jornal da abi 370

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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa 370 SETEMBRO 2011 Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa E DIÇÃO E SPECIAL Julio Cortázar Eliakim Araujo Lan Nélson Rodrigues Roberto Mendes André Toral José Roberto Whitaker MUNIR AHMED

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Edição especial do Jornal da ABI reunindo sete entrevistados de destaque. São duas entrevistas históricas: numa o jornalista Rodolfo Konder, que estava exilado na época, bate um papo com Julio Cortázar em Quebec, no Canadá. A entrevista foi publicada originalmente no dia publicada em 20 de outubro de 1977 no jornal O Diário, de Lisboa, pertencente ao Partido Comunista Português. Na outra, o jornalista Geneton Moraes Neto conversa com Nelson Rodrigues em seu apartamento no dia 1° de maio de 1978 durante um jogo da Seleção Brasileira. O jornalista e apresentador Eliakim Araujo; o antropólogo e quadrinista André Toral; o jornalista e publicitário José Roberto Whitaker Penteado; o empresário de cinema, tv e vídeo Roberto Mendes; e o nosso Lan, grande caricaturista, contam suas histórias maravilhosas. Uma edição imperdível com muitas histórias para ler e conhecer!

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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

370SETEMBRO

2011

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

EDIÇÃOESPECIAL

Julio CortázarEliakim Araujo

LanNélson RodriguesRoberto Mendes

André ToralJosé Roberto Whitaker

MU

NIR

AH

MED

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Maurício AzêdoVice-Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage eTeixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, JorgeSaldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e ManoloEpelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho daGraça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn,Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José GomesTalarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Efetivos 2009-2012Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles,Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, JoséÂngelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães,Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,

Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira daSilva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa,Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

Conselheiros Suplentes 2009-2012Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (MiroLopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, JordanAmora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus AntônioMendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo CoelhoNeto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva(Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes deMiranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSAlcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro,Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, MarthaArruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

Jornal da ABINúmero 370 - Setembro de 2011

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Maurício Azêdo e Francisco [email protected] / [email protected] gráfico e diagramação: Francisco UchaEdição de textos: Maurício Azêdo

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz,André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme PovillVianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz deFreitas Borges.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas(Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva,Paulo Roberto de Paula Freitas.

Diretor Responsável: Maurício Azêdo

Associação Brasileira de ImprensaRua Araújo Porto Alegre, 71Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012Telefone (21) 2240-8669/2282-1292e-mail: [email protected]

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULODiretor: Rodolfo KonderRua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51Perdizes - Cep 05015-040Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960e-mail: [email protected]ÇÃO DE MINAS GERAISDiretor: José Eustáquio de Oliveira

Impressão: Gráfica Lance!Rua Santa Maria, 47 - Cidade Nova - Rio de Janeiro, RJ

NESTA EDIÇÃOESPECIAL:

JULIO CORTÁZAR, página 4

NÉLSON RODRIGUES, página 6

ELIAKIM ARAUJO, página 11

ANDRÉ TORAL, página 18

JOSÉ ROBERTO WHITAKER PENTEADO, página 26

ROBERTO MENDES, página 31

LAN, página 39

Eles sabem demais econtam o que sabem

O TRAÇO COMUM DAS PERSONALIDADESdo jornalismo presentes nesta Edição Espe-cial do Jornal da ABI é que são todos apaixo-nados pela comunicação, pelo jornalismo,ao qual devotam seu talento e dedicam oudedicaram suas vidas, caso deNélson Rodrigues, um dos mons-tros-sagrados aqui presente comsuas desconcertantes opiniões,recolhidas num dia de jogo da Se-leção Brasileira pelo repórter Ge-neton Moraes Neto.

EXCEÇÃO NESSA PAIXÃO PELAcomunicação seria talvez o escri-tor Julio Cortázar, não fora a sualiteratura uma forma superior de comuni-car, com o selo da ficção, experiências hu-manas que o tornaram um criador de dimen-são mundial. Cortázar está presente aquigraças à sensibilidade e à competência dojornalista e escritor Rodolfo Konder, que, exi-lado no Canadá, no começo dos anos 1970,após terríveis padecimentos em prisão po-lítica no Brasil, recolheu de Cortázar infor-mação preciosa sobre os rumos de sua obra:foi seu contato com a riqueza da RevoluçãoCubana que deu à sua criação literária o perfilque lhe granjeou admiração no mundo todo.

ALÉM DO AMOR À COMUNICAÇÃO e ao jor-nalismo há entre os entrevistados, ouvidosem diferentes momentos de suas trajetóriaspessoais e também da vida do País e do mun-do, outras identidades que os transformaram,cada um a seu modo, em criaturas singulares,como o inconformismo revelado diante desituações que causavam repugnância às suasconsciências, como no caso da decretação do

Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de1968, que Eliakim Araújo teve o desconfortode ler na Rádio Jornal do Brasil, e da tentati-va de fraude, através do chamado “escândaloda Proconsult”, das eleições de 1982 para o

Governo do Estado do Rio, rumo-roso episódio que o mesmo Eli-akim acompanhou pela mesmaRádio JB. Radicado há quase duasdécadas em Miami, Flórida, Es-tados Unidos, onde mantém coma mulher, a também jornalistaLeila Cordeiro, um site de grandeagilidade e merecida repercussão,Eliakim faz o relato de uma aven-tura profissional extraordinária

em que estão presentes virtudes exibidas tam-bém por outros profissionais entrevistados,como a busca da inovação e do pioneirismo.

OS ASPECTOS COMUNS QUE OS relatos dosentrevistados apresentam não excluem adiversidade presente em cada trajetória in-dividual aqui retratada, como a mudança depercurso de José Roberto Whitaker Pentea-do Filho, que já foi colunista de jornal espe-cializado em publicidade e marketing e ter-minou por tornar-se uma autoridade nessecampo, capaz da audácia, como Diretor daEscola Superior de Propaganda e Marketing-

ESPM, de criar um curso superior de Jor-nalismo depois que o Supremo Tri-

EditorialEditorial

POR MAURÍCIO AZÊDO

bunal Federal, numa desastrada decisão, de-clarou dispensável o diploma de Jornalismoou de Comunicação Social para o exercícioda profissão.

AUDÁCIAS ESTÃO PRESENTES igualmen-te no desempenho profissional de AndréToral, antropólogo e indigenista que adqui-riu forte visão crítica da forma como sãotratadas as populações indígenas do País, ede Roberto Mendes, um mestre da difusãodo audiovisual que o grande público desco-nhece, apesar da larga e criativa contribui-ção que prestou à fixação e expansão dessebem agora essencial na vida moderna e so-bretudo à divulgação do filme brasileiro, esseexilado em seu próprio país.

SÃO DEPOIMENTOS DE GENTE que sabe de-mais e que em boa hora resolveu contar o quesabe, como esse admirável desenhista e fi-gura humana Lanfranco Vaselli, que há déca-das ilumina a criação artística e a vida cul-tural do Brasil com seus desenhos mara-vilhosos e sua alegria de viver no Paíscomo sua pátria de coração, o País doseu Flamengo, da sua Portela e dasmulheres que ele exaltou com seutraço inigualável.

4 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

RODOLFO KONDER – CORTÁZAR: VOCÊ ÉMAIS DO QUE UM NOME – É UMA VASTA ECOMPLEXA LITERATURA. COMO SURGIU ESTA

LITERATURA E COMO ELA MODIFICOU O HO-MEM, QUE OS LEITORES GERALMENTE DES-CONHECEM?

Julio Cortázar – A gestação deuma literatura pode ser melhor vistapelos críticos do que pelo próprioautor. Sei que nasci para escrever,porque minha mãe me disse isso.

POR RODOLFO KONDERENTREVISTA PUBLICADA EM 20 DE OUTUBRO DE 1977

CORTÁZAR

Não há nada mais fantásticodo que a imaginação do povo

O escritor argentino Julio Cortázar esteve recente-mente em Quebec, para participar num encontro in-ternacional de escritores, em Mont Gabriel, ao Nortede Montreal. Alto, magro, elegante, Cortázar pareceum homem de menos de 50 anos – embora tenha co-memorado o seu 63º aniversário. Recebeu-nos com umagrande cortesia, falando, com a sua voz profunda e umleve sotaque europeu, durante mais de uma hora, so-bre a literatura e a literatura de Julio Cortázar.

Aprendi sozinho a escrever, com umjogo de cubos que continham letras.Um dia, aos dois anos de idade, li paraminha mãe a manchete de um jor-nal; ela levou-me imediatamente aum médico, porque temia que aque-la precocidade pudesse ser prejudicialà minha saúde. Com isso não estoua jactar, mas mostrando uma espé-cie de fatalidade, um contacto imedi-ato, quase físico, que sempre manti-

ve, desde a primeira infância, com aspalavras. Escrevi uma novela aos noveanos, com umas trinta páginas – eque minha mãe guarda e nunca mequis dar, porque teme que eu possarasgá-la. Mas eu gostaria de vê-la.Desde os dez anos, devoro tudo o queme cai nas mãos. Li, com muito in-teresse, na época, os ensaios de Mon-taigne, aos doze anos. Lia tudo, então.Em consequüência de todas as leitu-ras, tornava-se assim mais fácil paramim, escrever – e eu escrevia inclusi-ve as composições de escola dos meuscolegas de turma, que, por isso mes-mo, gostavam ainda mais de mim.

RODOLFO KONDER - ISSO EXPLICARÁ O

FATO DE O SEU ESTILO LITERÁRIO NÃO PO-DER SER HOJE CLASSIFICADO?

Julio Cortázar – Alegro-me queme classifiquem o menos possível,porque considero as classificaçõescomo uma forma de compartimen-tação; em literatura, de empobreci-mento. Há uma espécie de mania,típica do mundo ocidental, de decor-rer às classificações. Isto aqui é uma

sonata, aquilo é uma sinfonia – em-bora haja formas musicais que po-dem participar de ambas; então sur-ge a inquietação, porque não pode-mos classificá-las.

RODOLFO KONDER – NESTE SENTIDO, SERIA

IMPOSSÍVEL, POR EXEMPLO, TRAÇAR O LIMI-TE ENTRE A POESIA E A PROSA, NA SUA OBRA...

Julio Cortázar – Eu, pessoalmen-te, seria incapaz de defini-lo, Paramim não há esse limite. Amplaspassagens nas minhas novelasconstituem, na minha opinião, de-senvolvimentos poéticos.

RODOLFO KONDER – VOCÊ EMPREGA A

PALAVRA COMO UMA SEGUNDA VERSÃO DAS

COISAS A QUE SE REFEREM?Julio Cortázar – Se fizesse isso, te-

ria uma impressão de empobreci-mento. A palavra tem a sua essên-cia própria, a sua conexão com oobjeto que representa e um inven-to da inteligência humana – que, àsvezes, pode nascer de uma certaonomatopéia, como os nomes dosanimais que provêm do seu grito ou

da sua cor. Acredito, porém, que alinguagem tem a sua autonomia es-sencial. Somente um realismo umpouco ingênuo aceitaria a identida-de, a permanência de um objeto nasua objetividade, por assim dizer.Numa determinada medida, a lite-ratura é a arte de mover os objetose de mudá-los de lugar; é a arte deconverter uma cadeira de veludonum receptáculo de muita coisa quenada tem a ver com a cadeira.

RODOLFO KONDER – GARCÍA MÁRQUEZ DIS-SE QUE “O ESCRITOR NÃO ESCREVE A NOVE-LA, MAS É A NOVELA QUE ESCREVE O ESCRI-TOR”. ATÉ ONDE ISSO É VERDADE, NO SEU CASO?

Julio Cortázar – Neste sentido nãotenho falsas modéstias. As influên-cias que sofri vêm de outras literatu-ras, mais do que da minha. A minhaliteratura está profundamente en-tranhada em mim, enquanto produ-zo; depois, desligo-me dela – e nãogosto sequer de reler o que escrevi. Oque escrevi torna-se um pequeno pla-neta que gira por conta própria. Emtroca, sinto como uma presença

JULIO

REPROD

UÇÃO

CORTÁZAR

5Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

quase física o impacto de certas lite-raturas, contos e novelas, sobre mim.Isso pode ter feito de mim o que sou– e não a minha própria obra.

RODOLFO KONDER – NO ITINERÁRIO QUE

VAI DE LOS REYES (OS REIS; CIVILIZAÇÃO

BRASILEIRA) ATÉ EL LIBRO DE MANUEL (OLIVRO DE MANUEL, NOVA FRONTEIRA),QUAIS AS FORÇAS QUE DESEMPENHARAM

PAPEL MAIS DESTACADO NAS MODIFICAÇÕES

OCORRIDAS: OS LIVROS QUE VOCÊ LEU, OU

A REALIDADE QUE OS CERCA?Julio Cortázar – As duas coisas,

por certo. O mundo da literatura delíngua espanhola, o mundo cultu-ral Francês e a sua literatura, e o mun-do anglo-saxão são os três domíni-os literários que compartilhei ao lon-go da minha vida – e que amo igual-mente. A acumulação desta litera-tura fez de mim o que sou. Mas,felizmente, há outras coisas. Até aépoca em que escrevi El Perseguidor,a única coisa que me havia condici-onado verdadeiramente era a litera-tura. A partir de então, comecei adescobrir o mundo tal qual é, e nãoapenas a partir do espelho dos livros;e comecei a ter um primeiro senti-mento de responsabilidade, e a issoque se passou a chamar compro-misso, uma palavra que se presta atantos mal-entendidos. A partir deentão, a influência da história tor-nou-se cada vez maior – e acho queisso se nota desde a publicação deRayuela (O Jogo da Amarelinha, Ci-vilização Brasileira), onde há umarecusa total da história. Rayuela ain-da se move num território muito in-dividualista, ontológico e metafísi-co, que fala do homem como essên-cia e não do homem como indivíduohistórico. Daí em diante, a situaçãomudou para mim, e a influência avas-saladora da literatura foi conside-ravelmente substituída por um sen-

timento de participação histórica,que aumenta cada dia mais.

RODOLFO KONDER – QUANDO VOCÊ FALA

DA HISTÓRIA, FALA DA HISTÓRIA COM HMAIÚSCULO OU DA HISTÓRIA DO COTIDIA-NO, QUE A GENTE LÊ NOS JORNAIS?

Julio Cortázar – Sobretudo dessaúltima. A história das campanhas deAníbal ou Napoleão pode interessar-me como literatura, como exercíciomental, apenas como fonte de inte-resse estético. Quando falo de Histó-ria, refiro-me concretamente à Amé-rica Latina, à sua espantosa Histó-ria de todos os dias.

RODOLFO KONDER – EM EL LIBRO DE

MANUEL, NOTA-SE A ENTRADA DA HISTÓ-RIA NA SUA LITERATURA, MAS, ISSO NÃO

IMPEDE QUE OS SEUS PERSONAGENS TE-NHAM PREOCUPAÇÕES METAFÍSICAS...

Julio Cortázar – Claro que não.Não creio que a preocupação histó-rica tenha que ser paga com umempobrecimento da personalidade;ao contrário, digo no prólogo que olivro é sobretudo uma tentativa decolocar todo um mundo erótico,lúdico e solar no território da Histó-ria, que se reflete nos comunicadose notícias. Não é sacrificando essascoisas que faremos a revolução oualcançaremos uma definição verda-deira de latino-americanos.

RODOLFO KONDER – COMO FOI QUE A SUA

LITERATURA ENTROU NA HISTÓRIA?Julio Cortázar – Isso resultou de

um acontecimento de 1959, quan-do um pequeno grupo de 82 barbu-dos desceu de uma serra e tomouHavana, derrubando um tiranosangrento que se chamava Baptis-ta. Este episódio, que cinco anosantes me teria deixado totalmenteindiferente (porque eu estaria pro-vavelmente lendo o último livro de

Borges, muito mais fascinado porisso do que pelos telegramas nos jor-nais sobre a tomada de Havana),este episódio entrou em mim comoum furacão mental, e, sobretudo,como um furacão moral, porquetive pela primeira vez a impressãode que tinha vivido, até então, intei-ramente alheio à realidade da Amé-rica Latina – e de que aquele episó-dio não era gratuito, e importavaavaliá-lo. Fiz isso, procurei informa-ções, fui a Cuba em 1961, voltei,depois, várias vezes. O contacto comeste povo que fez a sua Revoluçãofoi a hora da minha verdade, comose eu descobrisse que vivia parcial-mente cego, antes. Dei-me conta,por exemplo, de que muita coisa im-portante ocorrera na Argentina(como o peronismo, no seu primeiromomento), ao meu lado, sem queeu percebesse. A Revolução Cubanafoi um catalisador, talvez porque euestivesse mais maduro. Ocorreunaquele momento, porque não po-deria ocorrer antes nem depois.

RODOLFO KONDER – A SUA LITERATURA

MUDOU?Julio Cortázar – A partir daquele

contato com Cuba naturalmente aminha literatura teria de mudar emalgum sentido. Eu poderia continu-ar escrevendo contos fantásticos,como fiz, porque não poderia renun-ciar a isso; poderia continuar escre-vendo novelas, mas é óbvio que, pordiferentes portas e janelas, começa-va a entrar uma linha que culminacom El Libro de Manuel.

RODOLFO KONDER – SEMPRE NA LINHA

DO REALISMO FANTÁSTICO?Julio Cortázar – Discuti o problema

da literatura fantástica recentemen-te, com alguns escritores cubanos, quea consideram como uma literatura es-capista. Acho que, ao contrário, umacerta dimensão do fantástico pode

leitores adotaram uma atitude dis-plicente com respeito aos novosautores. Eu, ao contrário, senti quehavia, na maioria dos países latino-americanos, gente jovem que esta-va a trabalhar muito bem – e osfrutos desse trabalho já começam aaparecer. Basta ver a atual literaturamexicana, ou da Costa Rica, ou doPeru, ou de Cuba, naturalmente.Acho que a literatura latino-ameri-cana, neste momento, é sumamen-te rica e variada – e digo-o, sobretu-do, por contraposição à literaturaque leio, hoje, em França – uma li-teratura cansada, frouxa.

RODOLFO KONDER – VOCÊ DISSE UMA VEZ

QUE NÃO ESCREVIA INTENCIONALMENTE.E AGORA?

Julio Cortázar – Quando traba-lho, tenho a consciência precisa deque este trabalho que faço paramim, ao ser concluído, deixará de serpara mim. E não irá para um leitorque antes era abstrato; irá para umagente determinada, que está a so-frer, que está a lutar, que posso co-nhecer ou não – mas conheço histo-ricamente. Coisa que antes não exis-tia para mim.

RODOLFO KONDER – O QUE DEVEMOS ES-PERAR DE CORTÁZAR, NÓS PRÓXIMOS ANOS?

Julio Cortázar – Acabo de fazer 63anos. Ainda me sinto jovem, mas jáme cansa a vista, sinto-me mais fa-tigado, trabalho menos. A minha in-tenção é continuar a escrever contos– porque este é o veículo literário maisfamiliar para mim. Não sei se escre-verei alguma novela. Tenho freqüen-temente um sonho, há três anos:entro num escritório e vejo, numacaixa, o livro – escrito à mão cheio defórmulas matemáticas. Isso, nosonho, é a genialidade do livro. Tra-ta-se de um livro com o qual revo-lucionei definitivamente a literatu-ra. É uma espécie de livro com quesonhava Mallarmé – onde a realida-de encontraria a sua expressão fi-nal. Infelizmente, trata-se de umsonho. Ao despertar, no entanto,sinto uma grande vontade de escre-ver, não este livro impossível, masuma novela. Preciso, porém, de cir-cunstâncias pessoais mais favorá-veis. Devo dizer – sem lamentações– que, nos últimos anos, especial-mente desde o golpe de 11 de setem-bro, no Chile, levo uma vida muitoextraliterária. Paris é uma platafor-ma a partir da qual se pode fazermuita coisa pelo Chile e pela Argen-tina, na medida do possível, atravésde tribunais internacionais, comis-sões e jornais. A minha vida já nãoé a do homem que fui, que dispunhade todo o tempo para escrever con-tos e novelas. Hoje, tenho pouco tem-po; mas dentro desse tempo, continu-arei a escrever.

“O contato com este povo que fez asua Revolução foi a hora da minhaverdade, como se eu descobrisse que

vivia parcialmente cego, antes.”

enriquecer imensamente os horizon-tes mentais do leitor. Neste sentido,a literatura fantástica é revolucioná-ria. Além do mais, não há nada maisfantástico do que a imaginação dopovo. Basta ver o folclore, as suas len-das, os seus mitos, os seus temores,os seus animais fantásticos.

Quanto mais simples é um ho-mem, mais fantástico, o seu mun-do mental. A visão científica pare-ce-me muito necessária, mas é pre-ciso preservar os outros horizontes,um mundo lúdico, onde se insereum mundo fantástico. Em funçãodessa discussão com os cubanos, es-crevi três contos, que integram olivro Alguién que anda por ahí (AlguémQue Anda por Aí, Nova Fronteira) –agora proibido na Argentina.

RODOLFO KONDER – O ESCRITOR DEVE

COMPROMETER-SE DIRETAMENTE?Julio Cortázar – O fato de um es-

critor não estar diretamente envol-vido não deve ser nunca motivo deacusação. A acusação deve nascerquando este homem está compro-metido noutro plano, com a reação,com os opressores. Como os cúmpli-ces dos ianques, na América Latina.

O curioso é que, às vezes, o escri-tor toma posição sem saber. Há es-critores que não têm consciênciadisso. Em Buenos Aires, por exem-plo, há gente que diz: “Estou contraa violência, da direita ou da esquer-da”. Essa gente não refletiu sobre umfato essencial: que a violência daesquerda é uma reação contra aprimeira força a desatar a violência– da direita. Para um liberal, isso nãofaz a menor diferença.

RODOLFO KONDER – COMO VÊ A LITERATU-RA LATINO-AMERICANA DESTE MOMENTO?

Julio Cortázar – Sou muito oti-mista. Depois do boom dos anos 1960,que projetou supersonicamente cin-co ou seis figuras, muitos críticos e

Exilado no Canadá em 1977, Rodoldo Konder vê a paisagem de Toronto na famosaCN Tower. No mesmo ano, encontra Cortázar em Quebec para uma entrevista exclusiva.

REPROD

UÇÃO

AR

QU

IVO PESSO

AL

Entrevista publicada no jornal O Diário, deLisboa, pertencente ao Partido ComunistaPortuguês. Ela foi feita a pedido do jornalistaMiguel Urbano Rodrigues, Diretor do jornal,que viveu no Brasil como exilado durante aditadura de Salazar e era amigo de Rodolfo.Sabendo que Cortázar estava em Quebec,pediu ao Rodolfo, que sabia estar exiladono Canadá, para fazer a entrevista.

6 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

eu primeiro, único e últi-mo encontro com o gênioNélson Rodrigues come-

çou com uma dúvida devastadora:por que diabos ele teria marcadonossa entrevista justamente para ahora de um jogo da seleção brasilei-ra? Não é possível, deve ter havido al-gum engano – eu pensava com meusbotões, enquanto caminhava pelascalçadas do Leme, na beira-mar, noRio de Janeiro, em direção ao aparta-mento do homem.

Se Nélson Rodrigues escreviaaquelas crônicas geniais sobre fute-bol no jornal O Globo, é óbvio que elenão iria dar uma entrevista a umforasteiro pernambucano no exatomomento em que a Seleção Brasilei-ra entrava em campo, no Maraca-nã, com transmissão ao vivo pela tv.Se desse, como é que ele iria escreversobre o jogo no jornal do dia seguin-te? Não, deve ter havido um grandeequívoco. É melhor que eu desista.Nélson não iria dar entrevista algu-ma num momento tão inoportu-no. Ou iria?

Mergulhado num poço de cons-trangimento, aperto a campainha.A entrevista tinha sido marcada portelefone. Uma mulher abre a porta.Ao fundo, vejo a imagem de NélsonRodrigues esparramado numa pol-trona. Os pés estão fora dos sapa-tos. Não faz frio, mas ele veste umsuéter sobre a camisa de mangascurtas. Pende na parede da sala umafoto emoldurada de Nélson Rodri-gues em companhia de Sônia Bra-ga e de Neville de Almeida – atriz ediretor da versão cinematográfica deA Dama do Lotação.

Quando a mulher avisa em vozalta que “o repórter de Pernambuco”estava na porta da sala, Nélson er-gue os braços, agita as mãos, saú-da o ilustre desconhecido com umaexclamação calorosa, como se reen-contrasse um amigo de infância:“Conterrâneo! Conterrâneo!”.

O cumprimento efusivo nãoafasta o temor de que Nélson tenhacometido um pequeno equívoco: aomarcar a entrevista para aquelehorário, ele bem que pode ter se es-quecido de que a Seleção Brasileirairia entrar em campo dentro de ins-tantes. A hipótese pode parecerabsurda, mas quem sou eu paramenosprezar as possíveis excentri-cidades de nosso herói?

Tento uma solução alternativapara escapar de um vexame: digoque posso voltar depois para gravara entrevista; não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, NélsonRodrigues repousa a mão direitasobre o peito, como se sugerisse umapontada no coração. Olha para atelevisão, pede à mulher:

“Tirem o som desse aparelho!Tirem o som desse aparelho! O Bra-sil me faz mal! O Fluminense mefaz mal!”

A mulher e a irmã de Nélsonriem da cena teatral. Hiperbólico,épico, exagerado, o homem é umafábrica de tiradas dramáticas. Des-confio de que acabo de me transfor-mar em solitário e privilegiadíssimo

RODRIGUESPOR GENETON MORAES NETO

ENTREVISTA REALIZADA EM 1° DE MAIO DE 1978

As incríveis cenas dos bastidores de um encontro comNélson Rodrigues, maior dramaturgo brasileiro, pernambucano

exilado no Rio, estilista número um da crônica esportiva.

NÉLSON

FOLH

APRESS

M

7Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

espectador de um espetáculo tea-tral chamado Nélson Falcão Rodri-gues, encenado pelo próprio autor.

A ordem de Nélson – “tirem osom desse aparelho!” – é imediata-mente atendida. O aparelho de tvfica mudo. A Seleção entra em cam-po: Leão; Toninho, Oscar, Amaral eEdinho; Batista, Toninho Cerezo eRivelino; Zé Sérgio, Nunes e Zico.Assim, este forasteiro se vê de repen-te na condição de coadjuvante deuma cena surrealista: diante de umatv sem som que transmitia o jogoda Seleção Brasileira contra o Peru,o autor das mais brilhantes crônicasjá escritas sobre o futebol brasileirosimplesmente tira os olhos do vídeopara responder ao interrogatório deum visitante que chegou em horainconveniente, munido de um gra-vador e um bloco de anotações. Im-provisado como fotógrafo, o tam-bém pernambucano Wilson Urquisavai flagrando, com uma velhaOlympus, as poses teatrais de Nél-son Rodrigues.

Fui testemunha ocular de umaverdade inapelável: Nélson Rodriguesera um cronista tão perfeito que nemprecisava ver o jogo. O resultado dapartida, as escaramuças dos jogado-res, os esquemas táticos, todas essasbobagens não passavam de detalhessecundários aos olhos do gênio. ANélson Rodrigues importava a esca-lação do adjetivo certo na frase cer-ta. Pouco interessava a distribuiçãode beques ou atacantes no retângu-lo verde. O relato dessas banalidadesé tarefa que cabe aos “idiotas da ob-jetividade” – estes pobres seres que sósão capazes de enxergar a rala super-fície dos fatos.

A missão que Nélson Rodriguesoutorgou a si mesmo era outra: tra-duzir em palavras a dimensão épi-ca da maior paixão brasileira – ofutebol. Para que, então, perder tem-po com miudezas? Para que ouvir onarrador descrever o jogo na tv? Paraque saber os nomes dos jogadores doPeru? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não es-tava inspirado?

“Em futebol, o pior cego é o quesó vê a bola. A mais sórdida peladaé de uma complexidade shakesperi-ana. Às vezes, num córner bem oumal batido, há um toque evidentís-simo do sobrenatural”, ele escreveuuma vez.

Nélson Rodrigues preferia se ocu-par de questões metafísicas – como,

por exemplo, a inapetência de nos-sos escritores brasileiros em tratar dofutebol. Numa de suas tiradas clás-sicas, reclamou :

“Nossa literatura ignora o fute-bol – e repito: nossos escritores nãosabem cobrar um reles lateral.”

A frase é erradamente citada novea cada dez vezes em que aparece emtextos publicados em nossos jor-nais. Virou lugar-comum dizer queNélson Rodrigues reclamava de quenossos escritores não sabem nembater um escanteio. É uma inexati-dão. A implicância de Nélson eracom literatos incapazes de cobrarum lateral. Mas, a bem da verdade,os que deturpam a queixa de Nél-son não estão inteiramente errados:não apareceu ainda um escritorbrasileiro capaz de bater um escan-teio ou um lateral...

Alheio a esta fraqueza nacional,Nélson parece distante da disputaque se desenrola, ali, diante de nós,no vídeo da tv, entre a Seleção Bra-sileira e o escrete peruano. Faz ao

repórter uma pergunta incrível:“Quem é o nosso adversário

hoje?”Informo que é o Peru.Fique registrado para a posteri-

dade que o maior cronista do fute-bol brasileiro não precisava necessa-riamente saber quem era nossoadversário.

Quando Zico faz um a zero, aostrinta e quatro minutos do primeirotempo, Nélson interrompe a entre-vista para inaugurar, aos brados,uma nova expressão exclamativa:

“Que coisa beleza! Que coisabeleza!”

Depois, pede à família:“Pessoal, com licença dos nossos

visitantes, vamos fechar essa má-quina porque já estou começando aficar nervoso.”

Aos não iniciados nas sutilezasdo dialeto rodrigueano, esclareça-seque “fechar a máquina” significadesligar a televisão – o que, aliás,não foi feito. Nélson dispara, en-tão, um julgamento entusiasma-do sobre o escrete dirigido porCláudio Coutinho:

“Mas esses rapazes são uns gê-nios! Uns gênios!”

O repórter seria novamente sur-preendido. Nélson já perguntaraquem era “nosso adversário”. Ago-ra, ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto:

“Mas já houve dois gols?”

Digo a ele que não: é apenas arepetição do primeiro gol. O placaré um a zero. O gênio da raça con-corda com um “ah, sim!”. Teria doisoutros motivos para vibrar: o mi-neiro Reinaldo – que entraria nolugar de Nunes – faria dois gols,aos 20 e aos 40 minutos do segun-do tempo, para fechar o placar :Brasil 3 x 0 Peru.

Corro à banca no dia seguintepara comprar o jornal. O que diabosNélson Rodrigues teria escrito sobreo jogo que eu não o deixara ver? Eis:

“Vejam vocês como o futebol éestranho – às vezes maligno e fe-roz. Mas não quero ter fantasiasesplêndidas. O jogo Brasil x Peru,ontem, no Mário Filho, não assus-tou a gente. Diz o nosso João Sal-danha: “O Brasil fez seu jogo, jogobrasileiro”. Vocês entendem? Nãohá mistério. O brasileiro é assim.Quando um de nós se esquece daprópria identidade, ganha de qual-quer um. Outra coisa formidável:na semana passada, um craque

nosso veio me dizer : ‘Nélson, épreciso que você não se esqueça: aocretino fundamental, nem água.’O jogo foi lindo.”

Penso com meus botões que Nél-son não precisou esperar pelo iníciodo jogo para escrever a crônica. Comcerteza, despachou o texto para ojornal antes da chegada do repórterintruso. Os “idiotas da objetividade”se encarregariam de registrar, naspáginas esportivas, o jogo real. Por-que o jogo de Nélson seria lindo dequalquer maneira. E aos cretinosfundamentais? Aos cretinos funda-mentais, nem água.

A lista de surpresas nessa tardeno Leme não se esgotaria aí. Quan-do deu por encerrada a entrevista,Nélson pergunta ao repórter:

“E então, você me achou muitoreacionário?”

Não, claro que não. Em seguida,pega o telefone, liga para a cozinhado Hotel Nacional, identifica-se efaz uma pergunta a um maître pro-vavelmente atônito:

“Companheiro, aqui é NélsonRodrigues. Qual é o prato do dia?”

Ouve a resposta em silêncio,desliga o telefone. Recolhido ao sos-sego do lar, no fim de tarde de umferiado, já parcialmente debilitadopor doenças que lhe encurtavam ofôlego, Nélson jamais se animariaa ir até o Hotel Nacional para sa-borear o prato do dia. Mas fez

Nélson – A coisa é a seguinte: es-crever para mim, muito mais doque uma decisão profissional, é umdestino. Escrever é o meu destino!Não é um caso de opção. Eu só ti-nha esta opção, uma vez que nas-ci assim.

GENETON – O SENHOR SE CONSIDERA UM

ESCRITOR POR VOCAÇÃO ?Nélson – Digo que, no meu caso,

eu nem precisava de vocação, por-que o negócio era o óbvio – o óbvioululante! Eu tinha de ser aquilo. Sevocê chegasse junto de mim e pedis-se para eu ter outra profissão, podiaaté dar dinheiro para que eu tives-se outro destino, não seria absolu-tamente possível.

GENETON – O INÍCIO FOI COM FICÇÃO OU

COM JORNALISMO?Nélson – Eu estava no quarto ano

primário na Escola Prudente de Mo-rais. Uma dia, a professora – quemandava a gente desenhar e coloriruma vaca de estampa, para que nós,

alunos, fizéssemos em torno da vacatoda uma história – disse: “Olhemaqui: Hoje vocês vão ter de escreverda própria cabeça. Agora não é maissobre a vaca pintada”. E então deixouque cada um de nós fizesse o seu dra-ma, o seu projeto dramático.

Duas histórias tiveram o primei-ro lugar. A do meu adversário erauma história de um daqueles mag-natas que davam passeios. Ele des-crevia o passeio de um rajá no seu ele-fante favorito. E pronto. A minha foiinteiramente diferente. Eu fiz a his-tória de uma moça que era uma fera.Quase uma dama do lotação. Umdia, o marido chega em casa maiscedo e, quando empurra assim (imi-ta o gesto de alguém forçando o trin-co de uma porta), entra em casa,segura o amigo traidor e enfia neleuma faca. Eu tive o primeiro lugar eempatamos. O prêmio ao rajá e aorespectivo elefante era uma conces-são ao convencional.

Isto foi a primeira vez em que euera ficcionista. Todo o meu futuroestá aí. Era a história de uma pobreadúltera que morreu de maneira tãomelancólica. O traidor morreu tam-bém de maneira melancólica: direi, abem da verdade, que a minha histó-ria causou um horror deliciado. Euera, para todos os efeitos, um peque-no monstro.

Eu comecei com treze anos a tra-balhar como jornalista profissional

Cenas de um encontro com um gênio:“Ao cretino fundamental, nem água”

questão de tirar a dúvida com omaître. Para quê?

As cenas que Nélson Rodriguesprotagonizou nesta tarde no Lemejá valiam por uma entrevista. Maso interrogatório ainda iria começar.A fera dispensa ao repórter um tra-tamento afetuoso: chama-me de“meu bem”. Alheio ao eventualcansaço de Nélson, estico a conver-sa até o limite máximo. Não querodesperdiçar a chance de ouvir de vivavoz as tiradas do cronista inigualá-vel. A irmã do gênio é que, delicada-mente, interrompe o questionáriono instante em que Nélson fez umapausa para engolir uns comprimi-dos. Ao autografar o exemplar dolivro de crônicas O Reacionário –consultado durante a entrevista –,Nélson Rodrigues oferece-me umadedicatória dúbia: “A Geneton,amigo doce e truculento – NélsonFalcão Rodrigues”.

Quase um quarto de século de-pois (a entrevista foi gravada no dia1 de maio de 1978) ouço novamen-

te a fita, releio a transcrição da en-trevista. Confirmo que Nélson Ro-drigues é um caso raríssimo de escri-tor que falava como escrevia. Só háoutro caso : Gilberto Freyre. Trans-critas, as entrevistas dos dois emcertos momentos se assemelhamaos textos que escreviam, o que éuma façanha: a linguagem faladanormalmente é mais pobre que a lin-guagem escrita. Mas a regra – guar-dadas as naturais diferenças entre oque se fala e o que se escreve – nemsempre valia para os dois.

A entrevista foi embalada por ci-tações ao livro O Reacionário, lança-do por Nélson meses antes. Duran-te toda a entrevista, Nélson fez,repetidas vezes, citações a históriase personagens descritos na obra. Devez em quando, entre uma respos-ta e outra, ele mudava repentina-mente de assunto; parecia afogadoem divagações. Chegou a reclamar:“Eu estou tendo lapsos lamentá-veis....”. Assim, frases de O Reacio-nário complementam, nesta entre-vista, as respostas gravadas por Nél-son Rodrigues.

Os melhores momentos do diá-logo improvável entre Nélson Rodri-gues – o gênio que se intitulava “aflor da obsessão” – e o repórter intruso:

GENETON MORAES NETO – QUANDO FOI

QUE NÉLSON RODRIGUES DESCOBRIU QUE

NASCERA PARA ESCREVER?

8 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

e repórter: esse é o caso. Não teriajeito: eu teria de meter uma bala nacabeça…

GENETON – PARA O SENHOR – QUE É CON-SIDERADO UM MESTRE NESSE OFÍCIO – O QUE

É NECESSÁRIO PARA RETRATAR, NUM TEXTO

TEATRAL, O MUNDO DESSES PERSONAGENS

SUBURBANOS DAS NOSSAS CIDADES?Nélson – Em primeiro lugar, o

sujeito tem de ser ficcionista. Precisaser inteiramente sensível ao primeirochamamento da profissão. Nãobasta apenas o gosto. Não é apenasuma facilidade, mas um destinodestinodestinodestinodestino”(pronuncia em tom dramático estapalavra)

GENETON – A INSPIRAÇÃO É UMA ENTIDA-DE QUE EXISTE PARA O SENHOR?

Nélson – O negócio da inspira-ção é o seguinte: eu considero a ins-piração, ao contrário de Valèrie, quesó via a máquina individual do fic-cionista. Aquilo é uma coisa que oficcionista apura com o tempo, de-senvolve com a experiência.

GENETON – DENTRE AS PEÇAS QUE ESCRE-VEU, QUAL A QUE O SENHOR CONSIDERA CO-MO DEFINITIVA, COMO A OBRA ACABADA DO

DRAMATURGO NÉLSON RODRIGUES?Nélson – O mais importante

para mim, até o momento, é o drama-turgo. Volta e meia, me sinto muitoperplexo diante de certas manifesta-ções que me induzem ao teatro,embora o teatro tenha um defeito:tenho, de vez em quando, vontade defazer certas experiências não teatraisdentro da área de literatura, mas semter nada de dramático.

GENETON – DENTRE AS PEÇAS JÁ ESCRITAS,QUAL É A PREDILETA?

Nélson – Tenho várias predile-tas. Eu diria mesmo que são todasas prediletas. Não tenho prediletas(ri). Todas são favoritas. Já penseimuito em querer discriminar qual aminha melhor peça, mas não sei.

GENETON – QUE AUTORES BRASILEIROS DE

HOJE O SENHOR CONSIDERA COMO VERDA-DEIROS ARTISTAS DO TEATRO?

Nélson – Vou pular esta, porquetenho autores que são inimigos meus.Pior do que o inimigo é o amigo. Umautor que é um amigo tem todos osdefeitos…

GENETON – O SENHOR DIZ SEMPRE QUE “A

ADMIRAÇÃO CORROMPE”. É O CASO?Nélson – É isso, é o caso. A admi-

ração corrompe. O amigo que é onosso maior torcedor não é o mai-or coisa nenhuma, porque ele pró-prio não consegue se prender. Então,começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, onosso amigo, o inimigo, com amaior facilidade, então eu prefiro oinimigo (ri).

GENETON – SE O SENHOR FOSSE LEVADO AFAZER UMA HIPOTÉTICA OPÇÃO ENTRE O

TEATRO E O JORNALISMO, QUAL DOS DOIS

PREFERIRIA?Nélson – O teatro! E não é um

problema de qualidade intelectualnão.

GENETON – O JORNALISMO BRASILEIRO

CONTINUA PADECENDO DE OBJETIVIDADE –QUE O SENHOR CONSIDERA UMA “DOENÇA

GRAVE”?Nélson – O idiota da objetivida-

de é o jornalista que tem grandefama, todo mundo, quando faladele, muda de flexão. Mas eu achoo idiota da objetividade um fracas-so. Isso num julgamento absoluto.O idiota da objetividade é tambémum cretino fundamental.

GENETON – QUAIS FORAM AS CAUSAS DA

OCORRÊNCIA DESSE CULTO À OBJETIVIDADE

QUE, NO CONCEITO DO SENHOR, CORRES-PONDE À FALTA DE EMOÇÃO?

Nélson – Pois é, é esse o negócio (ride novo). É a falta de complexidade dosujeito que diz só a coisa certa ou apa-rentemente certa e não vê que todofato tem uma aura. A verdade é queo fato só, em si mesmo, é uma boadroga. Olhe aí (e mostra a crônica ADesumanização da Manchete):

“O Diário Carioca não pingouuma lágrima sobre o corpo de Getú-lio. Era a monstruosa e alienada ob-jetividade. As duas coisas pareciamnão ter nenhuma conexão: o fato ea sua cobertura. Estava um povointeiro a se desgrenhar, a chorar lá-grimas de pedra. E a reportagem,sem entranhas, ignorava a pavorosaemoção da população. Outroexemplo seria ainda o assassinato deKennedy. Na velha imprensa, asmanchetes choravam com o leitor.A partir do copidesque, sumiu aemoção de títulos e subtítulos. Eque pobre cadáver foi Kennedy naprimeira página, por exemplo, doJornal do Brasil. A manchete humi-lhava a catástrofe. O mesmo e im-pessoal tom informativo. Esta-va lá o cadáver, ainda quente. Umabala arrancara o seu queixo forte,plástico, vital. Nenhum espanto namanchete. Havia um abismo entreo Jornal do Brasil e a cara mutilada.Pode-se falar na desumanização damanchete.”

GENETON – A AUSÊNCIA DE UM PONTO DE

EXCLAMAÇÃO NUMA MANCHETE FAZ FALTA

AO LEITOR COMUM?Nélson – Faz. Eu digo o seguinte:

na minha infância, havia primeiroo Correio da Manhã, um jornalaço.E havia A Noite – que vendia mui-to mais. E era um jornal muito maisamado pelo leitor. A Noite era umjornal amado (acentua a voz, ergue osbraços). O sujeito comprava A Noi-te disposto a ler ou disposto a nãoler. Não fazia mal isto. Ler ou nãoler era um detalhe insignificante.Mas o povo gostava desse jornal. Eesse antigo jornalismo permitia, porexemplo, que você fosse fazer a co-bertura de um incêndio e levasse namão uma casa de pássaro, uma gai-ola e metesse a gaiola com um pás-saro lá num certo ponto da casa emchamas. E aí o repórter que não eraidiota da objetividade dizia que onosso querido fotógrafo ouviu todaa cantoria do canário. E terminavadizendo: “Morreu cantando” (a essaaltura, Nélson Rodrigues concede umaentonação teatral a esta frase). O re-

pórter fora cobrir um incêndio. Maso fogo não matara ninguém. E amediocridade do sinistro irritara orepórter. Tratou de inventar um pas-sarinho: enquanto o pardieiro eralambido, o pássaro cantava, canta-va. Só parou de cantar para morrer.

A história desse canário fez umsucesso tremendo. Um sujeito que-ria uma vala especial para o caná-rio, o nosso querido canário cantor.Era lindo. O jornalismo de antiga-mente era mais ou menos assim.Hoje, a reportagem de polícia estámais árida do que uma paisagemlunar. Lemos jornais dominadospelos idiotas da objetividade. A ge-ração criadora de passarinhos parouem Castelar de Carvalho, o autordessa reportagem sobre o incêndio.Eis o drama: o passarinho foi subs-tituído pela veracidade, que, comose sabe, canta muito menos. Daíporque a maioria foge para a televi-são. A novela dá de comer à nossafome de mentira.

GENETON – QUE FATOS OU SITUAÇÕES BRA-SILEIRAS O SENHOR CONTEMPLARIA COM

UM PONTO DE EXCLAMAÇÃO NUMA MAN-CHETE DE JORNAL?

Nélson (pensativo, com olhar dis-tante) – Deixe-me ver… O negócioé o seguinte: houve num desastreuma coisa atroz que foi uma explo-são. Morreram seiscentos sujeitos,segundo as man-chetes da oca-sião. Todo mun-do fazia coro…E outro caso derepórter que nãoera idiota da ob-jetividade: o su-jeito foi fazer acobertura de umdesastre de trem. Geralmente, emdesastre de trem, morria gente praburro. Agora, morre muito menos,não sei por quê.

Mas qual é o fato? Deixe-mever… Ah, o suicídio de Getúlio Var-gas foi de uma brutalidade incrível.Uma coisa bonita é que foi umacoisa misteriosa, aí é que não entrouobjetividade nenhuma. Morreu,então o cara passa a ser um deus. O

que é que você pode fazer contra ocara? Deu um tiro no peito, ia serdeposto. E só porque ia ser depostoele se mata.

Veja só: no princípio da minhainfância havia o pacto de morte.Havia sujeitos que se amavam tan-to que já não suportavam mais opróprio amor. Então, o que fazia ele?Propunha à pequena o suicídio, umpacto suicida. Rara era a pequenaque duvidava. O lindo era a vonta-de, o encanto com que esse par deamorosos se matava e cumpria oseu destino. Esse é que é o caso.

GENETON – QUER DIZER ENTÃO QUE NA HIS-TÓRIA RECENTE DO BRASIL O SUICÍDIO DE

GETÚLIO VARGAS SERIA O ÚLTIMO GRAN-DE FATO QUE MERECERIA UM PONTO DE EX-CLAMAÇÃO DO SENHOR NUMA MANCHETE

DE JORNAL?Nélson – Olhe: quando eu digo

merecer a manchete de jornal… (in-terrompe, olha para a televisão, comen-ta a iminência de um gol da seleçãobrasileira, distrai-se, retoma a conversade um ponto anterior). Você compre-endeu como é o caso? Antes de cer-to tempo aí, achavam que era umacoisa gravíssima o sujeito se matar,era uma covardia. E nem ele nem amenina acreditavam que isso fosseum defeito, o defeito de se matar:alguém ter o direito de destruir opróprio amor e o amor do outro.Mas os dois se destruíram. O sujeitoachava que era uma maneira decoroar o próprio amor.

Agora, a nossa realidade está re-almente muito pobre, muito vazia,sem um certo apelo dramático.Ninguém hoje quer morrer, nin-guém quer se suicidar! Ali o sujeitosó queria destruir o amor. E aí asogra ia cuspir na morte do sujeitoque lhe matara a filha.

GENETON – O SENHOR LÊ A CHAMADA IM-PRENSA ALTERNATIVA?

Nélson – Alternativa o quê?

GENETON – A IMPRENSA ALTERNATIVA, ESSES

NOVOS JORNAIS QUE TÊM SURGIDO, O SE-NHOR LÊ?

Nélson – Eu leio de vez em quan-do mas não faço questão, porquejornal é uma coisa inquietante. Ojornal não é o jornal do dia, é o jor-nal da véspera. Há anos não leio

um jornal quenão seja rigoro-samente o jor-nal da véspera.Só sai o jornalda véspera enunca o jornaldo próprio dia.São fatos da vés-pera , figuras da

véspera. O fato do dia não existe eou só existe para rádio e as tvs. Nopassado, a notícia e o fato eram si-multâneos. O atropelado acabavade estrebuchar na página do jornal.E assim o marido que matava amulher e a mulher que matava omarido. Tudo tinha a tensão, amagia, o dramatismo da própriavida. Mas, como hoje só há jornal davéspera, cria-se uma distância entre

nós e a notícia, entre nós e o fato,entre nós e a calamidade pública ouprivada. Servem-nos a informaçãoenvelhecida. Nós, jornalistas, é queestamos mais obsoletos, mais forade moda do que charleston, do queo tango.

GENETON – NÃO HÁ NENHUM FATO DO DIA…Nélson – Pelo menos a gente tem

essa impressão. O que nós chamá-vamos antigamente de furo nãoexiste mais. Todos hoje acham quepodem viver sem o furo, ao passoque, no meu tempo, quando eu eragaroto, um furo de reportagem eratudo. Era o grande momento dacarreira.

Agora, para falar de manchete,outro fato formidável foi o seguin-te: antigamente, o Largo do SãoFrancisco era o local próprio para osujeito se manifestar. E quandohavia muitos interessados em semanifestar, havia o diabo, o diabo!Um dia, fizeram uma coisa qualquercom o Chefe de Polícia. E o Chefe dePolícia – que era um santo – assinouuma portaria proibindo os estudan-tes não sei de quê nem ninguémsabe. Tudo que houve foi por contada falta de bossa, da falta de inteli-gência dos nossos queridos estudan-tes. E então os estudantes resolve-ram fazer um “enterro” do Chefe dePolícia – que era um velho general,sujeito que acreditava em honra,num tempo em que ninguém sabiao que era honra. O general era umsanto homem e então achou queaquilo era brincadeira de estudante.E lá foi ele dizendo aos queridos in-vestigadores que não queria machu-car ninguém. Nada de bala, nada depunhal, dizia o nosso general. E nodia do “enterro”, os estudantes car-regavam o caixão, todos levandouma vela acesa. Era uma coisa só,com mil vozes cantando a marchafúnebre, dando vivas à morte. Doisou três homens da Polícia, furiososcom a questão, simplesmenteacharam de matar três estudantes.Aí foi aquela coisa tremenda. Hou-ve então uma manchete, a man-chete mortal da imprensa brasilei-ra. Um jornal descobriu uma man-chete fantástica (muda a flexão devoz, entusiasmado). A manchetequase derruba a Presidência da Re-pública, a Vice-Presidência, o Che-fe de Polícia imediatamente se de-mitiu, foi embora, não quis maisnada, achando-se culpado. Inventa-ram uma manchete que até hoje eugosto de ouvir…

GENETON – QUAL FOI?Nélson – Era assim: Primavera de

Sangue (pronuncia cada uma das síla-bas devagar, como se saboreasse as pa-lavras). A manchete quase derrubao Presidente da República, o Minis-tro da Guerra, um negócio terrível.E tudo isso pela beleza que se atri-bui à manchete. Quero dizer que, sevocê quiser, com uma frase bemtrabalhada, você resolve o caso.

GENETON – DE QUANDO FOI ESSA MANCHETE?Nélson – Eu era garoto, tenho

“A Noite era umjornal amado.

O sujeitocomprava A Noite

disposto a lerou a não ler.

Ler ou não lerera um detalheinsignificante.”

“A novela dá decomer à nossa

fome de mentira.”

9Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

agora sessenta e cinco anos. E foi naaltura dos meus dez anos. Agora, eusei disso tudo pelas informações dopessoal. O cara que fez esta manche-te ganhou uma fortuna, quinhen-tos mil réis. Só o Rockfeller tinhaesse dinheiro na ocasião (ri).

GENETON – O SENHOR SE INTERESSA POR

POLÍTICA PARTIDÁRIA?Nélson – Eu não sou ninguém

para dizer certas coisas, mas o bomno brasileiro é que ele, sem saber denada, diz coisas horrendas.

GENETON – QUAIS SÃO OS POLÍTICOS BRA-SILEIROS QUE O FASCINARAM OU FASCINAM

HOJE? EXISTE ALGUM NOME QUE O SENHOR

QUEIRA CITAR?Nélson (Pausa de alguns minutos,

ele está pensando) – Num desses mo-mentos, quem é o sujeito? Já come-ço a ficar amargurado, porque para

achar um sujeito, poder dizer umpolítico interessante… Eu acho quesó Napoleão Bonaparte! (ri).

GENETON – O SENHOR JÁ DISSE QUE UM DOS

TRAÇOS DO CARÁTER NACIONAL É O FATO DE

QUE O BRASILEIRO ADERE A QUALQUER PAS-SEATA. QUAIS SERIAM OS PRINCIPAIS TRA-ÇOS DO NOSSO CARÁTER NACIONAL?

Nélson – O brasileiro é um tipogozadíssimo. O diabo é que o brasi-leiro não pode se esforçar muitoporque senão cai na chanchada trá-gica. O brasileiro é um sujeito quegosta de fazer farra, é um desses queem pleno velório põe a mão na viú-va. E a viúva é também um casosério porque este negócio de viúvavocacional é um fato. Há realmen-te um repertório sensacional decasos. O que atrapalha o brasileiroé o próprio brasileiro. Que Brasilformidável seria o Brasil se o brasi-leiro gostasse do brasileiro. Houveum tempo em que nem o Departa-mento de Pesquisa do Jornal do Bra-sil sabia quem era o brasileiro. Mas se

um sujeito se apresentava como bra-sileiro, as pessoas de bem respondi-am: “Não te conheço!”. E muitos du-vidavam que o Pão de Açúcar ou opoente do Leblon fossem brasileiros.

Olhe: houve tempo em que amulher mais séria do mundo, maisdigna, mais respeitável se deixavaenvolver por um poeta, se abando-nava por um soneto. Era outra vida.De repente eu fico olhando: eraoutra vida, outro homem. E haviaa figura do bêbado. Hoje, o bêbadoé um sujeito que a psicanálise curadepois de quinze anos de tratamen-to, quando, aliás, a cura já não adi-anta mais nada. Eu tinha um tioque se enamorou da minha tiaYayá. E se você perguntar “Qual foio maior homem que você viu nomundo?”, eu acho que esse tio estáno segundo ou terceiro lugar, por-que o desgraçado, ele amava a mi-

nha tia Yayá. Ele já não precisavamais beber para estar bêbado, de altoa baixo. E, com isso, fazia uma con-siderável economia de dinheiro…Em minha família houve um bêba-do indubitável, foi este meu tioChico. Como sujeito que bebemuito, ele durou pra burro. Morreu

com oitenta e tantos anos, semprebêbado, rigorosamente. Vem dessetio antigo o meu horror ao bêbado.Mas ele me ensinou também umasérie de coisas lindas. Por exemplo: oamor. Meu tio Chico me ensinou aamar. Embriagou-se em cada minu-to da lua-de-mel. Bebeu antes, du-rante e depois. Yayá costurava parao casal não morrer de fome. Mas eu,menino, queria amar e ser amadocomo esse alcoólatra enlouquecido.Era um amor que hoje não existiria.A minha tia Yayá deu graças a Deusque ele tivesse se apagado. Agoraninguém ama mais, eis o que comeceia descobrir desde os treze anos debatalha. Você ponha aí: o meu tioChico e sua bem amada Yayá. Eraum negócio impressionante.

GENETON – POR QUE É QUE O SENHOR DIZ,DESSE JEITO, QUE HOJE NINGUÉM AMA MAIS?

Nélson – Meu bem, se a evidên-cia objetiva e espetacular vale algu-ma coisa, o homem não ama mais.E não ama mais porque o nosso ce-nário se povoa de sujeitos que sãodébeis mentais absolutos. O sujei-to já não acredita em amor, pracomeço de conversa. Não acreditaem amor. O sujeito acha que todomundo é a mesma coisa, e apesardisto, se diz marxista. É uma coi-sa esterilizante que há na vida bra-sileira, sobretudo carioca. O cario-ca é esse sujeito fascinante só nabase dos defeitos que tem. Arran-ja logo casamento e é uma besta.E todo mundo diz: “Oh, que coisa,que amor!”.

E eu me lembro de uma meninagrã-fina mesmo… Aliás, diga-se depassagem que eu não acredito naexistência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é in-crível esse negócio da mulher moder-na (fala com a voz arrastada, como seentoasse um lamento). Nunca ela foitão infeliz e tão pouco feminina. Eu

tive um cachorro, o nosso queridoBoogie-Woogie, que ficava diante daminha casa amando sua queridacachorra. Ela ficava lá, digníssima,empinada, recebendo as homena-gens. Os carros passavam e acha-vam o cachorro louco. E esse nossoamigo, o cachorro, era muito maishumano que a mulher dos nossostempos. Elas se meteram a bestas.

GENETON – O BRASILEIRO CONTINUA SEN-DO UM “NARCISO ÀS AVESSAS QUE COSPE NA

PRÓPRIA IMAGEM”, COMO O SENHOR DIZIA?Nélson – Continua, continua!

GENETON – QUAL É O REMÉDIO PARA ISSO?Nélson – O remédio para isso?

Nunca. Para isso não há remédio.Veja que o Brasil ganhou três vezeso campeonato mundial. Se ganhoutrês vezes, e se o brasileiro não fos-se o otário que é, estava tudo salvo,tudo salvo. Ganhou três vezes nofutebol, feito como esse ninguémteve e não se conhece isso.

O brasileiro tem virtudes. É bomfazer uma ressalva nesses defeitosque digo. Isso o torna extremamen-te simpático. Aquela volubilidade…O sujeito ora ama aqui, ora amaali… Vai lá pra chegada do trem elé-trico, vai arranjando os seus amoresque, aliás, duram geralmente vintee um dias, quando duram. Há pes-soas que casam e lá na sacristiaestão os convidados fazendo apos-tas sobre a duração daquele casa-mento. E você pode ficar sossegadoporque aquele casamento está intei-ramente liquidado antes do come-ço. Há amores, entendeu, que osujeito traz consigo e realmente sãosinceros. Mas evidentemente, nãoexiste este amor, porque o nossoquerido Brasil…

Olhe: em 1958, quando o nossoquerido Brasil voltou campeão daCopa, foi o maior futebol que ja-mais se viu…

Diga-se de passagem que eu con-sidero o brasileiro o maior sujeito domundo. O europeu já está esgota-do. O europeu tem na casa dele piresde mil anos. Escadas de mil anos.Tudo é velho pra burro. Já com obrasileiro é inteiramente diferente.É como se ele estivesse sempre háquinze minutos do fato. Um negó-cio genial.

(Nélson tinha mudado de assunto;volta ao futebol) Basta o sujeito pas-sar quinze minutos assistindo a

um jogo importante desses cama-radas. Esses rapazes são uns gêni-os. Mas o sujeito pensa que isso nãoé importante e sai, nem liga. Masquando o negócio vai se transmitirem forma de gorjeta, aí então o bra-sileiro é um feroz…

GENETON – O SENHOR DIZ TAMBÉM QUE

A PAISAGEM DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS ÉTRISTE SEM IMAGINAÇÃO…

Nélson – É. Como se não bastas-se a padronização de caras, corpos,costumes, usos, idéias, valores, hátambém a estandardização da pai-sagem. Tudo prodigiosamente igual.É trágica a falta de imaginação dapaisagem no país desenvolvido. Odesenvolvimento é burro, ao passoque o subdesenvolvimento podetentar um livre, desesperado, exclu-sivo projeto de vida.

O diabo é que o Burle Marx, noBrasil, faz o que nem o europeu farialá. O nosso Burle Marx retira a florda paisagem. Dizem que o Amazo-nas é a coisa mais gigantesca domundo. O nosso Burle Marx só usauma cor, a verde, e danem-se asoutras cores. Fiz esta anotação e eleme disse numa entrevista dele queo teatrólogo Nélson Rodrigues, comcerteza, não estava olhando para apaisagem, não viu outra cor, se nãoa verde. Fui espiar lá e, realmente, o

único paisagista do Aterro do Fla-mengo é o Exército, porque acrescen-tou, ao Monumento dos Pracinhas,algumas flores, umas dezessete flo-res. O paisagista foi o Ministro daGuerra. O nosso querido Burle Marx,a quem muito admiro, não pôs flo-res no Aterro, e com a maior tranqüi-lidade do mundo. Não precisa pres-tar atenção… O negócio das co-res… (Nesta altura da conversa, ele rie confessa: “Eu estou tendo lapsos la-mentáveis…”).

Você sabe o que é o sujeito fazeruma bobagem e negar a verdade? Seele aceitar o erro, está bem. Agora,quando o sujeito fica impune… Aimpunidade faz de um São Francis-co de Assis um canalha. Ele come-te um ato e ninguém o prende, nin-guém o ameaça, sequer.

É este o caso de Burle Marx. Co-mo ele está faturando cada vezmais, não liga por ter feito um jar-dim onde só existe uma cor e ondenão tem uma violeta. Ele está cadavez faturando mais, e mais fiel aosseus erros, porque descobriu que oerro está muito mais perto do êxi-to. Já falei pra burro, agora vocêestá satisfeito, não é? E vai querercontinuar…

“Em 1958, quandoo nosso querido

Brasil voltoucampeão da

Copa, foi o maiorfutebol que

jamais se viu.”

“É incrível essenegócio da

mulher moderna.Nunca ela foi tão

infeliz e tãopouco feminina.”

“Se o brasileironão fosse o otário

que é, estavatudo salvo.”

AG

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GLO

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10 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

“O brasileiro éum feriado.”

“O Brasil é um elefantegeográfico. Falta-lhe,porém, um rajá, isto é,um líder que o monte.”

“Sou a maior velhice daAmérica Latina. Já meconfessei uma múmia,com todos os achaquesdas múmias.”

GENETON – AGORA, UMA EXPLICAÇÃO PARA

AS CAUSAS DO RANCOR E DA IRONIA FEROZ

QUE O SENHOR CULTIVA DIANTE DE SEUS PER-SONAGENS, COMO POR EXEMPLO, “AS VER-DADEIRAS GRÃ-FINAS”…

Nélson – O que eu acho é que agente diz “grã-finas” sem achar queelas tenham obrigação de agir comogrã-finas. E elas não agem como de-viam ser. Maria Antonieta podia di-zer: “Ah, eu sou grã-fina…”. Por isso,certa vez, o povo estava urrando defome de fora do palácio e ela disse:“Se não tem pão, comam brioche”.Então, a Maria Antonieta é quepoderia bradar: “E, portanto, euposso dizer que sou grã-fina”. Eladerrubou um erro, derrubou umregime horrendo. A única grã-finado mundo é a Maria Antonieta. Deentão para cá nunca mais vi umagrã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porquetem dinheiro à beça para comer. Ecome. Mas não existe. A nossa que-rida grã-fina precisa de dinheiro.Como precisa de dinheiro, e estáfuriosa porque não tem, então assu-me diversas atitudes, como, porexemplo, dizer numa mesa: “Naminha casa, só as criadas vêem tele-visão”. As grã-finas não existem. Aúnica descoberta que eu fiz com asgrã-finas foi esta: elas não existem.

GENETON– E AS “ESTAGIÁRIAS DE CALCA-NHAR SUJO”?

Nélson – Já as estagiárias têmuma existência feroz…(ri, acentua otom de voz). Sobre nossa queridaestagiária, eu vou te dizer o seguin-te: é incrível. Meninas que não ser-viriam para babá nem poderiamentrar num cinema para ver filmefrancês ou meu próprio filme, ADama do Lotação, fazem atitudes queos bocós consideram geniais.

O que assombra na estagiária nãoé a sua graça pessoal, mais discutí-vel, menos discutível, segundo cadacaso. O que me assombra são as suasperguntas e repito: são as perguntasque tornam a estagiária um ser tãomisterioso e absurdo como certasimagens de aquário. Uma dessasmeninas irreais de Redação é bemcapaz de atropelar um presidente,um rajá, um gangster ou um santoou, simplesmente, uma dessas ve-lhas internacionais que embarcamem todos os aeroportos e perguntar:“Que me diz o senhor, ou a senhora,de Jesus Cristo do Nada Absoluto, doTodo Universal ou da pílula?”

Você veja: uma delas foi incum-bida de entrevistar um milionário.Ligou para a casa do milionário,disse: “Eu queria falar com o Dr.Fulano”. Do outro lado, uma vozresponde: “Dr. Fulano não está pas-sando bem”. E a menina insiste:“Então, pergunta a ele se…”. Des-ligam e a estagiária disca novamen-te, não com o dedo, mas com o lá-pis: “Eu queria falar com o Dr. Fu-lano”. A pessoa diz, desatinada:“Minha senhora, o Dr. Fulano aca-ba de ter um enfarte. Enfarte, mi-nha senhora, enfarte. A senhoraquer que eu diga mais do que estoudizendo?”. E a estagiária: “Vai lá e

pergunta a ele o que é que ele achada pílula. Eu espero”.

A família do enfartado toda sedescabelando… o que, aliás, é raro,porque, no nosso tempo, a famíliachora muito pouco. O inimigo damorte – que é o clínico – dá logo umfurioso calmante.

A estagiária então liga novamen-te. Dá sinal de ocupado. Continuou,com uma obstinação fatalista. Esempre ocupado. Uma hora depois,atendem. Era uma mulher que ouestava gripada ou chorando. A es-tagiária diz: “Por obséquio, eu que-ria falar com o Dr. Fulano”. Respondea voz feminina: “O Dr. Fulano aca-ba de falecer”. E a estagiária: “A se-nhora diz a ele que é só uma pergun-tinha”… e etc.

Agora, há um dado que me pa-rece essencial. As entrevistas das es-tagiárias têm uma virtude rara:nunca saem. Falo por experiênciaprópria. Quase todos os dias, umaestagiária me caça pelo telefone. Eeu falo sobre todos os temas e per-sonalidades. Opinei sobre os Kenne-dy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. Nodia seguinte, abro o jornal e vejo quenão saiu uma linha. Mas uma coi-sa curiosa: não só as estagiárias.Profissionais da melhor qualidadeestão seguindo a mesma linha. Pos-so dizer que a nossa imprensa criouo novo gênero de entrevistas que nãoserão publicadas nem a tiro.

GENETON – O QUE É QUE O RECIFE SIGNIFI-CA PARA O SENHOR HOJE?

Nélson – Eu gosto do Recife praburro. Vim de lá aos cinco anos deidade. Fiquei lá até o ano de 1929.Você veja: me dá pena estar pensan-do no Recife e nunca ir lá. Tenho, emminha memória profunda, um ape-lo de pernambucano pelo Recife.

GENETON – O SENHOR NÃO PENSA EM

VOLTAR?Nélson – De vez em quando eu

faço evocações... (Um dos textos do li-vro O Reacionário traz lembranças dacidade). Toda a minha infância temgosto de pitanga e de caju. Pitangabrava e caju de praia. Ainda hoje,quando provo uma pitanga ou umcaju contemporâneo, sou arrebatadopor um desses movimentos prousti-anos, por um desses processos regres-sivos e fatais. E volto a 1913, ao mes-mo Recife e ao mesmo Pernambuco.Alguém me levou à praia e não sei semordi primeiro uma pitanga ou pri-meiro um caju. Só sei que a pitangaardida ou o caju amargoso foi a minhaprimeira relação com o universo. Alieu começava a existir.

GENETON – O SENHOR NÃO VOLTA AO RE-CIFE PORQUE TEM MEDO DE AVIÃO?

Nélson – Acho chato viajar deavião, não quero voar, a não ser casode vida ou morte. Tenho horror àsviagens. A partir do Méier, começoa ter saudades do Brasil.

GENETON – QUAL FOI A ÚLTIMA VEZ QUE OSENHOR ESTEVE NO RECIFE?

Nélson – Em 1929. Tenho um sa-dio horror de avião.

A coleção de pérolasrodrigueanas daria paraencher uma enciclopédia.Rui Castro organizou,para a Companhia dasLetras, um volume quereúne, sob o título deFlor de Obsessão, as“mil melhores frases”do homem. Se quisesse,reuniria três mil,como estas vinte:

Pérolas rodrigueanas

“Toda oração é linda. Duasmãos postas são sempretocantes, ainda que rezempelo vampiro deDusseldorf.”

“O grande acontecimentodo século foi a ascensãoespantosa e fulminantedo idiota.”

“Na vida, o importanteé fracassar.”

“A Europa é uma burriceaparelhada de museus.”

“Hoje, a reportagem depolícia está mais árida doque uma paisagem lunar.O repórter mente pouco,mente cada vez menos.”

“Daqui a duzentos anos, oshistoriadores vão chamareste final de século de“a mais cínica das épocas”.O cinismo escorre por todaparte, como a água dasparedes infiltradas.”

“Sexo é para operário.”

“O socialismo ficará comoum pesadelo humorísticoda História.”

“A pior forma desolidão é a companhiade um paulista.”

“Subdesenvolvimentonão se improvisa. É obrade séculos.”

“As grandes convivênciasestão a um milímetrodo tédio.”

“Todo tímido é candidatoa um crime sexual.”

“Todas as vaias são boas,inclusive as más.”

“O Presidente quedeixa o poder passa aser, automaticamente,um chato.”

“Não gosto de minha voz.Eu a tenho sob protesto.Há entre mim e minha vozuma incompatibilidadeirreversível.”

“Sou um suburbano. Achoque a vida é mais profundadepois da Praça SaenzPeña. O único lugar ondeainda há o suicídio poramor, onde ainda semorre e se mata poramor, é na Zona Norte.”

“O adulto não existe.O homem é ummenino perene.”

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11Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – VAMOS RESGATAR UM

POUCO DA SUA HISTÓRIA? COMO FOI OSEU INÍCIO PROFISSIONAL?

Eliakim Araujo – Hoje, me prepa-rando para a entrevista, fui mexernuma gaveta e resgatei minha pri-meira carteira de trabalho, eu tinha20 anos. E o meu primeiro contra-to foi com a Rádio Continental,como redator, no dia 1º de junho de1961. Fiz 50 anos de profissão! ARádio Continental era do RubensBerardo. O chefe do jornalismo erao Paulo Goldrajch, um grande cri-minalista, mas também um gran-de jornalista. A gente estudavajunto desde o vestibular e falei:“Paulinho, eu precisava trabalhar,ganhar algum”. E o Paulinho mebotou como redator. Mais tarde,ainda na Continental, peguei arenúncia do Jânio, em 1961, e aanunciei na rádio! Então, passei aser redator e locutor. Eu redigia e iapara o microfone. Tudo era muitoprecário, mas muito bom de apren-dizado. Tinha um rádio-escuta, e asinformações sobre o Jânio eram deque ele pegou um avião e ia paraViracopos, quando renunciou emagosto, logo depois daquela cerimô-nia em que ele condecorou o Gue-vara. E a gente fazia muito deimproviso, do jeito que o telex che-gava! Eram poucas as agências denotícias e eu ia para o microfone elia em cima do telex! Muito legal.

Uma pergunta despertava minha curiosidade, assim queconheci a voz de Eliakim Araujo ouvindo a programaçãoda Rádio Jornal do Brasil, nos anos 1970: por que um locu-tor com aquela impostação ainda não estava na tv? Nãodigo, com isso, que a Rádio JB não fosse o veículo apropri-ado para o seu talento. Mas havia um movimento na tele-visão brasileira da época em busca de novos apresentado-res para os telejornais e a voz de Eliakim certamente nãopoderia passar despercebida. E não passou. Nesta entrevis-ta ao Jornal da ABI, realizada num lindo dia ensolarado naFlórida, em sua casa situada num condomínio à beira de umlago em Penbroke Pines, Eliakim esclareceu essa dúvida econtou muitas histórias importantes dos bastidores daimprensa da época.

O locutor e redator da Rádio JB falou de sua rebeldia, dosmomentos que marcaram sua profissão durante a ditadu-

ELIAKIM

POR FRANCISCO UCHA

É importante estar semprena luta, nunca se acomodar

ARAUJO

ra, da tensão que viveu na Rede Globo ao apresentar o Jor-nal da Globo ao lado da mulher, Leila Cordeiro, e da felici-dade das mudanças. Sim. Aconteceram muitas. A maior detodas: aceitar o desafio de vir para Miami apresentar a ver-são em português do CBS Telenotícias.

Agora, comemorando 50 anos de carreira em plena ati-vidade, Eliakim Araujo fala com entusiasmo dos novos pro-jetos. E Leila Cordeiro nos dá a alegria de sua presença aochegar no final da entrevista a tempo de expor algumasde suas opiniões.

Foi uma tarde muito agradável, mas que deixou abertauma nova questão: com tantos canais na tv por assinaturado Brasil, infestada de programas mal produzidos, por quenão há espaço para um programa produzido em Miami peloprimeiro casal-notícia da tv brasileira? Isso eles não soube-ram responder.

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12 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – VOCÊ NASCEU EM GUA-XUPÉ. QUANDO ENTRA O RIO DE JANEIRO

NA SUA VIDA?Eliakim Araujo – Meus pais são

pernambucanos. Papai era funcioná-rio do Banco do Brasil no Nordeste epara ascender no trabalho viu quetinha que se mudar. Então, de Per-nambuco conseguiu transferênciapara São Paulo, de São Paulo paraMinas, e eu nasci em Minas. Sou oúnico mineiro da família! Depois eleveio para o Rio. No banco, os colegasdele eram quase todos nordestinos eo Rio de Janeiro era uma cidade defuncionalismo público. E papai eraum desses milhares de nordestinosque vinham através do banco ouatravés do funcionalismo público. Euera muito pequeno, vim de carona.Papai trabalhava na agência de Ma-dureira e ali ficamos. Nós éramos seisirmãos. De Madureira fomos para aTijuca, já garoto, adolescente. NaTijuca, fiz o ginásio no Colégio Ba-tista e o clássico no Lafayete. Daí, fiza Faculdade de Direito, não fiz Jorna-lismo. Fui para a Faculdade Federalde Direito em 1961. Sou da últimaturma da FDB, que no ano seguintepassou a ser UFRJ. E eu peguei ogolpe nesse período, exatamente noquarto ano da faculdade.

JORNAL DA ABI – ENTÃO, VOCÊ JÁ TRABA-LHAVA NA RÁDIO?

Eliakim Araujo – Sim, eu entrei narádio no primeiro ano da faculdade,mas não fiquei lá nem um ano,porque eles não pagavam salário,não pagavam nada. No dia da re-núncia do Jânio pagaram um pou-quinho. Consultei um advogado,Cláudio Jorge, que era um advoga-do trabalhista e todos entraramcom uma ação. E a emissora nãomandava advogado, e o juiz deter-minava na hora. Então uma dívidaque era de 60 mil, passou para 142mil, e eu ganhei seis meses depois.Tanto que, com esse dinheirinho,comprei o meu primeiro fusquinha.Aí, com essa experiência de rádio,fiquei um pouco afastado. Volteidois anos depois para a Rádio Eldo-rado, que era uma emissora do Es-tadão no Rio de Janeiro. Uma coisacuriosa: entrei na vaga do José Car-los Araújo. Aí a Globo comprou aEldorado no período em que eu es-tava lá; o José Carlos foi fazer pon-ta no Esporte e eu entrei nessa vagaque surgiu via Orlando de Souza, ochefe dos locutores e amigo do JoséCarlos, que tinha sido meu colega.A partir daí nunca mais larguei.

JORNAL DA ABI – DETALHE MAIS COMO VOCÊ

PASSA DE REDATOR PARA LOCUTOR. DE ONDE

VINHA ESSA VOCAÇÃO?Eliakim Araujo – Entrei na Rádio

Continental para ser redator. A gentepegava o telex e transformava emtexto. Eu estava na faculdade, gos-tava de escrever. Mas apareceu umavaga de locutor, e falei: “Por que nãoposso ser locutor também? Voufazer um teste”. Então passei a acu-mular as duas funções. Por que eudou para isso? Não sei, seria umavocação? O que me lembro é que

desde garoto gostava de ficar imi-tando os locutores de rádio. Tinhaum professor de Química que erameio surdo, e as aulas eram numanfiteatro. A turma era muito sa-cana, e eu ficava lá atrás imitandoa Rádio Relógio Federal: “ao tercei-ro sinal, dez horas e doze minutos”,e a turma inteira “Pi! Pi! Pi!” (imitan-do as batidas do relógio da rádio) Oprofessor ficava doido. Ninguémqueria saber de Química, eram todosdo ramo de letras. (risos) Desde pe-queno eu gostava muito de ouvirrádio, escutar noticiário. Lembro dosprefixos dos noticiários da RádioNacional. Isso é coisa de maluco, sóum cara muito maluco é que guar-da isso! Acabei indo fazer ReportagemDucal na Rádio Continental. Ducalera uma loja de roupas famosa. Massempre fiz redação também. Mes-mo na Rádio JB eu participava dofechamento do jornal. Era uma no-vidade. Naquele tempo, locutor eralocutor e redator era redator. AnaMaria Machado, chefe de jornalismoda Rádio, gostava de sentar comigoe a gente fechava o jornal juntos.Dava palpite aqui e ali, às vezessentava para escrever. Depois,quando cheguei na Globo, a AliceMaria me pediu: “Quero que vocêescreva também”.

JORNAL DA ABI – NA GLOBO VOCÊ FOI

CONTRATADO COM ESSA CONDIÇÃO?Eliakim Araujo – Não com essa,

mas já começava um processo derenovação. O padrão era Cid Morei-ra, o locutor puro, nato, muito bom,excepcional. (Sergio) Chapelin, quetinha sido meu colega na Rádio JB,era o locutor standard. Eu vinha daRádio JB, onde havia um programade debates às 9 da manhã. Quandosaí do Noturno, em 1980, tentamosfazer uma rádio all news, que erauma novidade – como hoje faz aCBN –, e eu fiquei encarregado decoordenar a rádio. Então, saí dali efui para o horário matutino, que eradas 6 às 10, e ali criamos um progra-ma de debates com o Paulo Goldra-jch, que foi o meu primeiro entrevis-tado. Tudo de improviso. Comeceio programa e disse: “Se você quiserparticipar, faça uma pergunta,nosso convidado é o advogado Pau-lo Goldrajch” e o tema era o lincha-mento de Macaé, um acontecimen-to horrível que tinha ocorrido, deviolência. Foi um monte de telefo-nemas. Aí chega o Carlos Lemos, oDiretor da Rádio: “O que é isso queeu ouvi aí? Gostei! Vai continuaramanhã”. E eu disse “Mas Lemos,não tenho estrutura, foi tudo deimproviso”. “Pega uma pessoa dojornalismo para trabalhar comvocê”. Aí eu chamei o André LuizAzevedo para ser o meu produtor. Odebate das nove horas foi um pro-grama que marcou muito. Entãoquando eu saí e fui para a Globo, fuicom esse know-how todo, que játinha adquirido na rádio. Foi por issoque a Alice Maria falou que queriaque eu redigisse, que tivesse umaparticipação maior. Funcionou atécerto ponto, porque na Globo é

impossível ter liberdade total. Vocêpode ir até a página cinco, dali emdiante não pode. Certas expressõesque você usa... por exemplo, nãopodia dizer que Pinochet era ditador.“Ditador Pinochet, de jeito ne-nhum, não se diz aqui. É o Presiden-te Pinochet.” “Mas ele é ditador!”,eu dizia. “Mas não pode”. São asregras da Globo, que sempre existi-ram e sempre existirão.

JORNAL DA ABI – O JORNALISMO NÃO ERA

A SUA META NA FACULDADE?Eliakim Araujo – Não, eu entrei

para fazer curso de Direito.

JORNAL DA ABI – VOCÊ SE VIA COMO ADVO-GADO?

Eliakim Araujo – Não. E achei queeu tinha vocação, porque todos daminha turma foram fazer Direito.

JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ DECIDIU?Eliakim Araujo – Eu não decidi.

Foi o acaso que me levou à rádio. Atéo primeiro ano fui um bom alunode Direito, com notas altíssimas,grandes professores. Mas eu faziapolítica, e a política foi roubando otempo do estudo. Aí veio a rádio,misturou com a política e fui dei-xando o curso em segundo plano.Mas concluí, fui até o final, conse-gui me formar em Direito. Mas apartir dali eu percebi que o meunegócio era o jornalismo, era o queestava na veia e segui em frente.

JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ COMEÇOU

NA RÁDIO JORNAL DO BRASIL?Eliakim Araujo – Comecei na

Rádio JB em janeiro de 1965 e fiquei

até maio de 1983. Você entrava comolocutor puro. De três em três horastrocava o locutor. Era música e infor-mação. O Chapelin entrou juntocomigo, dois ou três meses antes.Éramos os garotos da rádio. Haviaveteranos lá, Jorge da Silva, AlbertoCury, só tinha estrelas, e nós éramosnovinhos, eu e o Chapelin temos exa-tamente a mesma idade. E ali entra-mos e começamos a revolucionar,porque havia um estilo impostado devoz e a gente começou a mudar isso.O titular era o Cury, mas quandoapresentávamos o jornal como umdos locutores substitutos, começa-mos a dar um tom mais informal natransmissão da notícia. Comentárionão tanto, porque rádio é pauleira.Mas era um modo mais interpreta-tivo, passar alguma mensagem nasentrelinhas, isso eu fiz muito naépoca da censura, e o público enten-dia isso. Você pode ler exatamenteo que está escrito, mas consegueinterpretar só com a inflexão de voz,as pausas. Isso a gente fez muito.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ERA REBELDE?Eliakim Araujo – Eu gostava da

rebeldia. Uma das grandes rebeldiasque fiz na Globo foi que aos sábadoseu apresentava o Jornal Nacional nolugar do Cid, eu e eventualmente oLéo Batista, e era uma época emque a Globo estava baixando a por-rada no Brizola, e eu sou brizolista...e a Globo inteira sabia disso. Então,no sábado, eu li: “O editorial de OGlobo, amanhã”. E li o editorial queera porrada no Brizola; porrada aber-ta, e ficava puto de ter que ler aqui-lo. Mas uma vez chegou um desseseditoriais: “O jornal O Globo publi-ca o seguinte editorial...” Então, le-vantei o papel e, ao invés de ler no te-leprompter, li com o papel levanta-do na mão para mostrar que aquiloali não era eu, era o que estáva escri-to no editorial de O Globo. Era umamaneira que eu achava que podiafuncionar. Quando saí do estúdio,Alberico Sousa Cruz, que estava deplantão, me disse: “Mas como é quevocê faz isso?” “Fiz isso porque nãoconcordo com o que está escrito”.Mas tiveram que me engolir, porquese me demitem por um negócio des-se eu ia botar a boca no mundo, ia serruim para eles! Os conflitos na Globoeram quase que permanentes.

Tivemos conflitos quando da mor-te do Tancredo, por exemplo, que elesqueriam que eu desse a notícia damorte do Tancredo, e tinha que estarlá o dia todo de plantão. O Tancredomorreu em 1984, e nessa época euestava me separando e me casandocom Leila. Havia um conflito grandecom minha ex-mulher e com os filhos,que eram garotos, adolescentes. Eaconteceu de eu ter que ficar de plan-tão. “Você não precisa fazer nada.Você fica à disposição. Quando elemorrer, você vai ler a notícia da mor-te do Tancredo”. Um dia os meninosme chamaram. “Pai, quero ir para osítio”, nós tínhamos um sítio na Serra.“Então vai com o fulano”. “Não, nósqueremos ir com você, só confiamosem você para nos levar”. Peguei o te-lefone, liguei para a Alice Maria e dis-se “Eu preciso ir para Friburgo, emtrês horas estarei de volta”. Ela disse“Você não vai”. “Eu vou, Alice. Sãomeus filhos”. E ela: “Em primeirolugar está a sua obrigação com aempresa”. “Não, em primeiro lugarestão os meus filhos”. E eu fui levar.Quando voltei, estava suspenso.“Agora você volta para o seu horário.Vai ler o falecimento do Tancredoquem estiver no horário”. Ele morreuno domingo à noite... quem leu foi oSérgio, que estava no Fantástico. Fo-ram vários os conflitos que acontece-ram, mas eu gosto disso; isso sempreme alimentou. Nunca me incomo-dou. Eu acho que é importante estarsempre na luta, nunca se acomodar!

JORNAL DA ABI – HAVIA CONFLITOS NA

RÁDIO JB?Eliakim Araujo – Não. Foi uma

casa maravilhosa. Foi a melhor casaque eu trabalhei na vida. Não melembro de conflito, nunca. Com oscolegas eu discutia política, mas coma direção, jamais. Era espetacular.Peguei a JB ainda no prédio velho,caindo aos pedaços, só tinha umbanheiro para o andar inteiro, masera uma coisa louca, era um sonhotrabalhar na Rádio. O pessoal dojornal diz isso. Os remanescentes dojornal se encontram uma vez porano, e sempre me convidam. O Le-mos é quem coordena. Mas não dápara ir, estou longe. Era um sonhotrabalhar na época naquela empre-sa, em todos os sentidos. O relacio-namento com a direção; jamais fize-ram nenhum tipo de sacanagemcomo a Globo fazia, jogar um con-tra o outro... mas nas empresas fa-zem isso de modo geral. O JB era aque-la coisa correta, honesta. Isso eu digoe assino embaixo. E os colegas, oschefes, tudo! Ajuda financeira, gen-te ferrada, precisando de dinheiro...Eu me lembro que era Chefe dos lo-cutores e um rapaz estava em pés-sima situação financeira, e fui ao Dr.Osvaldo, que era o diretor financei-ro, fiz uma carta, e ele: “Está aqui odinheiro, ajuda ele”. “Mas como é queele vai pagar?” “Paga em trabalho”.Ou seja, ele nunca pagou. Eles ti-nham essa coisa de caráter, umacoisa meio social até. A história do JBé muito rica. Aquele restaurante ve-lho lá na Rio Branco, entre o PTB e a

A primeira carteira de trabalho de EliakimAraujo, assinada em 8 de agosto de 1961.

“A Rádio JBsempre foi

muito resistente.Estava feliz em

trabalhar lá porisso também,

porque a genteresistia.”

13Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

UDN, tem histórias espetaculares.Tinha o restaurante popular, que erao do pessoal do PTB, macacão, a tur-ma da rotativa, e tinha o pessoal datoalha, que eram os chefões e tal. Ea gente se divertia muito. Era umagrande empresa, tenho muitas sau-dades. Mas se acabou tão lamenta-velmente. A Globo matou o JB.

JORNAL DA ABI – MAS HOUVE PROBLEMAS

ADMINISTRATIVOS. ELES ERRARAM MUITO.Eliakim Araujo – Erraram porque

não fizeram televisão, foi o primei-ro grande erro. Mas houve tambémo tempo em que o Jornal do Brasilmandava no mercado. Eu me lem-bro que o grande faturamento do JBeram os classificados, e O Globo nemchegava perto. Numa certa época OGlobo começou a fustigar, começoua convidar os corretores, levava-ospara uma churrascaria na Tijuca,fechava aquilo; eram festas enormes.Enquanto o JB cobrava 50 por anún-cio, eles cobravam 50 e davam 3 de bo-nificação. Foram matando o JB e nãose percebeu isso. Aí veio a mudançapara o prédio novo. Foi a grande catás-trofe. Aí entra o erro de administra-ção. Foi uma pena, era uma senhoraempresa. Eu lamentei o dia em quesaí. Fui no Dr. Brito, e nunca tinha idoaté ele, só encontrava no elevador.“Mas por quê?”, ele perguntou. “Es-tou indo para a Globo”. “Você nem pre-cisa me dizer quanto é; eu não possocobrir”. Eu ia ganhar quase quatrovezes mais na Globo. Mas era umacoisa de amor. As pessoas trabalha-vam com amor no JB, tanto na rádiocomo no jornal. No jornal então, foio melhor time numa certa época.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ OS JO-VENS JORNALISTAS HOJE QUE ESTÃO EM

GRANDES EMPRESAS?Eliakim Araujo – Mudou a men-

talidade. Na época, havia não só ta-lento, mas uma coisa mais român-tica. Hoje a coisa é mais imediatis-ta. As pessoas querem sobreviver, se-gurar o emprego. Vestir a camisa, amorao time, isso não existe mais. Parece ro-mântico isso, mas é verdade. A gentegostava de vestir a camisa, de com-petir com O Globo, de dar uma no-tícia na frente, havia isso. Era umacoisa romântica, mas ao mesmo

tempo dependia muito do talento. Osonho de qualquer profissional eratrabalhar no JB. Hoje inverteu, e osonho de qualquer pessoa é trabalharna Globo. A Globo cooptou as princi-pais cabeças pensantes e levou para lá.

JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ ENTROU

NA GLOBO?Eliakim Araujo – Em 1983, pouco

depois do escândalo da Proconsult.

JORNAL DA ABI – VOCÊ PASSOU TODO OPERÍODO DA DITADURA MILITAR NA RÁDIO

JORNAL DO BRASIL...Eliakim Araujo – Eu entrei, e a

ditadura começou em 64.

JORNAL DA ABI – COMO FOI CONVIVER COM

A DITADURA COMO JORNALISTA NA PRINCI-PAL RÁDIO DO PAÍS?

Eliakim Araujo – Na rádio eu es-tava dando os passos iniciais, equando veio o golpe eu me afastei dafaculdade completamente. Ia lá sófazer as provas. A repressão não foitão violenta naquele período. A re-pressão começou mesmo em 1968.Aquele foi um período de cassações,punições e prisões políticas. Masalguns colegas nossos, o BrandãoMonteiro, por exemplo, foi bastan-te massacrado. Eu respondi a uminquérito policial militar, mas nafaculdade, não ao nível de um IPM.

JORNAL DA ABI – COMO FOI O INQUÉRITO?Eliakim Araujo – Era mais admi-

nistrativo. Na Faculdade de Direito,o chefe da comissão era um coronel,mas quem mandava era um profes-sor chamado Teófilo de Azeredo San-tos. Ele era o presidente da comissão.Chamava a gente e ficava questio-nando o que é que nós tínhamos guar-dado. Porque no dia 1° de abril nós tí-nhamos na faculdade um arsenal decoquetel molotov, nada de mais,bobagem. (risos)

JORNAL DA ABI – VOCÊS IAM RESISTIR?Eliakim Araujo – É, nós fizemos

uma resistência, mas não deu. Tínha-mos coquetel molotov e mais algu-mas coisas, mas não era vasto, eramalgumas coisas. E quando houve ogolpe no dia 1° de abril o Exércitoentrou, os tanques entraram e fecha-ram a Faculdade. O Exército nunca

tinha entrado na Faculdade. Lá haviaum slogan: “Aqui Polícia não entra”.A gente botava a Polícia para fora.Mas naquele dia a coisa foi feia, e oExército fechou. E descobriram quehavia essas coisas escondidas. Toma-ram conta do Centro Acadêmico e aícomeçou um inquérito para saberquem é que comprou a gasolina,quem é que fazia os coquetéis. Eraesse o inquérito, mas não cheguei ater problemas, porque eu já estavaafastado do cargo, estava no quartoano. Por isso é que a minha convivên-cia na faculdade junto com a Rádiofoi praticamente imperceptível. Umacoisa não se conectava com a outra.

JORNAL DA ABI – MAS DEPOIS DE 1968 VOCÊ

E SEUS COLEGAS DA RÁDIO NÃO TIVERAM

PROBLEMAS COM A REPRESSÃO?Eliakim Araujo – A Rádio foi sem-

pre muito resistente. Eu estava fe-liz em trabalhar lá por isso também,porque a gente resistia. Tenho guar-dado o jornal do dia 13 de dezembrode 1968, quando foi decretado o AI-5. Essa fase foi sensacional. Eu melembro que nós estávamos lá, o Al-berto Cury, que era o chefe dos locu-tores da rádio, foi convocado para irà Agência Nacional, pois ele ia ler umcomunicado muito importante, às9 horas da noite. Era o AI-5. E eu es-tava lá, não só porque estava no meuhorário, como porque eu ia ler a ediçãofinal do Jornal do Brasil Informa, demeia-noite e meia. Quando saiu oAI-5, foi lido por Alberto Cury, comaquele vozeiraço, o Exército ocupouas Redações. Foram quatro milita-res para o JB, dois para a Rádio;foram em todos os jornais do Rio.Lembro que lá para a Rádio JB foi umcidadão chamado Major Fico. Nun-ca esqueci esse nome. Depois ficamostodos amigos, os censores e os cen-surados. No Brasil tudo acaba emfesta. Porque, com aquela convivên-cia diária, o cara acaba vendo que sãotodos brasileiros, são todos irmãos.Então, ocuparam a Rádio e quandochegou a hora de ler o jornal da meia-noite e meia, que eram laudas peque-nas, de rádio, eu recebi o jornal – o Ficoestava lá, de farda verde oliva – o Dr.Nascimento Brito desce, e ele, quenunca tinha entrado na Rádio notempo em que estive lá, entra no

estúdio com o Major, e eu já estavafolheando as notícias, passandouma vista de olhos. Ele me pede otexto do jornal. Eu passei. Os doisem pé e eu sentado, na bancada domicrofone. E o Dr. Brito, com todaaquela elegância, passa o texto parao Major Fico e diz: “Por favor, sejarápido, porque o jornal tem queentrar no ar à meia-noite e meia”.Passava vinte minutos da meia-noite! O Major tremia feito varaverde. Foi no primeiro dia. Então elepegou aquele calhamaço. Eram 15minutos de pau puro, era um jorna-laço, e a mão do Major tremia! Elenão leu coisa nenhuma. Ele nem sa-bia por que estava ali. Não sabia qualera a função de um censor. Aí, todotímido, passou para o Brito o calha-maço de textos e eu li o jornal nafrente do Dr. Nascimento Brito e doMajor do Exército. Eu também ner-voso, é claro, com o dono da empresaali na minha frente junto com umcara de farda que até aquele momen-to eu pensava que era um pusilâni-me... mas era um ser humano comooutro qualquer. São passagens mui-to interessantes que a gente teve naRádio JB. Isso nós estamos falandode 1968. Daí começou um períodode repressão grande, eu já não esta-va no movimento estudantil, mededicava à Rádio, e começaramaquelas grandes passeatas dos cemmil, veio a morte do Edson Luís emabril de 1968, e nós, da janela daRádio, que ficava no quinto andarda (avenida) Rio Branco, no prédiovelho, víamos os conflitos! Eramtodos ali na frente, você participa-va do conflito, subia e lá de cima vocêvia o pau rolando. Uma vez, umfotógrafo do jornal ficou ali tirandofotos e eu disse para ele: “Rapaz,outro dia eu peguei uma pedra e jo-guei lá de cima e acertei um pm”. Eo fotógrafo disse: “Não faça isso, vaideixar mal a gente”. Realmente, agente às vezes comete alguns exces-sos, alguns arroubos da juventude.

JORNAL DA ABI – VOCÊ NUNCA TEVE UM

GRANDE PROBLEMA COM A REPRESSÃO E ACENSURA?

Eliakim Araujo – Censura sim, aRádio foi para o gancho, foi pendura-da três dias uma vez, mas isso tudofoi coisa genérica. Exatamente naépoca da passeata do Edson Luís deLima Souto, o pau quebrando, e o re-pórter foi à rua gravou o pessoal damultidão gritando “Assassinos! As-sassinos!”, subiu isso, foi para a Rá-dio, e o editor que fazia a edição damatéria botou o repórter explicandoo confronto, e deu um sobe som finalno “Assassinos”. E isso aí foi o bastan-te, a Rádio JB foi suspensa três dias.

JORNAL DA ABI – NEM SÓ DE TEXTO VIVE AREPORTAGEM.

Eliakim Araujo – Na edição vocêpode fazer o que quiser.

JORNAL DA ABI – QUANDO COMEÇOU OPROGRAMA NOTURNO?

Eliakim Araujo – Começou noprédio velho e seguiu no prédionovo. A gente se mudou em 1973 da

Rio Branco para aquele prédio boni-to da Avenida Brasil. Mas começouno prédio velho. Começou muitoem função de um rapaz chamadoSimon Cury, que era muito criati-vo, muito inteligente. Nós éramosmuito amigos. E ele tinha idéiasmirabolantes. E dizia: “Vamos fa-zer um programa hoje só com nomede mulheres”. Daí ele ia para a bibli-oteca e pesquisava músicas comnome de mulheres. Ele vivia demúsica e fazia um programa deuma hora contando a historinha decada mulher daquelas. Eu, nestecaso, era um locutor. Fazia junto,mas ele era o homem das idéias, e elese dedicava. A grande cabeça era ele.Se o Simon fazia uma entrevista, seeu fizesse as perguntas ia ficar estra-nho com toda a minha formalida-de. Ele dizia assim: “Fulano, vocêgosta mais de Nova York ou de Pa-ris?” Daí dava uma história enor-me. Se eu fizer isso, não tem senti-do. É o contexto. E o Simon era ummestre nisso. O Noturno durou até1980, quando passei a ser coordena-dor da Rádio, então quem conti-nuou foi o Luís Carlos Saroldi, quemorreu recentemente.

JORNAL DA ABI – VOCÊ GOSTA MAIS DE NOVA

YORK OU DE MIAMI?Eliakim Araujo – (Risos) O Simon

era assim: “Gosta mais de arroz oude feijão?” O entrevistado adorava,ele deixava o cara à vontade. Eu seique os entrevistados saíam de láfelizes da vida. Noturno foi um suces-so. Eu emprestei a marca da minhavoz, mas todo o processo de criaçãoera do Simon Cury.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA O SEU HORÁ-RIO DE TRABALHO?

Eliakim Araujo – Na época doNoturno, eu chegava às seis e meiada tarde e fazia o noticiário. Eramquatro os grandes noticiários daRádio JB: sete e meia, meio-dia emeia, seis e meia e meia-noite emeia. Nessa altura eu já era chefe naRádio, Chefe dos locutores. E fica-va para o da meia-noite e meia.Nesse intervalo, fazia o Noturno.Isso durou alguns anos, até 1980,quando a Rádio inventou essa his-tória do all news. Isso foi uma idéiado Carlos Lemos, que vinha emba-lado pelo sucesso da Rádio Cidade,outra aposta dele que estourou: aRádio Cidade explodiu. Isso foi em1977. Então em 1980 ele disse: “Querofazer a mesma coisa com a rádio AM.Não quero mais música, só notícia”.

JORNAL DA ABI – A RÁDIO CIDADE ERA MAIS

DESCONTRAÍDA, TINHA MUITO HUMOR...Eliakim Araujo – Era do mesmo

grupo. Ele queria que fizesse a mes-ma descontração. Claro, não igual,mas que levasse para a rádio AM, queera uma rádio formalíssima, umtipo de descontração com a notícia.Que na Cidade era música, e na JBera a notícia. É o que a CBN faz hoje,e faz muito bem.

JORNAL DA ABI – A BAND NEWS ESTÁ FA-ZENDO A MESMA COISA.

Eliakim, logo que assumiu abancada do Jornal da Globo.

RICARDO LEONI/AGÊNCIA O GLOBO

14 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

Eliakim Araujo – Hoje em SãoPaulo existem várias. Mas estamosfalando de 1980. Os ouvintes estra-nharam. A gente fez uma coisa mui-to simples, uma pizza – chamava depizza – blocos de 15 minutos denotícia. Então se colocava 13 minu-tos de notícia e 2 de comercial. Nasegunda faixa de 15 minutos, vocêrepetia, ou eventualmente coloca-va alguma coisa nova e tirava ou-tra, e ia girando, renovando as no-tícias. Isso se faz também emtelevisão; a CNN fez isso. Masquando nós implantamos isso naRádio, o ouvinte tradicional ligava edizia “Mas o que é isso? Vocês estãorepetindo a notícia?” Eles achavamque a Rádio não podia repetir notí-cia. Era um escândalo, uma vergo-nha para a Rádio JB, que era a maisouvida em Ipanema e Leblon. Erauma rádio de elite, realmente. Não seise deu certo, porque três anos depoiseu estava na Globo.

JORNAL DA ABI – NA ÉPOCA, NÃO ENTEN-DIA POR QUE NENHUMA EMISSORA TE CON-TRATAVA PARA SER APRESENTADOR DE JOR-NAL DE TELEVISÃO...

Eliakim Araujo – Aí veio a AliceMaria e me levou. Mas tem umdetalhe: quando o Chapelin foi paraa Globo, em 1972, agradou logo decara; era bonitão, 32 anos. Mas pre-cisavam de uma outra pessoa naépoca. E a Alice Maria pediu ao Sér-gio uma indicação. Ele disse: “Tem oEliakim”. Eu fui lá, fiz o teste e fuiaprovado. Era para eu ter entrado naGlobo em 1972! Tanto que o Boniviu o teste e me disse: “Arranja ou-tro nome, porque ‘Eliakim’ não énome de televisão”! (risos) Mas vejao que era o amor pela Rádio... opteipor permanecer na Rádio JB, atéporque o salário da Globo não eratão compensador como era o meucomo Chefe dos locutores. A Rádioestava muito bem, me deram umaumento bom, que equilibrava, e eucontinuei lá. Talvez por isso não mechamaram mais; só voltaram a pen-sar no meu nome em 1983, logo noinício, em março, abril. Alice Mariame chamou para almoçar e eu erafolgado e disse: “Alice, até entendo quevocê está me chamando porque a tvprecisa de credibilidade, depois doescândalo da Proconsult, quando oBrizola acabou com o Armando (No-gueira)”. E a Alice ficava vermelhafeito um camarão. Hoje ela aindaestá lá, meio tímida. Mas isso já foiuma espetada, não é? “Vocês estãoprecisando de credibilidade e foi aRádio JB que brilhou”, eu disse. Foia Rádio que sustentou o Brizola.Quando a Proconsult preparou ogolpe, foi a ela que denunciou. Foi oProcópio Mineiro, que era o editor deJornalismo, e o Pery Cotta. Os doisé que peitaram. A Globo dava o re-sultado do interior, onde Brizolaperdia, e deixou de lado os resulta-dos da capital, onde Brizola dispa-rava. O que a JB fez? Um esquemasimples. Eram 25 Zonas eleitoraisna cidade, se não me engano. Con-tratou 25 estagiários e cada vez quesaía um boletim novo, uma urna

nova, o cara pegava uma ficha detelefone e passava o resultado paraa rádio. Tudo era contabilizando.Tudo manual. No final do dia, o Bri-zola estava disparado. Esse foi oesquema. Era a primeira vez que secomputava voto via computador,daqueles antigos. E o computadorse programa como você quer. Essefoi o golpe da Proconsult, progra-mou de um jeito que o Moreira saíana frente, até que num certo mo-mento eles iam dar o golpe. Comoseria esse golpe a gente não sabe, sósei que Moreira seria o vitorioso. Issofoi no final de 1982. Então, quandoAlice Maria me chama no início de1983, estava querendo trazer umpouco da credibilidade da Rádio JBpara a Globo. Teve aquele pega natelevisão, do Brizola com o Arman-do Nogueira, que era o Diretor deJornalismo. Brizola entrou e disse: “AGlobo está mentindo”. “Deputado,o senhor não pode dizer isso, o se-nhor não pode duvidar da nossaapuração”. E o Brizola: “É verdade,porque a Rádio JB mostrou isso,isso e isso”. Aquilo foi uma vibração!

JORNAL DA ABI – E O BRIZOLA ESTAVA EM

ÚLTIMO LUGAR NAS PESQUISAS, NO INÍCIO

DA CAMPANHA, E FOI UM VENDAVAL.Eliakim Araujo – Eram quatro

candidatos. E o que o Brizola carre-gou de voto de legenda. O PDT fezuma festa espetacular. Deputadoestadual ele levou de montão. Umavez, estava conversando com o Bri-zola – e ele era um grande papo – eeu disse: “Governador, como é quedeixam entrar tanta gente semexpressão no Partido?” Era Juruna,Agnaldo Timóteo... Ele disse: “Euvou lhe contar uma história. Vocêvai dirigindo um caminhão. Aí, naestrada, pedem uma carona. Sobeaí na boléia. Mais adiante tem ou-tro. Aí a sua boléia está cheia. Maseles não vão ficar. Mais adiante, vocêvai selecionar quem fica e quem sai”.Não sei se algum dia ele fez isso. Masele era uma figura desse tipo.

JORNAL DA ABI – QUE LIÇÃO SE TIRA DESSA

ATUAÇÃO DO PROCÓPIO MINEIRO E DO PERY

COTTA À FRENTE DA EQUIPE DA RÁDIO JBDURANTE AS ELEIÇÕES DE 1982?

Eliakim Araujo – A lição que ficado episódio da Proconsult é o exem-plo de compromisso com a verdadeassumido pelos jornalistas ProcópioMineiro da Silva e Pery Cotta, Dire-tor de Jornalismo e Editor de Políti-ca da Rádio JB. Os dois tiverampeito de enfrentar o poderio da Glo-bo e da Proconsult, mesmo saben-do que internamente suas cabeçasestavam em risco! Sobretudo o Pro-cópio, recentemente falecido! Elemerece entrar para o hall da famadaqueles jornalistas que não se ren-dem e colocam a busca da verdadeem primeiro lugar. Sua contribuiçãopara a democracia foi inestimável,naquele momento ainda inseguro davida nacional.

JORNAL DA ABI – VOCÊ NÃO ACHA QUE,POR SER LÍDER DE MERCADO, A GLOBO NÃO

SE TORNA UM ALVO FÁCIL? TUDO É CULPA

DA GLOBO...Eliakim Araujo – Completamen-

te. Primeiro porque a Globo temhistória, tem antecedentes. Masfiquei sabendo, por exemplo, que aGlobo dá a seus funcionários umseguro-saúde de ótima qualidade.Na Record os funcionários têm di-reito a um seguro-saúde. Aí o queela fez? Montou o seu próprio se-guro-saúde. Então, os funcionári-os pagam para a própria Record. Odinheiro sai por aqui e volta pra cá.E oferece um péssimo serviço. Osfuncionários estão reclamando.Mas sem dúvida que o líder vai sersempre visado. Se você é um líderque tem uma história bonita, é di-ferente. Agora, a Globo tem umahistória pesada, política. Mas comos funcionários eles são bem legais!Tem aquela coisa que falei, de jogarum contra o outro.

JORNAL DA ABI – MAS AÍ SÃO ALGUMAS

PESSOAS QUE ESTÃO LÁ DENTRO...Eliakim Araujo – Mesmo porque

é televisão, que é um negócio quemexe com a cabeça das pessoas.Não só o pessoal de vídeo, mas os daretaguarda também.

JORNAL DA ABI – COMO UMA GRANDE

EMPRESA DE COMUNICAÇÃO CONSEGUE

DRIBLAR A DITADURA?Eliakim Araujo – No período crí-

tico, era difícil driblar. Você driblavacom alguns artifícios, pequenasartimanhas que a gente fazia mui-to na Rádio JB. Todos tinham essaconsciência, a equipe toda, e a gen-te fazia tudo para driblar. E a dita-dura era tão burra que a gente sabiao que acontecia. Chegava uma notana Redação, tínhamos um livropreto... não sei onde está esse livro...alguém tinha esse livro guardado.Era um livro de folhas soltas. Liga-vam, alguém atendia: “Ordens doPrimeiro Exército: é proibido divul-gar a morte de fulano de tal”. Então,com isso, já sabíamos que alguémtinha morrido nos porões da ditadu-ra. E os caras davam os nomes!“Proibido divulgar a morte de fula-no, morto em tiroteio com as forçasde segurança esta manhã”. Os ca-ras faziam isso. Essa era a chama-da censura direta. Depois que aca-bou esse período, veio a chamadaautocensura: “Vocês podem anun-ciar o que quiser, mas com cuida-do”. Aí a coisa foi melhorando; esta-mos falando do período de Geisel. Foiafrouxando um pouco.

JORNAL DA ABI – MESMO ASSIM ACONTECE-RAM OS ATENTADOS, OS ATAQUES TERRORIS-TAS, OS INCÊNDIOS ÀS BANCAS DE JORNAIS.

Eliakim Araujo – Teve a bomba doRiocentro. Dia do Trabalho. OAB.Mas aí era a própria resistência dadireita, do Exército, tentando man-ter o status quo; não tinha interesseem mudar o quadro, que estavamuito bom, confortável para eles. Eo Geisel já estava falando em abrir.Depois entrou o maluco do Figuei-redo, enfim.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE O AR-MANDO NOGUEIRA TINHA CONDIÇÕES DE

FAZER ALGUMA COISA A MAIS E NÃO FEZ?Eliakim Araujo – Essa coisa é

muito controvertida. Os que defen-dem o Armando acham que ele fezo que era possível dentro daquelequadro. Ou seja, ele foi apenas uminstrumento. Então ele deveria re-nunciar e denunciar isso? Ou deveria

manter o emprego? É aquela histó-ria, você tem uma posição política,mas precisa sobreviver. Essa é a gran-de polêmica. Um cara de extremaesquerda ter que trabalhar na Folha,que ajudou a ditadura? Quantagente de esquerda estava na Folha.Quantos comunistas trabalharamem O Globo. O Dr. Roberto temaquela célebre frase: “Eu adoro tra-balhar com comunistas, que sãoexcelentes profissionais”. A ideolo-gia ia até um ponto, mas você temque levar a comida para os seus fi-lhos em casa. Essa é a grande con-tradição do jornalismo. Com a suavontade de lutar, batalhar pelo seuponto de vista, mas ao mesmo tem-po você sabe que vai entrar em cho-que com o dono da empresa, porqueo jornalismo corporativo é aquelacoisa, você pode ir até aqui, masdaqui em diante está mexendo nointeresse do patrão. Tem o interes-se corporativo e o interesse político,que muitas vezes se entrelaçam.

JORNAL DA ABI – A GLOBO SOFREU CEN-SURAS EM NOVELAS, TINHA GENTE DE ES-QUERDA LÁ QUE FAZIA ÓTIMOS TEXTOS, DIAS

GOMES, GIANFRANCESCO GUARNIERI...Eliakim Araujo – Exato. Tinha

um monte de gente. Mas a novela éinteressante, porque foi um caminhoque se achou para driblar a censura.Como o jornalismo estava visado, osautores de novela conseguiram encai-xar muita coisa. Nos programas dehumor também, e a censura deixavapassar. Não deixava passar no noti-ciário, que era uma coisa mais forte,na música também não.

JORNAL DA ABI – É AQUELE NEGÓCIO DO

EQUILÍBRIO.Eliakim Araujo – Exatamente,

achar o esquema.

JORNAL DA ABI – VOCÊ COMEÇOU A APRE-SENTAR O JORNAL DA GLOBO SOZINHO?

Eliakim Araujo – A Globo vinhade uma experiência com RenatoMachado, Beliza Ribeiro e LucianaVilas-Boas. Eles tinham esse jornalque era interessante, era uma coisanova. Mas houve alguma coisa quedeu errado. Não sei se foram proble-mas pessoais, não sei exatamente

“Quando aProconsult

preparou o golpe,foi a rádio que

denunciou.O Procópio

Mineiro e o PeryCotta foram os doisé que peitaram.”

Eliakim Araujo e Leila Cordeiro nos bastidoresdo SBT Notícias, em novembro de 1995.

MU

JICA/FO

LHAPRES

15Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

o motivo, mas envolvia romances...essas coisas. Só sei que o programadegringolou e chegou um dia em queeles gravaram e foram embora. Dei-xaram gravado naquele dia comantecedência. No dia seguinte, otécnico trocou e botou a gravação dojornal do dia anterior. Aí o negócioexplodiu e eles resolveram encerrar ojornal. Botaram o Humberto Filhopara segurar uns 15 dias, um mêsmais ou menos, enquanto contrata-vam alguém. Eu entrei junto comuma mocinha chamada Liliana Ro-drigues. Depois entrou no lugar delaa Leilane Neubarth, que está lá atéhoje, na Globo News. A Globo temisso, de fidelidade. Mantém a pessoa.Acho isso legal na Globo. Só saí daGlobo porque eu quis. A gente podiaestar lá até hoje. Nós pedimos parasair, porque não estávamos felizes lá,por causa daquele ano eleitoral, 1989,do Brizola com o Collor.

JORNAL DA ABI – NÃO FOI O LULA?Eliakim Araujo – O Brizola foi

candidato em 1989. Podia ter idopara a final com o Collor, mas per-deu em São Paulo, por um décimo.Essa história eu sei toda. O Brizolaganhou em várias capitais. Era oCollor, Lula, Brizolla, Covas, não seise o Maluf estava, era um grupogrande. O Brizola tinha tudo paradisputar com o Collor a final. OBrizola teve 0,5% no colégio eleito-ral de São Paulo. Se tivesse tido 1%– pode ver as estatísticas – ele ga-nhava do Lula e ia para a final como Collor, e aí a história seria outra.Eu fiz o debate, seria outra história.O Collor acabou com o Lula nodebate da Globo; Lula foi péssimo.Eu falei isso para o Lula.

JORNAL DA ABI – ENTÃO VOCÊ TEVE, JÁ NA

GLOBO, A EXPERIÊNCIA DE DIVIDIR A BAN-CADA COM UMA JORNALISTA?

Eliakim Araujo – No Jornal Naci-onal era só homem. Eu dividia abancada, aos sábados, com o (Fer-nando) Vanucci e com o Léo (Batis-ta). E eventualmente fazia nos diasde semana com o Cid e o Sérgio. Sódividi a bancada com mulheres bemdepois. A Valéria foi a primeira quesentou na bancada. Hoje há ótimasprofissionais, principalmente essanova geração da Globo News. AGlobo hoje não precisa mais buscarninguém de fora, ela tem o seu la-boratório. Hoje ela forma os rapazese moças. Naquela época, ela teve debuscar o Sérgio fora, teve que mebuscar fora, todos vieram de fora.Começou com o Cid, que é o pai detodos. O Cid entrou em 1969.

JORNAL DA ABI – COMO ERA SUA RELA-ÇÃO COM O CID MOREIRA?

Eliakim Araujo – Era muito boa.O Cid era uma figura interessante.Estava acima do bem e do mal. Eraamicíssimo de Armando, jogavatênis com ele. O Cid é uma figuramuito engraçada.

JORNAL DA ABI – VOCÊ DEIXOU MUITOS

AMIGOS NA GLOBO?Eliakim Araujo – Deixei, mas eu

não diria muitos amigos. Quandovocê sai, as pessoas não queremmais se aproximar, sobretudo por-que a gente saiu em 1989, houve osatritos de que falei, mas a gentesentia que houve uma certa malda-de; eu e a Leila (Cordeiro) sentimosisso. Quando nós começamos a fi-car juntos, Armando e Alice foramcontra. “Isso não é bom”, diziam.Porque na época eram determina-dos: dois no Jornal da Globo, dois noJornal Nacional, dois no Hoje e um noFantástico. Havia sete profissionais,só. Para ser um desses sete, tinha queir chegando devagar. Era difícil. En-tão começamos a reunir os locutoreslá em casa; os sete, para discutir porque a gente não tinha um retorno dadireção. Nós trabalhamos mecanica-mente todos os dias, anos e anos, eninguém dizia: “Olha, você está óti-mo”, “Você precisa melhorar nisso”.Esse foi o mote que levei para essareunião com a direção.

JORNAL DA ABI – VOCÊ REUNIU OS SETE?Eliakim Araujo – Digo os nomes

deles: do Hoje, Leda Nagle e MarcosHummel. Do Jornal Nacional, CelsoFreitas e o Cid. Do Jornal da Globo, eue Leila. E do Fantástico, o Sérgio Cha-pelin. Fomos lá para casa, tomamosmuito uísque, eu morava numa co-bertura ali na Fonte da Saudade. Ecomeçamos a conversar, e fui ouvin-do as coisas de cada um. Alguns recla-mavam que não tinham camarimpara botar um espelho, e a minhareivindicação era não ter mais que leros editoriais da Globo, que quandobotasse o editorial que descesse alguémda administração para ler, por causadaquele incidente de que falei. Nin-guém acreditava que aquilo fosse emfrente. Todo mundo foi para suas ca-sas. Eu sentei e, numa máquina Oli-vetti, bati um tratado de três ou qua-tro páginas, com o resumo daquelareunião. Passei para todos lerem; to-dos concordaram e assinaram.

JORNAL DA ABI – ASSINARAM OS SETE?Eliakim Araujo – Os sete assina-

ram. Um dia de semana, quandoacabou o Jornal Nacional, subimostodos para uma reunião que já esta-va previamente marcada com a Di-reção de jornalismo. Armando nãoapareceu. Fomos recebidos por AliceMaria e pelo Alberico. Eles ouviram,surpresos. Acabamos de ler aquilo;Alice não falou nada, Alberico falou“Tudo bem, está entregue”. “Nãovamos discutir?” “Não, deixe aí opapel, nós vamos ler”. “Mas nósqueríamos dialogar sobre isso”. “Dei-xe aí, que está entregue”.

JORNAL DA ABI – QUAIS FORAM AS REI-VINDICAÇÕES?

Eliakim Araujo – Eram várias coi-sas. Uns queriam aumento de salá-rio, mais conforto, na época não ti-nha camarim, nem maquiadora;cada um passava seu pó no rosto. Poisbem, esse papel ficou lá com eles enós descemos frustrados, mas de-pois começou a retaliação. Me tira-ram de junto da Leila do Jornal daGlobo. Eles souberam que foi feito lá

em casa, souberam que fui eu queescrevi e botaram a Leila para o jor-nal Hoje, e eu fiquei no Jornal daGlobo. Armando chamou nós dois edisse “Eu não quero dois talentoscomo vocês superpostos. Vou sepa-rar vocês. Nós vamos treinar pesso-as novas e vocês vão passar a expe-riência que têm”. E separou a gente,que já estava casado há uns quatro,cinco anos. Botou Fátima Bernardespara trabalhar comigo, e a MárciaPeltier para trabalhar com a Leila noHoje. Afastou Marcos Hummel;Leda foi colocada no Bom Dia Rio àsseis da manhã, o Celso perdeu oJornal Nacional, foi para o Fantásti-co com o Sérgio. Isso durou exata-mente um mês. Nessa altura, fize-mos saber à Rede Manchete queestávamos insatisfeitos. Daí a Man-chete levou a gente. Fomos fazer oprincipal jornal na Manchete.

JORNAL DA ABI – A MANCHETE ESTAVA

COMEÇANDO?Eliakim Araujo – Não. A Manche-

te estava no pico. Ela começou em1983. Estava dando a grande viradacom Pantanal e A História de Ana Raio& Zé Trovão. O jornal dava dois dígi-tos de audiência, porque pegavauma carona no Pantanal, que entra-va em seguida, chamava audiênciade expectativa. Esse foi o motivo danossa saída, a retaliação interna naGlobo. Todos os sete foram retalia-dos. Eu soube depois que o Arman-do chamou o Cid e disse “Como é quevocê assina um negócio desses?” “Euassinei porque todo mundo assinou”.“Você vai tirar o seu nome daqui”.“Não tem problema”, e riscou onome dele. Isso eu soube, eu nuncavi esse papel riscado. Nós outrosfomos para a casa de Leda Nagle ecomemoramos ali o desfecho daquilo.Nós fomos para a Manchete, a Ledafoi no nosso vácuo e saiu junto paraapresentar o Jornal da Tarde.

JORNAL DA ABI – E QUANTO TEMPO VOCÊ

FICOU NA MANCHETE?Eliakim Araujo – Fiquei três anos.

A Manchete teve uma fase muitoboa, mas sempre lutou com gran-des dificuldades financeiras. O pa-gamento era sempre um sofrimen-

to. O Dr. Bloch movimentava os ban-cos, cada vez era um banco quepagava, foram se atolando em dívi-das, até que venderam para umaventureiro chamado Amilton Lu-cas, que era um parceiro do Collor.Ele chamou a gente para conversar,“Eu quero que vocês continuem” etal, mas nessa altura fizemos saberao Sílvio Santos que a gente não es-tava feliz, e o Sílvio ligou para a gen-te num dia à meia-noite. “Vocêsestão querendo sair da Manchete?Mas o SBT é aqui em São Paulo...vocês são cariocas...” “Não, tudobem, a gente está a fim”. “Entãopassa lá na segunda-feira. Compraa passagem que eu te reembolso nasegunda-feira”. O Sílvio é assim.Compramos a passagem numa sex-ta-feira, pegamos a reunião na se-gunda. Primeira coisa quando come-ça a reunião: “Fulano!”. Aí vem umcara com um pacote de dinheiro. Erao dinheiro da passagem, e dá emnotas, em cédulas. O Sílvio é assim,cumpriu a palavra. Então, em 1993,estávamos desembarcando emSão Paulo.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONHECIA SÃO

PAULO?Eliakim Araujo – Não. Mas São

Paulo era uma cidade hostil, umacidade difícil. A mudança foi dura. Éverdade que a gente foi morar emAlphaville, que era um lugar de so-nhos. O Sílvio pagou pra gente oaluguel de uma casa lá. Era gostoso.Alphaville é um oásis. E a gente tra-balhava na Vila Guilherme. Eramenchentes fantásticas na Marginal,foi muito duro. Depois o SBT mudoupara a Anhanguera e melhorou. Masfoi pouco tempo. No SBT ficamos dejaneiro de 1993 até 1997.

JORNAL DA ABI – COMO ERA TRABALHAR

NUMA EMPRESA EM QUE O TELEJORNALIS-MO É TÃO INSTÁVEL?

Eliakim Araujo – Na época nãoera não, esteve muito bem. O BorisCasoy estava dando bem, o Aqui

Agora era um sucesso de mídia, davaaudiências altas. Por causa do AquiAgora a Globo mudou um poucosua linha editorial, passou a sermais policialesca. E nós tínhamoso Jornal do SBT, que entrava depoisdo Jô, que era muito bom, muitobem redigido, muito criativo, tinhaum bloco de dez minutos que entra-va antes do Jô e um de 20 minutosdepois do Jô. Era uma equipe mui-to boa, Alberto Vilas era o editor. Foiuma boa casa para trabalhar. OSílvio jamais se meteu, jamais hou-ve censura, nós tínhamos liberdadetotal para trabalhar, e era um jornalmuito de comportamento. Para ofim de noite não havia coisa melhor,linguagem leve. Mas, de repente, oSílvio começou a enlouquecer. Por-que quando o jornal principal não dádois dígitos ele acha que é um desas-tre. O Boris começou a despencar...

JORNAL DA ABI – POR QUÊ?Eliakim Araujo – O Boris é uma

figura meio controvertida, é um carade linha conhecida, criou aqueleschavões; alguns nem foram criadospor ele, mas ele copiou, como o“Temos que passar o Brasil a limpo”.Essa frase não é dele, é do Brizola,falada num debate. Ele copiou e aimprensa achou que era dele, e pas-sou a ser dele. Só dizia o que interes-sava, mas o público custa, às vezes,a sacar. Ele só criticava o que inte-ressava, jamais criticou certas coi-sas. Batia no PT sem dó nem pieda-de e não tinha o mesmo tipo detratamento com os demais parti-dos. Acho que foi uma figura quecansou, não diria que foi uma coisaespecífica. Ele fez muito sucesso naépoca, era considerado um justicei-ro, mas era tudo um jogo. Aquelescomentários que fazia era tudo es-crito; nada era improvisado. Oseditores faziam os textos e ele faziaos comentários. Isso agradou mui-to na época. Chegamos no SBT, elejá estava lá, foi muito gentil conos-co, mas havia sempre uma rivalida-

JOSÉ LU

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“Esse papel ficoulá com eles enós descemos

frustrados, masdepois começou

a retaliação.Me tiraram de

junto da Leila doJornal da Globo.”

Eliakim Araujo e Leila Cordeiro na época em que assumiram a apresentação do Jornal do SBT.

16 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

de porque ele dividia, nunca se mis-turou com as outras Redações. Elefez o mesmo também na Record:chega, monta a equipe dele e dividecom uma parede. Isso ele fez no SBT,quando brigou com o Marcos Wil-son, foi para a Record e fez a mes-ma coisa. Os repórteres são dele.Muitas vezes, num evento só, ha-via dois repórteres do SBT, um daRedação e outro do Boris.

JORNAL DA ABI – ENTÃO ELE NÃO CONFIA

NAS OUTRAS EQUIPES?Eliakim Araujo – Não. Uma vez,

o Sílvio pediu a ele: “Eu quero que ocasal do Jornal do SBT faça o sába-do para você” e ele “De jeito nenhum.Eles não têm a mesma formação,minha equipe tem um tipo de for-mação, o lado de lá é outra forma-ção”. Ele era uma figura assim.Agora, por que caiu? Eu acho que elecansou, e as pessoas perceberamque ele não era tudo aquilo. A históriadele foi aos poucos sendo levantada,e agora recentemente a gente viu arevista O Cruzeiro, de 1967 ou 1968,que aflorou aí, com o pessoal doComando de Caça aos Comunistas,que tem a foto de todos, e está lá afoto dele. Tem várias figuras conhe-cidas lá. Aí o Sílvio foi acabando comtudo, ele nunca gostou de notícia,Sílvio gosta de shows. Nesse entre-tempo surgiu a chance de vir paracá. E aqui ficamos, três anos na CBS.

JORNAL DA ABI – COMO FOI ESSA HISTÓ-RIA? POR QUE O SBT MANTEVE UM JORNA-LISMO MISTURANDO O JORNAL DO SBT COM

O CBS TELENOTÍCIAS?Eliakim Araujo – Nós tínhamos

um contrato com o Sílvio que dura-va mais um ou dois anos. Quando agente veio para cá, ele disse: “Eu nãovou terminar o contrato de vocês,vou emprestar vocês para a CBS”.Então ele ficou ligado à CBS pornossa causa. Começamos a operaraqui em outubro; em dezembro eleestava aqui e ficou apaixonado pelaCBS, ficou encantado!

JORNAL DA ABI – ELE NÃO CONHECIA?Eliakim Araujo – Não. Ele veio e

disse: “Vocês fazem 24 horas de no-tícia com esta equipe apenas? MeuDeus! Eu pago uma fortuna de jor-nalismo lá!”. E ele viu como o ame-ricano trabalha. Ele queria comprara CBS! Chegou a fazer uma propos-ta para comprar aquela estrutura ali,mas eles não venderam. E nós fica-mos emprestados à CBS. Mas elenão pagava. E eu disse: “Sílvio, cadêo nosso salário?” A gente ganhavabem no SBT. A moeda estava pau apau com o dólar, e a CBS disse: “Nóspagamos a metade, o Sílvio paga aoutra metade”. O Sílvio nunca pa-gou. E por causa disso ele conseguiufazer essa mistura de jornalismo,que era uma coisa terrível: entravacom um pedaço gravado pelo Her-mano Henning e misturava com onosso aqui, era uma coisa muitolouca. Claro que o canal não faturouno Brasil, que era um canal em por-tuguês para vender no Brasil. Entãoa CBS vendeu o canal para um gru-

po mexicano, que rapidamente esva-ziou e vendeu o que restou para aNBC. E o canal acabou, tanto emespanhol quanto em português.Mas o nosso, em português, eramuito interessante. Enquanto oespanhol tinha uma estrutura de150 pessoas, nós tínhamos 50 e fa-zíamos um produto tão bom, oumelhor, do que o falado em espanhol.Era isso o que pessoal da direção dizia.Era uma equipe muito boa. Algunsestavam aqui, outros vieram do Bra-sil, chefiados pelo Marcos Wilson.

JORNAL DA ABI – QUANTAS HORAS VOCÊS

FICAVAM NO AR?Eliakim Araujo – O canal era 24

horas. O sistema era rotativo, nósficávamos em torno de oito horaspor dia. É o sistema americano. Vocêchegava às duas e saía às nove, dezhoras da noite. Você vai atualizan-do as notícias, como aquela histó-ria que fizemos na Rádio JB. Só queaqui já era com computadores, nósestamos na era da tecnologia. Aqui-lo era misturado randomicamentepelo computador, um negócio sen-sacional. O computador avaliava oque era velho, o que era novo – nãosei como funcionava essa tecnolo-gia – e ia criando seqüências de meiahora de notícias. No fim de um certotempo, começamos a pensar emcriar programas, se não íamos ficarsó em notícias. E logo depois entrouno ar a GloboNews em Miami. Essafoi uma das causas porque acaboutambém; nessa altura a Globo fezuma parceria com a NBC que tinhacomprado o que restou, o espólio.

JORNAL DA ABI – ESSA IDÉIA DA CBS DE

FAZER UM CANAL EM PORTUGUÊS NÃO ERA

MUITO EXAGERADA? TINHA PÚBLICO?

Eliakim Araujo – Na época tinha,hoje é ridículo você pensar nisso,porque desde que a Globo chegouaqui, acabou. Quando chegamos,ao lado da CBS, das 24 horas denotícias, em duas meia horas entra-va noticiário em português aqui. Eraum sucesso, às duas e meia da tar-de e às seis e meia da noite. A gentefazia para o canal espanhol, o CBSTelenotícias em espanhol. Estavaindo bem o negócio. Mas no Brasilnão vendia. Houve erros de adminis-tração também, e o canal não ren-deu. Mas havia público. Anos atráshavia outra realidade em Miami .Eram exibidos vários programinhasbrasileiros, de meia hora aqui, meiahora ali. Quando chegou a Globo,acabou com tudo isso. Como a pre-sença da Globo é muito forte, elamatou toda a produção local. Oanunciante não quer veicular numcanal de visibilidade pequena e pa-gar quase o mesmo preço que pagapara ter um anúncio na Globo.

JORNAL DA ABI – POR ISSO É QUE TEM TANTA

PROPAGANDA RUIM VEICULADA NA GLOBO,EM MIAMI?

Eliakim Araujo – Exatamente. Aprodução do comercial não pode seralta senão vai ficar mais caro do queo que o anunciante paga para veicu-lar seu anúncio na Globo! Nós esta-mos trabalhando com isso aqui. Eue a Leila temos uma produtora e fa-zemos a mídia na Globo. A gente criao comercial, produz, e fica ótimo.

JORNAL DA ABI – VOCÊS NÃO SE ASSUSTA-RAM COM ESSA MUDANÇA DO BRASIL PARA

OS ESTADOS UNIDOS?Eliakim Araujo – Nos assusta-

mos. Mudar de país... isso tudo foimeio no susto! “Vamos? Vamos!”.

Metemos tudo no caminhão e nãoolhamos para trás. No dia 30 de se-tembro de 1997 a gente estava de-sembarcando aqui, com malas, ba-gagens e dois filhos pequenos. O Lu-cas, com 5 anos, e a Ana, com 13. Foiuma mudança radical e não estamosarrependidos. É verdade que ao finaldo projeto CBS a gente deveria tervoltado para o Brasil. A gente teriaespaço na televisão brasileira. Hojenão tem mais.

JORNAL DA ABI – MAS VALIA A PENA VOL-TAR, COM A FAMÍLIA AQUI E A VIOLÊNCIA

NO BRASIL AUMENTANDO ASSUSTADORA-MENTE?

Eliakim Araujo – Isto aqui é umparaíso. Todo dia a gente anda 40minutos aqui na rua, vamos a pé aosupermercado. A gente ganha me-nos do que ganhava quando estavano Brasil. Mas temos uma qualida-de de vida excepcional. Para ter estaqualidade de vida no Brasil, uma casacomo esta, tem que ter milhões.Em Ipanema você não compramais nada bom com 500 mil reais.E profissionalmente hoje a fila jáandou. Leila tem um potencial es-petacular. É a melhor repórter aovivo que já vi na vida. Você abre omicrofone dela ao vivo em qualquerevento e ela faz miséria. Mas nãoestamos arrependidos, acumula-mos uma experiência que eu consi-dero muito boa, porque a genteamadureceu. Se a gente fosse hojepara o Brasil, seria uma supernovi-dade, pela maneira como iríamostrabalhar. A gente conhece muitosbrasileiros aqui porque trabalhamosmuito com eles. E não há ninguém,em sã consciência, que pense emvoltar. E quando alguém tem quevoltar, você sente o clima de derro-ta. Volta por algum motivo, eu nãofalo do pessoal que volta deportado.Esse é o pessoal mais humilde, quevolta porque não tem documento.Todo dia volta gente.

JORNAL DA ABI – VOCÊ É CIDADÃO AMERI-CANO?

Eliakim Araujo – Há muito tem-po. Você é obrigado a ser. Você moraaqui, declara imposto de renda. OGreen Card saiu rápido. Como agente tinha o aval da CBS, que é umaempresa americana, o Green Cardsaiu fácil. Depois de cinco anos, vocêfica pendurado no Green Card, vocêé meio cidadão. Aí acaba fazendo acidadania para gozar de alguns direi-tos, como aposentadoria e outrascoisas. De fato, se voltar, é um grandechoque. De lá para cá foi um susto.Agora, daqui para lá vai ser um cho-que. Mudou muito, mudou tudo.

JORNAL DA ABI – PENSANDO ASSIM, NÃO

FOI A MELHOR COISA QUE ACONTECEU PARA

A SUA FAMÍLIA?Eliakim Araujo – Pode ter sido.

Talvez financeiramente não, lá agente ganhava muito mais. Mas agente está bem. E quando se temfamília a gente dá muito valor a isso.A minha filha, Ana Beatriz, é mui-to dedicada, com 27 anos já tem umbaita currículo. Cursou Jornalismo

na Florida International University,em Miami. Saiu uma ótima profis-sional e imediatamente estavaempregada em jornalismo, que éuma coisa difícil aqui. Trabalhou nosprincipais jornais como estagiária,primeiro, e depois empregou-se emum jornal da Virgínia, o RoanokeTimes. Um ano depois foi contratadapelo Star News, de Wilmington,Carolina do Norte, que é da rede doThe New York Times. Inquieta e sem-pre procurando novos caminhos, elafoi aprovada em concurso para oprograma de bolsas Erasmus Mun-dus, patrocinado pela União Euro-péia. O primeiro ano ela cursou naDinamarca e o segundo na Polônia,onde está agora. Nas férias de verão,fez um estágio de seis semanas naOrganização Mundial de Saúde, emGenebra. Ela sonha com a carreiradiplomática, nos Estados Unidosou no Brasil. Tomara, né? Já o Lucas,o caçula, chegou com cinco anos efoi alfabetizado em inglês, mas falao português corretamente, semsotaque. Está no segundo ano daUniversity of Central Florida-UCF,cursando Computer Engineering eComputer Science. Além dos dois,tenho outros dois do primeiro casa-mento. O Alexandre é publicitárioe mora em São Paulo e o Frederico,que mora na Flórida, onde trabalhacomo músico, é baterista.

(Nesse momento chega Leila Cordei-ro, esfuziante, que é convidada a parti-cipar do papo.)

JORNAL DA ABI – DÁ PARA COMPARAR OS

TELEJORNAIS BRASILEIROS COM OS AME-RICANOS?

Eliakim Araujo – É uma diferen-ça... Para começar, aqui você temapresentadores com mais de 60anos: a Diane Sawyer, que é a prin-cipal hoje.

Leila Cordeiro – A Diane Sawyeré a minha “ídala”, é a melhor apre-sentadora do mundo, não tem iguala ela. Os americanos não escondemas coisas. Quando teve o terremotono Japão, eles compararam às ima-gens de Nagazaki e Hiroshima, bo-taram a tela dividida. E a Diane temo tom certo! Não é uma boa apresen-tadora porque sabe ler, não, é porqueela sabe interpretar a notícia, dandouma opinião só com o olhar, só comuma palavra. Então, ela pegou aquelacoisa, ficou consternada, acompa-nhou tudo, fez matérias maravilho-sas! A mulher chega lá, está descabe-lada, não está preocupada se está commaquiagem, se está com óculos,nada. É um show o que ela faz, tododia dá um show de jornalismo. Ape-sar de a televisão brasileira ser boa,mas em conteúdo... No Brasil estãousando agora o Skype. Aqui, desdeque o Skype entrou no ar, eles botamos repórteres para aparecer. Não temaquela coisa engessada, do cara terque aparecer todo arrumadinho. AGlobo agora começou a soltar asamarras. Você tem que ler natural-mente, tem que olhar para a pessoae conversar ou conversar com o teles-pectador. Na Globo as coisa funcio-

FRANC

ISCO

UC

HA

Coqueiros, estrelas, flores, casas coloridas: temas usuais de alguns dos quadros queLeila Cordeiro pinta nas horas vagas, revelando-se uma inspirada artista plástica.

17Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

nam porque aquelas pessoas foramcriadas ali, naquela mentalidade. Éuma coisa corporativa. É uma máqui-na, e as pessoas são as peças daquelamáquina, mas que só funcionam ali.Se saírem dali, não funcionam.

Eliakim Araujo – Você sabe? Aquias emissoras de notícias assumemabertamente suas posições políti-cas, não é como no Brasil, onde fin-gem ser isentas, mas no fundo sa-bemos que defendem com unhas edentes seus interesses. Nos EstadosUnidos você tem a direitista FoxNews, criação do tal Rupert Mur-doch, que está agora enrolado até opescoço com o escândalo do sema-nário inglês. Murdoch é um velho-te malandro que decidiu criar umcanal para atender ao grande públi-co que forma a classe média ameri-cana. Seus âncoras do Prime Time eseus comentaristas assumem quesão oposição a Obama, detestamimigrantes e não aceitam qualquerrestrição ao porte de armas. São di-reitistas raivosos, mas competentes,especialmente Bill O’Reilly e SeanHannity. Na outra extremidade,você tem a MSNBC, de orientaçãoliberal e abertamente simpática aosdemocratas. Não dá pra dizer queseja de esquerda, mas tem idéiasmuito mais modernas que os con-correntes da Fox. No centro, pode-mos dizer que está a CNN, que é apioneira no segmento de jornalismonos canais a cabo e se gaba de ser amaior rede de notícias do mundo.Tenta passar uma linha política isen-ta e até certo ponto consegue. Suapreocupação maior é com a notícia enão se notam comentários tenden-ciosos de seus analistas.

JORNAL DA ABI – MAS A CNN NÃO ESTAVA

EM CRISE, SOBRETUDO POR CAUSA DA FOX?Eliakim Araujo – Ela perdeu au-

diência. Por incrível que pareça, aaudiência líder é da Fox. Nos outroscanais abertos, você vê um jornalis-mo bastante imparcial. Eu não sin-to aquela coisa pré-concebida. É cla-ro que eles têm a visão americana doconflito na Líbia, mas eles tambémdizem que o Governo americanoapoiou Kadafi a vida toda. A CBS,que é uma emissora tradicional tam-bém, não tem canal a cabo, é bastan-te imparcial. Isso eu acho legal. NoBrasil, você vê nitidamente aquelascoisas de cartas marcadas. O brasi-leiro pode ter calor humano, pode tertudo, mas o apresentador é formal,frio, 3 por 4. Aqui o cara levanta,aparece a gravata solta, é tudo natu-ral. Se tiver que beber água, bebe.

JORNAL DA ABI – A QUE SE DEVE ISSO?Eliakim Araujo – Não tem nada

a ver com essa coisa de calor huma-no, não. O brasileiro pode ter calorhumano, pode ser mais latino, tudoisso pode ser, mas ali na telinha éoutra história. Leila tem uma ex-pressão, que é a seguinte, os carassão meio atores, todo mundo aquié meio ator, o povão fala na ruainterpretando: “I’m so sorry!” Elessão assim. E isso é na televisão tam-bém. A Diane Sawyer é uma atriz.

JORNAL DA ABI – VOCÊS JÁ FAZIAM ISSO

NO BRASIL?Leila Cordeiro – Fazíamos muito.

Mas as pessoas pensavam que agente fazia porque era marido emulher. Não é nada disso! É porqueele sabia fazer e eu sabia fazer.

JORNAL DA ABI – MAS NAQUELA ÉPOCA SER

MARIDO E MULHER NÃO ATRAPALHOU?Leila Cordeiro – Na época, sim,

porque não existia isso. Agora, todahora tem marido e mulher. Naquelaépoca não tinha. Podia ter um tico-tico-no-fubá que ninguém soubes-se, mas que moravam juntos éra-mos nós dois só. E nós fazíamosaquele jornal sob muita pressão.Porque tinha neguinho doido paraderrubar a gente. Saímos de lá porisso; estava demais. Então, quandopedimos demissão da Globo, já ti-nhamos acertado com a Manchete.Aí fomos ao Boni e pedimos a libe-ração do nosso contrato, que ele nãoqueria dar. Ele sugeriu que a genteficasse seis meses de férias viajando.Falamos: “De jeito nenhum, a gen-te não é marajá. Marajá de jornalis-mo não existe”. Depois, quando vol-tássemos, já teríamos perdido o lu-gar e já teria perdido a Manchetetambém. Fizemos o distrato e saímosno carro do velho Bloch, que estavalá esperando a gente na porta da Glo-bo. E fomos para a Manchete assi-nar o contrato. Mas aí eles começa-ram a criar problemas, porque come-çaram a desconfiar. Eu não entendiessa, porque eles foram tão ingênu-os. O Alberico falou: “Então jura prágente que vocês não vão para a con-corrência”. A gente falou “juro!”. Masnão foi o Alberico que liberou, foi oBoni. Ele se convenceu quando faleique não havia mais clima para ficarali, que a gente queria ir embora, fazeroutras coisas. Não tinha sentido aemissora prender a gente.

JORNAL DA ABI – E A SUA VISÃO DE QUAN-DO RECEBEU A PROPOSTA DA CBS?

Leila Cordeiro – Eu fui a primei-ra a empacotar tudo e vir emborapara cá! Porque a gente já conheciaMiami e eu estava pensando nosfilhos. Queria que eles viessem etivessem a chance de estudar aqui,de morar em outro país. E quandosurgiu essa oportunidade, falei “Te-mos que ir!”. Até por nós mesmos.O SBT não tinha ninguém no exte-rior, nem a Band, só a Globo tinha.

JORNAL DA ABI – E COMO VOCÊS RECEBE-RAM A CHEGADA DA INTERNET?

Leila Cordeiro – O computadorveio para melhorar muito a vida dagente, mas por outro lado veio paraacabar com muita coisa tradicional.Você vê esses tablets? Ninguémmais quer saber de ler livro de papelagora! É tudo nos tablets. As esco-las daqui já estão colocando os ta-blets. Tudo em e-books!

Eliakim Araujo – Olha aqui! (mos-trando o notebook) Nossa empresadistribui uma newsletter, que é umresumo das notícias do dia comnova roupagem, com o texto nosso,mas como a gente pesquisa vários

jornais do mundo, a gente faz umacoisa bem legal.

JORNAL DA ABI – COMO É ESSE TRABALHO?Eliakim Araujo – A nossa empresa

é contratada para fornecer umanewsletter diária, de segunda a sex-ta, para distribuir para quatro, cincomil pessoas, clientes e funcionários.

JORNAL DA ABI – VOCÊS DISPARAM DAQUI

PARA ESSES CINCO MIL ENDEREÇOS?Eliakim Araujo – A gente dispara

daqui. Evidente que a gente não vaipara a rua pesquisar a notícia. Asnotícias estão aí. Você precisa pegara notícia, ter critério de escolher deacordo com a vontade do cliente. Aspessoas adoram. A gente bota víde-os, é um negócio muito bonito.

JORNAL DA ABI – A INTERNET DÁ TANTAS

COISAS DE GRAÇA, QUE VOCÊ PODE FAZER

CENTENAS DE PROJETOS SEM GASTAR UM

TOSTÃO.Eliakim Araujo – É uma revolu-

ção. Você grava na sua câmera, aper-ta e põe lá na hora. Temos vídeosmodernos, bons, no YouTube. O quea gente queria era fazer uma coisadaqui de Miami para o Brasil, umprograma de qualidade mostrandocomo o brasileiro vive aqui. Não énenhuma novidade, mas mostrarcom o nosso jeito de fazer. A gentetem condições de produzir um pro-grama de meia hora, semanal, comqualidade e um custo baixíssimo. Onosso estúdio é aqui em casa, comequipamento de primeira.

JORNAL DA ABI – PORQUE VOCÊS NÃO

APROVEITAM AS FERRAMENTAS DO YOUTUBE

PARA APRESENTAR PROJETOS?Leila Cordeiro – A gente até pen-

sa nisso, mas para fazer isso é umtrabalho... Como já fomos de tele-visão, se não fizermos uma coisadecente as pessoas já vão dizer:“Hum, que decadência”.

JORNAL DA ABI – FOI MAIS OU MENOS O QUE

ACONTECEU COM DIVERSOS PROJETOS CONS-TRANGEDORES APRESENTADOS NA TV UOL...

Leila Cordeiro – É... Quer dizer,estão fazendo uma bobagem aí. Paranão fazer um trabalho decente émelhor não fazer. Com os vídeos, agente tem uma produção boa e gran-de. Fizemos o Conexão América. Massão vídeos editados, de oito minutos,dez minutos, que a gente fez comreportagem, roteiro, faz tudo boni-tinho. Tem muita coisa que a gentefez agora. Pesquisa Conexão América,Eliakim Araujo e Leila Cordeiro noYouTube; lá tem vários vídeos.

JORNAL DA ABI – HÁ VÁRIOS CANAIS PA-GOS NO BRASIL, E MUITOS DELES, SÓ DE

NOTÍCIAS. VOCÊS JÁ FORAM SONDADOS

PARA FAZER ALGUM PROGRAMA DAQUI DE

MIAMI, COMO O CONEXÃO AMÉRICA, POR

EXEMPLO?Leila Cordeiro – A gente já tentou

fazer coisas daqui. O Eliakim chegoua fazer para a Record um programaparecido com o 60 Minutes em por-tuguês, mas a gente não queria sóisso, a gente queria muito mais.Porque temos condições de fazer re-

portagem. O Conexão América quetínhamos aqui era excelente, muitobem produzido. A gente conseguiuexibir o programa, só que numaemissora local, que ninguém via.

JORNAL DA ABI – VOCÊS MOSTRARAM ESSE

TRABALHO PARA ALGUÉM NO BRASIL?Leila Cordeiro – Conversamos

com várias pessoas, mas o proble-ma é que eles acham que, para fa-zer qualquer coisa aqui, têm quemanter uma estrutura deles, por-que não querem perder o controle.Eles não conseguem entender quenão precisavam ter nenhuma es-trutura aqui! Nós já temos! Era sóa gente fazer, mandar para elesbotarem no ar. Não tem mistério.Nós fomos falar com o (Johnny)Saad, da Band; ele recebeu a gente,sentamos à mesa dele, com aquelavista maravilhosa. Mas eles nãoconseguem ter essa visão, isso é umacoisa impressionante. Eles preferemNova York. Miami é um lugar quenão interessa. Têm um certo pre-conceito; pensam que aqui é umlugar de sacoleiros, de cubanos, umacoisa cafona, brega. E não é nadadisso. É uma visão equivocada, dis-torcida. Há muito investimento debrasileiros aqui. A gente tem 64 pro-gramas feitos. Sendo que, num de-les, nós fomos a Nova York fazeruma cobertura onde estiveram pre-sentes vários Governadores brasilei-ros, além do Bill Clinton e do velhoBush. Ninguém do Brasil cobriu isso,e a gente cobriu tudo em Nova York.

JORNAL DA ABI – QUANDO ACONTECEU ISSO?Leila Cordeiro – Em 2007. Na

verdade, eles têm medo porque nãoé um mercado que conheçam, ne-nhuma emissora conhece Miami. Eacham que é caríssimo, que tudo éum escândalo de caro. Só que nãosabem que a gente consegue fazerisso baratíssimo.

JORNAL DA ABI – VOCÊS ACHAM QUE OJORNALISMO DE PAPEL VAI ACABAR?

Eliakim Araujo – Dizem que tematé data marcada. Mas eu acho quevai acabar, e você não precisa irmuito longe. No Rio, a Tribuna daImprensa e o grande Jornal do Brasil,que acabou há um ano, já viraram‘online’. As pessoas agora lêem pelainternet. Eu leio o The New YorkTimes online. O The New York Timesestá numa crise brava.

Leila Cordeiro – Guardadas asdevidas proporções, acho que vai sermais ou menos o que aconteceuentre o rádio e a tv. Quando a tele-visão surgiu, a rádio foi ficando paratrás. Mas a rádio não morreu, se

renovou. Teve um período, logo quea televisão surgiu, que o rádio foipara baixo. Pode ser que aconteçaisso também, que os jornais descu-bram uma forma de fazer algumacoisa interessante. Esse negócio decomputador, depois que a genteacostuma... Olha, é melhor ficar semtelevisão do que sem computador!

JORNAL DA ABI – O JORNALISMO DIÁRIO

IMPRESSO NÃO TERIA DE MUDAR A FORMA

DE SE APRESENTAR? TER OPINIÃO?Eliakim Araujo – Não sei. Eu leio

tudo no computador. Acabaramaquelas enciclopédias fantásticas.Antigamente havia aqueles vende-dores da Barsa. O cara vinha comaquele calhamaço e lhe convencia acomprar. Mas o papel, aqueles li-vros, além de serem pesados, no casodas enciclopédias, se desatualizamcom muita facilidade. E na internetvocê corrige na hora. Então, acho queo papel como suporte está condena-do. É uma questão de tempo. Masevidentemente, tem gente tradicio-nal que não acostuma, gosta depegar no jornal, sentir o papel. Maso pessoal mais jovem, não.

JORNAL DA ABI – COMO FOI A CRIAÇÃO DO

SITE DIRETO NA REDAÇÃO, QUE ACABOU

DE COMPLETAR DEZ ANOS, E PORQUE VOCÊ

E A LEILA DECIDIRAM CRIAR ESSE ESPAÇO

NA INTERNET?Eliakim Araujo – O Direto da Re-

dação surgiu num período de entres-safra. O projeto CBS Brasil fora desa-tivado e estávamos em busca de al-guma coisa que pudesse nos manterna mídia, mesmo morando fora doBrasil. Como a internet estava estou-rando naquele momento, com o apa-recimento de vários sites de jornalis-mo de opinião, como o No Mínimo,decidimos entrar na onda. Convideialguns amigos que trabalharam co-nosco no projeto CBS Brasil e toca-mos em frente. O curioso é que aprimeira newsletter foi distribuída nodia 3 de agosto de 2001, quando euestava em São Paulo me restabelecen-do de uma cirurgia de hérnia. E apostagem foi toda operada a partir deum desktop de um amigo em Ati-baia, o que veio reforçar a importân-cia da internet, como instrumento deconexão entre o editor e os colunistassediados em várias partes do mundo.

De lá pra cá, o website cresceu.Houve mudanças no time de colunis-tas, mas a bandeira da liberdade deopinião tem sido mantida através dostempos. Atualmente são doze colu-nistas e eles não recebem um tostão;escrevem pelo prazer de não serempautados ou censurados. Por isso po-demos nos dar ao luxo de não aceitarpatrocinadores. Também não recebe-mos verbas de partidos políticos,como alguém já insinuou. A despesade manutenção é quase zero, e quan-do é preciso investir em nova pagina-ção encontramos sempre amigos quetopam trabalhar para o DR em tro-ca de uma referência no site ou umpequeno banner. O diretodaredacao.com recebe cerca de 30 mil visitan-tes por mês, o que dá uma boa mé-dia de mil visitas ao dia.

“Ninguém maisquer saber de

ler livro de papel.Agora é tudonos tablets.”

18 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – O QUE SURGIU PRIMEIRO

NA SUA VIDA PROFISSIONAL: A ANTROPO-LOGIA OU AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?

André Toral – Eu sempre fiz qua-drinhos, sempre gostei de quadri-nhos. Comecei quando tinha 17anos, saí do colegial, entrei para afaculdade mas nunca havia publica-do uma história em quadrinhos, enão publiquei até ter cerca de 30 anos.Comecei tarde. Eu sempre desenha-va, sempre me informava, consumiamuito quadrinho. Fiz Ciências Soci-ais, e depois na pós-graduação vocêopta por um dos ramos das Ciênci-as Sociais: Antropologia, Sociologiaou Política. Fiz mestrado em Antro-pologia. É aí que se forma antropó-logo... no mestrado. Trabalhei comoantropólogo até os 40 anos pratica-mente. Dava consultoria para diver-sas instituições: Funai, Procuradoriada República, Justiça Federal, Gover-no Federal, organizações religiosas,organizações laicas, e a partir dos 40anos fiz doutorado em História daArte. Tenho minha vida bem dividi-da em dois períodos. Aos 30 anos,quando tive um problema na área daantropologia aplicada – trabalhavaem projetos práticos, como demar-cação de área, projetos de educação,projetos de criação de alternativaspara subsistência de povos indíge-nas e tal –, tive de ficar um tem-po em São Paulo, e meio comoprovocação, mandei umas his-tórias para a revista Animal, queestava procurando desenhis-tas. Foi uma namorada minha

que me incentivou: “Manda!”Eu falei: “Imagina. Ninguém vaigostar destes trabalhos”. “Man-da de qualquer jeito, você não per-de nada. Ninguém olha os seustrabalhos, fica tudo na gaveta...”Eu mandei, e a minha surpresa foi

que a Animal não só gostou como re-solveu publicar aquela loucura toda.E isso foi péssimo... No primeiro nú-mero em que saíram meus trabalhos,o André Forastieri caiu de pau na Fo-lha de S. Paulo, falando que era horrí-vel. Eu fiquei arrasado.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI ESSE TRABALHO?André Toral – Era uma série de tra-

balhos chamado Pesadelos Paraguai-os. A Animal publicou no final dosanos 1980.

JORNAL DA ABI – POR QUE ELE ACHOU TÃO

RUIM?André Toral – Porque era feito com

lápis de cor, era um trabalho que fi-cava na linha entre arte e hq. E eraestranho. Era um trabalho esquisi-to. Deram um grande destaque e eracompletamente diferente da formade quadrinhos.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONCORDA COM AOPINIÃO DO FORASTIERI HOJE?

André Toral – Não. Depois o Fo-rastieri reviu a opinião dele, ele gos-tou quando se acostumou um pou-co com a linguagem. Coisa que nun-ca vi um jornalista fazer. Fez umaautocrítica ao vivo e publicou: “Eu ti-nha uma opinião do André Toral,mas agora mudei minha opinião”.

TORAL

O importante é a viagem

Um dos mais destacadosquadrinistas do Brasil é

antropólogo, enfrentou aburocracia da Funai e osperigos da profissão e

agora decidiu mudar deares: “O que importa nãoé a realidade, mas o que

a gente faz com ela.”

POR FRANCISCO UCHA E CESAR SILVA

Quando se lê uma história em quadrinhos criada por André To-ral, logo se tem certeza de que aquelas páginas têm algo que a di-ferenciam de boa parte da produção do gênero. Não se trata apenasdo seu traço marcante e dos criativos enquadramentos. Seus qua-drinhos têm consistência histórica, roteiros minuciosamente ela-borados e os diálogos dos personagens geralmente reproduzem otempo e o local onde estão inseridos. Adeus Chamigo Brasileiro,verdadeira obra-prima que conta histórias sobre a Guerra do Para-guai, é fruto de uma profunda pesquisa acadêmica e foi sua tese dedoutorado. “O quadrinho é uma linguagem tão boa quanto a lite-ratura para se falar de ciência. O quadrinho não ilustra o texto, temautonomia como linguagem”, disse Toral.

Filho de dois destacados intelectuais – a historiadora e crítica dearte Aracy A. Amaral e o prestigiado artista plástico chileno MárioToral –, desde criança o quadrinista conviveu num ambiente rode-ado pela arte, mas chegou a ter complexo por não fazer uma “arteséria”, e sim quadrinhos. Puro engano. Sua obra é consistente e fazparte do que de melhor se produziu em hq no Brasil.

André Toral é antropólogo e atuou por trinta anos como indi-genista a serviço de diversos órgãos públicos. Seu autor preferidoé Hergé, criador de um personagem ícone das bandas desenhadas

ANDRÉ

européias: Tintin. “Hergé me ensinou que hq é trabalho duro, nadavem fácil, tudo tem que ser construído”, disse. Mas ele confessa quetem uma relação “agoniada” com os quadrinhos: “Desenho mui-to devagar no lápis. Faço, não gosto; faço, não gosto; faço, gosto,acordo, não gosto, apago, faço de novo. Isso é defeito de quem nuncaganhou dinheiro com quadrinhos, como é o meu caso”, admite.

Seu envolvimento com essa arte começou na cultuada revistaAnimal. O álbum de estréia foi O Negócio do Sertão: Como Descolaruma Grana no Século XVII, premiado com o HQ Mix de Melhor Ro-teirista. Agora chega às livrarias um novo álbum que reúne algumasdas pequenas histórias publicadas na revista Brasileiros: Curtas e Es-cabrosas mostra que as narrativas não precisam ter muitas páginaspara serem uma grande história. A maioria tem apenas duas. Pouco,mas o suficiente para Toral nos surpreender a cada quadrinho.

Nesta entrevista ao Jornal da ABI, André Toral nos conta tam-bém seu processo de criação e os perigos que enfrentou como an-tropólogo: “Eu não tinha a menor idéia do poder das pessoas coma qual a gente se batia, das ameaças concretas que estavam rolan-do”. Não é à toa que a leitura é tão densa e prazerosa. “Faço uma his-tória e ela vale pelo que se desenvolve. A travessia é o que conta, nãoé a chegada. A viagem é o importante”. Boa viagem.

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19Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

Achei ótimo isso, porque o meu tra-balho também ficou bastante dife-rente. Mas, enfim, essa série Pesade-los Paraguaios são os pesadelos queum soldado paraguaio tem antes demorrer. E o que é que ele sonha?Então eu fiz os brasileiros comomonstros, como os paraguaios nosimaginavam, como assassinos. E fi-cou uma coisa estranhíssima. AAnimal publicou três episódios.Como não dependia de quadrinhospara sobreviver, levava muitíssimotempo para fazer uma página. Erauma coisa completamente antico-mercial. Mas era o que eu achavaque era arte, quadrinhos. Gostomuito de um artista que chamaMattotti [Lorenzo Mattotti], dese-nhista italiano que publicou naL’Echo des Savanes...

JORNAL DA ABI – VOCÊ NÃO PENSAVA EM SE

TORNAR UM QUADRINISTA PROFISSIONAL?André Toral – Era ridículo o que se

pagava por página... e ainda paga.Cerca de 40 dólares. É uma coisa ri-dícula. Fiz as contas e descobri quea minha diarista ganhava mais doque eu fazendo quadrinhos. O queeu ganhava numa página a minhadiarista ganhava num dia. Mascomo não conseguia fazer uma pá-gina num dia, então ela ganhavamais do que eu, é claro.

JORNAL DA ABI – A MAIORIA DOS PROFIS-SIONAIS DE QUADRINHOS TEM QUE FAZER

MUITAS PÁGINAS POR DIA PARA PODER SE

SUSTENTAR...André Toral – Ou ter um segun-

do emprego. Eu continuava traba-lhando como antropólogo. Mas amedida em que as encomendas fo-ram aumentando, comecei a fazeruma coisa mais rápida; deixei o lápisde cor de lado e fiz uma história comnanquim, uma coisa fácil de enten-der, normal, em branco e preto. Fiz asérie O Carrasco da Mooca e fiqueimuito orgulhoso de mim mesmoporque tinha feito uma coisa queparecia história em quadrinhos.

JORNAL DA ABI – PESADELOS PARAGUAI-OS SAIU MUITO ANTES DESSA SÉRIE?

André Toral – Bem próximo. Foiuma espécie de desafio que coloqueipara mim mesmo: “Puxa, suas his-tórias são muito estranhas. Nin-guém vai entender o que quer dizer.Lápis de cor? Faz uma coisa maisnormal”. Então fiz uma história detrês páginas, normalíssima, embranco e preto com nanquim.

JORNAL DA ABI – VOCÊ DISSE QUE TEVE UM

PROBLEMA COM O SEU TRABALHO DE AN-TROPÓLOGO. QUE TIPO DE PROBLEMA?

André Toral – É, vivia metido emproblemas de indigenismo, advoga-do que me processava, fazendeiroque me ameaçava, Funai que não

dava autorização, era uma coisamuito instável. Fazer quadrinho erauma coisa sossegada, que eu podiafazer aqui em São Paulo. Comecei afazer histórias de violência urbana.Percebi que precisava assumir quegostava disso; não podia ficar levan-do as histórias em quadrinhos comouma amante e ficar apresentandoa antropologia como a mulher ofi-cial. Não que eu não gostasse deantropologia. Gosto muito, mas aantropologia aplicada traz muitoproblema. Uma coisa que me deixoumuito animado foi quando uma edi-tora chamada Dealer me propôs:“Quer fazer uma história em qua-drinhos? Faz uma grafic novel quecompramos”. E me fez uma pro-posta concreta. Na época era umamodorra: a Animal comprando pou-ca coisa, a Chiclete com Bananamenos, muita gente sem opção! Aíchega essa editora comprando coi-sa de todo mundo. Comprou geral,comprou minha, do Mutarelli...

JORNAL DA ABI – E PAGOU?André Toral – Pagou na hora, em

cash. Todo mundo publicou tudo oque tinha e, num curto espaço detempo. A Dealer publicava, masalgo deu errado e não deu dinheiro.Depois parou de comprar. Mas essaeditora publicou muita gente nes-sa época. Depois disso, resolvi fazerparte da minha tese de doutoradoem linguagem de quadrinhos! En-tão minha tese tem duas partes:uma é a tese normal; a outra parteeu uso o conhecimento da minhatese normal para explicar os fatosatravés da linguagem dos quadri-nhos. No meu doutorado estavaestudando como se pode falar deuma guerra através das imagens quese produzem numa guerra. Como sefala da Guerra do Paraguai a partirde suas representações visuais. Equem falava da Guerra do Paraguai?Os artistas que viviam na época, osfotógrafos, os gravuristas, os aqua-relistas, todos eles têm uma imagem.Os paraguaios retratam os brasilei-ros como monstros, os brasileiros re-tratam os paraguaios como um ban-do de índios, os argentinos retratamos brasileiros como macacos e os pa-raguaios como índios. Então é comose você fosse analisar o noticiário po-lítico dos nossos dias por meio dacharge do Angeli. Você acompanhaaquilo que o Angeli fala e dá parasaber mais ou menos o que aconte-ce. Fiz isso com a caricatura do Bra-sil, da Argentina, do Paraguai e doUruguai, com as pinturas produzi-das nesses países, com as gravurasproduzidas, e com todas as imagens.Aí eu tenho um panorama da guer-ra como uma representação visual.Queria saber que tipo de imagem seproduz nessa época! Como essasimagens abordam a guerra? E, atra-vés disso, chegar a uma ideologia, umconjunto de idéias expressas por es-sas pessoas.

JORNAL DA ABI – ONDE O MATERIAL ICO-NOGRÁFICO DA GUERRA DO PARAGUAI

ESTAVA DISPONÍVEL NA ÉPOCA?

André Toral – Esse período, de 1850até 1870, é o período que chamo deexplosão de imagens, porque apare-ceram diversas técnicas. A litografiaentrava na imprensa ilustrada, apa-rece a fotografia comercial, aparecemos pôsteres. Antes, a imagem era umprivilégio dos ricos, agora todo mun-do pode ter sua imagem, a fotogra-fia torna a imagem popular. Os jor-nais ilustrados, a caricatura, a chargee os quadrinhos aparecem nesse finalde século 19. Diversos desenhistasestrangeiros vêm para cá, como oFleuiss, Angelo Agostini, e eles come-çam a ilustrar como se ilustra lá fora.Eles copiam Daumier, a Punch, aspublicações da Inglaterra e da Fran-ça, que trazem essa novidade.

JORNAL DA ABI – A MAIORIA DA ICONO-GRAFIA QUE VOCÊ PESQUISOU FOI A PUBLI-CADA NA IMPRENSA?

André Toral – Na imprensa. Por-que a minha viagem começava pe-los jornais da época. A grande mer-cadoria que esses jornais traziameram as imagens, a imprensa pare-ce um boletim vivo, jornais de oitopáginas basicamente só de ilustra-ção, com os trabalhos do Agostini.Quando a Guerra do Paraguai come-ça, todos eles apóiam. Quando come-ça a dar errado, eles publicam: “vamossair dessa guerra, afinal, quem levoua gente para a guerra? Que vergonha!Essa guerra só interessa para os finan-

cistas, aos vendedores de armas, aosingleses, ao imperador... Vamos sair,não temos nada a ver com isso!” Equando o Brasil ganha a guerra final-mente, aí começam: “Fizemos bemem permanecer na guerra”. Como agente vem anotando o comporta-mento ao longo do tempo, a im-prensa é extremamente oportunis-ta. Ela flui como se fosse a maré. Amaré da opinião pública. Na verda-de, a imprensa não pode brigar como seu comprador.

JORNAL DA ABI – E COMO FICOU SUA TESE

DE DOUTORADO EM LINGUAGEM DE QUA-DRINHOS?

André Toral – Para pôr tudo issopara funcionar, bolei uma históriaem quadrinhos que se chama AdeusChamigo Brasileiro. Nela, aparecemo fotógrafo, o pintor, o gravurista.As duas partes da minha tese forampublicadas. A parte escrita se cha-ma Imagens em Desordem- A icono-grafia da Guerra do Paraguai, e foi pu-blicada pela Humanitas... é um li-vro normal. A história em quadri-nhos virou um álbum publicado pelaCompanhia das Letras. Foi umanovidade, estourou, Adeus ChamigoBrasileiro fez muito sucesso, na ver-dade pela tese subjacente à tese. Atese qual era? As imagens constitu-em uma guerra em particular, umaoutra guerra, ideológica. E a outratese era a de que o quadrinho pode

ser usado como veículo para se afir-mar ciência. Essa era a minha outratese: O quadrinho é uma linguagemtão boa quanto a literatura para sefalar de ciência. A imagem não é sim-plesmente ilustração, o quadrinhonão ilustra o texto, o quadrinho temautonomia como linguagem. AdeusChamigo Brasileiro é isso: uma teseque prova outra tese. Tem umahistória, mas através da história euquero provar uma idéia.

JORNAL DA ABI – E O QUE VOCÊ ACHA DES-SA TENDÊNCIA ATUAL DE OS EDITORES TE-REM MAIS INTERESSE EM PUBLICAR ADAP-TAÇÕES DE ROMANCES EM QUADRINHOS?

André Toral – Infelizmente, ago-ra o que eles reconhecem que rendeem termos de quadrinhos são osquadrinhos históricos, paradidáti-cos. Então o quadrinho continuasendo julgado como um gênero lite-rário de segunda categoria. Quandoo quadrinho é usado para represen-tar, ilustrar ou transcrever, por exem-plo, Iracema, de José de Alencar,Quincas Borba, de Machado de As-sis, a vida de Debret, é como se elesganhassem o estofo dado pela lite-ratura. Essa febre de paradidáticos,no fundo, é uma tentativa de dar dig-nidade de literatura ao quadrinho. Oque quero dizer é que não acreditonisso. Acho que se você quer lerQuincas Borba, por favor, compre olivro de Machado de Assis. Se vocêquer ler Brás Cubas, a mesma coisa.Porque sou professor e sei que quan-do você faz quadrinho você é tãoartista quanto Machado de Assis.

JORNAL DA ABI – NÃO É APENAS UMA ADAP-TAÇÃO...

André Toral – Não. Você está cri-ando outra coisa que não tem nadaa ver. Uma coisa é um livro, outra éo filme que se faz do livro que vocêvê no cinema. E outra coisa é oquadrinho. Mas o que está acimadessa idéia? Que a hq, na verdade,só é digna de ser levada à prateleiraquando ela ilustra a literatura! E éisso com que eu não concordo. Oartista de quadrinho tem que ter li-berdade criativa, tem que falar sobrea Guerra de Canudos, e não ilustrarOs Sertões. Agora, existe tambémum oportunismo, que eu acho im-portante salientar, nos paradidáticos,na seleção do Mec. Nenhum proble-ma... os meus livros foram todoscomprados pelo Mec e servem paraa educação das crianças. Acho ótimoisso. Mas o que acho esquisito é umaadaptação, por exemplo, de Iracema,onde você não faz a crítica do indige-nismo romântico, você compra a no-ção de José de Alencar de como era oíndio. Esse índio do Alencar era o ín-dio romântico, que existia idealiza-do no final do século 19. Não temnada a ver com o índio real. Quan-do você ilustra a obra do Alencar, temque colocar lá: “Leitor, este não é o ín-dio real; é o índio visto a partir daestética romântica, onde ele tem va-lores da cavalaria, como se fosse umcavaleiro medieval aprisionado napele de um índio”. Sem essa adver-tência, a pessoa pode ler isso sem ter

“O quadrinho tem autonomiacomo linguagem. Adeus

Chamigo Brasileiro é isso:uma tese que prova outra tese.”

Abaixo, uma página da tese em quadrinhosAdeus Chamigo Brasileiro. Ao lado, o monstro

brasileiro devorador de paraguaios na Animal.

20 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

a visão de que é um índio segundo avisão do indigenismo romântico doséculo 19. No romantismo, como agente sabe, não havia nenhum com-promisso com o que realmente acon-teceu. O romantismo é uma coisa, averdade histórica é outra.

JORNAL DA ABI – MAS A QUESTÃO DO OPOR-TUNISMO QUE VOCÊ FALOU É IMPORTAN-TE. NA REALIDADE, O EDITOR SÓ ESTÁ IN-TERESSADO EM PUBLICAR ADAPTAÇÕES DE

GRANDES ROMANCES EM QUADRINHOS

PELA PERSPECTIVA DE VENDA PARA O MEC.É DIFERENTE DA ÉPOCA EM QUE ADOLFO

AIZEN, DA EBAL, FAZIA ADAPTAÇÕES DE RO-MANCES, NA DÉCADA DE 1950. PORQUE OQUADRINHO NAQUELA ÉPOCA ERA PERSE-GUIDO, VISTO COMO UM FORMADOR DE DE-LINQÜENTES. O AIZEN QUERIA MUDAR ISSO,E ESSA FOI UMA DAS MANEIRAS QUE ELE

ENCONTROU PARA LEVAR OS QUADRINHOS

AOS EDUCADORES E INTELECTUAIS: PUBLI-CANDO ROMANCES EM QUADRINHOS E OU-TROS PRODUTOS EDUCATIVOS. ISSO ERA UMA

NOVIDADE NAQUELA ÉPOCA.André Toral – A História do Brasil

em Quadrinhos, por exemplo.

JORNAL DA ABI – SIM. ERAM DOIS LIVROS.DOIS VOLUMES LINDÍSSIMOS ILUSTRADOS

PELO IVAN WASTH RODRIGUES.André Toral – Tinha o desenho de

um índio amarrado na boca do ca-nhão, lembra? Aquilo me gelava ocoração.

JORNAL DA ABI – É. ADOLFO AIZEN NÃO

PUBLICAVA POR INTERESSE EM AUMENTAR AS

VENDAS – ATÉ PORQUE OS QUADRINHOS

VENDIAM MUITÍSSIMO BEM –, MAS PARA LUTAR

CONTRA O PRECONCEITO ARRAIGADO NA

SOCIEDADE E MOSTRAR QUE AS HISTÓRIAS

EM QUADRINHOS ERAM EDUCATIVAS TAMBÉM.ALÉM DE SER UMA FORMA DE ARTE.

André Toral – Esses livros da Ebalme fizeram interessar muito porhistória! Aprendi a gostar de Histó-ria, especialmente a invasão france-sa no Rio de Janeiro, porque fiqueiempolgado pelas imagens. As ima-gens seduzem. Essa idéia de utilizarquadrinhos para educação é ótima.Não estou criticando os outroscomo oportunistas, só estou falan-do que a gente tem que ter cuidado.É como eu falei, se você quer ler Ma-chado, leia no original.

JORNAL DA ABI – NAS ADAPTAÇÕES DO AIZEN

ELE SEMPRE PUBLICAVA UMA NOTA DIZEN-DO ISSO, QUE AQUELE QUADRINHO ERA UMA

ADAPTAÇÃO, UM APERITIVO. SE GOSTOU, LEIA

O LIVRO. NÃO É RUIM O EDITOR PENSAR EM

GANHAR DINHEIRO, ESSA É A FUNÇÃO DELE.O QUE NÃO PODE É SÓ FAZER AQUILO.

André Toral – Ou vender gato porlebre: Isto aqui é José de Alencar paracrianças!

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE O EDI-TOR BRASILEIRO ESTÁ ACOMODADO?

André Toral – Não acho não. Nemtudo que se publica em quadrinhosno Brasil hoje é voltado para o Mec,ou tem a perspectiva de ser aprovei-tado como material paradidático. Sevocê faz uma visita numa livraria eolha a estante de quadrinhos, vaiver que o universo editorial quepublica quadrinhos no Brasil é umacoisa muito complexa. Tem muitagente publicando assuntos diversos,temas diferentes, autores diferenci-ados. Então, você só não publicaquadrinhos no Brasil se realmentenão quiser. Tem quadrinho alterna-tivo, tem o que tangencia com artesplásticas, o mainstream comercial,o quadrinho histórico, o pessoal, temquadrinho para adolescente, temaquele que conta histórias de negros,de índios, de populações minoritári-as, tem quadrinhos que cuidam domeio ambiente, tem de tudo hojeem dia. Isso é uma coisa muito boa.Eu não me angustio sobre quem vaipublicar minha próxima hq, porquealguém sempre tem interesse.

JORNAL DA ABI – MAS UM DOS GRANDES

ARGUMENTOS QUE SE FALA É QUE QUADRI-NHO NÃO DÁ DINHEIRO. COMO EXPLICAR

TANTA EDITORA?André Toral – Conversa fiada. Eu

não acredito nisso. Todo editor falaque quadrinho não dá dinheiro parapagar mal ao autor. Tenho pena doartista que precisa viver disso, precisapublicar quadrinhos. Quadrinho dádinheiro, o resto é conversa mole deeditor. Todo editor, quando entrego osoriginais para ele, diz duas coisas.Primeiro: “Estamos mal”. E segun-do: “O momento da imprensa e dasCasas Publicadoras é péssimo”. Maseles continuam lá, publicando, anoapós ano. Não acredito. O quadrinhovai muito bem, obrigado, e as edito-ras estão lançando livros ‘adoidado’!

JORNAL DA ABI – MAS EM OUTROS PAÍSES

A COISA É UM POUCO DIFERENTE. A PRODU-ÇÃO É MUITO MAIOR!

André Toral – Pelo que vejo, viajan-do... as publicações de quadrinho...nossa! Você vai para a França e é umtapa na cara. A quantidade de títu-los que se publica num mês na Fran-ça, a variedade, a qualidade, é umacoisa para ficar espantado. Entreinuma livraria e falei para o cara: “Euquero ver os últimos lançamentos”.Quase que eu morro! Comprei unsdez livros, os últimos, só para ternoção do que se fazia. E a qualidade?São romances mesmo, tudo em qua-

drinhos, história, drama. É literaturapara adulto mesmo. É legal ver isso.Tem um monte de gente da nossaidade sentado no chão da livrariaolhando quadrinhos. É muito legal.E não é esse preço absurdo pratica-do no Brasil. Considero o preço dosmeus álbuns muito elevado. Por R$40,00, que é o preço do meu álbumCurtas & Escabrosas, que tem umpouco mais de 70 páginas, você com-pra um de capa dura com 100 pági-nas, colorido, quadricromia, lindo,com uma gracinha na capa ainda.

JORNAL DA ABI – O QUADRINHO LÁ É PO-PULAR. VOCÊ ACHA QUE ALGUM DIA O QUA-DRINHO VAI VOLTAR A SER POPULAR NO

BRASIL?André Toral – Ele nunca foi. Mas

acho que vai, olhando as livrarias estoumuito otimista com os quadrinhos noBrasil. Não tem por que não estar.

JORNAL DA ABI – E NAS BANCAS?André Toral – Nas bancas têm

menos coisas. Mas vai numa livra-ria, presta atenção e conta. Temtodos os gêneros, aventura, roman-ce, etc; a quantidade de editoras e aprocedência das editoras, MinasGerais, Rio de Janeiro, Espírito San-to, Rio Grande do Sul.

JORNAL DA ABI – E O SEU ÁLBUM ANTERI-OR, BRASILEIROS? TEM TUDO A VER COM

HISTÓRIA E A QUESTÃO INDÍGENA...André Toral – Não sou antropó-

logo impunemente. Quando repa-rei, abri minha gaveta e “Puxa! Es-crevi um monte de histórias sobreíndios!” Claro, um autor que tam-bém é antropólogo, é normal. Então,peguei todas essas histórias e, quan-do vi, estava o livro pronto. Leveipara o Rogério de Campos, da Con-rad, e editamos o álbum Brasileiros.Quando já estava impresso e ia lan-çar esse álbum, reparei que tinhauma revista com o mesmo nome!Pensei: “Vou ser processado! Os ca-ras vão tirar a minha camisa!”. En-trei em contato com eles e disse:“Desculpa, não sabia que o nomeda sua revista era Brasileiros”. Aí o

Hélio de Almeida falou: “Achei óti-mo você me ligar. Quero que vocêtrabalhe na revista!” Foi a melhorcoisa, porque liguei pensando que iaser processado e saí com um empre-go. Publiquei durante um ano e meioduas páginas na revista Brasileiros e,depois de um tempo, decidi pararporque elas davam um trabalhodesgraçado, você não pode fazermais nada. Mas fazer essas históri-as foi um grande aprendizado. Euprecisava fazer mais rápido e preci-sava fazer assuntos divertidos, leves.

JORNAL DA ABI – O QUE HÉLIO DE ALMEI-DA PEDIU PARA VOCÊ FAZER?

André Toral – Ele me deu liberda-de para fazer histórias que falem dacondição brasileira a partir de umponto de vista inesperado. A vende-dora de doces, o soldado ignorante, oescravo, o sertanista da Funai, gen-te que não é aquela que a gente espe-ra para uma grande história, sãocomo que os coadjuvantes da histó-ria que retratam a identidade nacio-nal dos brasileiros. Essa é a identidadereal. A realidade dos brasileiros não éo Dom Pedro I proclamando a inde-pendência, nada disso. Nem o Gene-ral Osório tomando as trincheirasparaguaias. A história é escrita porgente como eu e você. É como dizemos escritores de vanguarda: “Nossavida vale uma vida”. Nossa vida é in-teressante. E gosto muito de um per-sonagem que apareceu que foi o Pau-lão, que é o motoboy malucão. E re-parei que eu fazia muito rápido es-sas histórias, fazia em dois, três dias.

JORNAL DA ABI – É MEIO PULP FICTION,PORQUE O CARA MORRE LOGO NA PRIMEI-RA HISTÓRIA.

André Toral – Isso. Depois ele vol-ta. Ele morre na primeira, mas depoiseu conto as aventuras dele. Acho issolegal porque pela primeira vez a mi-nha mesa ficava lisa, não tinha livrosem cima. Porque uma coisa é fazeruma história que se passa no sécu-lo 19, precisa saber como era a rou-pa do século 19, como era a condiçãoda mulher no século 19... contar uma

história hoje, está tudo na sua cabe-ça, você conhece a realidade, vocêmostra o que você vê: motoboy, pla-ca de trânsito, farol, o guarda. Entãopercebi que posso falar da contempo-raneidade. Eu sou sujeito, sou teste-munha, não um investigador.

JORNAL DA ABI – DESSE MATERIAL DA RE-VISTA BRASILEIROS SURGIU O SEU NOVO

ÁLBUM CURTAS & ESCABROSAS?André Toral – Foi. As histórias cur-

tas que falam de Brasil foram reu-nidas no Curtas & Escabrosas. Masainda tem mais. Tem as histórias cur-tas que falam de guerra. Essas, nãopubliquei num álbum ainda; deixeipara publicar mais para frente.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FALOU QUE TEM MUITA

DIFICULDADE EM DESENHAR UMA PÁGINA

POR DIA E QUE FAZER DUAS PÁGINAS POR

MÊS É TRABALHOSO. POR QUE DÁ TANTO

TRABALHO PARA VOCÊ? VOCÊ DESENHA

VÁRIAS VEZES A MESMA COISA ATÉ CHEGAR

NO RESULTADO FINAL OU O SEU TRABALHO

É MUITO LENTO?André Toral – Tudo o que você fa-

lou é verdade. Desenho muito deva-gar, tenho muita preguiça para de-senhar. E como nunca ganhei dinhei-ro com quadrinhos, faço até ficar dojeito que acho que está legal. Se sótenho uma manhã para entregaruma página, desenho numa manhã.Já houve casos, por exemplo, quan-do estava fazendo as histórias daGuerra do Paraguai, e que não tinhatempo, eu fiz rápido. E ficava tãobom quanto as outras. Mas se tenhotempo para fazer, por exemplo, umapágina sobre candangos, vou pegaruma bibliografia sobre candangos,procurar desenhos de candangos,vou tirar fotografias de candangos,vou procurar saber tudo sobre can-dangos. Só depois de ler uma pilha delivros sobre o assunto começo a de-senhar. Quando não tenho prazodefinido, não consigo fazer de outraforma. Queria fazer como o Laerte.Você fala: “Desenha um candango”,e ele desenha sem olhar nada!

“Quadrinho dá dinheiro, o resto éconversa mole de editor. Todo

editor, quando entrego os originais,diz duas coisas. Primeiro: ‘Estamos

mal’. Segundo: ‘O momento dasCasas Publicadoras é péssimo’.”

Histórias sobre índios desde acolonização portuguesa fazemparte do álbum Os Brasileiros.

21Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – SE NÃO LEMBRA, ELE

INVENTA.André Toral – E fica bom, fica au-

têntico. Eu fico fazendo detalhes queninguém repara. Me envolvo no ne-gócio e viajo. Essa é a minha perdi-ção! Eu me perco, sou muito deva-gar para isso.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACABA GOSTANDO

MAIS DE PESQUISAR DO QUE DE PRODUZIR AHISTÓRIA?

André Toral – É isso. Gosto de his-tória! Sou filho único e lia muitoTintin. Conhecer e Enciclopédia Abrilatravessei de capa a capa. Sou umapessoa que gosta de ficar sozinha,que gosta de ler. É um mistério comofiquei trinta anos trabalhando comíndios! Agora, a partir dos 40, 50 anos,disse: vou voltar para São Paulo, bo-tar a mala no chão, dar aula e cuidarda minha família. Acabou essa his-tória de viajar todo mês. Em 2003,no meu último trabalho nessa área,cuidava dos investimentos de umaorganização não-governamental naárea ambiental e na área indígena.Uma vez por mês eu viajava para oEstado do Tocantins. E era um in-ferno esse vai-e-vem, passava dezdias, volta, quando está se acostu-mando tem que sair de novo. Aí che-gou a hora de parar. E quando pareie comecei a dar aula, os quadrinhosvieram com tudo. Aí, como VanGogh, comecei a pensar na morte.Bom, agora tenho mais um certotempo de vida: e o que eu quero fa-zer? Bom, tenho tempo para fazerquadrinhos. Que histórias querofazer? A história dos holandeses noNordeste do Brasil, por exemplo. Éessa a história que estou fazendoagora. Uma história de 60 páginas;tem umas 25 prontas. Ela se passana África, em Amsterdã e no Brasil.Estou apaixonado pelo assunto. Te-nho pilhas e pilhas de livros, e desseslivros alguma coisa sobra para osquadrinhos. Mas fico lendo o dia in-teiro, curtindo, viajando nas históri-as. Então é isso que pesa: sou mui-to dispersivo, sou preguiçoso. Que-ro fazer também uma história emquadrinhos sobre São Paulo, sobre1932, que está na ponta da minhalíngua. Dá uma história maravilho-sa, só penso nela. E quero publicar ashistórias de guerra.

JORNAL DA ABI – QUE JÁ ESTÃO PRONTAS.André Toral – É. Mas eu teria de

fazer uma inédita para a abertura.Isso é o que gostaria de fazer, masestá na fila. Se conseguir fazer isso,já está bom. Agora quero acabar osholandeses, no máximo até o finaldo ano, e depois quero fazer a de SãoPaulo. Depois, se eu puder dormir eficar fazendo qualquer coisa...

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTÁ SE ACHANDO

VELHO?André Toral – Não é que eu me ache

velho, mas tenho com os quadrinhosuma relação agoniada. Quero fazer,quero ter a história pronta, mas quan-do vou fazer eu travo. A primeira di-ficuldade: ultrapassar a montanha delivros. Passando essa coisa boa, chego

ao desenho, lápis e papel. O CarlosSaldanha, diretor da animação Rio,falou uma coisa boa: “Tudo começanuma idéia que você põe no papelcom o lápis”. Esse é o começo detudo, do desenho, da criação, e paramim começa aí. E eu desenho mui-to devagar no lápis. Faço, não gosto;faço, não gosto; faço, gosto, acordo,não gosto, apago, faço de novo. Issoé defeito de quem nunca ganhou di-nheiro com quadrinhos, como é omeu caso. Como eu não tenho ne-nhum compromisso e minha vidaprofissional corre em paralelo...

JORNAL DA ABI – A QUESTÃO DA MULHER

E DA AMANTE...André Toral – Por mais que digni-

fique a amante, a amante não dá di-nheiro.

JORNAL DA ABI – DÁ PRAZER.André Toral – É, dá prazer. Mas

quando você termina essa malditapágina, olha para ela e fala assim:Está bonita! Ficou bom! Confessopra vocês: eu acordo no meio da noitee vou olhar. Acendo a luz do ateliê,olho bem, apago a luz e vou dormirfeliz como uma criança.

JORNAL DA ABI – VOCÊ É CASADO?André Toral – Sou casado e tenho

duas filhas.

JORNAL DA ABI – E ELAS?André Toral – Gostam muito.

JORNAL DA ABI – SUA CASA É GRANDE? CABE

A SUA BIBLIOTECA SEM INCOMODAR?André Toral – Não. Parte da mi-

nha biblioteca foi exportada paraAtibaia. Tenho uma biblioteca deconsulta, que fica em São Paulo, masa biblioteca legal mesmo, com osromances, teve que ir para Atibaia.

JORNAL DA ABI – NÃO HÁ HUMIDADE? OFRIO DE ATIBAIA NÃO ESTRAGA OS LIVROS?

André Toral – Não, lá é ótimo, seco.

São Paulo, se você reparar, junta umacamada preta de pó, é muito úmido.Em Atibaia parece que está na tum-ba do Tutankamon, ficam conserva-dos perfeitamente. Então fico gerin-do em casa. Leio um romance e, nofinal de semana, vai para Atibaia. Osquadrinhos ficam em São Paulo, queé coisa que leio muito. Leio o que aspessoas não gostam. Leio, por exem-plo, Attilio Micheluzzi, que é umartista italiano.

JORNAL DA ABI – VOCÊ LÊ NO ITALIANO

ORIGINAL?André Toral – Procuro sempre ler

na língua original.

JORNAL DA ABI – E O QUE VOCÊ LIA QUAN-DO CRIANÇA? VOCÊ FALOU EM TINTIN, DO

HERGÉ...André Toral – O mais importan-

te era Tintin, que me ensinou mui-tas coisas. O Georges Remi, o Her-gé, me ensinou que hq é trabalhoduro, nada vem fácil, tudo tem queser construído. O roteiro tem que sermuito cuidado, o desenho commuito cuidado, e, no fundo, o qua-drinho tem que ter uma preocupa-ção moral. O quadrinho tem quepassar valores legais para as pesso-as. O Hergé denunciava o imperia-lismo japonês, denunciava o impe-rialismo americano, a exploração dohomem pelo homem, racismo, pre-conceito, tudo isso ele já mostravaem seus livros. Então, enquantovocê lê O Loto Azul, que é uma his-tória incrível, ao mesmo tempo seaprende sobre a política japonesa naChina na década de 30, sobre comoos japoneses exploravam o ópio, associedades secretas chinesas quelutavam contra os japoneses. Tudoisso Hergé aprendeu com um ami-go dele, o Chang, e tudo isso elepassou para seus leitores. Então,quando cheguei no ginasial, tirava10 em História. Porque eu entendiada História do Extremo Oriente na

década de 1930, da História da Amé-rica Central, porque lia Tintin. Qua-drinho tem que ter um compro-misso também com uma arte queinova, uma busca de linguagem.Não se pode contentar com uma lin-guagem pré-estabelecida. Essa coi-sa de ousar é o que faz da pinturaalgo moderno, que supera o antigopelo seu progresso técnico. O qua-drinho também tem que experi-mentar. E como eu já era um caraque gostava de ler, acho que o Her-gé me empurrou para a História.

Outro que sempre li e sempregostei é o Carl Barks. Dos meus 16anos em frente, eu pegava a revis-ta Tio Patinhas e destacava a primei-ra história que geralmente era dese-nhada pelo Carl Barks. Juntavavárias e mandava encadernar. Emcasa tenho 16 volumes encaderna-dos com as histórias do Carl Barks,tudo naquele formatinho pequeno.Uns maiores, outros menores, tudoencadernado. Carl Barks e Tintin sãohqs que, para mim, estão na zonade conforto. Leio 80 vezes a mesmahistória e não me canso. Gostavamuito de Tarzan também. Tinhatoda a Coleção Lança de Prata, daEbal. Não sei quem era o desenhis-ta... Tinha As Jóias de Opar, todasaquelas mulheres celestiais, queeram a ruína de um garoto de 14, 16anos. No Carl Barks gosto da fluên-cia narrativa, a história é lida comose fosse um desenho animado. Nun-ca consegui fazer isso com as mi-nhas hqs; quero, mas não consigo.O Carl Barks me ensinou que a his-tória tem que fluir. Gosto muitotambém de tudo que o Goscinnyfaz. Umpa-Pá é divertidíssimo, AsInvestigações do Coronel Cliffton, As-terix. Sempre gostei muito do que erapublicado em língua francesa. En-tão, se você me perguntar que linhade hq gosto mais, eu diria a linhaclara francesa, sem dúvida alguma.

JORNAL DA ABI – APESAR DISSO, O SEU DE-SENHO NÃO TEM NADA A VER COM ESSE

ESTILO DE QUADRINHO.André Toral – Não tem nada a ver.

Gosto muito de Bernet, também.

JORNAL DA ABI – TEM MAIS A VER.André Toral – Mas ainda assim

não consigo me ver fazendo umacoisa assim, meio áspera, meio ras-gada, como Bernet... Gosto muitodos argentinos também. Do roteirodo Oesterheld, dos Breccia, pai e fi-lho, e uma coisa de que sempre gos-tei, sempre me fez pensar na missãodos quadrinhos, é o Edgar Pierre Ja-cobs, que foi desenhista auxiliar doHergé. Ele fez O Enigma de Atlânti-da. Para mim, o Jacobs está quase naaltura do Hergé. Roteiros elaborados;é o homem que bateu o recorde detexto numa página de quadrinhos.Ninguém escreveu tanto numapágina de quadrinhos quanto o Jaco-bs. E O Enigma de Atlântida é umadas histórias mais impressionantesda história das hqs.

JORNAL DA ABI – QUAL O CHARGISTA QUE

VOCÊ MAIS CURTE?

André Toral – O melhor chargis-ta, o que eu me divirto – mas vejo nainternet –, é o Angeli. Para mim, é omelhor chargista hoje no Brasil.Acho ele fantástico. No gênero tiras,o Laerte é o campeão internacional.O Laerte é um talento brutal!

JORNAL DA ABI – APESAR DE SUAS HISTÓ-RIAS SEREM DRAMÁTICAS, SÃO BEM HUMO-RADAS.

André Toral – Porque no fundo arealidade não deve ser levada a sério.A vida não é para ser levada a sério.Então, mostro as coisas como umteatro. É tudo um teatro. E paradeixar bem claro que é um teatro, eutiro o fundo e aparecem só as pes-soas falando. Já reparou isso? En-contrei com o Flávio Colin uma vez,mandei minhas histórias e pediconselhos. Quando você encontraalguém que sabe mais do que você,peça conselhos. E eu pedi conselhospara o Colin. “Colin, fala como pos-so melhorar”. E ele falou: “Pára comessa coisa de colocar só os persona-gens sozinhos sobrando no balão.Tem que ter fundo”.

JORNAL DA ABI – QUEM FAZ MUITO ISSO ÉO HUGO PRATT.

André Toral – Isso. Eu adoro o HugoPratt. E Colin disse: “Isso não pode,André, porque quebra o encanto nar-rativo. É como se você visse no fundode um filme a costura do telão, ou amarca do cenário. Aí você diz: “é fan-tasia!” Mas você sabe que é fantasia,sabe que isso é um teatro. Então omeu humor é um pouco disso, nãolevar as coisas tão a sério. Isto aqui étão precário quanto a nossa vida.

JORNAL DA ABI – VOCÊ LEU TINTIN, OS PA-TOS DO BARKS, ASTERIX, MAS VOCÊ NÃO FAZ

QUADRINHOS COM HUMOR EXPLÍCITO. POR

QUE ESSA OPÇÃO? NUNCA TENTOU FAZER

HUMOR PURO E SIMPLES?André Toral – Queria fazer uma

experiência, mas não tenho graçanenhuma. A tradição do quadrinhobrasileiro é de imprensa, uma tradi-ção de tiras publicadas em jornal. Deonde saíram os grandes nomes doquadrinho brasileiro? Da imprensa:Laerte, Angeli, Maurício de Sousa,todos eles publicavam tiras. O for-mato que consagra o quadrinho noBrasil é a tira, assim como era nosEstados Unidos. Na Europa não. AEuropa tem uma tradição do “a sui-vre”, do a seguir, continua, e a unida-de é a página, publicada em jornaisdominicais, não a tira. A tradição nar-rativa da tira de humor dá sempreuma estrutura para o quadrinho bra-sileiro de que a graça está no final.Assim como a tira tem três quadri-nhos e no final tem uma piada, a hqde um desenhista brasileiro temuma página e a piada no final. Issoquem me falou foi o Fábio Zimbres,que foi editor da Animal: “É muito li-mitante você escrever um roteiro quetem que ter uma piada no final”.Concordo com ele. Então a minhaestrutura narrativa não pressupõe apiada no final, no pé da página. A his-tória vale por si. Fiz uma históriaque acaba numa piada e não gostei;

Uma página inédita da históriaque Toral está produzindo

sobre os holandeses no Brasil.

22 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

se chama O Grande Curador. Expe-rimentei fazer e não achei o resulta-do tão bom. Faço uma história, e elavale pelo que se desenvolve. A traves-sia é o que conta, não é a chegada. Aviagem é o importante”. Se o final édecepcionante, não é problemameu. Às vezes até me pergunto: oque é que eu quis dizer com isso? Porque acaba assim? Por exemplo,aquela história que se chama OBrasileiro, que abre o álbum Os Bra-sileiros, que o cara acaba de quatro,andando como um cachorro, umanimal, essa é a punição dele. Porque isso? Por que é que imaginei isso?Não sei.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TRABALHOU NA

FUNAI, NÃO É?André Toral – Ocupei um cargo de

confiança na Funai e trabalhei comoconsultor. Para a Funai eu trabalheidurante o ano de 1985, registrado emcarteira e tudo. Basicamente, o tra-balho de antropólogo tem a coisa dodeslocamento. Antropólogo é umaidentidade que se reforça em trânsi-to. Ele tem que sair da sua cidade.Precisa se mexer. Precisa sair do con-forto do seu escritório. Além disso, anatureza do trabalho que eu fazia,antropologia aplicada, fazia com quenós tivéssemos que trabalhar comprojetos auto-sustentáveis, forma-ção de associação de moradores, as-sociações comunitárias, então issorequer um esforço, você tem que li-dar com burocracia, papéis, presta-ção de contas, justificação da aplica-ção de verbas, relatórios, e isso é umacoisa muito chata que tem que fazer,seja na Funai, seja numa ong.

JORNAL DA ABI – ESSA BUROCRACIA TER-MINA TOMANDO MAIS TEMPO QUE O TRA-BALHO EM SI?

André Toral – Não, mas trabalholegal é estar com a comunidade, oque eu gostava era isso. A burocra-cia é o cipoal que você tem que atra-vessar. É como se você tivesse queatravessar um cipoal institucionalpara poder chegar finalmente na co-munidade e junto aos seus amigos.Você precisa de autorização, ver quemvai pagar a passagem, prestação decontas para a Fapesp; é aquela mon-tanha de coisa, mas uma hora, vocêchega. E aí é muito bom, porque osíndios são completamente diferen-tes da gente, têm uma cabeça com-pletamente diferente. São pessoasmaravilhosas. Aprendi muito comeles, tenho grandes amigos, não meesqueço deles. Mas tem também apolítica de disputa de terras. É umadisputa política. Esse trabalho nãotem nada a ver com publicar umartigo no jornal. Ali é uma coisa deexpressão física, de ligarem para suacasa, de tentarem te intimidar... issoacontece mesmo, faz parte do jogopolítico. E uma hora eu cansei dis-so. Cansei dos telefonemas às trêsda manhã, de ter que pegar ônibusna rodoviária correndo, cansei de pe-gar avião teco-teco caindo... chega.

JORNAL DA ABI – VOCÊ SOFREU ALGUM SUSTO

COM TECO-TECO?

André Toral – Não. Graças a Deus,não. Mas lembro que fazia muitascoisas, quando era mais novo, quehoje não faria. E fiz exatamenteporque era completamente igno-rante dos perigos que me rondavame do contexto no qual eu estavametido. Hoje, o meu comentário aover o que fiz é: “Nossa! Se eu soubes-se onde estava metido... não teriafeito isso!” Mas acho que a ignorân-cia sempre foi uma grande aliada daminha coragem, sem que eu sou-besse. Eu não tinha a menor idéia dopoder das pessoas com a qual a gentese batia, das ameaças concretas queestavam rolando lá!

JORNAL DA ABI – VOCÊ PODE DAR ALGUNS

EXEMPLOS?André Toral – Não, não posso.

São coisas que estão em processosde demarcação. Mas a vida dos gru-pos indígenas do interior está sujeitaa uma violência diária que a genteda cidade nem consegue imaginar.Se a gente acha que vai transformarisso apoiando lista de abaixo-assi-nado, tuitando, mandando mensa-gens de apoio, está muito engana-do! Essa violência come solta no in-terior do Brasil, tem gente da Igrejaque está morrendo, indigenistas quesão afetados, índios que regular-mente morrem, sai muito mal no-ticiado no pouco espaço que a im-prensa dedica à questão indígena.A violência no interior do Brasil éuma coisa que a gente aqui da ci-dade não tem nem idéia doque está acontecendo. Ago-ra quero ter espaço parafazer coisas que eu gosto.Então, passei a fazer an-tropologia um poucomais a distância. Gosta-ria de estar fazendo o ve-lho estilo de antropologia,mas chega uma hora quenão dá mais para a gente semexer, e eu gostaria de memovimentar com umpouco mais de liberdade.

JORNAL DA ABI – APESAR DIS-SO, EM OUTRAS ENTREVISTAS

VOCÊ DISSE QUE OS ÍNDIOS

BRASILEIROS NÃO SÃO VÍTIMAS,

MAS PROTAGONISTAS DE SUA PRÓPRIA HIS-TÓRIA, E QUE HOJE ELES ESTÃO ATÉ AUMEN-TANDO EM NÚMERO. VOCÊ ACHA QUE ESSA

SITUAÇÃO HISTÓRICA DOS INDÍGENAS BRA-SILEIROS É DIFERENTE DA HISTÓRIA DE EX-TERMÍNIO QUE ACONTECEU COM OS POVOS

NATIVOS DA ARGENTINA, DO MÉXICO E DOS

ESTADOS UNIDOS, POR EXEMPLO?André Toral – Cada um tem uma

História própria. Eu acredito no fu-turo dos índios, acho que eles têmum futuro diferenciado como índi-os, nunca vão se integrar completa-mente à realidade nacional; serãouma população seleta com umacultura e uma língua diferenciadas.Acho que eles são sujeitos de suaHistória sim, que não sofrem a His-tória, mas são protagonistas de suaHistória; eles tomam atitudes e,conforme o grupo indígena, o recur-so da violência é legítimo, pratica-do em um e outro grau. Há povosabsolutamente pacíficos, que nãotêm uma tradição de atividadesguerreiras, como por exemplo, osguaranis. E há grupos acostumadosao embate, acostumados ao cho-que, que são os caiapós, os xavan-tes; a violência faz parte do ethostribal. Faz parte de sua cultura o en-frentamento com o adversário. Osíndios não são todos iguais. Eles to-mam atitudes diferenciadas diantedo contato. Alguns reagem. Tem ín-

dio que gosta de conversamole e tem índio que não su-porta conversa mole. Como

os xavantes e os caiapós, sepercebem que estão sendo

enganados, eles lutam.

JORNAL DA ABI – E OS CA-RAJÁS, COM QUEM VOCÊ

DESENVOLVEU UM TRA-BALHO?

André Toral – Oscarajás têm uma ati-tude diferenciada. Eleslutam, mas lutam noplano celeste, não noplano terreno. Eles

têm uma outra solu-

ção de sobrevivência. São guerreiros noplano cosmológico. São espirituais.Fiz uma história em que eu falo dis-so, chamada O Caso do Xis. Basica-mente é o seguinte: nós dois vivemosno mesmo local físico. Mas comonós vemos essa realidade é o que nosdistingue. Você vê uma coisa, eu vejooutra coisa. Se tivesse um guerreiroaqui, ele veria uma coisa completa-mente diferente. A partir de algumasreferências físicas, ele imagina umarealidade que não tem nada a ver como que você vê. É por isso que eu gos-tava tanto dos índios. Eles conse-guem ver coisas que nós não vemos.Isso, para mim, é o que existe de in-teressante na antropologia, é a alte-ridade absoluta, você se coloca numasituação em que a noção de mundo,de realidade, é outra. Assim como,para eles, essa vida de shoppings erealidade urbana é uma grande via-gem que nós fazemos. São duas pes-soas que olham o mesmo mundo,mas a partir de pontos de vista com-pletamente diferentes.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONHECE O DANI-EL MUNDURUKU? ELE FALA EXATAMENTE ISSO.

André Toral – Conheço, é umgrande amigo meu. E escreve muitobem, produz muito boa literaturapara crianças. Então é isso, o índiopara mim tem uma coisa lúdica queexercita a sua imaginação. Imaginao mundo como ele imagina. E eu te-nho que me basear na visão de mun-do dele a partir da oralidade, com o queele conta. Então isso pressupõe ocontato humano. Pressupõe o apren-

dizado de língua. A antropologia nãoé só o trabalho chato de demarcaçãode terras, implantação de projetos,coisas mais burocráticas.

JORNAL DA ABI – UM DOS PROBLEMAS DOS

AUTORES EM LIDAR COM OS ÍNDIOS É A FAL-TA DE ESPECIFICAÇÃO. GERALMENTE SÃO

ÍNDIOS GENÉRICOS, MAS ISSO NÃO EXISTE.PASSA A IMPRESSÃO DE QUE O ÍNDIO É IGUAL

EM TODO LUGAR. POR ISSO, MUITOS AUTO-RES ACREDITAM QUE LIDAR COM ÍNDIOS ÉLIDAR COM UM ESTEREÓTIPO, E EVITAM OTEMA. VOCÊ ABORDA O ASSUNTO COM SE-RIEDADE. ALGUÉM JÁ RECLAMOU DE SUA

ABORDAGEM?André Toral – Não, acho que não.

Mas uma época eu decidi que gosta-ria de não fazer mais histórias deíndio. Mas aí, um mês depois, eu tiveuma idéia ótima para uma outra his-tória de índio. Eu gosto dessas histó-rias; ainda vou fazer uma grande, defundo um pouco autobiográfico.Mas, de qualquer forma, a gentenunca pode tratar um índio de “ín-dio”. Falar “Ô, índio!” para o índio éextremamente ofensivo. Um dia,um carajá numa aldeia me chamoude “Ô, tori!” Tori é como os carajáschamam os brasileiros. E eu sentique ele estava sendo agressivo. “Vocêaí, branco!” Ele está te agredindo. En-tão, você nunca deve falar “vocês ín-dios”. Você deve dizer carajá, bororo,mecanopibe, guajajara, guajá, tuca-no, macu, ianomami. Nunca falar“você, índio”. Essa coisa que se cha-ma “índio” não existe. A distância deum carajá para um guarani é a dis-tância de um português para um

“A vida dos grupos indígenas dointerior está sujeita a uma violênciadiária que a gente da cidade nemconsegue imaginar. Se a gente achaque vai transformar isso apoiandolista de abaixo-assinado, tuitando,

mandando mensagens de apoio,está muito enganado!”

Em 2010, Andre Toral colaboroucom a equipe de Xingu - O Filme,

de Cao Hamburger, fazendoilustrações sobre pintura corporal.

Toral em 1978 na pista da aldeia karajá de SantaIsabel do Morro (TO) em sua primeira viagem acampo. O mesmo avião o levaria à aldeia Canoanãdos Javaé. Em 2001, de boné, durante demarcação

da Terra Indígena Cacique Fontoura (MT).

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russo. A língua é diferente, a cultu-ra é diferente, a mitologia é diferen-te, tudo é diferente. São nações. Oconceito é de nação. Isso é importan-te. Mas não quero ser conhecidocomo um autor-cabeça. Quero queminhas histórias sejam como as deCarl Barks, tenham fluência narra-tiva. A minha luta hoje é pela legibi-lidade. Pouco texto, que a história sejafácil de entender, e que não faça dahistória o seu assunto principal,mas faça da vida de pessoas normaiso assunto principal. É a históriacomo um cenário.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE ESTÁ

CONSEGUINDO FAZER ISSO COM A DOS HO-LANDESES?

André Toral – Acho que estou con-seguindo. Todas as partes que com-põem essa história têm que ser deuma tirada só. Eu faço uma cenaque se passa na África, tem que seruma seqüência de ações. Começa,desenvolve e acaba. Não tem “pa-rou, dormiu, no dia seguinte”. É tudoassim, seqüenciado. A parte da Áfri-ca está assim, a parte de Amsterdãestá ficando assim, é um dia noateliê de um artista do barroco ho-landês e as encrencas que aconte-cem com esse artista. No Brasiltambém vai ser assim, vão ser di-versos episódios, cada episódio umacena completa.

JORNAL DA ABI – VOCÊ JÁ DISSE QUE SUAS

HISTÓRIAS, APESAR DE INSERIDAS NUM

CONTEXTO HISTÓRICO BEM PESQUISADO, FO-RAM INVENTADAS, NÃO SÃO REAIS. JÁ ACON-TECEU DE ALGUÉM ACHAR QUE ERA REAL?

André Toral – Não, acho que não.O que as pessoas ignoram é que otrabalho do historiador e o trabalhodo romancista são coisas muito pa-recidas. O romancis-ta trabalha com al-gumas informações,mas basicamente elecria uma obra quetem um efeito reaci-onal na psicologia doespectador. O histo-riador também temsoluções literáriaspara fazer com queseus textos apare-çam mais ou menosatrativos. O histori-ador adota mecanis-mos típicos de ro-mancista. Ou seja,também produz lite-ratura. Se eu e vocêpudéssemos assistirà batalha de Auster-litz, nós teríamosduas visões comple-tamente diferentessobre a mesma bata-lha. Ou seja, não existe uma verda-de. Existem ângulos pelos quais sebusca a verdade. O que eu estoudizendo é que nós sempre somos pri-sioneiros da nossa subjetividade, danossa maneira pessoal de ver umfato, de registrar esse fato. O quenos torna diferentes, eu digo nós,romancistas, autores de quadrinhos,o que nos torna diferentes da pre-

ocupação de um historiador é que ohistoriador tem o compromisso de res-gatar aquilo que realmente aconte-ceu. Esse compromisso com a verdadehistórica não pode ser mexido. Ago-ra, quando você cria um fato para falarda realidade, mesmo que esse fato nãoseja verdade, aí a história é um enre-do ficcional para que você possa falarda verdade. Mas não é a verdade.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FEZ ILUSTRAÇÃO

PROFISSIONALMENTE?André Toral – Eu já trabalhei como

capista, mas nunca na área de ilus-tração para livro infanto-juvenil, in-fantil ou quadrinho.

JORNAL DA ABI – EM QUAL EDITORA?André Toral – Trabalhava para di-

versas editoras. A Editora Brasilien-se era o meu cliente principal, masisso a partir dos 25 anos.

JORNAL DA ABI – COMO É O SEU ENVOLVI-MENTO COM A LITOGRAFIA?

André Toral – Gostaria muito defazer mais. Para mim é um descan-so quando eu faço. A litografia émuito amiga, porque é uma técni-ca que você desenha sobre umapedra porosa que tem uma textu-ra igual ao papel. Então, qualquerdesenhista fica muito à vontade nalitografia. Mas não faço só isso.Quase todo final de semana, quan-do vou para Atibaia, eu desenhomuito, desenho ostensivamente.Quando estou na praia, quando es-tou viajando, quando estou de bo-beira, estou sempre desenhando. Eo que eu faço com os meus dese-nhos? Encaderno, tenho desenhosenormes expostos, enquadrados,em casa de amigos e parentes.

JORNAL DA ABI – QUE TIPO

DE DESENHOS VOCÊ FAZ?André Toral – Faço

aquarelas, faço pas-tel-seco, paisagens,bichos. Alguma coisaestá no meu site. A li-tografia parece um lá-pis. Eu deixei de usarnanquim. Quando fa-ço hq, o traço é o lá-pis. Antes eu fazia olápis e depois passavao nanquim. Agora sófaço o lápis e depoisfaço uma cópia xeroxdo desenho a lápisnum acetato. A se-guir, coloco a folha deacetato com o dese-nho em preto numamesa de luz, colocoum papel de aquare-la em cima e pinto.Tem que ser um papel

sem textura, sem rugosidade e queagüente bastante água. Gosto mui-to de aquarela, porque tem essa coi-sa meio improvisada que casa bemcom o meu traço. E toda a minha fa-mília é de artistas plásticos. Meu paié pintor, meu tio é pintor, minhamãe dava aulas de História da Artena Faculdade de Arquitetura e Urba-nismo da Usp. Então eu tinha muito

complexo de não fazer uma arte “sé-ria”, de fazer quadrinhos. Minha mãedava aulas em Huston, dava cursosna França...

JORNAL DA ABI – QUEM SÃO SEUS PAIS?André Toral – Minha mãe é Ara-

cy Amaral [historiadora e crítica dearte, autora da biografia Tarsila: SuaObra e Seu Tempo]. Meu pai se cha-ma Mario Toral, é um pintor chile-no muito conhecido. Eu tenho na-cionalidade chilena também.

JORNAL DA ABI – ENTÃO ESSA HISTÓRIA

DE ARTE JÁ VEM MESMO DE FAMÍLIA?André Toral – É. E um certo pre-

conceito contra quadrinhos que eumesmo tinha por causa disso. Tinhauma autocrítica muito forte; sabiaque o que eu fazia não era conside-rado arte. Quadrinho nunca foiconsiderado arte.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACOMPANHA OQUADRINHO CHILENO?

André Toral – Muito de leve. OChile não é um país como o Brasil,que tem um mercado editorial tãorico. O Chile é um país muito me-nor. Toda a população chilena nãodá a população de São Paulo. É umaeconomia menor, um mercado edi-torial menor, é muito limitado. Agente vive num país grande, que éuma potência, e a gente inclusive seesquece disso. Quando vamos a lu-gares como o Chile, o Uruguai, o Pa-raguai, sentimos a mão grande bra-sileira, sentimos o peso brasileiro;nós somos mais ricos que os nossosvizinhos. Eu gostaria muito depublicar no Chile. Uma coisa que eupenso muito é fazer uma históriasobre a História do Chile e, com essadesculpa, conseguir publicar lá. Elesnem sabem quem eu sou. Se falam“Toral”, eles só pensam em MárioToral. Também sempre quis publi-car Adeus Chamigo Brasileiro no Pa-raguai, mas nunca consegui.

JORNAL DA ABI – E SOBRE OS AVIÕEZINHOS?André Toral – Ah, isso é a coisa

mais importante do mundo.

JORNAL DA ABI – É MESMO?André Toral – Eu adoro montar

aviõezinhos de plástico. Eu sou umplastimodelista. A minha casa estácheia de aviõezinhos.

JORNAL DA ABI – VOCÊ COMPRA MINIATU-RAS MAIS ANTIGAS OU AS IMPORTADAS?

André Toral – Importadas, pelainternet. Só trabalho com aviaçãojaponesa da Segunda Guerra Mun-dial. Adoro esse período. Comprotodos os aviõezinhos que consigo efaço. Tenho uma pilha de caixaspara fazer, eu vou para França, paraos Estados Unidos, compro ummonte de spray, tintas... Monto,pinto com aerógrafo e depois fico aliolhando, para que serve esse negó-cio que me custou 40 horas?

JORNAL DA ABI – É A MONTAGEM QUE IN-TERESSA, NÃO O PRODUTO FINAL.

André Toral – Você sabe o que sedizia da arte, que tem que ser feita

com desinteresse. Se você faz da arteum interesse, não é arte verdadeira.A arte é o espírito livre que vaga.Então é um pouco disso que faço.Uma prova da minha honestidadecomo artista é a minha total inca-pacidade de ganhar dinheiro commeu trabalho como artista. Então,no fundo, se arte não deve ser feitapor interesse, então sou um grandeartista. O que faço não consigo ven-der de forma alguma. Nem as aqua-relas, nem as litografias, nada. Nãoganho nada, nem os aviõezinhos demontar. Tenho uma relação meiomedieval com as coisas; gosto de fa-zer, mas para o que elas servem, queatividade elas complementam, nãosei; é apenas contemplação. Fiz, estápronto, fico ali olhando.

JORNAL DA ABI – COM A INTERNET, AS

NOVAS MÍDIAS, VOCÊ SENTE QUE AS PES-SOAS ESTÃO PERDENDO A CAPACIDADE DE

CONTEMPLAR?André Toral – No que diz respei-

to aos quadrinhos, eu gosto muitodo livro como objeto, é uma coisabonita, gostosa de tocar, que trans-mite prazer nas formas, principal-mente esses álbuns de capa dura,com acabamento fosco. Gosto des-sa coisa artesanal do livro, do qua-drinho, do papel, de cheirar, e essejeito desencanado de ser preguiçosodiante da vida, de viajar mesmo. Aía outra acepção da palavra contem-plar, olhar o mundo, olhar a feira,olhar mulheres, olhar que tipo devida leva aquela moça que é umafuncionária que está limpando, gos-to de observar essas coisas e imagi-nar o que está por trás dessa reali-dade aparente. Outro cara que gos-ta muito de contemplar é o Louren-ço Mutarelli. Observa tanto queacaba pirando, no ralo, na mulher,e ele acaba criando uma realidade pa-

ralela. E você gosta dele por causa dis-so, porque a gente vive no mesmomundo que ele, a gente vê as mes-mas coisas, mas olha o que esse carafaz com a realidade. Aquela história,O Natimorto, que o cara acha que es-tão mandando mensagens para eleatravés das imagens dos maços de ci-garro... O que importa não é a reali-dade, mas o que a gente faz com ela.Aí contemplar, viajar, ser preguiçoso.Essa coisa que a antropologia dápara a gente de graça, que é a sensa-ção do estranhamento. Quando vi-ajo para outros países eu fico tãoexcitado que não consigo dormir.Lembro uma vez que cheguei nosEstados Unidos, estava todo mun-do cansado, mas eu precisava andar.Andava e via a calçada americana, ohidrante americano, um carro ame-ricano, um cão americano, uma ve-lha americana! E uma placa de trân-sito escrita em inglês, e você estra-nha tudo, tudo é novo! Quando euvoltei para o hotel, passaram-se seishoras, mas parecia que eu estava alihá uma semana. Aprendi tanto nes-se passeio. Acho que a gente não podebobear. Quando a gente retorna aoBrasil, começa a estranhar o Brasil. Écomo se as pessoas estivessem todasdiferentes, estranhas. Sempre digo:faça perguntas, tenha curiosidade!

JORNAL DA ABI – NUMA VIAGEM É INTE-RESSANTE VER NÃO OS PONTOS TURÍSTICOS,MAS AS COISAS COMUNS, NÃO?

André Toral – Como se faz umaescada, como se fazem os degraus,como se faz o corrimão, como se faza bucha que enfia o prego na parede.Eu lembro uma vez, também nosEstados Unidos, quando fui dar umaconsultoria lá, e vi operários constru-indo uma parede no museu Smith-sonian. Eu chapei! Eles fazem aqueledry wall, que é um aglomerado, den-tro tem uma coisa de isopor e depoistem outro aglomerado que imita oacabamento da alvenaria, mas nãotem nada a ver com alvenaria. Euparei para olhar um operário cons-truindo a parede, enquanto o outrogrupo de turistas foi ver as outrascoisas. E o índio quando vem para SãoPaulo, um carajá, um xavante, elesfazem o mesmo, ficam viajando. Equando você vai para a aldeia deles,fica olhando, viajando! Então, é issoque eu gosto. No fundo, eu gosto deviajar. Viajar em todos os sentidos. Foibom ter conversado com vocês aquihoje, porque eu cheguei à conclusãode que eu gosto de viajar. Não sei seé positivo ou negativo...

“Se você fazda arte um

interesse, não éarte verdadeira.

A arte é o espíritolivre que vaga.”

Toral não pára de desenhar:em seu tempo livre faz

ilustrações com aquarela.

26 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – O SENHOR SEMPRE ES-CREVE QUE É APAIXONADO POR JORNALIS-MO E ISSO VEM DESDE A SUA INFÂNCIA EADOLESCÊNCIA. COMO SURGIU ESSA PAIXÃO?

Whitaker – Na verdade, eu faziaum jornal aos dez anos de idade por-que o meu pai [o publicitário JoséRoberto Whitaker Penteado] tinhafeito isso quando era garoto, e mi-nha avó tinha colecionado o jornal-zinho que ele fazia manuscrito. Nãosei quantos anos ele tinha, era ga-roto também, mas era mais produ-tivo do que eu. Minha avó encheuuma caixa de sapatos com os jornai-zinhos. Ele nasceu em 1919; então,se tivesse uns 10 ou 11 anos, esta-mos falando de 1929, 1930. Era umaépoca de muita agitação no Brasil.Até por isso o jornal dele era muitopolitizado, ainda que do jeito de umacriança, é claro. O nome era O Liber-tador. E ver o jornalzinho do meu paiacabou fazendo que eu também fi-zesse algumas edições com 10 ou 11anos de idade, talvez até um poucoantes. Não podia dar a esse jornal-zinho um nome parecido com o domeu pai, então acho que foi um doscasos de maior ousadia jornalísti-ca precoce porque o título era OMundo [risos]...

JORNAL DA ABI – PROVAVELMENTE POR

CAUSA DE O GLOBO...Whitaker – Sim. Criança absor-

ve muito. O Globo era vespertino, eno Rio de Janeiro havia dois matu-tinos: o Correio da Manhã e o Diáriode Notícias. Não lembro se o JB saíade manhã ou à tarde. Eu sei quemeu pai recebia o Correio e o Diáriode Manhã, e O Globo era um jornalque não era entregue nas casas; erapreciso comprar na banca. O fato éque quando estava no primeiro ouno segundo ginasial, eu e mais unscolegas – me lembro do FernandoMora, do Silvio Guimarães – fazía-mos um jornalzinho dentro da es-cola para gozar os professores, umaatividade até comum das pessoasque têm a carreira no Jornalismo. Eume lembro que o Fernando Moraescrevia o jornalzinho dele, o Torpe-do, no terceiro ginasial, e eu fazia oContra-Torpedo. Nós fazíamos doisjornais. Um belo dia, tivemos a idéiade juntar os dois num só, e resolve-mos chamá-lo de Sempre Viva. Bom,o que tem o nome “Sempre Viva” aver com tudo isso? É que esse era oapelido da professora de Espanhol,que era muito chata, e como a ga-rotada é cruel, a gente cantava umamusiquinha com este nome parazombar dela. E o jornalzinho pas-sou a se chamar Sempre Viva.

O que acho interessante é que,se há uma pessoa que devia ter sidojornalista, essa pessoa era eu, por-que é uma atividade tão antiga naminha vida que acho que não en-trei para o jornalismo porque nãoera uma profissão promissora na-quele momento. Meu pai era liga-do à publicidade e me encorajoumuito a entrar nessa área, quetambém é interessante para quemgosta de escrever, que tem elemen-tos criativos.

Eu me achava gente e fazia par-te do grupo da Associação Metropo-litana dos Estudantes. Eram anospolitizados. Éramos umas seis ousete pessoas, incluindo o CláudioLeopoldo Salm, que veio a se envol-ver politicamente, entrou para oPartidão, foi professor da UFRJ e hojeé um dos conselheiros do [José] Ser-ra. Há muitos anos não era publi-cado um jornal de estudantes emPetrópolis. E a cidade tem uma ca-racterística muito interessante:quem lançou o primeiro jornal deestudantes ali foi Alcindo Guana-bara, nos anos 1920 ou 1930. Fize-mos então uma reunião de pautapara o primeiro número e tivemosa idéia, com a ingenuidade das cri-anças, de que seria bombástico en-trevistar ninguém menos que opróprio Presidente da República!Ninguém era mais importante queele! Em 1955, um ano após o suicí-dio de Getúlio, Petrópolis ainda eraa capital diplomática do Brasil, e oRio era a verdadeira. No verão, opessoal subia para o Palácio do RioNegro, onde ficava o Presidente. Aentrevista acabou não saindo, maso Presidente nos mandou uma car-ta que foi publicada na capa daprimeira edição do jornal Estudantede Petrópolis. Entrevistamos tam-bém o Prefeito da cidade, FlávioCastrioto. Meu pai conseguiu, pe-los contatos dele na agência de pro-paganda, uma gráfica que gentil-mente imprimiu o jornal para nós.Então, em abril de 1955, ainda nemtinha 14 anos, e lançamos o nossojornal com essa glória dúbia, de ter-mos “entrevistado” um dos Presi-dentes de menor expressão da His-tória do Brasil, que foi o Café Filho.

Em 1958, quando terminei meucurso científico, estava preparadopara seguir uma carreira qualquer.O jornal dos estudantes, que haviasobrevivido a seis números, já nãoexistia mais, e eu não tinha oportu-nidade de continuar os estudos naárea de Jornalismo, porque, tenho aimpressão, nem havia escola deJornalismo naquela época. Esta in-fluência de eu ter trabalhado commarketing e propaganda foi do meupai, que também foi um jornalistafrustrado. Jornalismo nunca pagoumuito bem no Brasil. Nunca foiuma área de boa remuneração paraos profissionais. Geralmente, é deboa remuneração para os donos dosjornais.

JORNAL DA ABI – É NESSA ÉPOCA QUE VOCÊ

SAI DO BRASIL?Whitaker – É. Em 1959 fui para

os Estados Unidos e conheci Hercu-lano Mesquita de Siqueira, que erao chefe do bureau de O Cruzeiro, aprimeira publicação brasileira a terescritório nos Estados Unidos. Her-culano tinha sido publicitário, cole-ga do meu pai na Thompson, agên-cia de propaganda, e estava reali-zando um velho sonho de ser jorna-lista de novo. Ele foi para lá, ondebuscava anúncios para O Cruzeiro,mas ao mesmo tempo fazia repor-tagens. Se não me engano, ele foi o

único jornalista que conseguiu en-trevistar Caryl Chessman, um con-denado à morte que escreveu dois li-vros na prisão – 2455, Cela da Mor-te, que se tornou um best-sellermundial, e O Menino Era Um Ban-dido. Houve um movimento mui-to grande para perdoar Caryl Ches-sman, inclusive no Brasil, e o Her-culano foi o único jornalista domundo a conseguir entrevistá-lo.Claro que ele se orgulhava muitodesta entrevista que fez para O Cru-zeiro. Ah, e o Caryl não foi perdoa-do, foi executado. Fiquei uns trêsmeses na casa do Herculano. Aprincípio fui para estudar. Na épo-ca meu pai tinha saído da agênciapara montar sua própria empresae tinha falido; a família não tinhagrana para me sustentar. Então,juntei a graninha que meu pai ti-nha me dado e acabei ficando porminha conta, arrumei um empre-go de boy numa agência de viagens.Depois arranjei um emprego numescritório de traduções, e estava memantendo por ali. Meu pai se refezaqui no Brasil e voltou para a áreaonde tinha trabalhado, só que emrelações públicas, não mais emagência. Ele tinha um cliente im-portante, a Nestlé, e me conseguiuum estágio no setor de vendas lá nosEstados Unidos, em 1959, depoisem pesquisa de mercado e marke-ting. Eu não tinha nenhum curso,nada, e fui trabalhar em marketinge propaganda na Nestlé. De lá, con-segui um outro trabalho, de novoatravés de papai: um estágio na J.Walter Thompson, uma grandeagência de propaganda. Isso foi oque realmente me deu a base parao que seria minha profissão nos 20ou 30 anos seguintes

JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ ENTROU

NA FACULDADE?Whitaker – Lá nos Estados Uni-

dos a única coisa que estudei foiInglês, na New York University.Arranjei uma namorada alemã, Gi-sele, que me provocou para ir conhe-cer a Europa, porque ela não gostavados Estados Unidos. Fomos os dois;compramos uma passagem numacabine no melhor navio que tinhana época, o Leonardo Da Vinci, quepegou fogo uns anos depois. Erauma das primeiras viagens daque-le navio, e nós fomos para Genebra,onde tinha me candidatado a umemprego num banco. Fiquei na Eu-ropa mais quatro anos. Ou seja, tiveuma boa experiência internacionalantes de estudar. Quando volteipara o Brasil, em 1966, vim para SãoPaulo porque o mercado de trabalhopara publicidade e marketing eramuito maior aqui, e descubro quetenho que fazer uma faculdade. Fuifazer Economia na Faculdade SãoLuís, na Avenida Paulista, à noite, edurante o dia arrumei um empregonuma empresa de marketing. Naverdade, devia ter estudado Admi-nistração, mas isso foi um pouco atônica de minha vida. Como a vidame ensinava certas coisas, eu deixa-va para aprender na escola o que

O Presidente da Escola Superiorde Propaganda e Marketing-ESPM

explica por que decidiu criarum curso superior de Jornalismo,apesar da decisão do SupremoTribunal Federal, e questiona

a perenidade do livro, emboraconfesse ser um apaixonado

pelo papel impresso.

POR FRANCISCO UCHA E CELSO SABADIN

Filho de renomado radialista e publicitário, José Ro-berto Whitaker Penteado Filho herdou do pai não ape-nas o nome. Herdou o gosto pela comunicação demassa. Ainda criança, ele criou um jornalzinho quebatizou, sem falsa modéstia, de O Mundo. Adolescente,quis entrevistar o Presidente da República. Viveu nosEstados Unidos e Europa, onde ganhou sólida expe-riência numa profissão que engatinhava no Brasil. Avida e a carreira o levaram para o marketing e publici-dade, mas o Jornalismo nunca saiu de suas veias. Par-ticipou do histórico lançamento da revista Veja, foicolunista em O Globo, onde aprendeu a importânciado deadline. Foi um dos responsáveis por campanhasde sucesso que introduziram vários produtos no Bra-sil, como o desodorante Avanço e o iogurte Danone.É poeta, autor de vários livros; escreveu uma tese so-bre o imaginário infantil criado por Monteiro Loba-to; é apaixonado pelo papel impresso e pela históriada comunicação humana; há 30 anos afirmou que olivro iria acabar. “Por que o livro há de sobreviver se oimportante é o que está dentro dele?”, questionoucerta vez para seu amigo Artur da Távola.

Hoje, o Presidente da Escola Superior de Propagan-da e Marketing vê com entusiasmo as mídias que sur-gem e aguarda os novos rumos do jornalismo e da co-municação com indisfarçável curiosidade. Não poracaso, a escola que ele preside abriu recentemente seucurso de Jornalismo apostando no futuro.

Jornalistade coraçãoJornalistade coração

27Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

ainda não tinha aprendido na vida.Já tinha aprendido Administraçãonum banco na Suíça, tinha traba-lhado em 1960 na IBM, onde me-xia com cartões perfurados numaépoca em que mal se falava emcomputador. Tinha trabalhado naThompson e na Nestlé... quer dizer,tinha conhecido Administração emprimeira mão, mas Economia eunão sabia.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CHEGOU A EXERCER

A PROFISSÃO DE ECONOMISTA?Whitaker – Não. Para você ter

uma idéia, trabalhei nas Refinaçõesde Milho Brasil, como Gerente deProduto de Maizena. Lancei a mai-onese Hellman´s no mercado tam-bém como gerente de produto. Aícomecei a ter sucesso na área demarketing, fui contratado por umaempresa chamada Atlantis Brasil,que tinha um produto chamadoCera Poliflor, e que hoje é da ReckittBenckiser, um grande conglomera-do inglês de produtos de limpeza.Lá, comecei a me destacar porque,além de estudar à noite e trabalhardurante o dia, ainda dava aulas deMarketing. Não havia ninguémpara dar aulas nessa época. Então,pela minha experiência, eu sabiamais do que os outros. Fui dar au-las na Associação de Dirigentes deVendas do Brasil-ADVB. Isso metornou conhecido: meus alunoseram muito mais velhos. Em 1967,1968, eu tinha 27, 28 anos, e lecio-nava para pessoas com mais de 30.E acabei publicando o meu primei-ro livro, em 1971, chamado Previsãode Vendas, que também foi o primei-ro livro sobre o assunto no Brasil

JORNAL DA ABI – EM 1968 VOCÊ PARTICI-POU DO NASCIMENTO DA REVISTA VEJA.COMO FOI ESSA EXPERIÊNCIA?

Whitaker – Acabei recebendo umconvite do Roberto Civita para sergerente de um produto chamadoVeja, que a Abril ia lançar. Um con-vite que fez muito bem para o ego.Minha experiência em Veja foi igualà da revista: um fracasso redondo!Não esqueça que Veja só começou aser sucesso dez anos depois, dez anosengolindo sapo, gastando dinheiro,Senhor Victor, Roberto e todo mun-do! Os fascículos a sustentavam.Veja perdeu muito dinheiro! Mas oRoberto acreditava piamente narevista estilo news magazine, coisaque brasileiro não queria saber. Na-quela época, news magazine era arevista Visão, que era uma coisa pe-quena, para um segmento de execu-tivos. Então, o modelo Veja no co-meço não pegou, mas pela persis-tência e pelo talento da Editora elesconseguiram. Mas não eu. Fui paralá, administrei o lançamento, o quefiz muito bem, pois já tinha feitolançamentos de outros produtos. Olançamento de Veja foi histórico,muito bem feito, só que a revista nãose agüentava, não tinha público. Sópara vocês terem uma idéia, o pri-meiro número de Veja vendeu, diga-mos, um milhão de exemplares!Nunca se tinha vendido tanto! Ti-

rou um milhão e vendeu mais oumenos por aí. O segundo númerovendeu 600 mil; o terceiro, 80 mil, eaí foi escada abaixo. Posso estarenganado com os números exatos,mas foi por aí. O erro é que as cam-panhas de propaganda que a Abrilfazia com a Standard e outras agên-cias eram para os fascículos, e fas-cículo é sempre igual. Na equação devendas dos fascículos, quanto maisvocê vender o número 1, mais vocêvai vender os demais números, atéo último. É igual a novela, que pre-cisa de uma boa audiência logo noinício para se manter depois. Mas ateoria do fascículo não funciona pararevista, que é exatamente o contrá-rio: o público tem de ser conquista-do, e depois vai subindo.

JORNAL DA ABI – O QUE O PÚBLICO REJEI-TOU NA VEJA? O EXCESSO DE TEXTO? ESTA-VA ACOSTUMADO COM REVISTAS MAIS VISU-AIS, COMO MANCHETE E O CRUZEIRO?

Whitaker – Revistas semanais noBrasil, naquela época, em 1968,eram Manchete e O Cruzeiro. Nãohavia nem alfabetização nem cul-tura suficientes para segurar umarevista como Veja.

JORNAL DA ABI – MAS A REALIDADE FOI

UM SUCESSO DOIS ANOS ANTES. ERA MEN-SAL, E SE SUSTENTOU BEM COM SEUS TEMAS

POLÊMICOS.Whitaker – Ela foi derrubada pela

ditadura. Dizem que Veja tambémfoi perseguida pelo AI-5. Ela foi lan-çada em 1968 e logo depois saiu oAto Institucional. Quer dizer, achoque foram duas coisas: primeiro,não havia um mercado preparadopara uma revista semanal de notí-cias e análise, e depois veio a ques-tão da censura, que acabou tambémcom a Realidade.

JORNAL DA ABI – LI NUM ARTIGO SEU QUE

PANORAMA ERA O NOME PREFERIDO PARA

PROJETO DA VEJA. VOCÊ ACHAVA MESMO

PANORAMA MELHOR DO QUE VEJA? OU

MELHOR, VEJA E LEIA, QUE FOI O NOME DA

REVISTA NO INÍCIO...Whitaker – Ninguém gostava de

Veja. O pessoal achava que chamaruma revista de textos de Veja era en-ganar o leitor. Ela não era uma Man-chete ou O Cruzeiro. Tanto assim queela foi lançada como Veja e Leia, sóque ‘e Leia’ era bem pequenininho.O nome pegou. Roberto Civita,Mino Carta, Luis Carta preferiamPanorama porque achavam que des-crevia melhor o que era a revista,mas esse título era de uma editoraparanaense que não queria vender,

A Veja quasese chamou

Panorama. OuPirlimpimpim.

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JOSÉ ROBERTO

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28 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

ou queria vender muito caro. En-tão... depois de muito blábláblá, ovelho Victor, disse: “Escuta, a revistavai sair daqui a dois meses e aindanão tem nome. Veja e Leia é umnome nosso” – porque já estava re-gistrado para o lançamento de umasérie de fascículos – “e a gente podelançá-la na semana que vem comesse nome! Eu tenho 51% das ações,então, está resolvido: é esse o nome!”Ah, e ele ainda disse o seguinte: “Seo produto é bom pode chamar dequalquer coisa, pode chamar Pirlim-pimpim que ele vai vender! Se nãofosse verdade, um carro chamadoVolkswagen não ia vender no Bra-sil!” Essa é uma história clássica.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FICOU QUANTO TEMPO

NA VEJA?Whitaker – Seis meses, que foi o

tempo de desenvolver uma sólida elonga amizade com Roberto Civita,até hoje um amigo muito querido eum dos incentivadores da escola deJornalismo aqui na ESPM. Mas avida é curiosa: nos encontramos, nostornamos muito amigos, mas elefoi obrigado a me deixar ir embora daVeja. Fui despedido pelo DomingoAlzugaray, que era funcionário dele.Evidentemente a coisa não estavafuncionando, não que eu tivesseculpa... mais culpa tinha o MinoCarta, que editava a revista. E umarevista que começou com 800 milexemplares, ou coisa parecida, e quede repente chega a 40 mil e não temanúncio. Aí não adianta. Não voute contar o resto da história porquenão estava mais lá, mas a Veja teverealmente problemas sérios.

Devo ao Roberto uma lição grandeque aprendi. Ele me disse: “Olha, gos-to muito de você, participei de suacontratação, precisava de um exce-lente Gerente de Produto, só quenossa empresa não está preparadaainda para esse tipo de marketing.Podia guardar você aqui porque temmuita coisa para fazer na Abril, masvocê vai ficar marcado aqui dentropelo fracasso, e não estaria sendo seuamigo se eu arranjasse um outro lu-gar”. Ele estava falando com um carade 28 anos. Claro que fiquei chatea-do, mas saí de lá e arranjei empregorapidamente na Alcântara Macha-do Periscinoto [Almap], que tinhaum publicitário famoso e competen-te, que é o Júlio Cosi Júnior. Fui tra-balhar com Júlio e fizemos lança-mentos de grande impacto como odesodorante Avanço, da Gillette, quefoi uma revolução; o caminhão leveda Mercedes-Benz, que se chamavaMercedinho, um caminhão para cir-cular nas cidades, e o maior sucessode todos, o iogurte Danone, com ofilme do garotinho francês que mar-cou época num país que nem sabiao que era iogurte. Eu era o contato daconta, e não o criador. Nunca fui daárea de criação, mas sim de atendi-mento e planejamento.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TAMBÉM FOI COLU-NISTA DE PUBLICIDADE. COMO COMEÇOU AESCREVER NA IMPRENSA?

Whitaker – Quando saí da Almap,

em pleno sucesso profissional empublicidade, já estava escrevendomeus textos. Fui “descoberto” peloFernando Reis, editor da revista Pro-paganda, quando me encomendouum artigo. Escrevi, ele gostou eachou que eu tinha jeito para o ne-gócio, que escrevia bem. Então, eleme redescobriu como jornalista epassei a colaborar nas revistas daEditora Referência, do meu amigoArmando Ferrentini, no início dosanos 1970. Enquanto isso, o JúlioCosi monta a sua própria agência,a Cosi, Jarbas & Sergino, tendo aL’Oréal como um dos clientes.Como era uma empresa muito im-portante, o Júlio precisava desespe-radamente de alguém que falassefrancês. E ele sabia que eu falavafrancês e tinha morado quatro anosna Suíça. Nós tínhamos trabalha-do juntos na conta da Danone,onde eu era Supervisor da conta. Defato não foi nenhum talento publi-citário meu que me levou a ser Su-pervisor, mas sim o fato de falar alíngua do cliente, que era muitoimportante. Aí, fui trabalhar como Júlio durante um ano e meio maisou menos. Na época a agência tevesucesso, mas ele levou um golpe deum cliente que não pagou, tive-ram problemas e ele acabou ven-dendo a empresa para os america-nos. O negócio da L`Oréal me le-vou para o Rio. Eles me tiraram daagência, até porque eu queria tam-bém voltar para o Rio. Tinha cres-cido em Petrópolis, tinha toda aque-la minha experiência carioca.

JORNAL DA ABI – E SOBRE A SUA EXPERI-ÊNCIA NO JORNAL O GLOBO?

Whitaker – Foi muito interessan-te! De vez em quando alguém meconvidava para escrever em outrosveículos. Como, por exemplo, oamigo querido Zuenir Ventura, queera editor do Caderno Internacionaldo Jornal do Brasil, e alguns outrosjornalistas que sabiam que eu erajornalista de coração e que escreviabem. O Zuenir me fez um enormefavor, uma verdadeira intervençãoprofissional que foi muito bacanana minha vida: ele me encorajou aescrever para um caderno do JB deque não lembro o nome agora. Todo

artigo que eu mandava para ele saíauma vez por semana, acho que nosábado. Quem também começou apublicar minhas contribuições foi oAugusto Nunes do Estadão. Aí, co-mecei a sentir o gostinho de sair noJB e no Estadão. Eu já não escrevia sósobre propaganda, mesmo nas revis-tas do Armando Ferrentini. Quandoele chegou para mim e disse “Olha,a revista Marketing está mal, preci-so dar uma mexida nela, e queria quevocê escrevesse”, eu não era nenhu-ma celebridade, mas na área demarketing já tinha um certo nome.Me lembro de ter feito duas exigên-cias ao Armando. Primeiro, quero aúltima página da revista; segundo,quero escrever sobre qualquer assun-to que der na telha. Ele topou.

E aí aconteceu o seguinte: o Jo-mar Pereira da Silva tinha a colunaPanorama Publicitário publicada se-

manalmente no Globo, um espaçonobre que os jornalistas de lá odia-vam porque era uma imposição doDepartamento Comercial. Tantoque o pessoal da Redação do Globonem fazia copidesque. Eles consi-deravam aquilo um anúncio, umapágina suja. Então o Jomar rece-beu um convite da agência Caste-lo Branco Borges & Associados-CBB&A, aceitou, e teve de se in-compatibilizar com O Globo, poisele não podia escrever sobre publi-cidade trabalhando numa agência.O Jomar, então, muito gentilmen-te me indicou. Comecei a fazer otrabalho e logo na primeira colunacometo uma gafe terrível! Escrevo“quero agradecer muito ao meuquerido amigo e companheiro JomarPereira Martins”... e o nome dele é Jo-mar Pereira da Silva! Tem que tomarmuito cuidado para ser jornalista.

O Jomar deu risada, com muitoespírito esportivo.

Com a coluna Panorama Publici-tário, aprendi uma coisa importan-tíssima para o jornalista, para o es-tudante, enfim, para alguém que seprepara para uma profissão: émuito importante ter deadline, terprazo. Você tem que escrever comprazo. Tem que entregar quarta-feira ao meio-dia toda semana.Quando você põe isso na sua vida,você se torna um escritor, um jorna-lista. Hoje tenho oito ou nove livrospublicados, e três ainda no forno, econsidero o deadline fundamental.

JORNAL DA ABI – JORNALISTA SEM DEA-DLINE NÃO É JORNALISTA?

Whitaker – A maioria dos jorna-listas tem deadline todo dia. Se apessoa escreve muito bem mas nãotem prazo, então ela é muito maisescritor do que jornalista. Mas achoque o escrever com prazo é muitoimportante. Você tem que sentar,escrever e não tem desculpa.

JORNAL DA ABI – COMO A ESPM ENTRA

NA SUA VIDA?Whitaker – A ESPM entra na mi-

nha vida em 1969. Meu amigo IvanPinto, que era um funcionário im-portante de uma agência chamadaLintas e que dava aulas de Elemen-tos de Propaganda na então EscolaSuperior de Propaganda de São Pau-lo, me liga e diz: “Olha, não possomais dar aulas porque tenho queatender meus clientes, estou atrapa-lhado! Sei que você está dando umasaulas na ADVB e o pessoal gosta devocê. Então vem dar aula aqui naEscola de Propaganda.” E eu fui. Naépoca, a Escola era formada apenaspor duas salinhas inexpressivas naRua 7 de Abril. Em 1971, deficitária,ela quase fechou. Foi quando o OttoScherb chegou para o grupo que di-rigia a escola e disse: “Se vocês mederem carta branca e um pequenosalário para sobreviver, eu assumo”.Foi a grande sorte da escola! Otto eraum profissional de publicidade de for-mação universitária na Europa, coi-sa que ninguém tinha na nossa épo-ca. Ele tinha trabalhado na Almap, naVolkswagen, e era professor da Usp.Tinha sido publicitário, feito carreiraempresarial e chegou a ser Presiden-te da Ponds, uma grande empresaamericana de cosméticos.

Quando ele assumiu a Escola, oprimeiro telefonema que recebeu foio meu: “Otto, quero te oferecer aju-da. Não posso largar o que estoufazendo porque você não tem dinhei-ro para me pagar, mas gostaria de teajudar mais do que sendo professor”.Ele me convidou então para ser dire-tor de cursos de 1971 até 1973.Quando fui para o Rio com o convi-te da L’Oréal, tive que me afastar daESPM. Trabalhei durante três anos naL’Oréal até que um belo dia a Revo-lução dos Cravos, em Portugal, fezque eu perdesse meu emprego noBrasil. Eles tinham que colocar o Pre-sidente da L´Oréal portuguesa aqui,e arranjaram pra ele o cargo de Dire-tor de Marketing no Brasil. Foi então

José Roberto Whitaker Penteado Filho examina,com o pai, uma campanha de propaganda daFord, na J.W.Thompson de Detroit, em 1953.

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Whitaker em 1978,na direção da ESPM

do Rio de Janeiro.

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29Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

que tomei uma decisão importantena minha vida. Era o ano de 1978, ti-nha 37 anos e prometi nunca maistrabalhar em multinacional, nemcomo executivo. Vou fazer outra coi-sa, vou dar aula, vou ser consultor,qualquer coisa, mas não quero maisessa carreira. Em 1979, Otto Scherbme chama: “A Escola do Rio estápara fechar, se você quiser, te garan-to um tanto, para você cuidar dela”.Em fevereiro de 1979 voltei entãopara a ESPM e cá estou até hoje.

JORNAL DA ABI – VOCÊ É POETA?Whitaker – Sou poeta. Meu se-

gundo livro de poesia está prontinho.O primeiro saiu em 1986. Na verda-de, não sei se minha primeira voca-ção foi poeta ou jornalista, porquemeu primeiro poema é de 1951. Eutinha 10 anos de idade. Tenho issorabiscado em algum lugar, e era al-guma coisa assim: “Meu destino écantar/por isso, meu amor/só em teouvir falar/idealizo uma canção/deamor ao luar.”

JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA, CRIAN-ÇAS DE DEZ ANOS SABIAM ESCREVER MUI-TO MELHOR!

Whitaker – Não havia a tecnolo-gia de hoje, né? A única coisa que ti-nha na minha casa era um rádio,porque meu pai foi escritor de radi-onovelas nos áureos tempos da Rá-dio Nacional. Ele trouxe para o Bra-sil a novela Em Busca da Felicidade, queera de um autor mexicano. Na agên-cia de propaganda, meu pai adapta-va a novela para o Brasil, e ele mes-mo chegou a escrever duas novelas:O Caminho do Céu e Rosinha, Flor dosCampos. Ele teve também um pro-grama chamado O Vingador, ambi-entado no Brasil, com o José Scate-na, que morreu recentemente, pio-neiro do rádio. Eu cresci com umaimagem do meu pai radialista, numaépoca que isso era muito raro. Comcinco, seis anos eu ouvia meu paifalar no rádio.

JORNAL DA ABI – ALÉM DE PUBLICITÁRIO,SEU PAI ERA TAMBÉM RADIALISTA?

Whitaker – A Publicidade veio de-pois. Meu pai era radialista, apresen-tava na Rádio Cultura de São Pau-lo, em 1940, com Manoel da Nóbre-ga, um programa de grande sucessoque se chamava A Hora da Peneira, oprimeiro programa de calouros dorádio brasileiro. Em 1941, ele foi cha-mado pelo Cícero Leuenroth, donoda Standard Propaganda, que lhe

Whitaker – Existe em Lobato umcerne ideológico, que eram as coisasque ele achava e colocava na boca dospersonagens. Por exemplo: ele era ex-tremamente machista, mas ideolo-gicamente era um feminista de van-guarda. Então, Emília, Narizinho aDona Benta são pessoas extrema-mente esclarecidas nessa área dofeminismo. Ele era anticlerical, espe-cialmente anticatólico, tanto assimque os seus livros foram queimadosnas escolas católicas daquele tempo.E depois você tem a parte que eu cha-maria de iconográfica, que são os per-sonagens. Tem o Burro falante, oQuindim, o Visconde de Sabugosa, aEmília, que do ponto de vista dafantasia é uma maravilha. O Loba-to teve esta descoberta do Saci Pere-rê, a Cuca, ele descobre um imaginá-rio, digamos de imagens mesmo, queé muito brasileiro. O Sítio do Pica-PauAmarelo é o nosso paraíso idealiza-do. Essas duas coisas só convivem naobra dele. Quando você pega essespersonagens e os adapta para as his-tórias em quadrinhos, ou para o ci-nema, você desvirtua o conteúdo.Então, você pode ter magníficos fil-mes ou histórias em quadrinhosmuito divertidas sobre os persona-gens do Lobato, mas você desfez algoque só podia existir literariamente. Aíé o caso em que o livro é insubstituível.

JORNAL DA ABI – E AQUELA POLÊMICA QUE

LOBATO LEVANTA ATACANDO O CAIPIRA NA

FIGURA DO JECA TATU?Whitaker – Lobato era membro

da velha oligarquia paulista, era umhomem de uma família conserva-dora e neto do Visconde de Tremem-bé. Depois que se forma em Direito,vai ser promotor numa cidadezinhachamada Areias. Mas, com a mor-te do avô, herda a sua fazenda e re-solve ser fazendeiro. Lobato era meiodoidão! Ele pensava grande e já queriater uma fazenda tipo “Texas”, sabe?E aí descobre o seguinte: não existiamão-de-obra! No Vale do Paraíba, na-quele momento, não havia gentequalificada para esse trabalho. Aspessoas eram muito pobres. Então,Lobato escreve um artigo para o Es-tadão com o título de Velha praga, noqual descreve esse caipira, e JecaTatu é um dos nomes que ele dá aocaipira. Mas isso tem que ser con-textualizado: era um cara que esta-va com sua vida de fazendeiro frus-trada porque não conseguia desen-volver sua fazenda. As pessoas queapareciam eram doentes e não qua-lificadas. Foi quase um desabafo.Mais tarde, Lobato se redime ao afir-mar que o brasileiro não é assim, obrasileiro está assim, e aí vem a cam-panha dele pelo saneamento; ele par-ticipa muito da campanha pela saú-de do brasileiro. O Lobato é polêmi-co porque as pessoas não têm tem-po de inseri-lo em seu contexto.

JORNAL DA ABI – FOI O QUE ACONTECEU

COM A TENTATIVA DE CENSURA AO LIVRO AS

CAÇADAS DE PEDRINHO RECENTEMENTE...Whitaker – Bom... mas isso daí é

uma coisa recente chamada de “pa-trulhamento ideológico”. Tem uma

Whitaker – Poderia falar muitashoras sobre isso! Quando estava ter-minando um mestrado em CiênciaPolítica, certo dia conversava com oProfessor José Murilo de Carvalho,que é um historiador e meu amigohoje, e disse: “Zé, quando penso naminha formação política, acho quea maior influência que tive foi Mon-teiro Lobato”. E ele: “Mas como?”. “Aliteratura do Monteiro Lobato émuito politizada! Eu me lembro dascoisas que a Emília dizia, a DonaBenta criticava, falava do TerceiroReich, a Emília sobre a verdade e amentira, as pilantragens dos políti-cos.” E ele me disse: “Acho que vocêtem um filão aí. Por que você não fazsua tese sobre isso?”. Comecei a es-tudar. Era leitor de Lobato desde cri-ança, reli tudo e fiz a minha tese jáno doutorado, na UFRJ, em Comu-nicação e Cultura, que se chamou OsFilhos de Lobato, sobre o imaginárioinfantil na ideologia do adulto. Con-fesso até que tive um certo sucessode demonstrar de forma mais oumenos convincente que Lobato influ-enciou várias gerações. Aliás, Os Fi-lhos de Lobato está sendo relançadoagora pela Editora Globo.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESCREVEU NUM

ARTIGO QUE O ESTILO E A APRESENTAÇÃO

DA OBRA DE MONTEIRO LOBATO NÃO SO-BREVIVERAM BEM À EVOLUÇÃO DA COMU-NICAÇÃO, TANTO IMPRESSA QUANTO ELE-TRÔNICA...

fez um convite irrecusável para ga-nhar um salário cinco vezes maiordo que ele ganhava como speaker derádio. Então ele se muda com a mu-lher e o filho de duas semanas de ida-de para o Rio e vai trabalhar na Stan-dard Propaganda. E apesar de ter nas-cido na Maternidade São Paulo, naRua Frei Caneca, fui registrado emSanta Teresa, como tendo nascido naRua Santa Cristina, nº 54. Uma ab-soluta falsidade, que faz que eu te-nha, até hoje em todos os meus do-cumentos a minha naturalidade decarioca [risos]. Mais uma curiosida-de: meu pai era muito amigo de umprimo dele chamado Auricélio Pen-

teado, que também era um homemde rádio e fundou o Ibope em 1942.Quando meu pai foi ao cartório pararegistrar o filho “carioca”, ele precisavade uma testemunha. E a testemu-nha foi o Auricélio, justamente o fun-dador do Ibope. [risos]

JORNAL DA ABI - ENTÃO VOCÊ JÁ NASCEU

AUDITADO...Whitaker – Auditado e cheio de

falsidade ideológica [risos]. Falso tes-temunho do Auricélio, mas está lána minha certidão de nascimento.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TAMBÉM SE ESPECI-ALIZOU EM MONTEIRO LOBATO.

José Roberto Whitaker apresenta o Marketing Best em 2000, no Rio de Janeiro.

Whitaker ao lado de Marcos Madeira,Maria Beltrão e Ricardo Cravo Albin,

durante sua posse no Pen Clube em 1999

Whitaker ao lado de dois amigos:cumprimentando Márcio Moreira durante aMostra de Propaganda Brasileira em NovaYork, em 1981, e com Jaguar, em 1997.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

30 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

nova geração de “ideólogos” que vêemchifre em cabeça de cavalo. O segre-do da inteligência está na própriapalavra: “In-ter-ligar”. Você desco-bre a verdade relacionando as coisas.Tudo que se pega fora de contextofica parecendo absurdo. O MonteiroLobato era racista? Você tem queavaliar a época em que ele nasceu.Ele nasceu em 1882! Meu deus! Issofoi há mais de um século! É o cami-nho de uma sociedade... Pelo racio-cínio desses caras que queriam cen-surar o Lobato, você teria que cen-surar Dante Alighieri, Shakespeare...Dom Quixote!

JORNAL DA ABI – MARKETING NO BRASIL

AINDA NÃO É FÁCIL?Whitaker [sorrindo] – Há dois as-

pectos que prejudicaram muito omarketing no Brasil: Primeiro foi acolonização portuguesa, o longoperíodo escravista. Durante séculos,só quem podia vender no Brasil eramos portugueses, eram os donos daslojas, os comerciantes. Vendia-se oque tinha disponível, e olhe lá. Nãotinha esse negócio de uma boa apre-sentação. Até na época em que euera garoto, loja de comércio era umhorror... aqueles armarinhos, aque-las padarias, botequins... Isso eracultural. Vem da época da coloniza-ção. Por outro lado, o segundo pon-to foi a religião católica, com todaaquela noção de pecado, da luxúria,culpa, avareza... Isso foi completa-mente diferente da colonização in-glesa nos Estados Unidos. Lá vocêtem que ter sucesso na vida para serrespeitado. Sucesso não significavapecado. Então, culturalmente omarketing não se inseria na nossacultura. Quando voltei para o Bra-sil e me tornei professor de marke-ting comecei a me perguntar porque é que o marketing era uma coi-sa tão bem-sucedida nos EstadosUnidos; não era tão bem-sucedida naEuropa e, no Brasil era uma tragé-dia, dificílimo se fazer marketingaqui, as pessoas não entendiam. Foiquando eu escrevi o tal livro a quevocê se refere na pergunta: Marke-ting no Brasil Não é Fácil.

JORNAL DA ABI – MAS O MARKETING NO

BRASIL, HOJE EM DIA, AINDA NÃO É BOM...Whitaker – Aí tem uma série de

razões...

JORNAL DA ABI – POR EXEMPLO, NÓS TE-MOS UM PRODUTO MARAVILHOSO E QUE TEM

UM MARKETING MEDÍOCRE: O FUTEBOL...Whitaker – Já escrevi sobre isso. O

marketing depende de quem o pra-tica. Numa multinacional como aUnilever ou a Nestlé, eles são tão bemorganizados que vão fazer tudo cer-tinho, vão fazer a comunicação cer-ta. Mas quando você tenta aplicarisso a uma situação caótica que é aestrutura do futebol brasileiro, ascoisas começam a funcionar mal.Para início de conversa, o time de fu-tebol não é uma empresa. Tenho umartigo escrito relatando que o maiorfracasso de marketing no Brasil foi aincompetência dos brasileiros de ga-nharem fortunas com o futebol.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ A CRISE

DA IMPRENSA COM A CHEGADA DAS NOVAS

MÍDIAS?Whitaker – A primeira coisa que

eu recomendo – até porque tam-bém sou diretor de uma Escola deJornalismo – é prestar atenção noque está acontecendo nos EstadosUnidos. É tentar entender por queé que o New York Times, o Chicago Tri-bune, a revista Newsweek estão to-dos anêmicos, anoréxicos, são ridí-culos... não têm quase mais anún-cios. E aqui no Brasil a Veja é umnegócio deste tamanho; o Estadão égordo, no domingo ele é muito gor-do; O Globo também, eles têmmuitos anúncios. Antigamente oNew York Times era muito maior queo Estadão. O que acontece? Muitoprovavelmente é a entrada de novosleitores no mercado.

JORNAL DA ABI – ISSO, DE CERTA FORMA,PODE SER EXPLICADO ATRAVÉS DO ARTIGO

O FUTURO DO LIVRO?...Whitaker – O Futuro do Livro é um

capítulo de um livro que escrevi e quenasceu de uma conversa com Arturda Távola, na casa da minha entãonamorada, futura segunda mulher,Elza. Defendi junto ao Artur daTávola a tese de que o livro não iriasobreviver. Isso há 30 anos. Ele ficoumuito puto comigo. Essa idéia deque o livro não ia sobreviver come-çou a me incomodar. “Por que o livrohá de sobreviver se o importante éo que está dentro dele, o conteúdo?Por que achar que algo, que hoje agente chama de suporte, é eterno?”Não há razão nenhuma, porqueamanhã a gente pode ter essa trans-missão de informações de outrasmaneiras, como até já existe, oIpad, por exemplo. Eu ia mais lon-ge: a escrita é algo que pode desapa-recer, porque ela nada mais é do queuma convenção. O homem come-çou a falar há, sei lá, um milhão deanos? Começou a escrever há 5 milanos, e começou a imprimir há 500anos. Então, mudar de suporte éfácil. E a escrita? A Humanidadeviveu tanto tempo sem a escrita.Será que a ela é eterna? E o que subs-titui a escrita? Sei lá. A telepatia?Não sei, mas um dia veio aqui naESPM o Derek De Kof, discípulo do

Marshall McLuhan, que até hoje di-rige o departamento que era doMcLuhan na Universidade de To-ronto. Ele disse ser perfeitamentepossível, porque os estudos feitos naUniversidade sobre Comunicaçãoparam na palavra, e a gente temalguma certeza de que os seres hu-manos vão continuar precisandodas palavras até para organizar o ra-ciocínio, mas nada indica que a es-crita é algo indispensável. Achei su-perbacana, mas continuo não sa-bendo o que vem depois da escrita.

JORNAL DA ABI – FALAM QUE O LIVRO VAI

ACABAR, MAS É O SUPORTE PAPEL QUE PODE

ACABAR...Whitaker – Tendo vivido a minha

vida toda em Comunicação, achoque o que não acaba é a própria co-municação. [Aponta para uma pe-quena estátua na parede de sua sala]Eu tenho esta estatuazinha, que éuma reprodução de uma imagemque está num museu na França, nasimediações de Paris. Chama-se aVênus de Brassempouy porque elafoi encontrada há 25 mil anos, numlocal da França que se chama... Bras-sempouy. São 25 mil anos que seconta a historinha de um cara quediante da namorada esculpiu issonum dente de um mamute. É uma

graça, é bonita, tem detalhes fan-tásticos! Acho que isso é uma de-monstração, se não de perenidade,da duração do ser humano como oser que se comunica, como alguémque transmite suas idéias, suasemoções para outro ser que decodi-fica isso e interpreta. Este processoé eterno enquanto durar a Huma-nidade. Tudo que for veículo, tudoque se interpuser entre essas duaspessoas, pode evoluir, pode se mo-dificar, desaparece um, nasce outro.Nesse sentido quase filosófico é quedigo que o livro não é absolutamen-te necessário. É um suporte ótimo.O papel pode não ser mais necessá-rio. Até hoje eu adoro papel! Recebodocumentos de 10, 15 páginas nocomputador e mando imprimirporque meu veículo é o papel. Nãoestou fazendo proselitismo; estoutentando ser objetivo, digamos, ci-entífico em relação a essa discussãoque anda por aí. Isso é parecido coma anedota que ouvi quando era garo-to de um moço que estava fazendouma palestra onde ele dizia que “den-tro de aproximadamente dez mi-lhões de anos a Terra deixará de exis-tir”. Levanta-se assustada uma ve-lhinha de uns 80 anos e pergunta: “Oque o senhor falou?” O palestranterepete: “Minha senhora, em dezmilhões de anos não existirá mais aTerra”. E ela fala: “Que alívio! Entendium milhão de anos”. [risos] É mais oumenos a mesma coisa.

JORNAL DA ABI – NA HORA EM QUE MU-DAR O SUPORTE VAI ACABAR O “AROMA

ERÓTICO DOS PAPÉIS EM QUE SÃO IMPRES-SOS JORNAIS E LIVROS”, COMO VOCÊ DES-CREVEU CERTA VEZ SUA PAIXÃO PELO PAPEL.É ÓTIMA ESSA SUA DEFINIÇÃO...

Whitaker – Eu escrevi isso? Pô, eusou bom, hein? [risos]

JORNAL DA ABI – FINALIZANDO, COMO AESPM DECIDE CRIAR UM CURSO SUPERIOR

DE JORNALISMO DEPOIS QUE O SUPREMO

DIZ QUE JORNALISTA NÃO PRECISA DE DI-PLOMA PARA EXERCER A PROFISSÃO?

Whitaker – Há dois anos o Rober-to Civita, nosso conselheiro, me dis-se que tinha um sonho: “Eu gosta-ria de investir no melhor curso pos-sível de Jornalismo que pudermos terno Brasil”. Então, é óbvio, nós somos

uma escola de marketing, de comu-nicação... e eu disse: “Roberto, vamosfazer lá na ESPM!”. E ele: “Ah... masvocês não têm tradição...”. Eu argu-mentei que começamos como umaescola de Propaganda, viramos umaescola de Marketing, entramos emDesign, Relações Internacionais...hoje nós somos negócios, arte e, sevocê pensar bem, somos uma escolade Comunicação e Gestão, que sãoduas coisas que se entrosam muitobem. Por que não ter o Jornalismoem pós-graduação, que foi a primei-ra idéia? Eu disse: “Podemos perfei-tamente acolher o seu curso, o seuinvestimento, vamos fazer uma par-ceria”. Aí começamos a conversar.Foi em 2009. Fui com o Roberto aosEstados Unidos; visitamos quatrograndes universidades americanas.Ele foi muito bem recebido porqueera ex-aluno da Columbia. E vimosque realmente havia a possibilidadede a gente desenvolver esse curso.Nesse entretempo veio a história dodiploma no STF... (pausa) Então, co-meçamos a avaliar internamente. Aquestão do diploma é uma históriaantiga. Já escrevi várias vezes sobreisso, e não tinha nada a ver com jor-nalismo. Era o pessoal da publicida-de que vinha encher o saco da gentepara que a ESPM participasse de ummovimento para regulamentar aprofissão de publicidade, e nós éra-mos ideologicamente contra, mes-mo sendo uma escola, porque o quepossibilita a carreira de um profissi-onal de publicidade, de marketing, éa sua competência. É como um ad-ministrador de um negócio: você nãovai contratar um administrador por-que ele tem diploma; vai contratarporque ele é competente. Quando odiploma para jornalista caiu e váriasescolas começaram a desistir, entãoeu disse: “Tem uma posição no mer-cado para nós!” Temos que ter umcurso que forme profissionais naárea de Jornalismo que sejam tãocompetentes que as empresas vãoquerer contratá-los.

E, além disso, tem uma outracoisa que tem a ver com tudo isso quefalamos há pouco... A chegada aomercado de gente nova com maisinstrução, o crescimento que existeno Brasil e em alguns outros países,fazem com que essas pessoas sejamnovas consumidoras de informa-ção, de conhecimento, de entreteni-mento... de comunicação. Mas étudo de graça na internet? Não sei...Não pode ser tudo de graça. A com-petência tem um preço. Se você querter uma informação, um conheci-mento apresentado de forma pro-fissional, você não tem escolha: temque ter profissionais fazendo isso. Seisso vai ser apresentado no iPad, ouna televisão, internet, tambor, pô...não interessa... esse mercado vaicrescer! Foi esse o nosso raciocínio.Nós não estamos apostando no jor-nalismo tradicional... não temosnada contra! Os professores dosnossos alunos são jornalistas tradi-cionais. Estão aí e têm o que ensinar.Mas, o que vem pela frente, a gen-te ainda não sabe.

Não interessa seas notícias serão

divulgadas noiPad, na tv, na

internet oupelo tambor.

Esse mercadovai crescer!

DIVU

LGAÇ

ÃO

José Roberto Whitaker e Elza Páduarecebem Roberto Civita e sua mulher,Maria Antonia, na ESPM do Rio de Janeiro.

31Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – VAMOS COMEÇAR PELO

PONTO MAIS POLÊMICO. EXISTE, EM TER-MOS HISTÓRICOS, A VERSÃO DE QUE A GLOBO

VÍDEO, APESAR DO SUCESSO QUE FEZ NO

MERCADO, ACABOU VÍTIMA DE UM BOICO-TE INTERNO NAS PRÓPRIAS ORGANIZAÇÕES

GLOBO. ESSA AFIRMAÇÃO PROCEDE?Roberto Mendes – A gente teve as

nossas brigas na Globo Vídeo. Nãoeram num escalão do terceiro prabaixo. Pelo contrário, a gente tinhamuita simpatia interna, e em ter-mos de mercado também. A nossabriga na Globo Vídeo era com umaempresa-irmã, esse é que era o pro-blema. As irmãs brigam, essa é a ver-dade. Até hoje! Pra gente conseguir,por exemplo, um espaço de anún-cio na TV Globo era uma luta forado comum. Tínhamos que brigarcom todo mundo!

JORNAL DA ABI – ERA MAIS DIFÍCIL DO QUE

SE VOCÊ FOSSE UM CLIENTE EXTERNO?Roberto Mendes – Muito mais

difícil! Eu via passar, para conversarcom a direção, punhado de genteque ia lá pedir espaço de graça paraongs, os favores e coisa tal... E queconseguiam rapidamente. Eu nãoconseguia! Era uma dificuldade praconseguir. Até que, depois de algumtempo, a gente conseguiu estabele-cer uma regra: cada empresa coliga-da tinha um espaço. Mas a cessãodos espaços dava outra briga. Tinha

POR PAULO CHICO E FRANCISCO UCHA

MENDESLigado à Igreja progressista de Dom Hélder Câmara, elefoi perseguido pela ditadura e, à frente da Globo Vídeo,

ajudou a estabelecer o padrão para o homevideo no Brasil.Foi um incentivador do cinema nacional nesse mercado,

apostou em clássicos russos e europeus, trouxe o noticiário60 Minutes muito antes das tvs por assinatura e lançou um

jornal mensal que chegou a tirar 200 mil exemplares.

Um homem de visão

Impossível pensar no mercado de vídeo noBrasil, que invadiu os lares na década de 1980,sem lembrar do nome de Roberto Mendes. Àfrente da poderosa Globo Vídeo, fundada háexatos 30 anos, inicialmente apenas para ge-rar cópias para as repetidoras da emissora Paísafora, ele ajudou a formar e a profissionalizaro mercado. Tornou acessível ao público cinéfi-lo lançamentos e clássicos do mundo todo. E,acima de tudo, foi um fiel incentivador e divul-gador da produção nacional.

Nesta entrevista, concedida em seu apartamen-to no Leme, Zona Sul do Rio, Roberto Mendesrecorda o caminho de desbravador aberto por elee seus companheiros de jornada. Lembra comoera difícil, dentro dos próprios veículos das orga-nizações em que trabalhava – leia-se TV Globo ejornal O Globo – conseguir o mínimo espaço para

ROBERTO

a divulgação das ações da Globo Vídeo. E contacomo uma disputa interna, travada com uma SomLivre enciumada pelo sucesso repentino da em-presa-irmã por ele dirigida, foi decisiva para quea Globo Vídeo fosse extinta.

Militância de esquerda, atuação em progra-mas sociais, perseguição política, prisão duran-te a ditadura militar e exílio são algumas das pas-sagens reveladas nesta entrevista, que traz ain-da os relatos de histórias saborosas com o jorna-lista Roberto Marinho e seus filhos. Tal como fezno histórico Jornal da Globo Vídeo, que chegou acircular com tiragem de 200 mil exemplares, Ro-berto Mendes imprime, dessa vez nas páginasdo Jornal da ABI, alguns capítulos importantes domercado audiovisual brasileiro. Uma história que,se um dia virar filme, terá em nosso entrevistadoum de seus personagens principais.

o espaço reservado. Mas para pro-gramar os anúncios tinha-se queconversar com as pessoas, que cri-avam outros problemas.

JORNAL DA ABI – AÍ A DIFICULDADE ERA OQUÊ, ACHAR HORÁRIO POR EXEMPLO?

Roberto Mendes – Sim, o horário.Priorizavam a Som Livre, ao invés daGlobo Vídeo.

JORNAL DA ABI – NÃO ERA, TALVEZ, UM

PROBLEMA DE CIÚMES?Roberto Mendes – Claro, ciúmes.

Só ciúmes. A Globo Vídeo, de 1983 a1985, quando ela realmente deu umboom, começou a assustar, pois oacréscimo do faturamento dela erafantástico. Nada anormal: era ummercado novo, era o que estava cres-cendo, a música estava estabilizada,assim como todas as outras mídias,estava tudo estabilizado. Na Globo-tec, estava tudo ok. E a Globo Vídeocrescendo. Então, todo mundo seassustava com aquele fenômeno.

JORNAL DA ABI – ERA O VIDEOCASSETE

CHEGANDO...Roberto Mendes – Claro, era o

mercado chegando. Quer dizer, essefato de ser uma empresa nova, como total descrédito, porque na verda-de a Globo Vídeo foi criada pra aten-der às afiliadas do Nordeste que nãopodiam receber programação online.

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ISCO

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32 Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

Porque, pasmem, naquele tempo nãotinha satélite, não tinha nada. A in-formação ia de avião, entendeu? En-tão, a Globo Vídeo foi montada paraisso, era quase uma dependência daTV Globo, para gravar os programasda emissora e enviá-los para as afi-liadas. E isso correu o Brasil inteiro.

JORNAL DA ABI – E VOCÊ JÁ ESTAVA NA GLOBO

VÍDEO NESSA ÉPOCA?Roberto Mendes – Já, eu cheguei

na Globo Vídeo com 15 dias de cri-ação. Ela foi criada em 1981, exata-mente em junho daquele ano. Eucheguei em julho, para ser Gerentede Comercialização. Porque com odesenho de fazer cópias para as afi-liadas, de repente, apareceu alguémque disse o seguinte: “Puxa, pode-sefazer outras coisas. Pode-se usar aprogramação da Globo para outrascoisas”. As coisas que apareceramrapidamente foram, primeiro: pro-gramação para navios, não só osnavios da Fronape (Frota Nacional dePetroleiros) que eram importantescomo clientes, como os da Vale doRio Doce e da Marinha Mercanteem geral, todo mundo precisava delazer a bordo. O lazer que existia nasempresas mais ricas era de filme de16 milímetros. Assim como o saté-lite tornou o cassete absolutamenteobsoleto, o cassete fez o mesmo como filme antigo. Então, esse merca-do foi se ampliando brutalmente.Até uma coisa que eu acho incrívelque a gente fez naquele tempo, queexistia a intenção da Vale do RioDoce ainda lá na mineração. A Valequeria pôr diversão no grande sítiode mineração de Carajás, no Mara-nhão, para aquele mundo de genteque morava lá, uma quantidadeenorme de operários. Então, eu bo-lei uma coisa que chamava “ante-na assíncrona”, quer dizer, eles iamter uma tv no ar. Que as pessoastinham aparelhos de televisão emcasa, no refeitório e tal mas, emcasa, tudo era emitido por umaantena assíncrona: passava a pro-gramação da Globo com uma sema-na de delay (atraso). Aí apareceu umgrande problema que era o do noti-ciário. Porque não adianta passarnoticiário uma semana depois, né?Aí eu fui para a TV Liberal, em Be-lém, e consegui um acordo. Tinhaum aviãozinho da Vale que ia todosos dias pra lá. Resultado: a gente fezum acordo com a TV Liberal, pôs láum funcionário da Globo Vídeo comum gravador que gravava o JornalNacional da noite e o enviava às 10horas da manhã pra lá, num avião-zinho que chegava ao meio-dia.Meio-dia, na hora do almoço, norefeitório, passava o Jornal Nacionalda noite anterior. O JN era o maisimportante, é claro, mas passáva-mos todos os jornalísticos da casa.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTÁ FALANDO DOS

ANOS...?Roberto Mendes – Por volta de 1984.

Não existia satélite! Se a gente ima-ginasse que ia chegar um satélite,esse negócio seria um absurdo! Maso satélite chegou depois de 1989.

JORNAL DA ABI – ISSO TUDO ERA FEITO EM

FITA DE VÍDEO VHS?Roberto Mendes – Tudo em VHS.

O programa com o Banco do Brasilcomeçou com U-Matic, e com a Fro-nape também. E para as Embaixadasdo Brasil no exterior, também com U-Matic. Mas depois passou tudo paraVHS. E já naquele tempo eu brigava.Assim que cheguei na Globo Vídeo,eu já era contra a idéia que os milita-res tiveram, de instituir um sistemade cor de transmissão de tv exclusivopara o Brasil, que era o Pal-M. “Não,isso aqui é para emissão. Nós vamosfazer em NTSC!”, disse. Porque nãohavia como ajeitar o Pal-M. Ele eramuito desajustado. Você tinha omaster, gravava aquilo, e um saíacom cor e o outro não. Era muitocomplicado! Então, tudo tinha queser NTSC, porque era um padrãomais regular e dava para enviar parao exterior da forma correta.

JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA JÁ EXISTIA

ALGUMA EMPRESA DE VÍDEO?Roberto Mendes – Não, muito

pouca coisa, nada de homevideo.

JORNAL DA ABI – OU SEJA, FOI VOCÊ QUEM

COMEÇOU A BRIGA PELO NTSC CONTRA OPAL-M? E ACABOU VIRANDO O PADRÃO DO

MERCADO DE VÍDEO.Roberto Mendes – É o padrão do

homevideo brasileiro. Eu fui o culpa-do. (risos) Porque era absurdo! Vocênão imagina, no início já do home-vídeo, quando apareceu esse proble-ma com as empresas que puseram

coisas no mercado. Às vezes pirata.E, às vezes, nem tão pirata assim,mas eles tinham um enorme pro-blema com o Pal-M. Eu disse assim:“Eu não vou ter esse problema. Euvou usar NTSC e pronto”. A Ana-tel foi à Globo com advogado, masa Anatel só regula a transmissão! ARede Globo não pode transmitir emNTSC, claro, mas a Globo Vídeopode gravar! Porque não é transmis-são, é gravação. Gravamos e o con-sumidor leva pra casa...

JORNAL DA ABI – ISSO É UM DIFERENCIAL.Roberto Mendes – Você não pode

imaginar! Ninguém hoje dá esse va-lor, porque o VHS nem existe mais. Euestava no meio daquilo tudo. Foi umabriga! Isso a gente discutiu. Eu, o Re-nato Azevedo. E conseguimos a apro-vação da Globo... O Doutor João Ro-berto entendeu a questão e falou: “po-dem ir em frente!”. E assim foi feito.

JORNAL DA ABI – O CONTATO FOI COM OJOÃO ROBERTO?

Roberto Mendes – Com os dois, oRoberto Irineu também. Com oDoutor Roberto Marinho a gente

tinha contato uma vez por mês. Naverdade, era muito mais para apre-sentação de contas, e tal, e para con-versar sobre coisas menores. E elesempre deu conselhos ótimos.Quando a gente precisava de apoio,ele sempre deu. Às vezes, eu ficavaachando esquisito, porque todomundo pensava que um empresáriodesse tipo, capitalista enorme... (pen-

sativo). Olha, dos oito anos que eutrabalhei na Globo Vídeo, nunca oDoutor Roberto pegou um tostão dolucro. Sempre aceitou a nossa pro-posta de reinvestir tudo, entendeu?E estava dando lucro. Crescendo,crescendo, crescendo... E, a cada vez,ele dizia ‘Reinvista, reinvista, reinvis-ta’. Nunca tive que, no final do ano– e eu era procurador do Doutor Ro-berto – pagar a ele o que era devido aoempresário. Ele mandava reinvestir.

JORNAL DA ABI – E COMO VOCÊ ASSUMIU

ESSA MISSÃO?Roberto Mendes – Como disse, eu

cheguei à Globo Vídeo em 1981,como Gerente Comercial, para fa-zer esse upgrade a partir daquelafatiazinha de mercado que era gra-var para as afiliadas. Já em 1982,passei para Diretor Comercial, atéque o cargo de Superintendente fi-cou vago. E aí, coordenado peloDoutor Marcelo Garcia, que vinhaa ser pediatra dos ‘meninos’, comoele chamava os filhos do Doutor Ro-berto, porque ele era amigo do Dou-tor Roberto, começou a procuraralguém para a vaga. Procurou vá-

rias pessoas no mercado, e nin-guém queria. Então o Doutor Mar-celo falou: ‘Vamos fazer a prata dacasa’. O Doutor Marcelo organizouuma votação lá, e todo mundo vo-tou em mim. O meu candidato erao José Renato. Eu votei nele! E eumuito preocupado, porque na ver-dade tinha um passado de luta con-tra a ditadura...

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTAVA LIGADO ÀIGREJA, A TRABALHOS SOCIAIS...

Roberto Mendes – Eu era ligado àIgreja progressista: Dom HélderCâmara, Dom José Távora, DomJosé Maria Pires, que eram figurasexcepcionais na Igreja.

JORNAL DA ABI – CONHECIA ALGUM DOS

PADRES QUE FORAM TORTURADOS E MOR-TOS, AMIGOS DE DOM HELDER?

Roberto Mendes – Vários. E outrosamigos, que eram de Ação Católica,que foram torturados e morreramnessa luta. Pois bem, eu tinha essepassado. Eu trabalhava com alfabe-tização de adultos via rádio. Faziaprogramas de rádio de alfabetizaçãode adultos.

JORNAL DA ABI – EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA

NOS PRIMÓRDIOS?Roberto Mendes – Isso, no início

dos anos 1960. A idéia de Dom Hél-der era buscar recursos católicos, naAlemanha, Caritas, essas entidadestodas, para financiar emissoras derádio para as dioceses, e as diocesesse equiparem para fazer alfabetiza-ção de adultos. Com isso, ele mon-

tou uma estrutura ótima. A fama daIgreja naquele tempo era que tinhao corpo à direita e a cabeça à esquer-da. Isso virou nos anos 1970, para teruma cabeça à direita, quando o cor-po era de esquerda. Os padres todosque foram formados naquela épo-ca eram muito avançados, progres-sistas. Mas a direção passou paraa direita. Essa experiência em alfa-betização de adultos na ditadura eraum risco permanente. Você tinhaque tomar uma posição de van-guarda, pois alfabetizar era van-guarda. A ditadura não queria isso.Depois do Meb (Movimento de Edu-cação de Base), já no início dos anos1970, a ditadura criou o Mobral(Movimento Brasileiro de Alfabetiza-ção), com uma enorme mobiliza-ção, para fazer esse negócio que aIgreja fazia – que era mais consci-entização e alfabetização, do quesomente alfabetização.

JORNAL DA ABI – A IGREJA FORMAVA VA-LORES, E O OUTRO ERA MAIS TECNICISTA...

Roberto Mendes – E o Mobral era,como toda coisa estatal, uma carti-lha única. E era mais na superestru-tura, um enorme campo de corrup-ção e dinheiro. O Mobral tinha umorçamento entre 30 e 50 vezes mai-or que o do Meb, sem dúvida. Aí ti-nha aquilo que todo mundo sabe: osafilhados, os amigos, e tudo mais...

JORNAL DA ABI – E O BARULHO TODO QUE

FOI FEITO EM CIMA, COMO UM PROGRAMA

REDENTOR.Roberto Mendes – E que ia salvar

todo mundo. Pois bem, com essemeu passado, e depois as persegui-ções e tudo, estive preso, tive proces-sos, fui exilado.

JORNAL DA ABI – MAS NO CAMPO POLÍTI-CO VOCÊ TEVE ALGUMA ATUAÇÃO, VOCÊ ERA

FILIADO A ALGUM PARTIDO?Roberto Mendes – De origem, eu

era filiado a um partido quase cató-lico, que era a Ação Popular. E logodepois, já em 1969, quando a AçãoPopular se dividiu e foi ser o PCdoBe o PCBR, saí completamente, por-que eu não era da luta armada. Nãoachava que a luta armada era umcaminho, inclusive porque, numaconversa com o Ferreira Gullar, quefoi ótimo, ele dizia: “Não tem umnegócio que a gente possa escrever,não? Porque dar tiro, eu não sei. Se eufor dar tiro, eu vou perder. Se eu pudersó continuar escrevendo, não seriamelhor?”. Pois bem, eu fui nessa li-nha. Eu quero fazer uma oposiçãocontra a ditadura, mas uma oposi-ção nos sindicatos, nas escolas...

JORNAL DA ABI – UMA OPOSIÇÃO INTE-LECTUAL?

Roberto Mendes – Eu não vou mearmar para sair numa guerra que euvou perder! Eu não concordava. Aí,eu participei de um movimento queera o MPL, o Movimento Popular deLibertação, que não era nada de guer-rilha e nada de luta armada. Era, naverdade, uma atividade paralela àsações de educação que a gente faziana Igreja.

“A experiência em alfabetização de adultos na ditaduraera um risco permanente. Você tinha que tomar uma

posição de vanguarda, pois alfabetizar era vanguarda.”

O Arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, escreveuesta carta em defesa de Roberto, que estava sendo

julgado, para sensibilizar os auditores da Marinha, ondecorria o processo: “um simples gesto de solidariedade”.

O selo de qualidade usadonas fitas VHS da empresa.

33Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

eu apanhei por causa dessa diferença,essa troca de letras? Isso está no re-latório da Abin: que eu era acusado dedar treinamento de manobras. Nãoera manobra, era Maromba! Era oCentro de Treinamento de Maromba!

JORNAL DA ABI – E QUE FANTÁSTICO ERA OGRAU DE APURAÇÃO MILITAR, NÃO É? UM

PRIMOR DE INVESTIGAÇÃO...Roberto Mendes – Era terrível....

JORNAL DA ABI – O QUE ACONTECEU A PAR-TIR DA SUA DEMISSÃO DO MEB, EM 1970?

Roberto Mendes – Eu não sabia oque estava acontecendo comigo. E fi-cava entrando e saindo dos locais detrabalho, sempre sendo mandadoembora. Imaginava tudo, mas nãoque os militares estivessem no meuencalço. Eu tinha imaginado que elesestavam me cerceando, isso sim. Apartir do terceiro, eu disse: “Não!Tem alguém aqui atrás de mim”.Mas não imaginava que ia dar emprisão, porque, puxa, os amigos quetinham ido para a luta armada, es-ses estavam sendo presos, persegui-dos, porque eram da Guerrilha doAraguaia. Eu era contra a luta arma-da. Mas evidente que eu era a favordeles, da causa deles. Eles estavamnum tipo de luta contra a ditaduracom que eu não concordava, maspegar em armas era melhor do queconcordar com o regime. Isso era cla-ro... Sou a favor da educação, do tra-balho de conscientizarão, de formargrupos conscientes que lutam pelosseus direitos e tudo mais...

JORNAL DA ABI – E AÍ VOCÊ FOI PRESO EM

1974? POR QUE ELES TE “COZINHARAM”ESSES QUATRO ANOS?

Roberto Mendes – Não tenho idéiado motivo de ter demorado tanto.Em 1974 houve uma grande açãocontra o Partidão. Aquela prisão detodo mundo do Partidão... Tanto queas pessoas ligadas ao partido, quan-do eu voltei do exílio, perguntavam:“Você era do Partidão?”. Pois bem,não, eu não era do Partidão... E mes-mo assim dancei.

JORNAL DA ABI – HOUVE ALGUMA ALEGA-ÇÃO OFICIAL PARA A SUA PRISÃO?

Roberto Mendes – Não. Houveuma prisão em São Paulo, de uma

pessoa do grupo, e aí foi desencade-ando tudo, entendeu? A gente pro-videnciou a saída das lideranças quenão convinham ser presas de jeitonenhum, porque elas tinham mui-to mais conhecimento da organiza-ção do que eu, que era, naquele con-texto, um pé-de- chinelo. Eu ia paraa porta de fábrica, ensinava a daraula pelo rádio, fazia grupos... Eraum simples ‘operador’ do negócio.

JORNAL DA ABI – ENFRENTOU QUANTO

TEMPO DE PRISÃO?Roberto Mendes – No Doi-Codi foi

alguma coisa perto de um mês. De-pois, eu fui para o Batalhão de Petró-polis, onde correu o nosso processo.No Doi-Codi tinha gente presa co-migo. Depois de alguns dias eu crieialguns hábitos. O carcereiro vinhatrazer o café da manhã, e eu: “Por fa-vor, você me consegue um cigarro?”.Eu ainda fumava naquele tempo.“Não tem cigarro aqui!”, respondia.Minha mulher levava um maço decigarros e um sabonete para mimtodo dia, lá no Ministério, pois elanão sabia onde é que eu estava.Nunca me entregaram esses cigar-ros... Mas, depois de alguns dias, osujeito me trouxe um cigarro. O ci-garro era Filigrana. Era um maço ver-melho, que pouca gente fumava.Um cara do nosso grupo fumava,era o único cliente daquela marca,acho eu! Eu pensei: “Puxa, esse caraestá aqui!”. Mas como estava em celaindividual, não tinha idéia. O pior éque depois, vendo, era ele mesmo. Eele já tinha mais tempo lá, por issotinha direito ao cigarro. Quer dizer,‘direito’ entre aspas, porque ali nin-guém tinha direito algum.

JORNAL DA ABI – EM PETRÓPOLIS FICOU

QUANTO TEMPO?Roberto Mendes – Algum tempo.

Mas lá não era igual ao Doi-Codi,não tinha tortura, nada. Era umaprisão. E depois que eu fui solto, ti-nha que ir lá toda semana. Eu con-tinuava preso. Eu estava aqui, mastinha que ir para Petrópolis respon-der e tal, entendeu? Aí teve a primei-ra audiência e o meu advogado dis-se: “Olha, providencia de sair do Brasilque isso não vai ficar bom para você,pode ter uma volta ao Doi-Codi”.

eu passava na fronteira. E não teveoutra, ele me deu o endereço de umcapitão. Com três, quatro dias, eu es-tava com a carteirinha paraguaia quetenho até hoje, de residente no Para-guai. Esse conhecimento do JoãoGoulart foi ótimo.

JORNAL DA ABI – JANGO FALOU ALGUMA

COISA DA EXPERIÊNCIA DELE LÁ?Roberto Mendes – Uma história

que ele me contou, que acho fantás-tica, e não vi isso ainda escrito, ésobre uma viagem em que ele esta-va na Aerolíneas Argentinas. Ele

JORNAL DA ABI – E DE QUAL DELAS DECOR-REU A MAIORIA DOS PROBLEMAS?

Roberto Mendes – Da outra, é cla-ro. Eu fui preso como MPL. Mas fuidemitido do Meb. A ditadura man-dou me demitir, e a anistia veioporque fui demitido do Movimen-to de Educação de Base, que era dosbispos. Porque do outro eu não po-dia ser demitido, eu podia ser perse-guido. Eu fui perseguido, preso.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CHEGOU A SE ES-CONDER, FUGIR, ESSAS COISAS?

Roberto Mendes – Claro. Eu fuipreso em casa, pelo Doi-codi.

JORNAL DA ABI – EM QUE ÉPOCA?Roberto Mendes – Em 1974. Eu fui

demitido do Meb em 1970 e comeceia ser perseguido. Naquele tempo, to-das as entidades, ministérios, Sude-ne, Sudam, etc, tinham o chamadoGrupo de Segurança. Cheguei e pedium trabalho na Sudene, monteiuma empresa para fazer coisas daSudene, trabalhava três meses e can-celavam nossos contratos. Com aSudam a mesma coisa. Trabalhei naFundação Getúlio Vargas, com umcontrato de um ano, fui demitido emquatro meses. Era evidente que elestinham o meu nome.

JORNAL DA ABI – VOCÊ NÃO SABIA DISSO?Roberto Mendes – Eu não sabia.

Não imaginava!

JORNAL DA ABI – E VOCÊ SE ACHAVA UM

INCOMPETENTE?Roberto Mendes – Total incompe-

tência, né? (risos). Eu dizia: “Não épossível, onde eu vou, estou fazen-do um trabalho, e tudo acaba!”. Aspessoas gostavam do que eu fazia,mas de repente cancelavam tudo.

JORNAL DA ABI – VOCÊ DEVIA PENSAR: “SOU

UM INCOMPETENTE OU UM BAITA AZARADO”.Roberto Mendes – É, exatamen-

te! E não era nem um, nem outro.Teve um caso gozadíssimo, na prisão,no Doi-Codi, aqui no Rio, na RuaBarão de Mesquita, na Tijuca.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TEM LEMBRANÇAS

DE ALGO ENGRAÇADO LÁ DENTRO?Roberto Mendes – Engraçado quan-

do visto trinta anos depois, porqueeu sofri dois dias seguidos com ques-tões de luta armada. Eu tinha ditodesde o início na prisão que eu não erada luta armada. E aí eles vieram comesse negócio... Pois bem, trinta anosdepois, agora no julgamento da mi-nha anistia, quando veio o relatórioda Abin, tinha o seguinte: “O Sr. Ro-berto dava treinamento de mano-bras em Manaus”. O que era isso?Explico eu: Um centro de treinamen-to da diocese de Manaus chamavaMaromba! E era lá que eu dava trei-namento para educação de base! EmMaromba! Um código Morse de umsargento de lá, pedindo informaçõessobre quem era Roberto Mendes,falava que eu dava treinamento nocentro de Maromba. E o cara falouassim: “O que é isso? Tá digitadoerrado! Não é Maromba, é mano-bra!”. (risos). Você imagina o quanto

Aquilo era o que eu menosqueria na vida. Aí eu saí,em 1976. Fui para Gene-bra e Paris, onde havia ra-mificações de amigos deMPR. Voltei em 1980.

JORNAL DA ABI – COMO FORAM ESSE ANOS

NO EXTERIOR?Roberto Mendes – Trabalhei, pois

nosso grupo lá era organizadíssimo.Tinha uma empresa que gerava di-nheiro para pôr aqui nos trabalhosde sindicatos, escolas, o que aindaera possível fazer.

JORNAL DA ABI – TRABALHOU COM QUÊ?Roberto Mendes – Como empre-

sário, vendendo coisas, vinha paraa América Latina. A empresa tinhaobjetivo de exportação, exportavaserviços e bens.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FALAVA FRANCÊS?Roberto Mendes – Falava francês,

inglês, espanhol... O espanhol eu fa-lei logo na primeira vez que eu fui aoParaguai. O Marcos Lins, que erauma grande figura, falecido recente-mente, aos 64 anos, me deu um livropara ler... Foi o primeiro que eu li emespanhol, que era um livro do Ma-rio Vargas Llosa, ótimo: Pantaleão eas Visitadoras. O livro é fantástico!No Paraguai, comecei a aprender es-panhol e tive a grata surpresa de co-nhecer um amigo do grupo, que erauruguaio, Jorge Otero Menezes,muito amigo do Brizola, do Jango.Um dia a gente estava no Paraguai,meio que clandestino, e ele falouassim: “Rapaz, o seu Presidente estáaí”. Eu falei: “Que Presidente?”. Elefalou: “João Goulart. Quer conhe-cer?”. “Quero”. Aí ele me levou e meapresentou para o João Goulart, noHotel Nacional de Assunção. E oJango me falou: “Que documentaçãovocê tem?”. Eu falei: “A minha docu-mentação”. “Rapaz, você está pron-to para ser preso”. Isso foi antes daminha prisão. Eu já estava demiti-do, mas antes de 1974. Aí ele falou as-sim: “Por que você não consegueuma documentação paraguaia? Eute apresento alguém aqui do sistemaque pode te arranjar uma documen-tação”. “Puxa, eu quero demais, Se-nhor Presidente, eu preciso”. Porque

A carteira paraguaia que Roberto Mendesconseguiu graças à intervenção de Jango.

escolhia um vôo que saía de BuenosAires e ia direto para a Espanha,sem passar pelo Brasil. Afinal, eleestava exilado. E esse vôo fez umdesvio e teve que pousar em Recife.Quando o comandante do aviãoavisou que ia descer em Recife, oJango apavorou-se. Foi lá e disse: “Osenhor sabe que não posso descer emRecife! Vou ser preso!”. Aí o pilotorespondeu: “Não, ninguém vai to-car no senhor. Eu já estou comuni-cando que o senhor está aqui e queeste avião é território argentino”. Eaí ele ficou dentro do avião que des-ceu em Recife. Esse dado é interes-santíssimo. Você já imaginou se aditadura prende o João Goulart noaeroporto de Recife?

JORNAL DA ABI – IMAGINAMOS QUE A DE-CISÃO DE SAIR DO BRASIL TENHA SIDO QUASE

UM INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA. BEM MAIS

ANGUSTIANTE DEVE SER A DECISÃO DA HORA

DE VOLTAR...Roberto Mendes – A volta é mui-

to maluca, porque o sonho do exi-lado é completamente diferente dequem foi para a Austrália e quer ficarna Austrália. É voltar. Sempre! Vocêquer voltar. As coisas se atrapalhamna cabeça porque, de repente, vocêvê que as mãos da ditadura vãomuito longe. Por exemplo, em 1979fiquei sem passaporte. Meu passa-porte venceu e não podia usá-lo comfacilidade. Aí a gente conheceu umcônsul brasileiro, que me disse o se-guinte: “Roberto, você sabe que aanistia no Brasil está para ser assina-da. Então, seu nome está lá na listae eu não posso tirar. Vou ser punidose te der um passaporte, você nãopode ter passaporte. Mas fique aten-to porque, tendo a anistia, eu enten-do que aquela lista cai, e você pode-rá ter o documento”. A anistia foiassinada no dia 22 de agosto de 1979,no meu aniversário. No dia 29 eu es-tava lá! E não deu outra: ganhei o

Roberto Mendes em sua sala naGlobo Vídeo, quando assumiua superintendência da empresa.

ACERVO

FRANC

ISCO

UC

HA

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passaporte. Foi genial. Mesmo coma anistia, eu não era obrigado a vol-tar rapidamente, tinha documentopara mais cinco anos, em condiçãode trânsito para qualquer lugar. En-tão, essa decisão de voltar era mui-to difícil de contornar com a família,porque a Teresa queria voltar.

JORNAL DA ABI – NESTE MOMENTO VOCÊ

ESTAVA COM SUA ESPOSA TERESA E...Roberto Mendes – E três filhos!

Joana não opinava porque estavacom um ano e meio, nasceu em1978. Mas os dois mais velhos, am-bos queriam voltar. A minha ansie-dade de querer voltar para o Brasilpassou para todo mundo. E depois,voltar para o Brasil, significava vol-tar para o Rio de Janeiro. E o primeiroemprego que arrumei chegando aquifoi em São Paulo, no Banco Econô-mico. Eu vinha segunda-feira e vol-tava sexta. Quando voltei, no iníciode 1980, foi interessante. O José Re-nato Monteiro me apresentou aoJorge Campos, que era Superinten-dente da Globotec na época. O JoséRenato falou assim: “Tem um ne-gócio na Globotec, você podia ir paralá, faz um currículo”. Eu fiz o cur-rículo e levei para o Jorge. E o Jorgefoi demitido com o meu currículo namesa. Falei assim: “Não tem chan-ce. Agora tenho que esperar mais seismeses para a coisa assentar”. Aí ar-rumei esse trabalho no Banco Eco-nômico, em São Paulo. Quando iaser criada a Globo Vídeo, em 1981,o José Renato me disse: “Vai ser cri-ada uma outra empresa, a GloboVídeo; seu currículo de novo”. Aí eulevei o currículo. Já foi o Isacil Ferrei-ra que recebeu o meu currículo. OIsacil era um publicitário que tinhafeito fama porque achou uma fra-se para a publicidade da Esso — “Sóa Esso dá ao seu carro o máximo”.Ele fazia o desenho animado quevinha dos Estados Unidos e dava omovimento da boca. O José Rena-to já era funcionário da Globotec.Foi seminarista dominicano nosanos 1950. E eu secular, em Juiz deFora. Eu fui fazer faculdade, tive quevir para o Rio em 1964. Eu era vice-presidente do DCE. Fui direto aoMeb e estava abrigado ali fazendoeducação de base. O José Renato veiodepois e, quando chegou ao Rio, euo admiti no Meb. Ele foi funcionáriodo Meb comigo, até 1970. Aí, a rodada vida gira, e ele me levou para aGlobo Vídeo. Zelito Viana já estavalá. Essa nossa experiência na GloboVídeo tem quatro figuras funda-mentais...

JORNAL DA ABI – QUEM ERAM ELAS?Roberto Mendes – Doutor Mar-

celo, que nos dava proteção, Zeli-to, José Renato e eu. Me elegeramSuperintendente, o Zelito era Dire-tor de Homevideo, e o José Renato,Diretor de Produção. Uma outra cu-riosidade é um programa que exis-te até hoje, o Globo Ciência, que erada Globo Vídeo. Foi feito ali! Eu e oJosé Renato fomos os criadores doGlobo Ciência. A proposta era fazerum programa de ciência na “Globo-

na”. Isso foi depois de muita conver-sa com o Doutor Marcelo e o Dou-tor Roberto Marinho.

JORNAL DA ABI – FEZ O CAMINHO INVER-SO, NÃO VEIO DA PROGRAMAÇÃO PARA AGLOBO VÍDEO?

Roberto Mendes – Isso. Nasceu naGlobo Vídeo e foi parar na grade daemissora. Aí o Boni deu o horáriopara a gente, que era às sete horasde sábado. E continua mais ou me-nos no mesmo horário, acho eu... Aíbaixou meia hora porque ia entrarum programa da Xuxa... Mas, dequalquer forma, foi um programaexitoso daquela época. Foi muitobom. E está no ar até hoje!

JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA, VOCÊS

FAZIAM UM PROJETO QUE ERA O 60 MI-NUTES?

Roberto Mendes – Mas aí já eracom o homevideo. A gente já tinhaas duplicadoras.

JORNAL DA ABI – E COMO FOI ESSE INÍCIO,DA GLOBOTEC PARA A GLOBOVIDEO?

Roberto Mendes – A Globotec se-parou-se e passou a ser só a produ-ção de comerciais, e a Globo Vídeoficou naquele nicho de fazer as có-pias para as afiliadas. Tinha lá umasdezoito, vinte ‘escravas’ (aparelhosde videocassete para duplicação), que

faziam essas duplicações, e nãoprecisava mais do que isso, porqueera o número de duplicações para asafiliadas naquele tempo. Quando agente começou a fazer programaçãoda Globo para o Banco do Brasil, paraa Petrobras, para as embaixadas etudo mais, a gente foi aumentan-do o número de duplicadoras. “Agente vai ter que aumentar aqui, va-mos para o Rocha” (bairro na ZonaNorte do Rio de Janeiro). Esse bairroera uma coisa maluca... Ninguémimaginava sair de perto da TV Glo-bo. A gente estava ali na Rua Zara,que era uma belezinha, e tal. E deci-dimos: “Vamos pro Rocha e vamosvirar uma indústria”. O primeiro pro-jeto eram duzentas pessoas copian-do VHS. Então, tinha um andar noRocha, um andar inteiro, com 200máquinas e toda a parafernália queisso dá: três turnos de funcionários,24 horas funcionando.

Quando era Superintendente,eu tinha uma frase que era a se-guinte: “A Globo é líder de mercadoonde ela está. Então a Globo Vídeotem que ser. É natural que a GloboVídeo seja liderança de mercado”.Então, a gente fazia tudo muitobonitinho. Logo no início, em 1983,1984, foram criados prêmios paraincentivar o mercado. Então, tinhaO Melhor Filme, O Filme Mais

Roberto Mendes – Pagava direitosà CBS, não era nada pirata não! Va-mos dizer que o valor era mais oumenos simbólico, porque era base-ado no número de cópias que a gen-te ia tirar aqui, que era alguma coi-sa como duas mil, três mil cópias.

JORNAL DA ABI – TUDO ISSO?Roberto Mendes – Era. Chegou a

isso, mas começou com 400. Masquando você falava para os ameri-canos que ia tirar duas mil cópias,para eles era nada. Não sabiam nemcomo quantificar isso. Visto de hoje,era quase simbólico. Para a gentenão era simbólico não, era impor-tante. Eram quatro programas pormês, um por semana. Mas era ummarketing muito interessante, cri-ado pelo Paulo José, que hoje está noJornal do Vídeo.

JORNAL DA ABI – NESSE MOMENTO, DO 60MINUTES, VOCÊS NÃO LANÇAVAM AINDA?

Roberto Mendes – Já lançávamos,mas ainda eram poucas cópias,como os primeiros filmes brasileiroslançados em vídeo.

JORNAL DA ABI – POR QUE A OPÇÃO PELO

CINEMA BRASILEIRO?Roberto Mendes – O filme brasi-

leiro estava mais à mão, estava maisperto, mais próximo. O Zelito eraprodutor, era Diretor de Homevideo,eu também conhecia os produto-res... Então, a gente teve esse acessofácil. O 60 Minutes era uma coisaque rodava em um dia da semana.Chegava na segunda-feira de ma-nhã, rodava e na terça já estava sendoentregue, rapidamente. O restantefazia homevideo, naquela tiragenzi-nha que era pequena. A idéia era sairpara uma empresa “blockbuster”qualquer.

JORNAL DA ABI – A GLOBO VÍDEO NO INÍ-CIO ERA MUITO CRITICADA PELO MERCADO

PORQUE SE FALAVA QUE SÓ LANÇAVA FILME

BRASILEIRO. COMO ENFRENTAR ESSE TIPO

DE CRÍTICA, QUE RESULTADO ISSO TEVE E POR

QUE CONTINUAR?Roberto Mendes – Continuou,

mas a gente diversificou muito.Mas era uma obrigação ideológica.

Vendido. E, de repente, os america-nos descobriram que a Globo Vídeoia ganhar tudo. O mais vendido erao Carnaval, por exemplo. A gente jáfazia o Carnaval da Globo compac-tado! Aí falaram: “Mas programa éuma coisa, tem que ser filme”. Nãotivemos dúvidas. Lançamos Isto éPelé e ganhamos disparado, vendeudez mil cópias, o que naquela épo-ca era um fenômeno. A gente fezuma placa para dar ao Pelé quandocompletou dez mil cópias. E essacoisa foi crescendo. “Vamos entrarno homevideo”, pensamos. A Glo-bo Vídeo começou em 1981, o ho-mevideo veio em 1983, 1984. Aí, foio Paulo José que trouxe a idéia: “Temo 60 Minutes nos EUA, que faz umsucesso danado, por que a gente nãotraz isso?”. Isso era feito na base deassinaturas. O 60 Minutes vinha gra-vado numa fita, vinha de avião, pe-gávamos no aeroporto, entrava emcopiagem e dois dias depois estáva-mos entregando para os empresári-os que o assinavam. O 60 Minutesnão era exibido aqui... A gente tinhanotícia de que existia porque as pes-soas que estavam lá fora viam e di-ziam que era um programa interes-sante para ter aqui no Brasil.

JORNAL DA ABI – E PAGAVA DIREITOS POR

ISSO?

Roberto Mendes lançou pela GloboVídeo os principais filmes do cineastarusso Sergei Eisenstein, como Outubro.

Maurício do Valle em O Dragãoda Maldade Contra o Santo

Guerreiro, de Glauber Rocha.

Sônia Braga em Dona Flor e SeusDois Maridos, de Bruno Barreto.

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Era uma obrigação nossa. Ou, pelomenos, de três pessoas: Zelito, JoséRenato e eu... Quatro, com o Dou-tor Marcelo, que não tinha desacor-do com isso. “Temos que lançar omelhor do cinema brasileiro”. E nosegmento do cinema brasileiro da-quela época, a Globo Vídeo e a Glo-bo, portanto, foram muito elogia-das. A Globo Vídeo lançou 300 fil-mes brasileiros. Isso significava re-masterizar, tirar cópias novas, tele-cinar e chegar à duplicação. Não échegar ali, pegar o filme e simples-mente copiar. Resgatamos grandesclássicos como Limite, de Mário Pei-xoto; Os Fuzis, do Ruy Guerra; Gar-rincha – Alegria do Povo, de JoaquimPedro de Andrade; Noite Vazia, doWalter Hugo Khouri; O Caso dosIrmãos Naves; Tico-Tico no Fubá; fo-mos os primeiros a lançar Mazza-ropi; lançamos Orfeu do Carnaval, deMarcel Camus, Oscar de MelhorFilme Estrangeiro, O Beijo da Mu-lher-Aranha, de Hector Babenco, queganhou um Oscar, o de Melhor Atorpara William Hurt; O Cangaceiro,premiado no Festival de Cannes.Também lançávamos produçõesnovas do cinema nacional, comoXica da Silva, A Cor do Seu Destino,Vera, A Dança dos Bonecos e grandesdiretores mundiais como Eisensteine seus O Encouraçado Potemkin, Ale-xandre Nevsky, Outubro e A Greve;Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski;Pocilga, de Pasolini; Primavera ParaHitler, de Mel Brooks; Meu Tio, deJacques Tati; Dersu Uzala, de Kuro-sawa; Ânsia de Amar, de Mike Ni-chols; A Primeira Noite de um Ho-mem, com Dustin Hoffman e AnneBancroft; Giordano Bruno, com GianMaria Volonté; shows como Let’sSpend the Night Together, dos RollingStones e Queen Live in Rio, e as ópe-ras e balés clássicos.

JORNAL DA ABI – COM O SEU PERCURSO

POLÍTICO, COMO ERA ESTAR DENTRO DA

GLOBO NAQUELE MOMENTO?Roberto Mendes – Eu achava que

enquanto fosse funcionário, gerente,não tinha problema, ninguém meconhecia. Aí, quando passei a ser Su-perintendente, o advogado disse: “A

gente tem que saber o seu nome todoporque vamos fazer uma procura-ção do Doutor Roberto”. Eu fui pro-curador do Roberto Marinho! E euquase perdi o fôlego! “Eu não voucontar nada. Se eles não pergunta-rem, eu não conto nada sobre o meupassado político”. Mal sabia eu queeles já sabiam tudo. Depois, quandovi o meu habeas data, tinha lá umacarta da Globo pedindo informaçõessobre mim. Já naquele tempo emque eu estava entrando na empresa,eles sabiam! O pior desse ponto devista, para mim, era que eu não sa-bia que eles sabiam de tudo. Pois, seeu soubesse, contaria minha histó-ria... E corriam pelos corredores essascoisas no meio da esquerda, pois nãoera só eu de esquerda que estava naGlobo. Essas brincadeiras todas quefazem até hoje; coisa que eu nuncaouvi da boca do Doutor Roberto, oude gente lá de dentro, mas que corri-am. Como a máxima que DoutorRoberto teria dito: “Dos meus comu-nistas, cuido eu. Não vou deixar aditadura mexer neles”.

JORNAL DA ABI – ISSO É VERDADE, OU VOCÊ

ACHA QUE É LENDA?Roberto Mendes – Sabendo do

meu passado, nunca senti nenhu-ma restrição. Mas não se conversa-va esse assunto, não era nem parase discutir isso. Houve algumascoisas que aconteceram naqueleperíodo que são engraçadíssimas.Uma delas é o seguinte: estávamos

no Rocha (na fábrica de duplicaçãoda Globo Vídeo). Duzentos e tantosfuncionários em turnos... E resolvique, antes da cada turno, eu tinhaque dar um lanche para eles. Talvezparecesse meio liberal demais parauma empresa como a Globo, mas euachava justo. Eu acho que as pesso-as têm que trabalhar alimentadas.Fiz os cálculos lá com o Pimenta,somando quanto é que gastava. Eraum pão com manteiga e café comleite. Gastava perto do zero. Aí fiz.Resultado: com dois, três meses, mechamam – aí foi o Roberto Irineu.“Vimos aqui que você dá um lanchepara os seus funcionários, mas asoutras empresas não dão. Não têmnada disso”. Eu falo: “Mas RobertoIrineu, é tão pouco e as pessoasprecisam comer. Os salários nãosão altos e é bom que as pessoassejam alimentadas, porque traba-lhar alimentado faz bem para aempresa”. Ele disse: “Vamos tratarde diminuir isso, vamos parar comisso”. E eu: “Roberto Irineu, vamosfazer o seguinte: eu faço só mais doismeses, e aí eu vou diminuir, prome-to”. Mas, esse mesmo pão me aju-

calé, que era o insatisfeito perma-nente. Era uma figura popular nomeio dos funcionários, eu falei paraele assim: “Como é que está a coisa,está bem? Está dando o pão?”. E ele:“Eu acho que devia cortar a mantei-ga e pôr geléia”. “Macalé, geléia nãovai dar, não vai passar no orçamen-to”. “Não? Então, pelo menos umqueijinho”. (risos). Todas as vezes queeu descia para ver o pessoal no lan-che, eu já evitava o Macalé... (risos)

JORNAL DA ABI – COMO ALTO FUNCIONÁ-RIO DA GLOBO, VOCÊ PASSOU A SER CRITI-CADO POR SEUS ANTIGOS COLEGAS DE LUTA?

Roberto Mendes – Sem dúvida. Osamigos da esquerda diziam: “O Ro-berto depois que foi para a Globo,mudou”. E eu nunca mudei nada. Eas pessoas não davam o crédito, in-clusive, do trabalho que a genteestava fazendo lá dentro. Quandovocê me pergunta, por exemplo, dosfilmes brasileiros, eu tinha consciên-cia do que estava fazendo. Tinhapouca venda, mas dava prestígio.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI O AUGE DA GLOBO

VÍDEO, E ELA CHEGOU A RESPONDER POR

QUANTO NESSA ÁREA DE HOMEVIDEO?Roberto Mendes – O auge foi em

1988, quando a gente estava fatu-rando um milhão de dólares pormês, empatando com a Som Livre.A briga da Som Livre foi essa. A Glo-bo Vídeo foi chegando, chegando,e eles não subiam mais. E tiveramque nos espremer. Vamos tirar essaempresa daqui!

JORNAL DA ABI – QUAIS AQUISIÇÕES A

GLOBO VÍDEO FEZ NAQUELA ÉPOCA?Roberto Mendes – O cinema russo

compramos direto, depois da confu-

dou incrivelmente numa grande gre-ve de transportes que aconteceuum mês depois! Foi fantástico essedado! Na Globo Vídeo, houve faltazero! Não teve falta. Sem transpor-te, as pessoas chegavam. E, na TVGlobo, o índice de faltas chegou a30%. Na Globo toda, 40%. Eu nãotive dúvida, pedi uma reunião como Roberto Irineu e fui lá com os meusdados todos. “Olha o que o lanchefaz. Olha o vínculo estabelecido pelaempresa que confia no seu funcio-nário e quer que ele trabalhe bem.Veja como ele devolve isso. Não tivefalta!”. Ele respondeu: “Então, estábom, pode ser”. Aquilo, então, virouo “Lanche do Roberto Mendes”. Todomundo dizia. Os funcionários cha-mavam de “Lanche do Roberto” por-que fui eu que autorizei, e eu ia láacompanhar. Também tinha o se-guinte: para receber o lanche vocêtinha que chegar 15 minutos antes,fazer o lanche e entrar no seu turno.Garantia que o cara cumpria o horá-rio integral. Aquilo era uma farra,porque de cada vez entravam 50pessoas! Já pensou, todo mundo ali.Eu ia lá! Eu não sou político partidá-rio, mas sou político. Eu adoravasaber das pessoas que trabalhavamlá. Tinha uma figura chamada Ma-

Isto é Peléfoi o primeirofilme a vender mais de10 mil cópias e a festaque comemorou o feitocontou com a presença do Reido Futebol, que recebeu umaplaca em sua homenagementregue por Roberto Mendes.

Premiado com o Oscar de Melhor Ator paraWilliam Hurt, O Beijo da Mulher Aranha foi um dosprimeiros grandes lançamentos da Globo Vídeo.

Fernanda Montenegroe Gianfrancesco

Guarnieri em ElesNão Usam Black-Tie,de Leon Hirszman.

Carlos AlbertoRiccelli em

Sonho Sem Fim,de Lauro Escorel.

Da obra deNélson Rodrigues,

Tarcísio Meiraem O Beijo

No Asfalto, deBruno Barreto

ALD

O D

E LUC

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são de Los Angeles. A gente foi ne-gociar o licenciamento com a War-ner, e não conseguiu. Quando agente chegou perto de uma negoci-ação, a Warner pediu uma coisa queo João Roberto não quis ceder – e euacho que ele tinha razão –, que eravincular no contrato de licenciamen-to para Globo Vídeo um anúncio delançamento na TV Globo. Querdizer, anunciar na TV Globo umlançamento da Warner no licencia-mento... O João não quis, e acho queele tinha razão. Primeiro porque eleestava mexendo com duas empre-sas dele, de tamanhos muito dife-rentes. E, por um licenciamento daGlobo Vídeo, ele não queria vincu-lar um compromisso de anúnciopara a Warner. Embora eu, na ver-dade, estivesse torcendo para um“sim”. Quando a Warner criou isso,e conversando por telefone com oJoão Roberto, ele disse: “De jeito ne-nhum. Isso não pode entrar no con-trato”. E a Warner disse não! Eu disse:“João Roberto, eles não vão querer. Agente está indo daqui direto para oFestival de Moscou e vou comprar fil-mes russos, posso?”. “Pode”. Então,fomos para Moscou, eu e o Zelito.

JORNAL DA ABI – IMAGINEI QUE A NEGO-CIAÇÃO HAVIA COMEÇADO NO BRASIL.

Roberto Mendes – Já tinha con-versado, mas eu não tinha autori-zação para comprar filmes russosainda... Eu tinha autorização parair ao Festival de Moscou. (risos). Seeu tivesse a Warner na mão, nãocompraria filmes russos, entendeu?Não iam deixar comprar o russo. Agente tinha acertado ir para o Fes-tival de Moscou, mas não tinha idéiade comprar muita coisa por lá.

JORNAL DA ABI – ISSO EM QUE ANO?Roberto Mendes – Em 1986. A Era

Gorbachev. Eu era co-produtor deum filme do Zelito. Além de com-prar filme, a gente estava levandoum filme em competição. Era Avae-té, que foi produzido, na verdade, em1982, eu não era nem Superinten-dente da Globo Vídeo. Mas ficoudemorando e acabou entrando so-mente no festival de 1986, emMoscou. Ganhou um prêmio, Pra-ta. E em graninha, tinha “dindim”.

JORNAL DA ABI – ENTÃO, O LANÇAMENTO

DOS FILMES DO EISENSTEIN NÃO ERA SÓ

IDEOLÓGICO?Roberto Mendes – Eu queria. Eu

não sabia se a gente ia chegar a essaautorização. Mas eu fui para Mos-cou querendo comprar. O fato denão ter a Warner facilitou muito.

JORNAL DA ABI – NAQUELE MOMENTO DO

MERCADO, LANÇAR FILMES DO EISENSTEIN

NÃO ERA UMA LOUCURA?Roberto Mendes – Era uma loucu-

ra se você pensar só no Eisenstein.Mas, por exemplo, houve uma coisaque fez um sucesso danado. As ópe-ras russas foram um sucesso. Ven-dia “sell-thru”. Fazia fila de gente nolançamento das óperas para pessoafísica comprar na Globo Vídeo, aliem Botafogo (no escritório da Globo

Vídeo situado na Praia de Botafogo).Era impressionante. As óperas rus-sas fizeram sucesso e os clássicosrussos deram a imprensa, deramboa imprensa. Deram prestígio.Vinha muito coisa ruim, mas vi-nham os clássicos, como QuandoVoam As Cegonhas, ganhador daPalma de Ouro em Cannes. É o nor-mal. A curiosidade desses prêmios,que eu queria contar, é que foramcriados no mercado diversos deles.Quando a Warner finalmente che-gou ao Brasil, a Globo Vídeo já esta-va estabelecida, e resolveram dar umprêmio de Melhor Copiagem. Comoa Warner não tinha ainda lançadograndes filmes, resolveram dar esseprêmio para a Warner. Eu não faleinada, fiquei quieto. Mas quem fa-zia a gravação dos filmes da Warnerera a Globo Vídeo. A Warner gravavano laboratório da Globo Vídeo. En-tão, quando você dava um prêmiode Melhor Copiagem para a War-ner, na realidade o prêmio era daGlobo Vídeo.

JORNAL DA ABI – FOI UMA MANOBRA PARA

DAR UM PRÊMIO PARA A WARNER...Roberto Mendes – Porque não ti-

nha jeito, a fita mais vendida era daGlobo Vídeo. “Ah, Carnaval não pode,é só longa metragem...” Mas Isto éPelé vendeu mais do que todo mun-do. E, cá pra nós, houve muita coi-sa boa que a gente lançou, de filmeamericano independente, vários fil-mes muito bons. Muita coisa boaque a gente conseguiu dos indepen-dentes americanos, da Embassy, daOrion, os médios, que tinham umbom catálogo.

JORNAL DA ABI – E A BRIGA CASEIRA COM

A SOM LIVRE?Roberto Mendes – Isso não teve

muita discussão... Eu não fui, naverdade, ouvido. Eu estava com oJoão Roberto toda semana. Esseúltimo período de um ano foi mui-to chato. É o que eu digo: ninguémmerece brigar seis horas para conse-guir trabalhar duas. Mas a genteconseguiu manter a coisa. Até queo João Roberto me chamou e disseque ia juntar as duas empresas. Iaficar como Som Livre, se eu não

queria continuar lá. “De jeito ne-nhum”, respondi. Então, fui demi-tido. Sumariamente se demitiu adiretoria inteira da Globo Vídeo. Issojá em 1989.

JORNAL DA ABI – O PROCESSO DE EXECU-ÇÃO FOI RÁPIDO.

Roberto Mendes – Foi. Muito rá-pido. Acabaram completamentecom a Globo Vídeo. Eu disse para oJoão Roberto, era um caminho com-pletamente inverso de tudo. Asempresas americanas já haviamseparado o vídeo das produtoras, dosestúdios, e nós vamos voltar para a

música? Vai juntar o vídeo com amúsica? São coisas completamentediferentes, são mercados diferentes,é outra coisa! Eu argumentei isso naépoca. Mas, hoje, entendo perfeita-mente a decisão do João Roberto, queera entregar esse peão que está aquiincomodando e manter o tabladofuncionando. Não era a Globo Vídeoque estava sendo liquidada, éramosnós! Pois a Globo Vídeo ia ser con-tinuada com a Som Livre. Então,“mantém o tablado legal, bonito,todo mundo equilibrado, e tira essepessoalzinho da Globo Vídeo quefica fazendo filme brasileiro, filmerusso, tira esses comunas daí!”.

JORNAL DA ABI – E O PESSOAL DO CINEMA

BRASILEIRO, IDENTIFICOU ISSO?Roberto Mendes – Sem dúvida.

Eles valorizaram muito a atuaçãoda Globo Vídeo, não tenho nenhu-ma dúvida. Eu ouvi elogio de CacáDiegues, do Barretão, de todo mun-

gravadoras, e a Som Livre estava lá,não avançamos. Foi uma reuniãosurreal, porque eu fiz questão desolicitá-la e disse que ia passar tre-chos do produto que eu já tinhapronto. Passei. Duas gravadorasdisseram: “A gente queria mais tem-po do nosso astro”. Tudo bem, issoé negociável. Veja que eles ficaraminteressados! Mas, depois, não libe-raram os direitos.

JORNAL DA ABI – QUEM NÃO LIBEROU?Roberto Mendes – As gravadoras.

Como são vários astros, várias ban-das, olha a confusão que ia dar isso.Na música, os direitos são por vol-ta de 8 a 12%. E no vídeo, vai a 25%.Então, eu tinha folga para negoci-ar. Mas não agarrou aí, agarrounuma coisa que eles não queriammisturar vídeo com a gravadora. Elá fora, sobretudo, a gravadora esta-va sendo escanteada, o vídeo acabousubindo e as gravadoras foram fican-do para trás. Separaram-se de todas.Só aqui no Brasil foi feito o inverso.Mas a gente tinha folga para pagardireitos. Era um problema deles,ideológico, de não querer misturaruma coisa que era direito deles, gra-vadoras, e que ia sair em vídeo.

JORNAL DA ABI – QUANDO SURGIU A GLOBO

VÍDEO, TODOS ACHAVAM QUE SERIAM LAN-ÇADOS COMPACTOS DE PROGRAMAS DE

SUCESSO. UM CASO ESPECIAL NÃO TEM

TANTO PROBLEMA COM DIREITOS...Roberto Mendes – O que vai ser

gravado agora não tem. Mas se agente pegasse mais atrás, de dois,três anos, já era problema. A gentelançou uma minissérie da Globologo no início...

JORNAL DA ABI – MAS FOI POUCO PELO

PODER DE FOGO QUE A GLOBO TINHA.Roberto Mendes – Essa experiên-

cia da Globo Vídeo com os progra-mas da Globo era uma compacta-ção. Porque a gente mandava ascoisas para o Banco do Brasil, paraa Petrobrás, tudo compactado. Umjogo inteiro de futebol tinha 45 mi-nutos – só iam os melhores momen-tos. Porque, na verdade, num jogo defutebol, só tem 45 minutos de jogomesmo. De deixar a bola rolando. É

do. O trabalho que a Globo Vídeo fezcom 300 filmes brasileiros — estálonge de ser a totalidade dos filmes— ficou para a História. São 300filmes masterizados, copiados. Éum trabalho.

JORNAL DA ABI – ELES SE PAGAVAM?Roberto Mendes – Sem dúvida se

pagavam. Qualquer filme em VHSque vendesse 500 cópias se pagava.Nem todo filme brasileiro vendeu500, mas vários venderam bem maisque isso. O Isto é Pelé, logo no início,vendeu mais de dez mil. E nossaequipe de venda não era mal remu-

nerada, não. Tudo o que eles ganha-vam era comissão. E todos gosta-vam muito. Vendiam bem.

JORNAL DA ABI – DE ALGUNS ANOS PARA

CÁ, HOUVE UMA RETOMADA DA COMERCIA-LIZAÇÃO DE ALGUNS DOS PRODUTOS DA

GLOBO, PRINCIPALMENTE SÉRIES ANTIGAS.Roberto Mendes – Isso dentro do

selo que ficou dentro da Som Livre,que não é mais nem Globo Vídeo, éGlobo Marcas.

JORNAL DA ABI – MAS NA SUA ÉPOCA ERA

DIFÍCIL LANÇAR PRODUTOS DA TV GLOBO...Roberto Mendes – É que era pre-

ciso regularizar os direitos. Esse erao maior problema. Porque o direitodos atores, dos autores das novelas,isso era complicadíssimo. Houvevários produtos que a gente nãoconseguiu lançar. Um, o mais famo-so, era o Rock in Rio, que já estavapronto para a pré-venda e empacounos direitos. Numa reunião com as

“Houve vários produtos que nãoconseguimos lançar. O mais famoso

foi o Rock in Rio, que já estavapronto para a pré-venda e

empacou nos direitos.”

Macsuara Kadiweu e Zelito Viana na festa delançamento de Avaeté - Semente da

Vingança. Ao lado, Walter Hugo Khouri nafrente do poster de seu filme, As Amorosas.

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só aquilo mesmo. Isso tambémacontecia com minisséries, com no-velas. Novelas de 160 capítulos fica-vam com trinta. E era perfeito de ver,o pessoal adorava. Hoje é simples.Nos Estados Unidos você pega porsatélite a programação da GloboInternacional. Naquele tempo, não.Um programa da Globo em Paris, noBanco do Brasil, fazia um sucessoque você não pode imaginar. Comoem Nova York, como em qualquerlugar, para brasileiros, que tinhamum sentimento de que existia umaboa programação no Brasil e eles nãopodiam ver, só viam quando chega-vam aqui.

JORNAL DA ABI – NÃO SÓ PELO FATO DE APROGRAMAÇÃO DA GLOBO SER DE QUALI-DADE, MAS PELA IDENTIFICAÇÃO, DE ENCON-TRAR-SE COM O BRASIL VIA UM PROGRAMA

DE TELEVISÃO.Roberto Mendes – Isso era o argu-

mento maior com que eu brigava naGlobo, que era sobre o filme brasilei-ro. O cinema brasileiro é o brasilei-ro se olhando no espelho. Quandovocê vê um brasileiro, morando noexterior, é diferente. Ele passa agostar do filme brasileiro.

JORNAL DA ABI – POR ISSO UM CANAL COMO

O CANAL BRASIL FAZ TANTO SUCESSO.Roberto Mendes – Pois é, está dan-

do lucro. Alto lucro. Tive umacon-versa com o Roberto Marinho quefoi gozadíssima. Que eu acho oprimor do capitalista que ele era. Euestava vindo de Milão, de um festi-val importante para escolher filmes,e existia ainda a TV Roma na Itá-lia. Aí fui lá ao Roberto Irineu parafalar para ele o que tinha compra-do, fazer um relatório do festival.Terminou a reunião, eu saí, e elemandou me chamar ainda antes deeu sair, e falou: “Meu pai está aquie gostaria de almoçar com você”.Então, fui almoçar com o DoutorRoberto. Logo no início RobertoMarinho pegou na minha mão e fa-lou assim: “Meu filho, eu quero aju-dar a sua empresa, o que posso fa-zer pela sua empresa?”. A ‘minha’empresa era a empresa dele, é claro.Aí eu comecei um discurso ideológi-co, que a gente gostaria de maisapoio da TV Globo na publicidadeda Globo Vídeo, que gostaria de umapublicidade maior contra a pirata-ria, que a gente precisava brigar para

diminuir os impostos, naquele tem-po ainda tinha IPI e ICM sobre afita de vídeo... A resposta dele foiuma surpresa para mim, porque aminha colocação deve ter sido umasurpresa para ele. Ele disse: “Não,meu filho, eu quero ajudar só a suaempresa, não o mercado todo”. Euachei isso o fino do empresário, quepensa nele próprio, sabe? (risos).

JORNAL DA ABI – A PIRATARIA JÁ INCOMO-DAVA NA ÉPOCA?

Roberto Mendes – Incomodava. Apirataria era em cima dos produtosque não tinham chegado ainda. AWarner, a Paramont e a Universalnão tinham chegado inteiras. En-tão, pirateavam-se os filmes ame-ricanos, e isso atrapalhava demaisa Globo Vídeo, porque estávamostrabalhando com produto legaliza-do, pagando os impostos todos, e apirataria vinha com os filmes deHollywood. Por exemplo, o Suplicy,o irmão do Senador, inventou no Bra-sil um negócio que era o videoclube,que não era uma loja para alugar ví-deo. Cada sócio do videoclube entre-gava duas fitas originais, compra-das nos Estados Unidos ou onde fos-se, e tinha direito a tirar duas fitaspor semana, dos outros. Era umatroca. Com isso ele montou umarede enorme. O Videoclube do Bra-sil era grande na época. Muito emSão Paulo, mas também já tinha noRio... Era uma potência. Num fes-tival do Rio, em 1985, houve umafeira de vídeo montada no HotelNacional. A Globo Vídeo ti-nha um belo estande, e o Vi-deoclube do Brasil também.Portanto, ele vivia da pirata-ria, porque, na verdade, issoera pirata. Não pagava direi-tos a ninguém. Recebia osvídeos e aquilo rodava paratodo mundo. Naquele tem-po as locadoras não erammuito grandes. E o Video-clube tinha dificuldades dafiscalização, porque o acer-vo era particular, uma tro-ca entre amigos. E ele ga-nhou muito dinheiro.Quando estava bem gran-de, em 1985, eu estava mon-tando um negócio que erapara a Globo Vídeo teruma rede de locadoras. Ti-nha até nome, que depois a

Globo até usou. Chamava-se VídeoShow, que hoje é um programa. Issoestava em processo, e era modernís-simo. Mas tinha uma oposição mui-to grande, tanto do Roberto Irineuquanto do João Roberto, que, quan-do eu fui apresentar o projeto, disse-ram que a Globo não tinha empre-sas que lidam direto com o consumi-dor. Mas era uma alavanca fantás-tica para os produtos que a gente ti-nha. Com isso a gente ia ter a pos-sibilidade de ter mais publicidade naGlobo, além de estabelecer umaenorme rede. Contratamos um téc-nico de informática – naquele tem-po a informática estava engatinhan-do, mas já tinha leitura ótica. Todoo processo da Vídeo Show era moder-níssimo. Todas as fitas iam ter umcódigo de barras, o aluguel era vistona leitura ótica, e tinha um negócioque não existia na época, que era osujeito pagar por mês no cartão decrédito – e entenda que a gente estáfalando de um período inflacionário.Mas o sujeito pagava com cartão odireito de ver dez filmes por mês. Erabem moderno mesmo. E já ia dar ostart, mas a Globo disse que não po-dia fazer varejo, e eu sou obediente.Mas, nesse festival, eu encontro como Suplicy e digo a ele: “O Videoclubedo Brasil está indo bem, é um bomnegócio. A gente vai entrar nisso, vaise chamar Vídeo Show e vai ter 50lojas no Brasil de saída”. E todas aslojas dele eram 50. Ele ficou mudo ebranco. Ele não conseguiu trocar umapalavra, parou o assunto. Travou. Eu

fico imaginando o que é um empre-sário que deve ter feito o sacrifício delechegar onde chegou e aí vem a gigan-te da Globo querendo competir comele. Por sorte dele, o projeto não saiu.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE COM

ESSE TIPO DE ORGANIZAÇÃO GIGANTESCA

E, TALVEZ, BUROCRÁTICA E LENTA NAS DE-CISÕES, A GLOBO NÃO DEIXAVA DE GANHAR

MAIS DINHEIRO?Roberto Mendes – Sem dúvida.

Com o tambor que a Globo tem, queé a “Globona”, ela é imbatível emqualquer setor. Eu fico imaginandopor qual razão a Época não é aindalíder de mercado. Não consigo en-tender. Se a Globo pisar no acelera-dor, é evidente que a Época vira líderdo mercado de revistas semanais. Eufico achando que, talvez, eles nãoqueiram, não convenha. A hegemo-nia já é tão grande, que se a Globoautorizasse fazer a Vídeo Show nãotenho dúvida de que aquilo ia ser umsucesso imediato.

JORNAL DA ABI – E A PARTIR DA SUA SAÍDA

DA GLOBO?Roberto Mendes – Quando aca-

bou a Globo Vídeo, a saída do Supe-rintendente Roberto Mendes saiu naVeja. A primeira grande notícia saiuna revista. Aí eu fui criar a minhaempresa, a Sagres. Como saiu a di-retoria inteira, no início a gente fezuma empresa, que não chegou a serempresa, mas era uma sociedade,Zelito, eu e o José Renato. Mas, logoem seguida, o irmão do Zelito, o Ela-

no, o chamou para fazeruma empresa de produçãomesmo, e ele saiu. Em se-guida, o José Renato foichamado para a FundaçãoRoberto Marinho, para cui-dar dos projetos que ele jáfazia na Globo Vídeo, queera o Vídeo Escola, o Glo-bo Ciência, entre outros.Então, ficamos eu e Ormy(Giordani Brandão), queera a minha secretária eminha sócia, uma gran-de figura, que me acom-panhava desde o Meb.Em 1965, Ormy assinoua minha primeira cartei-ra profissional. Depois,quando a gente estavana MPL, que tinha umbraço empresarial para

sustentar a coisa... Não sei se convémabrir essas coisas...

JORNAL DA ABI – VOCÊ É QUE SABE.Roberto Mendes – Não me inco-

modo. Acho que a ditadura não vol-ta, não é? A MPL tinha uma empre-sa, chamada Intrade, onde eu fui tra-balhar. No exterior, eu trabalhei nes-sa empresa, que fazia importação eexportação, com o objetivo de alimen-tar o movimento sindical. A Ormytambém saiu do Meb e foi trabalharlá, e foi minha secretária na Intrade,aqui no Brasil. Quando eu estive exi-lado, ela ficou como minha procura-dora aqui. Quando eu fui para a Glo-bo Vídeo, em seguida eu chamei aOrmy. Uma grande figura, organiza-dérrima. Casar com a Ormy devia seruma tragédia... Ô mulher organiza-da, a danada!... Pena que já nos deixou.

JORNAL DA ABI – COMO FOI O PROJETO

DO JORNAL DA GLOBO VÍDEO?Roberto Mendes – O jornal vinha

de uma necessidade de fazer conhe-cidos os lançamentos da Globo Ví-deo, exatamente pela ausência quea tv representava para a gente, quequeria muito mais anúncios e nãoconseguia. Então, partimos paraoutro meio. A opção chegou paramim pelo Zelito, já tudo acertado,eu só decidi no orçamento.

JORNAL DA ABI – EM O GLOBO VOCÊS TAM-BÉM NÃO TINHAM ESPAÇO?

Roberto Mendes – Nenhum espa-ço. Era pior do que na tv. O DoutorRoberto, quando pedia à Globo Vídeopara fazer alguma coisa para ele, doponto de vista de imagem, ele diziaassim: “Lembre-se que tem que serpreços históricos”. Preço histórico eusempre imaginei que fosse lá em bai-xo. (risos) E a gente fazia, e fazia vá-rias coisas para ele. Mas, o Jornal daGlobo Vídeo chegou a rodar duzentosmil exemplares. Era uma ótima ti-ragem, mesmo para hoje. Era umanecessidade de a gente estar presen-te no mercado, de falarmos com ocliente da locadora. Inovamos nisso.Não tinha outro jornal do gênero. Eos jornais do segmento não eramimportantes na época. Na verdade,o público-alvo do jornal não eram aslocadoras. O Jornal da Globo Vídeo sedestinava à ponta. Ao consumidorda locadora, que ia alugar um filmee ganhava o nosso jornal.

Durante um intervalo nas gravações da novela Sinhá Moça,nos estúdios da Herbert Richers, e no dia de seu aniversário,Lucélia Santos recebeu, para uma entrevista, a equipe doJornal da Globo Vídeo que lhe deu flores em sua homenagem.

Nos primeiros anos,as capas dos filmes

da Globo Vídeotinham como padrãoa cor preta. Acima, a

lendária “ficha dechapeira” utilizada

nos primórdios dasvideolocadoras.

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Pioneirismo, ousadia e criatividade.Essas três palavras parecem sintetizaro perfil do profissional RobertoMendes, na visão de amigos ecolegas de jornada. Nos relatos aseguir, feitos exclusivamente para oJornal da ABI, personalidades dossetores da cultura destacam acontribuição dada pelo ex-Diretor daGlobo Vídeo para o mercado nacionalde entretenimento em casa, bemcomo para a divulgação maciça doentão desacreditado cinema nacional.

LUIZ CARLOS BARRETOCINEASTA

“O que há de mais marcante noprofissional Roberto Mendes é seuperfil competente, criativo eempreendedor. Ele teve, de verdade,importância fundamental naestruturação do mercado de vídeono Brasil, sobretudo nos anos 1980.Roberto foi pioneiro na distribuição ecomercialização do homevideo,provando que o filme brasileiro tinha,sim, força no mercado. Na GloboVídeo, em especial, montou umaexcelente e moderna estrutura commétodos dinâmicos de atuação,desde o processo de produção dascópias, passando pelo marketing echegando à distribuição”.

PAULO JOSÉ FERREIRADIRETOR DO JORNAL DO VÍDEO

“A importância de Roberto para omercado de vídeo foi, de fato,grande. A personalidade envolvente,a simplicidade e a criatividade, aliadasà força da marca que representava,logo o destacaram entre os principaisdirigentes do mercado. Participouativamente da União Brasileira deVideo-UBV, através da qual colaboroumuito não só no combate à pirataria,como na criação de práticascomerciais que contribuíram para odeslanche inicial do mercado.Com ele, a Globo Vídeo tomou umanova dimensão. De uma pequenaestrutura inicialmente restrita àdistribuição em vídeo de produçõesda TV Globo para brasileiros queresidiam no exterior, determinou ocrescimento para a então mais

JORNAL DA ABI – DUROU QUANTO?Roberto Mendes – Um pouqui-

nho mais de um ano.

JORNAL DA ABI – FALE UM POUCO MAIS DA

SAGRES...Roberto Mendes – A Sagres man-

teve a linha de lançar filmes brasilei-ros e clássicos estrangeiros. Foi umaindependente heterodoxa, porque elanão seguia a linha de ninguém. Se-guia o compromisso de lançar filmesbrasileiros. Foi uma empresa ótima.Depois entrou num certo declínio, efoi quando entrou em cooperaçãocom a RioFilme. Comecei a lançar osfilmes com a RioFilme. Foi um gran-de sucesso também. Teve muita coi-sa de sucesso ali. Até que comecei aperceber que distribuir para locadoranão ia mais dar certo, eu estava cami-nhando num negócio que demorouum pouco mais do que imaginei. Aípeguei o filão de distribuir para tele-visão, que achei mais confortável.Acabou. A Sagres chegou a ter trintae tantos funcionários. Para uma em-presa pequena era uma coisa enorme.Fora os vendedores, que não eram fun-cionários, eram comissionados no Bra-sil inteiro. Era um negócio bem com-plexo manter a Sagres do jeito que es-tava, porque o mercado estava se jun-tando para fazer tudo em Manaus,e a gente não fazia.

JORNAL DA ABI – A IMPRENSA DEU ALGUM

APOIO TANTO À GLOBO VÍDEO QUANTO ÀSAGRES?

Roberto Mendes – A gente tinhaalgum apoio de vez em quando.Normalmente a imprensa apoiavaos lançamentos da gente.

JORNAL DA ABI – ERA DIFÍCIL?Roberto Mendes – Não, não era.

Quando a gente lançou a coleção dosclássicos eróticos, por exemplo, foiuma beleza. A Sagres lançou no Bra-sil O Império dos Sentidos, HiroshimaMon Amour... A gente fez belos lança-mentos. Seguiu um caminho muitobom, em cima do cinema brasileiro.Quando começou o acordo com a Ri-oFilme, as outras distribuidoras come-çaram a perceber que o cinema brasi-leiro podia render. Então não queriaentrar numa competição aberta comum pessoal que estava seguindo umcaminho que eu já tinha trilhado.

JORNAL DA ABI – E O CINEMA ITALIANO?Roberto Mendes – Lancei muitos

filmes italianos. Na Globo Vídeo etambém na Sagres, inclusive wes-tern spaguetti, que depois virou cult.Ainda na Globo Vídeo compreimuitas produções de uma empresa

chamada Surffilm, do Máximo Vi-glia. Em Cannes, estive com FrancoNero; encontrava muita gente lá. Ti-nha comprado muitos filmes com oFranco Nero. Eu ia todo ano a essesfestivais comprar filmes: Cannes,Mifed, a Los Angeles, no AmericanFilm Market.

JORNAL DA ABI – E AS FEIRAS NO BRASIL?Roberto Mendes – Ah, grandes fei-

ras. No Rio Grande do Sul, por exem-plo, foi onde a gente lançou O Impériodos Sentidos. Vendeu muito bem!Sempre gostei muito dessas feiras. ASagres ia bem nelas. A Sagres paroude lançar vídeo em 2003, 2004, quan-do vislumbrei que não havia comomanter um segmento de filmesbrasileiros sem filmes maiores paraapoiar. Então saí do mercado, pareide lançar e passei só a vender para te-levisão, que é o que faço até hoje.Vendo muito para o Canal Brasil, TVCâmara, TV Senado. E agora estouvendendo um produto incrível, umproduto chileno, A Independência In-conclusa, que é um documentário so-bre a independência da América La-tina, que não foi concluída. Tem en-trevistas incríveis. E, de vez em quan-do, eu produzo um ou outro filme.Produzi um no ano retrasado, Sam-bando nas Brasas, um docudrama dosanos 1950, muito interessante.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FEZ OUTRAS PRO-DUÇÕES?

Roberto Mendes – Fiz Avaeté, AMaldição do Sanpaku com Patrícia Pi-llar... Mas nesse Sambando... eu fui atorpor 16 segundos. (risos) E agora estouproduzindo outro filme. Chama-seEntre Anjos e Demônios, dirigido peloEliseu Ewald. É um filme-cabeça,sem nenhuma pretensão comercial,mais para discutir as coisas do cine-ma. É a história de um diretor queestá ficando cego e que sai do oftal-mologista, entra no elevador e, nadescida, revê a vida dele, os filmes quejá fez, os filmes que está fazendo. Éum filme muito interessante. A im-prensa vai gostar, eu acho. O Eliseufez algumas coisas interessantes. Elefez um documentário sobre o NélsonGonçalves que é uma beleza.

JORNAL DA ABI – E TEM APOIO?Roberto Mendes – Não. O filme

grande que eu gostaria de fazer e nãoconsegui captar é Quem Ama NãoMata, que é a história da Ângela Di-niz e o Doca Street, e que acabei nãotendo apoio suficiente e abandoneicompletamente. Tinha roteiro pron-to, elenco, tudo. Débora Secco ia fazera Ângela. Isso antes da Surfistinha...

importante distribuidora do País.Apaixonado por cinema, Roberto foi oresponsável pelo lançamento degrandes clássicos do cinema mundial,e certamente o primeiro dirigente ainvestir de verdade na distribuição deproduções nacionais. Muitoprovavelmente seja um dos grandesresponsáveis por ter aberto essecaminho para o produtor nacional,que hoje tem no vídeo uma dasgrandes fontes de financiamento desuas produções. Buscou tornar aGlobo Vídeo, também, uma grandedistribuidora das produções dosestúdios de Hollywood.Infelizmente, não conseguiu onecessário apoio financeiro da RedeGlobo para viabilizar a estratégia que,anos depois, o próprio mercado viriaa provar correta.Até hoje, não raramente, identifico emmeu comportamento profissionaltraços da escola Roberto Mendes: atolerância, o agir com estratégia e,ainda que com limitações, acapacidade de desnudar a alma alheia.A seus colaboradores, sempre deu ecobrava um desempenho comautonomia. Seu lado castrador, meparece, se restringia a outro rebanho,o de sua fazenda, cujos órgãosreprodutores ele mutilava com grandedesenvoltura. Aprendi muito com ele.E sinto falta de seu convívio.”

CELSO SABADINPUBLICITÁRIO, JORNALISTA E CRÍTICO DE CINEMA

“O traço mais marcante de RobertoMendes como empresário deaudiovisual é o seu amadorismo. Enão me entendam mal. ‘Amadorismo’é a qualidade daquele que ama, eRoberto Mendes é um apaixonadopelo que faz. Fala de cada filme comose fosse um filho, seus olhos brilhamao falar de cinema. Completamentediferente do que vemos hoje namaioria do mercado: frios executivosprofissionais, sem nenhuma paixão(nem conhecimento) pelo cinema,que chamam filme de ‘produto’,nunca vão ao cinema, a acham queTruffaut é algum tipo de chocolate.Roberto Mendes, pelo contrário, põeo coração em tudo o que faz, e isso

faz toda a diferença. Na época daGlobo Filmes, teve a ousadia decolocar nas prateleiras dasvideolocadoras fitas russas,brasileiras, clássicas, “miúras” (comodiz o mercado, sobre filmes difíceis)e acabou com isso criando um novonicho para o consumidor brasileiro de‘home entertainment’. Ele jamais securvou às facilidades simplistas deum mercado que só queria comédiase filmes de ação. Pelo contrário,provou que existe, sim, espaço parauma cultura mais elaborada dentrodo consumo brasileiro. E por issomesmo se transformou num dosmais importantes pioneiros da nossaindústria de entretenimento e cultura.Aproveito para mandar um recadopara o Roberto. Seguinte: o Vasco jáganhou a Copa do Brasil. Deixa oBrasileirão pra nós, corintianos...”

ZELITO VIANACINEASTA

“O traço mais marcante dapersonalidade de Roberto Mendes ésua simpatia, aliada a uma capacidadede estar bem em qualquer ambiente.Isto o faz um grande ‘vendedor’ nosentido amplo do termo. Seu papelna Globo Vídeo foi decisivo, pois erao nosso chefe. Eu era o Diretor deHome Video e todas as loucuras pormim propostas eram não sóapoiadas, como melhoradas pelaatuação do Roberto. Comomensagem para ele deixo apenasmeu carinho, em nome de umaamizade que já se estende por maisde 30 anos.”

OCEANO VIEIRA DE MELODIRETOR DA VERSÁTIL HOME VÍDEO

E FUNDADOR DO JORNAL DO VÍDEO

“Ele foi o primeiro executivo a trazerpara o mercado de vídeo legal osfilmes dos grandes diretores docinema europeu, assim como lançouas primeiras obras-primas do nossocinema, diversificando o padrão daoferta de produtos existentes nomercado. Devemos muito ao RobertoMendes, que nos ensinou, com suasabedoria, a amar o verdadeirocinema, o cinema de arte e de autor.”

O que eles falam do Roberto

Durante uma feira de negócios do mercado de homevideo, no estande da Sagres, Ormy Brandão(com a mão no queijo) sorri enquanto observa Roberto Mendes (parcialmente encoberto à direita)conversando com um cliente. Segurando um copo, ao centro, o jornalista Paulo Gustavo Pereira.

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JORNAL DA ABI – VAMOS FALAR UM POU-CO DA SUA INFÂNCIA NA ITÁLIA. NÃO HÁ

MUITAS LEMBRANÇAS, CERTAMENTE, POIS

VOCÊ VEIO PARA O BRASIL COM APENAS QUA-TRO ANOS. MAS, O QUE HÁ DE DADOS SO-BRE ESSE PERÍODO?

Lan – Tanto meu avô paterno,quanto meu avô materno, eram in-dustriais – como ocorria com todafamília burguesa italiana. O primei-ro fundou duas fábricas, em Mon-tevarchi, que até hoje são conheci-das como lugares onde são fabrica-dos feltros para chapéus de primeiraqualidade. Meu pai era músico, todafamília burguesa italiana, tambémtinha pelo menos um artista ou pa-dre. Primogênito, ele foi mandadopara Florença, onde ficou como umoboísta de primeiríssima qualidade,desde muito jovem. Quando Artu-ro Toscanini recorreu à Europa, ondefoi buscar solistas, pessoal de metaise violinistas para formar a orques-tra do Metropolitan de Nova York,indicaram meu pai, Aristides. Mas,ele não teve como se apresentar, poistinha apenas um ano de casado. Osogro dele disse, ‘Vá trabalhar nafábrica de seu pai, para casar comminha filha!’. Além disso, na Itáliaé muito forte o matriarcado. Quemmanda em casa é a mulher, não hádúvidas. A minha avó paterna era

POR PAULO CHICO E FRANCISCO UCHA

LAN

Um dos maiores caricaturistas do Brasil, Lanfranco Aldo Ricardocomprova nesta entrevista que, além do desenho, domina as palavras.

Revela-se por inteiro: Alegre, apaixonado pelo Rio, flamenguista porpromessa, expõe-se em todas as suas cores, formas e idéias.

Dizer que o bom humor é traço marcante de Lan beira a ob-viedade. Apesar de ter passado pelas charges políticas, foi mesmono campo das caricaturas, em especial as que misturavam ogingado das formas das mulatas cariocas à topografia sinuosada cidade, que este italiano se notabilizou no Brasil, Uruguai eArgentina. E por onde mais teve a oportunidade de passar. Além,muito além das pranchetas de desenho, o elevado estado deespírito de Lan reflete-se no seu bom papo e na sua memóriaquase prodigiosa. Na capacidade de rir das coisas e de si mes-mo. De fazer rir. E de indignar-se.

Foi com ótima disposição que Lan recebeu a equipe do Jornalda ABI numa fria manhã de sábado, em sua casa. Na verdade,um sítio em Pedro do Rio, na região serrana do Rio. Por mais detrês horas, falou de tudo. Aliás, nos avisou logo de cara, antesde apertarmos o play do gravador. “Olha, vocês podem perguntarsobre tudo. Podemos falar de qualquer coisa, até de sacanagem.Eu adoro uma sacanagem.”

A entrevista, apesar dos muitos momentos de brincadeirase piadas, transcorreu mais séria do que se poderia imaginar. Lané homem de opiniões fortes, posições firmes. De uma transpa-rência absoluta. De um vocabulário, por vezes, por demais in-

cisivo. Optamos, aqui, por conservar no texto todos os pala-vrões por ele pronunciados. E, curioso. Nem por isso, deixa deser um gentleman.

Conflitos familiares, o início da carreira de desenhista, o papelfundamental das mulheres em sua vida, azarações e conquis-tas. Ditadura militar, perseguições e exílio. Preconceitos. Polí-tica nacional e internacional As passagens pelos diversos veí-culos de imprensa e os percalços na carreira. O relacionamentocom os colegas de profissão. A torcida fiel pelo Flamengo e pelaPortela. Doenças, limitações da idade e, claro, a paixão pelo Rio.Tudo isso está nesta entrevista.

Uma conversa agradável e profunda. Reveladora. Quase umaterapia. Ficou mesmo a impressão de que, além de ser apaixo-nado pela função de dar formas e cores ao papel em branco,Lan também gosta de falar. De dar peso e sentido às palavras.E, acredite, sabe fazê-lo. Para nós – e, creio, para você, leitor –as histórias que ouvimos e reproduzimos a seguir nos arranca-ram risos, provocaram surpresas, cativaram admiração. Lantambém parece ter gostado. Ao final, estava estampado em seurosto que sim. Sem rodeios ou meias-palavras, o senhor dos de-senhos revela-se assim:

Uma paixão cariocaUma paixão carioca

FRANC

ISCO

UC

HA

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uma ‘fera’. E a minha mãe,Irma Vaselli, era uma ‘fe-rinha’. (risos) Então, vocêpode imaginar como eraessa relação... Como papainão pode aceitar o convi-te de ir trabalhar em NovaYork, por intervenção dosogro, minha mãe disse aele: “Na primeira propos-ta que a gente receber, va-mos embora!”. Só para seseparar da sogra, com cer-teza, não é? Para ela nãocontinuar mandando nacasa do filho (risos). Aí vi-emos para São Paulo. Eentra em cena uma figu-ra muito especial. Aliás,vou te dizer uma coisa: asmulheres, tanto na parte profissi-onal, quanto na sentimental, tive-ram grande influência durante todaa minha vida. Sempre houve umacidente de percurso, no qual elasmotivavam as mudanças radicais,as guinadas na minha vida. A pri-meira delas foi Zezé; uma mulata quefoi minha babá... Certa vez um psi-quiatra me perguntou a razão daminha fixação pelas figuras negras,pelas mulatas. Pois é, eu tive essababá! Coloque-se na cabeça de ummenino de quatro anos, loirinho,branco, que, pela primeira vez navida, vê uma pessoa de cor. E essamulher o trata com um carinho, comum amor maternal inesgotável. Poispapai e mamãe trabalhavam. E nósficávamos com ela, que me fazia to-dos os gostos, como preparar deli-ciosasbalas de coco.

JORNAL DA ABI – ENTÃO A ZEZÉ FOI FUN-DAMENTAL NA SUA FORMAÇÃO?

Lan – E como! E tem uma históriacuriosa. Quando fui contratado peloSamuel Wainer para trabalhar naÚltima Hora paulista, conheci, poracaso, a filha dela. Sem que eu sou-besse disso. Até que um dia, ela metrouxe um retrato para eu ver. E,veja só, éramos eu e meu irmão,fantasiados de pierrô, num Carna-val em São Paulo. Pensei, puxa, sóquem pode ter essa fotografia é aZezé. E claro que era ela! Fui à casadela. Na parede estava colada umailustração do time do Corinthians,pois o marido dela era corintianodoente, e o desenho era meu! Atrástinha uma dedicatória, onde estavaescrito lembrança dos queridos me-ninos, Franco, como ela me chama-va, e Zezinho, meu irmão, Giuseppe.Depois ela me contou que eu davamuita dor de cabeça quando criança,pois fugia de casa sempre, no bairrode Pinheiros. Ia para o morro brincarcom os molequinhos. (risos)

JORNAL DA ABI – PARTIU MESMO DA ZEZÉ

A ADMIRAÇÃO PELAS MULATAS?Lan – Sim. E bonito também foi

meu pai, pois ele viu que fiquei fã doscrioulos, dos mulatos, dos negros.Em 1931 fomos morar no Uruguai,pois meu pai foi convidado a inte-grar a Orquestra Sinfônica de Mon-tevidéu. Em 1933, com oito anos deidade, num colégio italiano, houve

uma semana em que fui o melhorda classe. E o professor Mario Bar-bieri levava sempre o aluno de des-taque para o Estádio Centenário,para ver um jogo. Esse era um prê-mio. Ele me levou para assistir aogrande clássico uruguaio, Peñarol eNacional. Fiquei torcendo pelo Na-cional, por causa de Domingos daGuia, que começava sua carreira ali.E o Nacional ganhou por três a zero.Foi aí que conheci as famosas ‘do-

mingadas’, jogadas de craque. Tevetambém neste mesmo ano a lutaentre Joe Louis e Max Schmeling pelocampeonato mundial de pesos-pe-sados. Vinha com meu pai, ouvin-do a luta num daqueles rádios quepareciam uma capelinha. O Max eraalemão, mas eu torcia pelo Joe. Meupai disse: “Que estranho, você é bran-co, e está torcendo por um negro”. Eurespondi: “Estou torcendo pelo negroporque gosto dele”. Ao que meu pai,me olhou e ensinou: “Vou respeitarsua opinião. Seja sempre assim! Nun-ca seja mentiroso! O fato de você serbranco não te obriga a torcer para oMax Schmeling”. Eu adorei! Foi umalição de vida para toda a vida. E devomuito a Zezé, pois ela me ensinoulogo de cara o quanto o preconceito éestúpido. Tanto que essa raça marcoupara sempre o meu trabalho. Sempreque sou citado em palavras-cruzadasé assim: ‘Caricaturista das mulatas,com três letrinhas’... Lan! (risos)

JORNAL DA ABI – EM QUE MOMENTO ODESENHO SE MANIFESTOU EM SUA VIDA?

Lan – Eu tenho que agradecer aDeus uma coisa. Na verdade, mui-

tas coisas... Eu devo mui-to à Química. O meu pro-fessor dessa disciplina eratão nojento, tão feio, quemotivou uma das primei-ras caricaturas que fiz navida. Todo estudante temmuitos desafetos, não é?Depois fiz do professor deMatemática, de Filosofia...Dentro de sala mesmo.Tive um trauma e não faloinglês até hoje. Vivíamosuma época de guerra – es-tou falando de 1942 –, e aItália estava em conflitocom os aliados, ainda asso-ciada a Hitler. Já estavanum colégio do Estado láno Uruguai, pois o italia-

no no qual eu estudava havia sidofechado por razões políticas. Esta-va na aula de Inglês, e a professorafez todo mundo se levantar em ho-menagem aos reis da Inglaterra. Eunão o fiz. Ela, então, me mandouficar depois da aula, e me perguntoupor qual motivo eu não me levan-tara. “Professora, a senhora é ingle-sa, eu sou italiano. Nós estamos emguerra. Faz algum sentido me levan-tar para homenagear os seus reis?”.

Resultado: no primeiro boletim,um monte de zeros, uma coleçãodeles, até em desenho! Meu pai, emcasa, ao ver aquilo, me disse: “Olha,você pode até ter nascido burro. Mastanto assim não é possível!” (risos).Aí, me transferiram para um colé-gio alemão, onde não se falava empolítica. O professor de Inglês nes-te colégio sempre me expulsava deaula, pois me pegava desenhando.Era com ele com quem eu menosme dava. Uma vez fiz a carica-tura do diretor do colégio. Eleera tão magro que conseguiacruzar as pernas e, ao mesmotempo, passar uma por detrásda outra. Eu tentava fazer issoo tempo todo e não conseguia(Lan, num esforço, tenta agora maisuma vez). Certa vez, um desses dese-nhos foi parar nas mãos dele. Meuprofessor de Filosofia, que erauma pessoa maravilhosa, pegouo desenho, olhou, olhou, e me dis-se: “Olha, você vem para a escola paraaprender, não é para se divertir en-quanto os outros estão prestandoatenção na aula. Mas, veja bem, sevocê fizer um desenho meu um pou-

co maior do que esse, para eu dar depresente para a minha mulher, seráuma maravilha!” (risos). E assim eufiz! Era um cara sensacional!

JORNAL DA ABI – TERIA SIDO ESTE PRO-FESSOR O SEU PRIMEIRO INCENTIVADOR?

Lan – Exatamente! Ele e o meuprofessor de Desenho, que era hún-garo. Este segundo me dizia: “Fran-co, a partir de agora, você não vaiacompanhar as aulas como os ou-tros alunos. Você vai fazer as carica-turas de memória! Desenhar o dire-tor, os seus colegas, os demais profes-sores... Enfim, pessoas que não estãona sua frente”. E eu perguntei, en-tão, a razão daquilo. “A memória é asíntese! É uma impressão objetiva esubjetiva ao mesmo tempo. É issoque é a caricatura pura. Ela não éretrato”. Foi aí que começou a minhacarreira, ainda que de maneira infor-mal... Bom, eu ainda fiz vestibular deArquitetura, entrei na Faculdade...

JORNAL DA ABI – FAZER ARQUITETURA

ERA UM DESEJO SEU OU UMA IMPOSIÇÃO

DE SEU PAI?Lan – Do meu pai, claro! Ele de-

saprovava essa história de desenho.Minha mãe me dava força, e meu ir-mão, então, nem se fala! Meu paiperdia de dois a um, no placar lá decasa! (risos) Mas era meu grandecompanheiro! Íamos juntos aoEstádio Centenário, tanto que fuime familiarizando com aquilo, atéque comecei a fazer desenhos dos jo-gadores, com os lances, com os dri-bles, até que passei a desenhar tudoaquilo de memória. E, assim, eusempre começava a desenhar pelaspáginas esportivas... Foi assim queum amigo meu levou meus dese-nhos para o El País, de Montevidéu.Mas, antes disso, já havia feito al-guma coisa para alguns jornais...Tinha feito um desenho para umdiretor de orquestra só para agradarao meu pai... Mas, não o convencimuito, não... (risos) Eu era capaz defazer, de memória, todo o time doNacional, para o qual torcia...

JORNAL DA ABI – E COMO FRANCO PAS-SOU A CHAMAR-SE LAN?

Lan – Franco era o nome que todomundo odiava, até pelo contexto da

época do ditador espanhol... Já ha-via feito um desenho, com a assina-tura Franco, que faz parte de meunome. As pessoas olharam o dese-nho, gostaram dele, mas disseramque, com aquela assinatura, naquelecontexto político, o negócio não iriapara frente. Aí, outra mulher inter-fere na minha vida. Era uma morenabonitinha... Saímos para dançarnum sábado. E ela me perguntou:‘Como te llamas?’. Lanfranco AldoRicardo. “Me gusto Lan”, devolveuela. Isso me deu um arrepio, me deuum choque! Era época do bolero, sa-ímos a dançar. Ela tinha a mania decantar no ouvido, enquanto a gen-te dançava. E como ela desafinava!E isso é uma coisa que não suporto:desafinar! A gente dançava cheek tocheek... Se bem que a gente nãopodia chegar muito perto da mu-lher, pois ficava sempre de pauduro! (risos) Eu não agüentei tantadesafinação, e coloquei fim ao na-moro... Essa história virou uma len-da entre os meus amigos, até que,quando fiz um segundo desenhopara o El País do Uruguai, um ami-go que conhecia essa história me fezuma gozação, e assinou o trabalhocom o nome Lan, não sem antes pro-nunciá-lo imitando a voz melosa daantiga namorada bem no meu ou-vido: “Laaannn”. (risos) Esse nomelogo pegou. Eu, no início, ficavaputo, pois todo mundo me lembra-va da história da desafinada... De-pois, me acostumei. Mais que isso:descobri uma coisa. Isso foi uma sor-te. Sou tão preguiçoso, tão pregui-çoso, que até para assinar ou dar umautógrafo, era bem rápido, maravi-lhoso, curtinho: ‘Lan’.

JORNAL DA ABI – NESSES PRIMEIROS DE-SENHOS VOCÊ TINHA ALGUMA REFERÊNCIA?

Lan – Não, não tinha referência,ídolo, nada disso. Era absolutamen-te autodidata, intuitivo, com mo-vimento na cabeça e, sobretudo,com uma memória visual impres-sionante. Eu reparava em tudo. Porexemplo: você está aqui na minhafrente, sentado, com a perna cruza-da, com a mão assim, no queixo.Essa sua posição já ficava registra-da na minha memória. Poderia tran-qüilamente desenhar você. E, acimade tudo, minha característica é mo-vimento. O meu forte é o desenhodinâmico. Sou incapaz de fazer umdesenho posado. Se você reparar, asminhas mulatas se mexem todas!Como eu sou um paquerador inve-terado, quando olho uma mulher,logo elaboro as imagens.

JORNAL DA ABI – AS MULHERES SEMPRE

INSPIRARAM SEUS DESENHOS E GUIARAM

SEU DESTINO, NÃO É?Lan – No início dessa história, eu

achava tudo ótimo. ‘Pô estão me pa-gando para eu me divertir’, pensava.Era mesmo prazeroso. Adorava de-senhar, e ainda, com isso, ganhavadinheiro. Depois aconteceu outroepisódio em minha vida, envolven-

“Sou incapaz de fazer um desenhoposado. Se você reparar, as minhasmulatas se mexem todas! Como eu

sou um paquerador inveterado,quando olho uma mulher, logo

elaboro as imagens.”

REPR

OD

ÃO

WIK

IPEDIA

Guillermo Divito, dono da revista Rico Tipo, uma prestigiada publicaçãode humor, convidou Lan para conversar sobre trabalho e depois não orecebeu. Mais tarde Lan foi contratado pela maior empresa editorial daArgentina e nosso herói devolveu a gentileza ao ocupado editor.

Caricatura de Juan Manuel Fangiopublicada na imprensa argentina.

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Bom, montei aexposição, e mui-ta gente veio medar os parabéns.Conheci um ve-lho caricaturista ar-gentino, gente muitoboa, que gostou dosmeus desenhos e diziaque eu tinha que ir a Bue-nos Aires. Chega dia 18 de fe-vereiro, meu aniversário, e eujá tinha jogado na roleta e per-dido quase tudo. Naquela altura,tinha apenas 45 pesos no bolso –valor que já não dava para pagara semana do hotel. Pensei: “Mor-ro mas não perco a pose!”. Boteium blazer bege, combinando coma calça de alpaca inglesa, um len-cinho de fresco, e saí para festejarde alguma forma o meu aniversá-rio. Fui para a boate La Fragata,que era a melhor. Me aboletei no bar,já às onze e meia da noite. E pediuma gin tônica, que é uma bebidaque, adicionando gelo, dura umabarbaridade... Quando chega ameia-noite, apagam-se as luzer daboate e pum! Acendem um holofo-te bem na minha cara! Pensei: “Seráque é a Polícia? Ou o meu pai me pro-curando?” (risos). Aí, ouço a músi-ca: “happy birthday to you, happybirthday Lan Franco...”. “Poxa, oúnico Lan Franco em toda a Amé-rica do Sul sou eu”, pensei. Até quevejo o baixista da banda da boate,um uruguaio que fora criado comi-go. O pai dele tocava na mesma or-questra do meu pai. Ele sabia o meuaniversário, como eu sabia o dele. Aífoi uma alegria geral, todo mundome deu os parabéns! As pessoas mechamavam para as mesas. Numadelas conheci o Enrique Santos,autor de Cambalache, para mim omelhor letrista de tango argentino,assim como acho o Noel Rosa insu-perável nas letras de nosso samba.Bom, aí foi um porre fenomenal, deuísque bancado pelos outros – jáhavia abandonado o gin. Seis horasda manhã, já estava vazia a boate,veio um cara, crooner da Santa Pau-la, orquestra argentina que estavase apresentando no Hotel Miguez.“Gostei muito das suas caricaturas!Quanto você cobra para fazer a mi-nha?”. Eu, de porre, respondi que

não sabia... Nunca havia pensadonaquela situação, nem cotado omeu trabalho. Contei a ele quehavia gasto todo o dinheiro dadopelo meu pai, e que precisava pagaro hotel. Fiz as contas, somando ohotel, uma farrinha aqui, um uis-quinho ali, uma boate... Cobrei 45pesos, que, somados ao que me so-brava, já davam 90 pesos! E, assim,fiquei em Punta. Só fui voltar a Mon-tevidéu na primeira semana de abril!Ou seja, fiquei 45 dias naquele es-quema. E meu pai me esculham-bando ao telefone: “Época de exa-mes no colégio e você aí, em Puntadel Leste!”. (risos)

JORNAL DA ABI – PUNTA DEL ESTE FOI, ENTÃO,UM LUGAR DECISIVO EM SUA VIDA. MARCOU

SUA MATURIDADE...Lan – Ainda lá conheci Divito,

dono da revista Rico Tipo, na épocaa melhor publicação de humor daAmérica Latina, sem dúvida. E eleme disse: “Se você for a Buenos Ai-res, vá lá na Redação para conver-sarmos”. Chego em Montevidéupara convencer meu pai a me dei-xar ir para Buenos Aires... Minhamãe e meu irmão, novamente, oconvenceram a bancar a minha vi-agem para a capital argentina, ondeeu tinha uma tia e um tio. Ele medeixou ir, num teste de seis mesespara me tornar auto-suficiente. Senão, dizia ele, eu teria que retornarpara me formar em Arquitetura.Topei o desafio! Peguei meus dese-nhos, todos enroladinhos, num es-quema pouco profissional ainda, naépoca. A secretária do Divito pediuque eu deixasse os desenhos comela, pois ele não poderia me atendernaquele momento, pois estava emreunião... Aquela velha história...No dia seguinte, ela me devolve osdesenhos, e diz que, naquela ocasião,não havia espaço para mim na re-vista. “E agora?” - pensei. Aquilo foium balde de água fria! E meu pai me

mandando uma merreca de dinhei-ro... E o tempo correndo... Depois

de três meses, minha mãeme manda uma carta.Ela dizia que o namora-do de uma aluna dela,

que estava se formandoem Medicina na Argentina,

queria me conhecer. Ok, fui en-contrá-lo. Gente muito boa. Era

médico residente de um hospi-tal. Me convidava para saircom ele numa ambulância, eutravestido de enfermeiro, para

entrar nos estádios da Argenti-na e assistir aos jogos de graça!

(risos) Assim, comecei a me fami-liarizar com todos os jogadores daépoca. Comecei a desenhá-los. Otempo foi correndo. Quatro, cincomeses, e eu morrendo de medo de terque retornar a Montevidéu. Até queum dia fui à casa desse rapaz, queestava com uma garrafa de cidra.“Hoje vamos beber essa coisa toda!Metade para cada um!”. Perguntei:“Tudo bem, mas qual é o aconteci-mento?”. “Peguei os seus desenhos,levei para o Enzo, um tremendo jor-nalista de esporte, que está fundan-do uma publicação segmentada, arevista Goles, e quer colocar os seusdesenhos na capa!”. Poxa! Fantás-tico, não é? Bebemos. Quando che-go na casa da minha tia, ela me diz:“Um senhor, chamado Emilio Ru-bio, quer falar com você e recomen-dou muito que, antes de você seguirpara o encontro com o diretor da re-vista Goles deve procurá-lo”. Assimeu fiz. Logo de manhã fui lá. Ele mefez a proposta. “Uma coisa é vocêtrabalhar diariamente num jornalcomo o Noticias Gráficas, de BuenosAires. Outra é uma vez por sema-na, numa revista. Além disso, voute oferecer um salário de primeiracategoria, para você vir aqui todosos dias”. Eu não tinha escolha! Otempo estava passando, eu viven-do na casa dos tios, com um dinhei-rinho de nada que meu pai estavame mandando... Me ofereceram umsalário de 780 pesos argentinos! To-pei! Claro que o Enzo ficou puto davida comigo! Nunca mais quis saberde mim... E, para acabar de me con-vencer, Emilio Rubio me disse queEvita Perón era dona, praticamente,de toda a imprensa portenha. “E elaquer que eu seja diretor-geral da Edi-tora Haynes, a maior de BuenosAires. Lan, você vai trabalhar noMundo Deportivo, Mundo Radial,Caras y Caretas, Mundo Argentino,El Mundo...”. E assim aconteceu.Trabalhei como um cavalo. Mas emcada uma dessas revistas ganhavaum salário de primeira categoria.Nunca ganhei tanto dinheiro!

JORNAL DA ABI – FAZENDO AS CONTAS, VOCÊ

CHEGOU A GANHAR CERCA DE 4 MIL PESOS

POR MÊS? É ISSO?Lan – Evita pagava muito, mas

muito bem, porque era tudo a favordo Perón, do peronismo. Ela era umafigura que tinha uma influência mui-to grande. Depois vou mostrar no ca-tálogo o primeiro desenho de mulherque eu fiz a pedido de Eva Perón.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONHECEU A EVA

PESSOALMENTE?Lan – Eu a conheci na Redação do

jornal. Era baixinha, não era um mu-lherão. Bonitinha, entendeu?

JORNAL DA ABI – ELA PEDIU QUE VOCÊ FI-ZESSE UM DESENHO DELA PRÓPRIA?

Lan – Dela, não. De uma amigadela do teatro. Porque ela era muitaligada ao pessoal do teatro. A broncadela com a Libertad Lamarque foique, naquela época, ela ainda não eraa primeira-dama. Sonhava em seratriz. Houve um filme no qual elasonhava em ser a estrela, mas bota-ram a Libertad Lamarque. A partirdaí, quando ela ficou sendo a primei-ra-dama, começou uma persegui-ção em cima da Libertad, que teveque ir embora para o México.

JORNAL DA ABI – ENTÃO, EVITA FOI OUTRA

MULHER DE IMPORTÂNCIA, POIS FOI A PE-DIDO DELA QUE PELA PRIMEIRA VEZ VOCÊ

FEZ UM DESENHO FEMININO?Lan – Pois é. Feminino porque ela

gostava exatamente da estilizaçãoque eu fazia nos desenhos.

JORNAL DA ABI – E ESSE DESENHO JÁ VEIO

MAIS OU MENOS COM ESSAS FORMAS, NES-SES MOVIMENTOS, NESSE ESTILO DE TRAÇOS?NÃO ERA UMA MULATA, CERTAMENTE...

Lan – Não era. Era um tipo demulher diferente. Mas, de certa for-ma, o meu estilo já estava ali.

JORNAL DA ABI – GOSTARIA DE VOLTAR AO

EPISÓDIO DO SAMUEL WAINER, QUE VOCÊ

JÁ CITOU. O CONVITE FEITO POR ELE FOI OU-TRA GUINADA IMPORTANTE EM SUA VIDA, NÃO?

Lan – Foi outra guinada, sem dú-vida, e também provocada por umamulher. Porque eu me apaixonei poruma companheira de trabalho daEditora Haynes. Uma mulher casa-da. Tinha uma gamação enorme porela. O marido começou a ficar ciu-mento, então eu me afastei. Nãofoi um namoro de uma intensida-de, mas não quero chamar de saca-nagem. Era realmente uma relaçãomuito íntima, muito bonita, maseu não tinha a mínima vontade decasar. Aliás, nunca tinha vontade decasar. A única mulher a que eu pro-pus casamento foi aquela com quemestou casado há 51 anos, que é a Olí-via. Mas as namoradas anteriores,nem pensar... Eu tinha horror ao ca-samento, entendeu?

JORNAL DA ABI – NUNCA TINHA CHEGADO

A ESSE ESTÁGIO?Lan – O Miele uma vez disse algo

interessante. Ele tem uma respos-ta que eu adotei, porque ele disse:“Eu sou contra o casamento, e a fa-vor da Anita”, que é a mulher dele.E eu digo sempre que “Sou contra ocasamento, e a favor da Olívia”, queé uma grande mulher, maravilhosa.Não se fazem mais mulheres comoantigamente.

JORNAL DA ABI – AÍ COMEÇOU ESSE RELA-CIONAMENTO...

Lan – Resolvi, para dar um tem-po, fazer uma viagem de três meses.Eu tinha grana. Queria ir ao Rio de

do outra mulher. Depois fuisaber que ela, na verdade, eraamante do Diretor do El País,jornal onde, a essa altura, eujá trabalhava havia uns doisanos. Ela quis ser madrinha daminha primeira exposição em Pun-ta del Este. O marido dela era pre-sidente do Country Club de Puntadel Este. E ela me convidou para ficaruns 15 dias lá na casa dela, exata-mente para fazer a exposição. Poxa,para convencer o meu pai, precisouminha mãe intervir em meu favor.Meu pai disse: “Bom, você vai, tudobem. Mas eu não acredito muitonessas coisas. Gente grã-fina é tudode conversa fiada”. E ele ainda medeu uma grana para eu viajar. Fui,ficou combinado de encontrá-la denoite, já no Country, para depoisseguirmos para a casa dela para co-meçarmos a organizar a tal exposi-ção. Aí, o que aconteceu?... Fiqueiesperando do lado de fora, commeus quadrinhos e minha mala, denoite, sem viva alma na rua. O tem-po passou, demorou uns 15, 20 mi-nutos e nada. Quase uns 30 minu-tos, e eu, ali esperando. De repentesai ela, sendo arrastada pelo mari-do, pelo braço. Ele deu-lhe um chu-te na bunda, e a jogou dentro docaro. O que eu poderia dizer? “Boanoite, senhora?”. Fui a única teste-munha daquela cena... Logo pensei:acabou, mixou a minha exposição.Não tinha nem como procurá-la nodia seguinte. Eles foram embora, atéque perguntei ao porteiro do Coun-try, meu conhecido, o que haviaacontecido. E ele disse que o maridohavia flagrado a mulher trepandocom o diretor do meu jornal... Aí foique pensei: “fudeu”! (risos) E essa éa importância deste fato. Pela pri-meira vez, na minha vida – e já ti-nha uns 23 anos, pagava a faculdadede Arquitetura – tinha que tomaruma decisão sozinho! No dia ante-rior, um jornal de Montevidéu haviaanunciado em matéria de meiapágina: “Lan parte para o sucesso!”Imagine só se podia voltar para casasem ter feito a tal exposição... Não!Eu tinha que fazer o programado!

JORNAL DA ABI – E AÍ? COMO VOCÊ SE LI-VROU DESSA ENRASCADA?

Lan – Fui para um hotel, um dosmelhores da cidade. Chamei umtáxi e fui pra lá. Dormi. No dia se-guinte fui procurar o gerente e per-guntar se havia alguma sala ali, naqual eu pudesse fazer a exposição.Ele me disse que sala, mesmo, nãohavia. Mas me sugeriu utilizar oespaço do cassino. Agora, pense sealguém, dentro de um cassino, quersaber de ver quadros... As pessoasestão preocupadas é com as fichi-nhas, com o jogo... O evento chegoua ser anunciado em caminhonetes,na rua, daquelas que anunciam oseventos do dia. “Nesta tarde, noGrande Hotel Cassino Nogarón, osdesenhos do grande caricaturista in-ternacional, Lan!” Puxa! Pra queaquilo? Ninguém me conhecia, por-ra! (risos). Cada vez que o carro desom passava eu morria de vergonha.

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Janeiro. Pensei: primeiro passo paradar um abraço nos meus pais emMontevidéu, depois Rio de Janeiro,Nova York, New Orleans, por cau-sa do jazz... Eu era jazzmaníaco!Sigo por Los Angeles, México, Qui-to, Lima, Santiago do Chile e, de-pois disso tudo, volto a Buenos Ai-res. Mas, aconteceu o seguinte:quando cheguei ao Rio de Janeiro, jáfiquei tarado. Tarado.

JORNAL DA ABI – E NÃO CONHECIA O RIO

DE JANEIRO. VOCÊ SAIU DA ARGENTINA DI-RETO PARA O RIO, NÃO PASSOU POR SÃO

PAULO?Lan – Não conhecia! Vim direto

para o Rio. Fiquei alucinado pela ci-dade. As mulheres! Fui ao Maraca-nã para ver onde o Uruguai tinhaganhado a Copa e fiquei impressi-onado com o jogo da Seleção Paulistacontra a Seleção Carioca. Ganhou aSeleção Paulista, com gol do Balta-zar, o Cabecinha de Ouro. Aquiloficou na minha cabeça. No dia se-guinte, segunda-feira, fui cumpri-mentar a turma, amigos meus deBuenos Aires que tinham trabalha-do comigo na Editora Haynes e tam-bém no Noticias Gráficas, como oParpagnoli. Fui dar um abraço ne-les e eles disseram que a irmã do Nél-son Rodrigues queria fazer uma re-portagem comigo. Eu fiz a reporta-gem e falaram com o Samuel Wai-ner. Casualmente, em 1952, vimsaber depois que tinha levado o prê-mio de melhor caricaturista doano. Então, o Samuel me chamoue perguntou se eu queria ficar noBrasil, mas eu tinha que ir para SãoPaulo. Respondi que não, que sefosse para ficar no Brasil teria queser no Rio de Janeiro. Ele disse: “Teprometo uma coisa. Você vai ficarseis meses em São Paulo, e depois techamo para o Rio”. Isso foi em ou-tubro de 1952. “Em 1953, logo nocomeço do ano, te trago para o Rioporque vou lançar o semanário Flan”,prometeu ele. Maravilha. Beleza.Aceitei. Foi assim que fui para SãoPaulo. E acabei reencontrando aZezé... Mas essa história já foi. O Riode Janeiro para mim foi um deslum-bre. Realmente foi maravilhoso tra-balhar na Última Hora. Eu sempredigo, quando me refiro a SamuelWainer, que nós jornalistas não po-demos esquecer que quando ele tevea oportunidade de dirigir um jornal,graças a Getúlio Vargas, tornou-seo homem que deu dignidade a nossaprofissão, porque antes recebíamossalário de miséria. O jornalista, oufazia jornalismo vocacionalmenteporque era advogado, ou gostava deescrever ou algo assim. Samuel nosdeu dignidade. Por isso que a im-prensa foi contra ele, liderada peloCarlos Lacerda.

JORNAL DA ABI – SERIA UM EXAGERO AFIR-MAR QUE O RIO DE JANEIRO REDEFINIU O SEU

DESENHO? VOCÊ PASSOU A DESENHAR DIFE-RENTE DEPOIS QUE VEIO PARA A CIDADE?

Lan – Houve uma influência mui-to grande, principalmente em fun-ção das mulheres. Na parte dos jo-gadores de futebol não, porque já

fazia jogadores argentinos. Foi amesma forma que fiz aqui com oBaltazar, que foi publicado em pági-na inteira de Última Hora.

JORNAL DA ABI – VAMOS FALAR UM POU-CO MAIS DESSE JORNAL. NA IMPRENSA

ANTIGA, OS EDITORES ABRIAM ESPAÇO PARA

OS DESENHOS, VALORIZAVAM O TRABA-LHO DO ARTISTA...

Lan – Não posso me queixar, por-que me abriam toda a página. NaÚltima Hora paulista eu fazia umapágina de turfe, com Wilson Nas-cimento. Fazíamos uma dupla. Eleme dava as dicas. “Pode ganhar esse,pode ganhar outro”. Encontrava aforma com o desenho e praticamen-te já entrava com duas ou três bar-badas. Era tão engraçado, não en-tendia porra nenhuma, nunca ti-nha ido à Cidade Jardim e só o Nas-cimento é que me fornecia os dados.Aí eu ia para a Boate Oásis todas asnoites. O porteiro era um crioulo.Cada vez que eu chegava, ele dizia:“Seu Lan, qual é a dica? Qual é a cor-rida?”. Eu não sabia de nada, sem-

eram todos da Última Hora. Só ti-nha craque. O Caribé colaborava devez em quando...

JORNAL DA ABI – VOCÊ IA PARA A REDAÇÃO

TODO DIA? DAVA EXPEDIENTE LÁ?Lan – Sempre na Redação. Tem

uma coisa. Eu tenho uma facilida-de para me ausentar quando dese-nho. Você pode falar comigo que eunem escuto. Me isolo completa-mente.

JORNAL DA ABI – COMO O MAESTRO VILA-LOBOS, QUE DIZIA TER O ‘OUVIDO DE FORA

E O OUVIDO DE DENTRO’...Lan – Exatamente, o barulho

nunca me incomodou. As pessoasvinham falar comigo e eu não dei-xava de desenhar. O Corvo surgiu deuma forma casual. Aliás, como tudona minha vida, sempre é um acon-tecimento. Não dá pra dizer, porexemplo, que algum dia eu fui aoencontro do trabalho. Minha sorteé que o trabalho veio ao meu encon-tro – ou amigos me indicavam. Eramuito tímido para pegar um dese-nho meu, botar debaixo do braço elevar para mostrar a alguém. Porisso o choque que eu tive em BuenosAires, quando me disseram para vol-tar no dia seguinte... Aquilo foi umaagonia enorme. Ainda na Argenti-na, eu não saía do jornal, não saía daRedação, porque tinha que traba-lhar, trabalhar e trabalhar. Então,um dia, eu estava sozinho na Reda-ção do Mundo Deportivo, não tinhaninguém lá, e apareceu o Che Gue-vara, que ainda não era o Che. EraErnesto Guevara de la Serna. Era ummédico, assim se anunciou, pergun-tou se eu podia recebê-lo, pois dese-java fazer um rally pela América doSul, de moto com um amigo meu.Eu publiquei isso e tiramos uma fo-tografia juntos que, infelizmente,está na coleção que eu não tenho. Eulevava todas as fotografias que tira-va para minha mãe. Ela levou tudopara a Itália. E lá tudo se perdeu. Elamorreu e nunca mais soube desseacervo. É uma pena, porque era umdocumento que eu podia mostrar.

JORNAL DA ABI – QUE TAL O ENCONTRO COM

CHE? ELE O INFLUENCIOU POLITICAMENTE?Lan – Ali ele era um cara que ape-

nas queria fazer um rally. O textofoi o que eu mandei. Naquela épo-ca eu torcia por Fidel Castro, porqueodiava aquele Fulgencio Baptista,que foi um dos ditadores mais san-grentos, um filho da puta, associadoà máfia. Ele recebia grana da máfia,recebia grana de tudo o quanto égente. Eu torcia por Fidel. E gosta-va do Che, que foi um grande heróilá em Cuba. Santa Clara, por exem-plo, foi vital para a vitória da Revo-lução Fidelista. Eu fui fundador daPrensa Latina, no Rio de Janeiro, queera a agência de Fidel, era naquelaépoca da Revolução. E comecei atrabalhar para o jornal Revolución, deHavana. Mandava charges, claro,esculhambando os americanos pa-cas. Todas as minhas charges eramesculhambando o Tio Sam. Me lem-bro que encontrei o Che Guevara em

um congresso no Copacabana Pala-ce, em 1961. O assessor do Che metrouxe um charuto e me disse queele queria pedir um original de umdesenho meu que estava no seugabinete, no Ministério do Interior.Eu achei ótimo! Um original meuna sala do Che! Fantástico! Por cau-sa disso tive uma relação muitoíntima com a, digamos, “revolução”que acabou com o golpe militar em1964. Tive que ir embora a convitedo cônsul italiano, uma semanadepois do golpe, ocorrido em 31 demarço de 1964. Bom... os militaresanteciparam para não dar a goza-ção do 1º de abril! No dia 7 ou 8, ocônsul me chamou e disse: “Lan, oDops já esteve aqui querendo saberos seus antecedentes políticos, por-que a sua barra está meio suja comesse negócio de você trabalhar paraa Prensa Latina. Aproveita, faz umaviagem para a Itália, para a Europa,descansa, dá um tempo, porque nãose sabe qual vai ser a duração disso”.E lá fui eu para a Itália.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTAVA NA ÚLTIMA

HORA NESSA ÉPOCA?Lan – Não, já estava no Jornal do

Brasil. Entrei em 1963 no JB e em1964 tive que me mandar. Mas elesconservaram meu lugar, em 1967,quando eu voltei.

JORNAL DA ABI – MAS NESSA ÉPOCA VOCÊ

FAZIA QUE TIPO DE CHARGE NO JORNAL DO

BRASIL?Lan – Já tinha um lado político.

Na verdade, quem me inventou comochargista político foi o Samuel Wai-ner, quando eu fiz o Corvo.

JORNAL DA ABI – ATÉ ENTÃO VOCÊ NÃO

TRANSITAVA NESSA ÁREA?Lan – Não, não pisava nessa área.

Era esporte, jóquei, mulher, fazia orodapé na Última Hora, que eramcharges sobre a vida carioca. Traba-lhava pra burro naquela época. NaManchete Esportiva, eu fazia umtime por semana.

JORNAL DA ABI – COMO FOI A ADAPTAÇÃO

AO DESENHO POLÍTICO? E QUAIS PROBLE-MAS VOCÊ CHEGOU A TER COM ISSO?

Lan – Tudo é uma questão intui-tiva. Por isso que te digo que naminha vida tudo foi intuição. Fuium autodidata. Fui aprendendo ouso do material na medida em quefazia. Tive um pincel, que acabouficando na Itália. Com ele desenheina Última Hora, no Jornal do Brasil ena Itália. Foi quando preparei umaexposição e me obrigaram a fazer atroca por um novo! Foi curiosa essaexposição. Participaram 300 dese-nhistas de toda a Itália e de algunspaíses europeus. E eu ganhei o prê-mio. Numa fotografia estou comdesenho meu desse tamanho! (fazo gesto com as mãos) Uma foto comoessa eu bem que poderia mostrar,pois na legenda diz “Il representantebrasiliano”. Me apresentaram naItália como representante brasilei-ro! E ninguém no Brasil sabe que eu,italiano, ganhei um prêmio na Itáliarepresentando o Brasil, pô!

pre deixava na dúvida, dizia pode ser,veja na Última Hora. Eu ia cortar ocabelo e me perguntavam: “SeuLan, qual é a boa? Qual é a barba-da?”. Acabei sendo um técnico semter ido a um páreo, sem entender porranenhuma sobre cavalo de corrida. (ri-sos). Eu gostava de desenhar cavalo decorrida. Disso eu sempre gostei.

JORNAL DA ABI – O CAVALO É UM ANIMAL

LINDO...Lan – Mulher e cavalo sempre fo-

ram o que eu mais gostei.

JORNAL DA ABI – COMO FOI TRABALHAR

SEIS MESES EM SÃO PAULO? A TURMA DA

ÚLTIMA HORA ERA UM TIME DE CRAQUES!Lan – Só craques. Craques em São

Paulo e craques no Rio de Janeiro. Arevista Flan, por exemplo, tinha osirmãos Rodrigues – Nélson e Au-gustinho –, tinha Paulo MendesCampos, Fernando Sabino, HélioPellegrino, Otto Lara Resende, Nás-sara no desenho; como Chefe de Fo-tografia, Roberto Maia, que era umcracaço. Aliás os bons fotógrafos

“Nós jornalistas não podemosesquecer que quando Samuel Wainerteve a oportunidade de dirigir um

jornal, graças a Getúlio Vargas,tornou-se o homem que deu dignidade

à nossa profissão, porque antesrecebíamos salário de miséria.”

As caricaturas de jogadores de futebol do Laneram publicadas, muitas vezes, em página inteira,como esta do Baltazar, na Última Hora Esportiva.

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JORNAL DA ABI – NO SEU PRÓPRIO PAÍS,IDENTIFICADO COMO BRASILEIRO.

Lan – Exatamente. Inclusive, naItália, quantas vezes me pergun-tam: “Você é argentino?”. Não.“Você é uruguaio?”. Não. “Você ébrasileiro?”. Não. E lá me chama-vam “Il sudamericano”. Nem de ita-liano me chamavam. Entrei entãocomo representante brasileiro e fi-quei com uma felicidade enormeporque ganhei esse prêmio!

JORNAL DA ABI – QUERIA QUE VOCÊ TER-MINASSE A HISTÓRIA DO CORVO LACERDA.

Lan – A história do Corvo é ou-tra casualidade. Devo a uma mula-ta. (risos). Foi quando morreu o Nes-tor Moreira. No dia do enterro, oSamuel compareceu. E o Lacerda foitodo vestido de preto, de luto. Eu es-tava indo embora da Redação por-que tinha um encontro com umamulata na Praça Cruz Vermelha, àsoito e quinze. Eram oito horas e euestava saindo do jornal. Veio umcontínuo do Samuel e disse que elequeria falar comigo. Puta-que-o-pa-riu!!! Fui lá e o Samuel me disse:“Olha, o Lacerda estava todo vestido

de preto, faz um papa-defunto aí”.Papa-defunto.... Foi isso que ele mepediu. Pensei: de preto? Que merda,um papa-defunto! Bom, quem co-me carniça é urubu. Eu vou botarum urubu... mas eu lembrava dacara do Lacerda, que não lembrava acara do urubu. Porra, vou perder tem-po! E a mulata? Tá lá me esperan-do! Um drama para mim... Queoutra coisa é preta? Um corvo!!!Quando você vê um desenho todopreto, você faz um rabisco, com nan-quim. Desenha em cinco minutos.Eu fiz, inclusive, uma coisa truculen-ta, bem pesada... Fui embora, corren-do, mandei o desenho em quatro co-lunas, como o Samuel havia me pe-dido. Ele ia encontrar a Danuza Leãonuma boate e nem esperou. Mandeio material e fui embora. E, lembrobem, passei uma noite maravilhosa

no Hotel Alfa, na Rua Montenegro,onde eu ia sempre.

JORNAL DA ABI – ELA FICOU TE ESPERANDO?Lan – Não! Ela chegou até um

pouquinho atrasada, oito e vinte ecinco. Foi a minha sorte, porquecheguei às oito e dezoito! São coisasque não se esquece. Aí, no dia seguin-te, eu ia cedo ao jornal... e, puta-que-o-pariu, já com dor de consciência!Pensava: “o Samuel pediu para ca-prichar e fiz aquela merda de dese-nho!” Quando entro na Redação,tinha o Samuel, o Baby Bocaiúva, oPresidente do PTB, Danton Coelho,e Elói Dutra. Os quatro. Eu quaseme escondi... (risos) Samuel disse:“Vem cá!”. “Lá vem esporro”, pen-sei eu... “Vai me dar uma broncafilha-da-puta”. E ele disse: “Deixa eulhe apresentar. Baby você já conhece,Elói Dutra, e o nosso Presidente dopartido, Danton Coelho”. O Dan-ton Coelho, então, me abraça. Umabraço com palmadas nas costas, eme diz: “Lan, o que você fez é um tra-balho de uma profundidade psico-lógica incrível. Você mostrou a almatorva desse filho-da-puta do Lacer-da!” (risos). Dessas palavras nuncavou me esquecer. E a pressa com queeu fiz aquilo? Aprendi que quantomais espontâneo é o desenho, me-lhor ele é. Isso eu só aprendi com otempo. O que sai da sua primeirainspiração é o que vale. Não adian-ta você fazer um tremendo desenho,maravilhoso, cheio de troço, e omáximo que te dizem é que estábom e bonito. E saiba você: até ame-aça de morte eu tive do Clube da Lan-terna, formado por partidários doLacerda, por causa dessa charge...

JORNAL DA ABI – AMEAÇA DE MORTE?Lan – Foi, por causa dessa char-

ge. Um cara do Clube da Lanterna,um filho-da-puta daqueles, quedepois foi até deputado. E o Lacer-da me respondeu em um discursoem Bauru. “Esse desenho, o Corvo,é a própria imagem da fidelidade”,disse, elogiando o Corvo. “Mas é umdesenho de um espanhol safado!”,esbravejou. (risos). Tem um detalhe,quando ele se candidatou a Gover-nador da Guanabara, o Dines meprocurou, porque o Lacerda queriaque eu fizesse a imagem positivadele. Não sei quanta grana jogueifora, mas eu respondi que não. Todomundo estava me conhecendocomo autor do ‘Corvo’. Eu nãopodia passar a ser o autor do ‘Coli-bri’ ou do ‘Beija-flor’. Foi a resposta.Aliás, nunca aceitei dinheiro de jei-to nenhum de político na minha

vida. Quando Aureliano Chaves es-tava disputando para se candidatar,eu disse não. Quando o Governadorde São Paulo, Orestes Quércia, que-ria me ajudar, queria me dar presen-tes, eu disse não. Nunca quis dinhei-ro para não comprometer o respei-to da minha coluna. Sempre faleicom os meus colegas que caricaturaé metralhadora giratória. Você nãopode se comprometer. Em certa oca-sião, depois de tantos anos comochargista, me questionei: ‘Porra,Lan, afinal de contas qual é a tua?Qual é a tua posição?’. E descobri aresposta, uma vez falando com oLuiz Carlos Maciel. Estávamos sen-tados no bar, os dois pensando domesmo jeito, aí o Luiz Carlos disse:“Lan, nós temos que fundar um par-tido de anarquismo de centro!”. Eusempre me considerei um anarquis-ta light, que não é de jogar bombasem ninguém. A não ser nesse mer-da do Cesare Battisti, um assassinocovarde que acabou protegido pelaJustiça do Brasil.

JORNAL DA ABI – AQUELAS CHARGES DOS

GORILAS MILITARES, FORAM PUBLICADA

ANTES OU DEPOIS DE VOCÊ VIAJAR PARA AITÁLIA? ELAS SAÍRAM NO JB?

Lan – Foi um pouco antes, masnão saíram no Jornal do Brasil... Sa-íram em um jornal alternativo. Eraum tablóide alternativo onde o Car-los Castelo Branco colaborava, e oVillas-Bôas Corrêa também. Eu fizaquela do militar com a sua estrelarefletindo no espelho como gorila,com a banana. Ou seja, não fui tãosutil.

JORNAL DA ABI – EM QUE MOMEN-TO VOCÊ ENTROU NO SEU PRÓPRIO

DESENHO COMO PERSONAGEM?Lan – Foi incrível. Como

sempre, há uma intuição.Quando faço uma coisa é res-pondendo a uma intuição.Esse baixinho começou ma-grinho e depois acabou do jei-to como está hoje. É Fla-mengo. É Portela. Temtudo a ver comigo. Gos-ta de mulher. Mesmovelhinho... (risos) Aí meperguntaram uma vez:“Lan, você não é alto, mastambém não é tão baixi-nho, por que se desenha as-

o quê? Há tantos erros... A Olívia,minha mulher, por exemplo, detes-ta o que sai na internet, quando seconsulta a minha vida no compu-tador. Não sei quem fez, mas bota-ram lá que eu sou casado com umapassista da Portela...

JORNAL DA ABI – ISSO TAMBÉM APARECEU

NA NOSSA PESQUISA...Lan – E é péssimo! A Olívia fica

morta de raiva. Porque ela foi umadas três Irmãs Marinho, que percor-reram o mundo inteiro. Que tive-ram até como coreógrafo o irmão doJim Carrey. Trabalharam em progra-mas famosos, shows de sucesso.Chamá-la de passista? Não dá, en-tendeu? Não é que eu faça pouco daspassistas, mas ela não é passista, ébailarina! E foi convidada por Fer-nando Pamplona para desfilar noSalgueiro com as três irmãs, assimcomo a Ana Maria Botafogo foi con-vidada também. Como era Merce-des Batista, que não era passista, erabailarina! Agora, essa referência saiem tudo que é lugar. Eu peço a vocêspara esclarecerem isso! Vamos fazeraqui essa correção histórica. DonaOlívia Marinho, mulher do Lan, nãofoi passista da Portela! E ela, em todocaso, se fosse mesmo passista, seriado Salgueiro! Erraram duas vezes...(risos). Ela era uma tremenda baila-rina! Dançava tão bem a Olívia...Quando comecei a namorá-la, na-quela época (neste momento, Lanaperta os olhos, como quem se esforçapara enxergar um pouco mais longe noarquivo da memória). Esse negócio denamorar. Veja só! Hoje em dia, vocêcomeça a namorar e vai para a camalogo! Por isso que os casamentos du-ram pouquíssimo. Qualquer casalaí, o camarada está de saco cheio damulher. Eu não tive medo da Olívia,porque conhecia o retrospecto. Sé-ria... Até hoje ela é para dentro, amaior dona-de-casa que existe. Acon-teceu que eu comecei a sair com ela.Foi ela quem me fez desistir de ir aCuba. Aí você vê a importância de

sim?”. Eu me faço baixinho porquesão as limitações da terceira idade.Qualquer mulher vira mulher de doismetros! Chegar lá não dá...

JORNAL DA ABI – E ESSE PERSONAGEM SURGIU

QUANDO?Lan – Em 1996.

JORNAL DA ABI – ENTÃO, JÁ É BEM MAIS

RECENTE... TEM SÓ 15 ANOS.Lan – Exatamente, bem mais re-

cente... E pegou. Você repara quenunca botei o nome dele, mas todomundo chamava de ‘Lanzinho’.Passou a ser ‘Lanzinho’ e eu nem meopus. Afinal de contas, eu fiz a ca-ricatura de tanta gente, nada maisjusto que eu faça a minha própria,ridicularizando todas as coisas queeu faço. Quer dizer, é uma autoca-ricatura realmente.

JORNAL DA ABI – NA PESQUISA, DESCOBRI-MOS QUE VOCÊ TEM IMPLICÂNCIA, NÃO GOSTA

DE SER CHAMADO DE CARTUNISTA, E SIM

CARICATURISTA.Lan – Eu não gosto, mas tenho

que aturar, pois foi um neologismoque pegou na imprensa. Vou fazer

Lan pede ao Jornal da ABIque se faça uma

correção histórica:sua mulher, Olívia

Marinho não épassista da Portela. “Ela

era uma tremendabailarina!” Na foto, as

famosas irmãs Marinhona década de 1960,com Olívia à frente;

Mary, atrás, eNorma, à direita.

Duas charges polêmicas de Lan: abaixo, umareprodução da arte da famosa caricatura do

Corvo Lacerda exatamente como foidesenhada. Ao lado, o gorila da ditadura.

REPR

OD

UÇÃ

O

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uma mulher. Um outro acidente depercurso. E eu com medo de casar,empurrando ao máximo. Uma vezfomos para uma boate... Eu meconsiderava um tremendo pé-de-valsa, um milonguero da Casa deCorrientes. Dançava tango pra ca-cete. Tirei-a para dançar e comeceia sentir que ela estava me puxando.Estava querendo dirigir o jogo, en-tendeu? De repente ela me dissemuito carinhosamente: “Olha o rit-mo”. O quê? Olha o ritmo? Foiuma ofensa pessoal. Até hoje, nuncamais dancei com a Olívia. Dançocom as irmãs, com a Norma, coma Jussara, com a Mari. Com ela,não. Ela deve ter achado muitoruim. Se livrou. O marido conduzi-do na dança? De jeito nenhum...

JORNAL DA ABI – AS CURVAS DO RIO DE JA-NEIRO MUITAS VEZES SE CONFUNDIRAM COM

AS CURVAS DAS MULHERES NOS SEUS DESE-NHOS. ISSO FOI UMA PERCEPÇÃO IMEDIATA

SUA? O RIO É UMA CIDADE FEMININA?Lan – Sempre. Quando eu ia à Úl-

tima Hora e morava no Leme, pega-va um ônibus, um lotação... Naquelaépoca era um lotação, para ir até àEstação Central. Era Leme–Centraldo Brasil. Cada vez que eu passavapela Praia de Botafogo me encanta-va. Se você observar, na curva ondepega a Rui Barbosa, é uma mulher.O Rio de Janeiro é uma mulherdeitada. Assim é como eu vejo a ci-dade até hoje. É uma mulher deita-da! A partir daí comecei a fazer o Pãode Açúcar sempre como uma mu-lher. Depois, morando no Leblon,olhando o Dois Irmãos. Porra, é ma-chismo isso aí. Deveria ser Duas Ir-mãs, entendeu? Ou Duas Lésbicas(risos). Entrelacei as duas irmãs emum abraço bonitinho e transformeiem mulher também. O que é a to-pografia carioca? Uma natureza ex-tremamente feminina.

JORNAL DA ABI – HÁ QUAN-TO TEMPO VOCÊ ESTÁ MORAN-DO AQUI EM PEDRO DO RIO,PERTINHO DE PETRÓPOLIS?

Lan – É casualidade, porque euqueria comprar um apartamentona Jandira, esquina da Delfim Mo-reira. Eram aqueles prédios antigosde três andares. Um apartamentomaravilhoso, espaçoso, tinha umasala em frente ao mar. Três quartosna Jandira. Eu queria comprar esseapartamento, mas venderam o pré-dio inteiro. Fiquei tão chateado! E aOlívia também. Naquela época jánão estava indo à Redação, ia aten-der na Maria Angélica. Um ano mo-ramos na San Martin, em um apar-tamento de frente, onde o sol entra-va direto. Dica aos leitores! Nuncaalugue ou compre um apartamentona San Martin ao lado da calçadamais perto do mar, em direção dolado esquerdo, porque o sol entra di-reto. Então, era ar-condicionado odia inteiro. Depois de um ano disse:“Olívia, não dá pé”. Inclusive, euestava com um problema de úlcera.Foi uma úlcera importada, trouxe daEuropa, da Itália. Tem tantos lancesde como voltei, porque eu voltei... Vir

nho, meu primeiro caseiro, tinhaum AeroWillys antigo e levou aOlívia até o centro de Pedro do Riopara telefonar. Era ainda aquele demanivela... Ela ligou para a Redaçãodo Jornal do Brasil. Era domingo, dei

uma sorte enorme, porque oWalter Fontoura não ia domin-go, mas estava lá. Olívia falou

com ele e o Walter mandou ime-diatamente um carro de reportagempara me pegar. Olívia avisou ao Sér-gio Carneiro, que era nosso médico,e me levaram direto para o Hospitalde Ipanema, que naquela época eramuito bom. Me botaram no CTI,fiquei dois dias levando bujões desangue. Não sei quantos litros tive-ram que botar. Anos depois eu leveium esporro do Sérgio Carneiro.“Lan, seu filho-da-puta, você entroumorto lá. Como você não percebeuque estava perdendo sangue?”. E eulá sabia que fezes pretas eram sinalde hemorragia? Não estava sabendodisso... A radiografia não tinha apon-tado nada, buraco nenhum. Depoisde quinze dias o médico me disse:“Lan, já que você está aqui, quer es-perar mais uma hemorragia ou pre-fere operar?”. Preferi operar. Desco-briram que a úlcera já estava aber-ta. Se o ácido clorídrico tivesse feitoo trabalhinho dele no pâncreas, eunão estaria aqui para contar essa his-tória para vocês. Foi a decisão certaque eu tomei, mais a sorte.

JORNAL DA ABI – VOCÊ DISSE QUE ESSA ÚLCERA

VEIO DA ITÁLIA. A QUE VOCÊ ATRIBUI ISSO?Lan – Eu chamava minha úlce-

ra de Sophia, em homenagem à So-

phia Loren, porque era bonita... Sa-canagem... (risos) Meu querido, eu,na minha vida, só penso em saca-nagem! Essa é a melhor coisa paravocê chegar aos 86 anos, pertinhodos 87, de bom humor. Esse negóciodo velho que não se cuida, do velhocoitadinho. Não, não. Velho coita-do? De jeito nenhum. Dou um con-selho a todos: sempre alegria e levea vida na brincadeira. Há certascoisas que fico indignado, aí eu es-quento... Adquiri a úlcera na Itália.A vida de um exilado é difícil, embo-ra tenha me antecipado... Eu meauto-exilei, não esperei pelos milita-res. Sendo estrangeiro, mesmo sen-do casado, mas sem filhos, estavasujeito a ser mandado embora doBrasil. E quando você era mandadoembora, era muito mais difícil con-seguir voltar. Esse medo que eu ti-nha de não poder voltar ao Rio de Ja-neiro fez com que eu me mandasse.Fui embora. A minha família na Itá-lia me ajudou bastante. Mas quan-do veio a Olívia, embora teoricamen-te ninguém tivesse preconceitos...Bom, teoricamente, entendeu? Mui-to gentis, muita cerimônia, mas vocêsente que está sendo aceito à revelia.E eu, expor a Olívia, a minha Olívia,a qualquer tipo de desagrado que elapudesse receber, nem pensar! Aí meafastei da minha família. Isso é ver-dade. Me afastei e aceitei um convi-te de Samuel Wainer para ir a Paris,para fazermos juntos um jornal queera dedicado ao Brasil e feito lá.

JORNAL DA ABI – ISSO FOI EM 1967?Lan – Em 1966.

JORNAL DA ABI – UM ANO ANTES DE VOCÊ

VOLTAR?Lan – Exatamente. Esse é um

trauma pelo qual não se passa im-punemente, não é? Rompimentocom a família. Fiquei afastado dafamília, da minha mãe, por doisanos. Foi um negócio muito chato.

JORNAL DA ABI – E A EXPERIÊNCIA EM PARIS?Lan – Lá entrei em uma agência

de notícias, Inter Press Service, queera uma agência para a AméricaLatina, onde eu escrevia em espa-nhol, em castelhano...

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESCREVE TAMBÉM?Lan – Escrevia, porque agora não

enxergo nada. Agora virei analfabe-to. Ganhava 300 dólares. Aí encon-trei o Guilherme Figueiredo, irmãodo João Figueiredo, mas era épocaainda do Costa e Silva. Ele me per-guntou: “O que você está fazendoaqui em Paris?”. “Tive que me man-dar”, expliquei a ele. “Eu vou ver oadido militar aqui”, ele disse. Essafigura era o Coronel Afonso Albu-querque Lima, que por sinal detes-tava o João Figueiredo. “Eu vou teapresentar ao Coronel”, prometeuo Guilherme. Foi ele que me apresen-tou ao Adido Militar lá da Embaixa-da de Paris. Chega o cara, bem mili-co. “Por que motivo o senhor está aquiem Paris?”. Respondi: “Coronel, euestou aqui em Paris por uma razãosimples, eu trabalho na imprensa, eufaço charges. Charges políticas. Eununca joguei pétalas de rosas em nin-guém. Eu não tenho nada pessoalcom o senhor, nem contra o Presiden-te Costa e Silva... Não tenho nada.Mas tenho que criticar, tenho queachar ruim as coisas que acho ruimdo lado administrativo.”

JORNAL DA ABI – NESTE MOMENTO VOCÊ

ESTAVA EXERCENDO AQUELA LIÇÃO QUE OSEU PAI TE DEU LÁ ATRÁS?

Lan – Exatamente aquela lição:seja sincero, fale a verdade. Dissetudo isso. O Coronel me disse: “Vouver o seu caso, volte daqui a quinzedias que vou lhe dar uma resposta”.Quando eu cheguei na porta parasair, virei e disse: “Coronel, há umdetalhe que o senhor vai saber, claro,como Adido Militar. O senhor seráinformado de que eu sou amigo do Sa-muel Wainer, que sou amigo do RaulRyff, assessor do Jango Goulart, quesou amigo do Darcy Ribeiro. Ou seja,eu pergunto ao senhor, numa situ-ação assim, se fossem seus amigos,o senhor viraria as costas para eles,fingiria que não mais os conhecia?”.Ele ficou pasmo, olhou para minhacara e acabou dizendo: “Gostei dasua sinceridade, obrigado, vá embo-ra”. Me chamou quinze dias depois.“Pode voltar ao Brasil quando qui-ser”. Eu queria voltar como cidadãobrasileiro. Fui ver no Consulado e ti-nha uma ministra, que me indagoucom espanto: “Você quer deixar deser italiano para ser carioca?”. Fiqueiuma fera. “Me desculpe, a senhoraestá aqui para divulgar o Brasil paraos franceses, não é para fazer a pro-paganda para mim. Porque eu pre-

para a serra foi idéia da Olívia: “Lan,por que não procuramos em volta doRio uma casa, um sítio?”. Começa-mos a procurar, subir a serra, vimosuma casa no Vale do Cuiabá, quegraças a Deus não comprei. Meu anjoda guarda sempre me protegeu...

JORNAL DA ABI – PORQUE ELA NÃO EXIS-TE MAIS...

Lan – Foi destruída pelas chuvasque arrasaram a região serrana. Aí,compramos esta, que a Olívia tornouum paraíso. Fizemos uma reformana casa, que ela idealizava e eu, comoantigo, ex, quase arquiteto, desenha-va e fazia os cálculos. E moramosaqui desde 1974. Foi quando fui ope-rado da tal úlcera urgente. Mas foiuma sorte, porque estava tendo he-morragia interna e não sabia. Eu fi-cava na cama, lendo, lendo, lendo,passaram quatro dias, domingo, caíno sono e não consegui mais me le-vantar. Olívia levou um susto enor-me. Foi sorte. Tínhamos carro, masnão tínhamos motorista. O Agosti-

“Eu, na minha vida, só penso em sacanagem!Essa é a melhor coisa para você chegar aos 86 anos,

pertinho dos 87, de bom humor. Esse negócio dovelho que não se cuida, do velho coitadinho.Não, não. Velho coitado? De jeito nenhum.”

45Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

firo ir para o Rio de Janeiro”. Vejavocê! O Samuel foi para a Grécia, eme pediu para ficar no apartamen-to dele em Paris. Então, no aparta-mento do Samuel, eu pude convidaros chefes de arte do Paris Match e doJournal de France. Foram lá em casa,viram meus desenhos. Disseram:“Por que você não fica em Paris? Vocêtem toda chance de entrar no ParisMatch. Mas você tem que ficar emParis”. E eu: “Não posso mandar osdesenhos? Do Rio de Janeiro eu nãoabro mão!”. Se tivesse naquela épocacomputador, e-mail, poderia até tertrabalhado para eles. Mas eles faziamquestão de que eu ficasse em Paris.Recusei. Nunca traí o Rio de Janeiro.

JORNAL DA ABI – QUAL É O SEU ESQUEMA

HOJE DE PRODUÇÃO? VOCÊ MOSTROU O

DESENHO DO BATTISTI, QUE SAIU HOJE, EM

O GLOBO. COMO É QUE VOCÊ PRODUZ?Lan – As máculas não estão boas.

Eu não enxergo mais. Enxergar parafazer um desenho grande, desse ta-manho, eu faço (mostra um quadro dotamanho de um pôster). Mas, num ta-manho menor, nem pensar. Então,como eu tenho um arquivo enorme,reprocesso algumas coisas. Pensaquantos desenhos eu tenho! Até oZiraldo, outro dia, estava me dizen-do isso. “Lan, você não tem idéia dequantos milhares de trabalhos vocêfez em tantos anos”. É verdade! São68 anos de imprensa. Não sei mes-mo. Às vezes, pego um pedaço dedesenho, vou no computador... Ali-ás, eu não! Esse aparelho aí (apontapara o computador, no canto da sala),nem sei como é! Vem minha sobri-nha me ajudar. Eu digo “faz assim,assim, assim” e monto desenhosnovos a partir de desenhos antigos.Esse é o sistema. Fazer desenhosnovos com desenhos velhos.

JORNAL DA ABI – POUCOS DESENHISTAS

GUARDAVAM OS ORIGINAIS, DAVAM IMPOR-TÂNCIA A ELES. NÃO EXISTIA ISSO. VOCÊ

SEMPRE OS GUARDOU?Lan – Eu fiz campanha contra o

original pertencer ao jornal. Eles,nas regras do mercado, pertenciamao jornal. Eu sempre disse não.Quando entrei no Jornal do Brasil, eulogo falei com o Alberto Dines, quefoi quem me convidou, que os origi-nais seriam meus. Porque em Bue-nos Aires fizemos isso. O dono dooriginal é o autor! O direito de pu-

blicação, desde que exista um con-trato de acordo, é do jornal. Certo?Agora, o original é meu. Por exem-plo, do que foi publicado no Jornal doBrasil, é tudo meu.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TEM ESSES ORIGI-NAIS DO JORNAL DO BRASIL GUARDADOS?

Lan – Alguns. Porque eu tive maisde quatro mil. Eu devo ter uns 500,no máximo. Até o Senado me man-dou um cd com todas as charges queeu fiz da época do Sarney.

JORNAL DA ABI – O SENADO ENVIOU ISSO

PRA VOCÊ?Lan – Sim, me mandou um cd

com todas as charges. E como eu es-culhambei o Sarney! Vou dizer umacoisa: há uma diferença entre mime os chargistas atuais, inclusive ospróprios Chico e Paulo Caruso, oAroeira, o Ique. Eles fazem gozação.É mais gozação sobre o fato em sido que uma crítica. Eu sempre fuimais crítico. Na Última Hora mechamavam de o chargista mais cruelque apareceu no Rio de Janeiro. Sé-rio. Não era agressivo. Mas desenha-va mesmo para criticar os fatos.

JORNAL DA ABI – QUAL A SUA RELAÇÃO COM

ESSA GERAÇÃO DE CARTUNISTAS POSTERI-OR À SUA?

Lan – Uma vez eu vi na revistaDomingo – eu já tinha saído do JB –uma caricatura sensacional do TimMaia, do Ique, que é outro dos meus“filhos”. Fui eu que o coloquei no Jor-nal do Brasil, assim como o fiz com

o Chico Caruso. Assim como boteiem São Paulo o Otávio. Sou “pai” detodo mundo. Sobre a caricatura doTim Maia, eu sempre gostei de dei-xar um bilhetinho para a garotada.“Muito bem, Ique, achei sensacio-nal essa sua caricatura”, escrevi. Aíme chama o rapaz do computador:“Você gostou, Lan? Quer ver comoele fez?”. E ele me levou para o com-putador, botou a foto do Tim Maia,puxou o beiço, fez a cabeça de pêraque ele tinha. Exatamente a carica-tura que eu tinha elogiado. Aí ras-guei o bilhete e escrevi outro. “Ique,você é muito melhor sem o compu-tador”. (risos)

JORNAL DA ABI – VOCÊ TRABALHOU NOS

MAIORES JORNAIS, NOS MAIS IMPORTAN-TES, TANTO NA ARGENTINA QUANTO NO

BRASIL E NO URUGUAI.Lan – No Uruguai, no maior, até

hoje. O maior jornal. Na Argentina,na Editorial Haynes, que era a maisforte de Buenos Aires. Jornal Vesper-tino e Noticias Gráficas, que juntocom o La Nación, eram os mais for-tes. Aqui no Brasil, no Última Hora,fui de O Globo em 1955, mas eu nãome dava com o irmão do RobertoMarinho. Ele também não me su-portava, porque eu ia no jornal àsonze horas da manhã e a oficinafechava a uma. Então, ele queriamostrar que eu precisava chegar àssete horas da manhã, como chega-va o Theo. Mas o Theo tinha que iràs dez horas ao Ministério da Edu-cação, onde trabalhava. Por isso queia às sete horas. Ele pretendia queeu chegasse às sete horas como oTheo. Eu disse não. Sempre me cri-ava um caso. Eu disse: ‘A minha de-missão está às suas ordens’. E ele mematava a pau, porque me botava25, ou 30 caricaturas, para mostrarque eu tinha que chegar cedo. Faziaas 30, porque eu fazia caricatura navelocidade. Toda a semana eu faziaum time de futebol inteiro, em co-

res, na Manchete Esportiva.Eu matava a pau na-quela época! Então,não atrasava o jornal,porque o grande argu-mento dele era “o Lanestá atrasando o jor-

nal”. E não conseguia fa-zer. Então, na última vez, eu

fui falar com o Dr. Roberto. “Olha,Dr. Roberto, não dá mais. Eu estou

nuar desse jeito”. E dei-xei o jornal. Eu tinhaainda a metade do déci-mo-terceiro. Viajei paraMontevidéu, fiquei doismeses lá no Uruguai,aproveitei fui a Puntadel Este, fui até BuenosAires. Quando volteiestava duro e sem em-prego. O que eu fiz?Como sempre. O pes-soal do Diário da Noiteme chamou. Tinhamassumido a direção unstrês gaúchos que depoisfizeram o Zero Hora dePorto Alegre. Imediata-mente eu fui contrata-do. Mas tinha o Carna-val. O que posso fazer?Estava chegando antesdo Carnaval. Não po-deria aproveitar? Esta-

va sem um puto! Passei no jornal OGlobo, onde encontrei o MárioMelo, grande amigo da Administra-ção. E me diz o Mário: “Antes de fa-lar em grana, quero dizer que nãoposso te entregar, sem antes falarque o Roberto não aceitou a sua de-missão. Antes de você ir embora, elequer falar com você”. Eu digo ‘Não.Vamos fazer uma coisa? Enquan-to estiver o irmão dele, negativo. Eunão sei trabalhar com alguém quenão gosta de mim. O Roberto podegostar, é o dono, mas deixa para lá’.Fui embora. A segunda parte domeu décimo-terceiro deixei lá. Faleicom os gaúchos que precisava deuma grana antecipada. Me anteci-param, fui brincar o Carnaval e saína minha Portela. A vida é muito lin-da, sabe? É cheia de coisas assim. OChateubriand era tão filho-da-putaque chegava no sábado, eu e o Ma-neco Müller, na fila de espera do valedo fim de semana, o Chatô chega-va e perguntava: “Quanto tem nocaixa?”. Tanto. “Manda”. E fodam-se os empregados! A gente ficavasem grana. Eu me lembro que a pri-meira caricatura que eu fiz foi noDiário da Noite, era uma página in-teira, e eu mesmo paginava emuma forma mais moderna. Um dia,eu fui lá na oficina ver como mon-tava no chão a minha página e oscaras já eram uns velhos funcioná-rios dos Associados. Eles comentan-do uns com os outros: “Esse filho-

me demitindo porque o seu irmãoquer que eu chegue às sete horas damanhã. E às sete horas da manhãeu vou dormir, porque eu tenho di-reito a passar a minha noite”. ORoberto Marinho era maravilhosoe disse: “Você é um boêmio, né? Fazuma coisa, não vem na Redação,mas me manda sempre a caricaturada primeira página”. Que era a ca-ricatura de um político, estrangei-ro, como sempre. Foi muito bacanacomigo. Aí o que aconteceu? O Dr.Roberto viajou num fim de ano ecomeçaram a boicotar os meus de-senhos. Eu trabalhava com SérgioPorto e Haroldo Barbosa, que faziaO Pangaré, em O Globo. Eu manda-va meu desenho junto com O Pan-garé todos os dias, e não saía publi-cado. O Roberto voltou. E viu quemeus desenhos não tinham apare-cido. Então, telefonou para o Harol-do Barbosa e falou: “Escuta, eu deitodas as mordomias ao Lan e elenão manda os desenhos?”. E o Ha-roldo: “Não. O desenho do Lan é en-viado todos os dias junto com O Pan-garé para O Globo”. Dizem que o Dr.Roberto deu um esporro daquelesna Redação e apareceram todos osdesenhos. Ele viaja outra vez, e acon-tece a mesma coisa. Aí eu digo:“Não, não dá pé!”. Então, fiz umacarta para o Dr. Roberto. “Olha, eulamento muito, foi um orgulhopara mim trabalhar com você, maseu não tenho condições para conti-

Lan criou este jornalistaimpertinente que, emsuas charges, semprefazia a perguntaincômoda. Acima, maisalgumas charges políticas.

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da-puta, olha o que inventou ago-ra! Tem que recortar todo esse dese-nho aí. Só pode ser viado!” E eu ou-vindo isso. Outra coisa que me acon-teceu. Fiz uma capa de disco doJorge Veiga, ele com uma lata depintura e uma escada de pintor,porque ele foi pintor antes de tor-nar-se artista. Foi a Copacabana queme pediu a capa desse disco e eu fizcomo eles me pediram. Ficou atéuma caricatura legal. Passaram unsanos, estou na Redação do Jornal doBrasil na Avenida Brasil e aparece oJorge Veiga. Ele bem bravo, diz: “Lan,você é o maior caricaturista do Bra-sil. E você sabe que o meu apelido éo Caricaturista do Samba. Então,não há nada melhor no mercado. Eé um pedido que faço a você, parafazer a capa do meu mais recente lp”.Respondi que faria com o maiorprazer, um pedido feito por ele. “Masvou te pedir um favor... Tem um fi-lho-da-puta, viado, escroto, que mefez com um balde de pintura e umaescada, num outro disco meu. Essecara não precisava fazer aquele ne-gócio”. E eu, fingindo espanto: “Fi-zeram isso com você, Jorge? É mui-ta sacanagem”. (risos)

JORNAL DA ABI – COMO ERA VIVER NAQUELA

REDAÇÃO DO JORNAL DO BRASIL?Lan – Eu adorava ir à Redação da

Avenida Rio de Branco, porque eraum clube. Era maravilhoso. Primei-ro o prédio, que deveriam ter proibi-do o Nascimento Brito de derrubá-lo, para ganhar gabarito de quarentae quatro andares. O Chagas Freitasabriu mão do gabarito, foi o Nasci-mento Brito que fez derrubar esseprédio. Filho-da-puta. O velho Jor-nal do Brasil foi-se. Em troca de ondeestá o BankBoston.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TRABALHOU COM

O DINES, UM CRAQUE, JÁ EXPERIENTE NA-QUELA ÉPOCA. E QUANDO ESSE PESSOAL

NOVO CHEGAVA, TIPO CHICO CARUSO?Lan – O Chico Caruso, eu trou-

xe de São Paulo, em 1979.

JORNAL DA ABI – VOCÊ O CONVENCEU A VIR

PARA O RIO?Lan – Não, ele chorou quando eu

convidei. Eu vi uma caricatura doChico, do Figueiredo, na IstoÉ. Euestava louco para me livrar dascharges políticas já naquela época.Quando eu voltei da Europa, volteia fazer charges, veio o AI-5... Foi apior época. No período do AI-5, eufazia charges diárias. Eu tive queinventar personagens mal-humo-rados, que representavam a minhaúlcera. Era Cagliostro. Tinha dadoo nome do personagem de Caglios-tro. Durante um ano eu fiz charges,tinha que estar presente na reuniãode editores com o Nascimento Bri-to. Na Redação, eu tinha ataques deúlcera incríveis com o nervosismo.Enfiava o dedo na garganta, vomi-tava, tirava o ácido. Foi assim queesculhambei completamente o meuestômago. Mas durou um ano, con-sultei um médico e ele falou: “Lan,você quer continuar fazendo graci-nha ou quer morrer?”. Aí eu falei

com o Dines: ‘Estou numa situaçãoem que charge todo dia não possofazer’. “Tudo bem, então. Faz umacoisa, escolhe um parceiro para al-ternar com ele. O espaço é teu, vocêfaz o que você quiser”, respondeu oDines. Eu escolhi o Henfil, mas elemandava cinco charges e tínhamoscensura dentro da Redação. Eramonze militares que queriam cen-surar o jornal sempre. O queacontecia? Me procu-ravam por todoo Rio de Janeiro,para fazer a charge no lugar da doHenfil, que não havia sido aceita.Nenhuma do Henfil passava! Pas-saram-se seis meses, eu me enchi.Gostava imensamente do Henfil.Ele me disse: “Lan, não dá pé. Vouficar fazendo o meu Cangaceiro noCaderno B, mas me tira da charge po-lítica, porque não dá pé. Acabo fa-zendo cinco, seis, sete e são todas re-jeitadas”. Ele saiu e o Dines me per-guntou: “E agora? Como é que é?”.Tive que chamar o Ziraldo. Há outrasversões por aí, mas, de verdade, quemdeu a chance ao Ziraldo quando eleveio de Minas fui eu. Eu carreguei osdesenhos do Ziraldo para a Manchete,para mostrar.

JORNAL DA ABI – VOCÊ ABRIU PORTAS PARA

MUITOS COLEGAS, MAS SEMPRE FOI UM CARA

DISCRETO, NÃO É?Lan – Eu não gosto de estar em

todos os eventos, em todas as coi-sas. Eu não procuro a mídia. Vocêsme procuraram para fazer essa en-trevista, mas eu não procurariavocês. Eu não procuro, não procu-ro. Eu gosto de ficar no meu canto,tranqüilo. O que sempre digo é queo que deve aparecer não é a minhacara, e sim o meu trabalho. Para opúblico, é o que interessa saber.Agora, então, que estou com essacara de velho, escroto... (risos). Nãoé por aí, não é o meu temperamen-to. Me falam: “Lan, você precisa apa-recer mais”. Me deixa quieto! Ago-ra então tenho uma desculpa ma-ravilhosa, que eu não enxergo. Por-que eu vou a algum evento desses enão reconheço a cara de ninguém. Eunão vejo o teu rosto. Daqui, de ondeestou sentado, eu não vejo o teurosto. Chega a ser engraçado, por-que eu que vivi de caricatura a vidatoda hoje em dia não consigo maisfazer uma caricatura como essa,pois não enxergo. Não vejo as fei-ções. Não posso guardar as feiçõesna memória. A minha vida comocaricaturista acabou. Por isso, pre-firo usar o pastel. Porque o pastel éuma forma, como diria, quase nes-se estilo do tempo da Belle Époque,impressionismo. Curioso, agora queeu não enxergo os caras pegammeus trabalhos nessa linha e dizem:“Ah, bom. Agora você pode entrar nomercado de artes plásticas”. Vai to-mar no cu, porra! Em tinha 23 anosna época, já estava trabalhando noNoticias Gráficas e um desenhistavelho, figura, disse “Lan, você vai seconformar em ser caricaturista avida toda?”. Eu disse: ‘Olha, o dia emque eu me considerar realmente um

caricaturista será a maior felicidadeda minha vida’. E hoje em dia eutenho a sensação, mesmo não tra-balhando mais com caricatura, asensação do dever cumprido. Quecumpri comigo mesmo. Eu nuncafui ambicioso. Nunca corri atrás degrana. Grana para mim não foiuma meta, foi sempre um meio.Um resultado do trabalho, de poderme dar o prazer de sustentar umsítio como este, que é uma coisa ri-dícula, dois velhos, eu e minhamulher, sem filhos e com um ca-chorro para sustentar. Aliás, umLabrador maravilhoso, que já des-truiu meia casa. E o curioso é que elenasceu no dia 11 de setembro do ano

passado. Ainda bem que eu não te-nho duas torres, pois ele já as teriaderrubado! (risos). Come tudo! Comecouro, é uma coisa impressionante.Destruiu o sofá...

JORNAL DA ABI – E AQUELES SEUS AMIGOS

MAIS ANTIGOS? NÁSSARA, ÁLVARUS?Lan – O mais antigo de todos os

amigos que eu tive foi o Otelo Ca-çador da Silveira, autor do Pênalti,durante 30 anos em O Globo. NosJogos Pan-Americanos, em BuenosAires, em 1950, foram jornalistasbrasileiros e eu conheci Otelo, queera desenhista do Jornal dos Sportstambém. Veio com o Geraldo Ro-mualdo, que era também do Jornal

dos Sports. Aí fizemosamizade, comecei a levá-lo aos ca-barés. O tempo todo que esteve emBuenos Aires estive com ele. Nanoite anterior de ele ir embora, fo-mos para o café na Calle del Carlis-ta. Sempre parava lá. Aliás, tem umepisódio que tenho que contar paravocês. Justamente nesse café, naCalle de Sarmiento y Callao. Come-çamos a beber pilhas e pilhas de cho-pe. Estava nessa altura (faz um gestocom a mão elevada), o Otelo pega mi-nha mão e diz: “Neste lugar sagra-do, você vai prometer uma coisapara mim. Se algum dia você formorar no Brasil, você vai torcer pelo

Flamengo”. Eu prometi, a partirdesse dia, se for ao Brasil algum

dia, já chego Flamengo. Foi as-sim que eu cheguei Flamengo.

Aí o Samuel Wainer me mandapara São Paulo e vem o Milton Peru-zzi, filho de italiano e me diz: “Qualé o seu time? Vai torcer por quem?”.Digo “Flamengo”. “Mas como Fla-mengo? Porra, você é italiano. Vocêtem que torcer pelo Palestra!”. Que-rido, eu só respeito o que eu prome-to. Eu prometi que iria ser Flamen-go e sou Flamengo. O segundo a meesculhambar foi o Nélson Rodri-gues, daquele jeito trágico: “Tu ésum traidor da pátria. Você está repu-diando as cores do teu país. Verme-lho, branco e verde. As cores do glo-rioso Fluminense”. Com cara denojo, me atacava: “E você é um ru-bro-negro. Você, um rubro-negro”.(risos). O Nélson era do caralho! Temtantos lances dele na minha vida.

JORNAL DA ABI – CONTE UM CASO PARA NÓS...Lan – Eu ia muito a São Paulo,

sempre, na Redação de Última Hora.Ia muito lá. O Nélson escrevia daRedação, no Rio, com máquina de es-crever, A Vida Como Ela É. Ele nuncapagou um cafezinho para mim, mastodo dia eu pagava um cafezinhopara ele. “Amigo, soube que você vaipara São Paulo”, me disse um dia. “Euvou”, respondi. E ele: “Porque eu vouter que ir a São Paulo para a estréiade A Falecida”. Era a peça dele, né? Eudisse: “Beleza, já estou com minhapassagem, vai lá e pega a tua”. Eleolhou para minha cara e disparou:“Você é um argonauta. Então, vocêtroca a oportunidade de ficar setehoras e meia num ônibus, batendopapo com o seu amigo Nélson? Éadepto dessa desmoralização da dis-tância que é o avião, que faz o per-curso em 45 minutos?!! Por favor,Lan!”. (risos). Resultado: fomos deônibus. Foi o melhor papo que tiveem minha vida com alguém. Inteli-gente, sendo um humorista sem sa-ber que era humorista, porque ele nãofazia ‘humorismo’. Era um humo-rista nato. O engraçado foi que, naviagem, entre tantas perguntas, fiza ele uma bastante delicada. E melembro da resposta. O Jânio Quadrostinha sido eleito, não me lembro seprefeito ou governador de São Paulo.Perguntei: “Nélson, o que você achado Jânio?”. “Tenho antipatia dos ho-mens honestos. A simpatia é a armados safados. A simpatia é a arma dos

“O dia em que eu me considerarrealmente um caricaturista, seráa maior felicidade da minha vida.

E hoje em dia eu tenho asensação do dever cumprido.”

A caricatura de Zico parece sairda página do jornal. Abaixo, o

poetinha Vinicius de Moraes.

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malandros. Por que, como é que elesvão fazer a safadeza que eles fazemse não for através da simpatia?”.Muitos anos depois, ao ver o Lula,eu me lembrei dessa frase, pois achoo Lula o maior ‘malandro’ que apa-receu neste País. Vocês podem atégostar dele, não tenho nada contra.Nunca discuti e nunca vou brigarcom um amigo por causa de polí-tica. Eu agora tese nho duas razões.Como italiano, fazer o que ele fez,defendendo o Battisti. E, como apo-sentado, porra, ele vetou o reajuste!Recebo a metade do que pagueidurante anos, que equivaliam a dezsalários. Eu recebo dois mil e pouco.É uma sacanagem.

JORNAL DA ABI – E QUAL É A SUA VISÃO SOBRE

A PRESIDENTE DILMA?Lan – Uma coisa

que eu acho errada, aPresidente da Repú-blica é de todos os bra-sileiros, não é Presi-dente do PT! É o queeu diria para a DonaDilma, que por en-quanto está muitopresa. Ela já está co-meçando a descolarde tudo isso. Reapa-receu. Por que reapa-receu? De volta como negócio do mensa-lão, dos 43 indiciados.Isso voltou à tonacom a Dilma, que pa-rece mais disposta acombater e punir abandalheira. Enquan-to estiveram o Lula, Palocci, ficoutudo encoberto. Ele nunca soube denada, coitado... (risos). Não estavainformado de nada. Agora, aconte-ce uma coisa que, infelizmente,quem recebe o bolsa-família, vai vo-tar em quem? Óbvio. Apesar de queo bolsa-família não é o presidenteque dá, é o nosso dinheiro, dos nos-sos impostos. Por isso é que o Bra-sil é o país onde se paga mais impos-to no mundo. O dinheiro, pelo regi-me presidencialista, vai todo para obolso do Presidente, que distribuicomo ele quer. Haja vista o que de-vem para os Municípios. Essa Câ-mara dos Deputados e o Senadoatual são uma vergonha. Foi todatroca de cargos, do primeiro, segun-do e terceiro escalões. Quarto e quin-to escalões. Família, primo, neto,entrou de tudo. É uma vergonhaisso! São essas coisas que me afas-taram da charge política, inclusive.

JORNAL DA ABI – O JOGO POLÍTICO FICOU

AINDA MENOR...Lan – Piorou muito a qualidade.

Estou falando de idéias. Você podiadiscordar de um Heitor Beltrão, po-dia discordar de um Afonso Arinos,podia discordar de um RobertoCampos. Mas eram figuras de pri-meiríssima categoria. Tinham o di-aleto. Tinham conhecimento e ar-gumentos.

JORNAL DA ABI – HOJE QUEM DITA O DEBA-TE DA DIREITA É O JAIR BOLSONARO...

Lan – Tem mais uma coisa: vocêadmite um Presidente dizer publica-mente que não leu um livro porqueuma só página dá sono nele? Quemdisse isso foi o Lula! Que exemplo éesse? É claro que ele passa por cimada Constituição, porque não deveter lido nenhuma página da CartaMagna. Ele se acha acima do beme do mal. É de uma soberba impres-sionante. Mas eu digo que entendoo fenômeno Lula. Eu vi uma entre-vista dele com a Regina Casé, ma-ravilhosa, ele ao natural. Ele é deuma comunicação, é um sujeitoextremamente agradável. Ele se co-munica muito bem, não tem fres-cura. Ao ponto de que um dia, emuma entrevista, eu disse, sincera-mente, que gostaria muito de terum Lula como companheiro nomeu botequim. Porque ele, comofigura de botequim, é daquelas figu-ras que têm casos e contos, você ri.E tomar umas e outras com ele deveser isso aí. É minha opinião. Por issoque todos os sambistas são a favordo Lula. Zeca Pagodinho adora ele.Monarco adora ele. A Surica gostadele. Todos eles gostam do Lula. Elestêm mais é que gostar, porque nãoacompanham esse lado podre dapolítica. Eu, infelizmente, pelo víciode acompanhar política, por causadas charges, acompanho tudo. Souviciado nisso. Fico ansioso de ver aprimeira página, que vou soletran-do, só para ver a manchete do jornal.Por exemplo, a de ontem me deu es-

perança na Dilma, porque estámostrando caráter. Ela aturou o ne-gócio e mandou para o Supremo,onde só foi nomeado petista. Amaioria do Supremo Tribunal é doPT. Não sei se vocês sabiam. Aí ga-nhou de seis a três o negócio doBattisti. A Dilma teve que lavar asmãos para não tomar uma atitudepessoal e dizer ‘vai embora’. Porqueela recebeu a carta do Presidente daItália, caralho! Na Itália, o clima éde indignação. Eu que acompanhoa Rai, vejo a revolta de lá. La Stam-pa, de Turim; Corriere della Sera; IlMessaggero; La Nazione, de Florença.Todos os grandes jornais arrasandocom o Brasil. E tem gente propon-do no programa de televisão nãomandar a Seleção Italiana de futebolpara a Copa do Mundo, nem atletaspara as Olimpíadas, a serem realiza-das no Brasil. O mal que o Lula fezaos brasileiros que estão lá... Brasilei-ros que estão sendo vaiados. Por se-rem brasileiros? Os brasileiros nãotêm culpa nenhuma. Foi uma caga-da. E, sobretudo, uma coisa que nãose perdoa. O Lula cagou em cima deuma colônia de italianos, de imigran-tes, que fizeram muito pela riquezado Brasil. Embora tenha italianopetista, como o Palocci, que é descen-dente de italiano. E vem o SenadorSuplicy, falando: “Não, estive com oCesare Battisti, e eu falo de cadeira,porque sou descendente de italianos,eu acredito nele e na sua inocência”.Ele merecia a Marta!

JORNAL DA ABI – ALÉM DESSE CASO DO

BATTISTI, O QUE MAIS TE TIRA DO SÉRIO?Lan – Dei uma resposta atraves-

sada em uma entrevista coletivacom jornalistas argentinos. Era sómulher. Só repórter mulher. E tinhauma lourinha na minha frente. Sabeaquela portenha bem nojentinha?“Me gustaria preguntarle como espossible un porteño ser carioca?”.“Um carioca ser porteño? Por favor”,respondi, para explicar. “Isso não éuma boa pergunta porque você seesqueceu de um pequeno detalhe,minha filha. Eu sou italiano. E itali-ano, aonde vai, um mês depois, se forno Sul do Brasil, vai passar a tomarmate todos os dias. O italiano seadapta. Se for ao Japão, só vai comerde palitinho, caceta! Por isso, vou lhedizer uma coisa, é muito provável amesma pessoa ser portenho, porquefui portenho na época que moravaaqui na Argentina. Como sou cario-ca, com muito orgulho, agora no Riode Janeiro”. Pronto! Fudeu-se! Ela nãoesperava por essa resposta. Foi umapergunta tão antipática...

JORNAL DA ABI – VOCÊ, QUE MOROU LÁ:OS ARGENTINOS TÊM REALMENTE ESSA

ANTIPATIA PELO BRASIL?

Lan – Olha, eu fiz grandes ami-zades. Os cinco anos que passei emBuenos Aires foram maravilhosos.Morando lá. Agora, quando o por-tenho sai de Buenos Aires e vai paraoutro lugar, aí acha que BuenosAires é a maior cidade do mundo. Eume lembro que nos primeiros tem-pos que passeava pela AvenidaAtlântica, época de turista, eu dife-renciava logo. Sabia qual era o turis-ta uruguaio, qual era o turista por-tenho. O uruguaio dizia: “Miracomo es bueno. Mira qué maravilla!Qué lindo!”. E olha que o Uruguaitem praias maravilhosas! E BuenosAires tem Las Ramblas, onde hojeem dia melhoraram porque bota-ram o porto. Os portenhos diziam:“Eso que es Copacabana? Tenemosel Mar del Plata. No se compara”.Desse jeito! (risos)

JORNAL DA ABI – O HUMOR É TRAÇO MAR-CANTE NÃO SÓ DE SEU DESENHO, MAS DA

SUA PERSONALIDADE. VOCÊ É FELIZ?Lan – Estou na quarta idade, por-

que a terceira já passou, né? Sou feliz,bem humorado, continuo com hu-mor, de bem com a vida, gostando dasmulheres. Embora tenha tirado otime de campo... (risos). O que euvou fazer? Lei da vida. Mas nãodeixo, virtualmente, de me exerci-tar... Esse negócio de virtual é umequívoco! Que prende, hoje em dia,principalmente as mulheres. Tenhovárias amigas da minha idade quesonham com príncipe ainda, ficamnamorando no virtual, na internet...

JORNAL DA ABI – NÃO HÁ NADA MAIS VIR-TUAL DO QUE A CABEÇA DA GENTE, NÉ?

Lan – Pois é isso! O virtual é a nos-sa cabeça. É onde nós mandamos.Ninguém entra. Eu posso falar comuma mulher: ‘Olha, eu vou pracama com você todas as noites, evocê não sabe’. O homem pode tran-sar com uma mulher, e ela nem sabe!Porque a nossa cabeça é o único lu-gar livre, totalmente livre, de quenós dispomos. É a nossa cuca!

A série Álbum de Retratos, editada pela Memória Visual e Edições FolhaSeca, é composta por pequenos e simpáticos livros que contam a história depersonagens da cultura brasileira através de suas iconografias. As imagenspropiciam belos projetos gráficos e os textos dos livros são econômicos,quase textos-legendas escritos por autores não menos famosos. O livrosobre o Lan, Lanfranco Vaselli, escrito por seu amigo, o ator e boêmioAntônio Pedro, pode ser encontrado nas livrarias e lojas virtuais ao ladodos outros títulos da coleção: Cacá Diegues, por Nelson Sargento; WalterFirmo, por Cora Rónai; Dona Ivone Lara, por Zélia Ducan; Jards Macalé,por João Pimentel e Turíbio Santos, por Hermínio Bello de Carvalho.

Maissobreo Lan

Lan mostra, encantado, o seu Rio deJaneiro feminino, a cidade repleta de

curvas. Abaixo, um trabalho recente dáo tom da antiga boemia carioca.