jornal da abi 398

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398 FEVEREIRO 2014 VIDAS ADAIL • CARLOS ALBERTO LUPPI • LOUREIRO NETO • RENATO POMPEU • SANTIAGO ANDRADE ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Entrevista inédita com o cineasta Eduardo Coutinho A força criativa de Henfil, o gênio do traço provocador Censura às biografias: a quem interessa proibir livros? PÁGINA 30 PÁGINA 16 PÁGINA 11 PÁGINA 3 O jornalista Tarcísio Holanda foi reconduzido à presidência da ABI por decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Tarcísio ocupava o cargo de vice-presidente da chapa Prudente de Morais, neto, quando foi vítima de um golpe dos próprios companheiros. FRANCISCO UCHA

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398FEVEREIRO

2014

VIDAS ADAIL • CARLOS ALBERTO LUPPI • LOUREIRO NETO • RENATO POMPEU • SANTIAGO ANDRADE

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Entrevista inédita com ocineasta Eduardo Coutinho

A força criativa de Henfil,o gênio do traço provocador

Censura às biografias: aquem interessa proibir livros?

PÁGINA 30 PÁGINA 16 PÁGINA 11

PÁGINA 3

O jornalista Tarcísio Holanda foi reconduzidoà presidência da ABI por decisão do

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Tarcísioocupava o cargo de vice-presidente da chapaPrudente de Morais, neto, quando foi vítimade um golpe dos próprios companheiros.

FRANC

ISCO

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2 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

03 ESPECIAL – A Assunção de Tarcísio

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

05 ESPECIAL – O Retrato do Abandono

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

06 ESPECIAL – A Cronologia da Crise

08 OPINIÃO – O que há por trás de uma luta esvaziada

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de interesses coletivos? por Joseti Marques

09 REFLEXÕES – Os grandes predadores,

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

por Rodolfo Konder

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

10 CINEMA – Um Oscar para a Via Veneto

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11 CENSURA – Biografias íntimas, porém permitidas

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

16 HOMENAGEM – Henfil, 70 anos

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26 HISTÓRIA – As mil faces de Araújo Porto-Alegre

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28 MEMÓRIA – A paternidade esquecida da imprensa

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

30 DEPOIMENTO – Eduardo Coutinho

SEÇÕES

DIREITOS HUMANOS

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

18 Revelado nome do assassino de Rubens Paiva

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

19 Em novos depoimentos, velhas lembranças do horror

19 No Dia da Mulher, ativistas recebem

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

pedidos de desculpas

LIBERDADE DE IMPRENSA

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

22 Em três semanas, sete jornalistas assassinados

24 Profissionais de imprensa reivindicam

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medidas de segurança

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25 Argentina e México tentam democratizar a mídia

VIDAS

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33 O homem que “desinventou” o Documentário

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34 Desenho brasileiro perde traço de Adail

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36 Renato Pompeu, dignidade e independência

38 No assassinato de Santiago,

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

um atentado contra a imprensa

39 Loureiro Neto,

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

craque do rádio

40 Carlos Alberto Luppi,

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o repórter humanista

DESTAQUESEDITORIAL

CARTA ABERTAAO FUTURO

“TODA INSTITUIÇÃO É a sombra alongadade um homem” – com esta frase do filósofo,poeta e escritor R.W. Emerson (1803-1882)podemos pensar num retrospecto sobre os ho-mens que emprestaram sua sombra à Associ-ação Brasileira de Imprensapara fazer dela o que, delonge, ainda reconhece-mos. O jornalista e escri-tor Fernando Segismundo,que por duas vezes assu-miu os rumos da entidade(1977/1978 – 2000/2004),definiu a missão da ABI demaneira ideal em 1969,quando disse que “além dasfinalidades fundamentais,a associação deve interpre-tar o pensamento, as aspi-rações, os reclamos, a ex-pressão cultural e cívica denossa imprensa; preservar a dignidade profis-sional dos jornalistas – e não apenas a de seussócios; acautelar os interesses da classe; esti-mular entre os jornalistas o sentimento de defesado patrimônio cultural e material da Pátria; re-alçar a atuação da imprensa nos fatos da nossahistória; e colaborar em tudo que diga respei-to ao desenvolvimento intelectual do País”.

PARA CUMPRIR UMA MISSÃO tão densa, semdeixar-se levar por sentimentos menores e comclareza de avaliação, é preciso ter, antes detudo, desprendimento, cujos sinônimos sãoabnegação, altruísmo, independência. A som-bra alongada dos que deram à entidade a es-tatura que ela ainda porta vem-se encolhen-do com o passar do tempo e deformando suaimagem – o pior dos momentos sem dúvida éeste, que a Casa está experimentando agora.A ABI está passando por uma crise estrutu-ral e de credibilidade que drena o pouco quelhe resta de prestígio junto à classe jornalís-tica e à sociedade brasileira. A Justiça, quesempre foi provocada pela entidade para de-fender os legítimos anseios do povo brasilei-ro, agora teve que se manifestar para defen-der a ABI de si mesma.

O MOMENTO É DE CRISE SIM, mas é tambéma oportunidade de uma revisão profunda parasanar problemas que têm sido postergados – umdeles, a renovação do quadro de associados e demembros das instâncias decisórias da Casa, cha-

mando as gerações mais jo-vens de jornalistas a daremsua contribuição e em-prestarem as suas sombraspara a construção de umaABI para e com futuro. Oexemplo de Barbosa LimaSobrinho, que conduziu aentidade por três manda-tos, o último indo de 1978até sua morte aos 103 anos,em 2000, não pode ser con-templado apenas pela ex-ceção de longevidade, maspelo compromisso do ho-mem que emprestou não

apenas a sombra, mas todos os seus dias a umacausa da qual a ABI era apenas o instrumento.

NÃO DEVE A ABI SER confundida com um prê-mio de consolação aos que consideram-se me-recedores de um reconhecimento, seja pessoalou profissional, que não lhes foi concedido aolongo do tempo. Ao refletir sobre isso, pode-mos entender a luta encarniçada daqueles quea Justiça mandou afastar dos postos de coman-do da ABI, em sentença proferida de forma grave– é que para moldar-lhes a sombra encolhida,curvada, era preciso que a Casa se apequenasse.Agora, diante da crise que nos convida à mudan-ça, teremos a real dimensão do mal que vem cor-rompendo a entidade nestes anos recentes.

A LUTA ESTÁ EM CURSO – ou a ABI se levantae se renova, ou será apenas a sombra de si mes-ma a se desfazer no tempo. Os jornalistas queformam a Chapa Vladimir Herzog, empunhandoa bandeira da mudança, convocam aqueles queacreditam que com os instrumentos do ofíciode jornalistas podemos contribuir para a cons-trução de uma sociedade mais justa, humana eigualitária. Queremos uma ABI de todos, à frentede seu tempo e com o olhar dirigido ao futuro.

DOMINGOS MEIRELLES

O HUMORCORROSIVO DE

HENFIL. PÁGINA 16

PELÉ NO TRAÇODE ADAIL.

PÁGINA 34

3JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

jornalista Tarcísio Holanda, amigo pes-soal do ex-Presidente Maurício Azêdo, eum dos maiores repórteres políticos doPaís, foi reempossado Presidente da As-

sociação Brasileira de Imprensa, em 21 de feverei-ro, após ter seu mandato cassado, através de umasérie de expedientes insidiosos praticados pelospróprios companheiros da chapa Prudente deMorais, neto. Quatro dias depois da morte do ex-Presidente, Tarcísio que veio especialmente de Bra-sília para assumir o cargo na reunião Ordináriado Conselho Deliberativo, marcada para 29 de ou-tubro de 2013, foi vítima de “um golpe de Esta-do”. Espelhando-se em um dos piores exemplosda Ditadura Militar, o presidente do Conselho PeryCota utilizou contra Tarcísio o mesmo artifício doAlto Comando do Exército para impedir que o vicePedro Aleixo assumisse a Presidência da Repúbli-ca com o afastamento por doença do MarechalArthur da Costa e Silva. Os detalhes sórdidos dacassação de Aleixo foram, inclusive, reproduzidoscom extraordinário talento por Zuenir Ventura, nolivro 1968 – O Ano Que Não Terminou.

Tarcísio Holanda, um dos profissionais maisrespeitados da sua geração, com 55 anos de servi-ços prestados à imprensa e ao País, foi humilha-do de forma inominável, pelos seus próprios pa-res, naquela reunião do Conselho Deliberativo,onde imaginava substituir o amigo morto quatrodias atrás. Acreditava que a reunião seria breve,havia inclusive preparado pequeno texto sobre sualonga convivência com o ex-Presidente, inclusiveda época em que foram colegas de Redação no Jornaldo Brasil. Não foi o que aconteceu. Ninguém esta-va preocupado com o luto. Não se prestou nenhu-ma homenagem póstuma ao jornalista brilhante,mas de temperamento difícil, que ocupava subjudice a presidência da entidade, desde a últimaeleição em abril do ano passado. Não se pediusequer um minuto de silêncio em memória do seufalecimento. Não foi uma reunião onde Tarcísioacreditava que fosse lembrada a perda do presi-dente que escolhera a dedo cada um dos integran-tes daquele Conselho. Não se ouviu também ne-nhuma palavra que traduzisse pesar ou tristeza.Em nenhum momento pronunciou-se o nome deMaurício Azêdo. Não se ouviu uma única voz que

exaltasse suas virtudes. A sensação era de que ha-viam colocado uma lápide de silêncios sobre a suavida e o seu passado. Era como se o presidente mortohá quatro dias nunca tivesse existido.

O espetáculo que se seguiu, naquela tarde de ou-tubro, foi vergonhoso e degradante, como o próprioTarcísio comentaria, dias depois. As máscaras sedesafivelaram e as ambições pessoais se exibiriamsem disfarces, de corpo inteiro, revelando a verda-deira face de cada um dos Conselheiros presentes.As ambições mais mesquinhas afloraram, de repen-te, de forma deplorável. Naquela sessão, seriam vi-olados os mais comezinhos princípios da ética e doDireito sem qualquer traço de pudor.

TEXTO GELATINOSOAncorado em “parecer jurídico” encomendado

ao escritório de advocacia Siqueira Castro, o mes-mo que defendia a chapa Prudente de Morais, neto,Pery Cota leu um texto gelatinoso que declarava

“vago” o cargo de vice. A decisão contrariava o Es-tatuto, o bom senso e uma das mais caras tradi-ções republicanas da Casa que sempre foi empos-sar o vice no lugar dos presidentes que não conse-guiam cumprir o mandato até o fim. Com a mortede Gustavo de Lacerda, fundador da ABI, a dire-ção da casa foi assumida pelo vice Francisco Sou-to. O mesmo ocorreu com o falecimento de Belisá-ro de Souza, substituído pelo vice Raul Pedernei-ras, um dos maiores caricaturistas da época.

Antes de iniciada a sessão de 29 de outubro eser anunciado o “parecer jurídico” que cassava seumandato, Tarcísio fora vítima de outro constran-gimento inaceitável em uma entidade com o pas-sado democrático da ABI. Fora conduzido até avaranda do sétimo andar , por um grupo de con-selheiros, e pressionado a renunciar. Como recu-sou-se a abrir mão do cargo para o qual fora elei-to, em 2010, juntamente com a maioria dos pre-sentes, Pery Cota abriu então a sessão com a lei-

A ASSUNÇÃODE TARCÍSIO

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O jornalistaTarcísioHolanda,finalmente,assume olugar que lheé de direito.

ESPECIAL

4 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

tura de um texto produzido, sob en-comenda, pela advogada Maria Aruei-ra Chaves. Seu parecer impedia o vicede assumir a presidência da ABI.

Tarcísio Holanda ainda lembrou quesempre desfrutara da confiança pes-soal do ex-presidente, de quem foraamigo por mais de 50 anos, e a quemsubstituíra, por inúmeras vezes, comoPresidente da Casa. Ninguém lhe deuouvidos. Transtornado, diante de ta-manha demonstração de ambição eoportunismo, desabafou em voz altapara que todos ouvissem:

– A presença de vocês me enoja...O presidente do Conselho, num

passe de mágica, transformou rapi-damente a Reunião Ordinária do Con-selho em Sessão Extraordinária, cas-sou o mandato de Tarcísio e indicouo nome de Fichel Davit Chargel parasubstituir o presidente falecido qua-tro dias atrás. Ao ser alertado de quenão poderia atropelar o Estatuto, queexigia prazo mínimo de cinco diaspara a convocação de uma Sessão Ex-traordinária, Pery Cota respondeucom arrogância:

– Sou o presidente do Conselho etenho poder até para extinguir a ABI.

TRAPALHADAS INACEITÁVEISA candidatura de Chargel, que até

então ocupava o cargo de diretor-ad-ministrativo, foi aprovada pelo plená-rio. Ao perceber que o comportamen-to açodado do Conselho poderia sercontestado em juízo, Pery Cota deci-diu convocar uma Assembléia-GeralExtraordinária para legitimar a eleiçãode Fichel Davit Chargel como presiden-te da Casa. O que se viu em seguidafoi uma sucessão de trapalhadas ina-ceitáveis para aqueles que pretendiamconduzir os destinos de uma entida-de como a ABI. No atropelo, a convo-cação foi realizada em datas e horári-os diferentes. No Edital publicado naedição 394 do Jornal da ABI, a convo-cação da Assembléia-Geral foi marca-da para 29 de novembro às dez da ma-nhã. No site da entidade, o Edital saiucom data diferente: 3 de dezembro, às10 h. Em carta enviada ao corpo soci-al, comunicavam uma nova alteração:não seria mais realizada na parte damanhã, mas às duas da tarde.

Diante da quantidade de patusca-das cometidas, viram-se obrigados areconhecer publicamente, numa espé-cie de mea-culpa, que o Edital não foratambém publicado no Diário Ofici-al e em jornal de grande circulação,como determina o Estatuto. Além dostropeços cometidos na confecção do

texto da convocação – que apesar demal redigido não tinha também qual-quer valor legal – cometeram outrograve pecado: não comunicaram aojuízo da 8ª Vara Cívil que pretendi-am realizar uma Assembléia-Geral.Durante cerca de dez meses, a Dire-toria e o Conselho Deliberativo entãoeleitos pela Chapa Prudente de Mo-rais, neto, omitiram do corpo socialque se encontravam sub judice; ou seja,exerciam suas funções em caráterprecário. Todos os seus atos poderi-am ser considerados nulos, de fato ede direito, quando a Juíza Maria daGlória Bandeira de Mello proferissea sentença definitiva que anulou aseleições do ano passado, como elamesma adiantou no texto da tutelaantecipada, onde constatou a existên-cia de graves irregularidades cometi-das pela antiga administração duranteo processo eleitoral realizado em 2013.

Diante das sucessivas agressões aoEstatuto e ao Código Civil, a oposi-ção entrou com novo processo, soli-citando desta vez a anulação de to-dos os expedientes e procedimentospraticados a partir de 29 de outubrodo ano passado, tanto pelo ConselhoDeliberativo, como pelo “presidenteeleito”, e demais órgãos que compõema gestão da Casa. No dia 18 de mar-ço, o juiz da 17ª Vara Cívil reconhe-ceu a ilegalidade dos atos cometidospela administração da ABI sob o co-mando de Fichel Davit Chargel e anu-lou sua eleição. A decisão, na verda-de, acompanhava o acórdão proferi-do, dia 24 de fevereiro, pela 11ª Câ-mara Cívil do Tribunal de Justiça daComarca do Rio de Janeiro. Atravésdessa manifestação, aprovada porunanimidade, os integrantes da 11ªCâmara restabeleceram a tutela an-tecipada da juíza Maria Bandeira deMello que determinava o retorno daantiga Diretoria e de todos os integran-tes dos órgãos da Casa até que fosseproferida a sentença definitiva. Osdesembargadores deram prazo de cin-co dias para que Fichel Davit Char-gel deixasse a presidência da ABI.

Inconformado com o Acórdão, Char-gel entrou com uma petição junto à8ª Vara Cível na tentativa de revertera decisão, mas o recurso não prospe-rou. Em seu novo despacho, a juízareconheceu Tarcísio Holanda como le-gítimo Presidente da entidade e con-cedeu prazo de 48 horas para queChargel se afastasse do cargo e trans-mitisse a Tarcísio todas as informa-ções sobre a administração da Casa,o que até agora não ocorreu.

No alto, a antiquada sala de imprensa que ainda utiliza velhas máquinas de escrever e o retrato deBarbosa Lima Sobrinho jogado no chão do que foi, um dia, um estúdio de tevê. Abaixo, o importante

acervo da Biblioteca Bastos Tigre exposto à ação destruidora da luz do sol e as empoeiradasmesas de sinuca do 11º andar que chegou a ser um dos locais mais freqüentados da ABI.

ESPECIAL A ASSUNÇÃO DE TARCÍSIO

5JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

Uma das principais preocupaçõesda nova gestão da ABI, sob o coman-do de Tarcísio Holanda, foi restabele-cer a democracia interna da entidadecom a realização de reuniões semanaisda Diretoria. Em cerca de oito anos, oantigo Presidente só promoveu 14 reu-niões, quando deveria ter realizado 192.Um dos primeiros atos de Tarcísio foitambém suspender a proibição infa-mante que impedia sócios com men-salidades em atraso de entrarem nasede da entidade, mesmo em busca deatendimento médico, no ambulatórioda Casa. Ao se dirigirem aos elevado-res, os sócios eram submetidos a umasituação de constrangimento. Eramobrigados a se identificar publicamentena portaria. Os funcionários consulta-vam então a Tesouraria para saber seestavam com o pagamento em dia.Caso contrário, eram impedidos de teracesso às dependências do prédio, o quelevou alguns associados a moveremações contra a ABI por danos morais.

Tarcísio pediu que a Diretoria fizesseum levantamento das intervenções ime-diatas destinadas a tirar a entidade doquadro de inércia e apatia em que seencontra, desde a morte do ex-presiden-te. Aprovou-se também um programade trabalho com o objetivo de recupe-rar, a médio prazo, o prestígio e a im-portância que a entidade desfrutava nopassado, quando era o fórum naturalde discussão das grandes questões na-cionais juntamente com outras entida-des da sociedade civil.

Entre os problemas que comprome-tiam o funcionamento do edifício-sede,constatou-se que a central de ar-condi-cionado estava paralisada há cerca deum ano. A falta de refrigeração impe-diu que o auditório fosse alugado paragrandes eventos, comprometendo umadas mais expressivas fontes de receitaalternativa da Casa. O orçamento dareforma das máquinas, realizado porempresa especializada, foi estimado emR$ 18 mil. O pagamento poderia, inclu-sive, ser realizado em quatro prestações,mas nada foi feito. Em condições nor-mais de funcionamento, o aluguel doauditório pagaria a reforma em poucomais de dois meses.

Outra questão que chamou a atençãoda Diretoria foi o emaranhado de ferra-gens que envolve a fachada do prédio,

O RETRATO DO ABANDONOdesfigurando o traçado das suas linhasoriginais, conhecidas como Brise Soleil.A instalação do chamado “quebra-lixo”foi iniciada na véspera do carnaval doano passado por determinação da De-fesa Civil do Município. A medida vi-sava impedir que as placas de mármo-re italiano estufadas, localizadas emvários pontos da fachada, caíssem so-bre as pessoas que caminham pelas cal-çadas do prédio. A substituição das pla-cas danificadas, entretanto, até hoje nãofoi realizada. O custo do material foiorçado em R$ 12 mil, mas o serviço nãoandou, mesmo diante das facilidades depagamento oferecidas pela marmoariaresponsável pelo corte e polimento dasplacas. Cerca de R$ 50 mil foram atira-dos pelo ralo com o aluguel do “quebra-lixo” sem que fosse realizada qualquertipo de obra na fachada.

A Diretoria está providenciandotambém a troca dos cabos de aço doselevadores que deveriam ter sido subs-tituídos há mais de dois anos.

A revitalização do 11º andar é ou-tra das prioridades estabelecidas pelanova gestão com o objetivo de atrairos associados aposentados que deixa-ram de freqüentar aquele espaço no-bre de convivência social e lazer. ADiretoria pretende colocar à disposi-ção do sócios, revistas semanais decirculação nacional, além dos princi-pais jornais de outros Estados, resta-belecendo uma das antigas tradiçõesdo onze como salão de leitura. Com aaproximação da Copa do Mundo, vaiser também instalada nesse espaçouma televisão de plasma de 61 pole-gadas, em substituição ao velho apa-relho comprado em 2004. Os sócios po-derão assistir aos jogos da Copa numambiente alegre e descontraído, comosempre ocorreu no passado.

A realização de torneios de sinucaé uma das propostas que deverá sertambém rapidamente implementadapela nova Diretoria para estimular afreqüência do onze, que se encontra to-talmente abandonado. Outro projetoé aproveitar o local para a realizaçãode cursos de inclusão digital, além deinstalar computadores que ficarão àdisposição dos jornalistas que neces-sitem transmitir textos para a Reda-ção sem precisar se deslocar até à sededos jornais onde trabalham. A reali-

Andaimes em volta do prédio da ABI, colocados por determinação da Defesa Cilvil,protegem transeuntes do perigo de queda de placas da fachada malconservada.

Abaixo, o estado caótico da casa de força do prédio que necessita de reparos urgentes.

ESPECIAL

6 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

AS RAÍZES DA CRISE QUECONSOME AS ENERGIAS DA

MAIS LONGEVA GUARDIÃ DASLIBERDADES afloraram na ReuniãoOrdinária do ConselhoDeliberativo da ABI realizada em26 de fevereiro de 2013. Ojornalista Pery Cota, que presidia asessão, pediu ao então presidenteda Casa que indicasse os membrosda Comissão Eleitoral. Opresidente não se fez de rogado epropôs três nomes da suaconfiança pessoal: ContinentinoPorto (como presidente), MarcusMiranda e José Pereira da Silva, oPereirinha. A comissão foi aprovadapor unanimidade pelo plenário.Pery e o então presidente da ABIagiam de mãos dadas. Os doissabiam que o método utilizadopara a composição da Comissãoatropelava o Regulamento Eleitoralem vigor. A decisão ofendia oparágrafo 1º do Artigo 5º doRegulamento que dizia ser apresidência da Comissão Eleitoralprerrogativa exclusiva de um dosmembros da Diretoria da ABI . Odocumento era claro. Afirmava quea presidência “caberá ao Secretárioda Diretoria Executiva quecoordenará a eleição, não tendodireito a voto na Comissão”. Coma reforma do Estatuto patrocinadapelo então presidente da Casa, ocargo de Secretário da DiretoriaExecutiva foi extinto, mas suasatribuições passaram a serexercidas pela DiretoriaAdministrativa. Pery e o entãoPresidente comportavam-se comose comandassem a assembléia deum grêmio estudantil. Aoafrontarem as regras do códigoeleitoral da entidade,contaminavam também todos osatos proferidos por uma Comissãoviciada desde o berço. Não se podiaimaginar que uma instituição com opassado de lutas da ABI fosse capaz

de utilizar expedientes espúriosque ofendem a inteligência econspurcam as melhores tradiçõesde uma entidade centenária que seorgulha de ser a mais antigainstituição da sociedade civil. Aavalanche de iniqüidades que seabateria sobre a Casa dosJornalistas estava apenas no início.

EDITAL DE CONVOCAÇÃOPARA AS ELEIÇÕES DE 2013

TAMBÉM NÃO OBEDECEU AO QUEREZA O ARTIGO 20º doRegulamento Eleitoral quedetermina a fixação do documentoem todas as dependências daentidade. O Edital foi colocadoapenas no quadro de avisos dosétimo andar.

O COORDENADOR DA CHAPAVLADIMIR HERZOG,

JORNALISTA PAULO JERÔNIMO,PROTOCOLOU O PEDIDO DACHAPA DE OPOSIÇÃO NO DIA 18DE MARCO, como estabelece oArtigo 19 do Regulamento Eleitoral.Apesar do Artigo 5º estabelecerque a Comissão Eleitoral deveráser “integrada por membros dasvárias chapas concorrentes”, PauloJerônimo jamais foi convocado a seincorporar à referida Comissão. Osintegrantes reuniam-seexclusivamente com o entãoPresidente da Casa, sob a alegaçãode que este representava a chapaPrudente de Morais, neto.

AO TENTAR SE INFORMAR,DIAS DEPOIS, SOBRE OS

TRABALHOS DA COMISSÃOELEITORAL, POR NÃO TER SIDOCONVOCADO a participar das suasreuniões, Paulo Jerônimo foisurpreendido com a informação deque o prazo para contestação daimpugnação de candidatos haviaexpirado dia 20 de março. A chapade oposição não poderia, portanto,

A CRONOLOGIADA CRISE

zação de cursos livres de português etécnica de redação está nos planos daatual Diretoria, que pretende tambémfirmar convênios com universidadespara a realização de seminários a fimde atrair futuros profissionais, de acor-do com o processo de renovação doquadro social da ABI proposto pelanova gestão da Casa. A revitalizaçãodo antigo Centro de Memória, com adigitalização do seu extraordinárioacervo, está sendo também avaliadapor empresa especializada na recupe-ração de fitas k-7. O Centro de Memó-ria, que se encontrava completamen-te abandonado, com as fitas cheias demofo e amontoadas em caixas de pa-pelão, pretende reunir os depoimentosrecolhidos, nos anos 1980, em uma pu-blicação especializada, Cadernos de Jor-nalismo ABI. Com a edição do que forpossível recuperar, a publicação colo-cará à disposição dos interessados in-formações inéditas sobre revistas ejornais que revolucionaram a imprensabrasileira no século passado. Entre ostítulos escolhidos estão O Lançamentode O Cruzeiro, A Reforma do JB, A Intro-dução do Lead no Brasil, e A Fundação eo Papel de Última Hora com depoimen-tos exclusivos dos principais protago-nistas desse momento extraordinárioda imprensa contemporânea.

Uma das maiores preocupações danova gestão é também com a melho-ria do atendimento do serviço médicodo sexto andar. Nos últimos anos, pordescaso da antiga Diretoria, o corpoclínico não foi renovado. Várias espe-cialidades médicas deixaram de seroferecidas aos associados, o que con-tribuiu para a decadência e a má qua-lidade dos serviços prestados. Ao con-trário de Fichel Davit e do ex-presidentefalecido, Tarcísio Holanda não preten-de acabar com o atendimento médicona ABI por entender que o jornalista,ao se aposentar, necessita de um ser-viço que atenda suas necessidadesmais imediatas, como também de todaa sua família. Tarcísio autorizou aDiretoria a promover consultas com ad-ministradoras de planos de saúde a fimde estudar a possibilidade de seremcriados convênios que sejam vantajo-sos para os associados da Casa. Quemassistiu à comovente entrevista do ra-dialista Gil Gomes ao programa DomingoShow, da Rede Record, na tarde de 23de março certamente perceberá as vile-zas que o destino reserva aos jornalis-tas que se aposentam e rompem, pormotivo de doença, os laços de convivên-cia com seus antigos companheiros detrabalho.

participar das eleições marcadaspara 26 de abril por ter “perdido oprazo”, além de conter váriosintegrantes em situação deinadimplência.

A CHAPA VLADIMIR HERZOGNÃO FOI EM NENHUM

MOMENTO NOTIFICADA PARAQUE SUBSTITUÍSSE OU QUITASSE,NO PRAZO REGIMENTAL DE 48HORAS, os sócios apontados com opagamento das mensalidades ematraso, como determina o Artigo 24do Regulamento Eleitoral. Aimpugnação foi decidida semqualquer aviso prévio aocoordenador da chapa ou aosassociados que dela participavam.

OS POUCOS ASSOCIADOSQUE TOMARAM A INICIATIVA

DE REGULARIZAR SEU DÉBITOS,POR CONTA PRÓPRIA, NO BALCÃODA TESOURARIA DA ABI, FORAMIMPEDIDOS DE FAZÊ-LO. Apresidência da Casa, além de darférias ao funcionário da Tesourariaresponsável pelo setor de cobrançade mensalidades, proibiu quequalquer pagamento fosseefetuado no balcão da entidade,violando uma das mais antigastradições da instituição. A quitaçãodos débitos, de acordo com opatrono da chapa Prudente deMorais, neto, não poderia mais serrealizada diretamente naTesouraria, mas só através deboleto bancário, emitido peloSantander. Como a ABI nãoautorizou o envio dos boletos dosassociados com a mensalidade ematraso, os integrantes da ChapaVladimir Herzog não tiveram comozerar seus débitos com a entidade.Essa manobra insidiosa impediu aoposição de participar das eleições,sob alegação de que vários dos seusintegrantes estavaminadimplentes.

ESPECIAL O RETRATO DO ABANDONO ESPECIAL

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OS MEMBROS DA CHAPAPRUDENTE DE MORAIS, NETO,

LIDERADOS NA ÉPOCA PELOENTÃO PRESIDENTE DA ABI, QUEESTAVAM COM SUASMENSALIDADES EM ATRASORECEBERAM, POR SUA VEZ,TRATAMENTO PRIVILEGIADO oque viola o princípio da isonomiaassociativa definido nos Artigos 53e 54 do Código Civil. A leidetermina que todos os sóciosdevem receber o mesmotratamento da instituição a queestão filiados. A solução foiresolvida pelo Presidente da ABIde forma indigna, diante daimportância do cargo que ocupava.Através de cheque pessoal do BancoItaú, ele quitou, de uma só vez, nobalcão da Tesouraria, os débitos de17 associados inadimplentes queintegravam sua chapa. Assinado nodia 11 de março, o cheque, no valorde R$ 595, foi depositado naagência México do Banco Santander.

No verso do cheque, explicouque o mesmo destinava-se aopagamento de associados da ABIque não estavam com a situação emdia na Tesouraria. Além deregularizar os débitos com aconcessão da anistia e regularizar asituação dos integrantes da ChapaPrudente de Morais, neto, com opagamento de uma únicamensalidade (R$ 35), o presidentelistou o nome de cada um dos17 sócios em atraso que forambeneficiados com o pagamento decontribuições efetuadas comdinheiro do próprio bolso.

DIANTE DO CONJUNTODE IRREGULARIDADES

COMETIDAS TANTO PELACOMISSÃO ELEITORAL comopelo então Presidente da Casa,a coordenação da chapa VladimirHerzog ingressou na justiça comum pedido de liminar para que aseleições de abril do ano passadofossem suspensas. A juíza Mariada Glória Bandeira de Mello, da8ª Vara Civil, acatou parte dopedido da Oposição. Diante daproximidade da eleição,determinou que ela fosse realizadasub judice; ou seja, o resultado nãoteria valor legal até que fossemapuradas as denúncias anexadasaos autos do processo. Entre asmuitas denúncias incluía-se a mágestão econômico- financeira daentidade, exercida ilegalmente pela

mulher do então presidente, asdívidas colossais da instituição e opéssimo estado de conservação doedifício-sede, como atestou o laudode vistoria realizado pelo arquitetoFernando S. Krüger. A Oposiçãoanexou ao processo várias certidõesemitidas pelo Registro Geral deImóveis do Município do Rio deJaneiro que revelaram um quadroassustador. Quase todos os andaresdo prédio encontram-sepenhorados, inclusive as lojas doandar térreo, como garantia dosdébitos devidos. A penhora dospavimentos da mais longeva guardiãdas liberdades ameaça o futuro daentidade. A ABI é um patrimônioque não pertence apenas aos seusassociados, mas a toda a sociedadebrasileira. Uma decisão judicialpoderá autorizar, a qualquermomento, que todo o prédio vá aleilão, eliminando do cenário políticoa mais notável das trincheiras naluta contra o arbítrio e a opressão.

NA AÇÃO ANULATÓRIAENCAMINHADA À JUSTIÇA

EM 24 DE ABRIL DE 2013, QUEHAVIA COLOCADO A ELEIÇÃO DAABI sub judice (informação que adireção da Casa havia sonegado aocorpo social), a chapa VladimirHerzog acrescentou outra denúncia:no verso do cheque pessoalutilizado para quitar ilegalmente osassociados inadimplentes da chapaPrudente de Morais, neto, o entãoPresidente da entidade anistiou ummorto: o jornalista Tim Lopes,falecido em 2002. O presidente daABI pagou as mensalidades ematraso de Tim, acreditando quequitava as dívidas do irmão,Argemiro do Carmo Lopes doNascimento, candidato aoConselho Fiscal. O ato falho doentão comandante da Casa deixoua chapa Prudente de Morais, netoem situação irregular. ORegulamento Eleitoral estabeleceno artigo 14 que todas as chapas sópodem ser inscritas completas, como nome correto dos seusintegrantes, além dos 51 membrosestarem com suas mensalidadesrigorosamente em dia.

DIANTE DESSA FALHA,A CHAPA PRUDENTE DE

MORAIS, NETO FOI REGISTRADACOM UM CANDIDATOINADIMPLENTE, O QUE A IMPEDIADE PARTICIPAR DA ELEIÇÃO.

O então Presidente declarou,na época, ao jornal O Globo (ediçãode 26 de abril de 2013), que o errofora sanado com o pagamento dareferida mensalidade através derecibo emitido pela Tesouraria.A emenda saiu pior que o soneto.Ao tentar se justificar, o entãoPresidente não percebeu que aquitação da dívida de Miro Lopesocorrera também fora do prazo, oque impedia a situação de concorreràs eleições da Casa.

AO LONGO DO PROCESSOVERIFICARAM-SE OUTRAS

IRREGULARIDADES praticadas peloentão Presidente da ABI. Aoprocurar reparar o erro por elecometido no verso do cheque foiemitido um recibo da Tesouraria,com data retroativa, na tentativade provar que a quitação do débitode Miro Lopes ocorrera dentro doprazo. O documento apresentadoem juízo estava fora do padrão.Fora confeccionado em preto ebranco, com ajuda de computaçãográfica, em flagrante desacordo como talonário utilizado pelaTesouraria da ABI.

O Relatório de Atividades daDiretoria aprovado tanto peloConselho como pela Assembléia-Geral continha também gravesomissões. Não fazia qualquerreferência ao valor total das dívidasda entidade, além de sonegar ainfamante demissão de velhosfuncionários, sem indenização, quehaviam doado os melhores anos desuas vidas à instituição. Asdemissões, ocultadas do corposocial,e que representaramsignificativa sangria nas parcaseconomias da ABI foram tambémpraticadas à revelia da Diretoria.Através de nova petição, anexadaaos autos, a Oposição manifestou-se de forma vigorosa ao sustentarque uma instituição, com o passadoda ABI, não podia violar conquistashistóricas da classe trabalhadora,como o direito de receber avisoprévio, férias vencidas e horasextras, além de impedir quetivessem acesso aos recursos doFGTS. “Quando essa prática vira

rotina, não são os servidores osmais atingidos. Quem sofre a maiordegradação é a própria ABI”,acentuou o documentoincorporado aos autos do processo.

AO LONGO DA QUERELAJUDICIAL QUE SE ESTENDE

DESDE ABRIL DE 2013, OSASSOCIADOS QUE SEORGANIZARAM EM TORNO DACHAPA VLADIMIR HERZOG NATENTATIVA DE SALVAR AENTIDADE DO COLAPSO QUE SEAVIZINHA, FORAM VÍTIMAS DEINOMINÁVEIS AGRESSÕES VERBAIScometidas pelo então Presidente daCasa. Os integrantes da chapa deOposição foram tratados como“moleques”, “gente ambiciosa”,“oportunistas” e até chamados de“quinta-colunas” , expressão muitousada nos anos 1940 para qualificaros simpatizantes do nazismo. Asacusações infamantes visavam, naverdade, confundir o corpo social.Os ataques pessoais destinavam aenodoar a imagem de jornalistasrespeitáveis, com um passadoimpecável, como Audálio Dantas,Carlos Chagas, DomingosMeirelles, Ziraldo, Zuenir Ventura,Alberto Dines, Paulo Jerônimo,Flávio Tavares, Lima de Amorim,Joseti Marques, Ana MariaCostábile, Paulo Caruso, CarlosNewton, Jesus Chediak, TarcísioBaltar, Juca Kfuri, Anna Lee etantos outros profissionais comrelevantes serviços prestados aoPaís , à imprensa e à defesa dasliberdades.

As agressões foram publicadastanto no site da entidade como emvárias edições do Jornal da ABI. Ascalúnias e informações distorcidasvisavam produzir uma versãofalsificada dos episódiosdesconcertantes que ocorriam, àsorrelfa, nos bastidores da Casa.

Nenhuma das acusações queconstam dos autos conseguiram sercontestadas em juízo pelo entãoPresidente da ABI. Na últimaAudiência de Conciliação eJulgamento promovida pela 8ª VaraCívil, o antigo comando daentidade arrolou cincotestemunhas de defesa na tentativade reverter os rumos do processo. AOposição abriu mão da convocaçãode testemunhas. Não se fazianecessário colher depoimentos deterceiros. As provas dos autos eramtão expressivas que falavam por si.

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Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Domingos Meirelles e Francisco Ucha

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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lagee Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, JorgeSaldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e ManoloEpelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Conselheiros Efetivos 2012-2015Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, FichelDavit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias HiddSobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), MiltonCoelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, SylviaMoretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, JoséGomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, FranciscoPaula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce deLeon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva,Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

O título deste artigo, por si só, poderia poupar oleitor das linhas que se seguem. A pergunta, dirigidaaos jornalistas, é o gancho que justifica a pauta e quepoderia dar início à apuração da uma matéria que nin-guém ainda se dispôs a escrever, porque os jornalis-tas não se interessam pela ABI que temos tido. E cabea pergunta: o que justifica uma luta ferrenha, comrecurso até mesmo a expedientes que ferem a honra ea ética, em nome apenas da manutenção de cargosna diretoria da Associação Brasileira de Imprensa?

A inquietação surgiu ao reler a edição do Jornal da ABI,comemorativa da eleição que substituiu Fernando Se-gismundo por Maurício Azêdo, em abril de 2004, dan-do posse à diretoria da qual fiz parte, como diretora deJornalismo. Voltar àquela edição foi uma provocação deDomingos Meirelles, eleito na época como Diretor deAssistência Social, e que disse ter-se comovido ao reler oque eram os nossos sonhos. Mas o que vi nas entreli-nhas daquele jornal não foram apenas os sonhos quehoje vemos frustrados, mas uma realidade problemáti-ca que ainda aguarda apuração e sem o que a ABI ja-mais virá a cumprir seu ideal. Peço, aos que tiveram apaciência de nos ler até aqui, que consultem a matériaque conta as artimanhas vergonhosas urdidas pelos “in-quilinos” dos cargos da ABI, para impedir a eleição quedaria a vitória à chapa encabeçada por Maurício Azêdo,de oposição a Fernando Segismundo, que ocupou a pre-sidência nos período de 1977-1978 e 2000-2004.

O que aconteceu naquela oportunidade está se re-petindo agora, com os mesmos lances que desrespei-tam os princípios democráticos e ferem a honra de qual-quer cidadão, sendo ainda mais grave se o cidadãofor um jornalista a quem a sociedade confia a defesade seus anseios. E desta vez, por aqueles que diziamdefender a bandeira de uma ABI democrática, plu-

ral. E aí, mais uma vez, cabe a pergunta: o que faz comque jornalistas lambuzem a honra e manchem o cur-rículo em nome da permanência nos cargos de dire-toria da ABI?

O que se espera do jornalista que ocupe qualquerdos postos da diretoria é doação pessoal, trabalho vo-luntário, o arregaçar das mangas sem qualquer remu-neração – e aí se inclui o posto de Diretor Presidente.Em 2004, quando assumi a Diretoria de Jornalismoda entidade, eleita na chapa a que hoje estamos nosopondo, tinha plena consciência da missão a cum-prir e da doação implícita naquele compromisso. Osregistros e documentos podem comprovar não ape-nas o quanto foi significativa a minha contribuição,mas também a de outros dedicados companheiros,como Domingos Meirelles, que não media esforçospessoais para honrar compromissos da entidade.

Naquela ocasião, nos batemos pelo que acreditá-vamos ser “a ABI que nós queremos”. O tempo aca-bou por mostrar que esse “nós” daquela frase de cam-panha eram apenas uns poucos, e que a ABI acaba-ria por voltar a ser aquela mesma caixa preta, orna-mentada de honrarias, mas de costas para a socie-dade, para o jornalismo e para os jornalistas, des-colada dos dilemas e exigências do seu tempo. En-tão, ainda mais uma vez a pergunta se impõe: o queestá por trás de uma luta que não contempla inte-resses coletivos? O que foi que a ABI fez, nestes úl-timos 10 anos, de que os jornalistas – todos nós, osque não vivemos da ostentação de credenciais sim-bólicas – podemos nos orgulhar?

Não vale relacionar aí a carona nas lutas entabu-ladas por outras entidades, em troca de descontos ouisenção no aluguel do amplo auditório da Casa; tam-bém não devem servir de argumento as reportagensque denunciam as condições graves que enfrentamos jornalistas no País e no mundo, porque as reporta-

gens são requentadas de outros veículos; menos ain-da pode ser citado qualquer amparo a jornalistas quevivem as difíceis condições da aposentadoria ou de-semprego, porque isso realmente não há.

Ao contrário, o que há é a ameaça constante de ex-tinção de um serviço médico básico que a entidade aindamantém em um dos seus 13 andares. As críticas aosdesvios da mídia jornalística? Disso, a ABI nem passaperto! Aliás, como apontar falhas no que fazem os jor-nalistas, se a ABI não se relaciona com as entidades deformação dos jornalistas – as universidades e institui-ções de pesquisa? Em nome de que os associados pa-gam suas mensalidades? Para receber um jornal de man-chetes adjetivadas que apenas refletem a bile do seueditor e, destituído de prestígio e alcance, a nada maisserve? Não, isso não vale o quanto nos pesa.

Nos últimos dias do final do meu mandato, em 2007,lembro que uma associada que ocupava um cargo “vir-tual” na diretoria comemorava o final feliz de uma“grande luta da entidade”: conseguir o espaço para aconstrução do Mausoléo do Jornalista. Para que isso?– eu pensei. Talvez para abrigar a vaidade – que secrê imortal – daqueles que estão transformando aentidade em um puxadinho desse futuro mausoléo,dado o distanciamento em relação à vida que pulsado lado de fora do edifício histórico.

E quem será digno de ter seus restos abrigados noespaço nobre desta última honraria? Certamente,lá não terá lugar para jornalistas como o saudoso Con-selheiro Arthur Cantalice, que teve um infarto ful-minante durante uma reunião do Conselho da ABI,quando se manifestava e, indignado, tentava impedirtudo isso contra o que agora lutamos. Não, essa podeser a ABI que “eles” queriam. Mas não é a ABI quenós merecemos.

POR JOSETI MARQUES

O que há por trás de uma lutaesvaziada de interesses coletivos?

Publicado originalmente em 27 de abril de 2013.

OPINIÃO

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REFLEXÕES

POR RODOLFO KONDER

Os grandes predadoresieram do mar, com a neblina do inver-no, trazendo consigo os mistérios dosnavios naufragados, a voracidade dos

peixes e a paixão dos suicidas. Eram peludoscomo ursos, insaciáveis em sua ambição deconquista e implacáveis na arte de comandar.

Numa tarde fria, hoje perdida nos escaninhosda História, surgiram do horizonte difuso, emforma de vultos ameaçadores, para se espalharpelas praias. Rodearam primeiro os arrecifes,com a maestria dos velhos navegadores; depoisesfaquearam a areia branca com as quilhas doseu apetite. Então, espetaram a carne do con-tinente com suas bandeiras.

Os grandes predadores abriram os flancos daterra e engoliram suas entranhas. O que nãopodiam comer, transportavam de volta para omar. Derrubaram as florestas, detiveram as águasdos rios mais caudalosos, fizeram desaparecermontanhas inteiras. Mais: além da topografia,modificaram o clima. Eliminaram o inverno,por exemplo, porque não lhes aprazia o frio. Ereduziram as chuvas de outono, porque a umi-dade os irritava.

Os ilimitados bosques do litoral foram logotransformados em pastos. Mas os pastos cedose tornaram desertos, a terra virou pó, a vidaesparsa se enterrou ou fugiu para a serra. Os

rios adquiriram tons amarelados – e vomitavampeixes mortos e amarelados num oceano quetambém mudava de cor, com o resto da paisa-gem transfigurada.

Junto ao mar, os grandes predadores organi-zaram imensos campos de concentração, ondeagruparam os índios que haviam escapado àbestialidade do primeiro assalto.

Na sierra, a caçada não foi menos brutal. Osfugitivos buscaram refúgio nas cavernas maisprofundas, no topo das montanhas mais íngre-mes, nos pântanos, no oco dos abismos, na mataentrelaçada. Mas nada podia deter as garrasassassinas dos grandes predadores, dotados deolhos que se esticavam até o horizonte e viamatravés da escuridão.

Finalmente, quando tudo parecia perdido equase não havia mais insubmissão, alguma coisaestranha aconteceu aos predadores. Eles come-çaram a se desfazer. Desfaziam-se por dentro,primeiro. Mas logo a erupção interior vinha àtona dos corpos, em forma de hediondas feridasque pareciam ferrugem. Os invasores enferruja-vam de dentro para fora. Empalideciam, perdi-am as garras poderosas e a fome insaciável, des-norteavam-se ao sol, a visão turvada pelo medoda morte. Deixaram de ver à distância, confun-diam os sons mais triviais, temiam as armadilhas

do próprio faro. Quando a ferrugem brotava àflor da pele, recolhiam-se aos quartos especiaisde suas fortalezas para morrer.

Morreram às centenas. Morreram aos milha-res. Então decidiram trazer do mar seus feiti-ceiros, que chegaram carregados de instrumen-tos de uma nova magia e de líquidos e ervas, ede estranhos ouvidos portáteis, e de facas e pu-nhais, e de pinças e agulhas, e de fios e gazes.Durante meses, os feiticeiros trabalharam comintensidade. Depois, concluíram que os pre-dadores haviam sido contaminados pelo vírusda própria destruição que semeavam de formatão indiscriminada. E, contra isso, não tinhamremédio conhecido. Iniciou-se a retirada.

Os invasores se arrastaram para as praias, comseus trens, ônibus, carroças, carretas, automó-veis e caminhões abarrotados com os destroçosde muitos saques. Formaram-se imensas filas, desdea base da sierra. Muita gente morreu na espera.Mas logo uma frota monumental de navios ar-fava sob o peso da carga a ser transferida para ooutro lado do mar. Os grandes predadores se foramcomo haviam chegado – transformados em vul-tos que se fundiam na neblina do inverno.

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação daABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação daCidade de São Paulo.

V

ELIAN

E SOA

RES

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la não é tão longa: são apenasoito curtos quarteirões. E nemantiga para os padrões roma-nos: foi aberta no século 19. Co-

meça torta numa praça barroca do século17, mas ao subir fica reta, acabando numamuralha romana. Sua arquitetura nada temde peculiar: parece um típico bulevar no-vecentista de inspiração francesa comgrandes hotéis e cafés. Mas nela encontra-mos uma placa sui generis, colocada pelaprefeitura, cujos dizeres explicam por queela entrou na história do mundanismo in-ternacional: “A Federico Fellini, que fez daVia Veneto o teatro da Doce Vida”. Isso diztudo da Via Vittorio Veneto: passarela doperíodo mais fabuloso e controvertido dahistória moderna da Itália, os anos 1950 e1960 – apogeu do chamado “miracolo ita-liano” e da transformação de Roma naMeca para onde se destinavam celebrida-des de todos os calibres, principalmente ascinematográficas, levadas pelo êxodo dassuperproduções norte-americanas para aEuropa, a ponto de a capital italiana ser ape-lidada de “a Hollywood sobre o Tibre”.

A obra-prima de Federico Fellini escan-dalizou despudoradamente o mundo em1960 ao arrancar o véu solar e risonho nor-malmente atribuído à vida ítalo-romana.Por isso, enfrentou campanhas ferozes etodo tipo de barreiras censórias pelo mun-do afora, conquistando a tapas o respeitomundial, enquanto A Grande Beleza dodiretor Paolo Sorrentino – com a qual adoce vida felliniana vem sendo exaustiva-mente comparada – chegou serenamenteà entrega do Oscar no 2 de março como ofavorito na categoria de Melhor Filme Es-trangeiro, após protagonizar um verdadei-ro arrastão de prêmios importantes, comoo Globo de Ouro e o BAFTA, cercado deunanimidade e reconhecimento. Se Romaainda é a Cidade Eterna em ambos os fil-mes, os tempos são decididamente outros.Se o cinismo, o amargor, o vazio e o vulgarhedonismo precisaram ser corajosamen-te registrados por Fellini, eles já são acei-

Os personagens do afresco continuam amover-se, a despir-se, a agarrar-se, a dan-çar, a beber, como se esperassem algo”.

Já no filme de Paolo Sorrentino, percor-remos uma Via Veneto obscura, quase de-serta – aliás, como a cidade inteira – pon-tuada por inferninhos decadentes e casasde pasto com seus “menus executivos” sobmedida para uma clientela de emergentesasiáticos. A vida social pública em Romamorreu, só restando a privada, confinadaem coberturas, night clubs, apartamentose palácios murados. Enquanto uma elite es-túpida e brega se diverte nesses interioressob uma penumbra de neón e uma verti-gem fabricada por cocaína e sintetizado-res bate-estaca, a cidade recolhe-se numaausência quase sinistra. Essa Roma não émais nem pagã nem papal, nem alegre oumisteriosa. Está simplesmente vazia. À es-pera de alguma revelação?

tos como ingredientes normais da vidacontemporânea, como sugere Sorrentino.Se na época retratada pela obra fellinianao mundo baila irresponsavelmente a pou-cos centímetros de um abismo, represen-tado por uma guerra nuclear iminente edevastadora no apogeu da Guerra Fria, nofilme de Sorrentino o espetáculo já acaboufaz tempo e dele só sobraram ruínas, comoatestam as sombras tenebrosas do Coliseuque se projetam permanentemente ao al-cance de nosso olhar através da luxuosacobertura do personagem principal.

As diferenças na forma de ambientar aVia Veneto nos dois filmes são um sinto-ma de como Roma e o mundo passaram dofrenesi para a melancolia em poucas déca-das. A Via Veneto de Fellini é caótica, é umformigueiro onde se encontram todos ostipos paridos no baixo ventre da prospe-ridade recém-adquirida: starlets, travestis,prostitutas, rufiões, turistas incautos, no-bres decadentes, sultões, curiosos, desocu-pados, uma fauna em ininterrupto trânsi-to pronta para ser abatida pela voracida-de das câmeras dos paparazzi. Reproduzire encenar esse turbilhão feérico que só po-deria acontecer na Via Veneto tornou-seuma obsessão tão grande para Federico Fe-llini que ele decidiu – para desespero dosprodutores de A Doce Vida – recriar fiel-mente um trecho dela no estúdio 5 da Ci-necittà, à época o maior do mundo. Sócom a liberdade ilimitada proporcionadapela reconstrução cenográfica seria alcan-çado o projeto felliniano de registrar a ex-plosão de vida desse novo mundo que fi-nalmente se erguia cintilante dos escom-bros da Segunda Guerra e que se exibe napassarela mais famosa do planeta. Romapode ser o cenário supremo da vulgarida-de, dos novos ricos, dos loucos e dos per-didos, mas – pelo menos – ainda está viva.Fellini diria: “Pus o termômetro num mun-do doente que evidentemente tem febre.Mas se o mercúrio assinala 40 graus, no iní-cio do filme, continua a assinalar 40 nofim. Nada mudou. A doce vida continua.

A Doce Vida e A Grande Beleza: dois so-berbos filmes cujas estaturas não se ori-ginam apenas das suas respectivas quali-dades cinematográficas, mas também daforma como se entregam incondicional-mente aos braços da cidade mais notávelda história – ora metaforizada como umagrande mãe prostituta, na visão fellinia-na; ora como a materialização em pedrae mármore do próprio enigma da vida, re-presentado pelo soturno jogo de luzes esombras da fotografia de Sorrentino.

Mas temos que reconhecer que a Itáliae a Roma dos anos 1960 de Fellini eram mui-to mais divertidas: o próprio Papa, JoãoXXIII, era um bonachão; os novos e char-mosos donos do mundo – Kennedy e Krus-chev – cortejavam a nova potência mundialque emergia, o país crescia a uma taxa médiade 7% ao ano, as Olimpíadas de Roma fo-ram uma das mais agradáveis e bem organi-zadas da história, nas telas de cinema TroyDonahue e Suzanne Pleshette trocavamolhares lânguidos embalados pela canção“Al di là” em O Candelabro Italiano; na Cine-città, Charlton Heston salvava a civiliza-ção cristã numa corrida de bigas em Ben-Hur,enquanto Elizabeth Taylor reinava comouma Cleópatra moderna e interrompia otrânsito da cidade para fugir de revoadas depaparazzi em suas lambretas.

No falso documentário sobre a capitalitaliana que Fellini rodou em 1972 (Romade Fellini), o escritor Gore Vidal – quan-do entrevistado – nos dá uma visão tãoinusitada quanto debochada da CidadeEterna: “Roma é a cidade das ilusões. Nãopor acaso temos aqui a igreja, o governoe o cinema. Todas as coisas que produzemilusões. Como estamos próximos do fimdo mundo, que cidade seria melhor do queRoma – que morreu e renasceu várias ve-zes – para esperar pelo fim?”. Certamen-te, sentado num café da Via Veneto.

Depois de A Doce Vida a Itália voltaao trottoir com A Grande Beleza.

Um Oscar paraa Via Veneto

POR FLÁVIO DI COLA

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Marcello Mastroianni e Anita Ekberg agitam a Via Veneto na Doce Vida de Fellini.

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FLÁVIO DI COLA é publicitário, jornalista e professor,mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ ecoordenador do Curso de Cinema da UniversidadeEstácio de Sá.

Depois de A Doce Vida, a Itália voltaao trottoir com A Grande Beleza.

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CENSURA

Esmiuçamos livros sobre a vida de artistas brasileiros para discutir, a partir de casosconcretos que não sofreram contestação judicial, a questão do direito à privacidade.

POR MÁRIO MOREIRA

A cantora Maysa cometeu duas tentativas de suicídio quan-do tinha apenas 22 anos e estava recém-separada. Mais tarde,atentou outras vezes contra a própria vida e submeteu-se a lon-gas e dolorosas internações para o tratamento de alcoolismo. Ocantor Nelson Gonçalves foi investigado sob suspeita de estu-pro de menor. Foi também preso e acusado formalmente de trá-

fico de drogas. Viciado em cocaína, só conseguia dormir à basede calmante. Quando acordava, costumava agredir quem esti-vesse pela frente. O poeta Vinicius de Moraes tentou se suici-dar duas vezes durante seu casamento com Lila Boscoli, nos anos1950. Na década de 1970, já casado com a baiana Gesse Gessy,viveu dias de “intensa liberdade sexual”. O cantor Erasmo Car-los enfrentou um processo sob acusação de corrupção de me-nores. Em viagem à Holanda em 1972, experimentou cocaína ehaxixe na casa de amigos brasileiros. Vítima de diabetes tipodois e embolia pulmonar, o compositor Milton Nascimento, quemede 1,70 m, chegou a pesar apenas 38 kg. Depois passou porcirurgias espirituais, que lhe deixaram marcas no peito.

Todas essas são informações íntimas – algumas fortes, ou-tras nem tanto, mas em vasta medida pertencentes à esfera pri-vada de cada uma dessas personalidades. Apesar disso, todasestão disponíveis, para quem quiser ler, em biografias publica-

das no Brasil. Na esteira da polêmica sobre as biografiasque mobilizou importantes nomes da cultura brasi-

leira, o Jornal da ABI se debruçou sobre livros que re-latam a vida de artistas consagrados. Constatou que

é possível narrar detalhes íntimos sem necessaria-mente provocar reações iradas. E, mais impor-

tante, sem despertar nos herdeiros do biogra-fado a tentação de vetar a circulação da obra.

VEREIRO DE 2014

Biografias íntimas,porém permitidas

Biografias íntimas,porém permitidas

Biografias íntimas,porém permitidas

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polêmica surgiu em outubropassado, quando um grupode artistas liderado por Ro-berto Carlos, Chico Buar-

que, Gilberto Gil e Caetano Veloso, entreoutros, e reunido na associação ProcureSaber, manifestou-se a favor da necessi-dade de autorização prévia para a publi-cação de biografias, como forma de pro-teger o direito à intimidade. Alternativa-mente, o grupo chegou a propor o paga-mento de royalties ao biografado ou aseus descendentes.

Ante a forte reação de biógrafos, jor-nalistas, historiadores e dosmeios de comunicação, queacusaram o Procure Saber depropor a volta da censura,alguns artistas flexibilizaramsuas posições ou simplesmen-te abandonaram o debate.Roberto Carlos, o mais proe-minente, acabou se desligan-do do grupo. Em artigo naFolha de S.Paulo publicado nodia 13 de novembro, a Presi-dente do Procure Saber, Pau-la Lavigne, após afirmar quea associação fora alvo de um“massacre perpetrado pelaseditoras, escritores e, princi-palmente, pela imprensa” eque o grupo era “CONTRA ACENSURA, EM QUALQUERDE SUAS FORMAS” (assimmesmo, em maiúsculas), anun-ciou que ela resolvera se calar.

Casos de proibição de bio-grafias são relativamente co-muns no Brasil. O mais rumo-roso é o de Roberto Carlos em Detalhes, lan-çado em dezembro de 2006 pelo jornalis-ta Paulo Cesar de Araújo e proibido pelaJustiça menos de cinco meses depois,atendendo a um pedido do ‘Rei’ sob oargumento de que a obra violava a sua in-timidade. Até hoje proibido, o livro con-ta detalhadamente, entre outros episódi-os nebulosos na vida do cantor, o acidenteem que a perna direita de Roberto Carlos,então com seis anos de idade, foi esmaga-da por um trem, provocando a amputaçãode parte do membro. Também notóriossão os casos de Noel Rosa – Uma Biografia,de João Máximo e Carlos Didier, e Estre-la Solitária – Um Brasileiro Chamado Gar-

rincha, de Ruy Castro, obrastambém barradas pela Justi-

ça a pedido de parentesdos biografados, masdepois liberadas. Mes-

mo com o arrefecimen-to da polêmica, o assun-

to continua em pauta, poistanto o Supremo Tribunal Fe-deral quanto o Congresso

Nacional estão para se po-sicionar a respeito. O pri-meiro, para julgar umaAção Direta de Inconsti-tucionalidade contra dois

da, ele diz que parte sempre “de uma fonteconfiável”. “Uma única anotação ou de-claração precisa ser sempre checada”,afirma. “Quase dez pessoas me disseram,por exemplo, que a Maysa apregoavapublicamente que tinha composto MeuMundo Caiu após ter visto o primeiromarido (André Matarazzo) na cama coma mãe dela. Mas outras disseram que elainventava histórias, criava situações in-verídicas. Lendo o diário, e comparandocom outras informações, verifiquei queela mentia para o próprio diário. Era umaforma de criar uma segunda natureza,uma persona que não correspondia neces-sariamente à Maysa verdadeira”. No li-vro, o episódio da traição é menos escan-daloso: Maysa não flagrou o marido e amãe na cama, apenas acreditava que issotivesse acontecido. “O ex-marido a traía,ela dizia ter certeza. Teria pressentidouma insinuação da parte dele até mesmoem direção à mãe, dona Inah. Aquilo,explicava, é que teria feito seu mundocair. Maysa repetia tal coisa à exaustão, aponto de tornar o assunto público, repas-sado de boca em boca, até se transformarem verdade indiscutível. No entanto, osamigos mais próximos nunca levaram asério aquela história”, escreveu Lira Neto.

De qualquer forma, o biógrafo diz quedecidiu publicar a história da suposta trai-ção do marido com a mãe de Maysa,mesmo podendo não ser verdadeira, por-que “ajuda a compor o retrato do perso-nagem”. “Dou oportunidade ao leitor parasaber que a mitologia é importante”. Deacordo com o escritor, houve apenas umainformação, “muito íntima, dita por umaúnica fonte”, que não foi incluída no li-vro. “Como envolvia terceiros, tive ocuidado de não colocar, porque iria atin-gir outras pessoas já mortas.” Ainda porcima, a fonte pediu anonimato. A infor-mação, segundo Lira Neto, dizia respeito

artigos do Código Civil que, em síntese,estabelecem a inviolabilidade da vidaprivada e prevêem a hipótese de proibi-ção das biografias não autorizadas. O se-gundo, para votar um projeto de lei ve-tando a exigência de autorização paraobras biográficas.

PERSONAGEM TRANSGRESSIVOConsiderada uma das maiores estrelas

da história da MPB, a cantora Maysa tevesua vida narrada com tintas fortes pelojornalista Lira Neto em Maysa – Só NumaMultidão de Amores, lançado em 2007 pela

Editora Globo. Alcoolismo, dependênciade remédios, tentativas de suicídio, vidaamorosa e sexual para lá de agitada, pro-blemas de saúde, conflitos familiares edificuldades financeiras formam o vari-ado cardápio da vida de Maysa, conforme

narrada por seu biógrafo. Segundo LiraNeto, quando o único filho da cantora, odiretor de tv e cinema Jayme Monjardim,lhe pôs à disposição os diários íntimos damãe, firmou-se um compromisso mútuo:“O livro teria que ter o mesmo espírito deliberdade da Maysa. Não faria sentidoescrever com cores pastéis uma históriatão intensa”, conta o jornalista. Ele afirmanão ter tido “nenhum pudor nem autocen-sura” ao narrar detalhes da vida da canto-ra. “Seria uma traição à biografada. A for-ma como ela viveu foi ditada pela coragem,pela ousadia, com sentido transgressivo. Sefalo de um personagem que vive sob atransgressão, não posso me policiar”, dizLira, para quem a biografia é também, elaprópria, um gênero transgressivo.

Para não correr o risco de publicar al-guma informação duvidosa ou equivoca-

ACENSURA BIOGRAFIAS ÍNTIMAS, PORÉM PERMITIDAS

Lira Neto: “Se falo de um personagem que vive sob a transgressão, não posso me policiar”. Ao lado, ojornalista Paulo Cesar de Araújo, que teve seu livro Roberto Carlos em Detalhes proibido de circular.

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José Castello: “O mais importante é a maneira de narrar os fatos. Se eu fosse fazer outrabiografia, usaria luvas delicadas. Pode-se fazer uma biografia verdadeira sem perder a sutileza”

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ao relacionamento sexual de Maysa comum dos muitos homens com quem seenvolveu. “Não foi nem por constrangi-mento que excluí a informação. Tivemedo de cair no bisbilhotismo e fazer omesmo que eu próprio condeno.”

O jornalista diz não ter sofrido ne-nhum processo em razão do livro, masque, após a publicação, recebeu uma car-ta de Jayme Monjardim com críticas àobra. “A mesma pessoa que tinha sidogentil e generosíssima ao abrir os arqui-vos da mãe não gostou de alguns trechos,achando que eu tinha invadido a vidaprivada dela. Mas não faria sentido publi-car o livro de outra forma”. Pouco depois,porém, Monjardim comprou os direitospara transformar a biografia em minissé-rie, exibida pela Rede Globo no início de2009. “Acho que com o tempo o Jaymepercebeu que o livro, em vez de denegrira imagem da Maysa, era um livro-home-nagem, que a mostrava em toda a suacomplexidade”, afirma Lira. Procuradopor vários dias seguidos pelo Jornal da ABIpara comentar a biografia da mãe, JaymeMonjardim afirmou apenas, num brevee-mail, que não tinha vontade de falarsobre o assunto.

SEM DETALHES MÓRBIDOSAutor de Vinicius de Moraes – O Poeta

da Paixão, lançado em 1994, o jornalistaJosé Castello diz que procurou ser cuida-doso ao retratar seu biografado. “Aconte-

ceram poucos casos de pessoasque me relataram histórias quenão consegui checar com ou-tras fontes, por isso não co-

loquei no livro. Já oque não escrevi porminha própriavontade foramdetalhes escanda-

losos. Entro nas his-tórias apenas o sufi-ciente para o leitorentender quem era

Vinicius. Tentei o tempotodo evitar descer a detalhesmórbidos”. Segundo Caste-

llo, o que ficou de fora foram informaçõessobre a “vida íntima, afetiva, sexual, ódi-os, sentimentos fortes”. “São coisas queachei desnecessárias porque estão ditasno livro, só não estão em detalhes. Para obom leitor, o que está ali basta. Mas algu-mas histórias eu contei: as que tinhammais humor, mais leveza, mais charme, ouque fossem mais emblemáticas”, afirma.

O livro vai fundo em questões comoalcoolismo, problemas de saúde decorren-tes do vício, crises de depressão e, claro,a intensa vida amorosa de Vinicius. Nar-ra em detalhes as tentativas de suicídio dopoeta durante seu casamento com LilaBoscoli: na primeira, tentou se atirar deum carro em movimento; na segunda,trancou-se na cozinha e abriu o gás, sen-do salvo pela sogra. Episódios variadospovoam o livro, como a primeira relação

sexual do poeta, aos 15 anos, na praia doCocotá, na Ilha do Governador, com umamoça cinco anos mais velha. Ou o fato deVinicius, ocupado com os estudos para oconcurso do Itamaraty, mandar sua pri-meira mulher, Tati, ao cinema em seu lugare escrever as críticas assinadas por ele.Bem como as agressões totalmente gratui-tas do poeta a um homem que dormianum banco durante uma madrugada emParis – e que terminaram com os dois e odiplomata Rodolfo Sousa Dantas, amigode Vinicius, “abraçados e envoltos emgargalhadas, tomando um bom conha-que”. E ainda a divertida descrição das trêssessões com uma psicanalista alemã radi-cada no Brasil – a última delas terminacom elogios do poeta às pernas da terapeu-ta. Ou a confusa e dramática conduta deVinicius durante o acidente vascular ce-rebral sofrido num vôo de Paris para oRio em outubro de 1979, menos de umano antes de sua morte.

Para Castello, o mais importante é amaneira de narrar os fatos. “Você podedizer que o Vinicius era um Don Juan, e

não que na cama ele fazia isso ou aquilo”,exemplifica. “Não é preciso dar tantosdetalhes. Muitos biógrafos discordamdisso. Mas, se eu fosse fazer outra biogra-fia, usaria luvas delicadas. Pode-se fazeruma biografia verdadeira sem perder asutileza”. Segundo Castello, embora ocontrato assinado entre a Companhia dasLetras e a família do poeta para a republi-cação de toda a sua obra já previsse umabiografia não autorizada, a família pediupara ler o livro antes do lançamento – eCastello poderia escolher qualquer paren-te de Vinicius para fazer a leitura. O pró-prio editor Luiz Schwarcz lhe sugeriuaceitar o pedido, alegando que isso pode-ria ajudar a corrigir eventuais erros deinformação. “Achei o argumento razoávele, como a família não teria o direito demandar mudar nada, topei”, diz Castello.

Quando foi à casa da filha mais velhade Vinicius, Susana, escolhida por ele paraa leitura, o biógrafo teve uma surpresa. “Elaabriu a porta e disse: ‘Castello, você trans-formou meu pai num santo. Ele era umhomem devasso, de orgias. Você escondeu

meu pai’. Respondi que sabia de detalhesmórbidos da vida dele, mas que não havianecessidade de colocá-los no livro”. O maiscurioso, porém, veio após o lançamento.“Um ou dois dias depois me ligou a Lygia,irmã do Vinicius, dizendo que eu seriaprocurado por um advogado. ‘Você trans-formou meu irmão num bêbado devasso’,ela falou. Sugeri então que ela consultas-se a Susana para que a família combinas-se em conjunto o que fazer. Nunca ne-nhum advogado me procurou.”

Para Castello, a discrepância de reaçõesentre as duas é compreensível. “São desa-bafos produzidos pela leitura que cada umfaz, e isso depende da relação de cadapessoa que conviveu com o biografado.Por ter sido a primeira biografia do Vini-cius, tocou muito as pessoas que convivi-am com ele. Eu até gostaria de ver outrasbiografias dele. Às vezes, me dá aflição ser‘o’ biógrafo do Vinicius. Afinal, meu livroé uma obra parcial, com a minha visão, emque inclusive procurei trabalhar contra aimagem clichê do ‘Poetinha’”, afirma. Porintermédio da VM Cultural, instituiçãoque administra a obra de Vinicius, o Jor-nal da ABI tentou falar com algum dosfilhos do poeta, mas a informação foi que,por motivo de viagem ou doença, ne-nhum estava disponível para entrevistas.

TRABALHO SEM RESTRIÇÕESOutro caso em que os familiares se

abstiveram de levar o autor aos tribunaisfoi o de O Anjo Pornográfico, livro de RuyCastro sobre o jornalista, escritor e dra-maturgo Nelson Rodrigues. Segundo o bi-ógrafo, os parentes de Nelson – emboradivididos em quatro facções, “quase todashostis umas às outras” – o ajudaram notrabalho e nenhum deles o ameaçou comprocesso após a publicação do livro pelaCompanhia das Letras, em 1992. “Nin-guém discutiu o direito de Nelson estarsendo biografado e todos colaborarammuito, nem que fosse apenas com infor-mações. Ninguém impôs qualquer condi-ção ou restrição”, diz Ruy.

No livro, Nelson Rodrigues aparececomo um personagem bem menos escan-daloso que os de A Vida Como Ela É... ou osde suas muitas peças teatrais, recheadas deprostitutas, maridos traídos, velhos de-vassos e mulheres com furor uterino. Apecha de “pornográfico” ou “tarado” eraimposta a Nelson por seus detratores ecomprada por leitores desavisados. “Essaspessoas ficariam desapontadas se o vissemna intimidade: em casa, de pijama, àsnove da noite, ouvindo discos de frevospela Banda do Corpo de Bombeiros e indodormir numa vulgar cama Drago comcolchão de molas. Da qual só se levanta-va, no meio da madrugada, para aplacar ospinotes da úlcera com a papa de purê debatata e carne moída”, conta o livro, paraconcluir, no parágrafo seguinte: “Nelsonnão era, definitivamente, um devasso”.

Ainda assim, O Anjo Pornográfico abor-da muitos aspectos da vida íntima de

NelsinhoRodrigues sederrama em

elogios aolivro O Anjo

Pornográfico, deRuy Castro, que

considera deimportância

capital noresgate da

memória de seupai: “Ele era umhomem público,

tem que serfalado”.

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Ruy Castro é taxativo: “Os artistas não tinham nem sombra de razão napolêmica das biografias. E eles fizeram bem em enfiar o galho dentro.”

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“Por volta das nove e meia da manhã, Zunga (apelidode infância de Roberto Carlos) e Fifinha (Eunice Solino,amiga do cantor) pararam numa beirada entre a rua e alinha férrea para ver o desfile de um grupo escolar.Enquanto isso, atrás deles, uma velha locomotiva avapor, conduzida pelo maquinista Walter Sabino,começou a fazer uma manobra relativamente lentapara pegar o outro trilho e seguir viagem. Uma dasprofessoras que acompanhava os alunos no desfiletemeu pela segurança daquelas duas crianças próximasdo trem em movimento e gritou para elas saírem dali.Mas, ao mesmo tempo em que gritou, a professoraavançou e puxou pelo braço a menina, que caiu sobre acalçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gestobrusco de alguém que ele não conhecia, recuou, tropeçoue caiu na linha férrea segundos antes de a locomotivapassar. A professora ainda gritou desesperadamente parao maquinista parar o trem, mas não houve tempo. Alocomotiva avançou por cima do garoto que ficou presoembaixo do vagão, tendo sua perninha direitaimprensada sob as pesadas rodas de metal.”Paulo Cesar de Araújo, em Roberto Carlos em Detalhes.

“A cantora trocara o efeito da bebida pelo ´barato`provocado por doses excessivas de medicamentos, quelhe causavam vertigens e tonturas. Passara a ingerircompulsivamente comprimidos de Minifage e Lasix. Oprimeiro, um podesoso inibidor de apetite, provocava devista turva a dependência química. O outro, na verdade,era um remédio para insuficiência renal, cujo efeitodiurético atraía consumidores ávidos por perderlíquidos e, portanto, peso. Por causa deles, Maysa tinhasurtos de embotamento e delírios.”Lira Neto, em Maysa – Só numa Multidão de Amores.

“Num final de semana festivo em minha casa,começou o fim. Um derrame condenou minha mãe a

Nelson, como os casos extra-conjugais, os problemas desaúde (e conseqüentes perí-odos de internação), asmortes trágicas na família(as de seus irmãos Roberto,assassinado, e Paulinho, mor-to num desabamento, e o sui-cídio de sua cunhada Célia, vi-úva de Mário Filho), os freqüen-tes problemas financeiros eainda a grave doença de Dani-ela, filha do dramaturgo comsua segunda mulher, Lúcia Cruz Lima. Obiógrafo diz que em nenhum momentose questionou se alguma informação de-veria ou não ser publicada por conta deeventual invasão de privacidade. “O queaconteceu é que cada uma das facções –exceto Lúcia Cruz Lima, sempre modes-ta e neutra – se achava dona da verdadesobre Nelson, e as informações, às vezes,eram contraditórias. Por sorte, eu tinha umbatalhão de informantes fora da família,que me ajudavam a peneirar o material.Mantive rigorosa neutralidade durantetodo o processo de apuração e escrita, masera inevitável que, ao ler o resultado final,uma ou outra se sentisse desagradada emdetalhes. No caso, publicado o livro, asirmãs de Nelson e os filhos não reconhe-cidos romperam comigo”, conta Ruy.

Segundo ele, nenhuma informaçãoíntima deixou de ser publicada. “Tudoque dissesse respeito à história e fosse re-levante foi aproveitado. O próprio casode Nelson com a mãe da (atriz) NiceteBruno foi confirmado por dona Elza (pri-meira mulher de Nelson) e filhos”, diz oescritor, referindo-se à relação do biogra-fado com Eleonor (Nonoca) Bruno. ParaNelson Rodrigues Filho, O Anjo Pornográ-fico é “ótimo”. Nelsinho diz não se impor-tar em ver a vida íntima do pai expostaem livro: “Ele era um homem público,tem que ser falado”. O filho do dramatur-go faz uma única ressalva: o episódio dabiografia em que sua mãe vai com os filhosJoffre (oito anos) e o próprio Nelsinho(quatro) à garçonnière de Nelson e doamigo Pompeu de Souza e diz ao marido,que então mantinha o caso com NonocaBruno: “Você vai sair daí, já, já, e voltarpara casa! Senão eu atiro os nossos flhospela janela!”. Nelsinho afirma ter ouvidode Pompeu de Souza, que estaria presen-te à cena, uma versão distinta, segundo aqual o que Elza disse a Nelson, na verda-de, foi: “Ou você volta para casa ou ficacom seus filhos e eu me atiro pela janela!”.Fora essa passagem, que o próprio Nelsi-nho chamou de “um pequeno detalhe”,nada. Nelsinho se derrama em elogios aolivro, que considera “de importância ca-pital no resgate da memória do Velho”.

O CONCEITO DO BIOGRAFADONo caso de A Revolta do Boêmio, sobre a

vida de Nelson Gonçalves, o biógrafoMarco Aurélio Barroso não economizoudetalhes para contar o envolvimento do

cantor com álcool, drogas ejogo, problemas de saúde, es-pancamento de mulheres,ameaças de morte e acusaçõesde estupro de menor e de trá-fico de entorpecentes. Até acolocação de uma prótese pe-

niana é relatada no livro pelocardiologista que tratou do can-

tor. Em um dos trechos, Bar-roso conta que Nelson, já nafase final da vida, por conta do

uso excessivo de cocaína e de umdescongestionante, não possuía mais mu-cosas nasais. “O ar que lhe oxigenava o cé-rebro (…) começava a encontrar resistên-cia para chegar ao destino. Dor insuportá-vel. (…) Nelson começava a bater com a ca-beça na parede. A dor não passava, ele ba-tia mais forte. Chorava, gemia, urrava.” Apósretirar placas de sangue coagulado do nariz,utilizando sempre um grampo de cabelo,“exausto, suando frio, Nelson, depois deduas horas de combate sem piedade e semvencedores, se jogava na cama e apagava”.

Apesar desse e de outros episódiosigualmente fortes, Barroso acredita que

não ultrapassou os limites do bom senso.Ele diz que deixou de publicar uma únicainformação, “que várias pessoas confirma-ram, inclusive um dos filhos adotivos doNelson, sobre como ele conheceu uma dassuas mulheres”. “Era algo muito escabroso.Ela ia me colocar na Justiça. Não sou ma-luco”, diz. “Mas esse caso foi uma exceção,pois não mudaria nada no livro, o conceitodo Nelson já estava lá. O importante é oconceito do biografado, e não descer adetalhes sem importância. A única coisaque deu certo na vida do Nelson foi aomicrofone. Ele era desequilibrado, egoís-ta, alcoólatra, cocainômano, violento, eisso tudo está no livro.” Para Barroso, “nãodá para achar santidade onde não existe.”

Mesmo tendo escrito o prefácio do li-vro, lançado em 2001, a filha mais velha docantor, Marilene, a Leninha, hoje faz pe-sadas críticas à obra. “No livro há verdades,mentiras e exageros. A acusação de estu-pro é um absurdo, não devia ser mencio-nada nem sequer insinuada”, diz. “O autorera um procurador de merda, estava maispreocupado em encontrar os podres domeu pai. A imagem dele (Nelson) ficou em

parte ofendida. Eu não ia negar que ele eraviciado em cocaína, mas era preciso con-tar também como saiu do vício. Faltou arte,maneira de escrever, e houve um pesoexagerado nos fatos negativos”, acreditaLeninha. “Meu pai era o maior cantor doPaís. Com quem ele trepava não interessaa ninguém. Sou contra esmiuçar os baga-ços e as loucuras, principalmente de um ar-tista, que sempre tem as suas e quando che-ga lá em cima fica tonto.”

Leninha diz que não pensou em pro-cessar Barroso pelo livro. “Não é do meufeitio, cada um é responsável pelo que faz.Iria dar mais confusão ainda”. No prefá-cio, porém, a filha de Nelson Gonçalveselogia o autor: “Eu e ele (Nelson Gonçal-ves) te agradecemos, Marco Aurélio, pelalisura do teu trabalho, pela grandeza datua alma e que este livro te dê, por acrés-cimo, tudo o que desejares. Que Deus teabençoe. Por mim e por ele, obrigado”.Indagada sobre a contradição entre o queescreveu para o livro e o que dissera aoJornal da ABI, Leninha explicou que oprefácio foi escrito antes de a biografiaficar pronta. “Eu não tinha lido o livro

Invasão de privacidade?uma cadeira de rodas. Ficou mais difícil administrar adoença e manter a esperança de que dias melhorasviriam. O Tremendão chorava em sua impotência.”Erasmo Carlos, na autobiografia Minha Fama de Mau,falando da mãe, que tinha câncer.

“23 horas. No Bar do Martins, cada vez mais bêbado,Nelson recebe inesperada visita de seu amor, Betty White.Ele estava bebendo e jogando desde 9 horas da manhã. (…)De poucos amigos, ele passa a espancá-la no meio darua. Mesmo apanhando, ela tenta arrastá-lo para casa.”Marco Aurélio Barroso, em A Revolta do Boêmio,biografia de Nelson Gonçalves.

“Vinicius, apavorado, recua. Fica grudado contrauma parede, como se protegesse de um furacão. (…)A mulher (Cristina Gurjão) pega o segundo castiçal econtinua o seu ataque. Vinicius, tomado pelo medo, seretrai mais ainda. Ela não o poupa. Bate firmenovamente, dessa vez tentando atingi-lo na virilha.Vinicius grita de dor. Há sangue espalhado pelo chãoda sala. (…) Vinicius sai do apartamento em disparada.”José Castello, em Vinicius de Moraes – O Poeta da Paixão.

“Daniela passaria todo o seu primeiro ano de vidanuma tenda de oxigênio, com horríveis crisesrespiratórias. Desde o primeiro momento apresentoumá circulação nas pernas, o que lhe provocava câimbraslancinantes. Nelson e Lúcia ainda não sabiam, mas amenina atravessaria os seus primeiros anospraticamente sem dormir, chorando de formaenlouquecedora, com dores que poderiam ter todas asorigens. Devido à paralisia cerebral, jamais iria andar ouarticular um movimento. Também seria muda. Eirreversivelmente cega.”Ruy Castro, em O Anjo Pornográfico, sobre a doençade Daniela, filha de Nelson Rodrigues com Lúcia Cruz Lima.

CENSURA BIOGRAFIAS ÍNTIMAS, PORÉM PERMITIDAS

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ainda. Para mim, a intenção dele (Barro-so) era a melhor possível. Fiz um prefácioinocente e bem-intencionado.”

SEM SOFRIMENTOJá a jornalista Maria Dolores preferiu

esquivar-se de maiores polêmicas em seulivro Travessia – A Vida de Milton Nasci-mento. Na biografia do compositor, nasci-da originalmente como trabalho de con-clusão do curso de Comunicação Socialna Universidade Federal de Minas Geraise lançada em 2006 pela Editora Record,Dolores evitou aprofundar temas “maisdelicados, que pudessem trazer al-gum sofrimento”. “Foi uma op-ção unicamente minha, nin-guém me pediu ou me impôsqualquer restrição, nem osentrevistados, que forammais de 70, nem a editora”,afirma ela. Há episódios ci-tados no livro que clara-mente a biógrafa preferiunão investigar mais.Uma delas é o casamen-to-relâmpago de Mil-ton com Lourdes Ma-thias, a Lourdeca, quedurou pouco mais deum mês: “Quem os viupôde perceber que as coisas não estavammuito bem. Ninguém sabe o que aconte-ceu naqueles trinta e tantos dias, a não seros dois, que enterraram para sempre taislembranças e jamais disseram palavrasobre o assunto. O fato é que o casamen-to acabou. Cada qual foi para um lado e avida seguiu seu rumo”, narra o livro.

Outra passagem citada superficial-mente é a do afastamento de Milton de

sua ex-namorada Káritas e de Pablo, seufilho com ela, nos anos 1970, durante aditadura militar. A ex e o filho moravamem São Paulo, onde Milton não era bemvisto pelo então secretário de SegurançaPública, coronel Erasmo Dias, “um dosmais temidos da ditadura”. Segundo abiografia, ameaçado pelas autoridadesestaduais, Milton “arrumou as malas,voltou para o Rio e desapareceu da vidade Káritas e de Pablo. Perdeu contato comos dois e não tornou a recuperá-lo, mes-mo depois de voltar a São Paulo com alenta, mas gradual, abertura política.Nunca mais se relacionou com o filho.” Efica nisso.

Maria Dolores nega ter evitado o apro-fundamento desses assuntos por medo deinvadir a privacidade de Milton, que,segundo ela, autorizou a biografia. “Con-siderando o fato de que o Milton concor-dou em me dar as entrevistas e me abriuas portas da casa dele, foi autorizada. Masfoi algo informal, não houve um contra-to, e ele leu o livro só depois de pronto”.O Jornal da ABI tentou entrevistar Mil-ton Nascimento, mas sua assessoria infor-mou que ele não fala mais sobre biogra-fias. O cantor foi um dos integrantes doProcure Saber.

XIXI EM VOutro membro do grupo, o cantor Eras-

mo Carlos retratou a própria vida emMinha Fama de Mau, lançado em 2009pela Objetiva. O tom geral do livro é bem-humorado, e o artista de certa formazomba de si mesmo. Ele conta, por exem-plo, que, aos 15 anos, após uma cirurgiapara corrigir uma fimose que lhe “dificul-tava a masturbação e impossibilitava apenetração”, revelou-se uma pequenaanomalia anatômica, uma pele localiza-da “quase no meio do orifício da uretra”

que fazia o jato da urina sair divi-dido, em forma de V – o que sófoi resolvido tempos depois,

durante uma transa, quando“o frenético esfregar dossexos (…) fez com que apele se rompesse, dei-xando livre para sempreo orifício da minha ure-

tra”. O Tremendão narratambém suas bizarras ten-tativas de disfarçar o iní-cio da calvície, que inclu-íram sessões de massagemcom um cabeleireiro ar-

gentino que eram verda-deiras “porradas”, o uso de pilot

preto no couro cabeludo e, depois, de ro-lha queimada (sugestão do comedianteRenato Aragão).

Há revelações mais sérias, embora nãomenos pitorescas, envolvendo pessoascom quem o compositor conviveu. Comouma moça de apelido Lilica, que partici-pava da turma de Erasmo durante suaadolescência na Tijuca. “Todas as outrasturmas nos invejavam por causa dela. Era

nossa mãe, irmã, filha, amiga e mulher,tendo inclusive me iniciado no maravi-lhoso e abençoado mundo da sacanagem,numa noite em que conseguiu se multi-plicar e dividir seu corpo, beijos e abraçoscom dez de nós.” O nome verdadeiro deLilica não é citado no livro, mas, paraquem a conheceu...

Outras informações íntimas abordamtemas familiares, geralmente um tabuentre os artistas. Erasmo fala, por exem-plo, do derrame que condenou sua mãe auma cadeira de rodas e do câncer que amatou, em 2004, sete anos após a retira-da de um nódulo noseio. E de como ficouabalado com a morte daex-mulher, Narinha, nofinal de 1995. “Mesmoporque não sei lidarcom a forma como elase foi, tirando sua pró-pria vida”. Referênciasa suicídios na famíliacostumam ser conside-radas invasão de priva-cidade, tendo motiva-do a retirada de circula-ção da biografia de NoelRosa, por exemplo. OJornal da ABI tambémprocurou Erasmo Car-los para falar sobre suaautobiografia, mas a assessoria do cantorinformou que ele estava concentrado nafinalização de seu novo trabalho e que porisso não daria entrevistas no momento.

POLÊMICA POSITIVAPara biógrafos ouvidos pelo Jornal da

ABI, a polêmica sobre as biografias podeter tido um lado positivo. “Não é fácilestar na posição dos artistas, embora as fi-guras públicas estejam sujeitas a isso. Emprincípio, sou contra qualquer tipo decensura ou necessidade de autorizaçãoprévia, mas talvez essa polêmica tenhatido a utilidade de chamar a atenção paraa questão da sensatez: como publicar as

coisas, como dizer as coisas”, afirma JoséCastello. “É preciso respeito ao biografa-do. Quando se faz uma biografia, é sobrealguma pessoa por quem se tem admira-ção ou alguma afinidade. Na medida emque você parte desse sentimento, é de es-perar que tenha cuidados. Não se trata deconstruir um mito, mas de buscar a ver-dade com delicadeza.”

Segundo Marco Aurélio Barroso, o pro-blema está na forma como muitas biogra-fias são feitas. “O Procure Saber tinha atéalguma razão, mas não para pedir autori-zação prévia. O que eles deviam exigir era

que o próprio biógrafofizesse as pesquisas, por-que os caras terceirizama apuração e fazem dabiografia uma ficção.Uma vez o filho de umbiografado me disse quea biografia do pai delecontinha erros crassos.Pesquisa é o autor quefaz. Terceirizar a pesqui-sa é desonestidade inte-lectual”, diz Barroso.

Lira Neto, que estáconcluindo o terceirovolume da biografia deGetulio Vargas, acreditaque “os próprios artistasperceberam que entra-

ram na discussão de forma precipitada edesinformada”. “Imagine se eu tivesse quepedir permissão ou pagar à família do Fi-linto Müller (chefe da polícia políticadurante a ditadura Vargas)”. Para ele, tan-to o Judiciário quanto o Legislativo devemgarantir liberdade total às biografias. “Te-nho certeza de que o Supremo e o Congres-so vão perceber que, num país democráti-co, é repugnante imaginar qualquer cerce-amento à liberdade do biógrafo”. Já RuyCastro foi taxativo ao afirmar, como jáfizera na época, que os artistas não tinhamnem sombra de razão na polêmica das bi-ografias. “E eles fizeram bem em enfiar ogalho dentro.”

Marco Aurélio Barroso:“Pesquisa é o autor que faz.”

Maria Dolores evitou aprofundar temasdelicados: “Foi uma opção minha, ninguémme pediu ou me impôs qualquer restrição.”

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Autor de sua própria biografia, Erasmo Carlos faz revelações íntimasque envolvem temas familiares, geralmente um tabu entre os artistas.

16 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

Fico imaginando a cena. Um jovem es-tagiário ou mesmo um jovem jornalistaque, de repente, fazendo uma pesquisasobre a época da Anistia, se depara com aemblemática canção O Bêbado e a Equili-brista, de João Bosco e Aldir Blanc, imor-talizada na voz de Elis Regina:

“(...) O bêbado com chapéu-cocoFazia irreverências milPrá noite do Brasil.Meu Brasil!...Que sonha com a voltaDo irmão do Henfil.Com tanta gente que partiuNum rabo de foguete (...)”E o jovem estagiário/jornalis-

ta pára e pensa: “Sonha com avolta do irmão do Henfil? Oque significaria isso? E este ir-mão do Henfil não tinha nome? Por quese referir a alguém como sendo apenas ir-mão de outro alguém?” Até que vem a de-vastadora e derradeira pergunta: “Masquem seria, afinal, este tal de Henfil?”.Sim. Por mais dolorosa que possa ser a con-clusão, já existe uma geração de jovensque desconhece Henfil. Uma geração quesequer reconhece este nome tão impor-tante, espécie de condensação/resumo deHenrique Sousa Filho, marca registradade genialidade provocativa, que teriacompletado apenas 70 anos no último dia5 de fevereiro, se estivesse vivo.

Assim, foi mais que bem-vindo o even-to “70 anos de Henfil – Morro, mas meu de-senho fica”, realizado no Museu da Repú-blica, no Rio de Janeiro, no dia do aniver-

dos Sports, cria uma galeria de personagensrepresentativos dos torcedores: Bacalhau(Vasco da Gama), Urubu (Flamengo), CriCri (Botafogo) e Pó de Arroz (Fluminen-se). “Eu não queria fazer cartuns esporti-vos sobre os clubes ou os jogadores; euqueria fazer sobre a torcida”, afirmou. “Eudescobri que o Rio de Janeiro era apenasum trampolim, uma rampa de lançamen-tos de foguetes, de espaçonaves humanas,e que também destrói as pessoas. Destróiquem não é carioca”, disse Henfil.

Mostrando novamente seu perfeito“timming” em sempre se enfronhar no

que havia de mais explosivo em termos derepressão política, Henfil torna-se cola-borador do provocativo O Pasquim exata-mente em 1969, ano de maior recrudes-cimento do regime. Esse Henfil realmen-te sabia como andar no fio da navalha.1970: enquanto o ditador militar faz po-pulismo aproveitando o tricampeonatobrasileiro de futebol, Henfil lança a revis-ta Os Fradinhos, trazendo personagens quemarcariam para sempre não só a trajetóriados quadrinhos nacionais, como a própriapercepção de ser do brasileiro. Os “mestresde cerimônias” eram os “fradins”, minei-

HOMENAGEM

HENFIL, 70 ANOS

“MORRO, MAS MEU DESENHO FICA”POR CELSO SABADIN sário do cartunista... Ou no dia do aniver-

sário do escritor, do humorista, do cineas-ta, do cronista, do jornalista Henfil. Não,não é possível definir Henfil com apenasuma de suas inúmeras ocupações. Ele eraum artista de uma gigantesca força criati-va, dor de cabeça constante para os agentesda ditadura militar, qualquer que fosse seumeio de expressão. Um verdadeiro subver-

sivo, no sentido mais delicioso dapalavra. “Eu não gostaria de ser co-

nhecido como humorista, como espe-cialista, como economista ou qualquer

coisa assim”, disse Henfil, “mas comoum cara que escreve, que dança, que pula,que faz política, que não faz política, enfim,desenvolver todos os meus potenciais, enão ficar numa hipertrofia, um monstri-nho que só sabe fazer humor, feito umaanta que só sabe usar tênis” (Fazendo umaalusão ao curioso personagem do cartunis-ta Jaguar).

Henfil nasceu em Ribeirão das Neves,região metropolitana de Belo Horizonte,em 1944. De família simples, virava-secomo podia enquanto cursava um suple-tivo noturno. Foi embalador de queijos eoffice boy numa agência de propaganda.Nunca se deu muito bem nos estudos (re-petiu logo no primeiro ano primário),mas mesmo assim decidiu fazer faculda-de de Sociologia. Que logo abandonou.Partiu para o desenho, atividade para aqual sempre demonstrou muita habilida-de. No casamento de uma de suas cincoirmãs mais velhas, Henfil, ainda garoto,reproduziu o altar da cerimônia num de-senho que chamou a atenção de toda a fa-mília. O jovem Henfil gostava de dese-nhar, mas não queria a obrigação de ter dese submeter a prazos de fechamentos edi-toriais. Porém, com a morte de seu pai, seviu obrigado pelos irmãos e irmãs a aju-dar no orçamento familiar. “Fui feito hu-morista à força”, afirma, referindo-se àspressões que passou a receber de Rober-to Drummond, editor da revista mineiraAlterosa, seu primeiro emprego na área.Ironicamente estreou como ilustrador equadrinista na Alterosa exatamente noano em que se implanta no Brasil a dita-dura militar. Ambos – ele e a ditadura – ja-mais deixariam de andar lado a lado... Em

campos diametralmente opostos.“Humor é a reversão da expectati-

va. Eles querem que a gente morra. Aívocê vai e vive. Isso é humor”, disseHenfil. Em 1965, ele passa a criar ca-

ricaturas políticas para o Diário de Minas,e a partir de 1967 se torna colaborador docarioca Jornal dos Sports. Muda-se para oRio de Janeiro e amplia sua carteira de co-laborações com as revistas Visão, O Sol, Re-alidade, Placar e O Cruzeiro. Para o Jornal

AVANI STEIN/FOLHA IMAGEM

17JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

ramente falando, Cumprido e Baixim. Oprimeiro, preocupado, travado, conscien-te de seus deveres religiosos, e vivendoeternamente sobressaltado com a situaçãobrasileira. O segundo, espécie de alter egode seu criador, um inveterado gozador, in-quieto, sempre questionador e, melhor, ri-dicularizando a tudo e a todos com umhumor praticamente impensável nestanossa era do politicamente correto.

Cumprido e Baixim eram uma home-nagem aos frades do Convento Domini-cano de Belo Horizonte, entidade que ex-trapolava os limites da própria religião erealizava uma ampla gama de serviços so-ciais na capital mineira. Henfil se diziaeternamente grato a um destes religiosos,Frei Matheus, que certo dia lhe explica-ra que o conceito de Inferno não era o deum lugar em chamas, mas sim da ausên-cia de Deus. A “revelação” teria acalmadoHenfil, que sempre acreditou que iria para

o inferno ao morrer. “Falam que o Baiximé um personagem ruim, mas não é. O Bai-xim é um personagem solidário: quandoele vê que uma pessoa está na pior, ele vailá e põe a pessoa mais na pior ainda, praela perceber mesmo, o quanto está napior”, explica o criador dos personagens.

Nesta fase da carreira, o cartunista dis-se que estava preocupado em se voltar“para um outro tipo de Brasil, que tinhaque ser o Nordeste, com cheiro de terra,aquele Brasil que não estivesse próximodeste imenso shopping center em que omundo está se transformando”. Assim,nesta fantástica galeria de personagens,integra-se aos Fradins um núcleo nordes-tino composto pelos impagáveis Zeferi-

no, Bode Orelana e Graúna(sua única personagem fe-minina), invariavelmentebanhados por um sol agres-sivo e escaldante. Eram tra-ços de incrível simplicida-de e surpreendentes possi-

bilidades expressivasque, aliados a textosácidos e politicamen-te hilariantes, serviam

de catarse para todo bra-sileiro minimamente po-litizado naquela época. AColeção Fradim passou a

ser relançada em 2013,com o selo “25 Anos Sem

Henfil”, graças a uma inicia-tiva da Ong Henfil Educaçãoe Sustentabilidade. A série

completa, composta por 31 revistas lan-

(As declarações de Henfil publicadas nesta matériaforam coletadas dos programas Super Grilo e VoxPopuli, da TV Cultura, de telejornais da TV Cultura, edo Bom Dia Rio, da TV Globo).

çadas originalmente entre1970 e 1980, ganhou uma adi-cional edição zero e já contacom 12 revistas relançadas naíntegra, com previsão de dis-ponibilização dos demais nú-meros ainda em 2014.

Saindo do Rio, Henfil ex-pande seus horizontes e vaimorar em Nova York. Um dosmotivos da viagem é tratar-sede uma hemofilia congênita,que atacava não só a ele comotambém aos seus irmãos, osociólogo Betinho e o músicoFrancisco Mário. Mas enga-na-se quem pensa que o in-quieto cartunista assumirianos Estados Unidos uma pas-siva posição de paciente emtratamento. Pelo contrário.Seus dois anos de vida novai-orquina o inspiram a escrevero livro Diário de um Cucara-cha, narrando com bom hu-mor e sagacidade a experiência de ser umlatino na Big Apple. O livro foi editadocom duas versões de capa, a gosto do leitor:uma ostentando uma enorme fotografiade uma barata, e outra mais limpa, para es-tômagos mais sensíveis.

Vale lembrar também que seus Fradinsforam considerados ofensivos demaispara serem distribuídos em grandes publi-cações norte-americanas, que os recusa-ram solenemente. “Ou eu trabalhava àmaneira americana ou eu não trabalhava,não tinha mercado pra mim, como nãotem pra ninguém. Eles queriam a minhaalma, eu tinha de me transformar numporta-voz, num servidor público da cul-tura americana, e não mais da cultura bra-sileira, porque esta não entra lá, não. E oque entra, pode olhar, é dentro do bati-cum dele”, explicaria Henfil, anos depois,sobre a não aceitação do seu trabalho nosEstados Unidos.

Além de Diário de um Cucaracha, em1976, Henfil ainda publicou Hiroshima,meu Humor (no mesmo ano), Henfil naChina (1980), Dez em Humor (coletânea de1984), Diretas Já (1984), Fradim de Liber-tação (1984) e Como se Faz Humor Político(1984). Uma de suas criações marcantesfoi Ubaldo, o Paranóico, um dos raros per-sonagens da história dos quadrinhos a teruma data precisa de nascimento: 26 deoutubro de 1975. Não por acaso, um diaapós a morte de Vladimir Herzog. “Eu nãocriei Ubaldo, o Paranóico. Eu olhei na rua,vi o Ubaldo e desenhei”. Na verdade, tra-ta-se de uma criação feita em conjuntocom Tárik de Souza, e a proposta era nãodenunciar simplesmente a ditadura, masprincipalmente o medo que ela fez insta-lar na população, inclusive “o medo daspessoas que não têm porque ter medo”, nodizer no próprio cartunista. “Todo mun-do se achava Ubaldo”, diz Henfil.

Já nos anos 1980, a seção Cartas daMãe, que publicava semanalmente na Is-toÉ, transformara-se rapidamente emgrande sucesso, graças à linguagem aomesmo tempo despojada, divertida e crí-tica com a qual escrevia “cartas” direcio-

nadas à sua mãe, Dona Maria , cuja fotovinha estampada no alto da página. A fi-gura de Dona Maria ficou tão popular quemais tarde ela viria a ser contratada daTV Globo para contracenar silenciosa-mente em quadros de humor criados pelofamoso filho. Sua atuação artística saiudo campo gráfico, e invadiu as artes cêni-cas e visuais. No teatro, fez parceria comOswaldo Mendes para escrever e dirigira peça A Revista do Henfil, onde seus famo-sos personagens criaram vida. No cinema,escreveu, dirigiu e atuou no deliciosamen-te anárquico Tanga – Deu no New YorkTimes, comédia (claro) sobre uma peque-na ilha miserável cujo poder é represen-tado pelo único exemplar do jornal TheNew York Times que diariamente seu dita-dor recebe. E na televisão atuou no qua-dro TV Homem, dentro do programa TVMulher, além de participar com quadroshumorísticos no Jornal da Globo.

Um dos fundadores do Partido dos Tra-balhadores, e feroz defensor do movimen-to pelas Diretas Já, Henfil contraiu o ví-rus HIV numa de suas várias transfusõesde sangue, necessárias ao combate da he-mofilia. Morreu em 1988, aos 43 anos, noRio de Janeiro, sem ter conseguido reali-zar seu grande sonho de votar para Presi-dente do Brasil. “Eu trabalho no serviçopúblico. Quando eu vou trabalhar numjornal, o jornal é um serviço público, te-levisão é um serviço público. Então, eu es-tou a serviço do público. Principalmen-te no nosso caso, do humor, em que agente, em princípio, é escolhido pela edi-toria, é escolhido por um repórter, ou porum redator amigo, mas você não resistenem três meses se não houver uma ‘elei-ção direta’ ou seja, se o leitor não te com-prar”, afirmou.

Este é Henfil.O “irmão dele”, na música, é Herbert

de Souza, o Betinho. Mas isso já seria umaoutra história.

18 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

DIREITOS HUMANOS

A Comissão Nacional da Verdade (CNV)afirmou, no dia 27 de fevereiro, em entre-vista coletiva, que o ex-tenente AntônioFernando Hughes de Carvalho (foto me-nor) é o assassino do ex-deputado RubensPaiva. O coronel da reser-va Armando Avólio Filho,ex-integrante do Pelotãode Investigações Crimi-nais da Polícia do Exército(PIC-PE), em depoimentoà comissão, no Rio, revelouter visto, por uma portaentreaberta, em janeiro de1971, Hughes de Carvalhopulando sobre o corpo dopreso político. A cenaaconteceu na carceragemdo Destacamento de Ope-rações de Informações do1º Exército, na Rua Barão de Mesquita,Tijuca (Doi-I). Tempos depois, ao tomarconhecimento do desaparecimento doex-deputado, associou-o à vítima tortura-da por Hughes, pois as características fí-sicas seriam semelhantes.

Antônio Fernando Hughes de Carva-lho, já falecido, era um oficial egresso doCentro de Preparação de Oficiais da Re-serva (CPOR). Documentos obtidos no

Revelado nome doassassino de Rubens Paiva

REPROD

UÇÃO

Manoel Aurélio Lopes, 77 anos, ex-escrivão de polícia do Departamento deOrdem Política e Social (Dops), afirmou, no dia 25 de fevereiro, em depoimen-to à Comissão Nacional da Verdade de São Paulo, que sabia que havia torturano Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações deDefesa Interna (Doi-Codi), em São Paulo, mas que não as presenciou, pois nãotinha autorização para acompanhar os depoimentos de presos. O ex-escrivão,que trabalhou no Dops entre 1969 e 1972, e no Doi-Codi, de 1972 a 1978, foiconvocado para depor na Comissão da Verdade para apuração da morte de oitomilitantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Ele admitiu ter presenci-ado no Dops as práticas de tortura conhecidas como “cadeira do dragão”, queconsistia em choques elétricos, e “cristo redentor”.

– Nesta última, os presos ficavam nus em cima de latas de leite. Quandoeles não aguentavam mais os pés cortados, caíam da lata e recebiam golpes,disse o ex-policial, que tinha o codinome de “Escrivão Pinheiro”.

O depoente referiu-se aos militantes de esquerda sempre como “subversi-vos” e elogiou o chefe do Dops na época, o delegado Sergio Fleury, como uma“pessoa antenada e enérgica, que resolvia as coisas rapidamente”. De acordocom os membros da CNV, o depoimento foi de “enorme valor”, uma vez queo ex-policial é o segundo agente da ditadura militar a admitir a tortura em de-poimentos ao Estado brasileiro. O primeiro foi Walter Jacarandá, em audiên-cia na Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. (Cláudia Souza)

Ex-policial do Dops admiteprática da tortura

banco de dados digital do projeto BrasilNunca Mais confirmam que Hughes par-ticipava de ações da repressão contra a es-querda armada, atuando em parceria commilitares do Cisa (Centro de Informações

de Segurança da Aeronáu-tica). Por conta desse en-volvimento, ele ganhouem 1971 a Medalha do Pa-cificador, distinção dadaa militares posteriormen-te acusados de tortura.Rubens Paiva foi preso emcasa, no Leblon, dia 20 dejaneiro de 1971, por umaequipe do Cisa e, desdeentão, é considerado de-saparecido. A data, segun-do o depoimento, coinci-de com a cena do espan-

camento. Avólio disse que, logo após tes-temunhá-la, chamou seu chefe imediato,o então major Ronald José Baptista deLeão, e levou o caso ao comandante doDoi, o também major José Antônio No-gueira Belham, e ao comandante da Polí-cia do Exército, coronel Ney FernandesAntunes. Em carta à Comissão da Verda-de, Leão, que faleceu no início deste ano,confirmou o episódio.

É a primeira vez em que um militarligado à repressão aponta um colega en-volvido na provável morte de Paiva. Atéentão, a presença de Paiva no DOI forareconhecida pelo ex-tenente médicoAmilcar Lobo, já falecido. Em depoimen-tos dados na época em que foi denunci-ado pela ex-presa política Inês EtienneRomeu, considerada a única sobreviven-te da Casa da Morte de Petrópolis, Lobodisse que deu assistência a um “desapare-cido político”, a quem viu “moribundo,uma equimose só e roxo da raiz dos cabe-los às pontas dos pés”, numa cela do DOIda Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.

Em depoimento recente à ComissãoEstadual da Verdade e ao Ministério Pú-blico Federal, que também investigam ocaso, o então major Raimundo RonaldoCampos admitiu ter montado, por or-dens superiores, uma farsa para forjar afuga de Paiva. Com a ajuda dos irmãos eex-sargentos Jacy e Jurandyr Ochsendorf,ele atirou na lataria de um Fusca e o in-cendiou no Alto da Boa Vista, no Rio. Amontagem destinava-se a sustentar aversão oficial de que, ao ser levado por

Identificação representaum marco histórico

militares, o ex-deputado teria sido se-qüestrado por terroristas. Campos dissesaber que se tratava de uma operação parajustificar o desaparecimento de um pri-sioneiro. Revelou também ter informa-ções de que ele já estava morto.

Além dos depoimentos, documentosarrecadados na casa do ex-coronel JúlioMolinas Dias, assassinado em 2012 du-rante um assalto, comprovaram que Pai-va, depois de preso pela Aeronáutica, foilevado para o DOI. Molinas, que coman-dou o DOI em 1981, guardava uma folhade ofício preenchida em máquina de es-crever, na qual o Exército relata a prisãode Paiva. Intitulado Turma de Recebi-mento, o documento contém o nomecompleto do político (Rubens BeyrodtPaiva), de onde ele foi trazido (o QG-3),a equipe que o trouxe (o CISAer, Centrode Inteligência da Aeronáutica), a data(20 de janeiro de 1971), seguido de umarelação de papéis, pertences pessoais e va-lores do ex-deputado. Consta tambémuma assinatura, possivelmente de Paiva,que era acusado de manter correspondên-cia com exilados políticos.

Caso Rubens Paiva:Coronel da reserva

revela nome doassassino do

deputado.

REPROD

UÇÃO

19JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

No Dia da Mulher, ativistasrecebem pedidos de desculpas

POR CLÁUDIA SOUZA

Em sessão especial para homenagear oDia Internacional da Mulher, quatro ví-timas da ditadura receberam, no dia 7 demarço, pedidos de desculpas do Estadobrasileiro por violências e perseguiçõessofridas durante a repressão militar. A jor-nalista Lúcia Leão, a advogada AglaeteNunes Martins, a professora universitá-ria Maria do Rosário da Cunha Peixoto,e a psicanalista Lúcia Maria de Cerquei-ra Antunes Borges Rodrigues vão receberindenizações relativas aos prejuízos ma-teriais que sofreram devido à perda deempregos, exílio e prisão por motivos po-líticos. Os processos foram julgados pelaComissão de Anistia do Ministério da Jus-tiça. A ministra da Secretaria de Políticaspara as Mulheres, Eleonora Menicucci,disse durante o evento que todas as ins-tituições públicas devem contribuir paradesvendar crimes cometidos durante o re-gime militar (1964-1985).

– Todas as instituições brasileiras têmde tomar para si a responsabilidade morale ética de dar as mãos e contribuir para des-

A crueldade em detalhes. Exposição deum manual prático da perversidade. Essaspodem ser a síntese do depoimento do co-ronel reformado Paulo Malhães, de 76anos, à Comissão Estadual da Verdade doRio. Durante 20 horas, o militar, um dosmais atuantes agentes do Centro de In-formações do Exército (CIE) nos anos dechumbo, esclareceu muito sobre as práti-cas desumanas de alguns de seus colegas.E, mais do que isso: confirmou ter ele pró-prio desenterrado e sumido com o corpodo ex-Deputado Rubens Paiva, morto sobtorturas em janeiro de 1971. Na sessão,Paulo ainda contou como a repressão faziapara apagar os vestígios de suas vítimas. Porexemplo: um rio da Região Serrana, nasproximidades do distrito de Itaipava, foio destino dos corpos das vítimas da temi-da Casa da Morte de Petrópolis.

Para evitar o risco de identificação, asarcadas dentárias e os dedos das mãoseram retirados. Em seguida, o corpo eraembalado em saco impermeável e jogadono rio, com pedras de peso calculado paraevitar que descesse ao fundo ou flutuas-se. Além disso, o ventre da vítima eracortado para impedir que o cadáver in-

Em novos depoimentos,velhas lembranças do horror

chasse e emergisse. Assim, seguiria o cursodo rio até desaparecer. Sobre Rubens Pai-va, Malhães revelou a repórteres de OGlobo que lançou o corpo no mar – depoisde retirá-lo de cova improvisada no Altoda Boa Vista, onde teria sido inicialmen-te enterrado. À Comissão da Verdade doRio (CEV), no entanto, contou que odestino do ex-Deputado foi o rio da Re-gião Serrana, o mesmo em que foramjogados vários outros corpos de desapare-cidos políticos. Tal contradição, é claro,causou ainda mais revolta.

“É inaceitável que o Exército finja quenada acontece e não se pronuncie. Ele tema obrigação legal e moral de vir a público,confirmar ou desmentir os relatos dePaulo Malhães e de outros agentes. Sugi-ro até ao comandante do Exército quecompareça à audiência pública sobre aCasa da Morte, convocada pela ComissãoNacional da Verdade, e esclareça em de-finitivo o que o povo quer saber”, recla-mou Wadih Damous, presidente da CEV.

Além de explicar suas refinadas ‘técni-cas’ de trabalho, em seu depoimento Paulofalou especificamente sobre o caso deRubens Paiva. “Ele, eu calculo, morreu

por erro. Os caras exageravam naquiloque faziam, sem necessidade. Ficavamsatisfeitos e sorridentes ao tirar sangue edar porrada. Isso aconteceu com RubensPaiva. Deram tanta porrada nele que,quando foram ver, já estava morto. Aíficou o abacaxi; o que fazer? Se faz o quecom o morto? Se enterra e se conta estenegócio do sequestro. Só que o cara, pri-meiro, enterrou na estrada que vai para oAlto da Boa Vista. Aí, estavam fazendo abeirada da estrada, cimentando, e o caraviu que eles iam passar por cima do cor-po. Foi lá e tirou.”

PsicopatasPara a ministra da Secretaria de Direi-

tos Humanos, Maria do Rosário, “o depo-imento do coronel mostrou que a ditadu-ra valeu-se de psicopatas. Porém, há outrosque participaram e até hoje não falarampor vergonha. Ainda há tempo para queeles mudem de idéia, sobretudo se tiveremum lampejo de dignidade”. O deputadoAdriano Diogo (PT), que preside a Comis-são Estadual da Verdade Rubens Paiva, deSão Paulo, completou. “Este é o depoimen-to de um militar que dá a dimensão de até

onde eles chegaram durante a ditadura.Uma perversidade extrema. Ele oficializao que se tem investigado desse período. Ecomeça a ficar claro para a população oque eles eram capazes de fazer”.

Primo de Carlos Alberto Soares de Frei-tas, o Beto, que comandava a VAR-Palma-res na época em que a presidente Dilmafazia parte da organização, Sérgio SoaresFerreira lembrou que se passaram 43 anosdesde a prisão e disse que familiares dedesaparecidos políticos não podem ver odepoimento de Malhães de forma inocen-te. “Espero que isso estimule outros a fa-larem. E acho espetacular que o grande pú-blico saiba o que aconteceu. Mas, paramim, como familiar de desaparecido, o de-poimento tem muitas incongruências. Seesquartejavam pessoas, quem ia lá fazerisso? Não é só cortar, tem uma técnica. Ocoronel fala, mas mantém o pacto de nãodizer o nome de ninguém. E, em sua fala,é como se dissesse: esquece, os restosmortais não serão encontrados. Como secolocasse um pá de cal. Mas, eu não vouparar. Para nós, que somos os familiares, oprocesso democrático só avança quando opassado for desvendado”.

vendar os crimes, que, até então, ficavamsó entre os familiares e nós, ex-presas.

Aglaete Nunes Martins foi a primeira adepor. Ela contou que seu escritório no Cen-tro do Rio de Janeiro foi invadido e destru-ído em 1984, por agentes do extinto Depar-tamento de Ordem Política e Social (Dops),que procuravam uma gráfica clandestinaresponsável, segundo eles, por impressão dematerial subversivo. Ela foi processada pelaJustiça Militar com base na Lei de Seguran-ça Nacional. Aglaete disse que até hoje so-fre restrições devido a este processo.

Maria do Rosário da Cunha Peixoto, daUniversidade de São Paulo (USP), trabalha-va na Secretaria de Educação de Minas Ge-rais, em 1969, quando foi presa, em 15 dejunho do mesmo ano, e só ganhou a liber-dade em maio de 1970, tendo sofrido tor-turas durante o período em que esteve de-tida. Ela disse que foi forçada a pedir demis-são devido aos constrangimentos sofridosno trabalho, teve dificuldade para conse-guir emprego e praticamente viveu naclandestinidade, até ser acolhida pela USP.

Lúcia Maria de Cerqueira AntunesBorges Rodrigues narrou à Comissão de

Anistia que, com o golpe militar de 31 demarço de 1964, seu marido, então supe-rintendente de Reforma Agrária em Per-nambuco, foi para o interior tentar orga-nizar uma resistência armada, que acaboufracassando. Ele perdeu o cargo e o empre-go de professor universitário, o que a obri-gou a trabalhar no Senac pernambucano.Devido às perseguições sofridas pelomarido, o casal fugiu para o Paraguai, ondeele conseguiu ser contratado pelo BancoInteramericano de Desenvolvimento(Bid) para trabalhar nos Estados Unidos.O casal retornou ao Paraguai. Ambos con-

seguiram voltar ao Brasil após a promulga-ção da Lei de Anistia.

A jornalista Lúcia Leão foi presa aos 16anos, em São Paulo, e passou mais de 30dias no Doi-Codi da cidade, na época co-mandado pelo então coronel Carlos Al-berto Brilhante Ustra. Lúcia disse que foimolestada algumas vezes durante o tem-po em que ficou presa, e que testemunhoumuitos atos de violência contra outrospresos. Depois de libertada, não conseguiuestudar em São Paulo e se mudou para oRio de Janeiro, indo mais tarde para Bra-sília, onde trabalha na imprensa.

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Sob o olhar da professora Maria do Rosário, a ministra Eleonora Menicucci fala durante a sessãoespecial da Comissão que julgou casos de mulheres perseguidas na ditadura militar.

22 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

LIBERDADE DE IMPRENSA

O mês de fevereiro de 2014 foi o maisletal para a imprensa nacional. Em trêssemanas, foram registrados sete assassi-natos de jornalistas, além de casos deagressão. O Brasil se tornou o país com omaior número de jornalistas mortos nasAméricas, segundo o relatório anual daorganização Repórteres Sem Fronteiras(RFS). Em 2013, foram cinco os jornalis-tas mortos no País; já em 2014, sete fo-ram mortos em apenas 20 dias. No dia 27de fevereiro, o corpo do jornalista Hél-ton Souza, de 28 anos, foi encontradocom sinais de estrangulamento, no Cen-tro de Exposições da cidade de ValentimGentil, região de Fernandópolis, interi-or de São Paulo. O crime de latrocínio(roubo seguido de morte) já foi descarta-do pela Polícia Civil.

De acordo com o jornal Região Noroes-te, os investigadores trabalham com ahipótese de que o jornalista teria ido aolocal para um possível encontro. Os po-liciais vão solicitar a quebra do sigilotelefônico do celular da vítima para ten-tar identificar a última pessoa com quemele entrou em contato. Hélton Souza, queera assessor de imprensa da Santa Casa deFernandópolis, estava desaparecido des-de às 10 horas do dia 26, quando saiu desua casa, em Pedranópolis, para ir à acade-mia, de acordo com o jornal O Estado deS.Paulo. O carro do jornalista foi abando-nado a três quilômetros de distância dolocal onde um pintor, que trabalha nasobras da guarita do Centro de Exposições,encontrou o corpo do jornalista, que estavacom uma camisa enrolada no pescoço ecom a calça comprida abaixada. Segundoa polícia, o local, que está em obras, é usa-do por usuários de drogas e mendigos.

CrimeTambém no dia 27 de fevereiro, o jorna-

lista e radialista Geolino Lopes Xavier, co-nhecido como Geolino Lopes, de 44 anos,foi morto a tiros, por volta das 21h, na re-gião central de Teixeira de Freitas, cidade lo-calizada a 900 km de Salvador (BA). GeoLopes deixa mulher e um filho, o tambémjornalista Joris Xavier Bento. Geo Lopes eraum dos diretores do portal N3 e foi assas-sinado no interior de seu veículo, que apre-sentava o logotipo do portal. Os crimino-sos atiraram de dentro de um carro, e ain-da não foram identificados.

Momentos antes do crime, o jornalis-ta estava na companhia do colega DjalmaFerreira, na Rua da Saudade. Djalma dis-se ter ouvido tiros após Geo Lopes chegarem casa, e que teria visto o veículo dos as-sassinos sair em alta velocidade. Radialistadesde 1989, Lopes atuou como apresenta-

dor de tv, foi vereador do município deTeixeira de Freitas, entre 2004 a 2008, e erapré-candidato a Deputado Federal pelo PLpara as próximas eleições.

Morte cerebralNo dia 6 de fevereiro, o cinegrafista da

Band, Santiago Andrade, foi atingido porum rojão na cabeça, quando fazia a cober-tura de manifestação contra o aumentodas passagens de ônibus no Rio de Janei-ro. O profissional teve morte cerebral(leia matéria na página 38). O locutor derádio Carlos Dias, e o proprietário de umasucata foram assassinados a tiros no iní-cio da tarde do dia 17 de fevereiro, emPatu, no Rio Grande do Norte. Moradorda cidade de Lucrécia, e funcionário daCompanhia de Águas e Esgotos do RN(Caern), Carlos Dias apresentava o pro-grama Juventude Agora na Rádio Juventu-de, de Messias Targino.

O delegado Sandro Régis, titular dadelegacia de Patu, informou que os doisforam atingidos por vários disparos dearmas de fogo vindos de um carro que pas-sava na avenida principal da cidade. Parao delegado, os tiros tinham como alvoNílson da Sucata, que segundo o titularda Delegacia de Polícia Civil de Patu, járespondeu a inquéritos por crimes naregião e tinha inimigos na cidade. “Olocutor de rádio estava no lugar erradona hora errada. Nílson tinha envolvi-mento com roubos de carros e até homi-cídios. Ele tem uma sucata na entrada dacidade e também revendia carros”, afir-ma Sandro Régis.

Carlos Dias negociava a compra de umcarro com Nílson no momento em que ossuspeitos passaram no local. “Foram vári-os tiros de diversos calibres. Estou aguardan-do a perícia do Itep (Instituto Técnico-Científico de Polícia), mas já identificamosdisparos de pistolas ponto 40 e 9 milíme-tros, de uso restrito das Forças Armadas, ede espingarda calibre 12”, disse o delegado.

ApagãoEm 11 de fevereiro, o radialista Edy

Wilson da Silva Dias, 34 anos, foi mortoa tiros por dois adolescentes, durante o apa-gão que atingiu a cidade de Pinheiros, noEspírito Santo. Edy era locutor na RádioExplosão Jovem FM, em Pinheiros, e apre-sentava um programa aos domingos, das 9hao meio-dia. A polícia chegou aos acusadosatravés de uma testemunha que presenciouo crime. Um dos assassinos, um menor de16 anos, foi preso no dia 14 de fevereiro. Ooutro criminoso, de 15 anos, foi preso namanhã do dia 17, por policiais militares. Osassassinos tinham registro na Polícia porroubo, furto e tráfico de drogas. A políciainvestiga agora o mandante e a motivaçãodo crime. Segundo informações da PolíciaMilitar, o radialista estava em frente aomercado municipal, quando os dois meno-res se aproximaram em uma moto e fizeramquatro disparos, atingindo Edy Wilson nacabeça, no abdômen e no tórax.

OposiçãoEm 13 de fevereiro, o jornalista Pedro

Palma, de 47 anos, foi morto com três ti-ros, na porta de casa, em Miguel Pereira(RJ), quando chegava do trabalho. Doishomens passaram em uma moto, chama-ram por ele e fizeram os disparos, acertan-do dois tiros no peito e um no ombro davítima. Pedro Palma era dono e único

EM TRÊS SEMANAS, SETEJORNALISTAS ASSASSINADOS

POR CLÁUDIA SOUZA repórter do jornal semanal Panorama Regio-nal, que circula em dez municípios doCentro-Sul Fluminense. Nos últimos cin-co meses, o jornal passou a fazer oposiçãoà gestão do prefeito de Miguel Pereira,Cláudio Valente (PT).

Na publicação, denunciava casos so-bre corrupção, desvio de verba, falta de re-passes de dinheiro público, envolvendoprincipalmente o Prefeito e a primeira-dama e secretária de DesenvolvimentoSocial, Kátia Kozlowski. No dia 24 defevereiro, o Presidente da Câmara Muni-cipal de Miguel Pereira, Eduardo PauloCorrea (PR), informou que solicitou àComissão de Justiça da Casa que apure odesaparecimento de R$ 216 mil. A denún-

cia do desaparecimento daverba, cedida pela empresade energia Light para reali-zação de um festival de jazzna cidade, que não ocorreu,fora feita por Pedro Palma.

Outro crime registrado emfevereiro foi o do câmera daTV Cabo Mossoró (TCM),José Lacerda da Silva, 50 anos,morto a tiros na noite de 16 defevereiro, no bairro Belo Ho-rizonte, em Mossoró, no RioGrande do Norte. Ele foi so-corrido pelo Serviço de Aten-

dimento Móvel de Urgência (Samu) e en-caminhado ao Hospital Regional TarcísioMaia, onde morreu. O enterro foi realiza-do na tarde do dia 17, em Luís Gomes (RN),cidade natal de José Lacerda.

RelatórioA Secretária de Direitos Humanos

(SDH), da Presidência da República, Mi-nistra Maria do Rosário, informou quepretende lançar, ainda neste mês de mar-ço, um relatório que reunirá mais de 200casos de agressões contra os profissionaisde imprensa no Brasil. A SDH pretendecriar um observatório para acompanhar oscasos de violência contra os profissionais.Os dados do relatório sobre a violênciaestão sendo apurados pela SDH, em con-junto com o Grupo de Trabalho Comuni-cadores, do Conselho de Defesa dos Direi-tos da Pessoa Humana (CDDPH).

O GT Comunicadores vem monitoran-do há um ano os casos de violência contraos jornalistas e comunicadores. “Se umindivíduo for morto por ser jornalista,vamos acompanhar para que os culpadossejam punidos exemplarmente. Identifica-mos a existência de grupos de extermíniocontratados para atacar os profissionais quedesafiam e desequilibram as relações depoder. Isso é uma afronta à liberdade deexpressão e de imprensa”, disse Tássia Ra-belo, Coordenadora do CDDPH.

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O radialista Geolino Lopes,da cidade de Teixeira deFreitas (BA), e Pedro Palma(abaixo), dono e repórter dojornal Panorama Regional, deMiguel Pereira (RJ), são doisjornalistas que foramexecutados a tiros.

REPROD

UÇÃO

23JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

O cinegrafista Hilton Costa Brito,de 36 anos, funcionário de uma afilia-da da TV Bandeirantes, foi atingido portrês tiros, dois na perna e um no abdô-men, na tarde do dia 4 de março, emPedreiras, a 245 quilômetros de São Luís,capital do Maranhão. Ele foi submetidoa uma cirurgia no Hospital Nossa Senho-ra das Graças. De acordo com a delega-da Silvana Carvalho, que investiga ocaso, o câmera estava em frente à emis-sora onde trabalha para fazer imagensde blocos de carnaval, quando um veí-culo com três pessoas parou no local. Emseguida, um dos ocupantes do carro te-ria saído e efetuado os disparos contrao cinegrafista.

Natural de Chapadinha, município doMaranhão, Hilton estava trabalhando háum mês em Pedreiras. Em substituição aoutro cinegrafista, cobria o Carnavalcomo contratado temporariamente pelaTV Atenas.. “Devem ter me confundidocom alguém. Por que minha única expli-cação é essa. Os disparos foram efetuadosem minha direção mesmo, coisa que nãoentendo ainda, porque sou um cara quenunca me envolvi em brigas”, disse ocinegrafista. A delegada Silvana Carva-lho informou que testemunhas do aten-tado e colegas de trabalho de Hilton co-laboram nas investigações, com depoi-mentos prestados na delegacia.

ViolênciaEm nota, a Associação Brasileira de

Emissoras de Rádio e Televisão (Abert)cobrou das autoridades maranhenses oesclarecimento do caso.

Leia abaixo a íntegra da nota da Abert:“A Associação Brasileira de Emissoras

de Rádio e Televisão (Abert) manifestaseu repúdio ao atentado contra o cine-grafista Hilton Costa Brito, da TV Ate-nas, afiliada da TV Bandeirantes no Ma-ranhão. O crime ocorreu na tarde des-ta terça-feira, 4, em Pedreiras, a 245 qui-lômetros da capital.

Brito foi atingido por três tiros en-quanto aguardava, em frente à emisso-ra, para fazer o registro de imagens deblocos de carnaval. De acordo com apolícia, um veículo estacionou próximoao local, e um dos três ocupantes teriasaído do carro e efetuado os disparos.Brito foi ferido em uma das pernas e noabdômen e encaminhado ao HospitalNossa Senhora das Graças, onde segueem estado grave. É extremamente pre-ocupante a escalada de violência contrajornalistas que, desde o início deste ano(2014), vitimou seis profissionais. AAbert apela às autoridades do estado doMaranhão que apurem mais este crime,que não pode ficar impune.”

Câmera da Bandsofre atentadono Maranhão

POR CLÁUDIA SOUZA

Mais um jornalistamorto em São Paulo

no horário combinado, osadolescentes teriam retorna-do a pé, percorrendo um tra-jeto de cerca de 15 quilôme-tros. Contudo, através dedenúncia anônima, a polícialocalizou o carro do jornalis-ta abandonado em um ca-navial em Porto Feliz. Comisso, o namorado de Mazzi-eri confessou onde estava es-condido o corpo. Ele disse que

todos entraram no carro e que um dos meno-res que estava no banco de trás usou a cordapara enforcá-lo. Após o crime, eles esconderamo corpo da vítima em um canavial e foram paraum baile funk em Sorocaba.

Imagens do trajeto de 13 quilômetros feitopelo carro do jornalista até a boate estão sendoanalisadas. A polícia investiga a participação deum quinto suspeito, possivelmente maior deidade, que poderia ter dirigido o carro. “O jorna-lista teria feito promessas de que conseguiria umemprego em comerciais de televisão para osquatro jovens. Como a promessa nunca foi cum-prida, eles se sentiram enganados e planejaramo assassinato”, afirmou o delegado regional deSorocaba, Marcelo Carriel. (Cláudia Souza)

A Organização das Nações Unidaspara Educação, Ciência e Cultura (Unes-co) e a Ong Repórteres Sem Fonteiras(RSF) repudiaram o assassinato do jor-nalista e radialista Geolino Lopes Xavi-er, ocorrido no dia 27 de fevereiro, em Tei-xeira de Freitas, cidade localizada a 900km de Salvador (BA). A missa de 7º diapelo falecimento de Geo Lopes foi celebra-da no dia 5 de março, às 19h, na IgrejaMatriz de Santo Antonio, Distrito deTeixeira de Freitas. A Unesco exigiu rigo-rosa apuração do crime e cobrou a imple-mentação de medidas de segurança paraprofissionais da imprensa no Brasil.

A Ong RSF divulgou nota repudian-do o assassinato do profissional de im-prensa. “Transmitimos nossas mais sin-ceras condolências e nosso apoio à famíliade Geolino Lopes Xavier. Deploramos aelevada insegurança que afeta o trabalhodos jornalistas brasileiros, e solicitamosàs autoridades competentes que te-nham em linha de conta a pista profis-sional. Esperamos que sejam adotadasmedidas concretas, não só durante a co-bertura de manifestações mais acessíveisa todos os jornalistas que assim o neces-sitarem, e em quaisquer circunstâncias”,afirmou Camille Soulier, uma das direto-ras da RSF para as Américas.

SegurançaO governo federal criou um grupo de

trabalho para determinar procedimentospadrões de segurança na cobertura jorna-lística de protestos. A prévia do estudoestará numa cartilha que o Ministério daJustiça prepara para distribuição em todoPaís e nas aulas de um curso piloto ofer-tado pela Academia da Força Nacional. Ogrupo será coordenado por Heloísa Hele-na Kuser, do Departamento da Força Na-cional de Segurança Pública, e terá comomembros representantes do Ministério daJustiça, da Secretaria Nacional de Justiça,de sindicatos de jornalistas e de empresasde comunicação. (Cláudia Souza)

Entidades repudiamassassinato de

radialista na Bahia

A desembargadora Inês Maria BritoSantos Miranda, da segunda CâmaraCriminal do Tribunal de Justiça da Bahia(TJ-BA), concedeu liminar em processode habeas corpus em favor do jornalistaEmiliano José, com a suspensão de qual-quer ato processual. O jornalista estava sen-do processado pelo bispo Átila Brandão deOliveira por suposto crime de calúnia.Emiliano publicou em fevereiro de 2013,no jornal A Tarde, da Bahia, o artigo inti-tulado “A premonição de Yaiá”, narrandoepisódio de tortura comandada pelo en-

Emiliano José está livre de processo por calúniaPOR IGOR WALTZ gadora argumenta que a concessão de li-

minar em processo de habeas corpus éuma medida excepcional, somente ad-missível quando inequivocamente de-monstrada a ilegalidade do ato impugna-do. No caso em exame – crime de calúniasupostamente praticado pelo jornalistaEmiliano José contra Átila Brandão – adesembargadora entendeu a inexistênciade dolo específico exigido para a configu-ração do crime. Também entendeu que atramitação regular do processo até a apre-ciação final poderia gerar prejuízo irrepa-rável ao paciente, autorizando, portantoa liminar pleiteada.

tão policial militar e atual bispo, contrao ex-preso político Renato Afonso de Car-valho, dentro do Quartel dos Dendezei-ros, na capital baiana.

Os advogados Maurício Vasconcelos eRafael Fonseca Teles requereram habeascorpus, com pedido de liminar. Eles ale-garam que se tratava apenas de uma açãocom objetivo de intimidação à imprensa,resultando em claro constrangimentoilegal. Assim, pleitearam a suspensão doprocesso e a tramitação de qualquer atoprocessual, inclusive a realização de umaaudiência marcada para o último 25 defevereiro. Em seu relatório, a desembar-

O corpo do jornalista Cel-so Mazzieri (foto), 45 anos,foi enterrado na manhã dodia 6 de março, em Santanado Parnaíba, na Grande SãoPaulo. O jornalista estava de-saparecido desde a madruga-da do dia 1º do mesmo mês,em Porto Feliz, região de So-rocaba (SP). A família deMazzieri informou que o jor-nalista foi visto pela últimavez em Sorocaba, no dia 28 de fevereiro, por voltadas 19h, quando saiu dos estúdios da Rede Bra-sil, na qual dirigia os programas Petrúcio MeloShow e Tarde é Show, este último apresentadopela modelo Nani Venâncio, que usou as redessociais para pedir ajuda aos seguidores em re-lação ao desaparecimento de Mazzieri.

No dia 5 de março, a polícia apreendeu qua-tro adolescentes suspeitos do assassinato deMazzieri. Todos confessaram o crime. Eles se-rão encaminhados para a Fundação Casa, edeverão responder por ato infracional de homi-cídio. Entre os detidos está um jovem de 17anos, que seria namorado da vítima. Ele disseà polícia que Mazzieri levou os quatro amigosà boate, mas como não voltou para buscá-los

A Delegacia de Homicídios da BaixadaFluminense (DH-Baixada), em Belford Roxo,assumiu o caso da morte do jornalista PedroPalma, no município de Miguel Pereira, regiãoCentro-Sul do Estado do Rio de Janeiro. As in-vestigações, que correm em sigilo, foramtransferidas a pedido do Ministério Público doEstado do Rio de Janeiro (MP-RJ) e ficam acargo do delegado Pedro Henrique Medina. Apromotoria de Justiça do MP-RJ em MiguelPereira vai acompanhar o caso por meio doGrupo de Atuação Especial de Repressão aoCrime Organizado (Gaeco). Palma, de 47anos, foi morto em 13 de fevereiro com três ti-ros na porta de casa, quando chegava do tra-balho, no início da noite. Dois homens de ca-

Delegacia da Baixada Fluminenseinvestiga morte de jornalista

pacete passaram em uma moto, chamarampor ele e fizeram os disparos, acertando doistiros no peito e um no ombro.

De acordo com Pedro Henrique Medina,a DH-Baixada teria mais recursos para inves-tigar o caso. “Vamos ouvir novamente aspartes e rever as provas para conduzir as in-vestigações”, afirmou o delegado. Na semanapassada, o delegado Murilo Montanha, da96ª DP, em Miguel Pereira, se reuniu com ochefe de Polícia Civil, delegado Fernando Ve-loso, para definir qual delegacia conduzirá asinvestigações. Ele repassou as imagens dascâmeras de segurança da casa do jornalistaque podem apontar a identidade do suspei-to. (Igor Waltz)

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UÇÃO

24 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

LIBERDADE DE IMPRENSA

A Diretoria do Sindicato dos Jornalistasdo Município do Rio de Janeiro (SJPMRJ)e representantes da TV Bandeirantes reu-niram-se no dia 10 de março na sede da en-tidade, no Centro do Rio para discutir me-didas de segurança para os profissionais deimprensa. Participaram do encontro a pre-sidente do SJPMRJ, Paula Máiran, a Tesou-reira da entidade, Camila Marins, o advo-gado Marcelo Martins, do DepartamentoJurídico e Administrativo da TV Bandei-rantes, e Andressa Braga, do Departamen-to de Recursos Humanos da emissora. OSindicato anunciou a criação de uma cam-panha com o objetivo de ampliar os proce-dimentos de segurança e proteção dos jor-nalistas, e defendeu a criação de um canalde diálogo com os funcionários sobre aimportância das medidas para os profissi-onais que atuam na rua. O repórter cinema-tográfico Santiago Andrade, da Band, tevemorte cerebral após ser atingido na cabeçapor um rojão, no dia 6 de fevereiro último,quando registrava imagens de uma manifes-tação contra o aumento das tarifas de ôni-bus, realizada no centro da cidade. Santi-ago Andrade acumulava a função de moto-rista do veículo da emissora.

DenúnciaA TV Bandeirantes está sendo inves-

tigada pelo Ministério Público do Traba-lho do Rio de Janeiro a partir de uma de-núncia apresentada pelo SJPMRJ sobre asmás condições de trabalho na emissora.

A empresa prestou esclarecimentos aosprocuradores na última semana. Alémdas questões de segurança, a Band negouquaisquer irregularidades trabalhistas emsuas Redações, e afirmou que é rigorosacom o banco de horas, e que não obriga es-tagiário a trabalhar como jornalista pro-fissional, outra denúncia encaminhadaao Sindicato.

Durante o encontro no SJPMRJ, aBand disse que está disposta a rever a po-lítica de treinamento em segurança paraos jornalistas. A empresa negou, porém,que vá abolir a prática de repórteres cine-matográficos serem também motoristas. Ofuncionário que acumula a função ganhaadicional de 40% sobre o salário, segundoa empresa. A emissora afirmou ainda que,ao deslocar a equipe de Santiago Andradepara o protesto na Central do Brasil, achefia de reportagem teria pedido que ‘asimagens fossem feitas com segurança’.

ComunicadoEm São Paulo, os profissionais de im-

prensa que trabalham para a AgênciaBrasil, vinculada à Empresa Brasil deComunicação (EBC), divulgaram comu-nicado afirmando que não cobrirão pro-testos e manifestações sem equipamen-tos adequados. Leia abaixo a íntegra danota dos funcionários da Agência Brasil:

“Nós, empregados da Agência Brasil e daRadioagência Nacional em São Paulo co-municamos que, considerando o aumen-to dos casos de violência em protestos derua, avaliamos a necessidade de colocar

Bandeirantes, Santiago Andrade, no Rio deJaneiro. Ressaltamos que o colega mortoestava distante do foco do conflito entrepoliciais e manifestantes, em uma situa-ção aparentemente segura.

O Ministério Público do Trabalho, emmatéria publicada pela ABr, destacou que asempresas podem ser responsabilizadaspelos riscos e, embora não exista normaexpressa do Ministério do Trabalho e Em-prego sobre a obrigatoriedade do forneci-mento de equipamentos de proteção indi-vidual aos trabalhadores da imprensa, “oArtigo 7º da Constituição Federal estabe-lece o direito de todos os trabalhadores àredução dos riscos de acidentes do trabalhopor meio do estabelecimento de normas desaúde, higiene e segurança”. Considerandoque é prerrogativa dos empregados recusa-rem coberturas que ponham em risco suaintegridade física, informamos que estamosaguardando a disponibilização dos equipa-mentos de segurança para que a coberturados protestos seja retomada.

Reconhecemos o impacto desta deci-são no conteúdo jornalístico da EBC, bemcomo para o/a cidadão/ã – que tem comofonte nosso jornalismo público. Nossointuito é seguir trabalhando em prol dacomunicação pública, sempre, porém semque isso implique ameaça à nossa seguran-ça. Com os EPIs em mãos, retomaremosa cobertura imediatamente. Contamoscom a compreensão de vocês e estamos àdisposição para dialogar.

São Paulo, 20 de fevereiro de 2014."

como uma condição, para continuarmosa realizar esse tipo de cobertura, a dispo-nibilização de Equipamento de ProteçãoIndividual (EPI). Destacamos que a obriga-ção do fornecimento desses equipamentosaos empregados encontra-se expressa noAcordo Coletivo vigente. A cobrança parao cumprimento dessa exigência já foimanifestada em carta da Comissão deEmpregados da EBC. Foi feita também, emofício, pelo Sindicato dos Jornalistas Pro-fissionais do DF (SJPDF). O ConselhoCurador da EBC também já se posicionoua favor da adoção de medidas de proteção.

Essas foram medidas tomadas maisrecentemente. Contudo, ações neste sen-tido já foram cobradas por nós à EBCdesde junho do ano passado, quando seintensificaram os protestos. Avaliamosque houve tempo suficiente para que al-guma providência fosse tomada pelaempresa. Apesar das recorrentes cobran-ças, os equipamentos ainda não foramdisponibilizados, e a cobertura de taisprotestos continua a colocar os repórte-res em risco. Acreditamos que a medidaé necessária para resguardar a segurançados profissionais da EBC em coberturasperigosas e arriscadas, como as que temosassistido, especialmente no Rio de Janei-ro e em São Paulo. Seja pela ação polici-al, seja pela ação de manifestantes, osriscos envolvidos em tal cobertura, em-bora já existissem, sobretudo desde junhodo ano passado, tornaram-se mais evi-dentes após morte do cinegrafista da TV

Profissionais deimprensa reivindicammedidas de segurança

A Rede Globo vem tentando na Justi-ça impedir o Uol e o Terra de veicularemquaisquer informações sobre o realityshow Big Brother Brasil 14. O argumentoda emissora é o de que os dois portaisfazem uso comercial do conteúdo do pro-grama, em vez de se limitarem a noticiá-lo jornalisticamente. Em conjunto coma Endemol, produtora holandesa quedetém os direitos mundiais do realityshow, a Globo chegou a obter uma limi-nar no último dia 14 de março, concedi-da pela juíza Maria da Penha NobreMauro, da 5a. Vara Empresarial do Rio deJaneiro, obrigando o Uol a retirar do artodas as notícias relacionadas ao progra-ma, incluindo até mesmo críticas e co-mentários ao BBB. De acordo com a juí-za, o conteúdo veiculado pelo Uol (em-

Globo quer impedir notícias do BBB no Terra e no UolPOR MÁRIO MOREIRA presa controlada pelo Grupo Folha) não

se restringia a mera informação jornalís-tica, mas a “autêntica exploração comer-cial que, por ser desautorizada, pode ca-racterizar concorrência desleal”. A mul-ta estipulada para o descumprimento daliminar era de R$ 100 mil por dia.

Após a decisão, a Globo afirmou emnota que seu objetivo não era impedir apublicação de matérias jornalísticas sobreo reality show: “A cobertura jornalística élivre e pode ser feita por qualquer veícu-lo. Vários sites cobrem o BBB regularmen-te, sem violar direitos autorais”, declaroua emissora. Notificado no dia 18, o Uolimediatamente cumpriu a liminar, retiran-do do ar todo o conteúdo referente aoprograma, mas recorreu da decisão. Doisdias depois, a desembargadora Leila Albu-querque, da 18ª Câmara Cível do Tribunalde Justiça do Rio, relatora do processo na

segunda instância, suspendeu parcialmen-te os efeitos da liminar e permitiu ao por-tal retomar a cobertura do programa. Emseu despacho, a magistrada considerou“que tal já ocorre há anos sem qualquer im-pugnação judicial” e que qualquer prejuí-zo à emissora poderá ser resolvido em açãode perdas e danos. Em conseqüência disso,o Uol voltou a veicular com destaque in-formações sobre o reality show, comovinha fazendo desde o início da atual edi-ção, no mês de janeiro.

Em outro comunicado, a Rede Globoafirmou que a situação não muda com adecisão da desembargadora, já que “nun-ca houve proibição da realização da co-bertura jornalística, mas sim de explora-ção comercial”. O advogado do Uol noprocesso, Raphael Duarte, negou a supos-ta exploração comercial alegada pelaemissora. “Os produtos anunciados nas

páginas do BBB também aparecem nasoutras páginas do portal”, afirmou Duar-te. No caso do Terra, a liminar da primeirainstância vetando a veiculação de notí-cias sobre o BBB foi entregue no dia 19 etambém cumprida de imediato. Naquelaprópria data, à noite, o portal noticiou aproibição, ressaltando “que todas as ima-gens publicadas no site dedicado à cober-tura do BBB 14 foram disponibilizadas pelaCentral Globo de Comunicação, CGCom,para a divulgação do programa da Globopor terceiros, não havendo, portanto,qualquer violação dos direitos autorais daGlobo e/ou Endemol”. O Terra afirmoutambém que realiza a cobertura jornalís-tica do Big Brother Brasil normalmentedesde 2002 e que tentaria cassar a liminar“de modo a garantir para seus internautaso pleno exercício de seu direito constitu-cional de livre acesso à informação”.

POR CLÁUDIA SOUZA

O cinegrafista daTV Bandeirantes,SantiagoAndrade, depoisde ser atingidopor um rojãodurante protestosno Rio de Janeiro.

REPRODUÇÃO TV BRASIL/GABRIEL PENCHEL

25JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

Argentina e México acabam com omonopólio nas transmissões da Copa

POR PAULO CHICO

Aos poucos, bons ventos que levam à de-mocratização do controle da mídia come-çam a soprar em países latinos. Recente-mente, México e Argentina foram palcosde importantes decisões que buscam des-centralizar o poderio de grandes grupos decomunicação, bem como estimular a mai-or diversidade na produção e veiculação deinformações. No país vizinho, governadopor Cristina Kirchner, o organismo queregula os meios de comunicação, a Auto-ridade Federal de Serviços de Comuni-cação Audiovisual (Afsca), aprovoua divisão do Grupo Clarín em seisempresas diferentes. A medida é ne-cessária para que o mesmo passe a respeitara chamada Lei de Mídia – ou Ley de Medi-os – que data do final de 2009.

Aprovada por ampla maioria noCongresso Nacional e sancionada pelaPresidente Kirchner em outubro da-quele ano, a nova lei substitui o decre-to da ditadura militar sobre o setor. Algotramado no regime de exceção que, se-gundo estudiosos, teria beneficiado por di-versas vezes a expansão do Grupo Clarín,durante a gestão dos militares nos anos1970. Numa das investigações mais recen-tes, divulgada em novembro do ano pas-sado, foram descobertos documentos quecomprovam como a junta militar ajudouo Clarín a comprar parte da Papel Prensa –a principal empresa de papel jornal do país.

A maior holding multimídia do paíshavia apresentado novo plano de negóci-os em dezembro de 2013, após perderuma longa batalha judicial na qual alegavaque a Lei de Mídia era inconstitucional.Em outubro, a Corte Suprema de Justiçajá havia considerado constitucional aproposta do governo, que limita o núme-ro de concessões de rádio e TV por propri-etário e impede que as emissoras tenhampresença em todo o território nacional –com exceção da TV Pública. O projetotem como objetivo acabar com os mono-pólios. Para a oposição e o grupo empresa-rial, a norma foi desenhada para “quebrar”o Clarín – nos últimos anos, feroz críticodo governo argentino – e facilitar o con-trole oficial do conteúdo veiculado no país.

O conglomerado, que edita o jornal ho-mônimo, líder em toda a Argentina, é donoda maior operadora de TV a cabo e das emis-soras de TV aberta e de rádio líderes de au-diência. Controla ainda revistas e edito-ra. Com tantas ramificações, monopoliza-va as comunicações no país, totalizandoentre 150 e 200 concessões. Na prática, do-minava o mercado e detinha exclusivida-des de transmissão, como os jogos de fu-tebol. Nenhuma outra emissora podia pas-

tida, as câmeras passavam a focalizar so-mente as torcidas. O jogo era narradodurante 90 minutos, mas não era televi-sionado. Os telespectadores, de suas ca-sas, apenas enxergavam as arquibancadas.Tal prática ganhou o apelido, dado pelospróprios jornalistas, de “a rádio que se vê”.A contar da data de 17 de fevereiro, quan-do foi divulgada a decisão da Afsca, o Gru-po Clarín terá 180 dias para concretizara venda de suas licenças ou a distribuiçãodas mesmas entre os acionistas.

Agente preponderanteNo México acontece algo semelhante.

No dia 7 de março, o mais importantegrupo de meios de comunicação em lín-gua espanhola, o Grupo Televisa, recebeuum duro golpe. A agência reguladora me-xicana declarou oficialmente a empresacomo ‘agente econômico preponderantedo setor televisivo’, o que a obriga a ado-tar medidas para reduzir seu poder em prolda concorrência. Como ‘agente preponde-rante’ se entende aquelas empresas quecontrolam mais de 50% do seu setor ouque por seu peso no mercado impõem suaspróprias regras de negócio ao resto dosconcorrentes. Atualmente, a Televisa con-trola 70% do seu mercado.

A decisão foi conhecida no mesmo diaem que o Instituto Federal de Telecomu-nicações, órgão regulador do setor, liberoua licitação de duas novas redes nacionaisde TV aberta. Trata-se de uma antiga rei-vindicação do setor, que pode causar uma

transformação no panorama televisivodo país, até agora nas mãos da Televisa eda TV Azteca – emissora que controla os30% restantes do mercado mexicano. E,mais uma vez, a quebra de monopólioshistóricos é a pedra fundamental da rees-truturação. Dentre as medidas com asquais a Televisa terá de arcar, estão a proi-bição de transmitir com exclusividadeconteúdos “que no passado geraram altosníveis de audiências”, como torneios na-cionais de futebol, finais de Copas do Mun-do ou Olimpíadas. A empresa tambémdeverá compartilhar sua infraestruturacom outros concorrentes através de umatarifa pública e negociada.

O órgão regulador também classificoucomo ‘agente preponderante’ a empresade telecomunicações América Móvil –outra que terá que adequar-se às leis demercado. Tanto a América Móvil comoTelevisa são de propriedade de dois mexi-canos que integram a lista Forbes dos ho-mens mais ricos do planeta. Carlos Slim,até este ano o homem mais rico do mun-do, ocupa agora o segundo lugar, com umafortuna de 72 bilhões de dólares (168,54bilhões de reais). Emilio Azcárraga, pro-prietário do Grupo Televisa, é o núme-ro 663, graças aos seus 2,6 bilhões de dó-lares (6,06 bilhões de reais). A ação do Ins-tituto regulador contra ambos os gruposé o primeiro passo da reforma das Tele-comunicações, impulsionada no ano pas-sado pelo Presidente mexicano, EnriquePeña Nieto.

sar os gols da rodada no final de semana,antes dos canais ligados ao Grupo Clarín.Isso, no entanto, já havia mudado há al-gum tempo, antes mesmo da validação danova lei.

Enquanto os principais clubes e emis-soras ainda brigam pelos direitos de trans-missão do campeonato brasileiro, em lu-crativas negociações bilionárias que en-volvem centenas de anunciantes, o go-verno argentino estatizou as transmis-sões dos eventos esportivos no país, ain-da em março de 2011. Por meio do progra-ma Esportes para Todos, o governo deKirchner determinou que a tevê públicapassasse a transmitir jogos dos campeo-natos de basquete, vôlei, tênis e rugby,além dos campeonatos de futebol das sé-ries B e C. A série A já era transmitida pelasemissoras públicas desde 2009. Essa foiuma perda relevante para a emissora doGrupo Clarín, que até então detinha a ex-clusividade dessas transmissões.

“A rádio que se vê”Os privilégios dados ao conglomera-

do eram tantos e tão descabidos que ge-ravam até situações surreais. Na Argen-tina, nação de apaixonados por futebol,os canais abertos de televisão mostra-vam tudo, ou quase tudo: a entrada dostimes em campo, a festa de recebimen-to das torcidas, o aquecimento préviodos atletas e até mesmo a pose daquelatradicional foto para a posteridade. Mas,quando o árbitro apitava o início da par-

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ão dá mesmo para afirmar queo personagem central desta re-portagem seja um ilustre des-conhecido. Longe disso. Sua

feição está estampada em herma na Pra-ça da Alfândega, tradicional ponto turís-tico de Porto Alegre. Além disso, seu nomeserviu de batismo para ruas em diversascidades. Em São Paulo, o logradouro ficana Vila Ema. Na capital paranaense, Cu-ritiba, pode ser encontrado no bairro deGuabirotuba. No Rio de Janeiro, AraújoPorto-Alegre é uma importante rua noCentro da cidade. Inclusive, endereço daABI, no número 71, esquina com a RuaMéxico. Embora um nome reconhecido,presente no imaginário dos brasileiros,poucos, muito poucos, sabem os detalhesdo perfil e da trajetória do multifacetadoManuel de Araújo Porto-Alegre.

Pois bem. Vamos, então, às apresenta-ções: Porto-Alegre nasceu em 1806, emRio Pardo/RS. Em 1827, já se encontravano Rio de Janeiro. É uma das figuras maisdesconcertantes da história da cultura edas artes no Brasil: muito citado, é tam-bém pouquíssimo conhecido. Entre suasdiversas atividades, atuou como arquite-to; fez trabalhos de cenografia e decora-ção para teatro e para festas da monar-quia; é considerado autor das primeirascaricaturas realizadas no País; foi ideali-zador da estátua equestre de D. Pedro I, noRio de Janeiro; escreveu algumas novelas,muitas peças para teatro e diversos poe-mas; esteve em cargos de poder em insti-tuições de cultura importantes da época,como o Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro (IHGB) e a Academia Imperialde Belas Artes (Aiba), para a qual conce-beu um amplo projeto de reformulaçãopedagógica, com enormes desdobramen-tos na arte brasileira da segunda metadedo século 19. Diga aí: com um currículodesses, merece ou não ser alvo de um res-gate histórico?

Pois é justamente por isso que está emcartaz, desde 19 de fevereiro, no Insti-tuto Moreira Salles, no Rio de Janeiro,a exposição Araújo Porto-Alegre: Singular& Plural. Até 13 de abril, sempre de terçaa domingo, das 11h às 20h, e com entra-da grátis e classificação livre, o públicopode conhecer os talentos deste artistamúltiplo. Seguindo o costume da área deiconografia brasileira do IMS de trabalharcom obras que têm como suporte o papel,a exposição traz cerca de 50 obras, comdestaque para a sua produção gráfica. Fo-ram reunidas aquarelas, esboços, desenhosfeitos a grafite e a nanquim. Porto-Alegreatuou como arquiteto, cenógrafo, críti-co, historiador, escritor, jornalista e di-plomata. Em busca da totalidade na suavasta obra, a exposição também traz tex-tos, poemas e projetos de arquitetura ecenografia.

“Esta exposição é importante porqueé a primeira que busca reunir toda a diver-

como mestre de artistas importantes, epropôs caminhos para a pintura da épo-ca. Além disso, é considerado o iniciadorda caricatura no Brasil, em 1837, em quesatirizava o jornalista conservador Justi-niano José da Rocha. O surgimento des-se tipo de desenho foi um fato de profun-das conseqüências para a cultura políti-ca do Império”.

A maioria das obras, com datações va-riadas, abrange o período em que Porto-Alegre esteve na Europa pela primeira vez(1831-1837), acompanhando seu mestreJean-Baptiste Debret, que voltara para aFrança definitivamente, e aprimorandosua formação como pintor. A exposiçãopropõe relacionar esses esboços a outrasproduções do autor e a obras de outrospintores aos quais esteve ligado, sejacomo professor, ou como crítico. Para isso,além das peças que fazem parte do acer-vo do IMS, são apresentados ao públicoartigos que pertencem a outras institui-ções, como o Museu Nacional de BelasArtes, a Fundação Biblioteca Nacional, oMuseu Julio de Castilhos, o Margs, o Mu-seu D. João VI, o Museu Imperial, o MuseuHistórico Nacional, além de coleções par-ticulares. Um acervo impressionante, queajuda a entender o quanto Araújo Porto-Alegre foi vital para a sedimentação deuma cultura nacional.

“Contamos com a ajuda de coleciona-dores e de diversas instituições públicasbrasileiras, que inclusive nos emprestaramobras para a exposição. Metade das obrasexpostas pertence ao acervo de iconogra-fia do IMS; a outra metade, veio de oito ins-tituições diferentes”, reforça Letícia. Comodesdobramento da exposição, que seguirápara São Paulo a partir de junho, com edi-ção ampliada, o IMS lançará um catálogoque reunirá imagens das obras de Porto-Alegre, uma seleção com seus escritos e umacronologia, além de artigos sobre diversosaspectos da atuação do artista, feitos porespecialistas convidados.

Questiono Julia sobre o que há de maissurpreendente na exposição, bem comosobre o posicionamento político de Por-to-Alegre. “Ele era até hoje conhecido como

um pensador importante dahistória das artes no Brasil,mas um artista medíocre. Aexposição mostra que ele eraum bom artista, tendo sidotambém um pintor de paisa-gens bastante sensível. O quemais surpreende o público éque ele foi capaz de se dedicara tantas atividades diferen-tes, e que foi também um óti-mo desenhista. Politicamen-te, era um liberal moderado,

digamos assim: foi sempre fiel à monar-quia, próximo de D. Pedro I e de D. PedroII. Mas achava que devia haver mudançasna estrutura da sociedade. Chegou a escre-ver um texto propondo a libertação gra-

As mil facesde Araújo

Porto-Alegre

POR PAULO CHICO

Exposição em cartaz do Instituto Moreira Salles, no Rio, apresenta ao públicoa diversificada produção artística de Manuel de Araújo Porto-Alegre.

cido dos especialistas”, conta LetíciaSqueff, professora de História da Arte daUniversidade Federal de São Paulo (Uni-fesp) e uma das curadoras da mostra.

Coordenadora de Iconografia do IMS,Julia Kovensky divide a cu-radoria com Letícia. E tam-bém falou com o Jornal daABI sobre Araújo Porto-Ale-gre. “Ele teve uma enorme im-portância na sua época, atu-ando como o que chamaría-mos hoje de agitador cultural:criou várias revistas, dirigiu aAcademia de Belas Artes, quiscriar um museu de artes noRio de Janeiro, criar monu-mentos no meio desta cida-de, promoveu artistas diversos, entre mui-tas outras coisas. Ele é muito importantecomo historiador da arte no Brasil. Resga-tou e guardou para a posteridade os nomesde artistas do passado. Também atuou

HISTÓRIA

sificada obra deixada pelo artista. É a pri-meira exibição individual em muito tem-po – a última foi nos anos 1980. Ele foi umimportantíssimo personagem da corte deD. Pedro II e só agora começa a ser melhorconhecido por estudiosos e pelo grandepúblico. A primeira motivação para fazera exposição foi levar ao público obras iné-ditas de um álbum que pertenceu a Porto-Alegre e que, em 2008, foi incorporado aoacervo de iconografia do IMS, e total-mente restaurado. Em geral, se conhecemuito pouco a respeito dos artistas do sé-culo 19 no Brasil. São conhecidas vaga-mente algumas obras, como A PrimeiraMissa, de Victor Meirelles, ou A Batalhado Avaí, de Pedro Américo. O caso dePorto-Alegre é ainda mais grave porqueele passou os últimos 20 anos de sua vidano exterior, e morreu em Lisboa, em1879. Então, parte de suas obras ficou dis-persa. Durante muito tempo apenas oque ele publicou na imprensa era conhe-

AUTO-RETRATO, 1836-1837. GRAFITE SOBRE PAPEL. 24,2 X 33,5 CM (APROX.)

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“Ele foi oprimeiropensadorque quisdefinir oque seriauma arte

brasileira.”

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MATA VIRGEM, C.1850-1860. GRAFITE E AQUARELA SOBRE PAPEL. 21,1 X 30,0 CM

IMAGENS: ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

RIO DE JANEIRO, FLORESTA VIRGEM, 1856. LITOGRAFIA IMPERIAL DE RENSBURG, RIO DE JANEIRO. LITOGRAFIA SOBRE PAPEL. 31,8 X 45,0 CM

CHER COMPAGNON DE VOYAGE, 1834. GRAFITE SOBRE PAPEL. 21,2X 29,5 CM. ESTUDO PARA UMA CENA DE BATALHA, S.D. GRAFITE, NANQUIM E AGUADA SOBRE PAPEL. 11,8 X 19,5 CM

O retrato de Carlos Miguel de Lima e Silva, irmão do Duque de Caxias,faz parte de um álbum de caricaturas desenhado por Araújo Porto-Alegre,

e hoje pertencente ao artista plástico Luiz Ernesto Moraes. Suspeita-seque Carlos Miguel tenha recebido esse álbum do próprio artista.

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dual dos escravos, por exemplo. Tambémnão teve medo de exaltar artistas negrosou mulatos do passado colonial, como opadre José Maurício Nunes Garcia, o escul-tor mestre Valentim. Por outro lado, nun-ca aderiu à voga romântica de valorizaçãodos índios, nem ao indianismo. Achava queo progresso do País passava pela adoção devalores e princípios europeus”.

Passados quase 150 anos de sua morte,será possível determinar o legado deixadopor Araújo Porto-Alegre? “Ele foi o primei-ro pensador que quis definir o que seria umaarte brasileira. Tinha uma preocupaçãocom o patrimônio do País, antes que exis-tisse essa idéia por aqui, tentando preservarigrejas e monumentos, reunindo documen-tos de artistas... Seu legado foi o de deixarum projeto brasileiro de belas artes – o quehoje chamaríamos de artes plásticas. Algoque depois seria retomado e resignificadopor gente como Mario de Andrade, Louri-val Gomes Machado, entre outros. Seus es-critos influenciaram vários autores quequiseram traçar a história da arte no Brasil.Além disso, alguns artistas importantes daépoca foram seus discípulos, como os já ci-tados Victor Meirelles e Pedro Américo”,conclui Letícia.

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Jornal da ABI – Qual é o seu pa-rentesco com Manoel AntonioSilva Serva?

Leão Serva – Ele é o meu tataravô,primeira pessoa de que se tem notí-cia que trouxe esse sobrenome aoBrasil. Segundo sua principal biógrafa,Cybelle de Ipanema (que trabalhoudurante muitos anos com o marido,já falecido, Marcello, e por isso aindaassina com ele todos os seus ensaios),Silva Serva teria nascido em torno de1760 e instalado negócios e residên-cia em Salvador, por volta de 1788. Elevinha de Portugal. A professora Cy-belle introduziu a hipótese, hoje bas-tante aceita, de que naquele tempoas pessoas acrescentavam a seunome de família o nome da cidadeonde nasciam, como se fosse um úl-timo sobrenome. Dessa forma, seunome de batismo seria Manoel An-tonio da Silva, nascido na Vila de Ser-va, no norte de Portugal, uma peque-na cidade cujo nome hoje se escrevecom C. No livro dela, aparecem ou-tros personagens portugueses dessaépoca que reforçam essa idéia. Masno meu livro mostro que havia ou-tros Servas em Portugal, na época,

que vinham de outros lugares, comofilhos de um irmão, que ele adotou jáno começo do século 19.

Jornal da ABI – Ele sempre foi umareferência, um orgulho para a fa-mília ou vocês o descobriram hápouco tempo?

Leão Serva – Em verdade, meu paifalava de seu bisavô que tinha fun-dado um dos primeiros jornais brasi-leiros, na Bahia. Ele tinha informa-ções imprecisas, que lhe narraram ospais e tios. Mais tarde, quando co-nheci o bibliófilo José Mindlin, ele cor-rigiu alguns dos erros históricos queeu tinha em minha narrativa e medeu os contatos do importante estu-dioso baiano, Renato Berbert de Cas-tro, autor do principal catálogo dasobras de Silva Serva até então. Eu eraadolescente e não procurei Berbert deCastro. Mas meu pai o procurou,trocou correspondência com ele.Depois, ao longo dos anos, algumascoisas saíam na imprensa: a revistaImprensa publicou alguns estudos deNelson Cadena, jornalista e histori-ador radicado na Bahia; Luiz Guilher-me Pontes Tavares, historiador da

A paternidadeesquecida da

imprensaLivro joga luzes sobre Manoel Antonio Silva Serva,empreendedor que fundou a primeira tipografia

de propriedade particular do Brasil Colônia, criou oprimeiro jornal e a primeira revista privados do País.

POR GONÇALO JÚNIOR

imprensa, também baiano, vem sededicando a levantar novas informa-ções e incentivar o trabalho de novoshistoriadores. Então, muitas infor-mações foram surgindo. Até a come-moração do bicentenário da revistaAs Variedades, quando Pontes Tava-res, que organizou eventos em Salva-dor, em 2012, convidou-me para par-ticipar, na condição de descendente dafamília e jornalista. Ali, os estudosapresentados e as palestras me reve-laram um empreendedor muito mai-or do que já tinha podido ver.

Jornal da ABI – Esse livro, quevocê planejava há tanto tempo,é um acerto de contas com amemória de sua família?

Leão Serva – Em verdade é maisuma tentativa de juntar informaçõesdispersas em um formato jornalístico(mais palatável do que o ensaio his-tórico). E foi uma tentativa de trazerpara o “Sul Maravilha” uma infor-mação que é conhecida pelos baianose absolutamente desconhecida emSão Paulo, por exemplo.

Jornal da ABI – Por outro lado,você joga luzes sobre um perso-nagem importantíssimo para ahistória da imprensa brasileira.Por que Manoel Antonio não é tãolembrado como merecia?

Leão Serva – Creio que váriosfatores conspiraram para isso. Umfoi o fato de que o Brasil é um paíspouco devotado aos livros e à sua his-tória. Outro foi o fato de que os es-tudos ficaram sempre muito restri-tos à Academia. Faltou, digamos,uma leitura mais humana. E achoque esse vínculo com um objeto po-pular (as fitinhas do Bonfim) por serdesconhecido dos estudiosos da im-prensa também não foi explorado aponto de ampliar o olhar sobre o em-preendedor.

Jornal da ABI – Onde é possívelencontrar hoje exemplares doque ele produziu? Sobrou mui-ta coisa?

Leão Serva – Só em bibliotecas pú-blicas e coleções particulares. Os li-vros dele são caros, talvez o maisbarato seja o Paráfrase dos Provérbiosde Salomão, que ele publicou em vá-rias edições e aparentemente foi umlivro muito popular. Ele pode ser en-contrado em sebos a preços menoresdo que todos os demais (mesmo as-sim, entre U$ 300 e U$ 1.000 porexemplar). Todos os outros, sempredifíceis de achar, são mais caros.

Jornal da ABI – Que perfil de per-sonalidade você conseguiu cons-truir de Manoel Antonio Silva Ser-va? Qual era o temperamentodele? Explosivo? Diplomático?

Leão Serva – Era um empreende-dor persistente. Acho que essa é suaprincipal marca perceptível. Não hámuitos registros sobre personalida-de específica, se era bravo ou manso,vamos dizer. Mas era persistente: du-

O jornalista paulistano Leão Serva sempre teve um interesse pes-soal pelos primórdios da imprensa na Bahia e no Brasil. Não por acaso.Seu tataravô Manoel Antonio Silva Serva (1760-1819) desenvol-veu um conjunto de atividades pioneiras que o coloca como um dospais da imprensa no Brasil, apesar de raramente citado. Em Salva-dor, ele fundou a primeira tipografia de propriedade particularquando o Brasil ainda era colônia portuguesa e uma nação subser-viente e submissa. Com seu maquinário, em 1811, lançou o primei-ro número do que se tornou o primeiro jornal privado do País, Ida-de d’Ouro do Brazil, e a primeira revista, As Variedades ou Ensaios deLiteratura, de 1812.

Essas empreitadas de Manoel Antonio Silva Serva, agora revela-das pelo parente distante cronologicamente, corrigem um ruído his-tórico importante. Sempre que se fala do nascimento da imprensano País, diz-se que a primazia coube ao jornalista e diplomata Hi-pólito José da Costa (1774-1823) que, de Londres, Inglaterra, edi-tou regularmente aquele que é considerado o primeiro jornal bra-sileiro: o Correio Braziliense ou Armazém Literário, que circulou de 1°de junho de 1808 a 1823, com 29 volumes editados, no total. A di-ferença está no fato de que a publicação de Costa era escrita, edita-da e impressa em Londres, Inglaterra. Silva Serva inaugurou a im-prensa exclusivamente nacional, totalmente produzida no País e,por isso, merece parte da glória histórica, ou a fatia mais elevada dela.Em uma época em que os jornais eram publicados no exterior echegavam clandestinamente, por conveniências políticas e falta deequipamento para impressão, ou rodados pela imprensa régia, esta-belecida no Rio em 1808, com a vinda da Coroa portuguesa para oBrasil, ele lançou periódicos e livros de grande valor histórico paraa história da imprensa.

Descrito pelo biógrafo como um empreendedor de visão ampla,Serva também demonstrou preocupação em incentivar o hábito daleitura e a arte de editar. Sua trajetória inclui ainda iniciativas re-levantes como a popularização das hoje famosas fitinhas do Bonfim,ícone da cultura baiana e que encanta turistas de todo o mundo porcausa da mística que as marca. Para levantar essa história, Leão vas-culhou arquivos, entrevistou historiadores e reviu a bibliografia sobreo tema. Seu livro foi o vencedor do prêmio Folha Memória 2012, Pro-grama de Orientação de Pesquisa em História do Jornalismo Brasi-leiro, organizado pela Folha de S.Paulo e pela Pfizer.

Leão Serva é colunista da Folha de S.Paulo, jornal do qual foi editore secretário de Redação entre as décadas de 1980 e 1990. Também foidiretor do Jornal da Tarde e da revista Placar, além de ter participadoda criação do diário esportivo Lance! e do portal iG. Trabalhou comoeditor-chefe do Diário de S.Paulo. Mestre em comunicação e semióti-ca pela Puc-SP, escreveu os livros A Batalha de Sarajevo (1994) e Jorna-lismo e Desinformação (2001). É co-autor do guia Como Viver em São PauloSem Carro (2013). Na entrevista exclusiva a seguir, ele dá detalhes daprodução de seu livro, o parentesco com um personagem tão impor-tante para a imprensa e o perfil que construiu dele. Que sua históriaseja difundida e conhecida, pelas páginas de sua nova obra.

MEMÓRIA

Leão Serva: A digitalização de documentos antigos vemabrindo um novo horizonte de acesso ao passado.

DIVULGAÇÃO

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rante vários anos tentou um finan-ciamento da coroa para seus empre-endimentos (uma linha de créditotipo BNDES atual) e não deixou deapresentar documentos atrás de do-cumentos, enquanto não obteve ofinanciamento que considerava me-recido diante das normas da época.Seu negócio gráfico aparentementedava prejuízo ou lucros reduzidos.Várias vezes ele publicou artigos di-zendo que interromperia a publica-ção do jornal caso o número de assi-nantes não crescesse. Mas, em segui-da, disse que havia repensado e segui-ria editando o jornal. Enfim, dá sinaisclaros de ser uma pessoa persisten-te. E empreendedora, como se viu.Hoje, o historiador Pablo Iglesias Ma-galhães vem revelando sinais concre-tos da ligação dele com a Maçonaria,que era uma informação conhecida,mas baseada até então apenas emuns poucos sinais (a imagem queserve de vinheta à capa de As Varie-dades é um símbolo maçônico; seuprovável redator era um homempreso em Salvador por ligações coma França), o que o leva a explicar o fatode que se mantivesse sempre comouma pessoa discreta.

Jornal da ABI – Você encontrouuma pessoa muito diferente da-quela que imaginava?

Leão Serva – Conhecia pouco,imaginava um escritor, como seus fi-lhos, bisnetos e tataraneto. Encon-trei um empreendedor, com visãoiluminista e modernizadora, comdiscurso contra o absolutismo (o queele faz de forma curiosa, elogiando D.João VI, um regente absolutista, porsua grande generosidade e pelas luzesque traria ao Brasil...).

Jornal da ABI – Manoel Antonioera um sujeito quixotesco comojornalista ou alguém que queriainventar a imprensa no País?

Leão Serva – Acho que era três coi-sas: há muito de quixotesco, como sevê em suas viagens, em suas cartasao Rei; há uma determinação gran-de também e um desejo de trazer aimprensa e as luzes ao Brasil (ele de-fendia um projeto iluminista: a im-prensa, um jornal, uma bibliotecapública, enfim, um conjunto de me-didas que incentivaria a cultura).

Jornal da ABI – Politica-mente, como ele se iden-tificava?

Leão Serva – Era ma-çom, o que era uma orga-nização proibida, associa-da ao combate ao absolu-tismo e ao poder da Igreja.Era, no entanto, um por-tuguês, no sentido de quevia o Brasil como parte dePortugal... Saúda a mudan-ça da corte para o Brasilcomo o nascimento de umnovo reino, um reino naAmérica; depois, defendeas cortes, que exigiam do-tar Portugal de um regimeconstitucional.

Jornal da ABI – Comoele lidava com a pres-são dos políticos e da-queles que se sentiamofendidos com o quepublicava?

Leão Serva – O jornalera censurado, como sepode imaginar em um re-gime colonial e absolutis-ta. Portanto, são poucas asmanifestações que se po-de chamar de políticas.Elas todas eram no senti-do de medidas de impactoeconômico, moderniza-ção técnica, abertura deestradas etc.

Jornal da ABI – Comoexplicar que ele tenhasido um empreendedorpioneiro de tantas coi-sas importantes para a impren-sa, como criar o primeiro jornalprivado e a primeira revista? Deonde veio essa paixão?

Leão Serva – Isso é algo ainda porser estudado: os dados, principal-mente agora sistematizados porIglesias Magalhães, mostram umgrupo político ligado à maçonaria,reunido em torno de sua editora. Au-tores e livros de maçonaria são fre-qüentes no catálogo e nos jornais.Daí se tira uma motivação iluminis-ta, talvez. Além disso, as novas re-velações de que seu irmão tivesseuma loja de livros em Lisboa suge-rem que estavam nesse ramo hámais tempo.

Jornal da ABI – Alguma boa his-tória em que ele se meteu em al-guma enrascada por causa de seusórgãos de imprensa?

Leão Serva – O livro mostra naverdade como os livros eram vistos,até então, mais ou menos como asdrogas hoje. Eram extremamente vi-giados, objetos de suspeição. Fora isso,há uma série de informações quemostram que ele publicava uns livrospopulares de santos, proibidos pelaIgreja, que vendiam muito especial-mente comparando à tiragem deseus jornais, e que eram de vez emquando apreendidos.

Jornal da ABI – Quando ele criao primeiro jornal e a primeira re-vista, ambos em Salvador, DomJoão VI acabara de mudar coma corte para o Rio. Por que elepreferiu permanecer na capitalbaiana?

Leão Serva – Creio que a explica-ção para isso está no fato de queestava instalado com negóciosconstituídos na Bahia já desde a dé-cada de 1780. Ou seja, não dependiada corte (nessa época instalada emLisboa). Era difícil também imagi-nar alguém mudando um empreen-dimento inteiro de cidade naquelaépoca. Além disso, entendo pelos da-dos disponíveis que se tem que eletinha um intenso comércio comPortugal, que estava focado no rotei-ro Lisboa-Salvador.

Jornal da ABI – O que foi mais di-fícil para pesquisar no processode preparação do livro? Algumahistória importante e pouco do-cumentada?

Leão Serva – O mais interessante,uma coincidência, é que esse livro nas-ceu em uma época em que estão apa-recendo muitos novos estudos, a Bi-blioteca Nacional, com seu impor-tante departamento de Livros Raros,fez um estudo impressionante, var-rendo todos os volumes que existiam

de Silva Serva e analisandoinclusive o formato das le-tras, o papel que usava. Eisso foi publicado recente-mente. Iglesias de Maga-lhães tem muitos estudosainda em andamento, queme adiantou em parte,mas estão no prelo. A digi-talização de documentosantigos vem abrindo umnovo horizonte de acessoao passado. Enfim, o maisdifícil foi detectar e apontaressas novas informaçõesainda em produção.

Jornal da ABI – Qual aligação dele com as fi-tinhas do Senhor doBonfim? Qual era seupropósito?

Leão Serva – Paralela-mente às suas atividadescomerciais, Silva Serva ti-nha duas atividades soci-ais: era membro da Irman-dade da Santa Casa deMisericórdia e da Irman-dade da Igreja do Bonfim.No Bonfim, foi tesoureiro.Nessa condição, buscandoaumentar as receitas da Ir-mandade, dinamizou aprodução de uma espéciede amuleto, uma crendice,que existia de amarrar nobraço “medidas” do Bon-fim, cordões que tinham oexato comprimento do bra-ço da imagem do Bonfimque havia sido trazida dePortugal por um devoto

que fundou a Igreja. Então, a Irman-dade começou a comprar matériasprimas e contratar pintores para fa-zer ricas pulseiras que eram vendidas,disseminando aquele produto paraangariar fundos para a Igreja. Essa his-tória é contada em detalhes no livroem entrevista pelo jornalista BiaggioTalento, que a revelou originalmenteem seu livro Basílicas e Capelinhas –História de 42 Igrejas de Salvador.

Jornal da ABI – As fitinhas eramdiferentes das de hoje?

Leão Serva – Sim, muito. Eram or-namentos caros, pintados a mão so-bre tecidos caros, peças únicas por as-sim dizer.

Jornal da ABI – Ele patenteou asfitas?

Leão Serva – (Risos) Não, mas nãoseria mal se tivesse patenteado e seusherdeiros tivessem uma participaçãonas vendas das fitinhas. Mas, não. In-clusive a ligação entre ele e essa históriaé possível pelos livros caixa da Irman-dade, não por um texto ou documen-to que a descreva ou registre.

Jornal da ABI – Como ele mor-reu e o que aconteceu com tudoque construiu?

Leão Serva – Manoel Antonio daSilva Serva morreu no Rio de Janeiro

em uma viagem de negócios aparen-temente em que buscava exempla-res não vendidos de seus livros por par-ceiros locais e levava novos exempla-res. Logo depois de chegar ao Rio, elemorreu de causa não explicada. Cui-dou de seus interesses (como desem-baraçar a carga de livros, devolvê-la àfamília na Bahia) o amigo, livreiro eeditor Manuel Joaquim da Silva Por-to, que era também seu parceiro co-mercial no Rio, personagem do livroSilva Porto – Livreiro na Corte de DomJoão, Editor na Independência (ed. Ca-pivara), do casal Cybelle de Ipanemae Marcello de Ipanema, autores deimportantes ensaios de história daImprensa brasileira. Aliás, as poucasinformações que se conhece sobre suamorte são aquelas levantadas por Re-nato Berbert de Castro (em seu A pri-meira imprensa da Bahia e suas publi-cações) e pelo casal Ipanema em seuA Tipografia na Bahia.

Jornal da ABI – Sobraram docu-mentos da história dele na famí-lia ou depositados em algum ar-quivo?

Leão Serva – Em minha famílianão há documentos desse período.Existem em arquivos públicos e al-guma coisa entre colecionadores pri-vados.

Jornal da ABI – O que historia-dores da imprensa, profissionaisou estudantes podem tirar de con-clusão do livro e do empreende-dorismo de Manoel Antonio Sil-va Serva?

Leão Serva – Creio que é uma his-tória cheia de informações interes-santes, com as quais podemos apren-der sobre o passado e o presente da im-prensa. Destaco algumas coisas: (a)jornais do passado eram empreendi-mentos muito pequenos e focados.Isso fazia deles operações baratasface aos grandes jornais de massa queconhecemos no século 20. Isso meparece um objeto interessante de re-flexão para nós que vivemos umtempo em que jornais definham. Opassado pode indicar um caminhopara os jornais; (b) ler o que Silva Servae seu jornal publicavam sobre o jor-nal nos faz lembrar o que hoje os es-tudiosos falam sobre a internet. Aideologia que afirma que a internetvai libertar os consumidores, dandovoz a eles, que vai universalizar oacesso à informação e que vai levarconhecimento a todos os cantos, éuma ideologia que precede a internet:o mesmo discurso já era usado paradescrever a gazeta de Silva Serva em1811. (c) também é muito interes-sante ler os documentos oficiais queautorizavam a atividade de imprensae ao mesmo tempo prescreviam acensura. Há um documento do Con-de dos Arcos, governador da Bahia,que recomenda que o jornalismo fosseexercido da mesma forma que hoje ospolíticos encastelados no poder de-fendem que os jornais pratiquemum jornalismo acrítico.

“A ideologia que afirma quea internet vai libertar os

consumidores, dando voza eles, que vai universalizaro acesso à informação e que

vai levar conhecimento a todosos cantos é uma ideologiaque precede a internet: o

mesmo discurso já era usadopara descrever a gazeta de

Silva Serva em 1811.”

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Você acha que o documentário éde alguma forma uma extensãodo jornalismo?

Eduardo Coutinho – Questões ge-rais eu odeio. Se você me pergunta adiferença do documentário pra ficçãonós não vamos sair do lugar. Não, eufiz nove anos de jornalismo para a TVGlobo, trabalhei três anos em jornaltambém, até fui jornalista, dirigi fil-mes para o Globo Repórter. Mas eu,desde que eu saí do Globo Repórter, tudoque eu faço é contra o jornalismo.

Contra o jornalismo?Eduardo Coutinho – Eu odeio o jor-

nalismo. Não estou interessado emjornalismo. Não estou interessadoem informações, mapas, em filmemilitante, em filme político. Deus melivre. Aquecimento global, liberarmaconha. Não estou interessado emfilmes políticos, sociais, genéricos.Nada que é genérico me interessa.Quero saber das pessoas que eu filmo,só. Então, comigo é uma exceção, umtipo de cinema particular que eu faço,do qual é o único que eu sei falar. Nãofalo sobre o cinema em geral porque,bom, o documentário pode ser tudo,né? Jornalistas podem fazer excelen-tes documentários jornalísticos, evi-dente. O Michael Moore é jornalista,no fundo um cineasta, e que é umtipo engraçado e tal, mas que é umpopulista evidentemente de esquer-da e que, enfim, usa métodos que eunão usaria. Mas é um cara altamen-te eficaz, está milionário e tal, mas éjornalismo. E seus filmes são úteis?São, em certa medida são. Tratar dosassuntos que ele trata... Agora, os me-todos que ele usa, não me interessam.

Você acha que o Michael Mooreinterfere muito no filme?

Eduardo Coutinho – Michael Mo-ore é um exemplo, tem mil outros.Todo cara que começa a fazer umfilme dizendo “eu vou fazer esse fil-me para obter tal resultado” não meinteressa. Vou dar um exemplo: ofilme do Al Gore, não vou ver. Nãoestou interessado! O filme que o carasabe que ele vai fazer para dizer quea maconha deve ser legalizada, nãoestou interessado! Que o mundo vaiser aquecido, o cacete a quatro, nãoestou interessado! Outro pra dizerque não pode comer carne. Outro pradizer que a miséria é boa. Não querosaber disso, não interessa. Faça umlivro, faça isso no jornal. Agora a ex-periência de fazer cinema, que é tão in-grata, que você não ganha dinheiro,que é chata pra burro, só tem senti-do para mim se é uma coisa que vocêgoste – e desse tipo de coisa eu nãogosto. Tem gente que adora e faz bem.Um filme que é feito sobre o nazismo,é um filme jornalístico de um certosentido, mas com alto nível de pesqui-sa e tal e interessante. Mas não é o tipode filme que me interessa fazer.

Até que ponto você, como dire-tor, deve interferir, por exemplo,durante uma entrevista?

Tudo o que eu faço écontra o jornalismo

Em entrevista inédita concedida em 2011 a Mariana Simões, então estudante de comunicação, o cineastaEduardo Coutinho, homenageado na festa do Oscar deste ano, não escolhe as palavras para definir o que faz.

POR MARIANA REBUÁ SIMÕES

u tinha 22 anos quando comprei uma passagem para o Rio de Ja-neiro para entrevistar Eduardo Coutinho, que morreu no dia 2de fevereiro, no Rio de Janeiro. Na época eu cursava graduação

em Comunicação nos Estados Unidos e estava passando as férias emBrasília. Fiquei um mês trabalhando na tese: metade fazendo pesquisasobre a obra de Coutinho e a outra metade com o telefone na orelha,tentando agendar uma entrevista com o documentarista. Quandoconsegui o número de telefone do escritório dele, achei que a minhaentrevista estava garantida. Mas, faltando uma semana para eu vol-tar para Nova York, ainda não tinha dado em nada. Comecei a entrarem pânico. “Se faça de boba, minha filha”, meu pais me disseram.

Eu segui o conselho: mandei um e-mail para a produtora dele di-zendo que já tinha comprado minha passagem para ir ao Rio de Ja-neiro e que, no dia seguinte, ligaria para confirmar o horário daentrevista. “Você sabe como é, ele já está velho, não gosta mais dedar entrevista”, alguém me disse pelo telefone dias depois. Expliqueique já estava no Rio de Janeiro esperando ele me atender. A passa-gem custou caro, eu iria voltar logo para o exterior, fui dizendo.

Eu tinha entrevistado o cineasta Vladimir Carvalho na semanaanterior. Ele foi simpático ao telefone e, quando nos encontramos,ficamos horas conversando. Um homem sorridente, com boa von-tade, cheio de energia. Com Coutinho foi praticamente o oposto.Quando entrei na sala para entrevistá-lo, a única que estava sorri-dente era eu. Coutinho estava atrás de uma mesa, me esperando, ummaço de cigarros em mãos. Ele falava baixo, meio rouco. Tossia muito.Apertou minha mão. Perguntei se podia filmar a entrevista, ele ges-ticulou que sim e eu comecei a agradecer como uma tonta. Disse queera uma honra poder entrevistar um homem que mudou a cara do

EDUARDO COUTINHO

DEPOIMENTO

documentário brasileiro. Fui logo acrescentando que achava ele umgrande documentarista, alguém que eu admirava, mas percebi queele não gostou dos meus elogios. Não queria se fazer de herói, nemaceitar o título de grande cineasta; era apenas um cara que gostavade documentar o encontro da câmera com o mundo. E, de fato, avisouque não fazia filmes para descobrir a verdade sobre ninguém.

Tudo que eu tinha entendido sobre o trabalho dele até então foiaos poucos desmoronando. “Eu estou interessado que a pessoa falea partir de sua experiência sabendo que, como é memória, todamemória é mentirosa e, portanto, tem verdade e mentira juntas. Issoé inevitável”, ele explicava. De acordo com Coutinho, não era pos-sível fazer um documentário que só contasse a verdade. Para ele, nãoexistia uma verdade única sobre um acontecimento, mas sim vári-as verdades ou experiências vividas, que juntas pudessem contar umahistória. Assim como os gestos e o comportamento dele, naquele dia,também contaram uma história.

Quando entrei na sala, vi um homem de 80 anos que já estavacansado, cuja voz às vezes falhava, mas um homem que ao longo daentrevista foi se soltando, começou a mostrar outra cara. Apesar daaversão que sentia em dar entrevistas, eu notava o brilho no olho dele,o orgulho que tinha pelo que fazia, a paixão que sentia pela arte quehavia criado. Antes de ir embora, pedi para tirarmos algumas fotosjuntos. Na última, ele puxou meu braço e disse: “Agora chega de fotosgenéricas, vamos fazer uma em movimento”. E aí ele acenou para acâmera e por um instante consegui capturar algo: não a verdade so-bre Coutinho, mas um retrato dele naquele momento. Que se foi.

Entrevista publicada originalmente no site da Agência Pública de Reportagem eJornalismo Investigativo (apublica.org) em 3 de fevereiro de 2014.

DIVULGAÇÃO/SESC

E

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Eduardo Coutinho – Eu tento nãointerferir. Ou melhor, eu tento… Eunão julgo. Eu não julgo se um cara,uma pessoa que é escrava, que gos-ta de ser escrava, eu não vou pergun-tar: “mas como?!”. Se ela quiser, dáum discurso do porquê gosta de serescrava. Eu não estou lá para mudaras pessoas, eu estou lá para ver o es-tado do mundo através das pessoas.A partir da relação que eu vou ter coma pessoa, que é o essencial, na qualtudo pode acontecer, podem haverconflitos ou não conflitos... Mas eunão estou lá a fim de dizer para a pes-soa que ela mude de opinião, não. Ali-ás, a opinião não me interessa. Meinteressa que as pessoas tratem desuas vidas. A partir de suas vidas, aspessoas vão ter opiniões de direita eesquerda, tanto faz, mas que são vis-cerais. Eu não estou interessado noconteúdo social da vida da pessoa, euestou interessado no que a pessoafala a partir de sua experiência saben-do que, como é memória, toda me-mória é mentirosa... Portanto, temverdade e mentira juntas, isso é ine-vitável. Não há solução. Ninguémconsegue desobstruir a memória.Então, eu aceito aquilo que é exage-ro. Como sabe se o sentimento éverdadeiro ou não? Sabe, “eu gosteide um cara.” Eu sei lá se gostou ounão, ela conta a história do roman-ce dela, é um segredo. Porque sãopessoas comuns. Se eu fosse entrevis-tar o Napoleão não ia entrevistarsobre a vida dele – o interessante é apolítica dele. Quer falar sobre um po-lítico, faça um livro.

Por que você começou a fazerdocumentário tão tarde na vida?Acho interessante que não tenhasido na faculdade que entrou nes-se caminho. Você começou fazen-do Direito, não foi?

Eduardo Coutinho – Comecei porDireito porque era o que se fazia. Di-reito, Engenharia, Medicina. Mas en-fim, larguei, fui trabalhar em jorna-lismo, depois fiz um curso de cinemae passei a fazer cinema. Agora, nin-guém podia pensar em fazer docu-mentário no Brasil nos anos 1960.Nem cinema! Quanto mais docu-mentário. Longa metragem? Issonão existia. Som direto ia começarainda e tal. E daí fui fazer ficção atéo final dos anos 1970. Fiz um filmeinterrompido que tinha um lado do-cumental, mas que ao mesmo tem-po eram camponeses e atores. E daíeu parei, fui fazer televisão, teve o gol-pe de estado tal, tal, tal. Eu larguei ocinema durante dez anos e volteipara fazer o Cabra (Cabra Marcadopara Morrer), onde fiz um trabalho deHistória, de jornalismo, de cinema,tudo misturado. Cabra tem tudoisso. Cabra tem tudo, pesquisei comoum filho da puta. Trabalhei muitoantes de fazer o filme. Sobre a histó-ria dos camponeses, pra saber que per-guntas que eu devia fazer. Nos filmesque eu fiz nos últimos dez anos e tal,não faço pesquisa, não tem que fa-

zer pesquisa. Eu vou filmar num lixoe simplesmente vou ao lixo conver-sar com as pessoas. Isso é bom ouruim? Você tem que perguntar prauma pessoa que tá lá no lixo, isso ébom ou ruim? Porque eu sei que temaquilo e tem coisa pior que aquilo.

Em Boca do Lixo, você se surpre-endeu com o que as pessoas fa-laram nos depoimentos?

Eduardo Coutinho – Não há coisamais degradante do mundo do que ocara ser filmado catando o lixo. E tivea reação deles e aí eu dizia ‘e por que?’E depois eles diziam os motivos pe-los quais trabalham no lixo. Motivosaté econômicos, entende? Enfim, eutentei ouvir o lado deles. Ninguémdiz aqui é bom, mas muitos dizem“não, mas aqui eu alimentei meus fi-lhos, eu conheci amigos”, por exem-plo. O cara de esquerda supõe queaquilo dali é horrível, que a culpa é dogoverno, que a culpa é do capitalis-mo. Acontece que eu fui lá aberto eouvi gente dizendo: “Eu prefiro issodo que ser empregada”. Tá aí umtroço novo. Porque o cara nas condi-ções terríveis do lixo, pelo menos eleé autônomo, ele não tem patrão.Alienado ou não, o cara julga um tri-unfo ele não ter um patrão. No Bra-sil inteiro deve ter um milhão de pes-soas que vivem na rua vendendo coi-sas. E essa noção de liberdade, se éfalsa ou não, não importa. O cara nolixo diz: “Olha eu trabalho aqui,agora sábado eu não venho. Sábadoeu faço feira, não sei o que”. Não terum patrão. Para quem tem herançade escravidão é um troço essencial.Tudo no Brasil está ligado ao troço daescravidão. Isso pesa muito, enten-de? O horror ao trabalho é um troçoque vem dos 350 anos de escravidão.

Pulando um pouco, o filme queme introduziu ao seu trabalho foio Edifício Master…

Eduardo Coutinho – É onde eu jáestou num outro caminho, em queeu não quero dizer que aquilo ali é oinferno ou o paraíso. Eu quero sim-plesmente tentar ver como as pesso-as vivem aquilo. Porque como eu nãovivo aquilo, se eu tivesse a minha ida-de e tivesse morando lá, eu diria ‘pô,

fim de linha, que fracasso’. Depende,as pessoas que eu encontrei lá, temum aposentado que esteve nos Esta-dos Unidos, há pessoas de classemédia que estão lá um período davida, que depois saíram de lá, e tam-bém foram para Alemanha, o cace-te! Tem de tudo lá: classe média bai-xa, média e meia média. Entende? En-tão, o que me interessava era conhe-cer isso, o que é viver naquela cidade.Paris, Moscou, Nova York, é tudoigual. Você encontra a mesma solidão.Um cara que mora numa quitinete eque morre, dez dias depois alguém en-contra pelo cheiro porque era solitário.Se encontra aqui, se encontra emNova York, se encontra em todo lugar.

Inclusive, a minha tia avó moraem um edifício igualzinho a esse...

Eduardo Coutinho – Em Copaca-bana?

Em Copacabana!Eduardo Coutinho – A maior por-

centagem de idosos no Brasil é emCopacabana: tem 15% de idosos. Arazão é muito simples. Tem de tudolá: prostituição, crime, tal. Mas é umbairro que tem muita vida, comércio,tudo é perto. É muito melhor morarem Copacabana do que no Centro dacidade, que não tem nada. E a praiaestá perto! Então, o velhinho vai lá epasseia. Morar em Copacabana, hoje,para aquelas pessoas, foi um ganho.É uma coisa interessante, com todosos problemas que tem.

Eu li uma entrevista em que vocêdizia que, quando começou a fa-zer o Edifício Master, sentia medode não desenvolver uma históriaboa porque era um bairro de clas-se média.

Eduardo Coutinho – Isso aí é por-que as pessoas se defendem. Você vailá na favela e todo mundo está dis-posto a falar, eles têm eloquência,têm beleza na fala, têm a gíria. Cemanos de cultura em favela. A favela éum troço orgânico e forte em compa-ração com o asfalto. O exterior/inte-rior não existe, você está andando e dajanela alguém te chama pra entrar,entende? Eles têm consciência quetem o ‘nós da favela’ e tem o ‘nós do

asfalto’. Isso está ligado, porque elesvivem a vida do asfalto também, vãoà praia e tal, mas têm consciência do‘nós’ favelados. Num prédio, ninguémfala ‘nós’. A diferença é essa. Como éque eu vou dizer ‘nós do meu prédio’?Eu moro num prédio normal – 30apartamentos, 35, sei lá. Mas nãovou dizer ‘nós’. Nem conheço quemmora lá, nem quero conhecer nin-guém. As pessoas na favela se conhe-cem todas, é outro tipo de vida. Temesse lado positivo de formar comuni-dade, de que é uma vida muito aber-ta. Então, quem se mata é quemmora no Master, em favela ninguémse mata. Já ouviu falar em algumsuicídio em favela? Eu nunca vi. É im-pressionante, não sei se tem estudosobre isso, mas eu não conheço caso.Um mata o outro, droga é outra coi-sa porque o cara é viciado, dependen-te, e guerra do tráfico é outra coisa.Mas suicídio mesmo, sem razão ou pordepressão, é difícil. Por isso eles, os per-sonagens de Master, falavam pouco,riam pouco, tinham pouca riquezavocabular. Em termos de experiênciade vida também não era tão forte. Épor isso que tem 37 personagens – eutinha que ter quantidade porque eusabia que não ia ter personagens ma-ravilhosos como tive em outros filmesque podiam ocupar dez minutos. Tem37 pessoas no filme e acho que ne-nhum chega a cinco, seis minutos.Pessoas que entram por três, quatrominutos. Mas, em compensação, é 1hora e 50 minutos de gente falando.

Quando veio essa idéia de botarsó gente falando?

Eduardo Coutinho – Isso foi desdeque eu voltei a fazer cinema comSanto Forte. Fui fazer um filme sobrereligião, mas não queria botar cultonenhum. Queria botar gente falan-do sobre religião. Daí eu fiz, acabei fil-mando também culto, mas acabei ti-rando e jogando fora. Depois de lon-gas experiências arrumando e mon-tando, tirei praticamente tudo, masainda tem imagens. E eu fui reduzin-do; atualmente tem um filme quenão tem imagem nenhuma. Só temum preto e tem uma pessoa que falaou canta. E é chegar no limite. Filmeque só tem pessoas falando, como

Jogo de Cena. O próximo vai ser piorainda, só tem uma pessoa que fala,um corpo falando. Então, você nãotem que distrair, mostrar fotografiado filho, do neto. “Meu filho morreu”,pronto, conta a história do filho. Apessoa imagina, não preciso da fotodo filho. Se é dito, a imagem é total-mente desnecessária no caso dos fil-mes que eu faço. Eu trabalho com ci-nema que se baseia na palavra. Porisso é muito difícil vender pra fora.Nunca vendeu. Para quem não en-tende português é difícil, a legendapassa 60 %. É por isso que meus fil-mes não vendem.

Você acha que vocês, documen-taristas, são heróis?

Eduardo Coutinho – Não, não, não,não. A palavra herói não existe. Ví-tima e herói: não existem. Não temcoitadinho. “Ah, o coitadinho do po-bre!”. Eu não fui no lixo para tratarde vítima, se não acaba a relação. Euvou tratar ele de igual pra igual namedida que é possível. Eu quero co-nhecer a sua razão. As minhas razõespara estar aqui eu sei – eu posso, euquero. Agora, quais são as suas? Cadaum tem suas razões para estar em al-gum lugar para fazer alguma coisa.Isso é o que eu quero descobrir. A razãodo outro me interessa. Tentar estar nolugar do outro é a chave da questão.É impossível, mas tem que tentar, enesse confronto de tentar entender ooutro sai um diálogo que é improvi-sado, que é inventado, porque você in-venta também quando fala. E nãoimporta, se inventa bem, é verdade. Seé bem inventado, é verdadeiro e pon-to final. “Eu fui feliz”, sei lá se é verda-de. Tá dizendo! Pode ser que daqui a umano diga outra coisa. Entendeu? Temque ser inventado com verdade. Queminventa mal tá fora!

O documentário já existe à mar-gem do cinema brasileiro. E osfilmes estrangeiros dominam omercado brasileiro…

Eduardo Coutinho -–Tem o CinemaNovo, tem o cinema brasileiro sérioque sempre foi marginal e vai conti-nuar a ser. Tem Globo Filmes e tal, asexceções, mas é 15 % do mercado. Ocinema brasileiro em geral é marginalno mercado. Calcule os filmes sériosque têm alguma dimensão estética,o que seja, social, o que seja... São fil-mes que, se tiverem 30, 50 mil espec-tadores, já serão extraordinários. Nomundo todo o documentário é umnicho pequeno. Pensa que na Françaé diferente? Passou um filme que tem100 mil espectadores e é extraordiná-rio, é uma festa. Na França! Enten-de? As pessoas vão ao cinema paraver histórias inventadas com atores.Baseadas em fatos reais ou não, massimplesmente vão para o cinemasonhar. Sempre foi assim. E agora ésonhar em 3D. E aumentou até o ní-vel de diferença de um cinema para ooutro. Não dá pra competir com os fil-mes 3D americanos. Não tem comoo brasileiro fazer isso. Agora daí, de re-

Em tom semidocumental,Cabra Marcado ParaMorrer narra a vida deJoão Pedro Teixeira, lídercamponês assassinadoem 1962 na Paraíba.Impedido de continuaras filmagens devido aogolpe militar de 1964,Coutinho retoma o filme17 anos depois colhendodepoimentos doscamponeses quetrabalharam nasprimeiras filmagens etambém da viúvaElisabeth Teixeira, queviveu na clandestinidade,separada dos filhosdesde o golpe.

REPROD

UÇÃO

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pente, pega esse esquema de novela etal e faz o filme. São exceções. Mas oconjunto do cinema, o cinema brasi-leiro foi, é, e será sempre marginal. Opróprio cinema vai passar a ocuparum lugar marginal. As pessoas vãover filme aonde? Até em celular. Enten-deu? Então, o ato social de ver filmevai ficar menor, vai ficar como teatro.Ou filmes que exigem telas gigantes-cas IMAX, sei lá. Os caras vão ver lá,vão ver esse tipo de cinema.

Voltando ao Cabra. Você disseantes que não tem uma intençãopolítica com seus filmes. Diriaque nesse filme teve alguma in-tenção política?

Eduardo Coutinho – Não tem in-tenção política na medida que a pa-lavra política é equivocada. Todo fil-me é político. Mas eu estou interes-sado no social, não no político. Comoé que uma sociedade existe? Por queo Brasil é como é? Por que as pessoassão como são? Primeiro, você tem quesaber como as coisas são para depois,se quiser, mudar. No Cabra, eu esta-va fazendo uma coisa que é diferen-te porque o Cabra tinha um ato po-lítico de fazer o filme, porque tinhahistória envolvida. Isto é: minha vidaparou com o filme. Esse é o fantas-ma. Como parou a vida dos campo-neses. Apresentou para mim umadimensão psicológica, é realmenteum filme de um caráter político, masa partir de uma coisa pessoal tam-bém. Peões, não. Qualquer cara podefilmar a greve dos operários. Eu fui efiz um filme lá, mas não tem nadaa ver com Cabra.

Por isso quis que o enfoque doPeões fosse nos metalúrgicos emvez dos políticos?

Eduardo Coutinho – Tem uma di-visão, né? Tem a história do Lula e oJoão [João Moreira Salles] estava in-teressado e eu não, até pelo fato de queé o tipo de filme que tem que negoci-ar cada dia o que filmar... Tinha quepedir ajuda ao sindicato, foi muito tra-balhoso, muito penoso. Cem mil sin-dicalistas. E eu tinha que achar gen-te que o sindicato queria e encontrargente que dissesse coisas que não fos-sem evidentes. Teve uma limitação.Não faço mais filme político, histórico.Em princípio, não faço mais.

O Peões deve ter sido difícil, poisvocê estava pegando uma regiãointeira... Não era como o Master,que você ficou num prédio só…

Eduardo Coutinho – Esse é o pro-blema, ficou um negócio amplo de-mais. Só se eu ficasse um ano fazen-do pesquisa, o que era impossível. Aprisão espacial é essencial para mim.Eu preciso ter uma prisão espacial enaquela prisão eu sou inteiramentelivre. Essa pobreza espacial é essen-cial pra eu não procurar ideologica-mente aquele cara interessante. Não,nesse prédio eu tenho que achar umfilme. Todos os filmes que eu filmo aregra é essa: num lugar tem que achar

um filme. Até agora pelo menos te-nho achado uns filmes que não sãoiguais. Mas são sempre num lugar só.Tirando Peões, todos os filmes que eufiz recentemente são num lugar só.Numa vila que tem 80 famílias, numcanto de lixo, num teatro de genteque responde a um anúncio. Se eunão pedir nada para a pessoa fazer econversar meia hora com ela, ninguémmais controla se está filmando ou senão está. Não tem como conversarmeia hora e a pessoa ficar engessada.

Igual àquele momento no Peõesem que o rapaz está falando e aesposa não quer participar; elafala, mas não quer aparecer.

Eduardo Coutinho – Isso é extraor-dinário! Justamente houve uma bri-ga porque o fotógrafo queria queminha assistente filmasse ela. Eu nãoquis e ela teve razão de não ter filma-do, porque o que me interessava eraela fora [de cena]. Ela sai da filmagem,portanto contra, daí ela às vezes davapalpite. Foi maravilhoso. Quem estáno campo, quem está fora do campo,isso é essencial. Ao lado estava o filhodeles que é débil mental. Então, tinha,a meio metro do quadro, no sofá, umfilho de vinte anos completamentenervoso que gemia. Eu até perdi umasequência interessante porque entra-va o gemido do cara. Você filmando etinha o cara aqui, a mulher aqui atráse aqui do lado do sofá o filho gemen-do. Não é que ele está com dor, o caratem problemas gravíssimos. E você fil-ma e… Pra eles é normal, eles vivemcom aquele filho. Logo, é normal pramim, e vamos filmar.

A sua infância teve alguma coi-sa a ver com seu envolvimentono cinema mais tarde?

Eduardo Coutinho – Não, eu era ci-néfilo, uma pessoa que via filme. Sercinéfilo é assistir a três filmes por dia,anotar no caderno. Quando eu tinhadez anos eu fazia isso. Agora, era im-possível pensar no cinema brasileiro.Eu vi nove vezes uma chanchada,Carnaval no Fogo. O que eu via de ci-nema brasileiro era chanchada, car-naval. Isso até 1951, 1952. Fora issoeu via cinema americano, depoisargentino, mexicano. Depois neo-realismo, até que eu fui estudar cine-ma e passei a me interessar. Mas issode fazer cinema foi um passo gigan-tesco, que só foi possível depois queeu voltei da Europa em 1960, 1961quando o Cinema Novo começou anascer e se tornou possível fazer ci-nema no Brasil. De uma formamarginal, mas de qualquer maneirauma tentativa de ver o Brasil que nãotinha aparecido no cinema brasilei-ro de antes. E fora da chanchada, querealmente já não precisava mais,porque com a chegada da televisão achanchada não tinha mais mercado.

Se o Brasil não fosse tão atrasa-do naquela época, teria sido pos-sível entrar antes no ramo do ci-nema?

Eduardo Coutinho – Isso não sei.Antes do Cabra, em que eu já tinha uns40 anos, tudo que eu fizesse não tinhaimportância. Só quando fui filmar oCabra que eu me libertei. Tudo que eufiz antes não importa, porque nãosabia o que queria da vida. Quando fuifazer o Cabra, sabia o que queria fazer.Trabalhei cinco, seis anos, pesquisa,filmagem e fiz um filme à altura do quetinha sido a história. Depois fiquei 15anos praticamente sem fazer filme, atéfazer o Santo Forte.

Se o Santo Forte não tivesse tidotanto êxito…

Eduardo Coutinho – Se não fosse aprodução do Santo Forte, eu tava mor-to. Se a repercussão crítica fosse ruimou ninguém fosse ver, é possível que eudesistisse. Mas a verdade é que eu con-fiava, sempre confiei no filme faladoque era como era e tal. Meus amigosdiziam que era impossível, que nin-guém ia aguentar. Todos os meusamigos, todos. Tirando uma pessoa daequipe, todos. “Não, é impossível, éuma tortura”. Mas foi gravado, acei-to e foi maravilhoso. O documentárioteve cinco prêmios e o público foi de 18mil pessoas, o que até hoje é difícil fa-zer, e a crítica foi maravilhosa. Pensei:“pô, achei, finalmente achei e eu que-ro continuar a fazer isso”. E fiz e nãoparei de filmar de lá pra cá.

Tem documentário que mostraum caso isolado, por exemplo,de uma criança pobre que traba-lha nas minas da Bolívia... E vocêcomo espectador se sente mui-to deprimido e culpado. Masquando sai dali, não sente con-tinuidade…

Eduardo Coutinho – Tem um mon-te de filmes que se aproximam dooutro. Quem é o outro? O outro é opobre miserável. O cara com defeitofísico, o destituído tal, tal. E quemfilma geralmente é uma pessoa declasse média, mesmo que com origemproletária. E tem a mania, america-

no adora isso, de tratar de forma pa-ternalista. E daí o povo adora e chorae sente culpa. Isso é coisa que eu merecuso a fazer. Isso é uma coisa proi-bida em meu dicionário. MichaelMoore, tem uma hora que ele abraçauma mulher lá que foi vítima, pra queir lá e abraçar? Você tem que guardardistância da pessoa, não tem queconsolar ninguém. Ou se consola, fazisso fora do filme. Existe o “humanis-mo” entre aspas, que os americanosadoram, que é filmar o pobre. O cine-ma humanitário é o pior cinema domundo. O humanitário ou de men-sagem. Al Gore, ou então, mensa-gem. E a outra coisa de americano éessa: se é um filme sobre negra e lés-bica, tem que ser filmado por negra elésbica. Sabe? Iguais filmam iguais.Quando a minha tese é outra: negrotem que filmar branco e camponêstem que filmar negro e tem que tro-car. Índio tem que começar a filmarbranco e branco… sabe? Nada impe-de que branco filme índio. Precisa dosdois lados, um do lado de dentro, umde fora. Não tem sentido que um fil-me sobre metalúrgico só possa serfeito por metalúrgico. Isso é umatolice. O multiculturalismo que bo-tou isso na cabeça. Então, pra filmaruma lésbica eu tenho que ser lésbica?É o mesmo do mesmo, entende? Nãohá conflito. Não vou ao cinema paraser educado, pra aprender o bem.Odeio esse tipo de coisa tipicamenteamericana.

Eles colocam aquela narração emoff que é uma voz assim divinafalando…

Eduardo Coutinho – Quando temvoz em off é pra tratar da pobre ví-tima da crueldade, os mineiros daBolívia. E tratam de um jeito que épra fazer o cara ter culpa, chorar. Nãoestou fazendo filme pra ONG, praarranjar dinheiro. Eu fiz o filme sobreo lixo, ninguém me deu dinheiro praterminar. Pra começar sim, pra ter-minar foi difícil. Por quê? Porque se eu

dissesse que era pra promover umsindicato, eu ganhava. Se fosse cata-dor que quisesse fazer um sindicato.Porque esses são os filmes que sãopoliticamente corretos. Como meufilme não era, era o cotidiano doscatadores só, ninguém deu dinheiro.

De todos os seus filmes, qualabriu mais portas para você?

Eduardo Coutinho – Eu me identi-fiquei com o Cabra. Se não fosse peloCabra estava na televisão, TV Glo-bo até hoje. Estaria morto. Fora oCabra, foi o Santo Forte. Agora, pra-zer tive em quase todos. Se eu nãotivesse prazer eu não fazia. Não soumissionário.

Você acha que Cabra não seriaum filme tão bom se não tivessesido retomado anos depois?

Eduardo Coutinho – Evidente. Te-ria sido um documento de época im-portante, mas o filme é um filme com70 camadas de sentido histórico. Éuma revisão da história do CinemaNovo, do cinema brasileiro que incluitudo: jornalismo, história, cinema,linguagem. Exatamente porque éum filme que conta a história do fil-me, cinema e história todo tempo,lado a lado. É extraordinário o que euconsegui, porque eu soube fazer, tiveum montador que me ajudou, tiveum fotógrafo que me ajudou a fazer.Enfim, é um filme que aguenta atéhoje porque ele não é um filme triun-falista. Ele lida com uma verdade dopersonagem e não com discurso. Osfilmes, em geral políticos, são triun-falistas, tomamos o poder. Mentira.Jamais faria um filme assim. Quan-do se ganha se perde também porquedura dez anos. E esse é um filmemuito chão, simples. Cabra tem dis-positivos de montagem extraordiná-rios, tem jornal, manchete, o filmeantigo, o filme que eu filmei na UNE,filmes de outras pessoas. Tem filmeamericano que eu roubei pra usar aimagem, que não paguei, graças aDeus. E a aventura foi essa.

Por que você acha que mudoutanto sua visão entre o primeiroe o segundo filme?

Eduardo Coutinho – Eu comecei afazer documentário na TV Globo ecomecei a descobrir que era aquilo queeu queria fazer. Aí foi uma escola prafazer o Cabra, porque a rapidez comque se trabalha em televisão me aju-dou a fazer isso depois, de uma for-ma muito mais refinada. Me ajudou,me educando e me deseducando.Cabra é um filme de suspense porqueeu também não sabia o que eu ia en-contrar. Quando fui filmar [pela se-gunda vez] eu não via a Elizabeth [per-sonagem de Cabra Marcado ParaMorrer] há 17 anos, exatamente otanto de tempo quanto o espectador…Fui encontrar 17 anos depois, conheceros filhos. Os conheci quando filmeicom eles em 1962, 1964 e fui lá vê-los17, 18 anos depois, como está no filme.Eu tinha que chegar filmando.

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Em As Canções, Coutinho convida depoentesanônimos a soltar a voz em suas músicas favoritas.

33JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

inguém esperava mais nenhumtipo de participação brasileirana festa do Prêmio Oscar, rea-lizada no último dia 2 de mar-

ço. Nosso representante na categoria de Fil-me Estrangeiro não estava entre os fina-listas, e não havia nenhum profissional doBrasil minimamente envolvido com osgrandes favoritos. Veio, porém, a surpresa.Triste e dolorida. No tradicional momen-to em que a Academia de Hollywood home-nageia os talentos do cinema falecidosdurante o ano, surgem a foto e o nome deEduardo Coutinho, o maior documentaristabrasileiro. Ninguém esperava. Segundo o ci-neasta Walter Salles. “Coutinho tinha sidoconvidado para ser membro da seção de do-cumentários da Academia de Hollywood,e aceito o convite. Daí a homenagem noOscar. Mas como disse um membro doComitê Executivo de Documentários daAcademia, a razão pela qual esse convitefoi feito reside no fato que, através de suaobra, Eduardo ́ ofereceu uma contribuiçãoúnica e duradoura para o cinema docu-mental, e essa percepção era reconhecidano mundo inteiro. Essa é a mesma razãopela qual a notícia de seu falecimento foiincluída na cerimônia”.

Da mesma forma, ninguém esperavaque o cineasta tivesse uma morte tão trá-gica, assassinado pelo próprio filho, em 2de fevereiro. Sim, temia-se muito pelasaúde de Coutinho, que aos 80 anos eraum fumante contumaz. Ele chegou a afir-mar que já não ia mais ao cinema, por nãoconseguir ficar uma hora e meia sem fu-mar. Mas não era de conhecimento dequase ninguém que seu filho, diagnosti-cado como esquizofrênico, pudesse terum rompante assim violento e proporci-onar ao meio cinematográfico uma tragé-dia digna de roteiro de horror. De qual-quer maneira, vai-se o homem, fica a obra.E que obra! “Tivesse feito apenas CabraMarcado para Morrer, Coutinho já entra-ria para a antologia como um dos princi-pais cineastas do País em todos os tem-pos”, afirma para o Jornal da ABI Luiz Za-

nin, presidente da Associação Brasileirade Críticos de Cinema-Abraccine. Mas elefez muito mais.

Nascido na capital paulista, Eduardode Oliveira Coutinho, assim como vári-as personalidades do cenário cultural bra-sileiro, também cursou Direito. Mas nãose formou advogado. Fascinado por umseminário sobre cinema promovido pelo

Estudantes-UNE, onde chegou a trabalharna montagem da peça Mutirão em NossoSol, apresentada em 1962 no I Congressodos Trabalhadores Agrícolas, em Belo Ho-rizonte. Foi também através do CPC que,graças à experiência adquirida na França,ajudou a produzir o longa metragem Cin-co Vezes Favela, desenvolvido pelo próprioCentro Popular de Cultura. Os bons resul-tados deste filme entusiasmaram o CPC arealizar uma nova produção, que seria arecriação ficcional da história real de JoãoPedro Teixeira, líder assassinado das LigasCamponesas. Sob a direção de Coutinho,o filme se chamaria Cabra Marcado ParaMorrer, e seria interpretado pelos próprioscamponeses do Engenho Cananéia, emPernambuco. Porém, apenas duas semanasapós o início das filmagens, veio o golpe de1964: parte da equipe foi presa e o proje-to, obviamente, descontinuado.

Dois anos depois, Coutinho, Leon Hirsz-man e Marcos Faria, fundam a sua própriaprodutora, a Saga Filmes. Ali dirigiu OPacto, episódio do longa ABC do Amor, e foidiretor e co-autor de O Homem que Com-prou o Mundo. Em 1968, uma nova expe-riência influenciaria fortemente sua vi-são da vida e dos filmes: convidado paraum festival de cinema na Bulgária, Cou-tinho decide fazer uma escala na entãoTchecoslováquia, onde se hospeda na ci-dade universitária de Praga. No dia 21 deagosto, acorda cedo, vai ao centro da ci-dade a pé, e vê a praça central tomada portanques soviéticos e pessoas chorando aolado da estátua de Kafka. Era a Primave-ra de Praga. Ouve tiros, se esconde, e cor-re de volta para a cidade universitária,onde juntamente com outros poucos bra-sileiros que ali estavam começa a pensarno que fazer. De repente, uma saraivadade balas perpassa a janela onde Coutinhoestá reunido com seus colegas, e todosfazem uma espécie de barricada de col-chões, debaixo da qual passam a noite. Nodia seguinte, pede ajuda à embaixada bra-sileira, que o coloca num trem de refugi-ados para a Alemanha e, depois, Paris. Semdúvida, não é coincidência que, mais tar-de, Coutinho desenvolveria uma visãomuito especial para o cinema documental.

Em 1970, co-escreve e dirige uma adap-tação de Henrique IV, de Shakespeare, parao cangaço, onde o personagem Falstaff (Eli-ezer Fomes) se torna Faustão. Quem co-nhece o Coutinho documentarista, muitasvezes esquece que ele também foi escritorde talento, roteirizando ou co-roteirizan-do filmes como A Falecida (1965) e Garo-ta de Ipanema (1967), de Leon Hirszman;Os Condenados, de Zelito Viana (1973);Lição de Amor, de Eduardo Escorel (1975)e o grande sucesso Dona Flor e Seus DoisMaridos, de Bruno Barreto (1976). O Cou-tinho documentarista começa a surgir maisintensamente a partir de 1975, quandopassa a fazer parte da equipe do programaGlobo Repórter, que naquele momento, ape-sar da ditadura, vive uma fase de grande efer-vescência criativa. Produzindo sempre nabitola 16 milímetros, Coutinho permane-ce no programa até 1984.

Mas é em 1981 que sua carreira dá umanova guinada. Os supostos “negativos per-

POR CELSO SABADIN

VIDAS

O homem que“desinventou” oDocumentário

Museu de Arte de São Paulo-Masp, trocouos livros das leis pelas letras da impren-sa e das artes: foi durante três anos revi-sor da revista Visão, e chegou a dirigir umamontagem de Pluft, o Fantasminha, deMaria Clara Machado. Seu sonho, porém,era o Cinema, arte cara e de difícil aces-so naquele Brasil dos anos 1950. Cinéfi-lo apaixonado, decidiu se inscrever pararesponder perguntas sobre a sétima arteno famoso programa de perguntas e res-postas O Céu é o Limite, da TV Tupi. Foi des-classificado logo em sua primeira partici-pação, mas não desanimou: procurou aconcorrente Record e se inscreveu numprograma similar, O Dobro ou Nada, di-zendo-se especialista em Charles Chaplin.Não era, mas começou a estudar avida-mente tudo o que lhe caía nas mãos sobreo genial Carlitos. Manteve-se no progra-ma durante nove semanas, o que lhe ren-deu um prêmio em dinheiro equivalentea 2 mil dólares. O suficiente para compraruma passagem para Paris e ir atrás do seusonho: uma bolsa no L’Institut des Hau-tes Études Cinématographique-IDHEC.Ali, especializou-se em direção e monta-gem, e começou a fazer seus primeirosdocumentários, ainda de forma amadora.

Ao retornar ao Brasil, em 1960, en-controu um país em ebulição política e ar-tística, com o Cinema Novo conquistan-do cada vez mais espaço na mídia inter-nacional. Integrou-se ao Centro Popularde Cultura-CPC da União Nacional dos

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Edifício Master, um prédio decadente no Rio de Janeiro é vistopelas lentes de Coutinho como um microcosmo do Brasil.

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34 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

O mês de fevereiro foi marcado pormais uma perda no mundo do desenho.Morreu na madrugada do dia 5 o jornalis-ta e ilustrador Adail José de Paula, aos 83anos, em Duque de Caxias. Nascido em1930 em Registro, no interior de SãoPaulo, foi criado em Jaçanã, tendo sidocolaborador de semanários humorísticoscomo O Governador e A Marmita, ainda nadécada de 1940. Mas foi mesmo no Rio deJaneiro onde exibiu seu talento. Trabalhouno Diário de Notícias e em outras publica-ções como o Cartum-JS, O Centavo (da re-vista O Cruzeiro), Manequinho (do jornalCorreio da Manhã), O Pasquim e O Dia.Colaborou ainda com O Globo e Jornal doBrasil. Aposentou-se pela Última Hora.Durante muitos anos, foi ilustrador darevista Lide, editada pelo Sindicato dosJornalistas Profissionais do Município doRio de Janeiro. Nos últimos tempos, de-senhava para o Jornal Espírita e era conse-lheiro na ABI. Em abril de 2008, seus tra-balhos integraram a exposição Traços Im-pertinentes, comemorativa ao centenárioda Associação, que homenageou cerca de50 desenhistas.

“Conheci o Adail numa das idas a IlhaGrande para uma das edições do Salão deHumor, organizado pelo Ferreth. Aque-la figurinha simpática, com jeito de mo-leque, que além de desenhar ainda faziabelas composições, que insistia em mos-trar aos colegas e amigos. Lembro tam-bém que na volta para o Rio, ele veiosentado ao meu lado contando ‘causos’ doseu tempo de caserna, dos tempos em quevivia em Santos... Apesar de morar hávários anos no Rio, ainda carregava umleve sotaque do seu estado. Ele tinha umrepertório intenso e divertido, mas che-gou um momento em que eu estava cain-do pelas tabelas e queria dar uma co-chilada e o Adail ali no blá, blá, blá...Eu virei pra ele, já com certa inti-midade e pedi que me deixasse daruma cochiladinha, que eu não esta-va mais aguentando... Ele entendeuna boa”, conta Nei Lima, cartunista de ODia, que segue em seu relato especial parao Jornal da ABI.

“Era sempre uma festa encontrar como saudoso Adail! Era a alegria em pessoa.Numa das últimas vezes em que nos en-contramos, ele levou um livrinho seu, comcartuns sobre espiritismo. Ele era Karde-cista. Fez a minha caricatura na dedicató-ria, que eu guardei com muito carinho e emtroca dei-lhe um beijo na careca. A últimavez em que o vi, foi quando ele esteve na

portaria do jornal O Dia para falar com oZé Graúna, trazendo alguns dos seus de-senhos antigos de caricaturas. Foi umafesta! Vários colegas da Redação que pas-saram por ele o cumprimentavam, elogi-avam e o abraçavam em reverência. Noteique seus olhinhos começaram a marejar defelicidade pelo reconhecimento das pesso-as que por ali passavam. O seu traço eraímpar e o estilo ainda dos ‘antigos’, domodo como Henfil e muitos outros inter-pretavam o cotidiano, naquele traço esti-lizado e limpo. Se ele deixou seguidores?Eu ainda não pude perceber isso com exa-tidão, mas há bastante gente trilhandoneste caminho, sim”, conclui Nei Lima.

Citado pelo colega, Zé Roberto Graú-na também falou com o Jornal da ABI.

didos” do início das filmagens de CabraMarcado Para Morrer, que a ditadura teriadestruído, na verdade foram salvos e he-roicamente escondidos por um membroda equipe. Já em época de abertura, Cou-tinho retoma o projeto, reencontra a vi-úva de João Pedro Teixeira, Elizabeth, e lhemostra o que havia sido filmado em 1964.O filme passa então a narrar a saga deElizabeth em busca do reencontro deseus filhos, espalhados pelo país, à luzda reflexão da tragédia que a ditaduramilitar significou para o Brasil. Finali-zado três anos depois, Cabra MarcadoPara Morrer ganha inúmeras premiaçõesnacionais e internacionais.

“É o filme definitivo sobre o perí-odo militar”, afirma Zanin. “É um fil-me histórico e sobre a História, im-prescindível para a compreensão tan-to do período traumático em que sedesenvolve como da própria históriado cinema brasileiro”, afirma o críti-co. De certa forma, Coutinho reinven-tava o gênero documentário. Após osucesso, especializa-se cada vez maisem documentários, realiza trabalhosem vídeo para o Centro de Criação daImagem Popular-CECIP, e escreve ro-teiros para séries documentais na TVManchete.

No que Luiz Zanin classifica como“um segundo capítulo de sua trajetória,Coutinho desvendou como ninguém aintimidade do imaginário brasileiro emfilmes como Santo Forte, Edifício Master,O Fim e o Princípio, entre outros. Sabia,como ninguém, tirar o melhor de cadapersonagem que entrevistava. Aliás, nãogostava do termo entrevista, e preferiadizer conversa, inaugurando assim umformidável cinema da conversa, simpli-ficando cada vez mais seu dispositivo.Criou uma ferramenta documental queteve muitos seguidores e imitadores, masservia apenas a ele mesmo”, afirma.

Não contente em explorar ao máxi-mo os limites e as possibilidades do gê-nero documentário, em 2007, aos 74anos de idade, Coutinho inova outravez: com molecagem e fôlego de meni-no, lança Jogo de Cena, onde experiên-cias de vida são escancaradas na tela deforma a nunca esclarecer para a platéiaonde se situam os limites entre realida-de e encenação. Derrubam-se definiti-vamente os muros que separavam Fic-ção e Documentário, fazendo com quealguns festivais brasileiros derrubas-sem também esta divisão na hora deentregar suas premiações. E que outrospassassem a incluir em suas fichas deinscrição o termo “Híbrido”, para o fil-me que não se encaixasse em nenhumadas prateleiras já conhecidas. Numa jo-gada de mestre, Coutinho “desinven-tou” o próprio gênero que havia ajuda-do a reinventar. “Enfim, poderia falarlongamente sobre Coutinho, mas achoque a dimensão de sua perda ainda nãofoi suficientemente elaborada por to-dos nós. Não temos ainda uma idéia pre-cisa do vazio que representa o seu desa-parecimento para o cinema brasileirocontemporâneo”, finaliza Zanin.

VIDAS

Desenho brasileiroperde traço de Adail

Um dos mais experientes cartunistas em atividade no mercado, com passagem por quase todos osgrandes veículos da imprensa do Rio, Adail José de Paula faleceu no início de fevereiro, aos 83 anos.

POR PAULO CHICO

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35JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

“Conheci o Adail em meados de 1988, naRedação do extinto jornal Última Hora.Muito mais do que um ótimo cartunista,Adail era uma grande figura humana.Gentil, ético e sempre com bom humor.Era uma espécie de ‘Garrincha da carica-tura’, um misto de gentileza, ingenuida-de e genialidade. Quando estivemos emCaratinga, cidade onde nasceu o Ziraldo,para participar do júri de premiação do11º Salão de Humor de Caratinga, a pri-

meira coisa que Adail disse ao Edra, cura-dor do evento, foi: “Quem é esse tal deTinga?”. O Edra, então, perguntou: “QueTinga é esse? Adail arrematou: “Ué, o caraTinga!”...”, diverte-se Graúna.

Amigos lembram que o artista não secontentava em desenhar apenas nas Reda-ções. Na casa dos amigos, com os colegasde quarto, por onde passava deixava tudocheio de desenhos. O trabalho profissionalcomeçou cedo, mas o talento e o interes-se de Adail pela arte foi percebido antesmesmo que ele tivesse consciência do quepodia fazer, quando tinha apenas sete anosde idade. “Minha irmã contava que meuprimeiro desenho tinha sido de uma lava-deira com uma bacia na cabeça e uma fu-macinha saindo da cabeça dela, como seestivesse irritada. Eu era bem garotinho,mas já tinha essa tendência nítida para ohumor”, contou o próprio Adail, em repor-tagem publicada na edição 369 do Jornalda ABI, em agosto de 2011.

“Adail militou por décadas na impren-sa. Seus desenhos sempre tiveram certaelegância. Por isso, é consagrado até hojee seu trabalho continua atual. Ele tinhaum desenho rápido, com piadas leves, po-pulares, que o povo gosta de ver e ouvir.É um tipo de humor que alcança a todos”,diz o amigo cartunista Chico Caruso. Graú-na faz uma segunda análise. “Percebi umamudança de estilo nos desenhos do Adailquando ele veio para o Rio, mas conseguiumanter uma linha de trabalho constante

ao longo dos anos. Eu diria que geralmen-te os desenhistas vão crescendo conformeo tempo, mas ele já tinha um desenho ex-tremamente maduro quando come-çou”, diz.

O amigo Guidacci também teve con-tato com Adail no Pasquim e naÚltima Hora. “Era uma pessoamuito carismática, muito fá-cil de lidar. Todos gostavam dele.Sempre teve a tônica do humor leve, queé de sua própria personalidade. Nunca foide fazer ataques frontais, sempre apre-sentou um humor engraçado e traços le-ves. Essa característica de desenhos inte-ligentes, mas ‘lights’, percorreu a impren-sa toda e ele manteve isso em todas as pu-blicações”, afirmou, lembrando que Adailnão era afeito a caricaturas políticas ou deataques pessoais. Diferente de muitoschargistas que passaram pelo turbilhão daditadura militar em busca de provocar arepressão vivida na época, Adail mante-ve uma linha de trabalho leve e a vonta-de de fazer humor pelo humor. O enter-ro aconteceu no dia 6 de fevereiro, noCemitério do Irajá, Zona Norte do Rio.

Sócrates (na página aolado), Garrincha e

Adoniran Barbosa foramhomenageados por Adail.

Adail e Luis Fernando Verissimo durante a exposição “Traços Impertinentes”, quehomenageou o centenário da ABI em 2009: os dois tiveram obras expostas no evento.

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36 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

Sílvio LancelottiTRABALHOU COM RENATO POMPEU NA VEJA ENTRE 1968 E 1976.

1. No começo da aventura de Veja,freqüentávamos, Renato e eu, oalmoço do refeitório que logo foiapelidado de “Lixão”. Depressa eu mecansei daquela comida patética ecomecei a levar lanche de casa.Morava ainda com meus pais, quetinham uma empregada, aPhilomena, que passou a me fazersanduíches sensacionais, variáveis acada dia. Certa ocasião, o Renatão(que vestia impecáveis terno egravata), me viu, deliciado, em minhamesa, com alguns pedaços de pãobranco e maionese de ovo. Pediu umdeles, adorou, e perguntou onde euhavia comprado. Contei que era daminha casa, obra da Philomena, e elereinquiriu: “Ela cobra?” Então, euainda conhecia pouco o Renatão,imaginei que fosse sério. Disse queconsultaria a Philomena. E aPhilomena informou: “Quebobagem, não cobro nada. Peça queele escolha os ingredientes preferidos,compra, entrega a você, você me traz,e eu faço, de graça”. Relatei aconversa ao Renatão, que se ofendeue me criticou por estar explorando a“mais-valia” da Philomena. Queriasaber, de qualquer modo, qual seria opreço. Voltei a Philomena dias e dias –e ela, sempre com a mesma resposta, eo Renatão sempre com a mesmaexigência. Até que, um dia, o meusaco encheu e eu passei a ele umpreço qualquer. O Renatãoresmungou: “Muito caro”. E me

VIDAS

Renato Pompeu,dignidade e

independênciaPOR CELSO SABADIN

“O Jornalismo, antes, dava valor à no-vidade, ao desconhecido, e hoje se repisaa mesma coisa, por razões mercadológi-cas, já que grande parte do público se in-teressa muito mais pelo que já conhece doque pelo que não conhece”. A declaraçãoé de Renato Pompeu à repórter Ana Lui-za Moulatlet, em entrevista concedidapara o Observatório da Imprensa. Ela játem seis anos, e não parece que nada te-nha mudado muito de lá para cá. Ou, semudou, foi para pior.

Assim era Renato Pompeu, vitimadofatalmente por uma parada cardíaca, noúltimo 9 de março, aos 72 anos de idade:polêmico, astuto, e sempre bastante crí-tico em relação à sua (nossa) profissão. Namesma entrevista, quando questionadosobre quais conselhos daria para quemestivesse se iniciando no Jornalismo,Pompeu foi conciso, didático e ferozmen-te verdadeiro: “ 1) Abandonar imediata-mente a profissão e escolher outra. 2) Senão for possível isso, procurar se estabele-cer por conta própria na internet, com pa-trocínio próprio que não interfira na suaindependência. 3) Se isso também não foipossível, procurar manter a dignidade pro-fissional e preparar-se para uma vida de sa-crifícios”. Por mais que estas opiniões si-nalizem doses de cinismo e desilusão, elas

não podem ser menosprezadas: afinal, seuautor tinha mais de meio século de expe-riência profissional nos mais variados ve-ículos de comunicação.

Pompeu nasceu em Campinas, interiorpaulista, em 1941. Chegou na capital ain-da criança, e aos 18 anos entrou na Facul-dade de Filosofia da Universidade de SãoPaulo-USP para cursar Ciências Sociais.Nunca concluiu o curso. Já no primeiroano de Faculdade, passou num concursoque lhe abriu as portas para seu primeiroemprego na imprensa: copidesque na en-tão Folha da Manhã, hoje Folha de S.Paulo.Pouco mais tarde, transferiu-se para o con-corrente O Estado de S.Paulo, onde integroua equipe responsável pelo desenvolvimen-to de uma verdadeira revolução jornalís-tica que estava por acontecer: o lançamen-to do Jornal da Tarde. No icônico ano de1968, Pompeu estava no olho do furacão,participando de uma outra equipe que fariaoutra revolução na imprensa brasileira: olançamento da revista Veja.

O jovem que abandonou os bancos daFaculdade de Filosofia não havia sequercompletado 30 anos e já era co-responsá-vel pelo desenvolvimento e lançamentode dois dos mais significativos veículos donosso jornalismo. Pompeu permaneceu naVeja da sua fundação até 1981. No ano se-guinte, passou a trabalhar na mundial-mente respeitada United Press Internati-

Uma dúzia dehistórias de“Renatão”,

contadas porquem trabalhou

com eleEXCLUSIVO PARA O JORNAL DA ABI.

onal-UPI, onde ficou até 1985, quando re-tornou à sua primeira casa, a Folha deS.Paulo. Culto e de grande erudição, atuou,de 1986 a 1989, na seleta equipe de redato-res e pesquisadores da Enciclopédia Larous-se-Cultural. Retornou ao Jornal da Tarde em1990, onde ficou por nove anos. Fazia tra-duções do inglês, francês, castelhano, itali-ano, alemão e até russo, “se me dessem umprazo maior”, explicava, brincando.

Nos últimos anos, expandiu sua área deatuação e passou a colaborar em vários veí-culos, como na revista Caros Amigos, Diá-rio do Comércio, Carta Capital, Diário deS.Paulo, revistas Retrato do Brasil e Metáfo-ra. Além de jornalista, Pompeu foi escri-tor, tendo publicado nada menos que 22livros, entre ficção e não-ficção. Entreeles, os romances Quatro Olhos (1976),Samba-Enredo (1992), ambos pela Edito-ra Alfa-Ômega, e O Mundo como Obra deArte Criada pelo Brasil (2008), pela Edito-ra Casa Amarela. Entre as obras de não-ficção, destacam-se Memórias da Loucura(1983), pela Alfa-Ômega, Globalização eJustiça Social (1996), pela Editora Scortec-ci, e Canhoteiro, o Homem que Driblou a Gló-ria (2002), da Ediouro. Falou de tudo: defutebol a política, de poesia a economia.Ganhou um prêmio Esso e três prêmiosAbril. Trabalhou até seu último dia devida, principalmente no Blog do Renatão,que nasceu ligado à revista Caros Amigos.

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37JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

também não me recordo. Daí,passamos bastante tempo semcontato. No final de 2012, na noite deautógrafos do meu romance Em Nomedo Pai dos Burros, percebi, no meio dafila, o Renatão. Fiz a ele umadedicatória gigantesca, em quemanifestava a saudade daquelesvelhos tempos de Veja, citava os seuslivros e agradecia que, ao cabo detanto tempo, ele topasse ficar numafila à cata da minha assinaturazinha.Ele nem leu a dedicatória. Colocou olivro debaixo de um braço, levantou ooutro, do qual pendia uma guarda-chuva, e simplesmente foi embora.

Renato LombardiTRABALHOU COM RENATO POMPEU NO

ESTADO DE S. PAULO E NO JORNAL DA TARDE.

5. Renato, irmão de outrojornalista, Sérgio Pompeu, que foraeditor de Veja, também falecido, e tiodo também jornalista SerginhoPompeu, que também foi do Estadão,era uma figura incrível. Falar com elesobre futebol era receber uma aula.Sabia tudo. Tinha coleção de camisasde times europeus e muitas vezes iatrabalhar vestindo as camisas. Ouvi-lofalar sobre livros era outra aula deliteratura. Fazia resenhas de livros equando entrava numa discussão eradifícil tirá-lo, principalmente quandoseus argumentos eram apresentadoscom começo, meio e fim. Não deixavaa discussão sem solução.

Certa vez Renatão, como muitos ochamavam, teve uma séria discussãocom um editor chefe do JT que ficoufamosa. A discussão era pela redeinterna, através do computador, edurou um bom tempo. Discussão queterminou sem prejuízo ou rancor paraos dois lados. A voz pausada, baixa, erauma das suas características. Nunca viou ouvi alterando a voz com alguém.Numa das conversas com ele sobreliteratura ele me deu a biografia queescrevera: O Homem Que Driblou aGlória. Era a biografia do jogador José

Ribamar de Oliveira, o Canhoteiro,apontado por muitos como o maiorponta-esquerda do futebol brasileiro,que jogou no São Paulo e na SeleçãoBrasileira. Dizia Renato queCanhoteiro era igual ou até melhorque Garrincha.

Jornalista brilhante. Os maisnovos, os focas, se encantavam comsuas histórias. Histórias verdadeiras dequem passou por quase todos osgrandes veículos jornalísticos do País.

6. Houve uma época em que elecomeçou, aconselhado por umanutricionista, a comer cenoura. Alto,às vezes um pouco gordo, outrasvezes, mais magro, saía da Redação doJT em direção ao banheiro segurandosempre uma grande cenoura.Chamava a atenção de todos. Ele nãodava a mínima. O fazia no final damanhã ou no começo da tarde. Passavapelo corredor que separava as duasRedações – Estadão e JT – e, claro, osmais novos, que pouco o conheciam,comentavam a maneira de caminhar ecomo segurava a cenoura.

Fernando do ValleTRABALHOU COM RENATO POMPEU NO JORNAL DA TARDE

ENTRE 1996 E 1997 E NA REVISTA CAROS AMIGOS, EM 2003.

7. Em uma manhã, ao chegar naRedação do Jornal da Tarde, fui checaruma matéria que, para minhapretensão de 20 e poucos anos, estavaótima. Era um abre de página comchamada na capa do jornal sobre maisum caso de jovem de classe médiaassassinado em assalto, nos tempos do“assassinato do bar Bodega”. Quandoli a matéria publicada, notei que elaestava mil vezes melhor que a que eutinha escrito. Perguntei, então, paraoutro grande editor, José EduardoBarella, que editava a Geral na época:“Nossa, essa matéria não é a queescrevi, tá muito melhor, o quehouve?” Ele respondeu: “o Renatãodeu uma editada...”

8. Um dia, cheguei correndo da rua,atrasado para escrever uma matéria,achei um terminal vago e comecei. Derepente, um colega bate no meuombro: “cara, você sentou na cadeirado Renatão!” Na pressa, não tinhanotado e prontamente saí em busca deoutra cadeira. A cadeira do Renatãoera sagrada. Contavam que foi uma desuas exigências ao Diretor de Redaçãoda época, Leão Serva, para continuartrabalhando no jornal. Renatãopregou cuidadosamente com durexum aviso na cadeira, em papel sulfite:RENATO POMPEU.

Thiago DomeniciTRABALHOU COM RENATO POMPEU NA

CAROS AMIGOS, A PARTIR DE 2004.

9. Conheci o Renatão em 2004 narevista Caros Amigos. Eu era estagiárioe ele já um jornalista consagrado e detantos trabalhos relevantes. Amemória mais gostosa da minha

amizade com Renatão é de quando elefazia seu ritual, por telefone oupessoalmente. Sempre perguntava“Novidades, Thiago?” e depoisemendava “Qual a manchete?” Aqualquer resposta, ponderava: “E isso ébom ou mau?” Invariavelmentecontava uma piada e esperava ansiosopor um veredito de aprovação ounegação. Renatão foi um redatorsensacional, desses que escrevemcopidescado. E sempre teve grandegenerosidade com as pessoas a suavolta, além de ser um sujeito muitosincero. Tão sincero que rompeuamizade comigo umas três vezes porquestões menores. E sempre ligava,quando estava errado, e pediadesculpas pelo excesso. Nos falávamosquase que semanalmente. Sempre elea ligar. Por sua iniciativa, o ajudei amontar o Blog do Renatão de ondebrotavam pérolas de sua narrativa.

10. Ele era um sujeito muitodivertido naquele ar de seriedade quemantinha. Tem um causo que sempreconto. Num fechamento, lá pelastantas da noite, ao esperar por horas achegada de uma reportagem que eudisse que chegaria em 20 minutos, elelevantou da mesa e veio até mim comseu andar vagaroso para dizer em tomsolene: “Thiagôô, se as minhas fodasdurassem os 20 minutos que você dizeu seria um homem feliz...”.

Um tipo inesquecível esse Renatão.

André BertolucciTRABALHOU COM RENATO POMPEU NA CAROS AMIGOS

11. O Renatão, além de umprofissional ilustradíssimo, era umapessoa com um senso de humorímpar. Mas o que me vem mesmo àrecordação quando penso nele sãocoisas mais simples. Grandenovidadeiro, lia e assistia de tudo,incluindo as novelinhas adolescentesda Globo. Ele alternava sua enormeerudição com inúmeras brincadeiras epiadas. Famosa ficou a performancedele cantando Mãe Menininha emalemão, em tradução própria, nasconfraternizações de fim-de-ano.

12. Nos últimos dez anos, por vezesencontrava com ele no bar Ponto X daVila e conversava um pouco. Em umadestas, o encontrei debruçado sobreuma porção de batatas fritas e medisse que tinha visto em algumanotícia qualquer da internet que sefizesse uma dieta só de batatas fritas,de quatro em quatro horas, poderiaemagrecer com saúde. Me fitou muitoseriamente por uns minutos e depoiscaímos na gargalhada. Acredito quefoi este espírito sempre jovial enovidadeiro que o levou a cursar jácom setenta anos a faculdade deHistória. Fiquei muito comovidoquando anunciou em seu perfil noFacebook que havia se formado noano passado. Soube, inclusive, que jáamarrava uma possibilidade de pós-graduação. É uma grande perda!

virou as costas. Apenas semanasdepois eu descobri que fora objeto deuma saborosa gozação.

2. No final de 1969, o Mino Cartame colocou como editor de uma novaárea de Veja, aquela que abrigavaAmbiente, Cidades, Ciência,Comportamento, Medicina, Religiãoe Vida Moderna. Eu dispunha dealguns subs para as áreas respectivas–e do Renatão como copidesque, editorde texto e redator especial. Enquantotoda a tropa fazia questão de utilizaras esferográficas que a Abril fornecia,ele ainda recorria a uma Parker 51,uma caneta tinteiro que tinha, dizia,desde os seus idos de colégio. O papeldas laudas, porém, eravagabundérrimo. A ponta fina dacaneta, em contato com o papel,invariavelmente manchava asanotações que ele fazia. A caligrafia doRenatão era irrepreensível. Aindaassim, porém, as datilógrafas quepassavam o texto a limpo padeciampara traduzir determinados textos queas nódoas transformavam emgarranchos. De cinco em cincominutos, uma das moças se achegavaà mesa do Renatão e implorava: “Quesignifica isso?” Ele, com a sua cara dejogador de pôquer, dava verdadeirasaulas sobre o sentido das palavras e dasfrases que utilizava. Até que, um dia,as datilógrafas se rebelaram e, numadistração do Renatão, esconderam acaneta. Ele não hesitou. Na manhãsubsequente, apareceu com outra – enão moveu um só músculo do rosto.Até que lhe pedissem, ao menos, queusasse um lápis.

3. Nos piores tempos da repressão, aRedação de Veja se transformou emalvo da Censura e, pior, da PolíciaFederal. Alguém, da diretoria da Abril,que tinha contatos na Ditadura,habitualmente informava o MinoCarta do que poderia acontecer. E, emmuitas ocasiões, o Mino fez questãode acompanhar um detido eventualaté o Doi-Codi. Quando chegou a vezdo Renatão, ele recusou qualquerproteção. Disse que iria sozinho. AAbril tomou algumas providênciaspara que o pessoal do Doi-Codi nãosubisse até o nosso sexto andar parapegar o Renatão. E o Renatão disse quedesceria sozinho, até a portaria.Naquela noite, desabava um temporal.Uns cinco minutos depois de sedespedir, o Renatão retornou à suamesa, bem à frente da minha. Eu,perplexo, indaguei: “Não vão levarvocê? Já liberaram você, assim, tãodepressa?” Sempre com a sua face dejogador de pôquer e um vozeirão queparecia brotar do estômago, de tãofundo que era, ele observou: “Não,esqueci o guarda-chuva”. E de guarda-chuva em punho, se foi.

4. Adorei dois de seus livros, oQuatro-Olhos e o da Ponte Preta, cujotítulo agora me foge. Elogiei ambos,quando do lançamento, em colunasalentadas na IstoÉ, acho, ou na Folha,

Renatão fez parte da equipe que desenvolveu elançou dois dos mais importantes veículos da

imprensa brasileira: Veja e Jornal da Tarde.

38 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

No assassinato de Santiago,um atentado contra a imprensa

A morte do cinegrafista Santiago An-drade, da TV Bandeirantes, no dia 10 defevereiro, após ter sido atingido por umrojão em um protesto no dia 6 do mesmomês, no Centro da cidade do Rio de Janei-ro, revelou os riscos gerados pela violên-cia gratuita, por vezes praticada nas mani-festações populares. A morte de mais umprofissional de imprensa, em pleno exer-cício de seu ofício, trouxe à tona algo alémde um caso isolado de agressão. Expôs empraça pública o aparente descaso de auto-ridades e veículos de mídia para com asegurança daqueles que, em meio aos con-flitos, representam os olhos e os ouvidosde toda a sociedade.

A ABI manifestou, por meio de notaoficial, seu repúdio diante do ato de vio-lência. “A Associação, enlutada, exige a ri-gorosa punição dos responsáveis pelamorte do cinegrafista Santiago IlídioAndrade. A Casa do Jornalista conclamaa sociedade para um amplo debate emtorno do relevante papel da imprensa doEstado Democrático de Direito e para aimperiosa necessidade de regulamenta-ção de leis que ampliem e reforcem a se-gurança dos profissionais de imprensa noexercício da profissão. De centenáriatradição na luta pelas liberdades democrá-ticas, a ABI manifesta apoio aos protes-tos e à expressão do povo brasileiro nasruas, entretanto repudia a violência queatinge nossa categoria em escala expo-nencial”, dizia o texto. Ainda segundo aentidade, “a Band teve também grandeparcela de culpa na morte do cinegrafis-ta por enviá-lo para uma cobertura de ris-co sem colete ou qualquer tipo de prote-ção. Não havia sequer um auxiliar daemissora para lhe dar cobertura”. No diaem que foi atingido pelo rojão, em plenaAvenida Presidente Vargas, Santiago es-tava sem capacete ou qualquer equipa-mento de segurança. Além disso, encon-trava-se sozinho no local.

A morte cerebral de Santiago foi anun-ciada no dia 10 de fevereiro. De acordocom a Secretaria Municipal de Saúde doRio de Janeiro, no dia 6 o cinegrafistachegou em coma ao hospital municipalSouza Aguiar. Sofreu afundamento docrânio, perdeu parte da orelha esquerda epassou por cirurgia no setor de neurolo-gia, mas não resistiu. Naturalmente, odesfecho trágico chamou a atenção da so-ciedade para a questão da segurança dosprofissionais de imprensa, sobretudo emcobertura de conflitos. A própria filha docinegrafista manifestou-se no velório, no

dia 13, neste sentido. “Não vou deixar onome do meu pai em vão, não vou deixara história morrer e vou exigir que a Banddê segurança aos seus funcionários”, disseVanessa Andrade.

O diretor do comitê jurídico da Asso-ciação Nacional dos Jornais (ANJ), Ale-xandre Jobim, disse que o uso de capace-tes e coletes à prova de bala podem não sersuficientes para garantir a segurança dosjornalistas que trabalham em campo. OEstado, segundo afirmou, tem a obrigaçãode oferecer proteção aos profissionais queatuam em zonas de conflito. “É umaquestão também de como o Estado se po-siciona perante vandalismos contra emis-soras de televisão e atentados violentoscontra empregados das emissoras”, disse.“Toda agressão, seja na pessoa do jornalis-ta, seja na empresa, no empregador, é umavia indireta de cerceamento de liberdadede expressão”, afirmou Jobim. Desde oinício dos protestos populares, em julhode 2013, foram inúmeros os casos deagressões a repórteres – tanto por mani-festantes, quanto por policiais – e dedepredações de veículos e equipamentosda imprensa.

Diversas entidades também se mani-festaram neste sentido. Os presidentes daAssociação Brasileira de Emissoras de Rá-dio e TV (Abert), Daniel Slaviero, da

da do Estado, por meio de suas políciasque, em vez de protegerem os jornalistase outros comunicadores, tentam impedirseu trabalho”, diz a nota de repúdio apro-vada pelo conselho.

A pressão rendeu frutos. Após reu-nião com representantes da Fenaj e sin-dicatos da categoria, o Ministro da Jus-tiça, José Eduardo Cardozo, anunciou,no dia 18 de fevereiro, medidas na áreade segurança pública para proteção dosprofissionais de Comunicação Socialque atuam na cobertura de manifesta-ções ou até mesmo fora delas. Cardozodivulgou ações do Governo Federal quese destinam à eficácia de punições e san-ções a quem comete ilícitos contra jor-nalistas, pessoas em geral ou ao patrimô-nio público e privado. As ações incluema definição de um protocolo de atuaçãopolicial com clareza sobre a atividadejornalística, a sugestão de equipamentosde proteção para repórteres e a promo-ção de cursos de treinamento para cober-turas em áreas de manifestação, além denovas formas de apuração dos delitos ea punição dos infratores.

PuniçãoNas mídias sociais, as reações foram de

condenação do ato irresponsável, com pe-didos de punição dos agressores. Na tele-

VIDASREPRO

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Reconhecido profissionalmente e muito querido pelos colegas, o atentado contra Santiago Andrade teve repercussão internacional.

Federação Nacional dos Jornalistas (Fe-naj), Celso Schröder, e da Associação dosRepórteres Fotográficos e Cinematográ-ficos do Rio (Arfoc), Luiz Hermano,defenderam a punição severa dos respon-sáveis pelo ataque ao cinegrafista. “Nós,jornalistas de imagem, exigimos que asautoridades de segurança do estado doRio de Janeiro instaurem imediatamen-te uma investigação criminal para apu-rar quem defende, financia e presta as-sessoria jurídica a este grupo de crimino-sos, hoje assassinos, intitulados blackblocs, que agridem e matam jornalistase praticam uma série de atos de vanda-lismos contra o patrimônio público eprivado”, diz texto da Arfoc, assinadopor Hermano.

A Abert e a Fenaj também se manifes-taram sobre o caso após participarem, noSenado Federal, de uma reunião temáti-ca do Conselho de Comunicação Socialdo Congresso Nacional. Documento re-digido na ocasião pede ao governo medi-das urgentes para garantir a integridadefísica dos jornalistas, radialistas e demaiscomunicadores. “As agressões revelamnitidamente comportamentos autoritá-rios de pessoas ou grupos de pessoas quenão conseguem conviver com o estado dedireito e, principalmente, com a comuni-cação pública. Ou ainda a ação equivoca-

POR PAULO CHICO

39JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

Loureiro Neto,craque do rádio

Internado desde o dia 16 de ja-neiro, no Hospital Pró-Cardíaco,em Botafogo, o radialista LoureiroNeto faleceu no dia 25 de fevereiro,quando os médicos detectaram amorte cerebral do jornalista. Com aautorização da família, os aparelhosforam desligados na manhã do diaseguinte.

Nascido em Portugal, LoureiroNeto trabalhou durante mais de 30anos no Sistema Globo de Rádio, ten-do sido um dos grandes nomes na co-bertura esportiva. Ao longo da car-reira, foi apresentador de diversosprogramas na emissora, entre osquais “Enquanto a bola não rola”,“Papo de Botequim”, “Manhã da Glo-bo”, em substituição a Haroldo deAndrade, e “Botequim da Globo”. Aescola de samba Mangueira era ou-tra paixão de Loureiro Neto, que che-gou a ser presidente de uma ala naverde e rosa.

Em nota, a Rádio Globo divulgouuma homenagem ao radialista, des-crito pelos colegas como “o mais ca-rioca dos portugueses”: “Loureiro nas-ceu em Portugal, mas adotou e foiadotado por Copacabana. Conheciaos bares, os garçons, os jornaleiros, osporteiros e peladeiros. Loureiro era dapraia e do futebol. Vascaíno apaixo-nado, foi referência e criou escola decomo fazer uma cobertura esportiva.Ele era da praia, da bola e do samba.Mangueirense, foi presidente de alana verde e rosa e um defensor das tra-dições e do bom carnaval. Loureirofoi o mais carioca dos portugueses”.

O corpo do jornalista LoureiroNeto foi cremado no dia 28 de feverei-ro, em cerimônia reservada aos fami-liares. Amigos, parentes e admiradorescompareceram ao velório, aberto aopúblico, das 10h às 17h, no dia 27, naCapela 1 do Cemitério São João Batis-ta, em Botafogo, Zona Sul do Rio.

visão em que Santiago trabalhava, pordias, semanas, o clima geral foi de cons-ternação. Também nas Redações de ou-tros emissoras de tv, rádios e jornais, erapossível perceber o sentimento de luto es-tampado nos rostos de diversos profissi-onais. Além de conhecido e reconhecidono meio, o cinegrafista da Band, mortoaos 49 anos de idade, e com mais de 20anos de profissão, era querido pelos cole-gas. Uma das reações mais contundentes,como era de se esperar, foi a da esposa deSantiago. Arlita Andrade concedeu en-trevista exclusiva à TV Globo, no dia 9 defevereiro.

“Acho que esses rapazes que fizeramisso tiveram, talvez, mães que não deramos ensinamentos que dei para os meus fi-lhos. Como é que a gente vai ter paz nomundo se não ensina para os filhos dagente? Então, isso é uma coisa que medeixou muito triste, porque ele não mere-cia, era uma pessoa muito boa. Ele procu-rava sempre ajudar a todos. Eu vi o FábioRaposo, que assumiu ter acendido o rojão,pedindo desculpas... Mas acho que o quefalta neles é o amor, o amor pelas pessoas,porque a gente não faz isso. Ele disse quefoi sem intenção. Que seja, mas meu ma-rido estava trabalhando, estava mostran-do uma manifestação. Manifestação podefazer, mas não precisa dessa violência.Perdoar? Meu marido está indo embora,eles destruíram uma família. Uma famíliaque era unida, muito unida mesmo”.

Outra manifestação de pesar que to-cou a todos partiu da filha de Santiago.Vanessa Andrade, de 29 anos, disse queresolveu escolher a profissão de jornalistapor causa do trabalho do pai. QuandoSantiago morreu, ela revelou, em umacarta aberta no Facebook, alguns dosmomentos vividos com Santiago. E lem-brou que ele, em um primeiro momento,

foi contra a sua escolha. “Quando decidiser jornalista, aos 16 anos, ele quase caiuduro. Disse que era profissão ingrata,salário baixo e muita ralação. Mas euexpliquei: vou usar seu sobrenome. Ele riue disse: então, pode!”, escreveu ela.

“Esta noite eu passei no hospital medespedindo. Só eu e ele. Deitada em seuombro, tivemos tempo de conversar so-bre muitos assuntos, pedi perdão pelasminhas falhas e prometi seguir de cabeçaerguida e cuidar da minha mãe e meusavós. Ele estava quentinho e sereno. Éra-mos só nós dois, pai e filha, na despedidamais linda que eu poderia ter. E ele tam-bém se despediu. Sei que ele está bem.Claro que está. E eu sou a continuação davida dele. Um dia meus futuros filhossaberão quem foi Santiago Andrade, o avôdeles. Mas eu, somente eu, saberei o orgu-lho de ter o nome dele na minha identi-dade. Obrigada, meu Deus. Porque tive achance de amar e ser amada. Tive todas asalegrias e tristezas de pai e filha. Eu tiveum pai. E ele teve uma filha”, dizia trechoda mensagem.

Habeas corpusA Justiça do Rio negou, no dia 25 de fe-

vereiro, o habeas corpus para Caio Silvade Souza e Fábio Raposo – acusados damorte do cinegrafista. A informação foidivulgada pelo Tribunal de Justiça e adecisão foi do desembargador MarcosQuaresma. O pedido havia sido feito peloadvogado Jonas Tadeu no dia anterior.“Indefiro a liminar, por não vislumbrar deplano qualquer ilegalidade no decreto pri-sional ora impugnado, tratando-se de pri-são devidamente regular”, decidiu o de-sembargador. Os dois, flagrados por câ-meras acendendo o artefato, são acusadospelo Ministério Público de homicídiodoloso triplamente qualificado.

Num evento cercado de forte emoção, cinegrafistas, fotógrafos e outros colegas de profissãofizeram uma homenagem a Santiago Andrade no local onde ele foi atingido por um rojão.

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Em 1983, Loureiro Neto recebeu o prêmio Destaques do Ano.

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40 JORNAL DA ABI 398 • FEVEREIRO DE 2014

“Como irmão mais velho do jornalis-ta Carlos Alberto Luppi e representan-te de nossa família, agradeço a inserçãode matérias e notícias que homenageiame sintetizam uma vida de muitas lutasem prol dos direitos humanos. Foi-se umgrande amigo e irmão, que deixou umlegado que muito nos orgulha”, disse Pau-lo Roberto Luppi durante a cerimôniabudista em memória do jornalista, queocorreu na noite do dia 11 de março, nasede regional da Soka Gakkai, em Bota-fogo, Zona Sul do Rio. Com essas pala-vras, a família de Carlos Alberto Luppiagradeceu as manifestações de apoio epesar pela morte do jornalista, ocorridano dia 4 de março.

Natural de Colatina (ES), Carlos Luppimorreu aos 63 anos, no Rio de Janeiro,em decorrência de um infarto fulminan-te. Sua carreira se destacou pela luta emfavor da democracia e dos direitos huma-nos no Brasil, fato que lhe rendeu prêmi-os, obras notáveis, além do reconheci-mento e da admiração dos amigos.

PrêmiosFormado em Jornalismo pela Facul-

dade de Filosofia, Ciências e Letras deJuiz de Fora (MG), Carlos Luppi foi umdos mais notáveis jornalistas investiga-tivos do País. Publicou 11 livros-repor-tagem e foi o único brasileiro a ganhar oPrêmio J. Elliot de Direitos Humanos,concorrendo com jornalistas de 120

tagens “O país da pena de morte” publi-cada na Folha, com denúncias sobre os as-sassinatos cometidos pela Rota, forçatática da Polícia Militar de São Paulo.

No início dos anos 1990, Carlos Lup-pi abandonou as Reda-ções por achar que nãohavia mais espaço parao tipo de jornalismoque fazia e passou a atu-ar como diretor de cri-ação em agências de pu-blicidade, tendo rece-bido prêmios pela cria-ção de campanhas pu-blicitárias, roteirospara televisão e docu-mentários. Em 2006,retornou ao jornalismoquando publicou o li-vro Dinastia das Som-

bras – O Homem que Matou Jesus, cujo per-sonagem principal é uma vítima da dita-dura militar na guerrilha do Araguaia, en-tremeando realidade e ficção. Nos últi-mos anos, atuou como redator especial darevista e do site Justiça & Cidadania, efinalizou o livro Um Vazio no Coração doMundo, escrito em parceria com o jorna-lista Hugo Studart. No ano de 2009, con-cedeu uma entrevista publicada no siteABI Online e no Jornal da ABI número351, que pode ser lida no link abi.org.br/entrevista-carlos-alberto-luppi.

Luppi deixa a mulher Simonetta Ivan-cevic, a filha Ana Carolina Ivancevic Lup-pi, e a neta Lola.

POR CLÁUDIA SOUZA países, pelo conjunto de reportagens pro-duzidas entre 1987 e 1998 sobre a situ-ação da criança brasileira. O início da car-reira na imprensa foi no Diário Mercan-til, de Juiz de Fora. Pouco depois, venceuum concurso universitário promovidopelo Jornal do Brasil e, como prêmio, ga-nhou um estágio na sucursal paulista dodiário. Assim que se formou conseguiu sercontratado, por decisão de Alberto Dines.Cerca de nove meses depois, foi promo-vido ao cargo de repórter especial. Luppitrabalhou ainda na Folha de S.Paulo, noEstado de S.Paulo, e no Jornal da Tarde,entre outros veículos.

Um de seus grandes trabalhos foi pu-blicado em 1971, durante epidemia demeningite que o governo Médici teriatentado esconder da população. CarlosLuppi realizou apurações em diversosórgãos de saúde até encontrar um docu-mento com dados que comprovavam aepidemia. Outra matéria de destaque desua autoria resultou na reabertura doprocesso do caso Araceli, menina miste-riosamente assassinada nos anos 1970,em Vitória (ES). Nos anos 1980, com asérie de reportagens publicadas na Folhade S.Paulo e o lançamento do livro-repor-tagem Manoel Fiel Filho: Quem Vai Pagarpor Este Crime?, Luppi derrubou a versãooficial do II Exército de que o operárioManoel Fiel Filho cometera suicídio naprisão. Órgãos de segurança emitiramnota oficial afirmando que Manuel FielFilho havia se enforcado em sua cela comas próprias meias. Contudo, o corpo apre-

Carlos Alberto Luppi,o repórter humanista

VIDAS

sentava sinais evidentes de torturas, alémde hematomas generalizados, principal-mente na testa, pulsos e pescoço.

A investigação de Luppi comprovouque o laudo oficial que apontava suicídiocomo a causa da mortedo operário havia sidoforjado. Manoel FielFilho, na verdade, foiassassinado em 17 dejaneiro de 1976, noDoi-Codi de São Paulo.Ele havia sido preso em16 de janeiro de 1976,ao meio-dia, na fábricaMetal Arte, onde traba-lhava, por dois agentesda repressão que se dizi-am funcionários da Pre-feitura. Manoel foi acu-sado de pertencer aoPartido Comunista Brasileiro (PCB), e deser assinante do jornal A Voz Operária.

DenúnciasDe 1979 a 1990, Carlos Luppi dedicou-

se a reportagens sobre a situação do me-nor no Brasil, que renderam os livrosAgora e na Hora de Nossa Morte – O Mas-sacre do Menor no Brasil (Brasil Debates,1981), A Cidade Está com Medo (MarcoZero, 1982), escrito em parceria com ocriminalista Técio Lins e Silva, e Maldi-tos Frutos do Nosso Ventre – Conflitos e Con-frontos (Cone, 1987). Recebeu duas vezeso prêmio Vladimir Herzog de DireitosHumanos, uma delas pela série de repor-

ACERVO

ABI