrer ao surradoestoque de aleivosias que tentam usar agora como umaespécie de alvará, na esperança de legitimar um discursoencardido e divorciado dos novos tempos. A ABI se levan-ta de vez e se agiganta, como no passado, ou será nova-mente povoada por legiões de ácaros e outros microor-ganismos que se abrigam em ambientes úmidos e abafa-dos para se protegerem da ação desinfetante da luz.

Na insana tentativa dereconquistar os espaços

onde acampavam,continuam a cometertrapalhadas, além de

recorrerem várias vezes,sem sucesso, à mesma

justiça que tantoachincalham.

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3JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

A Sessão Ordinária que deveria eleger a novaMesa do Conselho Deliberativo foi anulada pelaDiretoria da ABI diante do conjunto de irregula-ridades cometidas durante a reunião realizada nodia 25 de março. O encontro foi marcado por gra-ves ofensas ao advogado Jansen dos Santos Oli-veira e ao Estatuto da entidade. Convidado peloPresidente Tarcísio Holanda para fazer uma bre-ve exposição sobre o processo que tramita na 8ªVara Cível, o advogado foi insultado e impedidode falar. Vários conselheiros exigiram, aos gritos,que se retirasse da sala do Conselho, alegando que"a ABI não era a OAB", ignorando a histórica par-ceria política que sempre existiu entre as duas en-tidades. O suplente de Conselheiro Marcus An-tonio Mendes de Miranda afirmou que a presen-ça do advogado era considerada indesejável peloplenário. Ao tomar essa atitude, Miranda conspur-cou uma das mais nobres tradições da ABI. A Casados Jornalistas jamais cassou a palavra de profis-sionais de outras áreas, convidados por diferen-tes comissões da entidade. No ano passado, omesmo Conselho ouviu com interesse o Deputa-do Federal Protógenes Queiroz, como dedicou es-pecial atenção ao Núcleo de Estudos de PolíticasPúblicas em Direitos Humanos da UFRJ. O mes-mo tratamento foi também dispensado ao Gene-ral-de-Exército Cláudio Barbosa de Figueiredo, ex-Comandante Militar da Amazônia.

O Presidente Tarcísio Holanda ainda tentou ga-rantir a palavra ao advogado, cujas prerrogativassão asseguradas pela Constituição, mas foi derro-tado pelo plenário. Aos gritos, conselheiros sus-tentavam que naquele local quem mandava era oConselho e não a OAB.

A Diretoria da ABI, envergonhada com tama-nha demonstração de autoritarismo, enviou à OABum pedido de desculpas diante do constrangimentoa que o advogado Jansen Oliveira foi submetidodurante aquela reunião.

Aberta a Sessão Ordinária de 25 de março paraa eleição da nova Mesa do Conselho afloraram as

primeiras irregularidades. O livro de presença apre-sentava duas listas com diferentes nomes de con-selheiros. A primeira violação do Estatuto ocor-reu na formação das chapas, onde uma associadafoi indicada para a Segunda Secretaria como sefizesse parte do Conselho. Em seguida, o nome deum suplente foi votado para ocupar a PrimeiraSecretaria da Mesa Diretora, o que também é ve-dado pelo Estatuto.

A outra grave irregularidade ocorreu durante oprocesso de votação. Vários suplentes votaram naeleição, o que também está em desacordo com oEstatuto da ABI.

Não bastasse esse conjunto de irregularidades,dois membros da Mesa Diretora eleita redigiramuma ata, às pressas. Ela foi publicada no site daABI sem autorização da Diretoria e sem que o textofosse também aprovado pelos conselheiros presen-tes, como é de praxe em todas as sessões do Con-selho. O açodamento na publicação da ata, queadulterava fatos e não reproduzia com fidelidadeo que ocorrera durante a reunião, tinha como ob-jetivo legitimar as ilegalidades cometidas duran-te a eleição.

Após um exame minucioso da lista de votan-tes, que se encontrava em total desacordo com oEstatuto, foram encontradas novas irregularida-des, como o nome repetido de conselheiros e desuplentes, em listas distintas.

Diante de tamanha afronta ao Estatuto e às me-lhores tradições da entidade, onde foram despre-zados os mais comezinhos princípios da Ética e doDireito, a Diretoria da ABI decidiu anular a eleição.

"A Diretoria da ABI reunida nesta segunda-fei-ra, dia 31 de março de 2014, deliberando sobre osprocedimentos adotados na última reunião do Con-selho Deliberativo, por ela convocado com base noartigo 30 do Estatuto, constatou a existência de gra-ves irregularidades que comprometeram a valida-de da pauta do dia da referida reunião. A convoca-ção da reunião de 25 de março de 2014 destinava-se ao cumprimento da seguinte ordem do dia:

DIRETORIA ANULAELEIÇÃO DA

MESA DO CONSELHODELIBERATIVO

1-Eleger o Presidente, Primeiro e Segundo Se-cretários do Conselho Deliberativo, com manda-to até a data das eleições a serem realizadas;

2-Indicar os membros do Conselho Deliberati-vo para integrar a Comissão Eleitoral, de acordocom item 4 do artigo 5º. do Título II do Regula-mento Eleitoral.

A primeira irregularidade foi a eleição do item1 da pauta. O Primeiro Secretário da mesa do Con-selho Deliberativo eleito não podia ter sido esco-lhido por violar o parágrafo segundo do artigo 31do Estatuto, que diz:

"Os suplentes poderão participar das reuniões,com direito a voz, mas não a voto" (g/n).

A outra grave irregularidade relaciona-se coma eleição da Segunda Secretária da Mesa do Con-selho Deliberativo, visto que a mesma não exerceo cargo de Conselheira Efetiva, além de não sersequer suplente. Seu mandato perdeu a validadepor decisão judicial que anulou a eleição realiza-da em abril de 2013.

A terceira irregularidade prende-se ao próprioColégio Eleitoral que participou da votação daMesa Diretora do Conselho Deliberativo ondeaproximadamente 15 Conselheiros Suplentes e 2Associados votaram como se fossem Conselhei-ros Efetivos, o que viola o parágrafo segundo doartigo 31 do Estatuto.

A quarta irregularidade refere-se ao fato de quealguns Conselheiros que participaram da votaçãonão se encontravam com a sua mensalidade em diacomo estabelece o artigo 12 do Estatuto, bem comoo artigo 40 do Regulamento Eleitoral.

Diante do exposto, a Diretoria comunica aos As-sociados que será convocada uma nova Reunião coma mesma pauta daquele dia, com o objetivo de res-tabelecer a composição da Mesa Diretora do Con-selho Deliberativo e marcar a data de uma nova eleiçãogeral, como determinou a juíza da 8ª. Vara Cível. Essadecisão de primeira instância foi confirmada no jul-gamento de 12 de fevereiro 2014 da 11ª. CâmaraCível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro."

PRESTAÇÃO DE CONTAS

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Diretoria da ABI, sob o co-mando de Tarcísio Holanda,aprovou um programa de in-tervenções imediatas no Edi-

fício Herbert Moses para tentar reverter,a curto prazo, o quadro de descaso, apa-tia e abandono em que se encontrava asede da entidade. O conjunto de provi-dências destina-se à recuperação de seto-res vitais da instituição, apontados no lau-do de vistoria, realizado em março de2012, pelo arquiteto Fernando S. Krüger.Apesar de diagnosticados como “de cará-ter urgente” nada foi feito, nos dois últi-mos anos, para sanar problemas que co-locavam em risco não só a segurança dosassociados como a dos inquilinos do pré-dio. Entre as medidas emergenciais reco-mendadas pelo arquiteto estava a substi-tuição dos cabos dos elevadores, corroí-dos pela ferrugem, que se encontravam li-teralmente por um fio. Foram quase doisanos de inércia. Noinício de abril foramtomadas as primei-ras iniciativas paraeliminar essa grave si-tuação de risco que pode-ria gerar conseqü-ências impre-visíveis.

A empresaresponsávelpela manuten-ção dos elevado-res já realizou asubstituição dos cabos danificados. Foramtambém trocadas as 24 escovasdos motores. Como não foi res-peitado o prazo indicado pelo fa-bricante, as escovas encontra-vam-se também muito desgasta-das (foto acima), comprometen-do a segurança e o bom funciona-mento dos três elevadores daCasa. A central de ar-condiciona-do, que estava desativada há cer-ca de um ano, voltou a funcionar.Das quatro máquinas que com-põem o sistema, três estão oper-ando dentro do padrão de refri-geração ideal. A última unidadedeverá ser reparada até o finalde março e início de abril.

O conserto da central de ar-condicionado, orçado em cercade R$ 18 mil, permitiu que o au-ditório do 9º andar voltasse a seralugado. Em condições normaisde funcionamento, o pagamen-to do material e da mão de obrapoderia ser quitado em pouco mais dedois meses, com a renda do próprio alu-guel. A demora inexplicável na contra-tação de uma empresa especializada pararealizar o conserto, privou a ABI, duran-te um ano, de significativa receita alter-nativa. O aluguel de seu auditório, um dosmaiores do centro do Rio, é a terceira fon-te de renda da Casa. A desídia em realizaro conserto da central de ar-condiciona-do teve reflexos nas atividades internasda ABI, ao restringir o calendário de even-tos da entidade, diante da falta de refri-geração no 9º andar.

O TRABALHOCOMEÇOU

Estamos colocando a Casa em ordem

OBRAS

A

teção contra a incidência solar. A aplica-ção de uma película especial de insulfilm,além de reduzir o calor, insuportáveldurante o verão, evitou a perpetuação deuma cena constrangedora que se arrasta-va há vários anos: para não serem atingi-dos pelo sol, os livros eram removidos daextremidade das prateleiras e espalhadosem pilhas, pelo chão. Situação inaceitávelpara uma instituição com a tradição e o

passado da ABI, que defende a livre circu-lação das idéias e a democratização doconhecimento, e cuja biblioteca é consi-derada uma das jóias da Casa, motivo deorgulho para todos nós.

Na Biblioteca podem ser encontrados,para consulta, mapas antigos, revistas ecoleções dos principais jornais que circu-lam e circularam no País, além de preci-osas publicações do século 19, como a ir-

CUIDADOS COMUMA JÓIA DA CASA

A Biblioteca Bastos Tigre, que reúneum dos maiores acervos de publicaçõesespecializadas em Comunicação do País,recebeu também um tratamento especi-al da Diretoria sob o comando de Tarcí-sio Holanda. Todos os vidros das janelase porta-janelas da biblioteca, localizadano 12º andar, receberam uma nova pro-

FOTO

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Nas fotos, o registro de algumas obras na ABI: no alto à esquerda, técnicos fazem os reparos no ar-condicionado e à direita, aparam os novos cabosde aço do elevador, de onde foram trocados também 24 escovas dos motores. Na foto destacada, duas escovas: uma nova e outra totalmente

desgastada. Acima à esquerda, os motores do elevador com os novos cabos e, à direita, a Biblioteca Bastos Tigre recebe proteção contra a luz solar.

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reverente Revista Illustrada, de AngeloAgostini, que fazia a delícia dos leitoresdo Rio de Janeiro, no tempo do Império.Umas das metas da Diretoria é fazer tam-bém um convênio com a Biblioteca Naci-onal para a restauração de documentos doSegundo Reinado que compõem o acervohistórico da ABI. Esse material, que deve-ria estar preservado em armários e gavetasclimatizadas, necessita de urgente trata-mento para estancar e reverter o proces-so de degradação do papel exercido pelotempo. Até o final de abril, será tambémrealizado um trabalho de higienização detoda a biblioteca para imunizá-la contrafungos, traça e cupim. Todo o seu acervodeverá ser digitalizado e os títulos coloca-dos no site da entidade a fim de que as obraspossam ser localizadas e, posteriormente,consultadas no salão de leitura, por pesqui-sadores de todo o País.

Antes de ser transferida do 9º para o12 º andar, a Biblioteca Bastos Tigre eraum dos xodós dos associados da Casa,como o poeta e jornalista Carlos Drum-mond de Andrade, um dos seus mais ati-vos consulentes. Durante vários anos, abiblioteca da ABI, como as grandes livra-rias do Rio, foi também ponto de encon-tro obrigatório dos intelectuais da época,que ali se reuniam, para trocar algunsdedos de prosa, antes de subirem paratomar um café no 11º andar. Drummonddizia sempre que aquele espaço tomadopelos livros não era um cemitério de pa-pel, “mas um território livre do espírito,contra o qual jamais conseguirá prevale-cer qualquer forma de opressão”. Sua re-flexão estendia-se à própria entidade, nosdiferentes momentos em que interveioem defesa das liberdades, desde a sua fun-dação em 1908.

MEMÓRIA DA IMPRENSAEM DEPOIMENTOS

Outra questão que chamou a atençãoda Diretoria foi a situação de abandonoem que se encontra o acervo do antigoCentro de Memória da ABI. A Diretoriaconsultou o engenheiro de som SérgioLima, da empresa La Macchina del Tempo,para que apresentasse um diagnósticosobre as possibilidades de recuperação domaior acervo de história oral da impren-sa contemporânea que se encontravaabandonado, em caixas de sapato e pape-lão. Dezenas de fitas cassete estão grave-mente afetadas por fungos por teremsido arquivadas, de forma inadequada, aolongo de vários anos.

O Centro de Memória reúne depoi-mentos inéditos de Jânio de Freitas, Al-berto Dines, Odylo Costa filho, e Amil-car de Castro sobre a famosa reforma doJornal do Brasil. Outro momento glorio-so registrado em fitas cassete foi a intro-dução do lead no Brasil, realizada porPompeu de Souza , no antigo Diário Ca-rioca. Em longo depoimento, Pompeu re-lembra as resistências que enfrentou, naépoca, ao implantar o lead , importado dojornalismo americano, e o impacto que omesmo provocou sobre a imprensa brasi-leira, que acabaria por adotá-lo, durantedécadas, como técnica moderna de reda-

ção do noticiário impresso.O nascimento de O Globo, Última Hora,

revista O Cruzeiro, além de outras impor-tantes publicações, estão entre os depo-imentos inéditos de profissionais quetiveram expressiva participação na cria-ção desses veículos. Toda essa históriaoral corre o risco de se perder para sem-pre diante do descaso das gestões passa-das em preservar esses relatos. Assim quetodo esse material for recuperado e digi-talizado, o Centro de Memória dará iní-cio a uma série de publicações com basenesse acervo, sob o título Cadernos de Jor-nalismo ABI, que se transformará tambémem significativa fonte de receita alterna-tiva da Casa.

A RECUPERAÇÃO DAFACHADA DO PRÉDIO

A grande reforma da fachada já come-çou. Um novo levantamento da área com-prometida por placas de mármore soltas,estufadas ou trincadas revelou que a de-mora em realizar o serviço, diagnostica-do em 2012, aumentou o número de pe-ças a serem trocadas, diante do risco dedespencarem sobre as pessoas que circu-lam pelas calçadas das Ruas México e Ara-újo Porto Alegre. A quantidade pratica-mente quintuplicou em conseqüênciadas infiltrações ocorridas nos últimosanos. A substituição do material danifi-cado, nas duas faces do prédio, começoupelo último andar.

A Diretoria da ABI havia planejadoretirar em um mês o “quebra-lixo” queenvolve todo o prédio por determinaçãoda Defesa Civil do Município para evitaracidentes graves com pedestres. Mas como aumento da área comprometida, o tra-balho só deverá ser concluído em julho ouagosto. O custo das placas, orçado inici-almente em cerca de R$ 12 mil , está agoraem torno de R$ 80 mil. Desde fevereirode 2013, quando foi instalado o “quebra-lixo”, foram jogados no ralo cerca de R$50 mil só com o aluguel dos andaimes,sem que a obra na fachada fosse iniciada,apesar das facilidades de pagamento ofe-recidas, na época, pela empresa responsá-vel pelo fornecimento do mármore.

CESTAS-BÁSICASPARA ASSOCIADOS

O restabelecimento do programa as-sistencial de entrega de cestas- básicaspara associados carentes, que se encontra-va suspenso desde o ano passado, foi res-tabelecido pela Diretoria por entenderque se tratava de um serviço essencial. Acesta-básica é constituída de artigos deprimeira necessidade, como leite em pó,café, arroz, macarrão, feijão, óleo de soja,sal, açúcar e farinha, além de outros pro-dutos. Os associados que necessitaremingressar nesse programa devem entrar emcontato com o serviço social da ABI, atra-vés do telefone da entidade. O tempo en-tre o credenciamento e a entrega dos ali-mentos dura cerca de um mês. A relaçãodos associados que participam desse pro-grama é mantida em absoluto sigilo pelaDiretoria de Assistência Social da ABI.

PEQUENAS INTERVENÇÕES,

GRANDES MUDANÇASUm conjunto de pequenas interven-

ções foi suficiente para mudar a fisiono-mia do prédio interna e externamente,com a substituição de 76 lâmpadas que seencontravam queimadas, desde o anopassado, nas escadas e corredores do edi-fício-sede. A simples colocação de oitolâmpadas, no hall central, deu um banhode luz na entrada dos elevadores, afastan-do o aspecto cavernoso que durante qua-se um ano dominou a entrada principalda ABI. O número de lâmpadas queima-das é extremamente revelador. Demons-tra a dimensão do desleixo da antiga ges-tão não só em relação à iluminação deáreas de grande circulação, como em re-lação às demais atividades da Casa.

O mesmo quadro de desleixo e abando-no pode ser encontrado no principal au-ditório da Casa, localizado no 9º andar.Esse espaço nobre, que abrigou importan-tes acontecimentos do nosso passado re-cente, exibe péssimo aspecto. Lâmpadasqueimadas, piso encardido, paredes sujas,poltronas quebradas e cobertas de pó. Nopalco, dois pianos importados, um de cau-da e outro de meia cauda, estão em péssi-mo estado de conservação com partes desuas estruturas danificadas por cupins. Opiano menor, além de considerado umapeça rara, tem ainda incalculável valorhistórico e sentimental. Foi doado à ABIpela extraordinária pianista GuiomarNovaes que o levava sempre, em sua com-panhia, durante as famosas turnês realiza-das pelo Brasil, Europa e Estados Unidos.

Foi também no piano maior que ArturMoreira Lima apresentou-se pela primei-ra vez, em público, durante um recital. Omúsico era ainda um menino de calçascurtas quando participou de um festivalde música clássica no auditório da ABI.Ao se apresentar na festa em homenagemaos 98 anos de fundação da Casa, Morei-ra Lima recordou emocionado aquelemomento inesquecível. Contou que acena, com as pessoas o aplaudindo de pé,naquele mesmo auditório, permaneciaaté hoje intocada em sua memória afeti-va. A Diretoria já entrou em contato comuma empresa especializada para recupe-rar os dois pianos antigos, fabricados no

início do século 20, atualmente avaliadosem cerca de US$ 80 mil.

A revitalização do 11º andar é outra dasprioridades estabelecidas pela atual gestãocom o objetivo de atrair os associadosaposentados que desertaram da Casa, dei-xando de freqüentar aquele espaço nobrede convivência social e lazer. A Diretoriaestuda a possibilidade de instalar uma can-tina no onze, como existia no passado, alémde restabelecer uma antiga tradição daque-le espaço, igualmente abandonada, comosalão de leitura. A Diretoria colocou à dis-posição dos sócios jornais e revistas sema-nais na expectativa de que o onze volte a serfreqüentado pelo corpo social que se afas-tou da ABI por se encontrar em litígiocom a direção da Casa, ao discordar dosrumos impostos pela antiga administra-ção. Até o final de abril, será adquirida umatelevisão de plasma de 61 polegadas paraque os sócios possam assistir aos jogos daCopa num ambiente alegre e descontraí-do, como sempre ocorreu no passado.

A Diretoria terminou o planejamentopara a implantação de cursos de inclusãodigital, além de ter autorizado a compra decomputadores para a sala de imprensa, afim de que os jornalistas que necessitemtransmitir seus textos para a Redação nãosejam obrigados a se deslocar até a sede dosveículos em que trabalham. O novo onzedeverá ser inaugurado logo depois da Copacom a realização de um grande torneioaberto de sinuca. A competição contarácom a presença dos principais jogadoresde sinuca do Rio de Janeiro como elemen-to de atração do evento.

AMBULATÓRIO EPLANOS DE SAÚDE

Uma das grandes preocupações da atualgestão, a negociação de convênios complanos de saúde encontra-se bastanteadiantada. No momento, a ABI negociacom duas administradoras que oferecemplanos de atendimento médico e hospi-talar em todo o País. A implementação doserviço será realizada assim que for feitaampla consulta ao corpo social, atravésde questionário que está sendo elabora-do para estabelecer o perfil do atendimen-to que contemple as principais necessida-des dos associados.

O Presidente Tarcísio Holanda deter-minou ainda que fosse também agilizadaa contratação de novos médicos para oambulatório do sexto andar, onde os só-cios e seus familiares são atendidos gra-tuitamente. Nos últimos anos, por descasoda antiga administração, o corpo clíniconão foi renovado e várias especialidadesclínicas deixaram de ser oferecidas aocorpo social da ABI, o que contribuiu paraa decadência e a má qualidade dos servi-ços prestados. A Diretoria estuda tambéma realização de convênios com clínicasespecializadas em fisioterapia ou na pres-tação desses serviços no próprio ambula-tório da Casa. Uma das possibilidades queestá sendo examinada é a assinatura deum convênio com a Universidade Veigade Almeida, que possui um dos melhorescursos de Fisioterapia do Rio de Janeiro.

Os andaimes devem ser retirados em julho ouagosto, depois da substituição de todas as

placas de mármore que ameaçam cair.

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Aproximadamente 300 mil pessoas participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade que aconteceuem São Paulo no dia 19 de março, apenas seis dias depois do grande comício da Central do Brasil, no Rio de

Janeiro, no qual o Presidente João Goulart, em discurso inflamado, defendeu as reformas de base de seu governo.

No dia 2 de abril, depois da deposição deJango, populares estendem a mão para

cumprimentar o General Olímpio MourãoFilho, comandante da 4ª Região Militar.

Cenas da Marcha da Vitória, que é como ficou conhecida uma nova Marcha da Família com Deuspela Liberdade que aconteceria no dia 2 de abril no Rio de Janeiro e em outras cidades. Mas, devido

ao golpe ocorrido um dia antes, ela foi realizada para apoiar os golpistas. Abaixo, um grupo desenhoras que representam a elite do Rio Grande do Sul seguram com orgulho a Bandeira de Piratini.

FOTOS ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

No dia 1º de abril, tanques e veículos do Exército tomam a Ruadas Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O locutor e Deputado Estadual

Raul Brunini (de guarda-chuva) caminha ao lado dos militares.

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7JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

Existem, por definição, doistipos distintos de datas históri-cas. Numa primeira categoria, sereúnem celebrações festivas,comemorações de fatos que mar-caram a evolução da sociedade,ou mesmo da humanidade. Neste2014, a imprensa em geral e his-toriadores, em particular, recor-dam a passagem marcante dos 50anos do golpe militar de 1964. Noentanto, neste tipo de lembran-ça, não há o que comemorar. Lon-ge de qualquer saudosismo, o mo-tivo do resgate de antigas memórias é evitar que algo semelhantese repita, volte a nos assombrar. Cinco décadas depois, se faz ur-gente tentar esclarecer parte dos bastidores daquele episódio que,apesar de ocorrido em um 1º de abril, não se revelou um simpá-tico trote, tampouco infundada mentira. De verdade, lançou oBrasil em duas décadas de sombria ditadura.

À sombra de 1964Para melhor entender o contexto do golpe militar, e seus efeitos na sociedade, o Jornal da ABI

entrevistou especialistas e autores de dez livros que tratam do tema. A maioria deles chega ao mercadoagora, em função da passagem dos 50 anos do dia que mudou para sempre a História do Brasil.

POR PAULO CHICO

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE

Por isso, o Jornal da ABI foi atrásdos autores de dez livros, em suamaioria lançamentos, que tra-tam do tema. Obras que recons-tituem o cenário daqueles diaspré-golpe, buscam traduzir o quede fato ocorreu e apontam os des-dobramentos do regime de exce-ção, que aterrorizou milhões debrasileiros. Torturou milhares eliquidou com a vida de centenasdeles, em repartições militares e‘aparelhos’ do Estado, como aterrível Casa da Morte, localiza-

da em Petrópolis, região serrana do Rio. Depoimentos de agen-tes do regime à Comissão Nacional da Verdade, como o do coro-nel reformado do Exército, Paulo Malhães, revelaram em deta-lhes o horror daqueles tempos. Expuseram atrocidades quaseinacreditáveis. Será que, a esta altura, alguém ainda duvidavaque elas tivessem, de fato, ocorrido? Vá saber...

À sombra de 1964

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diversidade dos livros aqui apre-sentados revela o crescente in-teresse de escritores e leitorespelo período. Isso é bom. As te-ses divergentes e as diferentesinterpretações históricas mos-tram como o golpe ainda é ter-

reno fértil para debates e pesquisas. Isso émelhor ainda. Posto que o golpe não é umaquestão resolvida, não é possível, nem de-sejável, esquecê-lo. Mas é preciso exorcizá-lo – até para evitar os recorrentes soluçossaudosistas dos conservadores que tentaramreeditar a Marcha da Família com Deus pelaPropriedade. Ou buscam exaltar supostosfeitos militares. Felizmente, tais iniciativascontaram com pouca adesão. Praticamen-te, não tiveram quórum nas ruas.

Instabilidade políticaGolpes não acontecem do dia para a

noite . O clima de instabilidade política noBrasil começara no início da década de1960. Após a renúncia do Presidente JânioQuadros (PTN), em 1961, seu vice JoãoGoulart (PTB), conhecido como Jango, en-contrava-se em viagem diplomática à Chi-na. Já naquela ocasião, quase fora impedi-do de assumir o cargo, em ação orquestra-da pelos militares, que temiam suas liga-ções com ‘comunistas’. À frente da chama-da Campanha da Legalidade, Leonel Brizo-la, cunhado de Jango e Governador do RioGrande do Sul, conseguiu garantir sua pos-se, efetivada num modelo conciliatório: aadoção do parlamentarismo. O Presiden-te assumiria o posto, preservando a ordemconstitucional, mas sem os plenos pode-res típicos do Presidencialismo, e tendoTancredo Neves, do PSD mineiro, comoprimeiro-ministro.

Em 1962 o governo divulgou o PlanoTrienal, elaborado pelo economista Cel-so Furtado, para combater a inflação epromover o desenvolvimento econômi-co. A proposta falhou, após enfrentarforte oposição. O Brasil se viu obrigadoa negociar empréstimos com o FundoMonetário Internacional, o que exigiucortes significativos nos investimentos.Junto à população, crescia o desconten-tamento. O País mergulhava num cená-rio de crescimento zero, inflação anualna casa de 90% e aumento estratosféricodo déficit nas contas públicas. Nesse pe-ríodo foi convocado um plebiscito sobrea manutenção do parlamentarismo ou oretorno ao presidencialismo, para janei-ro de 1963. O parlamentarismo foi am-plamente rejeitado, sobretudo em funçãoda campanha publicitária promovidapelo governo.

O lance seguinte de Jango foi aindamais radical. Quase uma provocação aosconservadores de plantão: a proposta daschamadas Reformas de Base, que preten-diam reduzir as desigualdades sociais. En-tre estas, estavam as reformas bancária(com ampliação do crédito aos produto-res), eleitoral (com liberação do voto aosanalfabetos e militares de baixas paten-tes), educacional (com a valorização dosprofessores) e agrária (com a democrati-zação do uso das terras). Tais medidaseram apenas ‘reformistas’, jamais ‘revolu-

cionárias’, apontam hoje os estudiosos doperíodo. Mas, na época, eram vistas comoconcreta ‘ameaça comunista’. De volta aopresidencialismo, tais medidas passarama ser defendidas por um Jango quase fes-tivo, em clima de campanha. Foram inú-meros e concorridos comícios – o maisemblemático deles ocorreu no dia 13 demarço, em plena Central do Brasil, noRio de Janeiro. A reação da elite não de-morou: o clero conservador, a imprensa,o empresariado e a direita em geral orga-nizaram, em São Paulo, no dia 19 demarço, a Marcha da Família, reunindo500 mil pessoas.

O repúdio às propostas deu o respaldode que os militares precisavam. Na noitede 31 de março, o general Olímpio Mou-rão Filho, com apoio do Governador deMinas Gerais, José Magalhães Pinto, des-ceu com suas tropas de Juiz de Fora/MGpara a cidade do Rio de Janeiro, depor oPresidente. Chefes militares, além dosGovernadores da Guanabara, Carlos La-cerda, e de São Paulo, Adhemar de Barros,aderem ao movimento. Informado em 1ºde abril, Jango desloca-se para Brasília. Oclima esquenta e, neste mesmo dia, a sededa Une, no Rio, é incendiada. Acuado,Jango parte da Capital Federal para Por-to Alegre, onde aliados pretendiam orga-nizar a resistência. João reluta. Não querpromover um confronto, tampouco umbanho de sangue.

De fato, já era tarde demais. No dia 2 deabril, o Congresso Nacional declarariavago o cargo máximo do País, nomeandoo Presidente da Câmara dos DeputadosRanieri Mazilli (PSD) para a função, soba tutela de uma junta militar. Com osboatos de que sua prisão, na sua fazenda emSão Borja/RS, ocorreria em breve, Goulartdecide exilar-se no Uruguai. Baixado em 9de abril de 1964, o Ato Institucional nº 1

cassaria seus direitos políticos por dezanos. Seria apenas o primeiro, de uma sé-rie que levaria a nação à escuridão.

50 anos depoisNeste 2014, diversos veículos, tais

como jornais impressos, revistas, sites ecanais de televisão, dedicaram programasà reconstituição e análise da derrubadado Presidente da República. Arquivos fo-ram remexidos, entrevistas inéditas pau-tadas. Filmes resgatados. Dossiê Jango, dePaulo Henrique Fontenelle, é um dosmais ousados, pois levanta suspeitas so-bre as causas das mortes de João Goulart,Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.Teriam sido eles assassinados pelos mili-tares? Sobre essa pergunta ainda pesammuitas dúvidas, inquietações. Oficial-mente, nenhuma resposta. Dentre os ca-nais a cabo, o Curta! exibiu rico acervo,

sobretudo de documentários. Nos inter-valos de tais atrações, inseriu pequenos de-poimentos de personalidades sobre o gol-pe e suas conseqüências. Um deles foi o dohistoriador Sergio Lamarão, que buscouestabelecer relação direta entre o regimedos fardados e a posterior militarização dasrelações na sociedade brasileira. Ele deta-lhou seu ponto de vista, especialmentepara o Jornal da ABI.

“A violência do regime militar passoupara o cotidiano. Não sei se estou sendoleviano ao fazer essa ponte. Mas, eu façoa relação direta entre a ditadura e essa na-turalização do uso da arma, do medo queo cidadão tem da polícia, da nossa sensa-ção desconfortável com o Estado, de des-confiança em relação aos governos. Pos-so até partir para o ‘se’, meio supondoque, ‘se’ não tivesse havido a ditadura, essanaturalização da violência no Brasil te-ria se dado, pelo menos, em menor esca-la. Talvez, não tivéssemos assistido ao cha-mado ‘milagre econômico’, mas construi-ríamos uma sociedade menos desigual,com melhor Índice de DesenvolvimentoHumano. Antes do golpe, o nosso cotidi-ano era diferente. Os contatos sociaisocorriam em outro nível. A ostensiva pre-sença militar, a hierarquização das rela-ções pessoais, o mandonismo, o famoso‘sabe com quem você está falando?’. Tudoisso, todas essas práticas, que original-mente não eram nossas, ganharam refor-ço com a entrada em cena desses novospersonagens, no caso, os militares”, pon-tua Sergio.

Embora pautada em simples ‘percep-ção’, como fez questão de frisar em diver-sos momentos de sua entrevista, a tese de-fendida por Lamarão é corroborada por al-guns dos autores destacados nesta repor-tagem. “Há colegas que prolongam a di-tadura até a promulgação da Constitui-ção Cidadã, em 1988. Outros consideramque ela só começou com o AI-5, em 1968,e não em 1964. Há várias leituras, masnão vou entrar neste mérito... O que maisimporta é a herança deixada, que é bem vi-sível e incontestável. A redemocratiza-ção teve um lado perverso... Quem esta-va no poder não saiu do poder. Quemlucrou com o golpe de 1964, como o pes-soal do grande capital, ficou lá. Esse pes-soal está todo aí”, acredita ele, que é dou-tor em História pela Uff, com pós-douto-rado pela University of California, nosEstados Unidos, e pesquisador do Museude Astronomia e Ciências Afins.

Embora os militares não demonstremmais qualquer interesse em tomar o po-der, e a democracia brasileira pareça estarsubstancialmente consolidada, seguemem voga práticas típicas dos regimes deexceção. “Sem dúvida, a ditadura teve umpapel muito importante no reforço dolado repressor da polícia. Não é mais con-tra o estudante ou militante de esquerda;hoje a repressão é voltada contra o pobre,os negros. A tortura continua nas delega-cias, com as execuções sumárias, vide ocaso Amarildo. Há mortes de alunos atéem escolas militares, durante ações deformação e treinamento. Vivemos uma‘coisificação’ do pobre, do bandido... Ve-

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Bombeiros tentam conter incêndio no prédio da Une, na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro.

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Tanques do Exército estavam em prontidãopara qualquer reação contra o golpe.

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mos gente sendo amarrada em poste... Navisão das pessoas que fazem isso, aqueleadolescente é inimigo, não é sequer hu-mano... Isso acaba justificando tudo, econta com a adesão de grande parcela dapopulação. Um dos policiais militaresque participaram do socorro a ClaudiaSilva Ferreira, que foi morta e arrastadapelas ruas do Rio após ficar pendurada noporta-malas da viatura, tem 13 mortes nascostas! Pelo que consta, todas elas em com-bate. Mas, a verdade, você nunca vai saber!O fato é que esse cara é um matador! Issome deixa muito chocado”, revela.

Há quem veja a fonte do autoritaris-mo brasileiro nos colonizadores portu-gueses. Sergio, no entanto, acha que talpostura tem outras raízes. “Ela é muitomais da escravidão, de um sistema deprodução instalado aqui, que durou 300anos, e se repetiu na América espanhola,e nos Estados Unidos. Por onde passou,deixou marcas profundas. A colonizaçãoé violenta, é conquista, invasão, explora-ção, estabelece relações cruéis... É assimpor definição”. Para ele, é preciso que obrasileiro aprenda a chamar as coisas pe-los seus verdadeiros nomes. Diante detantos autores debruçados sobre o perío-do militar, Lamarão faz uma espécie dealerta. Há teses que precisam ser contes-tadas. Verdades que devem ser reafirma-das. Além de equívocos históricos queprecisam ser corrigidos.

“Por exemplo, a Lei de Anistia absolveuos dois lados. Só que um lado era o dequem torturava, e outro o de quem sofreunas mãos de torturadores. Pode até terocorrido uma ou outra ação mais violentapor parte da luta armada. Mas, quemmatou e torturou, em todo este período,foram basicamente os militares. No Chi-le, há vários espaços públicos de memó-ria, registrando episódios dramáticos,como o massacre de estudantes. É preci-so ter esses espaços aqui também! No Bra-sil, as coisas se diluem muito. Tem genteque não sabe que houve ditadura nestePaís! Sinto, às vezes, uma tendência dealiviar o governo do Geisel, visto como oinício da abertura. Mas, ele foi muitoviolento, tinha forte componente auto-ritário. Houve tortura, o Partido Comu-nista foi dizimado. Prenderam, matarame torturaram o Vladimir Herzog. Fizeramo mesmo com Manuel Fiel. Geisel fechouo Congresso... Então, que história é essa?Que necessidade é essa de minimizar ogolpe, a ditadura, a violência dos milita-res?”, questiona Sergio.

Memórias contraditóriasUm dos autores que buscam lançar

novas luzes sobre a passagem dos militarespelo poder é Daniel Aarão Reis, autor deDitadura e Democracia no Brasil – Do Gol-pe de 1964 à Constituição de 1988, editadopela Zahar, e que acaba de chegar às livra-rias. “Desde os anos 1980, para a elabora-ção da conciliação nacional e de um pac-to democrático, tendeu a predominar aversão de que a sociedade brasileira ape-nas suportara a ditadura, como alguémque tolera condições ruins que se torna-ram de algum modo inevitáveis, mas que,

cedo ou tarde, serão superadas, como es-tava, de fato, acontecendo. O interessan-te é que as Forças Armadas, como se fos-sem ‘um Estado dentro do Estado’, conti-nuaram sustentando, e sustentam atéhoje, a versão divulgada pelo Projeto Or-vil, o que se pode verificar em sites, colé-gios, escolas e centros de formação mili-tares e em clubes que reúnem as oficiali-dades de Exército, Marinha e Aeronáuti-ca. Em outras palavras, para as ForçasArmadas, a ditadura continua sendo apre-sentada – e cultivada – como uma ‘revo-lução democrática’ que salvou o País docomunismo e do caos”, escreveu em seulivro o professor de História da UFF e pes-quisador do CNPq, que segue em seu ra-ciocínio – inicialmente polêmico, masque encontra adeptos no meio acadêmi-co, como apontam alguns dos autores doslivros listados nesta edição.

“Nesse quadro complexo de memóri-as diferenciadas e contraditórias, não sepode ignorar, no entanto, a predominân-cia, largamente hegemônica, das referên-cias propostas e fixadas em 1985 pelo li-vro Brasil: Nunca Mais. Elas se tornaramuma espécie de lugar-comum. Habitamdiscursos políticos, livros didáticos, fil-mes e materiais diversos de análise e di-vulgação. Podem ser sintetizadas numatese: a sociedade brasileira viveu a dita-

dura como um pesadelo que é precisoexorcizar. A história da ditadura que ain-da permanece hegemônica no Brasil, en-carnada em grande parte pelo ArquivoNacional e em certa medida pela Comis-são Nacional da Verdade, se recusa a con-siderar a ditadura nas suas complexasrelações com a sociedade brasileira. Ima-gina que ela foi imposta de cima para bai-xo e enfatiza, quase que exclusivamente,a resistência”, afirma Daniel, que partici-pou da luta armada contra a ditaduramilitar e, em 1969, foi um dos idealizado-res da ação de captura do embaixador nor-te-americano Charles Burke Elbrick, uti-lizado como moeda de troca para a liber-tação de 15 presos políticos.

Segundo o autor, por mais contraditó-rio que possa parecer, o movimento de1964 foi feito ‘em nome’ da defesa dademocracia e contra a corrupção. “Mui-tas lideranças políticas que apoiaram ogolpe acharam que os militares iam fazeruma intervenção rápida. Cassariam os co-munistas, os trabalhistas e as esquerdasmais radicais e abririam caminho para aseleições presidenciais de 1965”, prega Da-niel, que também relativiza o papel de-sempenhado pelos norte-americanos noepisódio. “Os Estados Unidos tiveram par-ticipação, é certo. Se prepararam, agiramnos bastidores, deslocaram navios, masnão chegaram a intervir militarmente, atéporque não houve maior resistência, esim apoio de grande parte dos brasileirose instituições nacionais. Além disso, cabelembrar que muitas das ações militaresdos americanos, naquela época, foram de-sastrosas, como a tentativa de invasão aCuba”, destaca Daniel Aarão.

O papel desempenhado pela mídia na-cional no período pré-golpe foi decisivo,como apontam diversos especialistas.“Sem a imprensa, não haveria clima parao golpe que ocorreu em 1964. A mídiaassustou a classe média, desqualificou Jan-go, transformou as reformas de base, odi-ada pelos conservadores, em sintoma decaos e radicalismo. Produziu a atmosferanecessária à deposição do Presidente. Fez

crer que só um golpe salvaria a democra-cia”, salientou Juremir Machado, autor de1964 - Golpe Midiático-Civil-Militar (Edito-ra Sulina), em entrevista ao Jornal da ABI.Para o autor, pesquisador de História e Jor-nalismo e coordenador do Programa dePós-Graduação em Comunicação da PUC-RS, o conservadorismo da época se fazpresente na imprensa até os dias atuais.

“Na verdade, ele predomina. Colunis-tas como Rodrigo Constantino, MervalPereira, Lobão, Demétrio Magnoli e Rei-naldo Azevedo representam o neolacer-dismo. A revista Veja faz o papel da Tribu-na da Imprensa. Estadão, Folha de S. Pauloe O Globo continuam os mesmos. Pode-sedizer que, em 1964, estão as raízes dogolpismo da mídia brasileira. Por isso,mostro em meu livro como a imprensaapoiou, de forma sistemática, o golpe de1964. Mostro também que, se alguns jor-nalistas apoiaram o golpe e resistiram àditadura, a maioria dos jornais apoiou ogolpe e a ditadura. Revelo o quanto a im-prensa, depois de 1968, reescreveu a pró-pria história dando-se um belo e falsopapel de resistente”, acusa Juremir.

Para Sergio Lamarão, a esquerda brasi-leira, desde sempre dividida, tinha nasReformas de Base propostas por Jango seucampo de confluência. “Era uma políticareformista, mas não revolucionária, ébom esclarecer. Havia, por exemplo, aproposta de mexer com as grandes fortu-nas... Veja bem, isso até hoje não ocorreuaqui, e vários países já adotaram políticasneste sentido. Inclusive na Europa. O atorGérard Depardieu, que teve sua fortunataxada em seu país, largou a França e foimorar na Rússia! (risos). Se houvesse a pro-posta de implantação das Reformas deBase, hoje, no Brasil, haveria a mesmachiadeira, pode acreditar! O fato é que, aolongo da nossa História, nunca tivemosum momento tão rico, tão favorável aopovo, quanto no pré-golpe”, defende ele,que faz críticas ao Brasil de hoje.

“Vivemos numa suposta democracia,em que os grandes meios de comunicaçãocontinuam concentrados nas mãos dosmesmos poucos grupos. O governo petis-ta fez uma coisa muito ruim para este País.Criou a ilusão de uma nova classe média,cooptando os pobres para o sistema doconsumo... Será que isso tem volta? É im-portante as pessoas entenderem que, maisimportante do que comprar uma televisãoem 24 parcelas ou um carro em 60 meses,é a conquista de direitos. Eu não tenhocarro, por opção. Mas, quando escuto umcobrador de ônibus falando ao celular quedeixou o carro dele não sei onde, fico ima-ginando quanto sacrifício não teve quefazer para adquirir aquele automóvel. Sóque ele não se dá conta que continua a nãoter acesso à saúde, à educação de qualida-de, ao transporte público decente, e quesegue sendo explorado no subemprego.Quando é que essa ficha vai cair? De quenão é por aí? Pode acreditar: a gente viveuma ilusão”, sentenciou, certo de que, aexemplo do período militar, a democraciabrasileira nos reserva novas e antigas ar-madilhas. Passados 50 anos do golpe, ain-da temos do que nos libertar.

Militares ocuparam as ruas próximas ao prédio de A Noite, no Rio de Janeiro.

João Goulartno traço de

Nássara.

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10 JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

Não há dúvidas de que o golpe de 1964foi um fato marcante na recente Histó-ria do Brasil. Mas, por quais motivos se-tores significativos da sociedade aprova-ram a deposição do Presidente João Gou-lart? Como o golpe se transformou emuma ditadura militar que duraria 21 anos?Essas são algumas das perguntas que oautor Carlos Fico tenta responder em seulivro, que foi lançado, no Rio de Janeiro,no dia 18 de março, na tradicional Livra-ria da Travessa. “Ele é pensado para o gran-de público, não tem natureza acadêmica.É um formato muito adequado para a ma-nifestação mais ‘livre’, por assim dizer, denossos pontos de vista, sem as amarraspor vezes asfixiantes do formato univer-sitário. É realmente notável como a his-toriografia brasileira evoluiu nos últimos30 anos, especialmente no que diz respei-to aos estudos sobre a História do perío-do republicano e, singularmente, sobre oregime militar. Isso certamente expressao crescente interesse da sociedade sobreaquele período. Lembro-me de que, em1994, quando do aniversário de 30 anosdo golpe, poucos se interessaram peloseventos que promovemos na universida-de. Dez anos depois, em 2004 – e marcodos 40 anos –, a imprensa acompanhouatentamente nossos seminários acadêmi-cos. Agora, nos 50 anos, o interesse é mai-or, inclusive em função dos trabalhos daComissão Nacional da Verdade.”

Em entrevista ao Jornal da ABI, CarlosFico falou justamente da reação do meioacadêmico à ação dos militares. “Se nosdiversos segmentos da sociedade ocorre-ram manifestações de apoio, nas univer-sidades houve, majoritariamente, uma re-ação negativa ao golpe. Alguns poucos es-tudantes conservadores apoiaram os mi-litares, mas em número bastante reduzi-do. Em geral, as universidades, especial-mente as públicas, eram vistas como focosde subversão, centros de comunistas, coma presença de autores vinculados ao mar-xismo. As universidades foram vítimaspreferenciais da repressão. Tivemos mui-tos professores aposentados compulsori-amente. Havia um clima de perseguição,e os órgãos de informações se instalaramnas universidades públicas rapidamente”.

Professor titular de História do Brasilda UFRJ e pesquisador do CNPq, o autorfala ainda sobre como o tema é tratadonas escolas. “Felizmente, ele já não é umtabu. A pesquisa no ensino superior avan-çou muito. Mas os livros didáticos aindaprecisam de algum tempo. Temos de esti-mular esses autores, que quase nunca sãopesquisadores acadêmicos, a fazerem essematerial. Esse também é um caminho in-teressante. Os estudantes se interessampelo tema, que teve episódios dramáticos.Essa estratégia seria interessante paraatrair o interesse dos jovens não apenaspara a Ditadura Militar, mas também pelaHistória em geral. Já começaram a surgirlivros didáticos sobre essa época, que in-corporam as pesquisas mais recentes.

O golpe de Estado de 1964 é o evento-chave da História do Brasil recente. Dificilmentese compreenderá o país de hoje sem que seperceba o verdadeiro alcance daquelemomento decisivo. Ele inaugurou um regimemilitar que duraria 21 anos, mas, em 31 demarço de 1964, quando o Presidente JoãoGoulart foi deposto, não se sabia disso: ogolpe não pressupunha, necessariamente, aditadura que se seguiu. Como o golpe setransformou em uma ditadura? Muitas pessoasque o apoiaram arrependeram-se com o passardo tempo. Aliás, não foram poucos os queapoiaram o golpe: a imprensa, a Igreja Católica,amplos setores da classe média urbana.Instituições que, anos depois, se tornariamfortes opositoras do regime – como a Ordemdos Advogados do Brasil (OAB), a AssociaçãoBrasileira de Imprensa (ABI) ou a ConferênciaNacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –,tiveram atitudes no mínimo dúbias naquelemomento. Portanto, é preciso ter em menteque o golpe não foi uma iniciativa de militaresdesarvorados que decidiram, do nada, investircontra o regime constitucional e o Presidentelegítimo do Brasil. Houve apoio da sociedade.

Creio que essas consideraçõespreliminares são importantes. Muitas vezes,quando estudamos a ditadura militar – comoeu tenho feito há tantos anos –, tendemos aver o golpe de 1964 apenas como seuevento inaugural, mas ele foi mais do queisso. Representou a expressão maiscontemporânea do persistente autoritarismobrasileiro, que já se manifestou em tantasoutras ocasiões – como no outro regimeautoritário republicano, o Estado Novo (1937-1945). Portanto, talvez a pergunta essencial ase fazer seja: “por que tantos o apoiaram?”,em vez de apenas nos perguntarmos, “comofoi que se iniciou a ditadura militar?”.

O Golpe de 1964: Momentos Decisivos

TRECHO

“Não há lado bom em uma ditadura militar”

CARLOS FICO | FGV EDITORA | 148 PÁGINAS

Acredito que o ensino dessa temática naeducação básica vai melhorar muito nospróximos anos. Os professores queremtrabalhar esse tema, mas ainda falta omaterial adequado”, afirma Carlos Fico,que conclui.

“A principal lição que fica do golpe é ade que não há lado bom em uma ditaduramilitar, em uma solução autoritária. Muitagente diz: ‘na época da ditadura havia se-gurança...’ , ‘Na época da ditadura foramfeitas grandes obras de infra-estrutura, aeconomia melhorou...’. Mas, de verdade,não houve lado bom. Quando se trata dadefesa da liberdade, dos direitos individu-ais e da possibilidade de haver violaçõesaos direitos humanos, não podemos tergi-versar. Nada pode ser colocado em com-pensação à perda das liberdades individu-ais. Não existe nada de bom quando seaceita uma solução autoritária, que sem-pre induz à perda de direitos humanos”,reforça Carlos Fico, para quem o livro OGolpe de 1964: Momentos Decisivos ajuda oleitor a entender que “o golpe não foi umaação isolada, e que seu desdobrar em umaditadura tem relação direta com a tradiçãodo autoritarismo na política brasileira”.

Os fenômenos históricos são complexos.Não há fatos simples. O bom entendimentohistórico não é confortável, apaziguador: elenão equaciona o passado, nem nos dárespostas definitivas, mas nos faz pensar. Nocaso do apoio de parte da sociedade aogolpe de 1964, por exemplo, hácomplicadores. Se, por um lado, a imprensa,a Igreja Católica e parte da classe média –além dos empresários – apoiaram aderrubada de Goulart, existem, por outrolado, pesquisas confiáveis que mostram quea sociedade apoiava o Presidente. Segundoo Ibope (que foi criado em 1942), àsvésperas do golpe, Goulart tinha razoávelapoio popular. O instituto doou acervo daépoca à Unicamp e o historiador Luiz AntonioDias tem trabalhado o material. Segundo ele,as chances de vitória de Goulart seriamgrandes no caso de o Presidente disputar areeleição em 1965. Contava com mais dametade das intenções de voto na maioriadas capitais pesquisadas, perdendo paraJuscelino Kubitschek apenas em BeloHorizonte e Fortaleza. 55% dos paulistanosentrevistados consideravam as medidasanunciadas no Comício da Central por Jangomuito importantes para o povo. Em junho de1963, Goulart era aprovado por 66% dapopulação de São Paulo, mais do que oíndice obtido pelo governador Adhemar deBarros (59%) e pelo prefeito Prestes Maia(38%). Pouco antes do golpe, a proposta dereforma agrária obteve apoio superior a 70%em algumas capitais e 72% da populaçãoapoiavam o governo de João Goulart. Issocomprova que a campanha dedesestabilização de que foi vítima oPresidente – que gerou propaganda massiva– não foi eficaz e, muito menos, suficientepara a derrubada de Jango.

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964

Os estudiososdo golpe de 1964 edo período histórico que se seguiu têminsistido em um ponto: não deveríamos usaras expressões “golpe militar” e “ditaduramilitar”, pois seriam mais corretas asdesignações golpe e ditadura “civil-militar”. Apreocupação é louvável porque tem em vistajustamente o fato de que houve apoio civilao golpe e ao regime. Eu sustentaria, noentanto, um ponto de vista um poucodiferente: não é o apoio político quedetermina a natureza dos eventos daHistória, mas a efetiva participação dosagentes históricos em sua configuração.Nesse sentido, é correto designarmos ogolpe de Estado de 1964 como civil-militar:além do apoio de boa parte da sociedade,ele foi efetivamente dado também por civis.Governadores, parlamentares, lideranças civisbrasileiras – e até o governo dos EstadosUnidos da América – foram conspiradores edeflagradores efetivos, tendo papel ativocomo estrategistas. Entretanto, o regimesubsequente foi eminentemente militar emuitos civis proeminentes que deram ogolpe foram logo afastados pelos militaresjustamente porque punham em risco o seumando. É verdade que houve o apoio departe da sociedade também à ditaduraposterior ao golpe – como ocorreu durante operíodo de grande crescimento da economiaconhecido como “milagre brasileiro” –, mas,como disse antes, não me parece queapenas o apoio político defina a natureza deum acontecimento, sendo possivelmentemais acertado considerar a atuação dossujeitos históricos em sua efetivação. Porisso, admito como correta a expressão “golpecivil-militar”, mas o que veio depois foi umaditadura indiscutivelmente militar.

Descontração no Rio de Janeiro: Enquanto os tanques tomam conta das ruas, uma criançadiverte o público ao imitar um soldado apontando sua metralhadora de brinquedo.

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Ditadura: O que Resta da Transição. Otítulo deste livro, por si só, parece represen-tar uma provocação. Afinal, qual a leiturado final da ditadura, do período de transi-ção? E qual foi a real participação popularneste processo? “É importante salientarque a transição da ditadura burgo-militarpara a democracia formal, ou Estado de di-reito, ocorreu numa articulação pelo alto.Um arranjo político-institucional gestadopor frações de classe da burguesia em con-sonância com a base parlamentar do regi-me... Havia a burocracia político-militar ea pressão de setores moderados da oposiçãoe da frente democrática (MDB/PMDB)participando diretamente do processo.Apesar da pressão da esquerda organizada,do movimento operário e sindical, das lu-tas populares e estudantis, a transição bra-sileira é um arranjo de longa duração queexcluiu a representação popular. Podemosdizer que ficou na sociabilidade brasileira,como herança da ditadura, a destruição damemória social e política, o profundo dé-ficit democrático, a violência do aparelhode Estado e a intervenção do Estado naslutas operárias e populares para tentar cri-minalizá-los”, afirma Milton Pinheiro, or-ganizador da obra, que traz artigos de reno-mados pensadores, como João Quartim deMoraes, Anita Prestes, Lincoln Secco,Décio Saes e Marco Aurélio Santana.

Em entrevista ao Jornal da ABI, o soci-ólogo e cientista político, professor daUneb, enumera os principais equívocosque permanecem em voga ainda hoje,quando da análise do golpe e do períodoque se seguiu. “Eles articulam-se em umconjunto variado. No entanto, eu diriaque é a tentativa de justificar o golpeburgo-militar, capitaneado pelos milita-res articulados pela ideologia da segurançanacional e as frações bancária e industrialda burguesia interna. E busca-se mostrarisso como uma reação ao provável golpedos comunistas, leia-se PCB, ou de JoãoGoulart. Posso afirmar que quem estápreparado para realizar um golpe tambémestá preparado para reagir a um golpe. Noentanto, nem os comunistas, nem o Pre-sidente João Goulart, tinham essa pers-pectiva. Hoje, para ficar mais explícitomeu argumento, a historiografia compro-va, através de documentos, as articulaçõesentre o governo estadunidense, os mili-tares reacionários e as frações bancária eindustrial, como os movimentadores dogolpe de 1964”.

Mas, como seria hoje o Brasil, caso osmilitares não tivessem cruzado nosso ca-minho naquela década? “Esta é uma per-gunta muito complexa. Mas, poderíamosafirmar que com certeza nosso déficitdemocrático seria menor, que a participa-ção político-social talvez fosse muitomais representativa, que a memória cole-tiva sobre o Brasil – suas lutas, conquis-

“João Goulart não trabalhavacom a perspectiva de um golpe”

TRECHO

Ditadura: o queResta da Transição

As características gerais da lutaideológica, tais como as descreveu Marx,correspondiam a uma época em que ocapital lutava para conquistar e consolidarsua hegemonia, varrendo da cena históricatodas as velhas classes que entravavamseu pleno desenvolvimento. Um século

depois, em 1964, ocapital lutava paranão ser ele própriovarrido. Não é adecadência históricada burguesia queconstitui problemapara os marxistas,visto que ela resultado desenvolvimentoda contradiçãofundamental docapitalismo. O

problema está, antes, nos fenômenosque se opõem a essa tendência geral. Aespecificidade – e o interesse teórico –do golpe de Estado de 1964 e do regimeburguês-militar ao qual ele deu lugarreside nas formas novas que assumiu acontra-revolução burguesa. Num paíscapitalista dependente como o Brasil, aluta de classes se travava (veremos atéque ponto ela se trava ainda) em tornode duas contradições: aquela entre acidade e o campo e aquela entre a naçãoe o imperialismo. As necessidades daprática impõem frequentementesimplificações, que jamais sãopoliticamente inocentes. A esquerdabrasileira habituou-se a tratá-las como sefossem apenas uma única e mesmacontradição, a saber, a que opõe oimperialismo e seus aliados internos(oligarquia agrária e todos os setores daburguesia ligados ao grande capitalmonopolista internacional) à grandemaioria da população. Essa concepção,com todas as suas variantes de direita ede esquerda, mostrou-se tenaz,influenciando muitos daqueles quepretendiam criticá-la.• • • • • A natureza de classe do Estadobrasileiro, de João Quartim de Moraes

A campanha Diretas Já não trouxe, emnenhum momento, um componenterevolucionário. Mas poderia terdesencadeado um processo democráticode forte conteúdo popular queexpurgasse as tradicionais oligarquias eretirasse dos militares as prerrogativas deingerência nos assuntos políticos. Paraque isso ocorresse, seria necessárioderrotar a ditadura militar nas ruas,aproveitando o potencial antimonopolista,anti-imperialista e antilatifundiário presentenas lutas e nas propostas da classetrabalhadora e de setores da classe média.Porém, as forças populares não foramcapazes de tomar nas mãos a conduçãodo processo e, ao aceitarem a canalizaçãodas lutas para o Congresso Nacional,acataram as regras do jogo estabelecidaspela direção burguesa.• • • • • Diretas Já: mobilização de massas comdireção burguesa, de Vanderlei Elias Nery

MILTON PINHEIRO (ORGANIZADOR)

BOITEMPO EDITORIAL | 376 PÁGINAS

tas sociais e políticas – seria mais profun-da. Que o espaço para uma cultura progres-sista seria maior e que a violência do Es-tado talvez tivesse menor repercussão navida social, com menos criminalizaçãodas lutas, dos trabalhadores e das mino-rias. Teríamos, talvez, um País mais pre-parado para operar transformações maisconsistentes no sistema político, com oquestionamento da iniqüidade capitalis-ta e a lógica do mercado”, aposta ele.

Para Milton, seu livro apresenta aos lei-tores um arcabouço analítico com base nodebate político-histórico, que introduzvariáveis inovadoras nessas interpreta-ções. Quem deu o golpe? Qual a nature-za de classe do Estado brasileiro? A pre-sença de intelectuais na gestão articula-da pela burguesia e militares da políticaeconômica da ditadura burgo-militar...

Como se deu a presença dos trabalhado-res na luta política e contra o arrocho sa-larial? Quais eram as posturas das fraçõesde classe da burguesia dominante no de-senvolvimento do capitalismo? Como secomportou a vanguarda comunista noperíodo, e como atuaram os partidos deesquerda? O que caracteriza a longa tran-sição? Como se deu a política da aliançademocrática na transição para a democra-cia? Qual o papel de lideranças políticasda esquerda, como Luiz Carlos Prestes? Oque representou a campanha pelas Dire-tas já? “O livro é um conjunto elaboradode análises a partir da pesquisa históricae política que nos traz seminais e inova-doras leituras sobre o Brasil. Na minhamodesta interpretação, trata-se de exce-lente oportunidade para compreender oBrasil dos últimos 50 anos”.

Descontração no Palácio das Laranjeiras um ano antes do golpe: João Goulart entre osGenerais Castello Branco, Chefe do Eme, e Peri Bevilacqua, comandante do 3º Exército, à

esquerda; e os Generais Osvino Alves, do 1º Exército; Amauri Kruel, do 2º Exército; Albino Silva,Chefe da Casa Militar da Presidência da República; e Dantas Ribeiro, do 1º Exército, à direita.

O porta-aviões USS Forrestal: Enviado à costa brasileira em março de 1964 para garantir o golpe.

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TRECHO

“A ditadura é parte constitutivado atual projeto de democracia”

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964

“Temos como principal herança da di-tadura uma política do medo e da impuni-dade. Sempre com a possibilidade da vio-lência, seja do Estado ou da violência ur-bana de modo geral, a sociedade brasilei-ra tende a aceitar soluções paliativas paraseus problemas e atos de injustiça constan-temente. Assim, os crimes de violações dedireitos humanos praticados pela ditadu-ra, ao não serem apurados e ao não impli-carem em punição, geraram na democra-cia o medo da força desmedida pelo Esta-do. Tal situação se repete, por exemplo, nasmanifestações populares de junho de 2013,quando uma polícia treinada para agrediro pobre e o opositor, criada no regimemilitar, usou de força excessiva para limi-tar ou bloquear a possibilidade de umaação política sem controle dos partidos oudos governos. Por outro lado, ainda hoje setortura e desaparece com corpos violados,como foi o caso do Amarildo, no Rio deJaneiro. O processo de violação de direi-tos segue o mesmo padrão institucional cri-ado na ditadura, indicando o quanto foimaléfico optarmos por uma transição paraa democracia sem a desmontagem do apa-relho repressivo e sem a punição dos agen-tes do Estado responsáveis por tais crimes”,acusa um Edson Teles sem meias-palavras,em entrevista do Jornal da ABI.

O livro O que Resta da Ditadura reú-ne textos de escritores e intelectuaiscomo Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg,Paulo Arantes, Ricardo Lísias e JeanneMarie Gagnebin, que buscam analisar oque permanece de mais perverso da dita-dura no País hoje. Assim, possui tambémum caráter de resistência à lógica de ne-

gação difundida por aqueles que buscamocultar o passado recente, seja ao abran-dar, amenizar ou simplesmente esquecereste período da História. “O discurso domedo assemelha-se muito ao risco para ademocracia de medidas concretas de jus-tiça sobre os crimes da ditadura. Cria-sea fantasmagoria de que o ‘inimigo’ en-contra-se na pessoa ao lado, na rua ondecaminho, no transporte que uso. A todomomento, nos assustamos ou assustamosa alguém quando passamos apressadospelas ruas. É neste contexto que se forta-lecem, por um lado, as polícias militarese suas ações cada vez mais violentas erepressivas, inclusive dentro das univer-sidades e, por outro, as ações de governovia estados de exceção. A estrutura é amesma e o que se pode fazer é melhoraro diagnóstico de nossa sociedade com oobjetivo de mostrar que sim, há violênciaurbana, mas que o alvo e o tamanho delanão corresponde com as medidas adota-das. Atualmente agimos como se quisés-semos matar um coelho com um tiro decanhão. Isso é altamente perigoso para ademocracia”, pontua.

Nova abordagemEdson é doutor em Filosofia Política

pela Universidade de São Paulo (USP) eprofessor da Universidade Federal de SãoPaulo (Unifesp). “A maior novidade dolivro O que Resta da Ditadura encontra-se em uma nova abordagem sobre estepassado violento, no qual partimos, eu eo Vladimir Safatle, da idéia de que há emnossa democracia uma forte herança au-toritária e que ela não se configura ape-

O que Restada Ditadura

“Quem controla o passado, controla ofuturo”. A frase de 1984, que serve deepígrafe a este livro, indica claramente otamanho do que está em jogo quando aquestão é elaborar o passado. Todosconhecemos a temática clássica dassociedades destinadas a repetir o que são

incapazes de elaborar;sociedades que jádefinem de antemãoseu futuro a partir domomento que fazem detudo para agir como senada soubessem arespeito do que seacumulou às suascostas. A História éimplacável naquantidade de exemplosde estruturas sociais que

se desagregam exatamente por lutarcompulsivamente para esquecer as raízesdos fracassos que atormentam opresente. No caso da realidade nacional,esse esquecimento mostra-separticularmente astuto em suas múltiplasestratégias. Ele pode ir desde o simplessilêncio até um peculiar dispositivo quemereceria o nome de “hiper-historicismo”.Maneira de remeter as raízes dosimpasses do presente a um passadolongínquo (a realidade escravocrata, oclientelismo português etc.), isto parasistematicamente não ver o que opassado recente produziu. Como sefôssemos vítimas de certo “astigmatismohistórico”.

O que propomos neste livro é, pois,falar do passado recente e da sua incrívelcapacidade de não passar. Mas para tanto,faz-se necessário mostrar, àqueles quepreferem não ver, a maneira insidiosa quea ditadura militar brasileira encontrou denão passar, de permanecer em nossaestrutura jurídica, em nossas práticaspolíticas, em nossa violência cotidiana, emnossos traumas sociais que se fazemsentir mesmo depois de reconciliaçõesextorquidas. Daí a pergunta: “O que restada ditadura?”. Pergunta ainda mais urgentese lembrarmos a incrível capacidade que aditadura brasileira tem de desaparecer. Elavai aos poucos não sendo mais chamadapelo seu nome, ou sendo chamadaapenas entre aspas, como se nuncahouvesse realmente existido. Na melhordas hipóteses, como se houvesse existidoapenas em um curto espasmo de tempono qual vigorou o AI-5. Talvez o quechamamos de ditadura tenha sido apenasuma reação um pouco demasiada àsameaças de radicalização que espreitavamnossa democracia. Quem sabe, daqui aalgumas décadas, conseguiremos realizaro feito notável de fazer uma ditadurasimplesmente desaparecer.

VLADIMIR SAFATLE E EDSON TELES (ORGANIZADORES)

BOITEMPO EDITORIAL | 352 PÁGINAS

nas como a laranja podre no cesto de fru-tas, mas foi de tal incorporada ao Estadode Direito que hoje pode ser consideradaparte constitutiva do atual projeto de de-mocracia. Isto nos leva, como anunciadono livro, a uma indistinção crescenteentre democracia e autoritarismo, com ofortalecimento do aparato repressivo e acriação de leis de agressão e criminaliza-ção dos movimentos sociais.”

Por fim, ele recorda algumas das atro-cidades jurídicas cometidas pelos milita-res. “A primeira delas foi se colocaremcomo representantes da nação pelo sim-ples fato de estarem no governo, o qual foitomado à força por um golpe de Estado.Com base nesta falsa representação, elessuspenderam o habeas corpus, clássicomecanismo de proteção do corpo contraos abusos do Estado, e iniciaram a práti-ca das prisões indiscriminadas, com tor-tura e assassinato. Instituiu-se rapida-mente a figura dos inquéritos policiaismilitares, modo de não submeter osagentes do Estado responsáveis por taisatos aos trâmites de uma ordem jurídi-ca civil. Posteriormente, os processados,entre uma sessão de tortura e outra, eramlevados para um tribunal militar, comose vivêssemos em uma guerra. Na tran-sição, nada foi transformado no judici-ário e muitos dos que colaboraram coma ditadura foram mantidos, ou subiramna hierarquia desta ordem. Não é à toaque o atual STF considerou que os tor-turadores da ditadura são merecedoresde anistia, apesar de todos os tratados as-sinados pelo País contra este tipo de cri-me e sua imprescritibilidade.”

EVAN

DR

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A ditadura militar iniciada em 1964 se torna cada vez mais violenta e a repressão aos movimentos estudantis chega ao auge em 1968.

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13JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

BEATRIZ KUSHNIR – BOITEMPO EDITORIAL – 408 PÁGINAS

“A imprensa foi uma arma essencial da ditadura”Originalmente publicado quando dos

40 anos do golpe, em 2004, o livro Cães deGuarda: Jornalistas e Censores, de BeatrizKushnir, segue em catálogo. E, mais do queisso, firmou-se como uma das principais re-ferências quando o assunto é o período deexceção no Brasil. E a relação dos militarescom a imprensa. “Os meios de comunica-ção de massa – rádio, jornais e tv – apoia-ram o golpe e a ditadura, e não tiveram papelrelevante para o fim do regime. Coriolanode Loyola Cabral Fagundes, censor desde1961 e que atuou no Estadão, me narrou, porexemplo, que os poemas de Camões publi-cados naquele jornal, para substituir os es-paços em branco das matérias censuradas,eram uma concessão dos censores. Certa-mente, a censura federal apostava que o lei-tor não entenderia o recado. Ou se tranqüi-lizaria na efêmera ilusão de que, mesmo noarbítrio, era permitido aos veículos lampe-jos de resistência, os quais, efetivamente,nada alteravam. Algo semelhante, contudo,que não foi autorizado, ocorreu na antigarevista Veja, que durante a distensão do go-verno Geisel substituiu as matérias censu-radas por imagens de diabinhos, já que nãose podia publicar espaços em branco. Adver-tidos, tiveram que parar, pois certamente oleitor de Veja à época entenderia a mensa-gem subliminar”.

Beatriz Kushnir é mestre em HistóriaSocial pela UFF e doutora em HistóriaSocial do Trabalho pela Unicamp. Para ela,os embates entre militares e profissionaisde imprensa foram dos mais árduos. “Osinúmeros jornalistas perseguidos, demiti-dos, torturados e mortos sofreram estashorríveis barbáries enquanto atuavamcomo militantes das esquerdas, em açõesarmadas ou como simpatizantes, como de-monstram os processos que arrolam os seusnomes. Da mesma forma, existiram impo-sições governamentais de expurgos nasRedações. Tais limpezas ocorreram logodepois do golpe e perduraram até e inclu-sive no governo Geisel, que impunha abandeira do fim da censura”, rememorouela, em entrevista ao Jornal da ABI.

listas ingênuos ficou a impressão de que elese o patrão tinham o mesmo interesse emcombater a censura. Existiram pouco maisde 220 censores federais, muitos deles como diploma de jornalistas. Eles atuavam re-primindo cinema, tv, rádio, teatro, jornais,revistas, entre 1964 e 1988, em todo o ter-ritório nacional. Eles eram, portanto, pou-cos para cumprir essa missão. Para que as ex-pectativas governamentais dessem certo,os donos das empresas de comunicação ti-nham que colaborar, e não resistir. E assimfizeram.”

E hoje, o que é preciso repensar na re-lação entre a mídia e a ditadura? Com a pa-lavra, Beatriz. “Há 15 anos, quando dos 30anos do AI-5, o jornalista Jânio de Freitaspublicou na Folha de S. Paulo uma advertên-cia não cumprida por seus pares, inclusi-ve nas reflexões atuais dos periódicos nos50 anos do golpe civil-militar de 1964.Corroborando com tudo que expus aqui,Freitas lembrava que ‘a imprensa, embo-ra uma ou outra discordância eventual,mais do que aceitou o regime: foi uma armaessencial da ditadura. Naqueles tempos, edesde 1964, o Jornal do Brasil [...] foi o gran-de propagandista das políticas do regime,das figuras marcantes do regime, dos êxi-tos verdadeiros ou falsos do regime. (...) Osarquivos guardam coisas hoje inacreditá-veis, pelo teor e pela autoria, já que se tor-nar herói da antiditadura tem dependidosó de se passar por tal’”, concluiu.

TRECHO

Cães de Guarda: Jornalistas e CensoresDo AI-5 à Constituição de 1988

Os censores eram a expressão de umaparcela da comunidade que os queria, epossuíam uma formação cultural semelhanteà de muitos outros brasileiros. Nessesentido, o governo que os empregava definiaas exigências relativas ao seu perfil. Nemsempre as demandas do Estado quanto aotrabalho por eles executado confluíam comas de outros estratos dessa mesmasociedade. No âmago desse desencontro, aimagem do censor incapaz fortaleceu-seante o absurdo, para quem preza a liberdadede expressão, das ordens que cumpriam.Esses funcionários públicos foram sempreexecutores de medidas, nunca os seusformuladores. Verdadeiros cães de guarda,durante a vigência de censura prévia, ligavampara as Redações dos jornais de todo o Paíspara instruir o coibido. Iniciavam afirmando:‘De ordem superior, fica proibido...’.

Parte dos jornalistas e donos de jornal,entre outros setores da sociedade civil que,ao apoiarem os governos militares naquelemomento, optaram por estar ao lado dopoder, tornaram-se tanto agentes como‘vítimas’ dessa autocensura. Fizeram, assim,dessa ditadura um acordo civil-militar.Permanecer no palco das decisões era maisimportante do que a busca e a publicação daverdade. Por isso esses jornalistas

colaboracionistas são aqui vistos como ‘cãesde guarda’. À soleira, montaram guarda efizeram autocensurano governo Médici, emesmo antes dele,colaborando paraconstruir e difundiruma imagem irreal,inverídica do País.

É verdade quepraticamente todosos órgãos deimprensa transmitiama versão do Estado naluta contra a guerrilha,ocultando a tortura, os assassinatos, osdesaparecimentos e as mortes dosoposicionistas. Mas, o caso mais destacado,sem dúvida nenhuma, foi o da Folha da Tarde,que estava muito submetida à orientação doDoi-Codi, fazendo guerra psicológica epropaganda contra a guerrilha, sem quequalquer ação militar tivesse desenvolvidocontra ela. Não que não houvesse vontadede realizá-la. Esta surgia em cada mentira, acada infâmia, a cada vez que a Folha daTarde, na condição de porta-voz oficioso doDoi-Codi, anunciava como fuga ou morte emcombate o que na realidade fora oassassinato de um companheiro.

Um erro histórico comum é marcar oinício da censura à imprensa apenas em1968, depois do anúncio do AI-5, que res-tringiu por completo as liberdades noBrasil. Alguns anos antes, vários jornaisque se opuseram ao governo militar fo-ram invadidos e tiveram suas instalaçõesdestruídas. Isso aconteceu, por exemplo,com o Correio da Manhã, no Rio de Janei-ro. Talvez por isso mesmo, outros veícu-los tenham aderido aos planos traçadospelos fardados. Para a autora, o caso da Fo-lha de S.Paulo é claríssimo. O jornal apoiouo golpe e a ditadura até tarde. Tirou pro-veito da destruição de concorrentes, comoa Última Hora, de Samuel Wainer. Engoliuo Notícias Populares. Quando a TV Excel-sior teve a concessão cassada pelo gover-no Médici, a família Frias ficou com par-te do espólio da emissora. Emprestou umjornal à ditadura, a Folha da Tarde. Cedeucarros de entrega de jornais à OperaçãoBandeirantes, no maior centro de torturasdo Brasil, o Doi-Codi da Rua Tutóia. Quan-do os militares se dividiram, a Folha jogoucom a linha mais dura, que não aceitava aabertura ‘lenta, gradual e restrita’. A TVGlobo, segundo Beatriz, chegou a contra-tar censores com o objetivo de aperfeiço-ar a autocensura e evitar possíveis preju-ízos – evitando gastos com programas quepoderiam ser proibidos.

Mas, como explicar o apoio da mídia aosmilitares – um comportamento, à primei-ra vista, tão contraditório? “Os meios de co-municação atuam como empresas que bus-cam o lucro, vendendo a visão particularsobre um fato e, como Cláudio Abramo porvezes demarcou, um equívoco que a esquer-da geralmente comete é o de que, no Brasil,o Estado desempenha papel de controladormaior das informações. Mas, não é só o Es-tado, é uma conjunção de fatores. O Esta-do não é capaz de exercer o controle, e sim

a classe dominante, os donos. O Estado in-flui pouco, porque é fraco. Até no caso dacensura, ela é dos donos, nem tanto doEstado. Não é o governo que manda censurarum artigo, e sim o próprio dono do jornal,entende? Como havia censura prévia du-rante o regime militar, para muitos jorna-

Policiais do Exército cercam a TV Excelsior, no Rio de Janeiro, na noite de 1º de abril.

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14 JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

“Jango era o maior proprietário de terras do Brasil”Um dos mais experientes jornalistas

políticos do País, com quase seis décadasde atividade profissional, Carlos Chagastambém lançou livro especial, em funçãoda passagem dos 50 anos do golpe. De Bra-sília, o autor conversou com o Jornal daABI. Ele é taxativo quanto ao perfil do Pre-sidente derrubado pelos militares. “Jan-go jamais foi comunista. Era o maior pro-prietário de terras do Brasil. Queria as re-formas de base, errou ao tentar fazê-las deuma só vez, inclusive quebrando a hierar-quia militar. Claro que gostaria de conti-nuar no governo depois de terminado seumandato, mas jamais mudando as linhasbásicas do sistema capitalista”.

Em A Ditadura Militar e os Golpes Dentrodo Golpe, Chagas traça um painel do quadroda época. “Os militares que tomaram o Paísde assalto estavam unidos no substantivo:o assalto. A partir de janeiro de 1964, gene-rais, coronéis, subalternos e equivalentesconspiravam para depor o Presidente, esti-mulados pelo empresariado nacional e es-trangeiro. O fantasma das reformas de base,ou seja, da perda dos privilégios das elites,somava-se à fobia do anticomunismo à qualse ligava a Igreja. É claro que por trás dessedenominador comum funcionavam cor-

rentes distintas. Dentre os militares, os cha-mados ‘intelectualizados’, com CastelloBranco, Ernesto Geisel, Golbery de Coutoe Silva, Juarez Távora, Juracy Magalhães eoutros, imaginando que, se o golpe fosse vi-torioso, a eles caberia a definição dos novosrumos, organizadores que eram da EscolaSuperior de Guerra. Estigmatizado, esse gru-po era olhado de viés pelos chefes mais afe-tos à tropa e aos quartéis, como Costa e Silva,Amaury Kruel, Justino Alves Bastos e, naMarinha, Rademaker e Silvio Heck. Masuniram-se na deposição. Logo depois, entra-ram em choque. No primeiro embate, ga-nhou Castello Branco, imposto ao Congres-so como novo Presidente da República. Nosegundo, ganhou Costa e Silva.”

Segundo Chagas, ‘os golpes dentro do gol-pe’ – a que se referem o título do livro – co-meçaram antes mesmo da eleição de Caste-llo Branco. “Ele era chefe do estado-maiordo Exército e a Constituição exigia que, paracandidatar-se, aqueles generais se desin-compatibilizassem seis meses antes daseleições. O Ato Institucional, que entre ou-tras coisas regulamentou as eleições, tinhaum artigo: ‘nas próximas eleições não have-rá inelegibilidades’... Depois, vieram a pror-rogação do mandato de Castello, a dissolu-

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964

ção dos partidos políticos, o aumento donúmero de ministros do Supremo TribunalFederal de 11 para 16, para que não perdes-

sem a maioria, a volta à cassação de manda-tos, a transformação de um Congresso emfinal de mandato em Assembléia NacionalConstituinte, o fechamento do Congresso,o AI-5, com Costa e Silva, a prisão do vice-Presidente Pedro Aleixo, o Pacote de Abrile mais um monte de golpes dentro do gol-pe. Não havia riscos institucionais, simples-mente porque, àquela altura, já não haviainstituições.”

Do livro editado pela Record, constamrevelações de bastidores presenciados porCarlos Chagas no Rio e em Brasília, taiscomo a invasão do Congresso por tropaarmada, em 1966, e a quase guerra civil en-tre o Presidente Ernesto Geisel e o Minis-tro Silvio Frota, em plena Praça dos TrêsPoderes. Sem esquecer as profundezas doatentado ao Riocentro e a luta do Presiden-te João Figueiredo para acabar com a dita-dura. “O primeiro volume dessas narrati-vas vai de 1964 a 1969. O segundo, já pron-to, trata dos anos seguintes e vai para as li-vrarias no final deste ano. Aqui para nós,está mais quente do que o primeiro. Feliz-mente, tenho a certeza de que não mevalerão, os dois volumes, os processos a querespondi antes, com outros, pela Lei de Se-gurança Nacional”, satiriza Chagas.

“O golpe foi consequência diretada paranóia da Guerra Fria”

Formado em Direito, professor da Uni-versidade de Brasília, Flávio Tavares éjornalista. Colunista político nos anos1960, da Última Hora do Rio de Janeiro,São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Por-to Alegre, foi preso e banido do Brasilpela ditadura em 1969. Exilado no Méxi-co, foi redator do Excelsior, depois corres-pondente internacional de O Estado deS.Paulo em Buenos Aires, e depois em Lis-boa. À volta do exílio, foi editorialistapolítico do Estadão e correspondente daFolha de S.Paulo na Argentina. Hoje, é ar-ticulista dominical do Zero Hora, de Por-to Alegre. É com a experiência de quematuou na imprensa durante a ditadura esofreu, na vida pessoal e profissional, se-veros impactos diretos com a ascensãodos militares ao poder, que Tavares fezchegar ao mercado editorial mais um li-vro de sua autoria: 1964 – O Golpe foi lan-çado em março deste ano. A participaçãodos Estados Unidos na política brasilei-ra é um dos pontos centrais da obra.

“Meio século atrás, como jornalista po-lítico em Brasília, acompanhei toda a pre-paração ostensiva do golpe, mas só fui des-cobrir seu verdadeiro nascedouro ao ma-nusear a documentação secreta do gover-no dos Estados Unidos, nos períodos dosPresidentes Kennedy e Johnson. O golpede 1964 foi conseqüência direta da para-

FLÁVIO TAVARES | L&PM | 320 PÁGINAS

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1964 – O Golpe

Assisti em 1961 à chegada do vice-Presidente João Goulart a Porto Alegre,vindo da China, e, logo, à possepresidencial em Brasília, após o triunfo doMovimento da Legalidade. A 1° de abril de1964, testemunhei seus derradeirosmomentos no Palácio do Planalto, aquelashoras finais em que o poder lhe fugia dasmãos a cada instante, e toda tentativa de iradiante o fazia retroceder ainda mais. Semtelefones interurbanos, nem telex ou vôoscomerciais, Brasília estava isolada nessatarde, 36 horas após o início da sublevaçãodo general Olympio Mourão, em MinasGerais. Só os boatos, carregados deinvencionices, alimentavam o Congresso,os quartéis e a população. De pronto,soubemos que Jango viera do Rio, ondeainda estava a maioria dos ministérios. Eleera o centro nevrálgico de tudo e, com ele,tudo se esclareceria. Caminhamos doCongresso ao Palácio do Planalto, semsaber que ali estava o começo da Históriado golpe de Estado. E do que o rodeou –a dispersão dos conspiradores e seureagrupamento. Ou o ufanismo inocentedos legalistas. A direita e a esquerda emconfronto. E do que veio depois. Assisti atudo, mas só agora, 50 anos depois, fuidescobrir os elos da conspiração e daarticulação do golpe. Até a quase totalidadedos que dele participaram ignoravam suaraiz. Ei-la adiante, diretamente no que contoe nos documentos secretos da CasaBranca, da CIA e da Embaixada dos EUA. E,mais do que tudo, nas entrelinhas do queali se oculta.

nóia da Guerra Fria. Sem a participaçãodireta dos Estados Unidos até poderia terocorrido um golpe, mas não seria o golpeque foi, não teria a audácia de cometer tan-tos desmandos e impor o que impôs. Os Es-tados Unidos e a direita militar e civil bra-sileira se retroalimentavam nas fantasias.Mas o golpe nasceu nos EUA, com dinhei-ro e com a participação militar norte-ame-ricana. Não é suposição, está tudo docu-mentado em meu livro”, apontou Flávio,em entrevista ao Jornal da ABI.

Um cenário intervencionista que,hoje, não está tão diferente assim. Para ojornalista, por exemplo, não causaramespanto as recentes denúncias de espiona-gem norte-americana sobre empresas e ogoverno brasileiro. “Continuamos vulne-ráveis não só pela espionagem eletrônica,mas pela permanente invasão – invasãomesmo – do poder econômico-financeirodos Estados Unidos, ainda que eles estejamem crise. Culturalmente, somos domina-dos por eles cada vez mais. Já usamos o idi-oma inglês em coisas correntes, que antesdizíamos em nossa língua. Afinal, por quedizer ‘bike’ em vez de bici ou bicicleta?”,questiona ele, autor de livros premiados,como Memórias do Esquecimento (recebeuo Prêmio Jabuti em 2000) e O Dia em queGetúlio Matou Allende (vencedor do APCA,em 2004, e do Jabuti, em 2005).

Segundo o autor, a obra tem como mé-rito revelar segredos e desnudar artima-nhas secretas. “Eu próprio me surpreendicom a documentação dos EUA que publi-co no livro. Tentei penetrar também nasentranhas do governoJango e da esquerda daépoca, e mostro comoalgumas ações da es-querda serviram, nofundo, de ‘provoca-ção’ e acabaram facili-tando a atividade dosgolpistas”, revela Flá-vio, para quem, cincodécadas depois, o gol-pe ainda preserva abertas diversas feridasna democracia brasileira. “Ele gerou a di-tadura, e esta nos deixou um legado terrí-vel. Por um lado, nos amedrontou, fez da vi-olência uma prática do poder. Basta ver a fe-rocidade das polícias militares do Rio, SãoPaulo e outros estados. Por outro, despoli-tizou a política. A corrupção partidária, emque os partidos são meros balcões de negó-cios, vem da época dos pseudos partidos –Arena como pró-governo e o MDB anti-go-verno, ambos instituídos pelo regime mi-litar. A transformação dos partidos emagrupamentos para acomodar os políticos,que agem por interesses próprios, surgiu naditadura. E assim continua até hoje.”

Foto publicada no jornal Última Hora em 30 dejulho de 1963 com a seguinte legenda: "Ao ladodo Ministro Carvalho Pinto, advertiu o Presidenteque se iludem, porém, 'aqueles que confundem

paciência, espírito cristão e tolerância comcovardia para realizar reformas', citando'especialmente a reformulação do velho

arcabouço feudal' da nossa terra.”

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RODRIGO PATTO SÁ MOTTA E LUCIANO ARONNE DE ABREU (ORGANIZADORES) | FGV EDITORA | 348 PÁGINAS

“Na cultura, a atuação dos militaresfoi modernizadora e autoritária”

Que a ascensão dos militares ao podertransformou a gênese da política brasilei-ra, disso, não há dúvidas. Mas o golpe de1964 mexeu também na produção cultu-ral do País, e no entendimento da popu-lação sobre o significado da política – edos políticos. Um dos autores de Autori-tarismo e Cultura Política, que acaba dechegar às livrarias, Rodrigo Patto conver-sou com o Jornal da ABI. O que teria levadoeste mineiro de Belo Horizonte, doutorem História pela Usp, pesquisador bolsis-ta do CNPq e professor do Departamen-to de História da UFMG, a produzir estetítulo justamente agora, quando são com-pletados 50 anos da intervenção militar?

“É fundamental refletir sobre o fenô-meno autoritário no Brasil, que contoucom duas ditaduras de larga duração noperíodo republicano. Compreender ade-quadamente o autoritarismo, para alémdas necessidades do conhecimento acadê-mico, pode ser útil do ponto de vista po-lítico, para nos ajudar a encontrar meiospara fortalecer as instituições e a cultu-ra democrática. Uma das apostas teóricasdo livro é que o autoritarismo tem rela-ção com a cultura política brasileira, ouseja, com tradições políticas arraigadas nanossa cultura”, aposta ele, que assina aobra ao lado de Luciano Aronne de Abreu.

Rodrigo escreveu também Em GuardaContra o Perigo Vermelho: o Anticomunismo noBrasil (1917-1964), editado pela Perspecti-va em 2002, em que estuda uma dimen-são pouco conhecida dos movimentosconservadores e direitistas no País. Mo-vimentos que resultaram no golpe, quesacudiu a produção cultural nacional. “Aatuação dos militares neste campo foimodernizadora e autoritária, ao mesmotempo. Houve a expansão dos empreen-dimentos e empresas culturais, como jor-nais, televisão, rádio e editoras, e tambéminvestimentos para modernizar as uni-versidades. Porém, simultaneamente, aditadura criou mecanismos para cerceara liberdade, como a censura, direta e in-direta, e eventuais ações violentas contraartistas desafetos do regime”.

Não por acaso, o novo livro destaca ge-neroso espaço ao capítulo “A dramaturgiaBuarqueana e a censura dos anos 1970:dois movimentos de uma trajetória que sefez entre estratégias e tática”, numa refe-rência – e reverência – à obra de ChicoBuarque de Hollanda, cantor, compositore autor de peças de resistência como Ca-labar, Gota D´Água e Roda Viva. Vale lem-brar que nesta última, durante temporadaem São Paulo, após a sessão da noite de 18de julho de 1968, ocorreu o tenebrosoepisódio da invasão de membros do CCC(Comando de Caça aos Comunistas) aoTeatro Ruth Escobar, seguida da agressãoa atores do elenco, como Marília Pêra eRodrigo Santiago.

Autoritarismo e Cultura Política

A aproximação analítica entre os temasAutoritarismo e Cultura Política, abrangendoo Brasil e outros países latino-americanos(Argentina, Chile e Uruguai), pode gerarchaves interpretativas e explicativasinovadoras para a história da região. Comefeito, tais nações passaram por experiênciasautoritárias recentes que, em boa parte,contribuíram para a sua configuração atual,quer seja pela ação direta na moldagem desuas estruturas econômico-sociaiscontemporâneas, quer seja pela própriareação adversa que geraram na forma demovimentos de combate a esses regimes esuas heranças ainda atuantes, em especialno campo da construção da memória.

O enfoque ganha especial pertinênciaquando consideramos que, em algunsdesses países, como o Brasil, o autoritarismonão é um fenômeno político recente, maspossui uma vasta História. Não apenasporque tais países já tenham passado porregimes não democráticos anteriormente,mas porque também eles foram palco daelaboração de toda uma tradição teóricaautoritária, ou seja, de intelectuais quepensaram e projetaram a sociedade(brasileira e latino-americana) comoincompatível com a democracia liberal. Emuitos elementos desse pensamentoautoritário eram compartilhados ou

CARLOS CHAGAS – RECORD – 490 PÁGINAS

A Ditadura Militare os Golpes Dentro

do Golpe: 1964-1969

Na manhã do dia 6 de outubro de1965, celebrava-se mais um aniversário daJornada de Monte Castello, na SegundaGuerra Mundial, pela Força Expedicionária

Brasileira. Após odesfile militarcomemorativo,Costa e Silva – queainda era Ministroda Guerra, porquesó meses depoisum decretomudaria o nomepara Ministro doExército – disseaos jornalistas,segundo o Diário

de Notícias e Jornal do Brasil.“Como vocês viram, a vila militar não

desceu. E eu não estou demissionário. Asdecisões do Presidente da Repúblicaserão rigorosamente cumpridas. Cuidadocom os boatos. As Forças Armadas nãosão organizações políticas. Não decidemse devem ou não dar posse aos eleitos naGuanabara e Minas Gerais, Negrão deLima e Israel Pinheiro. A decisão é doPresidente e do Congresso. Se oPresidente disser ‘dêem posse’, haveráposse. Se disser ‘não dêem posse’, elesnão tomarão posse. As cordas darevolução são de aço e não se rompem”.

A seguir, num almoço que aoficialidade oferecia, o ministro discursou,conforme publicaria O Jornal na primeirapágina:

“Atravessamos uma fase nova aindachamada de revolucionária, iniciada em 31de março de 1964, quando o Exército,violentando seu princípio, mas prestandouma homenagem ao povo, afastouaqueles que queriam levar o País ao caos,coisa que não tolerará jamais, pois oespírito revolucionário continuaráprevalecendo.”

Na madrugada de 5 para 6, ao retornarda Vila Militar, Costa e Silva passara, emsegredo, no Palácio Laranjeiras, para darconta de que havia contornado a rebeliãoe combinar o que diria no dia seguinte, naVila Militar. Nenhum dos dois precisoutornar claro ou particularizar, mas, naquelespoucos minutos de conversa, ficou óbvioque Castello passara a ser devedor de seuministro. Permaneceria no poder porqueCosta e Silva permitia, porque fizera refluiros tanques. O colega de turma não seinscrevia propriamente no rol dospossíveis candidatos à sucessão de 1966.Ele próprio era ‘o candidato’, apesar demuita água ainda vir a passar sob a pontepara confirmá-lo.

Os boatos da demissão de Costa eSilva partiram de Carlos Lacerda e seugrupo. Difundiam a idéia de que, comvistas a se perpetuar no poder, Castellotrabalhava por afastar quaisquerpretendentes à Presidência da República.O primeiro fora ele, Lacerda,progressivamente esvaziado e, afinal,isolado. Depois, da mesma forma,Magalhães Pinto. E então chegara a vezde Costa e Silva.

“Como herança direta do período mi-litar, houve redução da liberdade e aumen-to na repressão, o que significou obstácu-los à livre criação artística e à expressão cul-tural. No entanto, os artistas souberamcriar mecanismos para questionar ou paracontornar os obstáculos colocados pela di-tadura. Assim, de fato, o autoritarismo es-timulou a criatividade, por impor aos cri-adores culturais a necessidade de burlar a

censura, e, também, por oferecer a eles umamotivação política para continuarem pro-duzindo, apesar das dificuldades”, contex-tualiza Rodrigo, lembrando que tal posturados artistas deveu-se, na verdade, ao com-portamento inquieto da classe. E à próprianatureza humana de contestação da auto-ridade e resistência às arbitrariedades. Nãocaracterizando, nem de longe, um ‘favor’prestado pelos militares à cultura nacional.

apropriados por outras correntes depensamento – mesmo à esquerda doespectro político-intelectual – e, inclusive,pelos grandes meios de comunicação,alcançando uma abrangência maior que orestrito círculo dos intelectuais. Dessamaneira, torna-se muito pertinente procurarassociar o autoritarismo à cultura política, namedida em que as bases do pensamentoautoritário contribuíram difusamente naprópria maneira comoa realidade políticadessas sociedadesvem sendoconcebida ao longodas últimas décadas.

Por outro lado, háque se considerartambém amanifestação dedeterminados traçosde cultura políticatanto nos períodos degoverno autoritário quanto nas fasesconsideradas democráticas. Tendo em vistaespecialmente o caso brasileiro, podemosmencionar como exemplos o reiteradorecurso à conciliação entre setores da elite, areprodução de práticas clientelistas, oarraigado corporativismo e a tradicionalpersonalização das relações políticas.

Chico Buarque durante o ensaio de Roda Viva, peça que sofreu um atentadodo Comando de Caça aos Comunistas na noite de 18 de julho de 1968.

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UÇÃO

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“A grande dívida é o paradeiro dos desaparecidos políticos”Afinal, havia mesmo a ‘ameaça’ de im-

plementação do socialismo no Brasil?Quem responde a essa pergunta, em maisuma entrevista para o Jornal da ABI, éMarcos Napolitano, autor de 1964: Histó-ria do Regime Militar Brasileiro. “Este é umdos pontos que eu polemizo com algumasinterpretações. Não trabalho com estahipótese da ‘radicalização’ como fatorexplicativo central para o golpe. Acho queo anticomunismo alimentou o anti-re-formismo, entendido como reformas so-ciais conduzidas pelo governo com cer-ta participação popular, o que não signi-ficava necessariamente ‘socialismo’. OGoverno Jango, na verdade, estava mui-to longe de ser um projeto socialista”,pondera o autor.

Marcos é doutor em História Socialpela USP e professor do Departamento deHistória da mesma universidade, onde

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964

leciona História do Brasil Independente.É autor e co-autor de vários livros, entreos quais Como Usar o Cinema em Sala deAula e Cultura Brasileira: Utopia e Massi-ficação, todos publicados pela EditoraContexto. “O novo livro tenta respondera perguntas-chave, tais como: a ditaduradurou muito graças ao apoio da socieda-de civil, anestesiada pelo ‘milagre’ econô-mico? Foi Geisel, com a ajuda de Golbery,o pai da abertura, ou foi a sociedade quemderrubou os militares do poder? Como erao cotidiano das pessoas durante o regimemilitar? Como a cultura aflorou naque-le momento?”, explica o autor, que tra-duz um pouco mais de sua proposta.

“Meu livro não traz revelações factu-ais. O seu ponto forte está na reinterpre-tação de explicações mais ou menos con-sagradas sobre a chamada ‘fase branda’ doregime, no governo Castello, sobre a vida

cultural, sobre a abertura e suas relaçõescom a sociedade. Além disso, trago algumasdiscussões sobre a natureza do regimeautoritário, propondo uma nova perspec-tiva sobre seus objetivos políticos. Enfim,é um livro de entrada no tema, uma síntesepara que o leitor faça a ponte com traba-lhos mais monográficos. Obviamente, naminha opinião, nenhuma ditadura é boa.Mas isso não nos desobriga a compreendero regime militar evitando análises passi-onais ou julgamentos morais. É precisocompreender como uma opção autoritáriase construiu, como o regime se sustentoupor mais de 20 anos e quais os efeitos so-ciais e políticos da modernização capita-lista combinada com repressão”.

Napolitano avalia duramente o de-sempenho do Presidente deposto. “Esbo-çou-se o perfil de um estadista ousado,vitimado pelo conservadorismo das eli-

tes. No entanto, naquele mesmo contex-to, uma grande parte da esquerda militan-te não endossava o projeto reformista deJoão Goulart, preferindo criticar a mar-ca populista e demagógica de sua persona-lidade e de seu governo. Na impossibili-dade de um grande final, Jango acabouencenando uma ópera bufa, deixandopara trás um país dividido, e destruindo20 anos de conquistas no campo da de-mocracia”. Para o historiador, os trabalhosdas Comissões da Verdade, em Brasília eem alguns estados, vieram para corrigir oprincipal passivo do País para com seupassado. “Muito já se acumulou, em ter-mos de memórias e mesmo no campohistoriográfico, elucidando processosrelativos ao período. Mas a grande dívi-da é mesmo na área de investigação dasviolações de Direitos Humanos e no pa-radeiro dos desaparecidos políticos.”

TRECHO“O golpe foi dado sem que houvessequalquer reação da sociedade civil”

Este é outro título que chega àslivrarias justamente em função dapassagem dos 50 anos da tomadado poder pelos militares. Commais de duas décadas de atuaçãona imprensa esportiva, RobertoSander é autor de diversas obrassobre futebol e História do Brasil,além de diretor editorial da Ma-quinária. 1964 - O Verão do Golpe éo seu décimo livro e busca recons-tituir, por meio de cuidadosa pes-quisa de cinco anos, o clima geralnos três meses que antecederama derrubada de Jango. O livro, queem alguns sites de venda encontra-se es-gotado, tem entusiasmado leitores e críti-cos pela natureza ágil de sua narrativa, re-pleta de detalhes. O prefácio é do jornalis-ta Geneton Moraes Neto e a revisão his-tórica e texto de orelha do cientista polí-tico Eduardo Heleno, professor da UFF.

“É sempre difícil para um autor falar so-bre sua própria obra. Mas, acredito que o seumaior mérito seja retratar um período meionegligenciado pela historiografia oficial.Existe uma vasta literatura sobre as conse-qüências do golpe, sobre os Anos de Chum-bo, inaugurados pelo AI-5, em dezembro de1968, mas pouca sobre as causas, sobre operíodo que precedeu o golpe e aquele logodepois dele. Lançar luzes sobre episódiospouco conhecidos que ocorreram entre ja-neiro e junho de 1964, inclusive no aspec-to cultural e comportamental; creio ser esteo diferencial deste livro e a razão da boa aco-lhida do mesmo pelo mercado”, contou Ro-berto ao Jornal da ABI.

Para o jornalista, não há uma relação di-reta entre a revolução de costumes, inicia-

ROBERTO SANDER

MAQUINÁRIA EDITORA – 272 PÁGINAS

1964O Verão do Golpe

Quando foi subitamente acordado,num hotel em Cingapura, na madrugadade 26 de agosto de 1961, João Goulartnão imaginava que sua vida, a partir dali,daria uma grande reviravolta. Jango dormiaao lado de uma prostituta e havia acabadode chegar de Xangai. Estava em sonoprofundo e quem ouviu as insistentesbatidas na porta do quarto e o acordou foia moça que o acompanhava. Assim que aabriu, recebeu a bomba: “Acorda e teveste. O Jânio renunciou e tu és agora oPresidente do Brasil”, disse-lhe, em tomde urgência, o jornalista João Etcheverry.

“O quê? Não pode ser! Como é queos chineses não nos avisaram nada?”,perguntou Jango, estupefato, ao seusecretário de imprensa Raul Ryff que, comEtcheverry, fora lhe avisar da bomba: “Foitudo esta noite, há pouco; lá no Brasilagora é o início da tarde”, respondeu Ryff,que, de tão atônito, esquecera-se de vestira camisa. Já Etcheverry estava com os pésdescalços e Jango, de cuecas. Como todoo Brasil, foram pegos de surpresa.

Refeitos do susto, enquantoaguardavam que se completasse aligação internacional para quesoubessem de mais detalhes darenúncia inesperada, convocaram orestante da pequena comitiva paraque, da suíte de João Goulart,aguardassem mais notícias. Foiquando o senador Barros deCarvalho, do PTB, sugeriu quefosse feito um brinde dechampanhe ao novo Presidente.Jango, muito precavido, com ospés no chão, respondeu:

“Barros, se você quer tomar champanhenão há inconveniente algum. Vamosbuscar champanhe no bar, mas não paracomemorar a minha chegada à presidênciae sim em homenagem ao imprevisível.”

da nos anos 1960, com o evento do dia 1ºde abril de 1964. “O contexto político da-quela época é que foi decisivo. Tínhamosum governo democrático buscando fazerreformas estruturais na sociedade brasileira.Reformas no campo, na saúde, na educação,na legislação eleitoral, que, se viabilizadas,romperiam com privilégios enraizados noPaís, contrariando os interesses das nossaselites, reconhecidamente egoístas e retró-gradas. Além disso, era um momento degrande polarização ideológica, reforçadapela Guerra Fria. Dessa forma, falaram maisalto os interesses do empresariado nacionale das potências capitalistas, sobretudo dosEstados Unidos, que além de temerem a in-fluência do comunismo na América Latina,precisavam de governos dóceis nos paísesem desenvolvimento para investir com se-gurança os seus excedentes de capitais.”

Em sintonia com diversos historiadores,para Sander não existia, por parte do gover-no, qualquer intenção de fazer uma revo-lução comunista. “O Presidente João Gou-lart era apenas um burguês, com bastante

sensibilidade social, que procurouo tempo todo fazer as reformas deque o País precisava para crescer nabase do consenso, do arranjo polí-tico – ou seja, pela via democráti-ca. Só quando viu que não conse-guiria, jogou mais duro, levando adi-ante suas idéias na base do decreto.A juventude da época, sobretudoaquela engajada nos movimentosestudantis, era majoritariamentede esquerda, mas não necessaria-mente apoiava a implantação deum comunismo na base da dita-dura do proletariado.”

Nem mesmo os artistas, tradicional-mente mais progressistas, posicionaram-secontrariamente à ação militar. “Se nãoapoiou o golpe como outros segmentos, aclasse também não fez nada para impedi-lo. Na verdade, o golpe foi dado sem que hou-vesse qualquer reação da sociedade civil.Naquele momento nenhuma voz se ergueu.Depois, sim, a classe artística se pronuncioue se envolveu nos protestoscontra a ditadura, já em1968”. Se o verão de 1964foi marcado pela eminên-cia do golpe, os que se segui-ram tiveram como chance-la o autoritarismo militar.“As feridas ainda nem cica-trizaram, pois os responsá-veis pelo terror político eeconômico não foram pu-nidos. Por isso, sou completamente a fa-vor de uma revisão da Lei da Anistia. Nãoé possível anistiar torturador. Isso é con-siderado crime hediondo e, portanto, im-prescritível.”

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MARCOS NAPOLITANO | EDITORA CONTEXTO | 368 PÁGINAS

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1964: História doRegime Militar

Brasileiro

Protagonistas de muitas origens políticas,estudiosos de inúmeras áreas acadêmicas,artistas e intelectuais de diversos camposde atuação, refletiram sobre osacontecimentos em curso e ajudaram aconstruir visões críticas sobre vários temasco-relatos à História do regime militar: ogolpe, a agitação cultural, as passeatasestudantis de 1968, o milagre econômico,a guerrilha de esquerda, a repressão e atortura, a abertura política. Quando o regimeacabou, havia já uma memória construídapor estes protagonistas e analistas. Hoje,passados cinqüenta anos do golpe de1964 e quase trinta anos do fim daditadura, muitas dessas perspectivas sãorevisitadas pela historiografia e pela própriamemória social. As perguntas que circulamhá algum tempo, tanto na imprensa quantono meio acadêmico, sintetizam estedebate: Jango foi o responsável pela crisede 1964? O golpe foi puramente militar ou

civil-militar? A ditadurapara valer só começoucom o AI-5, em 1968? Aesquerda armada foi aprincipal responsávelpelo acirramento daviolência de Estado? Asartes e a cultura deesquerda estavaminseridas na indústriacultural ou foram merasconcessões episódicaspor parte desta? A

sociedade, predominantemente, resistiuou apoiou a ditadura? A abertura do regimefoi um movimento consciente dosmilitares, que preparavam a sua saída dopoder sem hesitações?

Defendo a interpretação de que em1964 houve um golpe de Estado, e queeste foi resultado de uma ampla coalizãocivil-militar, conservadora e anti-reformista,cujas origens estão muito além dasreações aos eventuais erros e acertos deJango. O golpe foi o resultado de umaprofunda divisão na sociedade brasileira,marcada pelo embate de projetos distintosde país, os quais faziam leiturasdiferenciadas do que deveria ser oprocesso de modernização e de reformassociais. O quadro geral da Guerra Fria,obviamente, deu sentido e incrementouos conflitos internos da sociedadebrasileira, alimentando velhas posiçõesconservadoras com novas bandeiras doanticomunismo. Desde 1947, boa partedas elites militares e civis no Brasil estavaalinhada ao mundo “cristão e Ocidental”liderado pelos Estados Unidos contra asuposta “expansão soviética”. A partir daRevolução Cubana, em 1959, a AméricaLatina era um dos territórios privilegiadosda Guerra Fria. Este pensamento, alinhadoà “contenção” do comunismo, foifundamental para delinear as linhas geraisda Doutrina de Segurança Nacional (DSN),propagada pela Escola Superior de Guerra.A DSN surgiu no segundo pós-guerra,sintetizada pelo Conselho de SegurançaNacional dos Estados Unidos, e tem suasorigens na Doutrina de Contenção doComunismo internacional.

“O regime militar brasileiro nãofoi uma ditadura de 21 anos”

Com seu estilo coloquial, direto e des-pojado, e após polemizar em torno docomportamento do Poder Judiciário e doescândalo político no livro Mensalão,Marco Antonio Villa agora tenta desmis-tificar a ditadura brasileira, tanto em suaduração como em seus efeitos. Mordaz,Villa diz que o panorama intelectual bra-sileiro é desalentador: “Com a redemocra-tização, os intelectuais foram se afastan-do. Contam-se nos dedos aqueles que têmuma presença ativa”. A seu ver, muitosdos que hoje se dizem justiceiros do regi-me militar, naquela época, “estranhamen-te, omitiram-se quando colegas foramaposentados compulsoriamente pelo AI-5, como Florestan Fernandes, FernandoHenrique Cardoso, ou presos e condena-dos, como Caio Prado Júnior”.

Esse é o tom de Ditadura à Brasileira,1964-1985: a Democracia Golpeada à Es-querda e à Direita, obra lançada neste2014, também em função dos 50 anos dogolpe. O autor concedeu entrevista ao Jor-nal da ABI. “De forma consciente, remo con-tra a corrente. Apresento o governo Jangode forma distinta; mostro que o golpe ti-nha, inicialmente, um sentido, mostro a es-pecificidade de cada governo militar e comose desenvolveu o momento da redemocra-tização. Dou destaque especial aos parla-mentares do MDB e sua luta heróica em de-fesa da democracia. E mostro como o temaainda é marcado pelo panfletarismo bara-to e pelos ‘policiais da verdade’ que tememo debate. Falta estudar com cuidado o go-verno Jango e o papel nocivo do Presiden-te no momento da maior crise política doséculo 20 brasileiro. Construíram uma ver-são do passado e querem pela força mantê-la. Um bom exemplo é a falácia de que aluta armada conduziu à democracia, istoquando todos os grupos – friso, todos – de-fendiam a implantação de uma ditadura doproletariado por aqui. Evidentemente queisto – de forma alguma – justifica a açãoterrorista de Estado, com as gravíssimas vi-olações dos direitos humanos”.

Mestre em Sociologia e Doutor em His-tória, Marco Antonio é professor do De-partamento de Ciências Sociais da UFSCar.E aponta aquela que considera a interpre-tação mais equivocada sobre a realidadebrasileira da época. “Sem dúvida, é associ-ar mecanicamente o que aconteceu no Bra-sil com o ocorrido nos países do Cone Sul.O regime militar brasileiro tem caracterís-ticas próprias, independentes da ditaduraargentina ou chilena. Por exemplo, o Exér-cito brasileiro tem na sua origem o positi-vismo. Aqui fascismo ou nazismo, que ti-veram grande importância na Argentina eno Chile, foram quase que irrelevantes. Ou-tros dois exemplos de diferença: o regimemilitar brasileiro estatizou a economia. Oargentino fez o contrário, basta citar a açãodo ministro Martínez de Hoz. E mais: o re-

gime brasileiro expandiu o ensino de tercei-ro grau; o argentino atacou duramente asuniversidades. Por aqui todos os Presiden-tes foram eleitos pelo Congresso ou Colé-gio Eleitoral; enquanto lá – e este ‘lá’ incluio Chile – eles foram impostos sem qualquertipo de consulta, mesmo que controlada”.

O professor defende teses que, por vezes,provocam críticas de alguns de seus colegasacadêmicos – a começar pelo questiona-mento sobre quantos anos teria durado a di-tadura. “O regime militar brasileiro não foiuma ditadura de 21 anos. Não é possívelchamar de ditadura o período 1964-1968(até o AI-5), com toda a movimentaçãopolítico-cultural que havia no País. Muitomenos os anos 1979-1985, com a aprovaçãoda Lei de Anistia e as eleições diretas paraos governos estaduais em 1982. Que dita-dura no mundo foi assim?”, indaga MarcoAntonio, para quem, ao contrário do quedefende outro autor entrevistado nesta re-portagem – Carlos Fico, que escreveu OGolpe de 1964: Momentos Decisivos – existi-ram, sim, lados positivos no regime militar.“Podemos destacar a industrialização, a mo-dernização econômica, a revolução na in-

MARCO ANTONIO VILLA | EDITORA LEYA | 234 PÁGINAS

Ditadura à Brasileira, 1964-1985: ADemocracia Golpeada à Esquerda e à Direita

A direita não conseguia conviver com umademocracia de massas em um momento denossa história de profundas transformaçõeseconômicas e sociais, graças ao rápidoprocesso de industrialização e à crescenteurbanização. Temerosa do novo, ela buscavaum antigo recurso: arrastar as Forças Armadaspara o centro da luta política, dentro da velhatradição inaugurada pela República, que jáhavia nascido com um golpe de Estado.

A esquerda comunista não ficava atrás.Também sempre estivera nas vizinhançasdos quartéis, como em 1935, quando tentoudepor Vargas por meio de uma quartelada.Depois de 1945, buscou incessantemente oapoio dos militares, alcunhando alguns de‘generais e almirantes do povo’. Ser ‘do povo’era comungar com a política do PartidoComunista Brasileiro e estar pronto paraatender ao chamado do partido em umaeventual aventura golpista. As célulasclandestinas do PCB nas Forças Armadaseram apresentadas como umademonstração de força política. À esquerdado PCB, havia os adeptos da guerrilha (...)

Em meio ao golpismo, o regimedemocrático sobrevivia aos trambolhões.Defendê-lo era, segundo a esquerda golpista/revolucionária, comungar com o desprezívelliberalismo burguês, ou, de acordo com adireita, com o odiado populismo varguista.Atacada por todos os lados, a democraciaacabaria sendo destruída, abrindo as portaspara duas décadas de arbítrios e violências.

fraestrutura, nas comunicações... E por aívai”, enumera ele, que não poupa de críti-cas os movimentos de luta armada.

“O regime militar,inicialmente, dava o arde uma intervenção ci-rúrgica, curta no tem-po. Basta ler o discursode Castello Branco quedisse que concluiria omandato iniciado em31 de janeiro de 1961.Portanto, haveria a elei-ção de outubro de 1965– eleição direta, claro. Ea posse do novo Presidente ocorreria em 31de janeiro de 1966 – pois o mandato era decinco anos, segundo a Constituição de 1946.Isso, como todos nós sabemos, não ocorreu.O aprofundamento da repressão tem rela-ção com o predomínio da linha dura, espe-cialmente após o AI-5, e teve a ‘colabora-ção’ da luta armada. Por ‘colaboração’ en-tenda-se, da seguinte forma: cada ato terro-rista jogava água no moinho da repressão,justificava sua ação e dava combustível parao extremismo de direita”, sentencia.

TRECHO

Veio 1964. E de novo foram construídasinterpretações para uso político, masdistantes da História. A associação do regimemilitar brasileiro com as ditaduras do ConeSul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) foi aprincipal delas. Nada mais falso. Oautoritarismo aqui faz parte de uma tradiçãoantidemocrática solidamente enraizada e quenasceu com o Positivismo, no final doImpério. O desprezo pela democracia foi umespectro que rondou nosso País durantecem anos de República. Tanto os setoresconservadores como os chamadosprogressistas transformaram a democraciaem um obstáculo à solução dos gravesproblemas nacionais.

Nos últimos anos se consolidou a versãode que os militantes da luta armadacombateram a ditadura em defesa daliberdade. E que os militares teriam voltadopara os quartéis graças às suas heróicasações. Em um País sem memória, é muitofácil reescrever a História. A luta armada nãopassou de ações isoladas de assaltos abancos, seqüestros, ataques a instalaçãomilitares e só. Apoio popular? Nenhum.

Este livro refuta as versões falaciosas.Deseja romper o círculo de ferro constituído,ainda em 1964, pelos adversários dademocracia, tanto à esquerda como à direita.Não podemos ser reféns, historicamentefalando, daqueles que transformaram oantagonista em inimigo; o espaço da política,em espaço de guerra.

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o longo de sua atribulada his-tória, o jornalismo impressovem sofrendo incontáveis

baixas. Parte delas causada pela com-petição e avanços na arte de imprimir,outras pelo inesperado aparecimento deplataformas mais ágeis e velozes (rádio,tv e internet – esta ainda em curso). Aprepotência, a fúria política e/ou o ter-ror econômico têm sido os grandes vi-lões deste massacre através de um ar-senal variado e letal onde se incluem em-bargos, intimidações, censura continu-ada, atentados, empastelamentos, pri-sões, exílio, assassinatos.

Ainda não se procedeu a um levan-tamento minucioso de todos os jor-nais, revistas e outros periódicos desa-tivados, desaparecidos e calados ao lon-go dos 21 anos da ditadura militar.Levará tempo para listá-los e, depoisdisto, definir os critérios que permiti-rão enquadrá-los como vítimas dosmalefícios do regime que imperou noPaís de 1964 a 1985.

Há que discutir se entrarão apenasas vítimas diretas do arbítrio e da in-tolerância ou também as vítimas indi-retas. Valerão os veículos desapareci-dos por “morte natural” (empresas jádecadentes que não souberam adap-tar-se aos novos tempos)? E aquelesque foram tão privilegiados durante a

POR ALBERTO DINES

ditadura que acabaram desabandoquando o fim do regime de exceçãofechou as torneiras do crédito fácil e dasmamatas (Manchete, revista semanale rede de tv extintos em 1999 e 2000)?

O esplêndido mensário Realidade,da Editora Abril, fechou as portas em1976. Teve edições apreendidas, foi cen-surado e sitiado pelos militares. Maso mercado publicitário poderia ter sidomais solidário. Um dado é indiscutí-vel, inquestionável: a imprensa alter-nativa, os nanicos (herdeiros do minei-ro Binômio dos anos 1950) nasceram,cresceram e multiplicaram-se no en-frentamento com o Golias da ditadu-ra. E foram aniquilados por ele.

Na década de 1970 do século pas-sado, em plena ditadura, deixaram decircular três importantes matutinos ca-riocas: O Jornal, Diário de Notícias eCorreio da Manhã. Apenas um deles,este último, foi abatido. Pode-se alegarque o jornal fundado por EdmundoBittencourt não foi fechado por expressadeterminação dos militares. Na fasefinal foi arrendado a um grupo deempreiteiros bilionários que fizeramfortuna à custa das obras faraônicasempreendidas durante o “milagre bra-sileiro” e espoliaram o combativo jor-nalão, incubando em suas páginas umsuplemento chamado Diretor Econômico

Um cemitério de jornais(que chegou a ter mais páginas do queo veículo-mãe).

Em 1972, o mesmo grupo comproude Samuel Wainer a sua Última Hora,sucessivamente revendida à Folha deS.Paulo e Ary de Carvalho, que viviaapregoando o bom relacionamentocom “os coronéis”. O valente vesperti-no, fundado por Samuel Wainer em1951, foi o único jornal que defendeuJoão Goulart até a sua queda. Por issoinvadido e incendiado pela turba. Coma Tribuna da Imprensa (fundada em 1949por Carlos Lacerda) travou um duelo queestendeu-se por três décadas. A Tribuna,primeira a pedir a derrubada do Presi-dente João Goulart e, junto com o po-deroso Correio da Manhã, pioneira norepúdio à ditadura instalada em segui-da à quartelada, só deixou de circularem 2001 (16 anos depois da redemo-cratização), mas foi paulatinamentedesvitalizada pela ditadura, principal-mente depois da morte de Carlos La-cerda (1977).

O aguerrido vespertino e o bravomatutino eram vizinhos de fundos naLapa carioca: um funcionava na Ruado Lavradio, o outro na Av. Gomes Frei-re, com seus nomes inscritos na facha-da e portão, fantasmas de um perío-do tenebroso.

Ainda estão lá.

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HISTÓRIA

O prédio da Tribuna da Imprensa depois do atentado de março de 1981: a potência da bomba destruiu as instalações da oficina do jornal.

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uarenta anos atrás, no dia1º de abril de 1964 acordeisobressaltado. Na televi-

são, a voz arrogante de Flavio Caval-cante anunciava a vitória dos golpis-tas e a fuga, de Brasília, do PresidenteJoão Goulart. Na tela, surgiam imagensde lençóis brancos nas janelas de algunsprédios da Zona Sul do Rio de Janei-ro. Comemoravam o fim do GovernoJango e o início de uma prolongadaditadura militar.

As perseguições que se iniciaram apartir de então não perturbaram a roti-na das ruas – pelo menos até 1967 a 1968– mas eram reais. Arrastaram muitagente, na penumbra. Levaram parentese amigos. Seqüestravam as pessoas e,às vezes, faziam-nas imergir no loda-çal insondável do “desaparecimento”.

À noite, casas e mentes eram inva-didas, enquanto os cães uivavam nosquintais e o vento investia contra assombras. A casa dos meus pais foi ocu-pada. Prenderam minha mãe – doce einofensiva mulher de 50 anos –, meuirmão e minha cunhada. Transforma-ram a casa numa espécie de papel pega-mosca: quem tocava a campainha caíana armadilha.

Dirigente sindical na Petrobras, fuilogo procurado pelos agentes da repres-

são. E cassado. Com a ajuda de LuísCarlos, funcionário da empresa que eujamais vira antes, mas que me levouaté a Embaixada do México, na Praiado Flamengo, escapei e parti para oprimeiro exílio. Antes de embarcar, viviuma experiência claustrofóbica, numapartamento ocupado por mais de 60pessoas que se odiavam e pareciamratos de laboratório.

No México de Lopes Mateus, conhecio lendário Lázaro Cardenas, visitei Aca-pulco, estive em La Quebrada, para vermergulhadores que pareciam pássaros,e sobrevivi a um terremoto. Depois, descipela Costa do Pacífico, com OsmildoStafford e Humberto Pinheiro, até oChile. Então, Argentina e Uruguai.

Vivi quase clandestinamente, apósregressar do primeiro exílio, pela fron-teira com o Uruguai, em Rivera e San-tana do Livramento. Consegui meuprimeiro emprego na Agência Reuter,com a ajuda de Luís Gazzaneo, em1965. Na cobertura da Conferência daOEA, no Hotel Glória, Aristélio An-drade, Milton Coelho, Maurício Azêdoe eu criamos uma comissão de jorna-listas que preparou um texto com de-núncias contra o regime militar. Coma ajuda de Lygia Sigaud e dos mem-bros da comissão, o texto foi distribu-

“Hoje, posso dizer que estive na guerra.Estivemos todos, na verdade. Durante

vinte anos, enfrentamos o regime militarimplantado no Brasil em 1964.”

ído dentro do hotel, para o desesperoda polícia política.

Na esteira do AI-5, no final de 1968,mudei-me para São Paulo, onde fui pre-so, em 1975. As torturas a que me sub-meteram, nos portões do Doi-Codi, dei-xaram seqüelas que até hoje não con-sigo avaliar com precisão. Mas creioque o seu efeito mais perverso é umasensação insuperável de isolamento,um sentimento de solidão que se ins-talou para sempre.

No dia 1º de abril de 1976, doze anosdepois do golpe militar, a Segunda Au-ditoria de Guerra, em São Paulo, de-cretou minha prisão preventiva. Au-torizado a me defender em liberdade,deixei de comparecer semanalmenteao gabinete do Delegado Sérgio Fleu-ry – e me encontrava “em lugar igno-rado e não sabido” (SIC). Na verda-de, eu fugira para a Argentina, atra-vessando clandestinamente a frontei-ra, em Foz do Iguaçu. Ao receber car-tas e telefonemas de uma organizaçãoque se dizia “O Braço Armado da Re-pressão”, decidi sair do País para umsegundo exílio.

Da Argentina fui para o Peru. Masacabei em Montreal, no Canadá, ondetrabalhei durante dois anos como“announcer producer”, na “Canadian

REFLEXÕES

Memóriasamargas

POR RODOLFO KONDER

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretorda Representação da ABI em São Paulo e membrodo Conselho Municipal de Educação da Cidade deSão Paulo.

Q Broadcasting Corporation”. Participeide encontros internacionais, entreipara a Liga dos Direitos Humanos, es-quiei nas Lawrentian Mountains. De-pois, morei quase um ano em NovaYork, como correspondente do jornalVersus, dirigido por Marcos Faerman.

Após meu regresso ao Brasil, em ou-tubro de 1978, fui intimado a prestardepoimento na Polícia Federal. Durantetrês horas, fizeram-me perguntas, napresença do meu advogado, Jose Ro-berto Leal, e do Vice-Presidente do Sin-dicato dos Jornalistas, Fernando Mo-raes. Mas o clima era de respeito. Aabertura política se esboçava.

Hoje, posso dizer que estive naguerra. Estivemos todos, na verdade.Não combatemos na Coréia, nem noVietnã, nem no Chade, nem na Cro-ácia, mas estivemos na guerra. NaGuerra Fria. Durante vinte anos, en-frentamos o regime militar implan-tado no Brasil em 1964 – quarentaanos atrás. Não podemos esquecer,até porque os demônios do autorita-rismo e da intolerância ainda nos es-preitam, na sombra.

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Tropas na rua, tiros para o alto, ambi-ente conturbado, falta de informações.Para jornalistas e personalidades que vi-venciaram o dia em que o golpe militar defato se consumou, essas são as principaislembranças do 1º de abril de 1964. Elescontaram ao Jornal da ABI o que viram,ouviram e sentiram. Morador da região doPosto 6, em Copacabana, o jornalista CarlosHeitor Cony se recuperava em casa de umaoperação de apendicite quando foi avisa-do naquela manhã pelo poeta CarlosDrummond de Andrade, seu vizinho, so-bre uma grande movimentação nas ruas.“Morávamos em ruas paralelas e nos vía-mos pelas áreas de serviço, dava até paraconversar. Num dado momento, passeipela minha área e ele me acenou, dizendoque havia uma confusão no Posto 6 e meconvidando para ir lá. Falei que tinha sidooperado, e ainda por cima estava chuvis-cando, mas ele disse que levaria um guar-da-chuva. Quando desci, ele já estava láembaixo me esperando.”

Cony e Drummond rumaram para apraia. “Era por volta das 11 ou 11 e meia damanhã. Ficamos ali, a dois quarteirões doForte de Copacabana, olhando. Havia umaconfusão muito grande, com viaturas doExército na Avenida Atlântica. O GeneralOlímpio Mourão Filho estava chegando aoRio com suas tropas, vindo de Minas. Amaioria dos quartéis já tinha aderido, mashavia a expectativa de alguma reação noForte de Copacabana, como no episódio dos18 do Forte”, conta o jornalista. “Nós nosaproximamos da entrada do forte e daí apouco chegou o coronel Montagna. Quan-do ele ia entrando, o soldado que estava desentinela tentou barrá-lo, mas o coronel lhedeu um tapa e entrou”, narra Cony.

Em seguida, ele e o poeta presenciaramuma cena de brutalidade explícita. “Dian-te de todos aqueles militares, um operá-rio de uma obra gritou um ‘Viva Brizola!’.Então, um oficial da Marinha, à paisana,começou a chutá-lo e o derrubou no chão.Deu mais uns chutes no operário e lheapontou um revólver. Ninguém em vol-ta reagiu. O oficial ainda deu um tiro parao ar”. Assustados com o que poderia acon-tecer, Cony e Drummond correram paraa areia da praia em busca de refúgio. “ODrummond ainda falou: ‘Já houve san-gue nessa areia, mas um raio não cai duasvezes no mesmo lugar!’. Quando vimosque não ia sair tiroteio, voltamos para apista da Atlântica.”

Foi aí que o jornalista assistiu a umacena entre ridícula e grotesca, protagoni-

uma crônica de rua. Depois disso é que co-mecei a escrever textos mais políticos”, dizCony. A crônica, Da Salvação da Pátria,foi publicada em 2 de abril (leia na ínte-gra na página 22). “Meses depois, o Drum-mond escreveu uma crônica para a filhadele em que narrou o mesmo fato, mas semo tom de gozação.”

O jornalista passou o resto do dia emcasa, convalescente, ouvindo pelo rádioas notícias sobre o golpe – algumas delasrelatadas por repórteres que tinham idoao Forte de Copacabana. Como a sede daextinta TV Rio ficava ali em frente, al-guns de seus artistas foram entrevistados.

“Lembro do Flávio Cavalcanti (apresen-tador de tv), que era a favor do golpe, fa-lando do tapa do coronel Montagna”, dizCony. E políticos: “Eram o Adhemar deBarros (Governador de São Paulo) rezan-do contra o comunismo, o Carlos Lacer-da (Governador da Guanabara) falandoque o comunismo ia acabar...”.

Disparos na multidãoO advogado e ex-Deputado Modesto

da Silveira também presenciou cenas dra-máticas naquele dia 1º. Ele chegou de ma-nhã à Cinelândia com o intuito de assis-tir a um comício em apoio ao PresidenteJoão Goulart. “Já havia bastante massa,mas nenhum líder, exceto o Roland Cor-busier (filósofo e um dos criadores doInstituto Superior de Estudos Brasileiros,Iseb), que me disse que também estava es-tranhando. Pouco depois, a liderança,entre aspas, que chegou foram os tanquesdo Exército vindo pela Avenida Rio Bran-co”, relembra Modesto.

A princípio, os blindados foram bemrecebidos. “A massa entendeu que eles se-riam para apoiar o governo oficial e aplau-diu. Aí os tanques voltaram seus canhõescontra o povo. A massa entendeu queeram inimigos e começou a vaiá-los. Sóque, por trás dos tanques, vinham solda-dos do Exército com fuzis e baionetas ca-ladas (armadas em posição de ataque), quechegaram já quase agredindo o povo. Foiquando, do meio da multidão, surgiramprovavelmente dois representantes bra-sileiros da CIA com roupas civis e botasmilitares. Eles atiraram em direção àmassa e um homem foi atingido, caindoperto de mim. Os dois atravessaram apraça em direção ao Clube Militar e osportões se abriram um pouco para eles en-trarem. O povo foi se dispersando, comsubmissão à força.”

Modesto da Silveira despediu-se deCorbusier e rumou para seu escritório, naRua Álvaro Alvim, bem perto dali. “Quan-do cheguei, já lá estavam várias pessoas, namaioria mulheres, sentadas, de mãos da-das, pedindo socorro. ‘Meu pai desapare-ceu, meu filho sumiu’, diziam. Sabiam queeu tinha alguma vivência política, era pro-gressista e concordava com as reformas doJango. Anotei cada caso e cheguei à con-clusão de que todos tinham sinais de se-qüestro político”, narra Modesto.

Ele decidiu ir até o Dops (Departamen-to de Ordem Política e Social), tambémno centro do Rio, para tentar se informar.“Mas o ambiente estava tão pesado queresolvi, taticamente, esperar no bar DonJuan, que ficava em frente. Enquanto to-mava um cafezinho, observando tudo,chega o Sobral Pinto, decano dos advoga-dos e que trabalhava inclusive para o La-cerda. Ele tentou entrar no Dops e nãoconseguiu. Percebi que ele provavelmen-te fora lá pela mesma razão que eu. Apro-ximei-me dele, disse a que estava ali e per-guntei se deveria voltar para o escritório.‘Faça isso, meu filho. Vá cuidar dos seushabeas corpus’, ele respondeu. Naquelemomento, era o possível a fazer.”

Já o crítico e pesquisador musical JoséRamos Tinhorão dá uma sonora risada

Testemunhasde um dia negro

POR MÁRIO MOREIRA

zada por outro oficial. “Ele começou a pegaruns paralelepípedos e a fazer uma peque-na barricada, que não chegava a meiometro de altura. Perguntei para quê. ‘É paradeter os tanques do 1º Exército!’. Ele ima-ginava que poderiam vir tropas a favor doJango para tentar retomar o forte.”

Cony e Drummond decidiram entãovoltar para casa. “Quando cheguei, o Alo-ísio Branco, secretário do Correio da Ma-nhã, onde eu trabalhava, tinha telefona-do pedindo uma crônica. Na época, eu es-crevia crônicas de rua. Então, contei acena que tinha acabado de ver. Não foiuma crônica política, mas, literalmente,

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE

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Soldados do Exército montam guarda em Juiz de Fora (MG), no dia 1º de abril de 1964.

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quando lembra daquele 1º de abril: “Foio dia da minha demissão da TV Excelsi-or!”. Tinhorão era o redator principal dojornal das 19h45 da emissora. “O prédioficava na Avenida Venezuela (zona por-tuária do Rio). O elevador parecia de fil-me do Hitchcock: daqueles grandes, decarga, com porta pantográfica. A direto-ria ficava embaixo, e a gente subia até aRedação. O Mário Wallace Simonsen(empresário dono da Excelsior e da Pana-ir) vivia em Paris. Então, quem dirigia aTV era o Wallinho, filho dele.”

As lembranças de Tinhorão sobre ogolpe começam na véspera, 31 de março.“Ao chegar para trabalhar, vi um pelotãodo Exército vindo em sentido contráriopara tomar o Sindicato dos Marítimos,que era muito atuante”, conta. “À tarde,quando eu fazia a triagem para o jornal,chegou um tenentinho que fumava mor-dendo o cachimbo e disse que queria vertodo o material. Àquela altura, todas asnotícias que chegavam eram sobre a pos-sibilidade de algo que estava para arre-bentar. O tenentinho olhava o papel, li-gava para o órgão de informações do Exér-cito e lia baixinho o que eu tinha escrito.Depois, riscava um X em vermelho emquase tudo”, narra Tinhorão. “Todo o no-ticiário da Excelsior era muito governis-ta, porque o Jango tinha segurado um pro-cesso contra o Simonsen por especulaçãocom dólares, já que ele era também o maiorexportador de café do Brasil e, em vez detrazer logo os dólares recebidos, especu-lava com eles no exterior”, relembra.

Com tantas informações censuradaspelo tenente, a situação foi ficando dra-mática para o telejornal daquela noite.“Às cinco e pouco, pelo volume de coisasvetadas, pensei comigo que só teria notí-cias de esporte para pôr no jornal. Entãodesci da Redação, fulo da vida, para ir àsala do Wallinho. No elevador, encontreio Miguel Gustavo (jornalista, composi-tor da marcha Pra Frente, Brasil e, na épo-ca, diretor da Excelsior) com três homensde terno a quem ele estava servindo de ci-cerone. Falei: ‘Miguel, não vai ter jornal!Mandaram um tenentinho gorila que ris-ca tudo! Não vai ter notícia para susten-tar o jornal no ar!’. O Miguel ficou impá-

vido, com um meio sorriso, olhando paramim”. Tinhorão voltou à Redação e man-dou o jornal para o ar do jeito que pôde,sem que ninguém da direção lhe dissessenada. “Volto no dia seguinte, começo a me-xer nuns telex e o Hélio Polito, chefe daRedação, me chama à salinha dele. ‘Vocêestá demitido’, ele falou. ‘Mas por quê?’‘Sabe ontem no elevador? Aqueles trêseram coronéis do Exército. Eles mandaramo Miguel Gustavo te demitir.’ Pô, o próprioMiguel é que tinha que ter me avisado!”

A cerca de 180 km do Rio, na mineiraJuiz de Fora – justamente de onde partiramas tropas do general Mourão –, um jovemde 20 anos tentava tomar pé da situação,sem saber muito bem o que fazer. O entãomilitante de esquerda (e, muitos anos maistarde, diretor-superintendente da poderosaGlobo Vídeo) Roberto Mendes fazia facul-dade na universidade federal da cidade, tra-balhava em movimentos de educação debase e militava na AP (Ação Popular). Sualembrança também começa na véspera. “Euestava no MEB (Movimento de Educaçãode Base), trabalhando, quando chegou umapessoa do Partidão dizendo que havia ummovimento na cidade e que lideranças sin-dicais estavam sendo presas. Telefonei parao meu irmão, que era sargento do Exército,mas a mulher dele disse que ele já tinha sidoincorporado às tropas do Mourão.”

Mendes era vice-diretor de Cultura doDiretório Central dos Estudantes. Apóso famoso comício da Central, no dia 13,em que Jango discursara com veemênciasobre suas “reformas de base”, o DCE con-vidara o Governador de Pernambuco,Miguel Arraes, aliado do Presidente, parafalar aos estudantes. O Exército, porém,vetara a realização do encontro em pra-ça pública – a solução foi conseguir umcinema emprestado. “Isso foi lá pelo dia15 ou 20. Já era para desconfiar, mas nãodesconfiamos. Só no dia 31 é que caiu aficha”, diz Mendes.

O então estudante orientou o moto-rista do MEB a encher o tanque do carroe um galão adicional para algo que osquatro integrantes do movimento alipresentes não sabiam bem. À noite, jáhavia uma verdadeira caça aos “comunis-tas” de Juiz de Fora, e os postos de gaso-

lina locais estavam fechados. “Como tí-nhamos bastante gasolina, imaginamosvir para o Rio por uma rota diferente darodovia União e Indústria, talvez paraprocurar a Une. Mas foi só um sonho. Que-ríamos nos juntar com alguém.” Outrapossibilidade, lembra ele, seria produzircoquetéis molotov. “Mas não sabíamosbem como usar”. Os membros do MEBdecidiram então se dividir, rumando parasuas bases no interior de Minas. “No dia1º fui para Rio Pomba, perto de Mercês,onde nasci. O problema é que a gente sedispersou e, quanto mais ia para o interior,menos notícias tinha. Três dias depois,estávamos de volta a Juiz de Fora, e o DCEjá estava invadido.”

Roberto Mendes acabou preso porvolta do dia 8 ou 9. “Mas os militares nãoestavam treinados. A primeira perguntaque o coronel responsável pelo inquéri-to me fez foi: ‘Na sua mesa havia umafoto do Fidel Castro. Por quê?’. ‘Porquesaiu na Paris Match’, respondi. Se isso ti-vesse acontecido em 1974, na minha se-gunda prisão, eu levava um catiripapo.Mas vi o olhar imbecil do coronel e aca-bei ficando só um dia na prisão.”

O caso não acabou aí. “Lá pelo dia 11,o Juscelino Kubitschek (ex-Presidente)foi cassado. Quando o coronel, que era jus-celinista, ficou sabendo, engavetou tudoe sumiu. As perguntas já eram tão bobasque ele aproveitou e desistiu”, diz Men-des, rindo. “Nem no meu habeas data hámenção a esse inquérito”. Ele acabou fu-gindo para o Rio, onde conseguiu transfe-rência para a UEG (Universidade do Esta-do da Guanabara, hoje Uerj) e para o MEBnacional, em que ficou responsável pelasregiões Norte e Nordeste. “Pude continu-ar meus estudos e meu trabalho. Acabousendo um tremendo impulso para mim.”

Lembranças da adolescênciaAinda adolescentes por ocasião do gol-

pe, os jornalistas Juca Kfouri e RicardoKotscho têm recordações menos vívidasdaquele dia em São Paulo. “Tinha acaba-do de completar 14 anos e a única lem-brança que tenho é do meu pai, promotorde Justiça e um liberal clássico, ouvindoo discurso do Castello Branco e dizendo

para minha mãe, aparentemente iludidacom o compromisso ‘democrático’ do ge-neral: ‘Não tenha dúvida, Luiza, isso nãovai levar menos de 20 anos’. Infelizmen-te, ele tinha razão.”

Na medida de suas possibilidades, Jucapôs as mãos à obra. “Em seguida, diretorde Esportes que era do grêmio de minhaescola, o Colégio Estadual Ministro CostaManso, participei da organização de uma‘Vigília pela Democracia’, que consistiuem manter a escola acesa durante toda amadrugada em sinal de protesto contra ogolpe, devidamente incentivada pelo di-retor, o professor Athos Ferreira da Silva,irmão do jornalista e editorialista do Es-tadão, Oliveiros Ferreira, que apoiava aquartelada”, conta Juca. “A tal vigíliateve foto no Diário de S. Paulo, para nos-so enorme orgulho. A legenda dizia algoassim: ‘A meninada do Costa Manso pro-testa’”, relembra ele. Segundo Juca, ogolpe acabou por induzi-lo à ação políti-ca. “Quatro anos depois já estava no apoioda ALN (Ação Libertadora Nacional), fuimotorista do ‘Velho’ Joaquim Câmara, o‘Toledo’, além de tê-lo escondido e assimmantido durante quase um mês. Enfim,o golpe foi fartamente responsável pelaminha precoce formação política.”

No caso de Ricardo Kotscho, entãocom 16 anos, o principal sentimentocom a notícia foi o de temor. “Lembro-meque fomos dispensados das aulas no LiceuPasteur porque algo de muito grave esta-va acontecendo no País, mas eu não tinhamuita idéia da gravidade da situação. Aover as edições extras de jornais e revistas,fiquei com medo do que poderia aconte-cer. Filho de imigrantes que vieram aoBrasil depois da Segunda Guerra, de tan-to ouvir histórias sobre o que sofreram,tinha muito medo de violência, tanquesnas ruas, soldados e generais”. O jornalis-ta diz não se recordar de nenhuma mobi-lização de estudantes, amigos ou vizinhos,fosse ela contra ou a favor do golpe. “Nãolembro de nada disso. Eu era, como se di-zia, um alienado...” Poucos meses depois,porém, Kotscho arrumou seu primeiroemprego como jornalista. “Sou, portanto,contemporâneo do golpe e este ano estoucompletando 50 anos de profissão.”

NIVALDO/UH/FOLHAPRESS

Após adivulgaçãoda notícia darenúncia deJoão Goulart,estudantes doMackenzieseguiram empasseata atéa Praça daRepública,em São Paulo,onde fizeramum comício deapoio ao golpe(esquerda). NoRio de Janeiro,tanques doexércitoseguem pelaRua dasLaranjeirascom apoio dapopulação.

ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE TESTEMUNHAS DE UM DIA NEGRO

osto em sossego por uma cirur-gia e suas complicações, eis queo sossego subitamente se trans-

forma em desassossego: minha filhasurge esbaforida dizendo que há revo-lução na rua.

Apesar da ordem médica, decido in-terromper o sossego e assuntar: ali noPosto Seis, segundo me afirmam, hábriga e morte. Confiando estupidamen-te no patriotismo e nos sadios princí-pios que norteiam as nossas gloriosasForças Armadas, lá vou eu, trôpego eatordoado, ver o povo e a história que ali,em minhas barbas, está sendo feita.

E vejo. Vejo um heróico general, à pai-sana, comandar alguns rapazes naquiloque mais tarde o repórter da TV-Rio cha-mou de “gloriosa barricada”. Os rapa-zes arrancam bancos e árvores. Impe-dem o cruzamento da Av. Atlântica coma rua Joaquim Nabuco. Mas o generaldestina-se à missão mais importante egloriosa: apanha dois paralelepípedose concentra-se na brava façanha de co-locar um em cima do outro.

Estou impossibilitado de ajudar osgloriosos herdeiros de Caxias, mas ven-do o general em tarefa aparentementetão insignificante, chego-me a ele e,antes de oferecer meus préstimos pa-trióticos, pergunto para que servemaqueles paralelepípedos tão sabiamen-te colocados um sobre o outro.

– General para que é isto?

Publicado originalmente no Correio da Manhã de 2de abril de 1964.

POR CARLOS HEITOR CONY

Jornal da ABI

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Olho o chão. Por acaso ou não, os doisparalelepípedos lá estão, intactos, in-vencidos, um em cima do outro. Vou láperto, com a ponta do sapato tento der-rubá-los. É coisa relativamente fácil.

Das janelas, cai papel picado. Senho-ras pias exibem seus pios e alvacentoslençóis, em sinal de vitória. Um cadi-llac conversível pára perto do “Six” esurge uma bandeira nacional. Cantamo Hino também Nacional e declaramtodos que a Pátria está salva.

O intrépido soldado não se dignouolhar-me. Rosna, modestamente:

– Isso é para impedir os tanques doI Exército!

Apesar de oficial da Reserva – ou tal-vez por isso mesmo – sempre nutri pro-funda e inarredável ignorância em as-suntos militares. Acreditava, até então,que dificilmente se deteria todo umExército com dois paralelepípedos naesquina da rua onde moro. Não digonem pergunto mais nada. Retiro-meà minha estúpida ignorância.

Qual não é meu pasmo quando, dalia pouco, em companhia do bardo CarlosDrummond de Andrade, que desceraà rua para saber o que se passava, ouçopelo rádio que os dois paralelepípedosdo general foram eficazes: o I Exérci-to, em sabendo que havia tão sólida re-sistência, desistiu do vexame. Aderiuaos que se chamavam de rebeldes.

Nessa altura, há confusão na AvenidaNossa Senhora de Copacabana, pois nin-guém sabe ao certo o que significa “ade-rir aos rebeldes”. A confusão é rápida.Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não,aderem, que a natural tendência dahumana espécie é aderir.

Os rapazes de Copacabana, belos es-pécimes de nossa sadia juventude, bemnutridos, bem fumados, bem motori-zados, erguem o general em triunfo. Vejoo bravo cabo-de-guerra passar em gló-ria sobre minha cabeça.

Minha filha, ao meu lado, exige umaexplicação para aquilo tudo.

– É carnaval papai?– Não.– É campeonato do mundo?– Também não.Ela fica sem saber o que é. E eu tam-

bém fico. Recolho-me ao sossego e sintona boca um gosto azedo de covardia.

Da Salvação da Pátria

P

O fotógrafo Evandro Teixeira fez este registro memorável da tomada do Forte de Copacabana.

Publicado originalmente no Correio da Manhã de2 de abril de 1964.

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23JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

O dia 1º de abril de 1964 amanheceuagitado na sucursal da revista O Cruzeiro,da qual eu era o chefe de Redação. Da sededa revista, no Rio, haviam disparado telexpedindo cobertura sobre a repercussão davitória da "revolução" – era assim que já ha-viam batizado o golpe militar. Queriamcobertura completa, com urgência, pois arevista sairia com edição extra.

Não havia muito que fazer diante dofato consumado. O principal seria colherdeclarações de personalidades envolvidasna conspiração, entre as quais o Governa-dor do Estado, Adhemar de Barros, um dos"pilares civis" do golpe.

As informações ainda eram obscuras.Restava alguma esperança de "reação po-pular", o importante era sentir o climanas ruas.Na Redação, os mais otimistasbuscavam consolo na possibilidade de umcontra-golpe, uma mobilização como aque fora vitoriosa no Rio Grande Sul, em1961, comandada por Leonel Brizola, eque terminara garantindo a posse do Vice-Presidente João Goulart, que os militarestentavam impedir.

Em 1964 eu era quartanista na Facul-dade Nacional de Direito, cujo diretórioacadêmico era o famoso Caco (CentroAcadêmico Cândido de Oliveira), de pas-sado glorioso na luta pelas grandes causasnacionais, dentre elas a campanha doPetróleo é Nosso. Apesar de não estarocupando cargo eletivo no Caco, ondefora secretário na gestão Brandão Mon-teiro e vice-presidente na gestão WalterSantos, naquele dia primeiro de abril de1964 eu estava na faculdade, desde cedo,formando fileiras com os demais colegasque se propunham a lutar contra o golpeiniciado na véspera a partir de uma guar-nição militar de Juiz de Fora.

Sem tv e sem internet, nossa únicafonte de informação era uma grande e ve-lha rádiovitrola que funcionava no salãosocial do Caco. Guardo até hoje em mi-nha memória as palavras cheias de ódioproferidas pelo Governador Carlos Lacer-da, entrincheirado no Palácio Guanaba-ra, cercado por tropas da polícia militar:“vem aqui, Almirante Aragão, vem aquique eu vou te matar com o meu revólver”.

À medida que as horas passavam, asnotícias eram as mais desencontradas.Diziam que haveria um confronto entretropas do I Exército, leais ao PresidenteJoão Goulart, e as que vinham de Minas,engrossadas pelas de São Paulo, em dire-ção ao Rio. Em rápida reunião, por voltade uma da tarde, o Caco iniciou uma mo-bilização popular na Central do Brasil,convocando os trabalhadores a resisti-rem ao golpe. Também em frente à facul-dade, num palanque improvisado, orado-

“Estamos fodidos”

“Não tenho tempo aperder com estudantes”

res iam arregimentando populares para aresistência.

Mas, como resistir? Discursos apenasnão bastavam. A ducha de água fria veioquando um dos diretores do Caco ligoupara o Almirante Aragão, comandantedos Fuzileiros Navais, para informar queno Largo do Caco havia mais de 2 mil pes-soas, convocadas pelos estudantes, dis-postas a resistir, mas que precisavam doapoio logístico militar. A resposta deAragão soou como uma decepção naquelemomento: “Não tenho tempo a perdercom estudantes”.

No final da tarde, dois tanques doExército Brasileiro dobraram a Rua Mon-corvo Filho vindos da Praça da Repúbli-ca e se posicionaram em frente à faculda-de. Os estudantes aplaudiram, afinal eramtanques do I Exército, aliado do GovernoCentral. Uma nova decepção. Aquelestanques já eram dos golpistas, e tinham amissão de esvaziar a faculdade e prenderquem resistisse.

A nós, heróis da resistência, restou fu-gir em direção ao Campo de Santana paranos abrigarmos das balas da Polícia Civilde Lacerda. Com a chegada da noite, al-guns remanescentes foram até a AvenidaPresidente Vargas para vaiar e atirar pe-dras nos carros que passavam com bandei-ras do Brasil, buzinando e comemorandoa vitória do golpe militar, que levou o Bra-sil à noite escura que durou 21 anos, cu-jos porões estão sendo abertos agora, 50anos depois.

Uma história que não podemos permi-tir que se repita.

Na verdade, o golpe frustrado em 1961acabara de ser desfechado e, na visão dosmais atentos, vinha com força para durarmuitos anos. Essa perspectiva era recebi-da com dúvida e raiva. Nas ruas, as discus-sões não eram muito diferentes. Não hou-ve grandes manifestações, ao contráriodas notícias que vinham do Rio, dandoconta de "marchas da vitória" e de chuvasde papel picado caindo das janelas dos edi-fícios de apartamentos e de escritórios.

A corrida atrás de notícias não foi tãodifícil quanto a gradativa certeza, entreo pessoal da sucursal, de que não haveriareviravolta. O golpe estava consolidado.

Já tarde da noite, quando fui buscar ocarro no estacionamento de sempre, narua da Consolação, o guardador, curioso,quis saber das últimas notícias:

– E então, doutor, como estão as coisas?Respondi com uma frase impublicável:– Estamos f....E o guardador:– Outra vez, doutor?Daquela vez, a coisa duraria vinte e

um anos!

ELIAKIM ARAÚJO

AUDÁLIO DANTAS

Soldados do Exército ocupam a Avenida Rio Branco, em frente à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

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Tanques e veículos do Exército tomam as ruas de São Paulo no dia1º de abril. Ao fundo, à esquerda, o letreiro do jornal Última Hora.

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24 JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

A postura de apoiar um golpe militar em1964, tomada pela maioria dos grandesjornais brasileiros nos três primeiros mesesdo ano, fez com que isso se refletisse notrabalho de seus cartunistas. Era preciso teruma coerência entre o que pensavam e de-fendiam os empresários e o tipo de críti-ca natural que os artistas do humor gráfi-co tomariam diante daqueles tensos acon-tecimentos – que se prolongaram ao lon-go do ano. O diário Última Hora, com edi-ções em São Paulo, Rio de Janeiro, PortoAlegre e Recife, foi um dos poucos a de-nunciar o clima golpista que pairava no are a defender a preservação do regime de-mocrático que tinha colocado João Gou-

lart no poder em 1961, após a renúncia deJânio Quadros, em agosto daquele ano.Portanto, fez um combate ostensivo con-tra a subida dos generais e marechais aopoder pela derrubada de Jango.

Jaguar, seu cartunista e o mesmo quedepois participou da equipe que fundouO Pasquim, em junho de 1969, destacou-se pela coragem e contundência de seusdesenhos ao longo dos oito meses seguin-tes. No dia 8 de dezembro, por exemplo,ele não perdoou o governador Carlos La-cerda, da Guanabara, um dos líderes civisdo movimento golpista. De olho nas elei-ções presidenciais de 1965, que logo seri-am canceladas, ele apoiava os militares,mas articulava com o inflamado e alar-mista partido da União DemocráticaNacional (UDN) maior participação po-lítica no novo governo. Logo começaramos embates dele com o governo do gene-ral Humberto de Alencar Castello Bran-co, principalmente com o Ministro doPlanejamento, Roberto Campos. O car-tunista Fritz participou da frente de hu-mor do mesmo jornal, que mostrava as in-coerências e contradições da ditadura quecomeçava. Ao retratar Castello Brancocomo Napoleão, em 18 de dezembro, elerepresentou a opinião do Última Hora, deconsiderar o general um ditador, que secolocava acima das críticas e baixou umasérie de atos institucionais contra as li-berdades políticas e individuais.

Ainda em 1964, no mês de setembro,chegou às livrarias a antologia HayGobi-erno?, com cartuns de três dos mais impor-tantes e atuantes cartunistas daqueles

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE

HUMOREXEMPLAR

Jornais como Última Hora e Pif-Paf se tornarampersonagens da história do País como exceções contra aqueda de Jango, com forte aposta em humor gráfico.

POR GONÇALO JÚNIOR

humor impresso: o lançamento do tablói-de-revista Pif-Paf, sob o comando editorialde Millôr Fernandes. Para ajudá-lo, comodiretor de arte, ele convidou EugênioHirsch, que se tornou também fotógrafo,chargista e humorista do tablóide, sem in-terromper a produção de capas que faziapara a Civilização Brasileira e algumasoutras editoras. Os dois se juntaram pararealizar uma das experiências mais inten-sas e importantes de suas vidas, que resul-tou em marco da imprensa nacional.

Quando se falaria depois que em jor-nalismo de resistência à ditadura nãohavia o que discutir: que tudo começaracom o Pif-Paf. A história da publicação nãofaz justiça a dois personagens ligados à suaorigem: Yllen Kerr e Marina Colasanti.Ela conta que Yllen era “o melhor amigode Millôr, e excelente ilustrador e jorna-lista”, e fora ele quem indicou Eugênio aMillôr – versão, aliás, confirmada por Zi-raldo. Ele recorda: “Eu teria que percorreros oito números do Pif-Paf para te dizercom exatidão onde Yllen contribuiu. Euescrevi artigos e fui até avalista. Mas ofato principal é que nós três éramos muitoamigos, estávamos sempre juntos (eu na-morava Millôr naquela época) e, de fato,demos um tremendo suporte para que arevista acontecesse”.

Muito antes de se tornar dramaturgo,tradutor e filósofo do cotidiano, Millôr foi

tempos, Claudius, Jaguar e Fortu-na, pela editora Civilização Brasi-leira, do editor Ênio Silveira, entãoum foco de resistência contra o regi-me militar. O volume tinha prefá-cio de Paulo Francis e fazia parte daColeção O Homem que Ri, volumetrês, com capa do artista gráficoaustríaco naturalizado brasi-leiro Eugênio Hirsch. A seuestilo, Francis enchia mais abola de Fortuna em relação aosseus futuros companheiros de OPasquim: “Dos três humoristas,Fortuna me parece o mais políti-co. Seu desenho é sombrio, às vezesfantasmagórico, criando a atmos-fera ideal, pelo contraste, para seuponto de ataque, sempre direto econciso”. Fortuna se mostrou um críticosevero e irônico do golpe militar de 1964,quando publicava charges nas páginas dojornal Correio da Manhã. Segundo os ar-tistas, o volume era dedicado ao náufra-go espanhol que, chegando a uma ilha nãodeserta, perguntou se havia governo equando lhe disseram que sim, ele respon-deu: ‘Soy contra!’ O tom da nota mostraque os autores, assim como diziam os ge-nerais, não estavam ali para brincadeira.

Nem sempre a posição do jornal impe-dia certa postura contrária dos cartunistasà movimentação de direita que teria luta-do contra um nunca provado plano comu-nista de tomar o poder no Brasil. Comoaconteceu em O Estado de S. Paulo, com ahumorista Hilde Weber, nascida na Ale-manha, mas que migrou para o País com 19anos de idade, em 1932. Nessa época, Hildejá tinha trabalhado como ilustradora de re-vistas e jornais alemães. Trabalhou pormuito tempo na Tribuna da Imprensa, deCarlos Lacerda. Com a venda do jornal, em1962, ela se mudou definitivamente paraSão Paulo, onde viveu como chargista deO Estado de S.Paulo por décadas. Em 1964,publicou vários cartuns em que usava a iro-nia como tomada de posição diante dosfatos políticos daquele ano.

Logo após o golpeMas foi um acontecimento no mês se-

guinte ao golpe militar que funcionariacomo resposta de importantes artistas do

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jornalista, frasista, fabulista e humoristanas páginas da revista O Cruzeiro, de AssisChateaubriand, uma espécie de programaFantástico, da Rede Globo, nas décadas de1940 e 1950. Adorava criar frases de efeitopara tirar sarro do comportamento huma-no e de política. Porque, justificava ele, otempo passa, os fatos se renovam, mas a ati-tude das pessoas pouco muda: nos relacio-namentos, no vício de “desviar” recursospúblicos – no caso do Brasil –, na forma defazer graça do amigo cujo clube de futebolfoi derrotado no domingo. Foi assim, porduas décadas, entre 1945 e 1962, quando en-carnou o personagem Vão Gogo. O próprioartista esclareceu depois que seu persona-gem nada tinha a ver com Vincent Van Gogh(1853-1890), pintor holandês que cortou aprópria orelha. “Vão – tolo, idiota – e Gogo,que é doença de galinha, boquirroto”.

Mais tarde, Millôr criou Emanuel e ocolocou na frente do nome – que veio dofilósofo prussiano Emanuel Kant (1724-1804). “Botei assim, de brincadeira, mas

As queixas de padres e leitoresconservadores levaram a revistaa pedir desculpas no seu edito-rial da edição seguinte e a de-mitir o humorista. Conta-seque Millôr pediu um emprés-timo num determinado ban-co e se associou a quatro car-tunistas – Ziraldo, Claudius,Fortuna e Jaguar – para trans-formar em revista sua colu-na, usando, claro, o mesmonome. E convidou velhos com-panheiros como Rubem Braga,Sérgio Porto e Antônio Maria para colabo-rarem com textos.

Millôr contou quatro décadas depoisque fora “pressionado” a criar o Pif-Paf poramigos revoltados com o que O Cruzeirofizera com ele, depois de 25 anos traba-lhando na revista. Pela versão de Marina,o projeto editorial foi desenvolvido emparceria por Millôr e Yllen. Eugênio foilogo agregado pelo segundo para dar for-ma à idéia. E fez mais que isso. Todos osseus conceitos gráficos estavam nas pági-nas desse tablóide. Não apenas na partede textos como na sua concepção visual.Enquanto Millôr cuidava dos textos – au-

a seção não tinha nenhu-ma ideologia. Aliás, a mi-nha tendência natural é nãogostar nem de criar personagem.Quando criei Vão Gogo, minha in-tenção era auto-gozativa, autopuni-tiva – como se faz em geral. Todo hu-morista acaba usando um nome depalhaço – Barão de Itararé –, go-zando para cima ou para baixo”. Oalter-ego de Millôr tinha uma co-luna chamada “Pif-Paf”, onde con-tava “Pequenas histórias surrealis-tas”, muitas piadas, frases e aforis-mos. “De uma coisa pode estar cer-to: educação não faz parte do cur-rículo da Escola de Motoristas”.Fazia também os famosos “Retra-to 3x4”, textos editorializados, de-senhos, brincadeiras e apontamen-tos que, sem dúvida, contribuírampara tornar O Cruzeiro um sucessoeditorial – além das reportagens, a

revista apostava no humor de talentoscomo Alceu Penna (e suas garotas), Périclesdo Amaral (O Amigo da Onça), Carlos Este-vão (Dr. Macarra) e Ziraldo.

A popularidade do personagem ego deMillôr foi tamanha que Vão Gogo ganhouseu primeiro livro, Tempo e Contratempo, em1949. O volume trazia uma compilaçãoque revelava as influências e a busca porum estilo de humor mesclado que depoisficaria peculiar e inconfundível no jorna-lismo brasileiro até a primeira década doséculo 21. Em 1962, Millôr assumiu em de-finitivo seu nome como autor da seção Pif-Paf, ainda em O Cruzeiro com 12 páginas.No ano seguinte, no entanto, foi obriga-do a deixar a revista de Chateaubriand porcausa da polêmica causada pela publicaçãoda sátira “A verdadeira história do Paraíso”,sua versão nada politicamente correta paraa lenda bíblica de Adão e Eva.

xiliado por Sérgio Porto (Stanislaw PontePreta) e Ziraldo – e corria atrás de colabo-rações, Eugênio exercitava seu lado cartu-nista para dar leveza, graça, criatividade eoriginalidade ao jornal. “Era um show grá-fico, continham borrões, carimbos, cola-gens e inúmeros pequenos achados, muitosaproveitados depois pelo Pasquim”, obser-vou Ruy Castro.

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Ao recordar aqueles tempos, Millôrdara importância a Eugênio como essen-cial para o êxito do tablóide. Ziraldo ob-serva que Millôr e o capista da Civiliza-ção Brasileira tinham personalidades mui-to fortes e bem diferentes, o que poderialevá-los a uma rota de colisão em poucotempo. Mas isso não aconteceu porque oartista austríaco não só ocupou todo es-paço disponível como estabeleceu umacerca em seu amplo latifúndio. Quer di-zer, apropriou-se por completo da produ-ção do Pif-Paf. “Eugênio era tão espaçosoque, na verdade, roubou o jornal de Mi-llôr”, disse Ziraldo. “Embora Millôr fos-se duro e tentasse manter o controle detudo, como sempre aconteceu nas coisasem que se envolveu, nem ele resistiu esucumbiu, não conseguiu evitar a invasão,no bom sentido, do Pif-Paf por Eugênio.Este chegou e tomou conta de tudo, fez uminferno de revista, incluiu muita mulherpelada e construiu algo absolutamenterevolucionário”.

Artista atordoanteQuando se lembrou daquela época, o

criador de Menino Maluquinho rasgou oamigo de elogios. “Ele era um artista ator-doante, talvez essa seja a melhor palavrapara defini-lo. Diria também que era umacachoeira de talento e produtividade. Eraum computador vinte ou trinta anos an-tes do computador. Foi o primeiro a ado-tar o letratone – película plástica que eraaplicada para dar acabamento à capa – efazia isso com uma maestria impressio-nante que deixava todos nós boquiabertose com a impressão de que não éramos nada,que não sabíamos fazer porra nenhuma.Ele, sem dúvida, influenciou todos nósquando pensamos em fazer o Pasquim”.Embora os historiadores de imprensae acadêmicos atribuam todos osméritos da publicação a Millôr, estenunca deixou de destacar o pa-pel do parceiro na publicação.

Em entrevista ao autor em junho de2008, Millôr afirmou que Eugênio foi “afigura mais importante do jornal, como‘artista’ e como trabalhador. Acho a pri-meira capa de Pif-Paf uma obra-prima”.Sobre o que destacaria na participação doaustríaco na publicação, o humorista re-conhece: “Ele teve participação em tudo,com técnica e criatividade”. Não foi fácilpara Eugênio dar conta de seus muitoscompromissos, mas ele se empenhou in-tensamente para fazer o jornal de humorcircular a cada quinze dias. Apesar de nãoassinar, eram deles as seções de strip-te-ase (uma garota por edição), as pinups al-tamente estilizadas que desenhava, ascolagens de foto de humoristas (em par-ceria com Ziraldo), a concepção das capas

e, claro, projeto gráfico e diagramação.Todos os números de Pif-Paf traziam

surpresas desconcertantes. Tanto nostextos quanto na arte. A começar pelacapa, que não seguia um padrão e se-

quer tinha logotipo num pontofixo, o que foi considerado na

época uma heresia aos manuaisde estilo das artes gráficas. Nonúmero de estréia, totalmen-te dentro do estilo de Hirs-ch, a capa apresentava onome da revista com tipos de

letras que eram sua marca regis-trada. Em cima, um desenho de

humor de sua autoria ondeduas mulheres com-pletamente nuas di-ziam uma para a ou-

tra: “Cada número é exemplar” e “Cadaexemplar é um número”. Millôr, claro,deu corda para o amigo fazer o que bementendesse. “Suas capas aliavam humorcáustico e projeto gráfico moderno,criação do austríaco Eugênio Hirsch,‘um maluco fora de série que detes-tava a Áustria’, na definição do pró-prio Millôr”, comentou a revista Veja,em 2005, quando foi lançada uma caixacom os fac-símiles do jornal.

Uma das características da publicaçãoera a abundância de mulheres peladas,quase peladas, nuas e seminuas, com biquí-ni, de camisola ou de lingerie. Um deleitepara os olhos masculinos num período emque a garotada em iniciação sexual tinhade se contentar com os catecismos de Car-los Zéfiro, as revistas de piadas (com garo-tas de biquíni) e os anúncios de roupa ín-tima das publicações femininas. Desde oprimeiro número, Eugênio cuidou pesso-almente da sessão que trazia, em umapágina, o strip-tease de uma garota.

Somavam-se a isso incontáveis fotosde beldades de biquíni nas praias cariocaspor ele tiradas. Nada, porém, superava ummarco na carreira do editor de arte: a sé-rie “As alfabetes”. Em cores, o artista apre-sentava numa página quatro desenhos deuma mocinha voluptuosa que tirava suaroupa aos poucos para mostrar seus seiosimensos, cintura fina, coxas grossas e bun-da descomunal. Eugênio só teve tempo defazer duas. Portanto, não passou da letraB, de Baby. Abaixo, escreveu o seu signifi-

cado: “Abreviatura de um nome de mulher,em si mesma bem pequena (1,56 m de al-tura), oculta e diminuída ainda mais nummistério de cabelos (1,58) e de facilidades”.

Insultos contra o governoO fim do Pif-Paf nunca foi devidamen-

te esclarecido. A publicação teria sidoproibida pelo recém-nascido regime mi-litar por causa das provocações e até pe-los insultos contra o governo “revoluci-onário” que começava. Não vieram a pú-blico, porém, documentos das forças derepressão que comprovam algum tipo demedida ou pressão para acabar com o ta-blóide. Ou mesmo se seus editores e co-laboradores foram monitorados pelos ser-viços de espionagem do regime militar*.Sem dúvida, havia motivos de sobra para

que os generais se irri-tassem com a irreve-rência provocativa dotablóide. Nem o Gene-ral Humberto de Alen-car Castello Branco,que acabara de ser em-possado Presidente, es-capou de virar piada.

Por causa disso, umdocumento oficial daárea de inteligência doExército classificou arevista como primeiroexemplo de imprensaalternativa e seu “do-no” (Millôr) como “es-querdista” – rótulo quecausou urticária nohumorista. “Nunca fiz

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE HUMOR EXEMPLAR

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nada por ideologia, até hoje não sei o quequer dizer esquerdista e tenho horror aser herói”, disse o humorista à revista Veja.

Basta olhar as páginas do tablóide paraperceber que havia sim muito do que osmanuais dos quartéis entendiam comosubversão. Na estréia, Millôr escreveu noeditorial com sua inesgotável capacidadepara criar frases de efeitos, aforismos, pi-adas e trocadilhos: “Em todos os númerosdo Pif-Paf falaremos da liberdade. É umassunto que nos tem presos”. Na edição se-guinte, mais uma declaração de guerra:“Há os que pensavam numa revista maispolítica. Não perdem por esperar”. E mais:“Muita gente reclamou do papel de nos-so primeiro número. Não estamos ven-dendo papel, estamos vendendo idéias”,provocava um dos editoriais.

Pequena tiragem, enorme influênciaO Pif-Paf durou apenas oito números.

Mas foram eles suficientes para fazê-lo in-gressar na história do jornalismo pela im-pressionante influência que teria na im-prensa, no humor e na inteligência doBrasil nos vinte anos seguintes – mesmocom a pequena tiragem de vinte mil exem-plares, ínfima para a época. A motivaçãoimediata para a proibição da revista foi edi-torial-anúncio da última página no volu-me oito, de agosto, onde Millôr desafiavao Governo no momento crítico em que seestabelecia a delação e a perseguição des-medida a supostos inimigos da “Revolu-ção”. Com o título “ADVERTÊNCIA”, as-sim mesmo, em letras maiúsculas, o editorescreveu sobre o fundo amarelo e dentrode uma moldura vermelha, um dos textosmais brilhantes de resistência ao regimemilitar brasileiro:

“Quem avisa amigo é: seo governo continuar dei-xando que certos jornalis-tas falem em eleições; se ogoverno continuar deixan-do que determinados jor-nais façam restrições à suapolítica financeira; se o go-verno continuar deixandoque alguns políticos tei-mem em manter suas can-didaturas; se o governo con-tinuar deixando que algu-mas pessoas pensem porsua própria cabeça; e, sobretudo, se o go-verno continuar deixando que circule estarevista, com toda a sua irreverência e crí-tica, dentro em breve estaremos caindoem uma democracia”.

Millôr conta que foi chamado váriasvezes para depor sobre Pif-Paf e, pressio-nado também por uma dívida crescentecom a gráfica, suspendeu o projeto. Jaguargarantiu que os militares realmente fe-charam de forma direta a revista, pormeio da pressão da censura. E acrescentoucom ironia: “Foi bom porque saímos demaneira honrosa”, acrescentou.

*Em dezembro de 2008, o autor tentou,junto ao Arquivo Nacional, no Rio de Ja-neiro, ter acesso aos documentos sobre Eu-gênio Hirsch, mas o funcionário disse queisso só seria possível com autorização porescrito e documentada de familiares.

Um dos maiores críticos do regime militar e mais importantes cartunistas desua geração, Fortuna acaba de ser homenageado com uma obra de peso: Fortuna– O Cartunista dos Cartunistas celebra, em mais de 250 páginas, quase meio sé-culo de uma carreira brilhante. Lançada pela Edições Pinakotheke, a publicaçãofoi organizada pelo caricaturista e pesquisador Cássio Loredano, e reúne uma se-leção de alguns dos mais destacados trabalhos do desenhista, que começou suacarreira em 1948 fazendo ilustrações e histórias em quadrinhos para revistas in-fantis como Sesinho, O Tico-Tico, Vida Infantil e Vida Juvenil.

A partir de 1950 ele passa a trabalhar na revista mensal A Cigarra, dos Diári-os Associados. Nessa publicação, onde permaneceu por nove anos, Fortuna fezilustrações e vinhetas, começou a escrever textos com regularidade e assinou suapágina de humor: Ponto Final. Em 1954, começa a colaborar também com a Re-vista da Semana, onde é o responsável por duas páginas semanais coloridas de

humor (veja “O Rio recebe visitas” acima).Na década de 1960, Fortuna intensifica sua produção de char-

ges políticas e passa a colaborar em diversas publicações, como alendária Senhor, além do Jornal do Brasil, Mundo Ilustrado e, finalmen-te, Pif-Paf, humorístico dirigido pelo amigo Millôr Fernandes. É nestetablóide, lançado um mês depois do golpe militar, que o humorpolítico de Fortuna ganha mais consistência. Como lembra FerreiraGullar no prefácio deste lançamento, “o golpe militar de 1964, ea ditadura que surgiu dele, tiveram influência considerável na car-reira profissional de Fortuna e, inevitavelmente, no rumo que im-primiu a seu trabalho de chargista”. Isso se torna claro folheando-seo livro Hay Gobierno? que Fortuna lança em parceriacom Claudius e Jaguar. Editada por Ênio Silveira, aobra é uma verdadeira aula de história sobre o gol-pe militar a partir dos cartuns de três grandes de-

senhistas da época (todos os desenhos de Claudius e Jaguar publicadosnas páginas anteriores foram extraídos desse livro).

Em 1965, Antonio Callado, Redator-chefe do Correio da Manhã,convida Fortuna para ser o chargista político do jornal. Engaja-do, Fortuna não pararia mais de criticar o regime. Participa dacriação do Pasquim, é o responsável pelo lançamento de O Bicho,tenta ressuscitar a revista Careta, colabora com a revista Veja, Folhade S.Paulo e Gazeta Mercantil e é lembrado até hoje por sua maisoriginal criação: Madame e Seu Bicho Muito Louco (abaixo).

Uma trajetória irrepreens-sível, que agora pode seradmirada num folhear depáginas. (Francisco Ucha)

Fortuna, um bicho muito louco

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Segundo a Wikipédia, “há muitas expli-cações para o 1º de abril ter se transforma-do no dia da mentira”. Porém, uma dasprimeiras coisas que nós, jornalistas,aprendemos nesta Era da Informática, éjamais confiar na Wikipédia, uma enciclo-pédia virtual onde, teoricamente, qualquerpessoa pode entrar e “colaborar”, sem anecessidade da checagem de fontes. E ago-ra? Quais serão as verdades e as mentirassobre o 1º de abril? Em quem confiar? Naausência de fatos comprovados por fon-tes confiáveis, vamos às versões.

Talvez não seja a mais confiável, masuma das mais difundidas sobre a origemdo Dia da Mentira remonta a 1564, anoem que o Rei Carlos IX, da França, deter-minou que fosse alterada a data de come-moração do Ano Novo. Explica-se: noséculo 16, após a implantação do calen-dário gregoriano, o Ano Novo era come-morado durante a semana de festas quemarcava a chegada da primavera na Euro-pa, de 25 de março a 1º de abril. Contrá-rio à idéia, Carlos IX ordenou que o iní-cio de cada ano passasse a ser comemora-do em 1º de janeiro. A medida não foibem aceita por parte dos franceses, quecontinuaram a seguir o calendário anti-go, comemorando, a cada 1º de abril, umaespécie de “ano novo de mentirinha”, àrevelia da ordem real. A data, então, serevestia de um caráter subversivo, derejeição às ordens do rei.

Outro grupo de franceses, estes fiéis àsdeterminações reais, passou a ridiculari-zar os “subversivos” que eram contráriosà mudança, enviando-lhes presentes deescárnio, ou convites para festas que nãoaconteceriam. Tais brincadeiras receberamo nome de “plaisanteries”, e como um dos“presentes” preferidos dos gozadores eraenviar peixes, o tal Dia da Mentira passoua ser conhecido como “Poisson d’Avril”, ou“Peixe de Abril”. O hábito ultrapassou asfronteiras da França e chegou à Itália como“Pesce d’Aprile” (igualmente “Peixe deAbril”) e à Inglaterra como “April Fool’sDay”, ou “Dia dos Tolos de Abril”.

Porém, a revista Aventuras na Históriaafirma que toda esta história é mentira, ecita o historiador norte-americano JosephBoskin para defender a idéia que passartrotes como parte das festas comemorati-vas da chegada da primavera na Europa (apartir do final de março, estendendo-separa os primeiros dias de abril) já era umatradição desde a época do Império Roma-no. “Os trotes de 1º de abril são anterioresà reforma do calendário por Gregório”,afirma Boskin à revista. Na época dosCésares, a festa se chamava Hilária, e tinhapontos em comum com a milenar festivi-dade indiada denominada Holi, ou Festi-val das Cores, também relacionada à che-gada da primavera, onde igualmente se pas-savam trotes. Também conhecida comoDolyatra ou Boshonto Utsav, dependen-do do país, esta festividade asiática ondeas pessoas atiram tintas coloridas umas

nas outras é muito anterior à Era Cristã.Ou seja, quem disser que sabe exatamen-te como começou a tradição do 1º de abrilno mundo está mentindo.

Já no Brasil, suas origens parecem maisclaras. E com raízes jornalísticas. Tudoteria se iniciado em Minas Gerais, em 1ºde abril de 1828, data da circulação daprimeira edição do periódico A Mentira,publicação dedicada a divulgar, veja só,notícias mentirosas. Logo na estréia, amanchete de capa falava do “falecimento”de D. Pedro I. A Mentira manteve-se fiel àsua linha editorial até sua última edição,de 14 de setembro de 1849, em cujas pági-nas convocava todos os credores para umacerto de contas que aconteceria em 1º deabril do ano seguinte. Como não podiadeixar de ser, o local divulgado para o talpagamento não existia.

Bastante sintonizada com o espíritodescontraído do brasileiro, a brincadeiramundial encontrou terreno fértil poraqui. Espalhou-se rapidamente pelas esco-las, escritórios e até pela mídia, que pas-sou a ver na data uma espécie de passe livrepara publicar qualquer tipo de notíciafalsa. Os casos são inúmeros. Chegou-sea publicar, num 1º de abril dos anos 1980,que o Vasco da Gama havia contratado ojogador Zico, tirando-o assim do arqui-rival Flamengo. Essa patuscada está in-clusive registrada na música Pega na Men-tira, de Erasmo Carlos, no verso “Zico táno Vasco, com Pelé”.

Mas, certamente, o trote de 1º de abrilmais elaborado da história do jornalismobrasileiro aconteceu em 1951. Enquantoo time do São Paulo excursionava pelaEuropa, a Rádio paulista Panamericana,atual Jovem Pan, anunciou em vários jor-nais que transmitiria com exclusividadea partida entre São Paulo e Milan, direta-mente da Itália. E assim o fez. No horáriomarcado, milhares de torcedores tricolo-res sintonizaram seus receptores radiofô-nicos, numa época em que transmissõesdiretas pela televisão ainda eram um so-nho distante. E sofreram, sofreram mui-to ao ouvir a voz sempre vibrante deGeraldo José de Almeida narrar umahumilhante goleada que o Milan impu-nha ao time paulista.

No bairro paulistano da Bela Vista, defortíssima colonização italiana, houvefesta nas ruas. O radialista Aurélio Cam-pos, que estava no estádio do Pacaembunarrando outro jogo por uma outra emis-sora, fez exaltados protestos contra nos-sos governantes por terem permitido queo futebol brasileiro passasse tamanhovexame no exterior. No dia seguinte, vá-rios jornais pelo País, que haviam sinto-nizado a Panamericana, noticiavam o ve-

xame sãopaulino. O detalhe é que o jogoentre São Paulo e Milan não existiu: elefora totalmente inventado, gravado, naíntegra, na garagem de Paulo Machado deCarvalho, dono da rádio, antes mesmo deo time ter embarcado para a Europa,como uma premeditada zombaria de 1ºde abril. Sequer a esposa de Geraldo Joséde Almeida sabia do trote, tamanho osegredo feito em torno dele. De acordocom o livro A Bola no Ar – O Rádio Espor-tivo em São Paulo, de Edileuza Soares, a falsanarração terminara com um resultado de4 a 0 para o Milan. Já o blog Doentes porFutebol, de Sérgio Rocha, fala em 8 a 1. Ouseja, nem em relação ao jogo de mentirahá um consenso sobre a verdade.

A brincadeira lembrou, guardadas asdevidas proporções, a dramatização radi-ofônica do livro A Guerra dos Mundos, deH. G. Wells, que o ator e diretor de cine-ma Orson Welles produziu e narrou em1938. Na época, vários ouvintes que per-deram o início da transmissão, onde eraexplicado que o programa era uma drama-tização, acreditaram que alienígenas es-tavam mesmo invadindo a Terra, e entra-ram em pânico. O caso foi capa do TheNew York Times, no dia seguinte.

A imprensa mundial semprealimentou a brincadeira

Casos de trotes de 1º de abril protago-nizados pela imprensa são registrados hádécadas, no mundo inteiro. Em 1933, ojornal norte-americano Madison Capital-Times publicou que o edifício do Congres-so do estado de Wisconsin teria desaba-do, após uma série de explosões misteri-osas. Tais explosões teriam se originadopela “grande quantidade de gás emanadodurante as várias semanas de debatesentre os membros do Senado e da Assem-bléia”. O jornal chegou a publicar umafoto do prédio desabado, evidentementeuma maquete.

Na Nova Zelândia, o locutor Phil Sho-ne, da emissora de rádio 1ZB, apavorou apopulação local alardeando que uma col-méia de vespas gigante, com mais de milmetros de comprimento, havia sido loca-lizada em Auckland. A população deveriase prevenir contra um eventual enxameque poderia atacar a cidade. Era 1º de abrilde 1949. James Shelley, diretor do New Ze-aland Broadcasting Service, não gostou dabrincadeira, e a partir deste ano, a cada dia1º de abril, passou a enviar memorandos atodas as rádios do país, lembrando-lhes anecessidade de divulgar apenas a verdade.

Em 1957, Richard Dimbleby, o respei-tado âncora do programa da tv inglesaPanorama, apresentou e colocou em dis-cussão uma interessante “reportagem” de

CURIOSIDADE

TODA A VERDADE SOBREO DIA DA MENTIRA

POR CELSO SABADIN

Orson Welles tinha apenas 23 anosquando realizou a dramatizaçãoradiofônica do livro A Guerra dosMundos, de H. G. Wells, que levou

pânico à população de Nova York.

CBS/RADIO PROMOTIONAL PHOTO

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três minutos sobre uma plantação demacarrão spaghetti na cidade de Ticino,Suíça. Centenas de telespectadores tele-fonaram para a BBC, querendo saber maissobre o assunto. E a brincadeira não pa-rava por aí. Para informar seu público, aresposta padrão que as telefonistas daBBC davam aos espectadores era: “Placea sprig of spaghetti in a tin of tomato sau-ce and hope for the best.” (Coloque um pou-co de spaghetti numa lata de molho de toma-te e espere pelo melhor).

Em 1º de abril de 1962, a SVT - Sveri-ges Television Sweden, na época a únicaemissora de televisão naSuécia, exibiu um progra-ma onde o “especialista”Kjell Stensson explicava,em convincentes termostécnicos, que era possívelreceber imagens coloridasem qualquer receptor detv branco e preto. Paraisso, bastava que fossecolocado, diante do apare-lho, um tecido bastantefino e perfurado, seme-lhante a uma meia femi-nina de nylon. Se o tecidofosse adequado, e a distân-cia entre ele e a tela da TVfosse a ideal, as imagens co-loridas apareceriam comonum passe de mágica. Nãose sabe quantas meias fo-ram destruídas em vão na-quela noite...

Não muito longe dali,na Dinamarca, o jornalPolitiken publica na sua edição de 1º de abrilde 1965 que o parlamento aprovara umalei obrigando que todos os cães do paísfossem pintados de branco. A idéia erareduzir o número de atropelamentos de ca-chorros, que aumentavam com a escuridãoda noite. No mesmo ano, os britânicos,que detestam ficar para trás quando o as-sunto é 1º de abril, assistiram na BBC TVum professor falando sobre sua mais re-cente invenção, o Smellovision. O mira-culoso aparelho permitiria que qualquertelespectador pudesse sentir o cheiro deum programa de tv. E para comprovar ofato, o tal “professor” cortou cebolas e fezcafé diante das câmeras. O mais incrível:não foram poucos os telefonemas de espec-tadores que ligaram para a BBC confirman-do terem de fato sentido o cheiro e mara-vilhados com a invenção.

Em 1975, o programa da tv Australia-na This Day Tonight entrevistou JamesDesmond Corcoran, um conhecido De-putado daquele país, que anunciou que aAustrália iria adotar o sistema métricopara a medição do tempo. Pelo novo sis-tema, 1 minuto teria 100 segundos, 1 horateria 100 minutos e o dia passaria a ter 20horas, sendo 10 pela manhã e 10 de noi-te. O segundo seria chamado de “milidi-as”, o minuto passaria a se chamar “cen-tidias” e a hora seria “decidias”. O repór-ter Nigel Starck chegou a apresentar onovo modelo de relógio de 10 horas.

Na manhã de 1º de abril do ano seguin-te, a BBC Radio 2 entrevistou o astrôno-

mo Patrick Moore sobre um evento extra-ordinário que aconteceria exatamente às9h47. Um raríssimo alinhamento entrePlutão, Júpiter e a Terra influenciaria nocampo gravitacional do nosso planeta,fazendo com que, por alguns momentos,todos nós pesássemos menos. A sensaçãode leveza seria experimentada mais inten-samente para quem começasse a pular nohorário determinado. Exatamente às 9h47,a rádio convocou seus ouvintes: “Pulemagora!”. E, surpreendentemente, dezenasde pessoas ligaram em seguida dizendo ter,efetivamente, experimentado a sensaçãode leveza. Houve até um pedido de inde-nização feito por uma pessoa que alegouter flutuado tanto que machucou a cabe-ça, batendo-a contra o teto de casa.

O 1º de abril do ano seguinte, 1977,também foi comemorado, novamente,pelos britânicos. O prestigiado jornal in-glês The Guardian editou um informe es-pecial de sete páginas sobre a pequenarepública de San Serriffe, situada numailhota do Oceano Índico, lugar ideal paraquem desejasse passar férias paradisíacas.Os telefones da Redação não paravam detocar, requisitando mais informações deávidos turistas em potencial. San Serri-ffe, porém, jamais existiu. Até seu nomeé uma piada com o termo “sem serifa”, re-lacionado à produção gráfica.

Em 1980, a BBC anunciou que, para seadaptar aos novos tempos, o tradicionalís-simo relógio Big Ben teria seu mostradortrocado de analógico para digital. E, dois

anos depois, os ingleses atacam novamen-te: o jornal Daily Mail convoca um “recall”de sutiãs. De acordo com a reportagem,dez mil sutiãs defeituosos haviam sidovendidos e teriam de ser recolhidos. Mo-tivo: as suas peças metálicas teriam sidofeitas com um tipo de cobre geralmenteusado em alarmes de incêndio que, emcontato com o nylon e o calor do corpo,provocavam interferências em transmis-sões de rádio e tv. O engenheiro chefe daBritish Telecom caiu no trote e solicitouque todas as suas funcionárias verificas-sem o sutiã que estavam usando e os tro-cassem, caso fosse necessário.

No ano seguinte, mais uma do TheGuardian, que informa que cientistas bri-tânicos do prestigiado laboratório de Per-shore desenvolveram uma máquina capazde controlar as atividades climatológicas.Com o título “Britain Rules the Skies”(Bretanha comanda os céus), o artigo afir-ma que a Inglaterra passará a ter longosverões, onde só choverá à noite. A talmáquina também garantiria neve duran-te o Natal, afirmou o jornal.

O incrível jogador de beisebolA edição de abril de 1985 da revista

americana Sports Illustrated publicou umamatéria assinada por George Plimptonsobre um novato jogador de beisebol queestava treinando no time dos Mets. Orapaz era um órfão inglês chamado SiddFinch, e conseguia arremessar a bola naincrível velocidade de 270 quilômetrospor hora, quando o recorde anterior erade 170 km/h. Das mais elaboradas, a re-portagem trazia todo o histórico de vidade Finch, publicando inclusive depoi-mentos de jogadores que afirmavam serhumanamente impossível segurar umabola de beisebol a esta velocidade.

A Sports Illustrated recebeu milhares decartas comentando o artigo, e chegou aprometer uma entrevista coletiva com oincrível novo jogador, antes de revelarque tudo era uma brincadeira de 1º deabril. Não há, porém, registro de nenhumleitor que tivesse percebido que as pri-meiras letras de cada palavra do olho damatéria (“He’s a pitcher, part yogi and

part recluse. Impressively liberated fromour opulent life-style, Sidd’s decidingabout yoga“) formavam a frase “HappyApril Fool´s Day”.

Em 1986, o jornal francês Parisien di-vulgou que a Torre Eiffel seria desmonta-da e transportada para a Euro Disney. Emseu lugar, os parisienses ganhariam umestádio para os Jogos Olímpicos de 1992.Até a rede pública norte-americana deemissoras de rádio saiu de sua habitualseriedade num dia 1º de abril: em 1992,o programa Talk of the Nation noticiou que,surpreendendo a todas as esferas políticas,o ex-presidente Richard Nixon, depostoapós o escândalo de Watergate, se candi-dataria novamente à presidência dos EUA.Até trechos de supostos discursos do ex-presidente foram colocados no ar, causan-do revolta nos ouvintes, que começarama inundar a emissora com telefonemasirados. A repercussão foi tamanha que, nasegunda metade do programa, o apresen-tador John Hockenberry foi obrigado arevelar a brincadeira, informando inclu-sive que as imitações de Nixon estavamsendo feitas pelo comediante Rich Little.Para alívio geral da nação.

No ano seguinte, novamente nos Es-tados Unidos, Dave Rickards, apresenta-dor da rádio KGB-FM provoca um enor-me congestionamento na cidade de SanDiego ao informar que o ônibus espacialDiscovery mudara sua rota e pousaria emMontgomery Field, o pequeno aeropor-to local. Sequer havia um ônibus espaci-al em órbita naquele dia. Em 1995, o jor-nal irlandês Irish Times, publicou umanotícia informando que a Disney Corpo-ration estava negociando com o governorusso a compra do corpo embalsamado deLenin. A idéia seria tirá-lo de seu mauso-léu na Praça Vermelha e transportá-lo paraa Euro Disney, onde ele seria exposto sobluzes especiais. Também estaria previstoum sistema de som reproduzindo discur-sos de Ronald Reagan chamando a Rús-sia de “Império do Mal”.

Com a chegada da internet, passou a serpraticamente impossível registrar o núme-ro de brincadeiras, trotes, erros e demaisaberrações do fato jornalístico, muitosdeles sequer relacionados à tradição doprimeiro de abril. A globalização deu atodos a mesma denominação, “hoax”, pa-lavra inglesa para designar engano, em-buste ou brincadeira, que ainda não constanos dicionários formais do nosso idioma,mas que já é utilizada normalmente pelosfrequentadores das redes sociais.

No Brasil, este ano, relembramos o cin-quentenário de um dos mais tristes dias de1º de abril de nossa história: o do golpemilitar de 1964, ponto de partida de umperíodo negro coberto de autoritarismos,atrocidades e mentiras. Mentiras tão des-lavadas que o próprio golpe em si, levadoa cabo na madrugada do primeiro dia deabril, foi batizado pelos seus protagonis-tas com a data do dia anterior, para nãohaver o perigo de ser ridicularizado comouma brincadeira (de péssimo gosto) de 1ºde abril. Um golpe que nasceu mentindodesde a sua origem e que, infelizmente,não foi um trote de 1º de abril.

A página dupla de abertura do curiosocaso de Sidd Finch, “reportagem” publicadana Sports Illustrated em 1985. 52 anos anteso edifício do Congresso do Estado deWisconsin desaba após uma série deexplosões misteriosas, segundo o jornalnorte-americano Madison Capital-Times.

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Talvez haja uma dose de injustiça quan-do nos referimos ao golpe de 1964 comosendo eminentemente “militar”. Há quemdefenda a terminologia “golpe civil-mili-tar”, posto que vários Governadores semuniformes e sem patentes daquela épocatambém o perpetraram. Contribuindo ago-ra ainda mais para a revisão desta termino-logia, o cineasta Silvio Tendler, de larga ex-periência em cinema documental (veja obox), está lançando seu novo trabalho: Mi-litares da Democracia: Os Militares Que Dis-seram Não. O filme aborda um viés atéentão pouco ou nada explorado quando seanalisa o período: o dos militares que fo-ram contrários ao golpe, e que por isso so-freram vários tipos de represálias. Algumasque inclusive perduram até hoje. São de-poimentos e registros de arquivos que res-gatam as memórias repudiadas, sufocadase despercebidas dos militares perseguidos,cassados, torturados e mortos, por defen-derem a ordem constitucional e uma soci-edade livre e democrática.

“Eu estava finalizando meu documen-tário anterior, Advogados Contra a Ditadu-ra, quando Paulo Abrão, Presidente daComissão da Anistia do Ministério da Jus-tiça, me lançou este desafio”, conta Ten-dler. “Já há algum tempo ele queria fazeruma homenagem aos militares que luta-ram pela justiça, pela constituição e pelademocracia, e me fez a proposta de trans-formar isso em filme”, afirma o cineasta.A partir deste desafio, Advogados Contraa Ditadura e Os Militares Que DisseramNão passaram a se constituir em projetoscomplementares, que foram abraçadospela estatal Empresa Brasil de Comunica-ção-EBC, através da TV Brasil. “Os proje-tos foram transformados em duas sériesde cinco programas cada”, explica Ten-dler. “Como cada programa tem 50 minu-

tos de duração, tivemos um tempo bastan-te amplo para discutir a questão. Depois,foram feitos dois longas-metragens comosíntese, que estão percorrendo o País emsessões especiais”, finaliza.

É interessante notar que no documen-tário Militares da Democracia: Os Milita-res Que Disseram Não, Tendler se assumetambém como personagem de seu pró-prio filme. E em depoimento narra suamemória do dia do golpe, dizendo que viu,nas ruas, as classes altas comemorandocom faixas e fogos, enquanto os porteirosdos prédios tentavam sintonizar em seusaparelhos de rádios a Cadeia da Legalida-de, comandada por Brizola a partir do RioGrande do Sul, mas naquele momento jásufocada pelas forças da repressão. “Na-quele instante percebi quem tinha ganhoe quem tinha perdido com aquele golpe”,afirma Tendler em seu filme.

O cineasta informa ainda que faltamapenas alguns detalhes burocráticos paraque ambos os longas, de 100 minutos cada,entrem normalmente nos circuitos de exi-

bição. “Os militares formam um segmen-to ainda profundamente estigmatizadodentro da sociedade brasileira, e nós pre-cisamos saber valorizá-los pelo grandeexemplo que eles nos deram”, afirma PauloAbrão, sobre os militares que se opuseramao golpe de 1964. “São estes, os que disse-ram não, que nós tanto almejamos para ademocracia. São os que nunca atentamcontra o seu povo, que respeitam o jura-mento firmado perante a bandeira e quetêm a defesa das instituições e da nossa so-berania como elemento central de sua atu-ação profissional”, diz Abrão.

Tratamento desigualO Presidente da Comissão da Anistia

lembra que, mesmo que a maioria deles e deseus familiares tenham atualmente idadeavançada, posto que foram os primeiros per-seguidos, continuam sendo discriminados.E denuncia: “Ainda hoje nós sabemos quehá um tratamento desigual, não isonômi-co, entre os militares da reserva que ser-viram à repressão, e o militar alijado po-

O documentarista Silvio Tendler(nascido no Rio de Janeiro, em 1950) édetentor das três maiores bilheterias dedocumentários na história do cinemabrasileiro: O Mundo Mágico dosTrapalhões (1981, com 1 milhão e 800mil espectadores), Jango (1984, 1 milhãode espectadores) e Os Anos JK – UmaTrajetória Política (1980, 800 milespectadores). Parte das pesquisas deseus filmes tem origem no volumosoacervo particular de imagens, com maisde dez mil títulos sobre a História doBrasil e do mundo dos últimos 50 anos.Em 2005 recebeu o Prêmio SalvadorAllende no Festival de Trieste (Itália), peloconjunto da obra. Em 2008, foihomenageado no Festival de CinemaBrasileiro em Paris com uma retrospectivade seus filmes. Ainda neste ano, foicondecorado com a Medalha Tiradentes,da Assembléia Legislativa do Rio deJaneiro, por relevantes serviços prestadosà causa pública do Estado.

Novo filme do cineasta Silvio Tendler revela alguns dos patriotas queficaram ao lado da legalidade e, por isso, sofreram severas represálias.

DOCUMENTÁRIO

Nem todos os militaresdefenderam o golpe

lítico, que retornou à profissão por deci-são da Justiça: este não usufrui de todosos direitos previstos nos estatutos dosmilitares. É preciso valorizar o papel delesna nossa história”. Abrão reforça que osmilitares que se opuseram ao golpe “paga-ram um preço muito caro, porque dife-rentemente dos setores civis, de outrosprofissionais da área privada e funcioná-rios públicos perseguidos, eles não pude-ram recompor suas vidas em outras pro-fissões. Militar é militar. Ele não encon-tra a profissão dele na área privada, parapoder dar continuidade à sua vida. Eles ti-veram seus projetos de vida interrompi-dos de forma muito violenta”.

É esta necessidade de levar justiça à ca-tegoria que se tornou, segundo Abrão, “arazão maior de nós trazermos à tona a his-tória dos militares que disseram não. Em-bora eu já tenha experiência de algunsanos dentro da Comissão da Anistia, euconsidero este material que o Silvio Ten-dler produziu talvez um dos materiais his-tóricos visuais e de regaste da verdadehistórica mais relevantes que a gente játeve neste tempo todo de gradativa buscapela verdade”, finaliza.

Militares da Democracia: Os MilitaresQue Disseram Não faz parte do projeto CineDireitos Humanos, que desde setembro de2013 tem a proposta de exibir filmes bra-sileiros e internacionais cujo enredo dialo-gue com temas ligados aos direitos huma-nos em sessões gratuitas. O projeto é umainiciativa da Secretaria Municipal de Direi-tos Humanos e Cidadania de São Paulo, comcuradoria de Francisco Cesar Filho.

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O Presidente João Goulart conversa com o General Amaury Kruel, um dos articuladores do golpe.

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POR CELSO SABADIN

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Uma jovem sobrinha à procura daverdade sobre o desaparecimento de suatia guerrilheira. À primeira vista, fica-secom a sensação de “já termos visto estefilme antes”. No caso, literalmente. Vemà lembrança o documentário Marighella,onde a sobrinha do guerrilheiro, Isa Gris-pum Ferraz, faz um trabalho investigati-vo sobre seu famoso tio. Aqui, a situaçãoé bem parecida: Mariana Pamplona sai embusca da verdadeira história de sua tia,Iara Iavelberg, assassinada pela ditaduraquando Mariana ainda estava na barrigade sua mãe, a irmã de Iara. Uma procuraque acaba de se transformar no documen-tário Em Busca de Iara, roteirizado e pro-duzido por Mariana, com direção de Flá-vio Frederico.

Iara Iavelberg foi uma pessoa de traje-tória incomum. Vinda de uma família declasse alta e de sólida tradição judaica,casou-se ainda menor de idade com umvizinho, e tudo apontava para que ela setransformasse em apenas mais uma entreas milhões de donas-de-casa brasileirasque não tinham sequer idéia do que acon-tecia naquele Brasil dos anos 1960. E, casotivessem esta idéia, estariam a favor dela.Mas o casamento logo se revelou umagaiola dourada para um pássaro inconfor-mado que queria alçar vôos maiores.

Estudante de Psicologia na Universi-dade de São Paulo-USP (quando o cursoainda estava incorporado à Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras da Rua MariaAntônia), Iara rapidamente percebeuque alguma coisa estava muito fora de

ordem no País. Engajou-se no movimen-to estudantil e, ato contínuo, partiu paraa resistência armada e para a clandestini-dade. De beleza, porte e atitude inco-muns, ela sempre chamava a atenção poronde passava. Chegou a ser namorada dopróprio Marighella, e terminou sua lutaao lado de Carlos Lamarca, de quem foicompanheira. No filme Lamarca, ela évivida por Carla Camurati.

O ponto de partida do documentárioEm Busca de Iara é o ano de 2003, no mo-mento em que, após uma longa e cansati-va disputa judicial, a família Iavelbergconseguiu o direito de exumar o corpo daguerrilheira para tentar provar que suamorte, ocorrida em agosto de 1971, nãodecorreu de suicídio, conforme forjadopela ditadura, mas sim de assassinato.Logo nos primeiros momentos do filme,a decepção: uma estranha ordem judici-al manda interromper a exumação jáiniciada, alegando, não menos estranha-mente, motivos religiosos advindos deum suposto feriado judaico. De algumaforma, em pleno 2003, as forças da dita-dura pareciam ainda não estar totalmentedebeladas.

A partir daí, através de uma cuidado-sa pesquisa de documentos, imagens dearquivo e entrevistas, o filme reconstróia vida de Iara e desmonta tijolo por tijo-lo a versão oficial do regime. “Por volta de2005, Mariana me contou da história dasua tia Iara e pouco tempo depois acon-teceu o final da exumação, com o enter-ro dos seus restos mortais”, conta FlávioFrederico, diretor do filme. “Depois queos resultados da perícia mostraram que

uma pedra” em cima dos assuntos refe-rentes à ditadura militar brasileira. Nãohá como colocar tal pedra.

“Esta presença da Mariana acabousendo um próprio diferencial do filme emrelação a outros. No começo, ela se exal-tava, se indignava, e a proposta era que elanão aparecesse, mas apenas fizesse asperguntas, em off. Porém, acabamos per-cebendo que ela aparecer, ser um dospersonagens, se configurava num grandecaminho para o filme”, conta Frederico.

Tal presença proporciona depoimen-tos de muita emoção, como o do filósofoJoão Quartim de Moraes, que declara nodocumentário que “o sorriso dela [Iara]não era de charminho nem convencionalou de estereótipo. Ela sorria inteira, almae corpo. Havia uma alegria nela da qual osorriso era a expressão”.

Em Busca de Iara também procurou sediferenciar em relação às imagens de ar-quivo, o que não é tarefa fácil. O diretorinforma que, na medida do possível, ten-tou evitar as imagens de arquivo que jáforam utilizadas amplamente em outrosdocumentários do gênero, e para issorecorreu também a arquivos estrangeiros,principalmente da Associated Press e deagências internacionais de imagens queprestam este tipo serviço totalmenteatravés da internet. Em relação ao aces-so a documentos da época da ditadura,Frederico elogia o Arquivo Nacional deBrasília, onde encontrou “boa vontade,farto material, pessoas interessadas e umatecnologia satisfatória para localizar oque se quer”, afirma.

O cineasta diz que tentou por váriasvezes acessar os arquivos da Polícia Fede-ral de Salvador, mas não foi sequer aten-dido. Felizmente, como esta documenta-ção da PF foi cedida ao Arquivo Nacionalde Brasília, ela pode ser acessada e utili-zada no filme.

Também foi usado material encontra-do no Arquivo do Estado de São Paulo, noArquivo Municipal do Rio de Janeiro enos arquivos pessoais dos entrevistados.“No caso dos arquivos da Polícia e do Exér-cito, foi muito difícil: não conseguimos”,diz o cineasta. No total, foram sete anosde trabalho. “Um trabalho doído, masmuito gratificante”, finaliza Frederico.

Está longe de ser coincidência o fatode os documentários Marighella e EmBusca de Iara tratarem de uma nova gera-ção à procura da verdade sobre seus ante-passados. Eles simplesmente refletem,assim como outros já refletiram e outrosainda refletirão, a necessidade que todoum País tem de esclarecer a sua própriahistória recente. Não apenas no sentidode buscar a verdade, não somente com aintenção de fazer justiça, mas principal-mente como um alerta a uma novíssimageração que não tem a menor idéia do queforam os anos de chumbo vividos noBrasil. Jovens que, infelizmente, acredi-tam que postar desconexas palavras deordem, escondidos sob a frágil segurançade suas redes sociais, será o suficiente paraa maturação da nossa democracia. Alémdo Brasil, Em Busca de Iara já foi exibidoem festivais no Uruguai, França e Cuba.

A verdadeira IaraMuito mais que simplesmente “a mulher de Lamarca”, a atuação política e as verdadeiras condições

da morte da guerrilheira Iara Iavelberg são resgatadas em documentário produzido por sua sobrinha.

POR CELSO SABADIN não foi suicídio, segundo os costumesjudaicos ela iria ser retirada da ala dossuicidas do cemitério e ser enterrada pró-ximo à família. Sugeri então gravarmoseste momento e, mesmo que não desse emnada, ao menos serviria como pesquisa”,diz. Frederico registrou a cerimônia comduas câmeras e posteriormente começoua desenvolver a história, gravando depo-imentos de pessoas que haviam convivi-do com Iara.

“O projeto teve várias fases”, contaFrederico. “A princípio ele seria um mé-dia metragem para televisão, mas aospoucos percebemos que ele deveria sermaior, mais abrangente, e fomos ampli-ando. Mariana e eu produzimos o filmejuntos, eu dirigindo e ela conduzindo asentrevistas. Aos poucos ela própria foivirando personagem do filme”.

Em Busca de Iara traz consigo umaforte carga emocional, nem sempre pos-sível em outras produções do gênero. Aoassumir diante das câmeras a função deentrevistadora, Mariana Pamplona extra-pola sua condição de roteirista e produ-tora, transformando-se, talvez até inad-vertidamente, numa ponte entre passa-do e presente. Sua presença física, ligei-ramente parecida com a da tia, certamen-te reacende nos entrevistados, pessoasque conviveram com Iara, algumas fagu-lhas incendiárias que pareciam extintas.E esta emoção brota na tela. Há momen-tos em que o choro se torna inevitável, oque acaba funcionando não como ummero elemento de manipulação emocio-nal, mas como a lembrança viva que con-traria todos aqueles que querem “colocar

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Iara Iavelberg na escadaria do Pacaembu, em São Paulo: o filme desmonta a versão oficial da ditadura de que ela teria se suicidado.

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32 JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

Dois dias antes da data em que todo oPaís relembrou os 50 anos do golpe de1964, o Instituto Moreira Salles colocouno mercado uma verdadeira preciosida-de histórica do nosso cinema: o dvd dofilme Cabra Marcado Para Morrer, tido pormuitos especialistas como o melhor docu-mentário já realizado pelo cinema brasi-leiro. Não apenas por sua proposta políti-ca e coragem, como também pelas condi-ções muito particulares em que foi feito.

A gênese do filme pode ser encontra-da em 1960, ano em que Eduardo Couti-nho, após passar uma temporada estudan-do cinema em Paris, regressa ao Brasil eencontra um País culturalmen-te efervescente. O CinemaNovo, comandado por GlauberRocha, dava importantes pas-sos rumo ao reconhecimentointernacional, e o Brasil viviaos últimos momentos da EraJK. É neste clima de euforia queCoutinho se integra ao CentroPopular de Cultura-CPC daUnião Nacional dos Estudan-tes-UNE, onde apresenta uma peça teatralno I Congresso dos Trabalhadores Agrí-colas, em Belo Horizonte. Ele auxiliatambém na produção do filme Cinco Ve-zes Favela, igualmente produzido peloCPC, e imediatamente se engaja numnovo projeto cinematográfico: a recons-tituição ficcional da história verídica deJoão Pedro Teixeira, líder assassinado dasLigas Camponesas. Sob a direção de Cou-tinho, o filme se chamaria Cabra Marca-do Para Morrer, e seria interpretado pelospróprios camponeses do Engenho Cana-néia, em Pernambuco.

Ironicamente, porém, as filmagensforam iniciadas na segunda quinzena demarço de 1964 e, logicamente, interrom-pidas de forma violenta pelo golpe. Par-te da equipe foi detida e o projeto, ao quetudo indicava, morrera. Só que não. Bai-xada a poeira, em 1981, um dos técnicosda equipe revela que havia salvo os nega-tivos daquelas únicas duas semanas defilmagens de Cabra Marcado Para Morrer,o que entusiasma Coutinho a retomar aobra. Já com o regime em início de pro-cesso de abertura, o cineasta sai em bus-ca da viúva de João Pedro Teixeira, Eliza-beth, e lhe mostra o que havia sido filma-do em 1964. O projeto é retomado, masdesta vez, ao invés de encenar o caso doassassinato, o roteiro se centraliza na his-tória de Elizabeth em busca do reencon-tro de seus filhos, espalhados pelo País, àluz da reflexão da tragédia que a ditadu-ra militar significou para o Brasil. Fina-lizado três anos depois, Cabra MarcadoPara Morrer vence várias premiações noBrasil e no exterior, e vai imediatamen-

te para o rol de clássicos donosso cinema.

Desta forma, o simples lançamento,em cópias restauradas, deste dvd, já seria,por si só, de grande importância – dadassuas qualidades intrínsecas e importânciasocial, política e histórica no desvenda-mento de vários meandros relacionados àépoca da repressão. Há que se destacar,também, a forte carga emotiva que ele ago-ra carrega, após o brutal assassinato de seudiretor, em janeiro passado. Coutinhoestava totalmente envolvido com a pro-dução do material extra que vinha sendofeito especificamente para este lançamen-to. Algo que, em função do trágico acon-tecimento, não pôde ser totalmente fina-lizado pelo seu diretor, mas que agora sereveste de valor histórico potencializado.Assim, o dvd traz, como material extra,nada menos que dois filmes inéditos dorealizador, produzidos pelo InstitutoMoreira Salles em parceria com a Video-filmes: A Família de Elizabeth Teixeira, de 63minutos, e Sobreviventes de Galiléia, de 25minutos. Ambos se baseiam no retornoque Coutinho realizou em 2013 aos mu-nicípios de Sapé (Paraíba) e Galiléia (Per-nambuco), locações originais de CabraMarcado para Morrer, onde ele reencontraElizabeth Teixeira.

Para realizar A Família de Elizabeth Tei-xeira, Coutinho procurou alguns dos 11filhos de Elizabeth, com quem ele nãohavia mantido contato há 30 anos. Aqui,ele demonstra novamente a sua incrívelhabilidade em deixar seus entrevistadose depoentes completamente à vontade,criando com eles um forte laço de empa-tia e, conquistando, além de confiança, aextração amigável dos mais variados ní-

veis de informações, que acabam forman-do a forte base de qualidade e credibilida-de de seus documentários. Todos conver-sam com o cineasta como se ele tomassecafé em suas casas todas as semanas.Impensável notar que há entre documen-tarista e documentado um hiato de trêsdécadas, tamanha é a desenvoltura coma qual eles contam suas histórias de vida.Pequenos dramas cotidianos que, pelasmãos de Coutinho, se transformam em ver-dadeiras sagas épicas nas quais se descor-tina cada detalhe da grandeza humana.

Em determinado momento do filme,Marta, uma das filhas de Elizabeth e JoãoPedro, conta com voz embargada que “mi-nha mãe sofreu tanto com a morte do meupai que ela nem chorava: ela urrava feitoum bicho. A gente tinha até medo de che-gar na porta do quarto dela. Ela amavamuito aquele homem”. Coutinho mantémaqui seu estilo de conversar abertamentecom seus entrevistados, não hesitando emfazer parte do filme. Há casos que beiramo inacreditável, como o de Marinês, outrafilha do casal Elizabeth e João Pedro, ex-pulsa de casa e abandonada numa estradaaos 11 anos de idade, por causa de umadenúncia, comprovadamente infundada,que ela teria tido relações sexuais. A histó-ria desfila pelas lentes de Coutinho comuma naturalidade espantosa.

Além de Marta e Marinês, o filme en-trevista também Isaac, Carlos e Nevinha,outros filhos do casal, alguns netos, e aprópria Elizabeth, então aos 88 anos. Atra-vés destes depoimentos, Coutinho man-tém viva não somente a memória de JoãoPedro Teixeira, como também do própriofilme Cabra Marcado Para Morrer e conse-qüentemente dos ideais que ele representa.

Já Sobreviventes da Galileia registraduas entrevistas com os camponeses Cí-cero e João José, testemunhas históricasdo assassinato de João Pedro. Há, porém,um extra muito especial que se reveste deum triste e trágico viés: comentários emáudio de Eduardo Escorel, montador deCabra Marcado para Morrer; do crítico decinema Carlos Alberto Mattos; e do pró-prio Coutinho, revelando preciosas curi-osidades de bastidores e informações quepermearam a produção do filme. Tais co-mentários, porém, estão incompletos,pois Coutinho morreria três dias após asprimeiras gravações que estão registradasno dvd. Junto com a embalagem do dvdhá ainda um livreto de 74 páginas com umdepoimento de Coutinho e uma seleçãode críticas publicadas no Brasil e no ex-terior à época do lançamento do filme,nos anos 1980.

As homenagens a Eduardo Coutinho,nas últimas semanas, se estenderam apaíses como França, México e EstadosUnidos. Em Paris, o festival de documen-tários Cinéma du Réel exibiu Cabra Mar-cado para Morrer e Sobreviventes de Galileia,este último em première mundial, em 20março. Em Guadalajara, o Festival Inter-nacional de Cine Iberoamericano lançou,em 24 de março, o livro Eduardo Coutinho:Homenaje, especialmente editado peloInstituto Mexicano de Cinema e peloConselho Nacional de Cultura e Arte paraa ocasião. Nos Estados Unidos, o WexnerCenter for the Arts da Universidade Co-lumbus, Ohio, exibiu Cabra Marcado paraMorrer, O Fim e o Princípio e Jogo de Cena, emhomenagem que se repetiu no Pacific FilmArchive, em Berkeley, Califórnia, e noLincoln Film Center de Nova York.

CINEMA

Lançamento traz clássico e doisfilmes inéditos de Eduardo Coutinho

POR CELSO SABADIN

Na retomada de Cabra Marcado Para Morrer, o cineasta Eduardo Coutinho retrata a história de Elizabeth e o reencontro com seus filhos.

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A criação de um observatório é a prin-cipal recomendação feita pelo Grupo deTrabalho “Direitos Humanos dos Profis-sionais de Comunicação no Brasil” no re-latório final aprovado pelo Conselho deDefesa dos Direitos da Pessoa Humana(CDDPH). O documento foi debatido eavalizado em reunião ordinária do Con-selho, ligado à Secretaria de Direitos Hu-manos da Presidência da República (SDH/PR), realizada no dia 11 de março, emBrasília (DF). O grupo de trabalho iniciousuas atividades em fevereiro do ano pas-sado para estudar os casos de violações deDireitos Humanos sofridas pelos maisdiferentes profissionais como jornalistas,blogueiros, radialistas, fotógrafos, entreoutros. Para confecção do relatório, o gru-po considerou o período de 2009 a feve-reiro de 2014, no qual foram constatadas321 violações de direitos de comunicado-res, sendo 18 homicídios.

O relatório recomenda que o observa-tório seja estruturado em um tripé, en-volvendo as seguintes ações: unidade derecebimento e monitoramento de de-núncias de violações; criação de um sis-tema de indicadores; e formulação de ummecanismo de proteção dos profissio-nais de comunicação, a partir das expe-riências já em curso no âmbito da Secre-taria de Direitos Humanos da Presidên-cia da República. A Ministra Maria doRosário, da SDH/PR, considerou inacei-táveis quaisquer tipos de censura ou vi-olência contra os profissionais de comu-nicação. Rosário ainda destacou o cará-ter inovador do futuro observatório e o

acompanhamento das Organizações dasNações Unidas-Onu para formulaçãodessa iniciativa.

“É um instrumento que vai monitoraras violações de direitos dos jornalistas e doscomunicadores em geral. Significa quequalquer tipo de violação decorrente doexercício da profissão deve ser documen-tado no momento em que o observatórioestiver instituído, para que ela não fiqueimpune”, afirmou. Rosário ainda infor-mou que o Ministério da Justiça deveeditar, em breve, uma diretriz para todasas polícias determinando que não podemser apreendidos os equipamentos de traba-

LIBERDADE DE IMPRENSA

Relatório da SDH quer observatório paraproteção dos profissionais de comunicação

POR IGOR WALTZ

Ministra Maria do Rosário destacou a contribuição dos profissionais de comunicação para formular ações.

O jornalista Yassine Ahmad Hijazi, doportal de notícias paranaense A Fronteira,foi ameaçado pelo Prefeito de Foz do Iguaçu,Reni Pereira (PSB), durante uma entrevis-ta. A agressão ocorreu em uma coletiva deimprensa, após o repórter questionar o po-lítico sobre os baixos índices de populari-dade de sua gestão. O repórter afirma ter sidoatacado verbalmente e ameaçado pelo Pre-feito durante entrevista. No registro capta-do pelo microfone de outro jornalista, é pos-sível ouvir Pereira proferindo ofensas con-tra Hijazi e ameaçando o profissional casoo vídeo fosse divulgado.

O jornalista entrou com duas ações con-tra o Prefeito. A primeira na esfera cível,por calúnia e constrangimento, e a segundana esfera penal, por injúria e ameaça. “Essa

Jornalista é ameaçado pelo Prefeitode Foz do Iguaçu em coletiva

lho dos profissionais de comunicação. Issoinclui câmeras fotográficas, gravadores,telefones, cartões de memórias, entre ou-tros. O coordenador do GT Comunicado-res, Tarciso Dal Maso, explanou que o rela-tório final é fruto de diversas audiênciaspúblicas e reuniões feitas em estados comoMinas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro eMato Grosso do Sul. Além da criação doobservatório, o documento indica uma sériede ações a serem postas em prática pelos trêspoderes e as diferentes esferas de governo.“O observatório é para nós o grande con-centrador de elementos de políticas públi-cas para o setor”, frisou.

é uma questão moral. Eu estava lá, no even-to, como jornalista, fazendo o meu traba-lho. Fui ofendido e tenho o direito de medefender judicialmente”, disse o jornalista.Para a ação cível uma audiência de conci-liação já foi marcada para o próximo mêsde maio. Já a queixa crime, ficará a cargodo Tribunal de Justiça do Paraná.

ApoioO Sindicato dos Jornalistas Profissionais

do Paraná emitiu nota de repúdio à ação doPrefeito. De acordo com o comunicado, o sin-dicato “lamenta o ocorrido e ao mesmo tem-po louva a atitude do profissional por tornaro caso público e buscar reparação. Que o casosirva de exemplo para outros jornalistas quesão ameaçados ou impedidos de buscar e di-

vulgar a informação”. Na Câmara Munici-pal de Foz do Iguaçu, vereadores da oposiçãoprometeram exibir o vídeo no plenário. “Aação movida pelo Yassine é pelo pedido derespeito, reagindo dessa forma o Prefeito nãopode esperar que outras pessoas o tratem di-ferente”, confirmou Sônia Inês Vendrame,mestre em Comunicação e Semiótica, mem-bro da equipe do site.

A assessoria de imprensa da prefeituracomunicou por telefone que nenhumanota será emitida pelo Prefeito até o rece-bimento da chamada judicial. “O pedido dedesculpas já foi feito na abertura do even-to, em público”, revelou um dos assessores.Hijazi discorda. “Ele (Prefeito) pediu des-culpas por não ter respondido à minha per-gunta, não por ter me xingado”.

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O jornalista Aníbal Ribas,editor do Jornal Pampeano, deJaguarão, interior do Rio Grandedo Sul, afirma que oito policiaismilitares entraram sem mandadona sede da publicação, no dia 13de março, e lhe deram voz deprisão. Ribas teria sido coagido aassinar seis termos circunstanciadospor crimes de calúnia, injúria edifamação. O caso está sendoinvestigado pela Corregedoria daBrigada Militar. A ação teria sidomotivada por uma reportagempublicada pelo jornal no própriodia 13. A matéria trazia umatranscrição de uma conversagravada por Renato Jaguarão, ex-candidato a Prefeito, com doiscapitães da Brigada Militar, queconfirmavam que o atualPrefeito, José Cláudio Martins(PT), havia sido parado em umablitz e se recusado a fazer o testedo bafômetro. Até então, o fatoera negado oficialmente pelaBrigada.

O editor do jornal foi levado aum hospital para passar porexame de corpo de delito eacabou liberado com a assinaturados termos circunstanciados.“Eles me disseram que ou euassinava ou sairia algemado. Nãopude nem chamar meuadvogado”, contou. Um vídeogravado no dia mostra um grupode PMs na porta do jornalpreparando documentos sobre aocorrência. Ribas prestou queixaà Polícia Civil e também relatouo ocorrido ao Ministério Público.O comando regional da Brigadaafirma que testemunhas estãosendo ouvidas e que não há comoemitir um parecer sobre oocorrido ainda. Ribas diz estarassustado com o ocorrido. “Eusempre fui a favor da Brigada eagora acontece uma barbaridadedessas. Estou indo para oUruguai, porque não me sintoseguro aqui”, disse. O JornalPampeano circula três vezes porsemana com tiragem de 3.000exemplares. O município deJaguarão possui 28 milhabitantes.

Oito policiais militaresinvadem sede de jornal nointerior do Rio Grande do

Sul e ameaçam editor.

Dono de jornaldenuncia invasãoe ameaça policial

POR IGOR WALTZ

Ministra Maria do Rosário: “Qualquer tipo de violação de direitos dos jornalistas e dos comunicadoresdecorrente do exercício da profissão deve ser documentado para que não fique impune”.

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VIDAS

JAYME LEÃOO TRAÇO DACOERÊNCIA

O cultuado artista gráfico pernambucano, morto em março,aos 68 anos, deixou um legado importante em coleções de

livros, capas de revistas, discos, quadrinhos, charges e cartazesde cinema, além de um jeito pessoal de militância.

POR GONÇALO JUNIOR

A ditadura militar brasileira, que go-vernou o Brasil entre 1964 e 1985, rendeusituações extremas de opressão e fez des-pertar em diversos artistas uma consci-ência política de militância sincera. Pormeio da música, da literatura, do cinema,do teatro ou do humor gráfico, não forampoucos aqueles que combateram a faltade liberdade, principalmente. A maioriase manteve assim, atento e forte, por todaa vida. O pernambucano Jayme Leão,morto em março, aos 68 anos, em São Pau-lo, foi um desses talentos que sempre acre-ditaram na arte como meio de se chegara fins honestos e aos anseios da maioria.Leão deixou como legado uma vasta obraem capas e miolos de livros, jornais, revis-tas semanais, discos, gibis e cartazes de ci-nema. Mas simbolizou, principalmente,a lição de que quem trabalha com artepode e deve fazer do mundo um lugar me-lhor. E isso ele fazia pela correção e pelacoerência, que não permitiam conces-sões às dificuldades da vida e às imposi-ções do mercado editorial.

Leão nem sempre assinava seus traba-lhos, mas ilustrou centenas, talvez milha-res de itens da cultura nacional. Quem foileitor da revista de humor Circo, da CircoEditorial, na segunda metade dos anos de1980, deve se lembrar de sua assinaturanuma das capas mais emblemáticas da sé-rie: a mulher nua, que sobe o Empire Sta-te para pegar o King Kong. Na década an-terior, revelou-se um dos nomes mais im-portantes da chamada imprensa alterna-tiva, colaborando com jornais que desa-fiavam abertamente a ditadura ao nãoacatar a censura às suas denúncias. Masa arte de Jayme Leão ficou intimamenteligada, também, à inesquecível coleção delivros juvenis Série Vaga-lume, da EditoraÁtica, coqueluche literária no Brasil en-tre as décadas de 1970 e 1990. Ele cuidoudas capas e das ilustrações internas de boaparte dos 104 títulos lançados entre 1972e 2011. Essas obras vendiam centenas de

milhares de exemplares e foram adotadasem escolas de todo País como leitura re-comendável para formação de leitores.

Embora ao longo do tempo a série te-nha sofrido algumas alterações no forma-to e no projeto gráfico, tornaram-se ines-quecíveis suas capas clássicas e suas ima-gens, onde os objetos ou pessoas ficavampara fora do quadro tanto na capa comono miolo. Jayme Leão lia os romances etentava, como nos cartazes de filmes, sin-tetizar a trama. Entre as capas que fica-ram mais famosas, destacam-se O Misté-rio do Cinco Estrelas, Um Cadáver Ouve Rá-dio, O Rapto do Garoto de Ouro, Menino deAsas e Meninos Sem Pátria, entre outros.

O artista morreu em 11 de março,quando tentava se recuperar de uma ci-rurgia neurológica, depois de queda sofri-da de uma escada em sua casa, na capitalpaulista. O acidente, ocorrido no mês dejaneiro, lhe causou traumatismo crania-no. Ele morava com a família na zonanorte de São Paulo. Submetido a umacirurgia considerada bem-sucedida pelosmédicos, Leão teve alta do hospital dez

dias depois. Mas nem tudo saiu como oesperado e, por causa da cirurgia, perdeuparte da memória. Após realizar traba-lhos de fisioterapia em uma clínica, o ar-tista passou a apresentar quadro de desi-dratação e foi novamente internado, noHospital Mandaqui, onde permaneceuem estado grave por cinco dias, até nãoresistir e falecer. Sua morte teria ocorri-do depois de complicações decorrentes deinsuficiência renal considerada grave.

Natural de Recife, Jayme Leão se mu-dou ainda criança para o Rio de Janeiro,com seus pais e irmãos. Alguns anos depois,partiria para São Paulo em busca de opor-tunidades de trabalho na sua especialida-de, desenho, de onde não sairia mais. Ta-lentoso, influenciado pelas histórias emquadrinhos no começo da carreira, uma desuas paixões e que marcaria toda a sua vidaprofissional, ele era autodidata – cursou ape-

nas a escola primária. Come-çou a trabalhar aos 15 anospara o jornal carioca Liga, ór-gão das lendárias Ligas Cam-ponesas que lutaram por re-forma agrária, até serem as-fixiadas pela ditadura mili-tar, a partir de 1964. Com oinício do regime militar, pas-sou a trabalhar como alfaia-te e a ilustrar para a EditoraBrasil América-Ebal, ondeproduziu belas capas e qua-drinhos sobre personagensimportantes da história doBrasil. Outra fonte de rendaem paralelo era a publicida-de. Por vários anos, fez ilus-trações para propagandas dejornais e revistas.

O pulo do gato em sua car-reira veio na década de 1970.Artista engajado e politizado,Jayme Leão fez quadrinhos eilustrou perfis, matérias e re-portagens para revistas comoStatus, a partir de 1974. Foidessa fase a ilustração que fez

para a semana “O Homem e a Terra”, queCentros Acadêmicos realizaram na Puc, emabril de 1975 e que foi estampada na capado jornal Cobra de Vidro, descrita como“uma publicação dos Centros Acadêmicosda FEI, GV e FAAP”. Na cena desenhada, aimpressionante expressividade do semea-dor, cujas gotas de suor fazem crescer a plan-ta. Nesse momento, passou a colaborar e setornou um dos nomes mais importantes daimprensa alternativa no Brasil. Ele parti-cipou da criação dos jornais Opinião e Mo-vimento, que faziam oposição ao governomilitar durante na década 1970, e do Jor-nal da República, de Mino Carta, em 1979.Preso e taxado de subversivo, chegou aviver com a família no Chile, durante ogoverno do Presidente socialista SalvadorAllende, para fugir da ditadura brasileira.Colaborou com outros veículos alterna-tivos como O Pasquim.

Jayme Leão foi o principal cartunista do Jornal da República,ousado projeto editorial de Mino Carta lançado em 1979.

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Caras e bocasCom o início da abertura política, Jay-

me Leão foi militar com seus desenhos emveículos importantes da chamada grandeimprensa, como IstoÉ, Veja, Folha de S.Paulo,O Estado de S. Paulo e Ele&Ela. Na EditoraAbril, foi vencedor do prestigiado PrêmioAbril como ilustrador. Agapito foi o perso-nagem que ele criou para uma tira semanalno jornal Hora do Povo, na sua melhor fase,quando era dirigido por Franklin Martins.Seu colega Gilberto Maringoni, professorde jornalismo da Faculdade Cásper Líbe-ro, observou que Leão “deu caras e bocas ainúmeras publicações, a partir do final dosanos 1960. E deu corpo a memoráveis jor-nais alternativos”. Para ele, o artista tinhaum traço exato e uma versatilidade espan-tosa. Maringoni lembrou que ele poderiater sido publicitário, ou desenhista ‘domercado’ internacional e feito fortuna.Mas não, achava isso uma ‘babaquice’.

Maringoni contou que, quando o co-nheceu, em 1978 na Redação do jornalMovimento, na Rua Virgílio de CarvalhoPinto, em Pinheiros, estranhou o compor-tamento do artista. “A sofisticação queele tinha ficava no trabalho. Pessoalmen-te, era de uma simplicidade atroz. Reen-contrei-o na Hora do Povo, na Retrato do

Brasil, na Reportagem e em andanças pelacidade. Dessas publicações, cobrava qua-se nada. Às vezes, nada mesmo”. Há unsdez anos, os dois conversaram em Pinhei-ros. “Ele havia aberto um bar, depois nãomais o vi…” Em sua opinião, Jayme Leãofoi mais uma vítima da ‘vergonhosa’ situ-ação de nossa imprensa. “Para algunseditores de arte, ele estaria ‘superado’.Ouvi de um deles, certa vez, que Jayme‘ficou muito marcado com esse negóciode ditadura’. Patifaria grossa. ‘Esse negó-cio de ditadura’ era a monstruosidade na-cional contra a qual nosso amigo se bateupor boa parte da vida. Jayme fica em seustrabalhos e nos amigos que aqui seguem.”

Artista completo, no sentido literal dotermo, pois via a arte como meio transfor-mador do mundo para um lugar melhor emais justo, Jayme Leão teve sete filhos,fruto de três casamentos. Ele foi sepulta-do no Cemitério Parque da Cantareira,perto da casa onde vivia, na zona nor-te de São Paulo.

A filha mais velha, a jornalista Lídi-ce Leão, disse ao Uol que o pai era relap-so quanto à saúde. Ele fumava e bebiamuito, embora se alimentasse bem e seexercitasse com regularidade. “Acho queo mundo perde, primeiro, um gênio, umilustrador, um dos últimos a trabalharcom pincel e tinta, embora ele operassebem o computador. E segundo, um mili-tante que acreditava realmente que as coi-sas poderiam melhorar e que as pessoas ti-nham o direito de lutar”, disse. Em pou-co tempo, acrescentou ela, seu pai se apro-

ximou da publicidade, área na qual atuoupor vários anos e que abandonou a carrei-ra por não suportar a idéia de ‘ganhar di-nheiro mentindo’.

Pouco depois da partida de Jayme Leão,a mesma Lídice publicou na rede socialFacebook, na internet, um comoventedepoimento sobre o pai: “Sou Lídice porcausa dele (que queria que eu tivesse umahistória sobre o meu nome pra contar).Leão por causa dele. Jornalista por causa

dele (que me levava para passe-ar nas Redações quando eu eracriança). Devoradora de livrospor causa dele (que me presen-teava com livros e álbuns doAsterix desde que comecei a leras primeiras sílabas). Esquerdis-ta por causa dele (que fazia pôs-teres sobre as guerrilhas da Nica-rágua e El Salvador e nos levavapara ajudar a vendê-los nos atospolíticos para enviar o dinheiropara as guerrilhas). Rigorosa comalguns gostos culturais por cau-sa dele (que não nos deixava as-sistir aos filmes dos Trapalhõese nos levava para assistir aos doAkira Kurosawa). Louca poruma cerveja e uma conversa debar por causa dele (que nos leva-va para os bares do Bexiga e jun-tava as cadeiras para dormirmosquando o sono nos derrubava)”.

Lídice observou, enfim, quecresceu ouvindo sua mãe dizer:“Essa menina tem o tempera-

mento igualzinho ao do pai dela. Quandoestá lendo um livro, o mundo pode desa-bar que ela não vê nada”. E finalizou: “Poisé. A culpa é dele. Do Jayme Leão. O maiorilustrador desse País e um dos maiores domundo. O melhor, mais louco e mais au-têntico de todos os pais. Nunca mais va-mos tomar cerveja juntos, ouvindo NoelRosa, Vinícius ou Cartola. Vai fazer falta,pai. Muita falta”.

Para todos nós.

Engajado, JaymeLeão foi colaboradordos principais jornais

de oposição àditadura militar, entreeles, o ex-, no qual foi

o responsável pelafamosa capa de Fidel

Castro raspando abarba, e Movimento,

onde foi autor dediversas capas e

ilustrações (como estaà esquerda). Tambémse notabilizou como

desenhista de capas eilustrações da Série

Vaga-Lume e foi oautor da capa para

vídeo de National KidContra os Incas

Venusianos.

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36 JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014

“Odeio os turistas destruidores de so-nhos, canibais ávidos, devoradores deimagens e vampiros de almas”, escreveuBrigitte Bardot em seu livro de memóri-as*. Não, ela não se referia – ainda – aBúzios, mas à ilha de Capri, onde rodavao filme de Jean-Luc Godard O desprezo (Lemépris, 1963), um ano antes de desembar-car no Brasil. Se Bardot, já no início dosanos 1960, execrava o impacto devasta-dor do turismo de massa sobre a míticailha do Mediterrâneo, teria que admitir– 30 anos depois e com muito desgosto –que seria ela mesma a responsável pelanotoriedade internacional do outroraparadisíaco balneário fluminense, quehoje corre o risco de implodir exatamen-te pelo imaginário impregnado no localpela maior estrela do cinema europeu daépoca. BB não apenas está ciente dissocomo se culpa pelo estrago: “Depois daminha passagem, aquele lugar transfor-mou-se na Saint-Tropez brasileira. Dápara acreditar que eu carrego em mimuma forma de destruição sistemática”.

Mas a história de Bardot com Búzioscomeçou exatamente como imaginamosque deva ser o encontro de uma estrela docinema esgotada e desiludida com o Édenque vai lhe proporcionar a cura pela cal-ma, pela simplicidade e pela beleza agres-te. Novamente, deixemos BB falar: “Foitalvez naquele universo tão primário, tãonatural, tão verdadeiro que passei asmelhores horas, os mais lindos dias daminha vida. Tenho vontade de rir quan-do chego a algum lugar, e todos se crêemobrigados a me receber com tapetes ver-melhos e outras sofisticações ridículasque eu detesto.”

Pois foi precisamente essa paraferná-lia que esperava Brigitte naquele 7 dejaneiro de 1964, quando desembarcou noGaleão após 14 horas devastadoras deviagem entre Paris e Rio de Janeiro abordo de um dos jatos Caravelle da Panairdo Brasil. Brigitte detestava viajar deavião e faria para o Rio a sua primeiratravessia oceânica na vida. O própriohorário de seu desembarque já era cruelpor si mesmo: 5h da manhã. Sabendo quenão teria como escapar das engrenagensque movem uma celebridade e que seriarecepcionada por um batalhão de fotógra-fos, BB tomaria alguns cuidados a fim dechegar apresentável. Planejou até usaruma peruca castanha que cobriria os seusfamosos cabelos compridos inconfundi-velmente despenteados à la Bardot, masque depois de tantas horas num avião po-

deriam simplesmente parecer desgrenha-dos. Seu esforço foi em vão: “Quando saído avião no Rio, cansada, deslocada, de-sesperada, passei do ar-condicionado auma chapa de chumbo derretida. Minhaperuca servia de touca de peles, quasedesmaiei de calor...”

Os 150 repórteres presentes e ensan-decidos não esconderam a sua decepção:seria mesmo aquela moça magra, de per-nas finas, abatida e morena a bête sauva-ge do cinema internacional, a despudora-da Brigitte, o “fenômeno social” (como achamou uma reportagem de Paris Match)que vinha alterando o padrão comporta-mental de milhões de mulheres desde ofim dos anos 1950 e que – aos olhos domundo – representava a própria França?No meio do mais absoluto caos, Brigit-te escapou do Galeão a bordo de umFusca de um dos amigos do seu namora-do marroquino-brasileiro Bob Zagury,deixando para trás suas malas e passapor-te. Depois de cruzarem perigosamenteum recém-inaugurado Aterro do Flamen-go – perseguidos por uma caravana de fo-tógrafos numa cena que poderia anteci-par em 33 anos o tipo de acidente fatal

Brigitte Bardot no Brasil: do infernoao paraíso, a bordo de um Fusca

Há 50 anos, o furacão francês – agora prestes a fazer 80 de uma vida pontilhada de altos e baixos – voltava da sua primeiraestada em Búzios. Encantada com o paraíso ainda intocado, chegou ao Rio em pleno Golpe Militar completamente desavisada.

POR FLÁVIO DI COLA

que envolveria Lady Di e um bando depaparazzi, em Paris –, Brigitte chegou aomodestíssimo apartamento de Bob emCopacabana onde ficou entrincheiradapor quatro dias.

Ela conta: “Estava à beira da depressão,longe de tudo, estranha a tudo, passava osmeus dias a chorar e as noites a gritar comBob, suplicando que me levasse de voltaà França. (...) Não aguentava mais, odia-va essas viagens de merda, esses jornalis-tas de merda e esse apartamento de mer-da. Era preciso criar uma estratégia paraobter minha liberdade”. A “estratégia”, naverdade, seria bastante prosaica: curvar-se ao inevitável peso de sua fama desco-munal e oferecer à mídia o alimento quea manteria saciada por algum tempo: foiassim que, há 50 anos, Brigitte Bardotproporcionou a mais concorrida entre-vista coletiva da história do CopacabanaPalace e um dos maiores engarrafamentosna Avenida Atlântica.

No eterno templo das estrelas em pas-sagem pelo Rio, e tendo atrás de si umcartaz com o famoso logotipo de AloísioMagalhães para o IV Centenário da cida-de, que seria comemorado dali a um ano,

*Todas as declarações de Brigitte Bardot deste artigoestão contidas no livro Iniciais BB: Memórias,publicado no Brasil pela Editora Scipione em 1997.Tradução de Carlos Wagner dos Santos, M. CelesteMarcondes e Renata Cordeiro. Título esgotado e sóencontrável em sebos.

FAMA

a imprensa carioca (ou seja, a brasileira)reencontrou a “verdadeira” Brigitte dastelas e das reportagens ilustradas: sorriden-te, disponível e atrevida. “Estava cheia,muito cheia, mas não podia escapar daque-la! Arrumada, maquiada, bem vestida,desesperada, tive de novo que me subme-ter às caretas, aos sorrisos, às perguntasestúpidas e vãs. Gostosa, sexy, patati, pa-tatá... fiel à minha imagem loira e insolen-te ao máximo”, revela Brigitte.

Enquanto essa coletiva resultava numtsunami de matérias sobre a diva francesae uma verdadeira “BBmania” varria oBrasil, o Fusca de Bob Zagury era maisuma vez discretamente acionado paratransportar arroz, querosene para lampa-rinas, inseticida, farofa, livros, jornais,latas de conserva, água mineral e o inde-fectível violão de Bardot para o iate queos conduziriam até Armação de Búzios.O encantamento de Brigitte pelo localfoi instantâneo: “Não havia nada emBúzios. Nem eletricidade, nem telefone,nem geladeira, nem água corrente, haviaapenas o mar, o céu, uma casinha rústicae doce, praias douradas a perder de vista.(...) Ali, descobri o verdadeiro Brasil e averdadeira paz”.

E também nascia a lenda que ajudariaa transformar uma aldeia tosca de pesca-dores no quinto destino turístico maisapreciado pelos estrangeiros em viagempelo Brasil. As recordações de Brigittedessa estada em Búzios vêm carregadas deuma poesia simplória, mas muito autên-tica e com um característico toque fran-cês: “...um pequeno paraíso onde eu cor-ria descalça, acompanhada de um gatoque eu chamava de Moumoume, mara-vilhada com os beija-flores, com os flam-boyants, as buganvílias, a cor translúcidade um mar cheio de espuma e brilhanteque parecia um champanha azul e com oqual eu me embriagava.” Em abril de 1964sua passagem pelo paraíso brasileiro aca-bava, sem se perturbar pelo golpe mili-tar em andamento. Brigitte partiu paraParis prometendo que voltava. Cumpriua sua palavra retornando em dezembropara passar o Natal em Búzios, numa se-gunda viagem muito mais tranquila e re-pousante, que teve até a visita a um ter-reiro de macumba. Mas isso é assuntopara quando chegar o próximo Carave-lle da Panair.

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Brigitte Bardot no paraíso em março de 1964: “Não havia nada em Búzios. Haviaapenas o mar, o céu, uma casinha rústica e doce, praias douradas a perder de vista.”