jornal da abi 367

52
Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa 367 J UNHO 2011 PÁGINAS 22, 23, 24 E 25 NELSON WERNECK SODRÉ O centenário do general vermelho, um visionário do Brasil que ainda não somos ANGELO AGOSTINI Jornalista, caricaturista, empresário, militante político, foi pioneiro das histórias em quadrinhos PÁGINAS 46, 47 E 48 Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa OS 60 ANOS DE UH, O AMOR MAIOR DE SAMUEL WAINER DEPOIS QUE ELE CRIOU O JORNAL QUE CONSIDERAVA A SUA RAZÃO DE VIVER, A IMPRENSA DIÁRIA MUDOU. PÁGINAS 13, 14, 15, 16 E 17 COMO A DITADURA MATOU O JORNAL DE DONA NIOMAR NO ORIENTE MÉDIO, A MULHER NÃO TEM VEZ HERÓDOTO BARBEIRO, UMA APOSTA DA RECORD NEWS O CORREIO TEVE MORTE LENTA, POR ASFIXIA ECONÔMICA; DEPOIS, COM REPETIDAS VIOLÊNCIAS, CONTA FUAD ATALA. PÁGINAS 18, 19, 20 E 21 ATIVISTA IRANIANA DOS DIREITOS HUMANOS, MINA AHADI DIZ QUE EM SEU PAÍS A MULHER VALE MENOS QUE UM CACHORRO. PÁGINAS 30 E 31 ÁS DO JORNALISMO ELETRÔNICO, ELE CRIOU NOVIDADES, COMO A CBN. AGORA, REFORÇA O TIME DA RECORD. PÁGINAS 36, 37, 38, 39 E 40 Está de volta ao Brasil um acervo sinistro: a documentação do Projeto Brasil: Nunca Mais, que narra em detalhes os crimes cometidos contra 1.843 vítimas da ditadura. PÁGINAS 5, 6, 7 E 8 E EDITORIAL NA PÁGINA 4: SILÊNCIO ETERNO, NA MORTE MUNIR AHMED

Upload: francisco-ucha

Post on 22-Mar-2016

274 views

Category:

Documents


10 download

DESCRIPTION

A PROVA DOS CRIMES! Está de volta ao Brasil um acervo sinistro: a documentação do Projeto Brasil: Nunca Mais, que narra em detalhes os crimes cometidos contra 1.843 vítimas da ditadura. E MAIS: Homenageamos os 60 anos da Última Hora, os 110 anos do Correio da Manhã e o centenário de Nelson Werneck Sodré. Entrevistamos Heródoto Barbeiro e Mina Ahadi e contamos a história de Angelo Agostini, jornalista, caricaturista, empresário, militante político e pioneiro das histórias em quadrinhos no mundo.

TRANSCRIPT

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

367JUNHO2011

PÁGINAS 22, 23, 24 E 25

NELSON WERNECK SODRÉ O centenário do generalvermelho, um visionário do Brasil que ainda não somos

ANGELO AGOSTINI Jornalista, caricaturista, empresário,militante político, foi pioneiro das histórias em quadrinhos

PÁGINAS 46, 47 E 48

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

OS 60 ANOS DE UH, O AMOR MAIOR DE SAMUEL WAINER

DEPOIS QUE ELE CRIOU O JORNAL QUECONSIDERAVA A SUA RAZÃO DE VIVER, A IMPRENSA

DIÁRIA MUDOU. PÁGINAS 13, 14, 15, 16 E 17

COMO A DITADURA MATOUO JORNAL DE DONA NIOMAR

NO ORIENTE MÉDIO,A MULHER NÃO TEM VEZ

HERÓDOTO BARBEIRO, UMAAPOSTA DA RECORD NEWS

O CORREIO TEVE MORTE LENTA, POR ASFIXIAECONÔMICA; DEPOIS, COM REPETIDAS VIOLÊNCIAS,

CONTA FUAD ATALA. PÁGINAS 18, 19, 20 E 21

ATIVISTA IRANIANA DOS DIREITOS HUMANOS,MINA AHADI DIZ QUE EM SEU PAÍS A MULHER VALEMENOS QUE UM CACHORRO. PÁGINAS 30 E 31

ÁS DO JORNALISMO ELETRÔNICO, ELE CRIOUNOVIDADES, COMO A CBN. AGORA, REFORÇA OTIME DA RECORD. PÁGINAS 36, 37, 38, 39 E 40

Está de volta ao Brasil um acervosinistro: a documentação do ProjetoBrasil: Nunca Mais, que narraem detalhes os crimes cometidoscontra 1.843 vítimas da ditadura.PÁGINAS 5, 6, 7 E 8 E EDITORIAL NA PÁGINA 4: SILÊNCIO ETERNO, SÓ NA MORTE

MU

NIR

AH

MED

4 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Maurício AzêdoVice-Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lagee Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanhade Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho daGraça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn,Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José GomesTalarico (in memoriam), Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Efetivos 2009-2012Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles,Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, JoséÂngelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães,Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira daSilva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa,Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

Conselheiros Suplentes 2009-2012Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (MiroLopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, JordanAmora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus AntônioMendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo CoelhoNeto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSAlcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel deCastro, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind,Martha Arruda de Paiva, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

Jornal da ABINúmero 367 - Junho de 2011

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Maurício Azêdo e Francisco UchaProjeto gráfico e diagramação: Francisco UchaEdição de textos: Maurício Azêdo

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz,André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme PovillVianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz deFreitas Borges.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas(Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva,Paulo Roberto de Paula Freitas.

Diretor Responsável: Maurício Azêdo

Associação Brasileira de ImprensaRua Araújo Porto Alegre, 71Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012Telefone (21) 2240-8669/2282-1292e-mail: [email protected]

Representação de São PauloDiretor: Rodolfo KonderRua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51Perdizes - Cep 05015-040Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960e-mail: [email protected]

Impressão: Gráfica LanceRua Santa Maria, 47 - Cidade NovaRio de Janeiro - RJ

EditorialEditorial

SILÊNCIO ETERNO, SÓ NA MORTE05 Especial Especial Especial Especial Especial - Retorno à pátria: Há provas dos

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

crimes contra1.843 vítimas da ditadura

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

09 Exílio Exílio Exílio Exílio Exílio - Rastros na neve, por Rodolfo Konder

13 Comemoração Comemoração Comemoração Comemoração Comemoração - A Última Hora de Samuel

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

num seminário na ABI

18 Memória Memória Memória Memória Memória - A lenta agonia do

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Correio da Manhã, por Fuad Atala

22 CentenárioCentenárioCentenárioCentenárioCentenário - Nelson Werneck Sodré:Um intérprete do Brasil que temos.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Um visionário da Nação que queremos

32 PoPoPoPoPolêmicalêmicalêmicalêmicalêmica - “Hipólito fugiu do Brasil para

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

expor seu irremediável reacionarismo”

33 Mobil izaçãoMobil izaçãoMobil izaçãoMobil izaçãoMobil ização - 13 pontos essenciais para

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

a defesa das florestas

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

34 CompetiçãoCompetiçãoCompetiçãoCompetiçãoCompetição - A Record News contra-ataca

36 DepoimentoDepoimentoDepoimentoDepoimentoDepoimento - Heródoto Barbeiro:

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

“O jornalismo foi um acidente em minha vida”

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

41 Eleição Eleição Eleição Eleição Eleição - A Academia se rendeu à mídia

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

44 Arte Arte Arte Arte Arte - Steinberg: Um crítico da vida moderna

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

46 HistóriaHistóriaHistóriaHistóriaHistória - A imprensa, segundo Agostini

SEÇÕES0 ACONTECEU NA ABI

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

10 No Dia da Imprensa, consagração de Zuenir

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

12 A ABI presente em Minas

28 LIBERDADE DE IMPRENSA

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

A mídia como um bem popular

30 DIREITOS HUMANOS“No Oriente Médio a mulher é tratada pior

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

do que um cachorro”

VIDAS49 Paulo Roberto Viola, Roberto Paulino

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

de Souza, Valcir Almeida

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

50 Abdias Nascimento

51 Ulysses Alves de Souza

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO

HÁ EVIDENTE MISTIFICAÇÃO, temperadapor indisfarçada má-fé, na atoarda que seestá a fazer em torno da questão da proje-tada divulgação dos documentos oficiais re-colhidos aos arquivos do Poder Público, quealguns pretendem sejam recobertos parasempre pelo silêncio, como se sobre eles seabatesse uma morte inexorável.

OS PARTIDÁRIOS DO MORTICÍNIO docu-mental escudam-se em razões que não re-sistem a uma análise mesmo perfunctória,como as contidas na alegação de que a re-velação desses documentos poderia gerardesconforto nas relações com outros paí-ses, mesmo depois de decorrido mais de sé-culo entre os temas que possam estar nelesreferidos ou tratados. São os casos, esgri-midos em tons de superioridade no domí-nio da História, de episódios que se dissol-veram na poeira do tempo, como as nego-ciações para a incorporação do Acre ao ter-ritório nacional, conduzidas no começo doséculo XX pelo maior dos nossos diploma-tas, o Barão do Rio Branco, e os relatóriosmilitares do conflito com o Paraguai, nasegunda metade do século XIX.

ESSAS MANIFESTAÇÕES EXTEMPORÂNEASde suposta erudição encobrem a verdadei-ra motivação da resistência à abertura dosarquivos, a qual tem por objetivo real aocultação de fatos da nossa História recen-

te: os tenebrosos crimes praticados pelosagentes civis e militares da ditadura, quenão querem ver expostas à luz do sol as ini-qüidades que cometeram. É isto que recla-ma a consciência democrática do País: aabertura dos arquivos e a criação da Comis-são da Verdade, para que os registros des-sas ignomínias possam ser conhecidos emtoda a sua inteireza.

É DESENCORAJADOR RECONHECER que di-ante do imperativo de busca e revelação daverdade carece o Governo de uma posiçãofirme, clara, com avanços e recuos que dei-xam entrever que as forças do passado deterror e violência contam com a complacên-cia de setores oficiais para postergar a ado-ção de medidas que já se afiguram tardias,em oposição ao propósito de construção desociedades realmente democráticas nestaparte do Continente, como fizeram a Ar-gentina, o Uruguai, o Chile, o Equador, paísesque, como o nosso, foram infelicitados porditaduras impiedosas.

SÓ AVANÇAREMOS NESSA questão se forafastada a influência de personalidades des-tacadas do Governo que agem contra a aber-tura dos arquivos, como o Ministro da De-fesa Nelson Jobim, que parece ignorar quesó a morte pode promover o silêncio eter-no no âmbito tanto das existências indivi-duais como da vida social.

5Jornal da ABI 367 Junho de 2011

ESPECIAL

POR PAULO CHICO

HÁ PROVAS DOS CRIMES CONTRA1.843 VÍTIMAS DA DITADURA

Crimes como prisões arbitrárias, suspensãodos direitos civis, torturas e assassinatos são tra-ços comuns aos governos autoritários. Há ain-da outra conduta padrão entre as nações coman-dadas por tiranos. Como não sabem conviver coma diferença, expurgam seus opositores. No Bra-sil da ditadura militar pós-1964, não foi diferen-te. A partir do golpe, muitos brasileiros – demilitares a jornalistas, de professores a estudan-tes, de políticos a artistas, passando por insus-peitos cidadãos comuns – experimentaram a duraprovação do exílio, em nome da sobrevivência.Pois foi também para terem sua integridade pre-

servada que os documentos levantados pelo Pro-jeto Brasil: Nunca Mais, revelando parte das atro-cidades cometidas pelo regime de exceção, fo-ram enviados para o exterior. Somente agora elessão repatriados. E, melhor do que isso, estarãoacessíveis a toda a população.

Entre 1979 e 1985, Dom Paulo Evaristo Arns,Cardeal Arcebispo de São Paulo, coordenou clan-destinamente o Projeto, em parceria com o Pas-tor presbiteriano Jaime Wright. O trabalho, re-alizado em sigilo, resultou na cópia de mais deum milhão de páginas de cerca de 700 proces-sos do Superior Tribunal Militar-STM. O rela-

tório completo, resultado do esforço de mais de30 brasileiros que se dedicaram durante quaseseis anos a levantar dados da História daqueleperíodo, revelava a extensão da repressão polí-tica em vigor. E teve seu ápice com a publicação,pela Editora Vozes em 1985, do livro Brasil: NuncaMais. A obra chegou às livrarias em julho daqueleano, apenas quatro meses depois de o GeneralJoão Batista Figueiredo ter deixado o poder. Oclima era de abertura, é fato. Mas, não exatamen-te de festa. Ainda havia dúzias de incertezasquanto aos rumos políticos do País, bem comosobre a segurança do acervo recolhido até então.

A retomada do acervo do ProjetoBrasil: Nunca Mais, que estava

no exterior e agorapassará por processode digitalização para

ficar acessível aopúblico, aviva as

lembranças de umperíodo sombrio da

História do País efortalece os movimentos

que pedem a aberturados arquivos secretos da

ditadura, além dapunição dos responsáveispor crimes como a tortura.

O acervo ofereceabundante massa de

provas sobre os crimespraticados contra nada

menos de 1.843 vítimas doregime militar.

A retomada do acervo do ProjetoBrasil: Nunca Mais, que estava

no exterior e agorapassará por processode digitalização para

ficar acessível aopúblico, aviva as

lembranças de umperíodo sombrio da

História do País efortalece os movimentos

que pedem a aberturados arquivos secretos da

ditadura, além dapunição dos responsáveispor crimes como a tortura.

O acervo ofereceabundante massa de

provas sobre os crimespraticados contra nada

menos de 1.843 vítimas doregime militar.

Documentos doAcervo Brasil:

Nunca Mais

6 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

fácil perceber o poder de in-timidação do livro, hoje emsua 37ª edição. Com prefá-cio do próprio Dom Paulo, aobra, que vendeu em pouco

tempo 200 mil exemplares, irrita-va os setores conservadores da so-ciedade e enraivecia os militares.Nesse cenário, o mais recomendá-vel era fazer o percurso contráriodo praticado naqueles anos deafrouxamento do regime. Se des-de o início da década de 1980 ha-via o fluxo de retorno de brasilei-ros exilados ao País, o material le-vantado no Brasil: Nunca Mais foimicrofilmado e, em 1985, remeti-do ao exterior, diante do temor deuma apreensão que poderia ocor-rer a qualquer momento. Com o li-vro pronto, a tarefa de tornar pú-blica a realidade brasileira daque-le período estava cumprida. O de-safio seguinte era mesmo preser-var a integridade dos documentos.E assim foi feito.

Passadas pouco mais de duasdécadas e meia, é chegada a horade o acervo voltar ao País. No dia14 de junho foi anunciada a repa-triação, digitalização e disponi-bilização desses documentos. Asolenidade – chamada de Ato Pú-

blico de Repatriação do Acervodo Brasil: Nunca Mais – foi rea-lizada na Procuradoria Regionalda República de São Paulo e lotouo auditório local. Numa iniciati-va do Ministério Público Fede-ral, Armazém Memória e Arqui-vo Público do Estado de São Pau-lo, serão digitalizadas as cerca deum milhão de páginas de proces-sos do STM, que contêm infor-mações e evidências de episódi-os de violação dos direitos hu-manos praticados por agentes doEstado durante a ditadura.

A previsão é de que o processode digitalização demore cerca deum ano. O acervo dará corpo anovo Projeto, batizado de Brasil:Nunca Mais Digital. A maior par-te do material foi trazida de Chi-cago, nos Estados Unidos, do Cen-ter for Research Libraries, ondevinha sendo mantida nos últimos26 anos. São 543 rolos de micro-filme. Há informações sobre1.843 vítimas, incluindo mortose torturados que sobreviveram. Oarquivo original do projeto foireunido, sobretudo, graças à açãode advogados, que retiravam os

documentos legalmente duranteo dia, providenciando para que osmesmos fossem secretamente fo-tocopiados à noite. Uma operaçãotão destemida quanto arriscada.

O público também terá acessoa pesquisas, a matérias publicadaspela imprensa brasileira sobre oProjeto e correspondências troca-das pelos dirigentes do Brasil: Nun-ca Mais. Valiosas informações, naépoca confiadas por Dom Paulo aoConselho Mundial de Igrejas, comsede em Genebra, na Suíça. Cabe-rá ao Arquivo Público do Estado deSão Paulo a digitalização das pági-nas dos processos do STM. Já oacervo do CMI será digitalizadopelo Arquivo Nacional. No novoformato, todo o acervo ficará hos-pedado no site do Ministério Pú-blico Federal.

Durante a cerimônia de repatri-ação foi realizada uma homena-gem ao ex-Secretário de DireitosHumanos do Governo Lula, PauloVannuchi, que coordenou a coletados documentos.

“O acesso aos arquivos na in-ternet coloca o País em um novopatamar em relação às investiga-ções e ao uso acadêmico desseconteúdo. Sendo aprovada a Co-missão Nacional da Verdade, quecontinua a ser tema de debates naCâmara dos Deputados, em Bra-sília, o primeiro trabalho será ummergulho nesse material. A par-tir daí, poderemos realizar umasérie de audiências. Há uma pres-são que é crescente, e que segui-rá crescendo nos próximos anos.Acabou o período da impunida-de. O Brasil tem dois caminhos.O caminho de protelar mais e ocaminho de fazer logo. Não exis-te o caminho de não fazer”, afir-mou Vannuchi.

OS REDATORES, KOTSCHOE FREI BETTO, MANTIVERAMSEGREDO ATÉ PARA A FAMÍLIA

O jornalista Ricardo Kotschoe Frei Betto, dominicano que mi-litou na Aliança Libertadora Na-cional-ALN, foram os dois reda-tores do livro lançado em 1985.A eles coube a tarefa de escrevera versão final do texto, antes darevisão de Paulo Vannuchi, que étambém jornalista e esteve pre-sente no Projeto desde o seu iní-cio. A partir do gigantesco acervooriginal, que deu origem à obraeditada pela Vozes, era possível sa-ber quantos presos passaram pe-los tribunais militares, quantosforam formalmente acusados,quantos foram presos, quantaspessoas declararam ter sido tortu-radas, quantas desapareceram,quais as modalidades de torturamais praticadas, quais eram oscentros de detenção. Foi possívellistar nomes de médicos que da-vam plantão junto aos porões e defuncionários identificados pelospresos políticos. Alguns deles, ob-viamente, torturadores.

“A maior dificuldade encon-trada neste trabalho foi esconder

de todo mundo, até da família, oque a gente estava fazendo, paranão colocar em risco a nossa vidae a das outras pessoas envolvidas.Ainda vivíamos na ditadura dosgenerais. Como sou medroso pornatureza, para mim foi aindamais difícil. Achava sempre queestava sendo seguido, que o tele-fone estava grampeado, essas coi-sas. Por isso, mudamos várias ve-zes o nosso local de trabalho. Emandamos cópias de tudo para oexterior, com o conjunto do ma-terial pesquisado nos arquivos daJustiça Militar, que agora estávoltando ao Brasil. Na produçãodo livro, o desafio era passar o ‘ju-ridiquês’ dos processos para umalinguagem jornalística, que todomundo pudesse entender. Deutrabalho, mas valeu a pena. Ape-sar de todo o medo, me senti or-gulhoso de ter participado destetrabalho, junto com velhos ami-gos, sob o comando de Dom Pau-lo Evaristo e do Reverendo JaimeWright”, disse Ricardo Kotschoao Jornal da ABI.

ALINHADO COM A AGU,O GOVERNO VACILA

EM RELAÇÃO AO SIGILO

Ao mesmo tempo que o acer-vo dos crimes da ditadura voltaao País, paira no ar a ameaça decontinuarem encobertos – e pro-tegidos pelo anonimato – muitosdos responsáveis pelos tristesfatos ocorridos naquele período.Jornais brasileiros publicaram,na mesma semana do lançamen-to do Brasil: Nunca Mais Digital,a informação de que o Governofederal tendia a optar pela manu-tenção do ‘sigilo eterno’ de docu-mentos sobre o período militar.

Reportagem do Correio Brazi-liense afirmou que a PresidenteDilma Rousseff não tomará ne-nhuma iniciativa para rever a Leide Anistia, em respeito ao parecerdo Ministro Luiz Inácio Adams,da Advocacia Geral da União, en-caminhado ao Superior TribunalFederal-STF. Pela decisão, nãohaverá julgamento de crimes co-

muns cometidos por agentes daditadura militar, a despeito do re-curso apresentado pelo ConselhoFederal da Ordem dos Advoga-dos do Brasil, que cobra do Su-premo uma posição em relação àsubmissão ou não do País à Cor-te Interamericana de Direitos Hu-manos–, que recentemente con-denou o Brasil pelas mortes naluta dos militares contra a Guer-rilha do Araguaia.

O Deputado Federal Miro Tei-xeira (PDT/RJ) foi um dos parla-mentares que manifestaram suapreocupação com a tendência aoretrocesso na revisão da históriabrasileira. “A posição de Dilma afavor do ‘segredo eterno’ sobre do-cumentos ultra-secretos constran-ge a Câmara. A nossa preocupaçãoé, não sem razão, com o silêncio.O poder do silêncio é brutal. Aque-les que detêm o conhecimento ex-clusivo dos fatos passam a exercero poder sobre um conjunto enor-me de pessoas. E aí a democraciafica bastante capenga”, alertouMiro, que é jornalista e membrodo Conselho Consultivo da ABI.

FREI BETTO: A ABERTURADOS ARQUIVOS EVITARÁ A AMNÉSIA HISTÓRICA

A pedido do Jornal da ABI, Car-los Alberto Libânio Christo – ou,simplesmente, Frei Betto – fez

uma análise da relevância do re-torno dos documentos do Brasil:Nunca Mais ao País, em especial,diante do atual contexto político.

“Participei do projeto comoredator do texto final, em parce-ria com o Ricardo Kotscho. Osdocumentos oriundos da JustiçaMilitar – e o livro é baseado ex-clusivamente neles – foram to-dos microfilmados e remetidos adois países: Estados Unidos e Su-íça. Neles está boa parte da me-mória da ditadura. No momentoem que se fala em ‘sigilo eterno’,a abertura desses papéis ao públi-co é de suma importância para seevitar a amnésia histórica.”

Lembra Frei Betto que o Bra-sil é o único país da América La-tina que não investigou nem pu-niu os crimes da ditadura mili-tar. “Não se trata de vingança, esim de justiça. Estou convenci-do de que, no futuro, os arqui-vos das Forças Armadas serãoabertos e os criminosos – tortu-radores, assassinos, seqüestrado-res – apontados. Não se joga a His-tória para debaixo do tapete. Porisso mesmo, é um passo muitoimportante a Campanha pelaMemória e pela Verdade, defen-dida pela OAB, que também dáapoio à criação da Comissão Na-cional da Verdade. Espero queseus resultados não venham tar-de. E que ela tenha poderes paraconvocar vítimas e algozes da di-tadura, abrir arquivos e promo-ver investigações.”

O Presidente da OAB/RJ, Wa-dih Damous, concorda com a ava-liação de Frei Betto. “A eternidadedeve permanecer como caracterís-tica exclusiva da morte. É inacre-ditável que a Presidente Dilma,vítima que foi do sigilo ditatorial,e com uma trajetória de lutas pelademocracia, queira apoiar o ‘sigi-lo eterno’ de determinados docu-mentos”, condenou, destacandoque “os brasileiros têm o direito dever os criminosos, os terroristas deEstado, no banco dos réus, com odevido processo legal. Não luta-mos pelo direito deles, de torturare de perseguir. Lutamos, sim, pelo

ÉESPECIAL RETORNO À PÁTRIA

Kotscho tem orgulho de ter participado do projeto desde o início, ao lado de Frei Betto (abaixo): “A maior dificuldade foiesconder o que a gente estava fazendo, para não colocar em risco a nossa vida e a das outras pessoas envolvidas.”

FRANC

ISCO

UC

HA

FOLH

A DIRIG

IDA

7Jornal da ABI 367 Junho de 2011

direito dos que foram perseguidos”,concluiu Damous, lembrando quecontinua em curso o processo derecolhimento de assinaturas emfavor da Campanha pela Memóriae pela Verdade.

UM MARCA-E-DESMARCADA MINISTRA DOS

DIREITOS HUMANOS

A Secretária dos Direitos Hu-manos da Presidência da Repúbli-ca, Ministra Maria do Rosário,chegou a marcar dois encontrosna OAB do Rio, exatamente parafechar um convênio de promo-ção do direito à memória e à ver-dade. Em ambas as vezes, no en-tanto, desmarcou. Nova visitafoi programada para 20 de julhomas, diante do aparente recuo doGoverno federal, essa agenda, as-sim como as anteriores, pareceestar ameaçada de não vingar. Aparceria – que envolveria tam-bém a Comissão Especial sobreMortos e Desaparecidos Políti-cos, presidida por Marco Antô-nio Rodrigues Barbosa – teriacomo proposta unir forças pelaabertura dos arquivos da repres-são, apoio à aprovação da Comis-são da Verdade no CongressoNacional e a continuidade daCampanha pela Memória e pelaVerdade, promovida pela seccio-nal fluminense da OAB.

Também o Presidente do Con-selho Federal da OAB, Ophir Ca-valcante, criticou a postura daPresidente Dilma Rousseff. “Re-pete-se a síndrome de nossos go-vernantes que negam seu passa-do, que dizem que não leram oque assinaram ou pedem para es-quecer o que escreveram. Pareceque ela se esqueceu de seu passa-do de militância contra a ditadu-ra militar ao jogar uma pá de calsobre o pedido de revisão da Leide Anistia, ação que possibilita-ria a punição dos torturadores”,disse Cavalcante, numa referên-cia à postura passiva da Presiden-te diante do parecer da Advoca-cia-Geral da União, assinado peloMinistro Luís Inácio Adams.

“OS POLICIAIS CONSIDERAM OS DIREITOS HUMANOS

COMO COISA DE BANDIDO”

Não é de hoje que Frei Bettoorganiza em memórias suas ex-periências de militante político.Ele esteve preso por duas vezessob a ditadura militar: em 1964,por 15 dias; e entre 1969-1973.Sua experiência na prisão está re-latada nos livros Cartas da Pri-são (Agir), Diário de Fernando –Nos Cárceres da Ditadura MilitarBrasileira (Rocco), O Dia de An-gelo (Brasiliense) e Batismo deSangue (Rocco), este último tra-duzido na França e na Itália eadaptado para as telas do cinema.

“O filme de Helvécio Rattoné muito fiel ao livro. É o mais re-alista filme sobre o regime mili-tar. E a reação do público foi

muito positiva, pois várias vezesele foi exibido na tv e continuaa ser mostrado em faculdades emovimentos sociais.”

Superados os regimes de exce-ção, a tortura ainda é prática re-corrente no País, sobretudo peloaparelhamento bruto das forçaspoliciais. Será que faltam maisdenúncias desses abusos, aindahoje cometidos em presídios, de-legacias e quartéis? Como banira tortura do Brasil?

“A tortura grassa no Brasil por-que nossas forças policiais sãodespreparadas, ainda conside-ram os direitos humanos coisa debandido... A culpa, portanto, é doPoder Público, que não formapoliciais dignos, salvo exceções,e nem apura e pune casos de tor-turas em batidas policiais e dele-gacias”, lamenta Frei Betto.

É sabido que a prática da tor-tura por parte de agentes do Es-tado é algo comum no Brasil. Oscasos são denunciados pela mí-dia e por grupos como o TorturaNunca Mais.

“A violência em delegacias epresídios é, aqui e em países quejá passaram por ditaduras, qua-se um velho hábito que se propa-

Em 1979, um grupo de religi-osos e advogados iniciou um pro-jeto extremamente ambicioso:obter junto ao STM, em Brasília,informações e evidências de vi-olações aos Direitos Humanospraticadas por agentes do apara-to repressivo do Estado durantea ditadura, naquela época aindaem curso, para compilar essadocumentação em um livro-de-núncia. Os advogados, a partir daconsulta aos processos que en-volviam a defesa de presos polí-ticos, constataram o valor histó-rico e jurídico dos documentosexistentes. Mereceram especialatenção os depoimentos presta-dos no âmbito dos tribunais mi-litares, nos quais boa parte dospresos políticos denunciou e de-talhou as práticas de violênciafísica e moral que sofreram oupresenciaram. Relatos capazesde revirar o estômago dos maissensíveis. E de brutos também.

O Projeto pretendia evitar opossível desaparecimento dosdocumentos durante a redemo-cratização. Considerava-se que apreservação desses papéis seriaindispensável como fonte depesquisa histórica – fato, aliás, ir-refutável. Os mentores do proje-to – em especial a advogada EnyRaimundo Moreira e a equipe doescritório do falecido advogadoHeráclito Sobral Pinto – perce-beram que os processos poderi-

No mais recente debate públi-co sobre o caso, parentes de mor-tos e desaparecidos políticos de-fenderam, no dia 29 de junho, al-terações no Projeto de Lei nº7.376/10, que institui a Comissãoda Verdade, durante audiênciapública na Comissão de DireitosHumanos da Câmara dos Deputa-dos, em Brasília. Eles querem quea prioridade da Comissão seja abusca por desaparecidos políticosdurante a ditadura. De acordo coma representante da Comissão deFamiliares de Mortos e Desapare-cidos Políticos, Maria Amélia Te-les, o Governo deve apurar os cri-mes ocorridos entre 1964 e 1985:

“Queremos uma Comissão au-tônoma, com orçamento e estru-tura para fazer essa investigaçãoem todo o território nacional”.

Rosário também refutou apossibilidade de participação demilitares na Comissão.

“As Forças Armadas estão sobsuspeição até que façam uma au-tocrítica e venham a público assu-mir as violações que cometeram.Eles têm de ser depoentes”, disse.

Com o sigilo eterno, então, a farsaserá completa, adverte Erundina.

“PELO TEXTO ATUAL DO PL Nº 7.376,A COMISSÃO NÃO LEVARÁ A NADA”

A Deputada Federal Luiza Erun-dina (PSB/SP) chegou a afirmar queo Projeto de Lei em tramitação noCongresso Nacional, que cria a Co-missão da Verdade, do jeito comoestá sendo apresentado, não leva-rá a nada, uma vez que inclui atérepresentantes dos militares aolado dos representantes dos tortu-rados. Com a tramitação do proje-to de ‘sigilo’ – eterno ou por até 50anos – para documentos secretose ultra-secretos, a farsa ficaria, en-tão, completa.

Ironicamente, no Congresso jáse fala em uma ‘Comissão da Ver-dade Oculta’. Durante a audiênciapública, em 29 de junho, em Bra-sília, o Deputado Federal Jair Bol-sonaro (PP-RJ) provocou tumultoentre os participantes ao dizer quea Comissão da Verdade é parcial.

“Querem apurar tortura, mor-tes e ocultação de cadáveres, masnão querem apurar seqüestros deautoridades e o financiamento daluta armada por Fidel Castro”.Acabou vaiado e xingado por pa-rentes de vítimas do regime, queacompanhavam a sessão.

A BUSCA DOS DOCUMENTOS,PELA MADRUGADA, NUMA

CORRIDA CONTRA O TEMPOam ser copiados, aproveitando-se do prazo de 24 horas faculta-do pelo Tribunal para a custódiaprovisória de autos. A idéia logofoi acolhida pelo Reverendo Jai-me Wright e pelo então Arcebis-po de São Paulo, Dom Paulo Arns,que resolveram coordenar as ati-vidades. Os recursos financeirospara tocar o Projeto foram obti-dos junto ao CMI, então dirigi-do por Philip Potter, e na própriaCúria Metropolitana da Arquidi-ocese de São Paulo. É o resultadode todo esse esforço que, em bre-ve, servirá de franco testemunhoaos brasileiros.

“O acervo é importante no res-gate da História do País e permi-te que novas gerações saibam oque aconteceu naquela época,para que isso não se repita. Nassalas de aula, a meta fundamentalserá cumprida. Teremos um mi-lhão de páginas que, quando inde-xadas em um sistema de buscamoderno, poderão trazer elemen-tos novos para muitas situaçõesque podem ter passado desperce-bidas em 26 anos de pesquisa ma-nual”, festeja Marcelo Zelic, Vice-Presidente do Grupo Tortura Nun-ca Mais de São Paulo.

Zelic é também Coordenadordo Armazém Digital, site inici-ado em 2001, organizado emcentros temáticos e dedicado areunir na internet registros his-tóricos de resistência dos mais

ga no rastro da impunidade e dafalta de controle do Estado. Hátambém silêncio na sociedadequando se fala em direitos hu-manos dos presos. Essa reserva,às vezes explícita, outras camu-flada, acaba se refletindo na ine-ficiência estatal em evitar ou coi-bir as agressões”, complementaWadih Damous.

Durante a ditadura militar,foi marcante a participação po-lítica ativa de resistência de cen-tenas de religiosos, condenandoa prática da tortura. Mas nemsempre foi assim, como lembra opróprio Frei Betto.

“A Igreja é, toda ela, discípulade um prisioneiro político: Jesusde Nazaré, que não morreu dehepatite na cama, nem de desas-tre de camelo numa esquina deJerusalém. Foi perseguido e con-denado à morte por dois poderespolíticos. Infelizmente, ao longoda História, a Igreja também tor-turou e assassinou, como ocorreuna Inquisição. Porém, hoje a ins-tituição condena a tortura e exi-ge que se instaure a Comissão Na-cional da Verdade. E que sejamabertos os arquivos que ainda per-manecem secretos”, concluiu.

Dom Paulo Evaristo Arns em 1979, quando coordenava clandestinamente,ao lado do Pastor Jaime Wright, o envio de documentos sigilosos que

revelavam parte das atrocidades cometidas pela ditadura militar.

MARC

IO ARRU

DA/AG

ÊNC

IA O G

LOB

O

8 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

ESPECIAL RETORNO À PÁTRIA

variados movimentos sociais.Digitalizar a íntegra do Brasil:Nunca Mais e tornar seu con-teúdo acessível à distância, deforma livre e gratuita, e em umabiblioteca pública virtual, fo-ram metas perseguidas nestes 10anos de atividades.

“Temos mapeado acervos ereunido de forma digital cole-ções de periódicos, depoimentos,livros, vídeos, artigos, documen-tos e imagens, para facilitar atroca de experiência entre as

Às vésperas de completar 90 anos de idade,em 14 de setembro, Dom Paulo não compare-ceu ao lançameto do Brasil: Nunca Mais Di-gital, mas manifestou humildade, em carta,afirmando não ter feito nada de excepcional aoabraçar a causa dos direitos humanos no Bra-sil mergulhado no autoritarismo.

Ainda que oficialmente sem dar entrevistas,ele abriu exceção para o Jornal da ABI, ao qualdeu uma breve declaração sobre a retomada dosarquivos do Projeto que coordenou há quase trêsdécadas. Não sem antes identificar-se como Ar-cebispo Emérito e jornalista filiado à ABI – atuoucomo redator, com centenas de artigos escritos empublicações de Petrópolis (RJ) e São Paulo –, ele

gerações e ampliar o acesso a estamemória histórica, através dodesenvolvimento de práticassolidárias de cooperação para oacesso entre as instituições quepossuam acervos de interessesocial, cujos conteúdos fortale-çam o trabalho de educação paraos Direitos Humanos. A realiza-ção do Brasil: Nunca Mais Digi-tal, com o Ministério Público Fe-deral e demais parceiros, represen-ta um grande salto para a realiza-ção dos objetivos propostos pela

Ainda quando era pré-candi-data à Presidência da República,Dilma Rousseff afirmou, em umevento em São Paulo, que respei-taria qualquer decisão do Supre-mo Tribunal sobre o pedido de re-visão da Lei de Anistia. Ela disseentão que, por se tratar da Cortemais alta do País, as decisões doSupremo não deveriam ser con-testadas. Explicitou também quenão era favorável ao revanchis-mo, embora reconhecesse a exis-tência de debates internos no pró-prio Governo, onde havia defen-sores da revisão da Lei.

“O parecer oficial do Gover-no é o parecer da AGU. Comotratava-se de um Governo demo-crático, havia, sim, um debate in-terno. A partir de agora, o quevale para todos nós é que a deci-são do Supremo tem que sercumprida. Não cabe discussão arespeito”, encerrou Dilma.

A posição atual da Presidente,criticada por entidades de defe-sa dos direitos humanos, é opos-ta àquela assumida publicamen-te, quando ainda era MinistraChefe da Casa Civil do GovernoLula, conforme comprova pare-cer divulgado em 4 de dezembrode 2008, que afirma que os crimesde lesão corporal, estupro, aten-tado violento ao pudor, homicí-dio, ocultação de cadáver e tortu-ra, praticados por agentes do Es-tado, “não são crimes políticossob a ótica dos conceitos ampla-mente aceitos e adotados peladoutrina e pela jurisprudência.”

Ao longo dos 32 anos da san-ção da Lei de Anistia, os parentesde mortos e desaparecidos, ex-presos políticos, bem como enti-dades da sociedade civil e de di-reitos humanos, vêm lutandopelo esclarecimento dos fatos ea responsabilização dos agentespúblicos envolvidos nestes cri-mes de lesa-humanidade ocorri-dos durante a ditadura. A decisãoque condenou o Brasil na Comis-são Interamericana de Direitos

Humanos é resultado dessa cons-ciência, trabalho e luta. E, ao me-nos por respeito a este esforçocidadão, deveria ser cumprida in-tegralmente. É o que defende,por exemplo, Marcelo Zelic.

“O pronunciamento da AGUé tão somente uma tentativa demanobrar a opinião pública,uma jogada de cena para justifi-car a inação do Governo frenteao tema da responsabilização. Éfruto de uma estratégia irrespon-sável, por parte de setores do Es-tado brasileiro, que não pensa oPaís e está centrada em negar acompetência e as implicaçõesconstitucionais no ordenamen-to jurídico do Brasil de sua ade-são à CIDH, protelando os meca-nismos da impunidade e criandocom esta negativa uma instabili-dade jurídica que faz retrocede-rem os direitos humanos no País,servindo de estímulo para aque-les que hoje praticam arbitrarie-dades iguais. Tudo isso sinalizaque sempre haverá a defesa dosmecanismos da impunidade,uma vez que as decisões da OEAnão possuem efeito interno noBrasil”, criticou Zelic.

O Vice-Presidente do GrupoTortura Nunca Mais de São Pau-lo faz ainda uma advertência:“Seguir neste caminho será pac-tuar com o atraso e alinhar o Es-tado brasileiro com os crimes delesa-humanidade praticados.Neste processo histórico por jus-tiça e verdade, tal posição, alémde expor os governantes e agen-tes públicos de hoje à contestaçãopor crimes pelo não cumprir dasentença da OEA, deixa o País emsituação desconfortável no pla-no internacional. Na América doSul, os mais altos tribunais judi-ciários da Argentina, Chile, Co-lômbia, Peru e Uruguai já incor-poraram os parâmetros ditadospela CIDH nessa matéria, a par-tir de alterações efetuadas na le-gislação de anistia proposta pelosexecutivos.”

“... obrigaram o acusado a colo-car os testículos espaldados na ca-deira; que Miranda e o escrivãoHolanda com a palmatória procu-ravam acertar os testículos do in-terrogado. (...) o acusado sofreu ocastigo chamado ‘telefone’, queconsiste em tapas dados nos doisouvidos ao mesmo tempo, sem quea pessoa esteja esperando; que, emvirtude deste castigo, o acusadopassou uma série de dias sem estarouvindo; que três dias após, o acu-sado, ao limpar o ouvido, notouque este havia sangrado”.

Este depoimento, que faz par-te do primeiro capítulo do livro

te em todos os capítulos, a saber,que a tortura, além de desumana,é o meio mais inadequado paralevar-nos a descobrir a verdade echegar à paz”, escreveu.

Hoje Arcebispo Emérito deSão Paulo, Dom Paulo contou,no mesmo prefácio, que duran-te os tempos da mais intensabusca pelos chamados ‘subversi-vos’, atendia semanalmente, naCúria Metropolitana, a mais devinte, e até cinqüenta pessoas.Todas em busca do paradeiro deseus parentes.

“Não há ninguém que consigadescrever a dor de quem viu umente querido desaparecer atrásdas grades da cadeia, sem mesmopoder adivinhar o que lhe acon-teceu. O que mais me impressio-nou, ao longo dos anos de vigíliacontra a tortura, porém, foi o se-guinte: como se degradam os tor-turadores.”

Assim como Eny Moreira, ad-vogada que deu início ao proces-so, e Delora Wright, filha do Pas-tor Jaime Wright, morto em 1999,Dom Paulo Evaristo Arns tambémfoi homenageado na solenidadede lançamento do Brasil: NuncaMais Digital, no dia 14 de junho,em São Paulo.

equipe de mais de 30 pessoas queproduziram o material originaldesta pesquisa. Em seu início, essematerial chegou às universidades,ficando mais acessível ao meio aca-dêmico. Podia, por exemplo, serpesquisado por acesso local atra-vés do Arquivo Edgard Leuenrou-th, na Unicamp, para onde foramenviadas cópias. Agora, digitaliza-do, o acervo servirá para reafirmar,através da educação, os direitosfundamentais da cidadania e osDireitos Humanos.”

O horror sob a tortura:baratas sobre o corpo euma introduzida no ânus

DOIS RELATOS,DENTRE MILHARES,DO TRATAMENTO

DEGRADANTE DADOAOS PRESOSPOLÍTICOS

Entidades de defesa dos direitos humanos censuramas mudanças de posição da Presidente Dilma Rousseff

em 2008 e agora, depois que assumiu o Governo.

“PARECER DA AGU É JOGO DE CENAPARA JUSTIFICAR A INAÇÃO” Brasil: Nunca Mais, foi dado ao

Superior Tribunal Militar por Pe-dro Coutinho de Almeida, na épo-ca estudante de apenas 20 anos deidade, de Pernambuco. A mesmaobra traz o relato de Lúcia MariaMurat Vasconcelos, de 23 anos:“... a interroganda quer ainda de-clarar que durante a primeira fasedo interrogatório foram coloca-das baratas sobre o seu corpo, e in-troduzida uma no seu ânus.”

Essas são apenas duas das ex-periências de horror narradas nolivro. Há outras, centenas de ou-tras. Algumas, piores. Em contra-posição ao circo de dores e humi-lhações, surge Dom Paulo Evaris-to Arns, logo no prefácio. Pala-vras de estupefação diante do queé capaz de fazer o homem. Mastambém de fé em relação à huma-nidade. “As angústias e esperan-ças do povo devem ser comparti-lhadas pela Igreja. Confiamosque esse livro, composto por es-pecialistas, nos confirme emnossa crença no futuro. Afinal, opróprio Cristo, que ‘passou pelaTerra fazendo o bem’, foi perse-guido, torturado e morto. Asexperiências que desejo relatarno frontispício desta obra pre-tendem reforçar a idéia subjacen-

O Cardeal Emérito de São Paulo defende um debate amplo sobreo Brasil: Nunca Mais, organizado por amor à família brasileira.

DOM PAULO: “OS JOVENS PRECISAMSABER O QUE SE PASSOU”

defendeu ações futuras que devem ser desenvol-vidas, a partir dessa repatriação:

“A volta deste material ao Brasil, num atosimbólico, é importante. Aliás, vale lembrarque este acervo também foi entregue à Uni-versidade de Campinas. A partir de agora, odebate, a meu ver, deve ser amplo, com boaparticipação da sociedade e objetividade. Istoé, a comunicação aos jovens estudantes detodas as classes sociais é indispensável. Elesprecisam saber o que se passou. Afinal, o Bra-sil: Nunca Mais foi organizado e publicadopor respeito à pessoa humana. Em nome da suadignidade. E por amor à família brasileira”, re-sumiu Dom Paulo.

No Ato Público de Repatriação do Acervo, Marcelo Zelic (de vermelho), CarlosBacellar e Marlon Weichert, apresentam o Projeto Brasil: Nunca Mais Digital.

ELISAB

ETE SAVIO

LI/APESP

9Jornal da ABI 367 Junho de 2011

POR RODOLFO KONDER

RODOLFO KONDER, sócio da ABI, jornalista e escritor, é Diretor daRepresentação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal deEducação da Cidade de São Paulo.

uando a temperatura desce a mais de50 graus abaixo de zero, as estaçõesde rádio transmitem advertências, no

sentido de que as pessoas permaneçam em suascasas. Elas não devem sair à rua, porque a carnehumana exposta, naquela temperatura, congelaem apenas 30 segundos.

Hoje, os termômetros registram 30 graus ne-gativos. Olho pelas janelas envidraçadas do meuapartamento, no sétimo andar de um prédio naSherbrooke West. Céu azul, sol brilhante. Nadamais enganador. Lá fora, o ar gelado bate naspessoas como um soco. Tira a respiração da gen-te. Dói nos ossos.

Devidamente agasalhado, deixo o apartamentoaquecido, vou até a garagem igualmente aqueci-da, entro no meu velho Buick 73 e ligo o sistemade aquecimento. No estacionamento da Canadi-an Broadcasting Corporation -CBC, porém, nãotenho direito a uma vaga nas áreas cobertas, por-que não sou canadense, nem imigrante. Na ver-dade, possuo somente uma “permissão para tra-balhar” - uma working permit. Resultado: devoestacionar num imenso pátio, ao relento.

Num dia de neve intensa, cheguei ao estacio-namento, à noite, depois das transmissões diá-rias da seção brasileira, e encontrei apenas umgrosso edredom gelado, com algumas elevaçõessuaves. O velho Buick era uma das elevações. Fuiobrigado a desenterrá-lo, enquanto os tratoresda CBC abriam caminhos nas passagens princi-pais do pátio.

A meteorologia não prevê neve para hoje, masos rádios pedem que tomemos cuidado com o frio.Se venta, por exemplo, os 30 graus negativospodem baixar para 40 ou 50 abaixo de zero – comresultados surpreendentes e devastadores. Per-cebo logo isso, ao sair do carro.

Bato a porta, apressadamente, e as chaves caeme escorregam num declive para baixo do Buick.Tiro a luva, por instantes, para pegá-las. Entre o

A aventura de um brasileiro exposto aos rigores de um invernode 50 graus abaixo de zero e que não perdeu a alegria de

viver mesmo sob o ar gelado que fere como um soco.

ato de me abaixar, esticar o braço, procurar ochaveiro, recolhê-lo e me levantar para trancar aporta, o frio congela minha mão. Entro novamenteno carro, ligo o aquecimento e faço massagemna mão atingida, até senti-la de novo.

Dias depois, outro fenômeno curioso e as-sustador me desafia. Ao sair da CBC, encon-tro o carro totalmente encapsulado, envoltopor uma sólida camada de gelo, uma placa commais de um dedo de espessura, que o cobre porinteiro. Tenho primeiro de derreter o gelo queesconde a fechadura, para então abrir a portacom um puxão violento. A placa se rompe,embora continue cobrindo as janelas, mesmoquando eu abaixo os vidros. O que está acon-tecendo? Às vezes, chove quando a tempera-tura ainda está acima de zero. Então, um ven-to gelado que vem do pólo atravessa a cidade,derrubando a temperatura e congelando aágua da chuva em questão de segundos. As ruase calçadas ficam cobertas por lâminas de geloe, os canos, encapsulados.

Apesar do frio e das suas armadilhas, a vida emMontreal me deu muitas alegrias. Jantar no res-

taurante Troika (Crescent Street) ou no A LaCatalogne (Vieux Montreal), por exemplo. Ousair de carro e subir as Montanhas Laurencia-nas, para freqüentar as pistas de esqui em St. Sau-veur e Mont Tremblant. Ou ainda comer tru-tas na manteiga, perto da lareira, junto ao lagoazul de St. Agathe.

Nos fins de semana de folga, quando eu nãoprecisava pegar o microfone para anunciar nos-sas transmissões em inglês e francês – This IsRadio Canada International – era sempre pos-sível caminhar pelos 15 quilômetros de espaçossubterrâneos de uma cidade sob a cidade. Lojassofisticadas, belos restaurantes, cinemas, cafése pessoas elegantes criavam o cenário impecá-vel de uma metrópole tranqüila e civilizada. Tam-bém era possível encontrar uma bela hospeda-ria, à beira de algum dos 120 mil lagos cadastra-dos do país, que há três anos consecutivos lide-ra a lista da Onu das nações com melhor quali-dade de vida no planeta Terra.

EXÍLIO

Rastros na neve

Q

ELIANE SO

ARES

10 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

A ABI homenageou o Dia da Impren-sa e o 80º aniversário do jornalista Zue-nir Ventura em cerimônia realizada nodia 1° de junho na Sala Belisário de Sou-za, no sétimo andar do Edifício HerbertMoses, onde dezenas de pessoas,entreconselheiros, associados, colegas e antigosalunos de Mestre Zu, como dizia gigan-tesco banner no fundo do palco, levaramo seu abraço ao autor de Cidade Partida.

A mesa de honra foi formada por PeryCotta, Presidente do Conselho Delibera-tivo da Casa, pelos Diretores DomingosMeirelles e Ilma Martins da Silva, pelojornalista Cícero Sandroni, Conselheiroda ABI e ex-Presidente da Academia Bra-sileira de Letras, Mary Ventura, mulher dohomenageado, e pelo cartunista Ziraldo.

Avesso a comemorações e homena-gens, Zuenir Ventura explicou os moti-vos que o levaram a abrir exceção noaniversário de 80 anos:

“A ABI é nossa Casa, com sua históriade luta pelas liberdades. Quando entreiaqui hoje, senti uma emoção muito gran-de. Nunca pensei que um dia eu estaria naABI como personagem e para comemorarmeus 80 anos. É uma honra que vale a penaqualquer sacrifício, como o de me expor,para celebrar esta data junto com a ABI;afinal, não é qualquer um que faz 80 anos.Fiquei muito feliz e rendido. Só estoutenso por não gostar da exposição, masimagina se eu gostasse.” (risos)

A solenidade teve início com a sauda-ção de Pery Cotta aos presentes e ao ho-menageado:

“Nesta data, 1º de junho, comemora-mos o Dia da Imprensa e a figura que arepresenta: Zuenir Ventura, Mestre Zu.Com a ausência do Presidente MaurícioAzêdo, que está em Belo Horizonte parao lançamento da Representação da ABIem Minas Gerais, tive a sorte de presidiresta solenidade. Fui um dos muitos dis-cípulos de Zuenir Ventura no início dosanos 1960, na Tribuna da Imprensa. Suaesposa, Mary, era nossa companheira deRedação. Nesta época, Zuenir já era ummestre, ou melhor, o ‘Divino Mestre’,como os repórteres do jornal o chama-vam, não só pela capacidade intelectual,pelo texto espetacular, pelo dom naturalda escrita, mas também por ser uma dasfiguras mais doces, mais cordiais, maisamigas que conheci em toda a minhavida. Ele sempre tinha uma palavra de

carinho, de atenção, principalmentecom o repórter que estava começando acarreira. Ele ensinava a escrever e, acimade tudo, ensinava a importância da liber-dade de imprensa para a democracia. Nãofoi à toa que ele nasceu na data em quese comemora o Dia da Imprensa. Eu trou-xe um livro que a ABI fez, provavelmen-te nos anos 1980, no qual uma série deprofissionais de imprensa escreveramsobre o que é o jornalismo. Vou citar umtrecho escrito por Zuenir: “Os redatoresque me perdoem, os editores que me des-culpem, os diretores que não me ouçam,os diagramadores que não me queirammal, os cronistas e colunistas, esses então,que não me atirem pedras, mas se todoseles um dia desaparecessem e só ficasse orepórter, o jornalismo continuaria vivo.”

Pery Cotta aplaudiu também o Dia daImprensa e a luta da Associação pelas li-berdades e pela categoria:

“A ABI nasceu defendendo o profissio-nal de imprensa, defendendo o repórter.Foi fundada por um jornalista ilustre ereuniu ao longo de sua trajetória um qua-dro de dirigentes que marcou os movimen-tos em defesa da liberdade de imprensa, dademocracia, dos direitos humanos, do ci-dadão. Neste Dia da Imprensa, a ABI saú-da Zuenir Ventura, um símbolo de tudoisto. Sei que você, Zuenir, não gosta mui-to de falar, mas gostaria de pedir que duran-te o seu discurso você fizesse um comen-tário sobre o que é liberdade de imprensa.”

Dando prosseguimento à cerimônia,Ziraldo fez a entrega da placa comemo-rativa dos 80 anos de Zuenir Ventura:

“Fui escolhido para entregar esta placaao Zuenir porque o Presidente MaurícioAzêdo sabe que esta é uma festa de ve-lhos amigos. A consistência da amizadequem dá é o tempo, as aventuras e sofri-mentos comuns. Maurício é meu amigohá 40 anos. Certa vez, eu estava partici-pando de uma cerimônia aqui na ABI eo Maurício fez a minha apresentação,Fiquei muito comovido ao perceber queMaurício conhecia detalhes da minhavida que eu nem podia imaginar. Então,pensei: Maurício é mais meu amigo doque eu pensava. E foi por isso que ele meescolheu para entregar a homenagem aoZuenir. Ele sabia que se convidasse oArtur Xexéo, o João Máximo, o RobertoD’ávila, ou qualquer outro, eu morreriade ciúmes. Eu morro de ciúmes do Zue-nir. Para me proteger, Maurício Azêdodedicou a mim esta missão, que é quase

Num ato marcado pelo carinho dos companheiros e pela intensa emoção que o dominou, aABI prestou homenagem a Zuenir Ventura pelos seus 80 anos, completados no dia dedicado à Imprensa.

No Dia da Imprensa,consagração de Zuenir

POR CLÁUDIA SOUZA

Aconteceu na ABIAconteceu na ABI

um dever, em nome da minha belíssimaamizade com Zuenir Ventura. Grandesjornalistas deste País começaram a carrei-ra sob a batuta de Zuenir, que fez de suavida um exemplo para tantas gerações.Em nome desta nossa amizade, em nomeda ABI, eu entrego esta placa que trazinscrita a seguinte dedicatória: “A Zue-nir Ventura, mestre do Jornalismo, a ho-menagem de seus companheiros e admi-radores da Associação Brasileira de Im-prensa aos seus gloriosos 80 anos. Que-ro encerrar a minha fala dizendo quegostar do Zuenir é fácil, é igual a gostardo Flamengo! Meus parabéns, meu que-rido. Desejo que você chegue aos 90!”

Emocionado, Zuenir agradeceu ahomenagem e sublinhou a trajetória cen-tenária da ABI:

“Acho que isto aqui não é uma home-nagem, e sim um teste de resistência car-diológica. Haja coração! Esta homenagemé o melhor presente que eu poderia rece-ber ao completar 80 anos. Sei que é menosdevido às minhas hipotéticas qualidades,mas sim à generosidade desta Casa e de seuPresidente Maurício Azêdo, meu amigo.Os 103 anos da ABI são a reposta paratudo. A história da ABI é de luta pela li-berdade de imprensa, e metade desta his-

tória coincide com a minha carreira jor-nalística, com os meus 50 anos de jorna-lismo. Eu acompanhei alguns dessesmomentos gloriosos da ABI. Não houveneste país um jornalista ameaçado que oPresidente da ABI não viesse em seu so-corro e em sua defesa com palavras eações. Eu fui amigo de dois antigos Pre-sidentes da ABI, o Doutor Prudente deMoraes, neto, com quem trabalhei nojornal Diário Carioca, e o Doutor BarbosaLima Sobrinho, que conheci em 1975quando ele foi a São Paulo participar daonda de protestos e indignação pelamorte do jornalista Vladimir Herzog,assassinado nos porões da ditadura. Acom-panhamos as ações de Barbosa Lima Sobri-nho em todo o País, antes da campanhadas Diretas Já, durante a campanha dasDiretas Já, após o impeachment do Pre-sidente Collor. Estes dois Presidentes daABI foram personalidades fundamentaisque arriscaram a própria pele nos mo-mentos difíceis durante a ditadura doEstado Novo e na ditadura militar de1964. Ontem e hoje, a história da ABI éa história da resistência.”

Atendendo ao pedido de Pery Cotta,Zuenir falou, em seguida, sobre liberda-de de imprensa:

Zuenir (ao centro) recebe as reverências do primeiro timeda imprensa: Meirelles, Sandroni, Ziraldo e Pery Cotta.

FOTOS ALCYR CAVALCÂNTI

11Jornal da ABI 367 Junho de 2011

ditadura militar, sabemos que a censu-ra foi, na verdade, uma censura à socie-dade. Muitos jornalistas sofreram duran-te este período, mas a sociedade brasileirasofreu muito mais em meio às trevasem que o Brasil mergulhou. Este prédioda ABI sofreu um atentado terroristaem 1976 e teve um andar destruído. Emmomentos assim, sempre havia alguémlutando. Quando ocorria um atentadocontra a liberdade de imprensa em qual-quer lugar do País, lá estava o Presiden-te da ABI. Poucas categorias profissio-nais são tão bem representadas quantoa nossa. Temos várias queixas na nossahistória de jornalistas, aliás, gostamosmuito de nos queixar. Mas nunca nosqueixamos da nossa representação nestaCasa. Também fiquei muito emociona-do em ser saudado pelo Ziraldo, porquenós não somos apenas colegas de alfabe-to, mas também de coração. O PeryCotta foi um querido companheiro. Elediz que é mais novo do que eu apenasoito anos, mas eu acho que é muitomais.(risos) Trabalhamos juntos noCorreio da Manhã em época de invasãode Redação. Quero terminar dizendoque a luta permanente é pela resistên-cia que não pode ser feita por uma úni-ca pessoa, mas através das gerações quesempre terão abrigo nesta Casa.”

“Quando Pery Cotta me pergunta oque é liberdade de imprensa, eu digo queé uma luta permanente, já que a liber-dade de imprensa sempre está ameaça-da. O poder político e o poder econômi-co não gostam da liberdade de impren-sa porque ela incomoda, fiscaliza emnome da sociedade. Quando vivencia-mos o cerceamento da liberdade deimprensa, como aconteceu durante a

Antes do encerramento da homena-gem, Cícero Sandroni discorreu sobre opapel histórico da imprensa na constru-ção do processo democrático no País:

“O Doutor Barbosa Lima Sobrinhosempre dizia que a História do Brasil é aHistória da Imprensa do Brasil. Não háum momento na história deste País,desde a Colônia até hoje, em que a im-prensa não tenha exercido papel decisi-vo na concepção dos fatos. A partir daColônia, Hipólito José da Costa – que étambém patrono desta Casa – e o seuCorreio Braziliense trabalharam muitopela Independência. Na época de DomPedro I, os jornais criaram panfletos queexerceram papel decisivo para a sua ab-dicação. No reinado de Dom Pedro II,como também Doutor Barbosa sempreacentuava, havia liberdade de impren-sa. Durante a Regência, não. Mas em seuperíodo como imperador de fato ele ja-mais censurou qualquer jornal. Os jor-nais diziam o que queriam e quando osministros reclamavam, ele retrucava:‘Se eu censurar a imprensa, como sabe-rei o que meus ministros fazem?’ Du-rante a República também, assim comona abolição da Escravatura, com jorna-listas como Joaquim Nabuco e José doPatrocínio. A imprensa fez a abolição, aimprensa fez a República”, disse, paraproseguir.

“Por incrível que pareça, junto com aRepública Velha veio a censura à impren-sa no Governo Marechal Teodoro, no

Cícero Sandroni: A História doBrasil é a História da Imprensa

Governo Floriano, que governou sobestado de sítio, no Governo Artur Ber-nardes, que também governou sob esta-do de sítio e sobre o qual o Doutor Bar-bosa escreveu o livro fundamental OPoder da Imprensa. Toda essa atividade daimprensa na História do Brasil é celebradano Dia da Imprensa, que é quando ani-versaria Zuenir Ventura, herdeiro dessaslutas, um desses guerreiros pela liberda-de de imprensa. Hoje é o aniversário deZuenir, mas é também o aniversário detodos nós que trabalhamos na imprensa.Muitos jornais, não vou citar aqui, esti-veram do lado errado na ditadura. Sabe-mos que em 1964 quase toda a impren-sa apoiou o golpe, mas o Zuenir não, oZiraldo, também não. Os jornalistas nãoapoiaram o golpe, os jornalistas foramperseguidos, foram presos, torturados,muitos foram mortos. A História daImprensa dos últimos 50 anos, ou talvezmais, se confunde com a história deZuenir Ventura. E isso, como dizia Dou-tor Barbosa, é a história do Brasil. Para-béns, Zuenir!”

Pery Cotta encerrou o evento cele-brando o homenageado, que exibiu parao público um exemplar do jornal O Glo-bo do dia 1° de junho de 2011, cuja capacomemora os seus 80 anos.

“Foi também uma bela homenagem”,disse Zuenir, jornalista, aplaudido de pépelos presentes.

Uma concorrida noite de autógrafosmarcou o lançamento do livro La LlaveEntre las Piedras, do jornalista, escritor,humorista e compositor paraguaio Má-rio Casartelli, apresentado em 14 de ju-nho, na ABI. A obra aborda a questãoárabe-israelense, que foi tema do debaterealizado em seguida ao lançamento. Oevento foi promovido pela Diretoria deCultura e Lazer e atraiu jornalistas, cine-astas, entre outras personalidades dacena política e cultural do Brasil.

Convidados pelo Diretor de Culturae Lazer da ABI, Jesus Chediak, o progra-ma contou com a presença dos cineas-tas Dejean Magno Pellegrini e SílvioTendler, da atriz e cantora Watusi e daPresidente do Comitê Estadual doPCdoB no Rio de Janeiro, Ana Rocha. OsConselheiros Domingos Meirelles, Sér-gio Caldieri e Mário Augusto Jakobskindtambém compareceram ao evento. Amesa de debates foi composta por Tend-ler, Mário Augusto Jakobskind e o autordo livro. A mediadora foi a jornalistaCláudia Furiati.

Na abertura, Jesus Chediak destacoua importância do diálogo entre os doislados envolvidos no conflito e o objeti-vo principal do encontro: “Hoje se pas-sa para a sociedade uma idéia muito er-rônea em relação ao povo de Israel, umpovo com uma história muito bonita,que todos nós respeitamos muito. Eudiria que o próprio Ocidente se estruturaem cima do semitismo. E como o Brasiltem a vocação pela paz e pela harmonia,este é um encontro de paz e harmoniaentre árabes e judeus. Isso é fundamen-tal, e esse é o nosso principal objetivo.”

O evento teve início com a exibiçãodo curta-metragem Matzeiva JulianoMer-Khamis, de Silvio Tendler, que con-ta a história de Juliano Mer Khamis, umpalhaço judeu que se apresentava emum teatro na cidade de Jenin, na Cisjor-dânia, um dos palcos dos conflitos entreisraelenses e árabes. Juliano foi assassi-nado há dois meses na Palestina, e sua

A Palestina, na visão deobservador paraguaio

A visão do conflito árabe-israelense do escritor Mário Casartelli.

história serve de exemplo aos que bus-cam a paz na região, como afirma Silvio:

“Eu acho que ele é o personagemmais emblemático do que pode ser a paz.Na verdade eu faço essa homenagem aele para mostrar que os fundamentalis-mos não têm limites. O Juliano mora-va em Haifa, era um grande ator emIsrael, ia toda semana pra Jenin, pra seapresentar para aquelas crianças. Sechama Matzeiva Juliano Mer-Khamis,porque Matzeiva em hebraico quer di-zer lápide, que é como se fosse uma lá-pide mesmo, uma homenagem.”

O jornalista Domingos Meirelles re-forçou a mensagem positiva passadapelo filme e o importante papel da ABIde levantar discussões com o objetivo depromover a paz: “Para a ABI é sempreum motivo de orgulho a apresentaçãode documentários com esse perfil, ain-da mais porque está de acordo com a tra-dição desta Casa, que sempre foi a favorda defesa das liberdades”.

Após a exibição do filme, Mário Ca-sartelli explicou a razão do título dadoao livro, La Llave Entre las Piedras (AChave Entre as Pedras), inspirado no pro-testo que acontece em todos os dias 15de maio, quando palestinos lembram daperda de suas casas, demolidas após acriação do Estado de Israel. Na manifes-tação, todos caminham com chaves sim-bólicas nas mãos, que representam oslares perdidos no dia do “Al Nakba”, quesignifica “a catástrofe”, como os pales-tinos se referem ao dia da fundação doEstado de Israel.

O autor expõe os problemas e as con-seqüências do que considera o desvirtu-amento do sionismo: “Como teoria, osionismo foi uma coisa interessante,bonita, congregar todo um povo num sólugar. Mas aconteceu que essa teoria foise desvirtuando. Lastimavelmente, osionismo, que foi muito bom por umlado, converteu-se depois em uma ide-ologia de extrema direita, que terminoupraticando o terrorismo de Estado”.

Colaborou Renan Castro, estudante de ComunicaçãoSocial, estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.

Casartelli: O sionismo converteu-se depois em uma ideologia de extrema direita.

ALCYR C

AVALCÂN

TI

Convidado para padrinho, Ziraldo entrega aZuenir a placa mandada fazer pela ABI.

12 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Aconteceu na ABIAconteceu na ABI

A ABI presente em MinasComemorações do Dia da Imprensa incluíram a criação da nossa Representação no Estado.

O Governador (com livro na mão) recebeu o Presidente da ABI(à esquerda) e o Diretor da ABI-MG, jornalista Taquinho.

WELLIN

GTO

NPED

RO/IM

PRENSA M

G

Numa palestra com um diplomata, quaseum incidente diplomático. Na tarde do dia 24de maio, na sede da ABI, no Centro do Rio, oEmbaixador da Líbia no Brasil, Salem OmarZubeidy, afirmou sem papas na língua que aCIA está por trás das rebeliões que ocorreramno país nos últimos meses. Disse ele que oprimeiro levante, no dia 17 de fevereiro, teriasido planejado com a colaboração da agênciade inteligência norte-americana.

“Soubemos que ela levou dois meses paraagitar essas pessoas, levando esses rebeldes àsdelegacias e aos quartéis para roubarem armaspesadas. Foi isso que aconteceu em Benghazi,na parte Leste, onde se encontra a maioriaislâmica e grande parte dos opositores quemoravam nos Estados Unidos e se tornaramagentes da CIA”, disse Salem Omar Zubeidy.

O encontro foi uma iniciativa da Comissãode Defesa da Liberdade de Imprensa eDireitos Humanos da ABI, por proposta doConselheiro Mário Augusto Jakobskind, com aintenção de pluralizar no Brasil os debatessobre a atual situação na Líbia. Ao começarsua exposição, o Embaixador agradeceu aoportunidade de “poder conversar com umsegmento do povo brasileiro, e,particularmente, os progressistas daimprensa”, numa referência à ABI.

Salem Omar Zubeidy acusou também aCIA de financiar algumas páginas na internetque fazem campanha contra o Governo deMuammar Kadafi. Segundo ele, depois deuma investigação, o Governo da Líbia chegouà conclusão de que as mensagens estãovinculadas a pessoas de diferentes partes domundo que recebem financiamento da CIA.

“No nosso esforço de abertura nacionalpara a opinião pública, pensávamos que eramlíbios que viviam no exterior e que desejavam,apenas, uma nova janela de expressão naLíbia. Mas descobrimos que eles trabalhavampara a CIA. Depois do movimento que levouKadafi ao poder, em 1969, muitas dessaspessoas se transferiram para os EstadosUnidos. Nesse grupo estão membros daIrmandade Islâmica que tentaram implantarum regime islâmico na Líbia, para impor aopaís normas de acordo com os seus própriospadrões”, afirmou.

Disse ainda o Embaixador que o Governolíbio espera contar com um acordo para aresolução do impasse político, que tem geradoconflitos no país, e que esse entendimentoseja promovido pela União Africana, numainiciativa da qual deverão fazer parte a UniãoEuropéia, as Nações Unidas e a Rússia.

“Não aceitamos apenas as imposições doConselho de Segurança da Onu, que édominado por cinco países sob a liderançados Estados Unidos. Querem o Kadafi fora dopaís, mas o líder não sairá porque não feznada de errado e ninguém tem autoridadepara ditar-lhe a saída. Somente os líbiospodem decidir sobre qual é o sistema quedeve vigorar no país”, concluiu.

Nem um bloguinho apareceuAberta a todos os meios de comunicação e

amplamente divulgada pela ABI, a coletiva nãoatraiu um repórter sequer – nem de jornais,nem de rádio, nem de televisão, nem do maisacanhado blog. Mesmo assim Zubeidy faloupara bom público na Sala Belisário de Souza daABI, onde foi ouvido por mais de três horas,com tradução simultânea, por representantesde movimentos sociais e de instituições dasociedade civil interessados em conhecerinformações de fontes diversificadas acercado que se passa no mundo.

As razões da Líbia,por seu embaixador

A ABI abriu espaço para umaentrevista sobre a rebelião anti-Kadafi,mas no dia não apareceu um repórter.

Em concorrida cerimônia realizada naAcademia Mineira de Letras, na noite dodia 1 de junho, a ABI declarou instaladaa sua Representação de Minas Gerais, quetem à frente o jornalista e editor JoséEustáquio de Carvalho, conhecido nosmeios jornalísticos e culturais de BeloHorizonte como Taquinho e que traba-lhou como repórter, redator e chefe deRedação de jornais de Minas e de sucur-sais de jornais e revistas de outros Estados,entre as quais IstoÉ, logo após a sua cria-ção. O Presidente de Honra da Represen-tação é o jornalista e professor de Direi-to José Mendonça, de 93 anos, que foi umdos fundadores do curso de ComunicaçãoSocial da Universidade Federal de MinasGerais, em 1962. A Representação da ABIem Minas soma-se à de São Paulo, criadanos anos 1970.

A criação da Representação integrouas comemorações do Dia da Imprensarealizadas pela ABI, a qual incluiu essa ce-rimônia e, no Rio, a homenagem ao jor-nalista Zuenir Ventura pelos seus 80 anos.Ao dar posse ao Diretor de Representa-ção, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo,salientou a alta representatividade deEustáquio, escolhido por unanimidadepelo numeroso grupo de profissionais queintegram o Conselho Consultivo da Re-presentação. Em seu primeiro pronunci-amento, Eustáquio expôs as linhas geraisda atuação da Representação, que vaiconcentrar esforços em iniciativas quecontribuam para o aprimoramento técni-co, cultural e ético dos jornalistas minei-ros, promovam a troca de experiênciasentre os profissionais há mais tempo ematividade e os jovens profissionais e estu-dantes de Jornalismo e de ComunicaçãoSocial e a valorização da rica trajetória deMinas Gerais no campo do jornalismo,através da criação de unidades e serviçosculturais, como o Museu da Comunicaçãono Estado.

Tendo como mestre de cerimônia ojornalista Guilherme Mauro, neto docineasta Humberto Mauro, um dos pio-neiros do cinema brasileiro, a solenida-de contou com uma mesa de honra for-mada pelo Presidente da Academia Mi-neira de Letras, escritor Orlando Vaz,pelo Professor José Mendonça e peloSecretário de Comunicação Social do Es-tado de Minas Gerais, jornalista Nestorde Oliveira. Foi considerado tambémcomo integrante da mesa o jornalistaAloísio Morais, Presidente do Sindica-to dos Jornalistas Profissionais do Esta-do de Minas Gerais. Além de Mendon-ça, que leu o sucinto termo de instalaçãoda Representação, de Vaz, Nestor deOliveira, Eustáquio e Maurício, discur-sou no ato o jornalista Glauco de Olivei-ra, Diretor da Editora Book Link, do Riode Janeiro, que editou uma plaqueta his-

toriando os antecedentes da criação daRepresentação.

Participaram do ato associados da ABIradicados em Belo Horizonte, comoAureclydes Ponce de Leon, Sérgio A. Ne-ves, Vice-Presidente da Associação Mi-neira de Imprensa, e Rogério Faria Tava-res, âncora do programa Rede Mídia, daTV Rede Minas; o ex-Deputado federalNilmário Miranda, Presidente da Funda-ção Perseu Abramo, de São Paulo; o jorna-lista Edivaldo Farias, Diretor-Geral daTV C , Canal 6 da Net, entre dezenas deconvidados.

Com o GovernadorNa véspera da sessão, o Presidente da

ABI e os membros do Conselho Consul-tivo da Representação foram recebidosem audiência especial pelo GovernadorAntônio Anastasia, que saudou a chega-da da ABI a Minas Gerais e fez até umquestionamento: por que isto se deu so-mente agora? Em seguida, a convite doGovernador, que embarcaria minutosdepois para as comemorações do aniver-sário do Município de Divinópolis, acomitiva da ABI visitou as instalações docomplexo cultural que o Governo doEstado está implantando na área do Palá-cio da Liberdade, em razão da transferên-cia dos órgãos de Governo para a CidadeAdministrativa criada pelo GovernoAécio Neves com base em projeto deOscar Niemeyer.

Os dirigentes da ABI participaram tam-bém de uma audiência com a Presidente daObra Social do Estado, Andréa Neves, naquarta-feira, dia 1, e de uma reunião comtécnicos do Serviço Federal de Apoio àPequena e Média Empresa de Minas-SebraeMG, na quinta-feira, dia 2. Com estes osrepresentantes da ABI discutiram ques-tões relacionadas ao tema A Evolução do

Relacionamento entre a Imprensa e as Empre-sas no Brasil.

Legalidade: ExceçãoPor sugestão dos companheiros de

Minas, o Presidente da ABI fez na sessãona Academia Mineira de Letras uma expo-sição sobre o tema A ABI e a Construção daDemocracia Brasileira, obra que ele definiucomo extremamente difícil, dada a tradi-ção de autoritarismo no País. Nos nossos122 anos de regime republicano, disse, orespeito à legalidade foi exceção no País,que conheceu pouco mais de um terço sobo império de instituições democráticas,diferentemente do que aconteceu sob aprópria monarquia no Governo do Impe-rador Dom Pedro II, que, como assinalouum de seus biógrafos, o historiador e aca-dêmico José Murilo de Carvalho, tinha emalto apreço a liberdade de imprensa. Se nãofor através da imprensa, questionava DomPedro II, como vou saber o que os meusministros estão fazendo de errado?

Lembrou Maurício que esse autoritaris-mo se manifesta já nos primeiros anos darepública, com as violências praticadas noGoverno do Presidente Marechal Floria-no Peixoto, como relatado numa das obras-primas da literatura brasileira, O Triste Fimde Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

Em sua exposição, o Presidente da ABIacentuou que a grande contribuição daCasa à construção da democracia entrenós é a sua incansável pregação, desde oprincípio do século 20, da importância daliberdade de imprensa e da liberdade deexpressão para a convivência democráti-ca, como, aliás, assinalado recentementeem julgamento no Supremo TribunalFederal pelo Ministro Carlos Ayres Britto,que apontou a liberdade de imprensacomo um dos pilares essenciais do Esta-do Democrático de Direito.

13Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Os 60 anos da fundação do diário que revolucionoua imprensa, a partir de 12 de junho de 1951, serão

assinalados na Casa por uma série de debates e pelolançamento do livro Última Hora (Como Ela Era),

fruto de pesquisa e paixão do jornalista Pinheiro Júnior.

POR CLÁUDIA SOUZA

A ABI vai celebrar os 60 anos do jornalÚltima Hora no próximo dia 13 de julho,com o lançamento do livro ÚltimaHora(Como Ela Era) (Editora Mauad X),do jornalista Pinheiro Júnior, e a realiza-ção do seminário Última Hora – 60 anos,que vai reunir jornalistas que pertence-ram aos quadros do diário, entre os quaiso Presidente da ABI, Maurício Azêdo, Jor-ge Miranda Jordão, Alcyr Cavalcanti,Benício Medeiros, Pery Cotta, Conse-lheiros da Associação.

Fundado em 12 de junho de 1951 porSamuel Wainer, no Rio de Janeiro, o jor-nal atravessou longo período de eferves-

cência social e política e deixoude circular em 1971 por for-ça da ditadura militar, inco-modada com seu estilo po-pular, dinâmico e inova-dor, que introduziu mu-danças na rotina da im-prensa e ampliou a áreade circulação com Reda-ções em Niterói, São Pau-lo, Belo Horizonte, Curi-tiba, Porto Alegre e Recife.

Os Presidentes da Re-pública Getúlio Vargas,Juscelino Kubitschek, Jâ-nio Quadros e João Goulartmarcaram a trajetória do di-ário, comprometido com oviés social da notícia e o espí-rito democrático da Redação,que reuniu Octávio Malta,

Edmar Morel, Moacir Werneckde Castro, Sérgio Porto, Antô-

nio Maria, Rubem Braga, Di Ca-valcânti, Vinicius de Morais, Jor-

ge Amado, Adalgisa Nery, Alex Vi-any, entre outros jornalistas, intelec-tuais, escritores e artistas.

“Desde suas primeiras edições ojornal estabeleceu forte ligaçãocom as aspirações e os sentimentosda grande massa do povo e sobretu-do da população mais pobre. Sa-muel, como os companheiros ochamavam, vendo-o como umigual, ainda que no papel de líder,criara um poderoso jornal popu-lar; um jornal sempre novo, ágile vibrante, como ele fazia assina-

lar nos editoriais de primeira página emque explicava as freqüentes reformas queproduzia”, destaca Maurício Azêdo,autor do prefácio da obra.

O livro também faz referência aos pe-ríodos dramáticos do jornal, como a CPIda Última Hora, em 1953, à prisão de Sa-muel Wainer, em 1955, e ao fechamen-to do jornal.

Samuel Wainer introduziu mudançasgráficas com novos usos da fotografia,cores e ilustrações, criou a figura do fotó-grafo mensalista, que recebia por mês, comregistro em carteira pela CLT, e formou oarquivo fotográfico do jornal. Para ilustraras matérias, a equipe do periódico produ-zia centenas de fotos e ilustrações, masapenas algumas delas eram aproveitadasna edição final, o que gerava uma “sobra”de cerca de 400 imagens por número.

O acervo permaneceu sob a guarda dePinky Wainer, filha de Samuel, até 1989,quando foi adquirido pela Secretaria deEstado da Cultura de São Paulo. É com-posto por mais de 166 mil cópias fotográ-ficas, 2.223 ilustrações, 600 mil negati-vos e volumes encadernados das ediçõesdo jornal, que foram depositadas na he-meroteca do Arquivo Público do Estadode São Paulo.

O tratamento de conservação preven-tiva e a digitalização das imagens foramrealizados pelo Projeto Última Hora –Acervo Fotográfico, a partir de 2007, noCentro de Acervo Iconográfico e Carto-gráfico do Arquivo Público do Estado deSão Paulo. O acervo das edições do jornalfoi digitalizado em 2008.

O material está disponibilizado paraconsulta no Arquivo do Estado de SãoPaulo(SP), e no endereço www.arquivoestado.sp.gov.br/uhdigital, com fotos daBienal de Arte Moderna, em 1951; da pri-são do jornalista Carlos Lacerda, em1952; das Olimpíadas de Helsinki, em1952; do suicídio do Presidente GetúlioVargas, em 1954; da posse de João Gou-lart no Senado em 1956, entre outrosacontecimentos.

Criada pelo caricaturista Lan, a figu-ra do Corvo, representando o jornalistae político Carlos Lacerda, e os gorilas far-dados, metáfora dos militares, é umexemplo de caricatura que ganhou des-taque histórico na guerra midiática en-tre Carlos Lacerda e Getúlio Vargas.

A Última Hora de Samuelnum seminário na ABI

A Última Hora de Samuelnum seminário na ABI

COMEMORAÇÃOPA

ULO

REI

S/FU

ND

O Ú

LTIM

A H

ORA

/ARQ

UIV

O P

ÚB

LICO

14 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

JORNAL DA ABI - O QUE O MOTIVOU A ES-CREVER O LIVRO?

Pinheiro Júnior – É um projeto tão an-tigo quanto minha vida de jornalistadepois que deixei UH, na década de 1970.Fui acumulando mais informações sobreo jornal, sobre Samuel Wainer e sobre osdemais companheiros de Redação, comos quais continuei mantendo contato econversação ao longo desses últimos 40anos. Tomava notas, fazia esboços, apro-fundava pesquisas, conferia datas, tele-fonava e até ensaiava rápidas entrevistascom personagens que julgava importan-tes para construir o livro. Um livro-ver-dade, mas também um romance na me-dida das possibilidades do jornalismonarrativo. É verdade que a linha de mon-tagem de A Última Hora (Como Ela Era)está fixada nos 17 anos que dediquei aojornal, de repórter a seu diretor-respon-sável já no final da circulação desse gran-de órgão nacional que tinha a ediçãocarioca como viga-mestra.

JORNAL DA ABI - QUAL É O OBJETIVO DA OBRA?Pinheiro Júnior – Tenho a pretensão de

ajudar a perpetuar a História deste quefoi o diário mais fascinante da impren-sa nacional. Objetivei, assim, escreverum enredo a um só tempo autênticoquanto aos fatos abordados e emocio-nante na medida em que tentei mostraro comportamento de uma equipe de jor-nalistas com tanta liberdade de atuar e semanifestar, que até improvisava partidasde futebol de salão dentro da Redação aofinal das tarefas sempre árduas, como ochamado fechamento da edição. Naspáginas do jornal, quase sempre essa li-berdade também se prolongava atravésde reportagens e artigos. Mostro essa fa-ceta em A Última Hora (Como Ela Era).O próprio título do livro, inspirado oucolado da coluna de Nelson Rodrigues,A Vida Como Ela É, quer demonstrar essapretensão, vamos dizer literária, teatral,pois a Redação de UH era um “palco ilu-minado” por celebridades nacionais dojornalismo e da política, da intelectuali-dade e da inteligência artística.

JORNAL DA ABI - DURANTE QUANTO TEMPO

O SENHOR ESCREVEU O LIVRO?Pinheiro Júnior – Acumulei conheci-

mento a vida inteira, de repórter a dire-tor do jornal, para escrever o que mepropus que fosse uma narrativa compac-ta e atraente. Levei aí, vamos dizer, uns

am nos manicômios, nesta mesma épo-ca, todas elas condenadas pela mestraNise da Silveira. Edmar Morel foi outrocélebre repórter de campanhas, por exem-plo, contra o leite poluído das chamadas“vacas leiteiras” de rua, ele que era o au-tor de tantos livros famosos de reporta-gem como A Revolta da Chibata. AmadoRibeiro, o maior repórter policial de to-dos os tempos, autor de denúncias quemarcaram época, como a dos “Mata-mendigos”, que implicavam o Governa-dor Carlos Lacerda. Octavio Ribeiro, quese não conseguiu desvendar o mistériodo assassinato e desaparecimento docorpo de Dana de Teffé, esteve muitoperto disso. Oscar Cardoso, que desco-briu o paradeiro do assaltante mais caça-do do Brasil, que foi Cara de Cavalo, masdepois não pôde livrá-lo do seu fuzila-mento pelo Esquadrão da Morte. Enfim,a relação é quase infinita. Quanto àsminhas reportagens, gostei de fazer, àsvezes sofrendo, e de curtir a repercussãode Juventude transviada, O Desapareci-mento do Tenente Fernando na Amazônia,São Paulo, Capital do Império da Cocaína,Venda (Ilegal) de Terras a Estrangeirose Primeira Trincheira da Revolução (Leia-se Golpe) em Juiz de Fora. Poderia citardezenas de outras, mas essas foram as demaior repercussão na época e de impor-tância mais sentida por mim.

JORNAL DA ABI - A TRAJETÓRIA DO JORNAL

ESTÁ VINCULADA A FIGURAS COMO SAMUEL WAI-NER, GETÚLIO VARGAS, JUSCELINO KUBITSCHEK,JÂNIO QUADROS, JOÃO GOULART. O SENHOR

PODERIA DESCREVER A INFLUÊNCIA DELES NA CONS-TRUÇÃO DA UH?

Pinheiro Júnior – Samuel Wainer, é cla-ro, foi o criador de Última Hora. E de talforma se ligou a ela que ao perdê-la parapróceres da ditadura militar o jornal de-finhou e morreu em mãos indevidas.Getúlio Vargas, diriam sempre inimigose até amigos com conhecimento de cau-sa, foi o pai de UH. Getúlio voltou aopoder em 1951, depois da derrubada doEstado Novo em 1945, catapultado poruma reportagem de Samuel Wainer, in-titulada ou conhecida historicamentecomo Ele voltará! Para recompensar Sa-

Em entrevista exclusiva ao Jornal da ABI, o jornalista Pinheiro Júnior falou sobre a importância daÚltima Hora para a História da Imprensa e sua influência na evolução política e social do País.

Depois da criação de UH,a imprensa diária do Brasilnunca mais foi a mesma

50 anos. Enquanto o tempo corria, éverdade, trabalhei nos Diários Associa-dos, no O Globo, nas TVs Educativa, Rioe Globo, na Crítica, de Manaus, no Flu-minense, de Niterói... E ia escrevendo ou-tros livros, como Mefibosete, Bombom La-drão, mas sempre voltava a alimentar oprojeto de A Última Hora (Como Ela Era).E assim, meio século de batalha corpo-a-corpo com a notícia se passou.

JORNAL DA ABI - QUAL FOI O MÉTODO DE

TRABALHO EMPREGADO NA PESQUISA?Pinheiro Júnior – Eu tinha meus rascu-

nhos, minhas anotações particulares,milhares de recortes guardados, cópias dematérias, publicadas ou não, e até algu-mas cartas de leitores quando mantiveem UH Coisas da Vida e da Morte e Cida-de Nua, duas colunas que me manti-nham em contato quase direto com meusleitores-fonte. Mas também recorri aomeu antigo professor de História noCurso de Jornalismo da Faculdade Naci-onal de Filosofia – Hélio Silva, autor daHistória da República Brasileira, obra paramim sempre recorrente; apesar de con-siderada apenas factual baseada em docu-mentos, para mim é ainda insuperável.Outra fonte foi Nelson Werneck Sodré,companheiro de Redação em UH, gran-de editorialista, autor da História daImprensa no Brasil, esta real e absoluta-mente insuperável. Por fim, na etapa

final e com o Google já inventado e aoalcance dos dedos, fui à web confirmardatas e nomes necessários para que o li-vro não pairasse fora do ar.

JORNAL DA ABI - QUANDO E COMO O SENHOR

FOI TRABALHAR EM UH?Pinheiro Júnior – Fui trabalhar em UH

em 1955, quando dei baixa no Exército,aos 20 anos, como soldado obrigatório, epassei no vestibular para Jornalismo naFNFi, curso que freqüentei até o tercei-ro ano sem me diplomar. Com recomen-dação do jornalista Wilson Reis, ex-repór-ter sindical de Diretrizes e depois chefe deReportagem de UH já no apagar das lu-zes do jornal, apresentei-me ao entãodiretor de Redação Paulo Silveira, que mebotou direto na reportagem. Minha ex-periência, até então, era só de jornaisestudantis, aos quais me dedicava desdeo curso ginasial.

JORNAL DA ABI - QUAL FOI A SUA EXPERIÊN-CIA PROFISSIONAL EM UH E QUANTO TEMPO OSENHOR TRABALHOU NO JORNAL?

Pinheiro Júnior – Na UH de SamuelWainer trabalhei 17 anos. Depois fui cha-mado por Ary de Carvalho para ajudar nareinstalação do jornal, que foi parar nasmãos dele por força, vamos dizer assim,do destino que naquele tempo tinha osinistro nome de ditadura militar. Rein-gressei desta forma duas vezes numa UHtruncada em sua história, que já não eraa UH autêntica de Samuel Wainer. E porduas vezes deixei o jornal, reinstalado naAvenida Gomes Freire, na mesma Reda-ção do também assassinado Correio daManhã, e na Rua Equador, sua últimamorada – por discordar das injunçõesimpostas pela ditadura que exigia do po-bre e desprotegido Ary de Carvalho muitomais do que ele podia dar sem matar ojornal popular repentinamente, pois ojornal já agonizava lentamente com Arye com os donos que o sucederam.

JORNAL DA ABI - AO LONGO DESSES ANOS

DE TRABALHO, QUAIS REPORTAGENS MARCARAM AHISTÓRIA DO JORNAL? O SENHOR PODERIA CITAR

TAMBÉM AS DE SUA AUTORIA?Pinheiro Júnior – UH foi um jornal ge-

nuinamente de grandes reportagens nar-rativas e de denúncia. Naquela Redaçãode repórteres autênticos militaram JoséMontenegro, o primeiro jornalista bra-sileiro a se internar num asilo de loucospara mostrar as barbaridades que ocorri-

COMEMORAÇÃO A ÚLTIMA HORA DE SAMUEL NUM SEMINÁRIO NA ABI

Pinheiro Júnior: “UH era um palcoiluminado por celebridades do jornalismo,

da política e da inteligência artística.”

ALCYR C

AVALCAN

TI

15Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Era): Nelson Rodrigues influenciou comsua teatrologia também revolucionáriaa própria maneira de fazer o jornal, ondetrabalhou por muitos anos, tendo comoplataforma de criação a superfamosa AVida Como Ela É. Mas houve um curto-circuito, por assim dizer, entre as fanta-sias de Nelson Rodrigues e os cuidadosjornalísticos de UH, neste caso dramático(!) representado pessoalmente por SW.Ao usar o nome de Amado Ribeiro, como consentimento dele, é verdade, paramaterializar como teatro o funciona-mento de um jornal inescrupuloso ima-ginário ou fictício, Nelson Rodriguesrompeu com Samuel. E foi embora deUH, instalando-se no O Globo, onde Ro-berto Marinho o esperava de braços aber-tos para modernizar e enriquecera vetusta crônica esportiva.

JORNAL DA ABI - MOACIR WERNECK DE

CASTRO TAMBÉM FOI UM DOS GRANDES NOMES

DO JORNAL. QUAL FOI O PAPEL DELE NA HISTÓ-RIA DE UH?

Pinheiro Júnior – Moacir Werneck deCastro foi o redator-chefe permanentede UH. Mesmo quando assumiu a dire-ção responsável do jornal, no impedi-mento de Samuel em dois exílios força-dos, Moacir continuou como redator-chefe. Era, portanto, o principal editori-alista. Interpretava a opinião do jornalem todos e nos mais obscuros dos mo-mentos políticos. Mas sua participaçãona Redação, ainda que vibrante e pode-rosa, se fazia discretamente não só por-que não gostava de se envolver na admi-nistração da Redação como tambémporque, como intelectual de primeiralinha, nunca deixou que o jornalismo

muel – que Getúlio chamava carinhosa-mente de “Profeta” – o Presidente ofere-ceu-lhe um jornal ou a embaixada em Is-rael. Samuel escolheu o jornal. E Getúliofacilitou-lhe os financiamentos, inclusiveatravés do Banco do Brasil, como era pra-xe na época para todos os jornais se colo-carem à disposição do poder federal, fatoeste documentado por Nelson WerneckSodré na sua História da Imprensa. Jusce-lino Kubitschek foi apoiado por UH des-de os primeiros passos em Minas Geraispara chegar à Presidência da República.Depois JK apoiou UH para ajudar a reer-guer o jornal que sobrevivia penosamenteapós a campanha de Carlos Lacerda queculminou com o suicídio de GetúlioVargas. Depois veio Jânio Quadros, o “ini-migo cordial” de UH, que, embora nãoapoiado quando se fez Presidente-relâm-pago, nunca hostilizou o jornal, que, porsua vez, parecia deixar JQ fazer as loucu-ras dele sem mais condenações editoriais.Por fim João Goulart adotou o velhoamigo SW, quase oficialmente, como“eminência parda”. Quando Jango caiuda Presidência e fugiu pelo Sul. SW tam-bém se asilou e só voltou ao comando deseu jornal no Brasil quando percebeu que

sua vida já não corria pelo menos perigode morte. Mas não pôde salvar o jornal desua vida. A ditadura matou UH numa“espécie de genocídio jornalístico”, diriaFlávio Brito, o último dos grandes man-cheteiros de UH junto com João Ribeiro.

JORNAL DA ABI - QUAIS FORAM AS PRINCI-PAIS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS PELA UH NA RO-TINA JORNALÍSTICA DA ÉPOCA?

Pinheiro Júnior – UH foi uma revolu-ção jornalística desde o primeiro núme-ro, em 12 de junho de 1951. Os jornais daépoca eram acanhados, feios, tímidos,por vezes bisonhos e contraditoriamentedistantes do povo-leitor. Tinham tira-gem limitada, quase ridícula. UH veioconvulsionar tudo isso, com uma apre-sentação visual a cores e ousada, um textovibrante e ágil, titulagem quase sempreagitada e por vezes nervosa. Muitas fo-tos! Fotos sensacionais privilegiadas naprimeira página em dimensões nuncavistas em diários nacionais. Samuel trou-xera Guevara e os irmãos Parpagnoli daArgentina e entregou a missão diagra-madora-paginadora a eles e a uma equi-pe de desenhistas que incluía gênioscomo Darel, Nássara e Augusto Rodri-gues. Sem falar em Di Cavalcânti, queera nada menos do que colunista, depoisde decorar a Redação da Praça Onze compainéis maravilhosos. Os concorrentesficaram em pânico. Tentaram se moder-nizar e acompanhar UH. Mas só conse-guiram muito tempo depois, porque sepreocuparam muito mais em massacraro novel rival que teimaria, porém, em con-tinuar inovando. Inclusive com aquelarevista semanal até hoje insuperável,guardadas as conquistas tecnológicas, arevista Flan de fim de semana.

JORNAL DA ABI - NELSON RODRIGUES TEVE

ATUAÇÃO DESTACADA NA SEÇÃO A VIDA COMO ELA

É”. QUAL FOI A IMPORTÂNCIA DO TEATRÓLOGO

PARA O JORNAL?Pinheiro Júnior – É o que eu conto com

destaque em A Última Hora (Como Ela

FOTOS E DESENHOS: FUNDO ÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO

Os fotógrafos de Última Hora registraram grandes momentos da História recente do País, comoo salto tríplice de Ademar Ferreira da Silva, que conquistou a medalha de ouro nas Olimpíadas

de Helsinque, em 1952. Na política, dois fatos marcantes: a morte de Getúlio Vargas e a possede João Goulart no Senado. Abaixo, caricatura de Carlos Lacerda, chamado de “Corvo”.

16 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

diário abatesse sua carreira de escritor etradutor. É bom lembrar que MWC foio tradutor de Georges Bernard Shaw noBrasil (Aventuras de Uma Negrinha QueProcurava Deus) e o biógrafo mais emo-cionante de Simón Bolivar (O Generalem Seu Labirinto).

JORNAL DA ABI - RUBEM BRAGA, DI CAVAL-CÂNTI, VINICIUS DE MORAIS, JORGE AMADO,ADALGISA NERY, SÉRGIO PORTO (STANISLAW

PONTE PRETA), ALEX VIANY E ANTÔNIO MA-RIA. O SENHOR PODERIA COMENTAR A ATUAÇÃO

DELES EM UH?Pinheiro Júnior – Rubem Braga, sua

mulher Zora Seljan, Emiliano Di Caval-cânti e Jorge Amado foram nomes queabrilhantaram UH nos primeiros anos decirculação, entre 1951 e 1954, como co-laboradores freqüentes ou até perma-nentes. Vinicius de Morais foi o cronis-ta-poeta, sempre solicitado a comentarcom destaque fatos populares de massa,como a Copa do Mundo. É dele a célebrecrônica de primeira página Vai, brasilsi-nho! durante a Copa da Suécia. AdalgisaNery foi talvez a mais poderosa colunis-ta diária de UH, atacando sempre e desa-fiando inimigos comuns do progresso eda democracia. Sérgio Porto – quem ig-nora? –, foi o Lalau das certinhas e o cri-ador do Febeapá - Festival de Besteiras queAssola o País –, que marcaram o maiordos sucessos de UH. Alex Viany sucedeua Zora Seljan como crítico de cinema evibrante redator de UH-Revista, que erao segundo caderno do jornal. E AntônioMaria... Bem Antônio Maria, com suacoluna policial de Copacabana, seu jor-nal personalizado e sua intimidade coma noite, a música e a boemia, acabou se-duzindo ou sendo seduzido pela própriaDanuza Leão Wainer, num tórrido ro-mance que a Redação acompanhou delonge mas emocionadamente. Nesta plê-iade de bravos, temos que citar ainda LuísAlípio de Barros, o LAB da gastronomiae do cinema, e Manoel Bernardes Muller,o Jacintho de Thormes, da crônica soci-al que virou samba na voz e composiçãode Kid Morengueira, o Moreira da Silva.Outros bravos havia e estão retratados

em A Última Hora (Como Ela Era). JoãoEtcheverry, talvez o mais importante einfluente dos diretores de Redação, coma lenda que arrastava de ter sido coronelda Legião Estrangeira, é citado sempreno calor das grandes crises enfrentadaspor UH.

JORNAL DA ABI - UM JORNAL SÉRIO, MAS QUE

NÃO DISPENSAVA O HUMOR. COMO ERA O CLIMA

NA REDAÇÃO? QUE JORNALISTAS COLABORAVAM

PARA A HARMONIA INTERNA? O SENHOR PODE

CONTAR ALGUNS CASOS?Pinheiro Júnior – Como quase todos os

jornais que se gabam de trabalhar descon-traidamente, na medida das possibilidadesconcedidas pelo ato de noticiar, UH tinhaseus palhaços. O editor de Polícia, AugustoDonadel Jorge, confessava mesmo quesua grande frustração era nunca ter che-gado a um picadeiro de verdade. Assim,Donadel era o grande piadista da Redação.

No livro conto as melhores dessas piadas.O próprio Samuel, com sua tolerância esimpatia, contribuía para fazer da Redaçãoum lugar sem medo, embora de muito tra-balho. Como me referi aqui, em duasoportunidades Samuel surpreendeu a Re-dação numa improvisada partida de fute-bol de salão... E que fez ele? Nada, ou me-lhor, só advertiu os jogadores para as im-pertinências da gerência que poderia nãocompreender a desordem no fim da noite.

JORNAL DA ABI - EM RELAÇÃO AOS MOMENTOS

DE TENSÃO, QUAIS FORAM OS MAIS DRAMÁTICOS?Pinheiro Júnior – UH era um jornal

sitiado pelas perseguições. Foi persegui-do e quase fechado durante os episódiosque antecederam ao suicídio de Getúlio.Logo em seguida, Samuel seria preso.Enquanto estava preso, o Marechal Tei-xeira Lott deu o contragolpe e mobilizoutanques de guerra para garantir a posse

de Juscelino Kubitschek. Esses momen-tos encadeados fizeram o jornal circulara duras penas e com a Redação na “pon-ta dos cascos” como se dizia para acentu-ar dramaticidade e tensão. Depois veio ogolpe militar de 31 de março/1° de abrilde 1964 com a Redação da Rua Sotero dosReis, em São Cristóvão, depredada, in-cendiada e metralhada. Esse foi o auge dadramaticidade a que um jornal como UHpoderia chegar. Mas logo veio o AI-5 de13 de novembro de 1968, com a Redaçãoassaltada de fato por dois coronéis e ummajor de pistola na cintura e que supe-

rintenderam com rudeza e ig-norância as matérias que po-deriam ser publicadas, inter-ferindo na primeira páginaque eu fazia sob as vistas deMoacir Werneck de Castro.Eles apontavam o dedo e dizi-am “isso pode”, “tira isso”, “ojornal não pode sair em preto,se sempre teve cor”, “tem queter azul aqui”. Mas nada en-tendiam de jornal. E talvezsequer entendessem de cen-sura. Por fim, a 21 de abril de1972, veio a notícia da aliena-ção do jornal para grupos li-

gados à ditadura e que, mediante a com-pra-arrendamento do título ÚltimaHora, pretenderam manter o jornal emcirculação. Quando aconteceu a CPI daÚltima Hora, o episódio do assassinatodo repórter Nestor Moreira, nas depen-dências de uma delegacia policial noRio, em maio de 1954, deu início a umaseqüência de acontecimentos que cul-minou no suicídio do Presidente Getú-lio Vargas.Eu ainda não trabalhava nojornal. Entrei na Última Hora em mar-ço de 1955, quando o diário atravessa-va grave crise em virtude da prisão deSamuel Wainer sob a acusação de nãoser brasileiro. A Redação estava sendodespejada da Praça Onze, e os saláriosatrasados. Samuel Wainer sempre afir-mava ser brasileiro nato. O boato deque ele teria nascido na Bessarábia,atual República da Moldávia, não foicomprovado.

Grandes desenhistas tiveram seus trabalhos publicados na UH: CarlosEstêvão (acima), Nássara (abaixo, caricatura de Di Cavalcanti) e Redi.

COMEMORAÇÃO A ÚLTIMA HORA DE SAMUEL NUM SEMINÁRIO NA ABI

1° DE OUTUBRO DE 1950 18 DE JUNHO DE 1962 14 DE MARÇO DE 1964

Manchetes fortes, comvalorização das fotos e

quadros, davam grandeimpacto às primeiras páginas

de Última Hora. Acima,caricatura de Armando Falcão.

17Jornal da ABI 367 Junho de 2011

JORNAL DA ABI - QUAL FOI A FASE MAIS IM-PORTANTE DA UH? POR QUÊ?

Pinheiro Júnior – Acho que UH teveduas fases importantes: uma logo após afundação, dando cobertura ao Governo deGetúlio Vargas e valorizando os profis-sionais do jornalismo que tiveram seussalários compatibilizados com a funçãoem níveis considerados os mais altos daimprensa; e outra, durante os Governosde Juscelino, Jânio e Jango, quando o jor-nal se expandiu criando edições locais e su-cursais em Porto Alegre, Curitiba, BeloHorizonte, Niterói, Brasília e Recife. Foiuma rede que se notabilizou pela fideli-dade popular a partir das matrizes, poispareciam ser duas as matrizes, no Rio eem São Paulo. Com o golpe de 1964 e o AI-5, os inimigos figadais do jornal consegui-ram aos poucos sufocar o jornal, não ape-nas com os períodos de censura rígida,mas cortando-lhe impiedosamente tam-bém as fontes de publicidade e crédito.

JORNAL DA ABI - QUAL O GRANDE LEGADO

DO JORNAL Última Hora?Pinheiro Júnior – A imprensa escrita, o

que hoje chamamos de mídia impressa,nunca mais foi a mesma no Brasil depoisde UH. Todos os jornais trataram de semodernizar, atualizar os planejamentosgráficos, que muitos sequer tinham dia-gramação. E mesmo os salários e o respeitoprofissional parecem ter melhorado porinfluência de UH, principalmente com aintrodução de assinaturas de matériascom mais destaque, o que era uma carac-terística também da revista Flan. Os tex-tos também ganharam novos coloridos ecuidados, sem falar na titulagem dasmatérias e nas manchetes que forçaramuma vibração muitas vezes confundidacom o sensacionalismo fácil.

JORNAL DA ABI-QUAL A IMPORTÂNCIA HIS-TÓRICA E POLÍTICA DO UH PARA O PAÍS?

Pinheiro Júnior – Historicamente, UHmarcou o jornalismo de tal forma que,para sempre, os compêndios mesmo vir-tuais terão que citar o testemunho e a par-ticipação do jornal nos grandes eventosda República de 1951 até 1972. Politica-

O lançamento do diário Última Hora pelo jornalista Samuel Wainer em12 de junho de 1951 foi um dos mais notáveis acontecimentos da imprensano Brasil no século XX. Com quase meio século de diferença em relação à cri-ação do Correio da Manhã por Paulo Bittencourt, em 1901, e cerca de trêsdécadas depois da fundação de A Noite e O Globo por Irineu Marinho, e doDiário Carioca por José Eduardo de Macedo Soares, nos anos 1920, SamuelWainer incorporava ao então numeroso conjunto de diários da antiga capi-tal um veículo que marcaria de forma vigorosa sua presença no mercado depublicações da cidade, pelo caráter inovador de sua apresentação gráfica, pelaagilidade nas reportagens e na cobertura dos fatos do dia-a-dia e pela identi-dade de seus editoriais, das opiniões de seus colunistas e pelo tom progres-

sista de suas reportagens.Desde suas primeiras edições o jornal estabeleceu forte ligação com

as aspirações e os sentimentos da grande massa do povo e sobretudoda população mais pobre. Samuel, como os companheiros o chama-vam, vendo-o como um igual, ainda que no papel de líder, criara um

poderoso jornal popular; um jornal sempre novo, ágil e vibrante, comoele fazia assinalar nos editoriais de primeira página em que explicava

as freqüentes reformas que produzia.É a trajetória desse jornalista de exceção e desse veículo que conquis-

tou um lugar preeminente na História do Jornalismo no Brasil que ojornalista Pinheiro Júnior apresenta neste trabalho, fruto de demora-

da e meticulosa pesquisa, de longa vivência profissional e pessoal e so-bretudo de uma paixão e uma admiração que o autor não dissimula. Alémde profissional extraordinário, Samuel Wainer era portador de insuperá-

vel carisma, que seduzia quantos tivessem a oportunidade de conhecê-lo e deprivar de sua convivência, por mais fugaz que fosse. Um dos fascinados por suafigura, seu talento e sua capacidade de comando foi precisamente o jovemjornalista Pinheiro Júnior, que teve a felicidade de participar da equipe de Sa-muel ainda na faculdade de Jornalismo. Sua admiração por ele estendeu-se pordécadas: Pinheiro formou-se repórter, chefe de Reportagem e diretor de Redaçãosob a orientação e com as lições de Samuel, que o transformaram também numjornalista de escol.

Desde o início da carreira, Pinheiro Júniormereceu atenção especial de Samuel, que ti-nha olho clínico para a descoberta de talen-tos e raramente errava em suas avaliaçõese escolhas. Samuel designou-o para fazeruma série de reportagens que alcançaraminédita repercussão na vida do Rio de Ja-neiro e do País: o relato, produzido dedentro, no convívio direto com os per-sonagens que seriam retratados, sobreum segmento social composto basi-camente por jovens que tinham com-portamento fora dos padrões domi-nantes, que justificavam a denomina-ção genérica de juventude transviadaque lhe deu o jornal, termo que a partirde então passou a figurar em estudos so-ciais e trabalhos acadêmicos.

É esta Última Hora, desapareci-da após as incontáveis persegui-ções a que foi submetida durantea ditadura militar de 1964-1985,que ganha sobrevida neste traba-lho de Pinheiro Júnior. Tal como alembrança do itabirano do poemade Carlos Drummond de Andrade,esta UH é agora apenas uma docee suave lembrança. Mas como dói!

mente, UH foi sempre ojornal que apoiou aberta-mente, sem subterfúgios,os políticos ligados às cau-sas sociais e aos direitos dopovo, dando voz ao cida-dão comum. A ponto de,numa época de xenofobiaanticomunista, UH ser ta-chada de “a soldo de Moscou”, o que erauma mentira deslavada confundir UHcom os órgãos oficiais do Partido Comu-nista do Brasil. UH só não era anticomu-nista, como se apresentava a maioria daimprensa elitizada e defensora de incon-fessáveis interesses extranacionais. De-fesa essa, sim, sempre a soldo de alguminteresse potencialmente antinacional,como era o caso do petróleo e da criaçãoda Petrobras, combatidos a serviço depotências hegemônicas.

JORNAL DA ABI - COMO O SENHOR AVALIA AIMPRENSA ATUAL EM RELAÇÃO AO PERÍODO RETRA-TADO NO LIVRO? E EM RELAÇÃO AOS JORNALISTAS?

Pinheiro Júnior – Tecnicamente a hojemídia impressa está muito e visivelmen-te melhor. A valorização profissional,embora ainda desejável, como é fácil dever pelas campanhas sindicais, tambémpode ser considerada em patamares me-lhores salarialmente do que os que sepadronizavam na época. Mas a depen-dência econômica e o cerceamento nasRedações, conseqüentes desta situaçãoque tem a ver com a supremacia do di-nheiro vivo sobre a liberdade e o bem-estar das comunidades, se acentuam acada dia. É uma realidade a ser conside-rada, é preciso que se diga, porque tam-bém os jornais se converteram em em-presas capitalistas de rapinagem eviden-te, onde há o lucro acima de tudo e semo qual – faturamento lucrativo venha deonde vier – não há sobrevivência.

UH, uma docelembrança

POR MAURÍCIO AZÊDO

Este texto é o prefácio do livro de Pinheiro Júnior.

IMAGENS: FUNDO ÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO

14 DE DEZEMBRO DE 1968 21 DE JULHO DE 1969

O Presidente da ABI, Herbert Moses,foi tema de diversas caricaturas na

UH. A editoria de Esportestambém publicou desenhos de

grande impacto na últimapágina, como o do craqueDjalma Santos (abaixo).

18 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

e ainda circulasse, o Correio daManhã teria completado 110anos no último dia 15 de ju-nho. Perseguido pela ditadu-ra, que indireta e inintencio-

nalmente ajudou a pavimentar, calou-separa sempre em julho de 1974. Isto por-que na polêmica sucessão do renuncian-te Presidente Jânio Quadros, o jornal ba-teu-se firmemente pela posse constitu-cional do Vice-Presidente João Goulart,contestado pelos militares. Contra ele,no entanto, voltou-se pouco depois. Porcaminhos tortuosos, Jango conseguiucom suas propostas de reformas – neces-sárias, porém mal conduzidas - agitar einquietar ao mesmo tempo o campo, omeio sindical, a classe média, o empresa-riado e as forças armadas. Do momentoem que sentiu escapar-lhes das mão asrédeas do poder, o Correio da Manhãpassou a pregar ostensivamente sua sa-ída. Veio o golpe militar de 1964, e oCorreio da Manhã, tão logo identificousua real dimensão, opôs-se decididamen-te ao movimento. Instalada a ditadura,foi o primeiro a ser mais duramente atin-gido pelo novo regime.

Tragicamente para o Correio da Ma-nhã, a saída de Jango, pela qual tanto seempenhou, consumou-se por um golpemilitar. Assim, passou à História com oestigma de ter apoiado o golpe. Teriamsido decisivos para a queda de Jango osdois editoriais que o jornal publicou nomomento final da gestação do golpe – o“Basta” e o “Fora”, respectivamente nosdias 31 de março e 1º de abril de 1964.

Há um equívoco na avaliação do pa-pel do Correio da Manhã na deposição deJango. Em momento algum, o jornalfez a apologia do golpe militar. Para umafolha que sempre fez da liberdade umdogma, não haveria espaço para abrigarum movimento de ruptura violenta daConstituição e da democracia. De suacampanha pela saída de João Goulart ede seus editoriais, em especial o “Basta”e o “Fora” – nada induz a uma interpre-tação que o aponte como jornal golpis-ta. Esta evidência ficou bem clara nosdois editoriais:

“A Nação não admite nem golpe nemcontragolpe. Quer consolidar o proces-so democrático para a concretização dasreformas essenciais de sua estrutura eco-nômica. Mas não admite que seja o pró-prio Executivo, por interesses inconfes-sáveis, quem desencadeie a luta contra oCongresso, censure o rádio, ameace aimprensa e, com ela, todos os meios demanifestações do pensamento, abrindoo caminho à ditadura”.

“A Nação não mais suporta a perma-nência do sr. João Goulart à frente doGoverno. Chegou ao limite final a capa-cidade de tolerá-lo por mais tempo. Nãoresta outra saída ao sr. João Goulart senão

a de entregar o Governo ao seu legítimosucessor. Só há uma coisa a dizer ao sr.João Goulart: saia”

No entanto, três dias depois, ainda nofragor do golpe, com as primeiras prisõesde jornalistas e invasão de domicílios, oCorreio da Manhã despertou da utopia dasaída constitucional que alimentara. E,em novo recuo, no dia 3 de abril estam-pou na primeira página o editorial “Ter-rorismo, não!”, no qual denunciava aquebra da ordem constitucional:

“A vitória da Nação, em virtude doafastamento do sr. João Goulart, nãopode ser maculada com a onda de arbi-trariedade e de violência que a Polícia daGuanabara vem cometendo de ontempara hoje em desrespeito ostensivo atodas as garantias constitucionais.”

“Não estamos em estado de sítio e osr. João Goulart entregou o poder, por

vontade ou não, sem opor nenhuma re-sistência militar.”

Desse instante até 1969, quando foiarrendado, o Correio da Manhã mante-ve-se em firme oposição ao regimemilitar, denunciando todos os seus cri-mes, em consequência sofrendo pesadaspunições que, pouco a pouco, exauriramsua resistência.

A edição do AI-5 em 13 dezembro de1968, que marcou o momento maisduro do regime militar, assinalou tam-bém o golpe de misericórdia no Correioda Manhã. Pela posição combativa queassumiu, consoante sua tradição liberal-democrática, tornou-se o alvo mais visa-do pelos militares. Sob a pressão dos seuscomandos, o jornal teve cortados o cré-dito bancário e o acesso ao redesconto,bem como à publicidade oficial, casoúnico até então. Interditado várias vezes

e mutilado, seguidamente, pela censura,chegou a ter dez censores espalhadosentre a Redação, a revisão e as oficinas. Jádesfigurado de suas características origi-nais, assistia impotente à prisão de mem-bros de sua diretoria e de seus jornalistas.

Niomar Moniz Sodré Bittencourt,viúva de segundas núpcias e herdeira dePaulo Bittencourt, o proprietário, foiprocessada como subversiva, seguida-mente convocada a depor em diferentesinstâncias e dependências do aparelhorepressor, e por fim presa mais de umavez. Sem ter como sobreviver, em mar-ço de 1969 o jornal pediu concordata.Mas, ante as crescentes dificuldades fi-nanceiras, sem poder cumprir os com-promissos, viu-se na contingência debuscar outra solução.

O jornal entrou em negociação como grupo empresarial dirigido por Maurí-

POR FUAD ATALA

Correio da Manhã

GOLPE MILITAR, AI-5 E ARRENDAMENTO

A lenta agonia do

S

MEMÓRIAARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ

19Jornal da ABI 367 Junho de 2011

cio Nunes de Alencar e Frederico A.Gomes da Silva, cuja principal subsidiá-ria era a Cia. Metropolitana de Constru-ções S.A. Uma vez concluídas as tratati-vas, o jornal foi arrendado no dia 7 desetembro de 1969 ao grupo. O Diretor-Presidente, Maurício Nunes de Alencar,era irmão de Mário Alencar, então Sena-dor, e do advogado, duas vezes Prefeito doRio de Janeiro, Marcello Alencar, tambémintegrantes da diretoria. O grupo assinavacom Niomar Moniz Sodré Bittencourt,pelo prazo de quatro anos e cinco meses,um contrato em que assumia o compro-misso para editar o Correio da Manhã.Como fiadora, com-pareceu a empresaPerfex CompanhiaTransporte, Engenha-ria, Comércio e In-dústria, representadano ato pelo seu Dire-tor-Presidente, Mau-rício Nunes de Alen-car. Pelo grupo, firma-ram o documento Ar-mando de Souza Fa-ria Castro e Paulo daCunha Silva Júnior.Como testemunhas,compareceram o di-plomata Oscar Loren-zo Fernandes e o ad-vogado, professor e escritor Hélio Jagua-ribe. Para editar o jornal, o grupo criou aECOS – Editora Comunicações e Siste-mas Gráficos Ltda.

A concretização do esquema paraevitar a insolvência iminente só foi pos-sível após a decisão judicial sobre a su-cessão no jornal, dirigido desde a mor-te de Paulo Bittencourt, em 1963, pelaviúva, Niomar Moniz Sodré, numa tu-multuada disputa que durou seis anoscom a outra herdeira, Sybil Bittencourt,filha única de primeiras núpcias de Pau-lo Bittencourt.

Resolvida a batalha judicial entre asduas herdeiras em 14 de agosto de 1969,foi celebrado um acordo entre as partes,em escritura pública passada no 3º Ofí-cio de Notas. O acordo confirmava os ter-mos do testamento. Todas as ações depropriedade de Paulo Bittencourt, repre-sentativas do capital social do Correio daManhã e da Corman Publicidade, passa-ram a pertencer a Niomar, sua efetiva pro-prietária, que por sua vez adquiriu da co-herdeira as ações preferenciais. “Por vul-tosa quantia”, conforme revelou numadas representações que fez à Justiça, en-volvendo questões do arrendamento.

Arrendamento, último atopara a derrocada final

Minucioso em seus aspectos formais,o documento manifesta a preocupaçãoda proprietária de preservar a identidadee o patrimônio do jornal, bem como a ga-rantia dos direitos trabalhistas dos fun-cionários. Continha exigências que des-ciam a detalhes, alguns inusitados. Umadas cláusulas, por exemplo, outorgava aNiomar Moniz Sodré Bittencourt, du-rante sua vigência, o direito de examinar

e fiscalizar “a boa execução das obrigaçõesassumidas”. E ainda, a de que Niomarabstinha-se de exercer qualquer ativida-de jornalística, obrigação equivalenteque os arrendatários também se com-prometiam a cumprir. Assim, depois dedefinir outras regras sobre “a boa con-dução do jornal”, uma cláusula estipu-lava que, findo o prazo, os arrendatári-os obrigavam-se a devolver o matutinocom todos os bens e direitos cedidos outransferidos, bem como com todos osônus honrados, independentemente dequalquer aviso ou interpelação judici-al ou extrajudicial.

Niomar, no entan-to, ainda fez anexar aocontrato um docu-mento estabelecendosuas exigências pesso-ais. A primeira, a deque poderia publicarno Correio da Manhã,logo após a autoriza-ção do Juízo da 18ªVara Cível, onde esta-va em curso a con-cordata, um editorialde sua “livre redaçãoe responsabilidade”esclarecendo as ra-zões de sua saída dadireção.

Em seguida, vinham enumeradas ain-da outras exigências. Do cabeçalho e doexpediente do jornal, pelas mesmas ra-zões que seriam indicadas no editorial dedespedida, seriam retirados no mesmodia da publicação o seu nome, o de Ed-mundo e o de Paulo Bittencourt. Na di-retoria, enquanto lhe conviesse, perma-neceria seu filho, Antonio Moniz SodréNeto. Seria mantida a coluna de ArtesPlásticas, “com o relevo e o destaque”habituais, a cargo de colunista de sua in-dicação, (à época, o crítico Jayme Mau-

rício), podendo substituí-lo por outro quefosse do seu interesse. Continuaria a serobjetivo básico do jornal a defesa do Mu-seu de Arte Moderna, obra que Niomarconsiderava o coroamento de sua ativi-dade de mecenas das artes, e pela qualterçou armas em todas as frentes, inclu-sive disputando com Dom Helder Câ-mara o terreno onde finalmente se er-gueu o Mam, inicialmente destinado àrealização do Congresso Eucarístico In-ternacional. O documento estabeleciaainda que o Correio da Manhã garanti-ria espaço para publicar sua defesa e a deseus interesses pessoais.

E reavivando velha rixa política, figu-rava, por fim, uma cláusula proibindodurante o prazo contratual qualquermenção ao nome de Juracy MontenegroMagalhães, ex-Governador da Bahia eex-Ministro do Exterior do governo Cas-telo Branco, “senão sob a forma de críti-ca ou ataques”, ficando ele ainda proibi-

do de freqüentar a sede do jornal ou qual-quer uma de suas dependências. Era ofamoso “Index” redivivo do velho Cor-reio da Manhã, do qual chegaram a cons-tar, entre outros nomes o do PresidenteArtur Bernardes (por ordem de quem, ojornal ficou sem circular de 25 de outu-bro de 1923 a 15 de maio de 1924), e o doescritor Lima Barreto, autor de um livropolêmico, Recordações do Escrivão Isaí-as Caminha, no qual faz uma sátira mor-daz à figura e aos métodos de Edmun-do Bittencourt.

Para exercer o direito de editar o jornalutilizando-se tanto do seu parque gráfi-co, bem como dos empregados e colabo-radores, o Grupo Nunes de Alencar assu-mia, em contrapartida, uma série de obri-gações. Entre elas o pagamento do passi-vo do Correio da Manhã até o valor de Cr$5.400.000,00, além das prestações residu-ais da concordata, orçadas na ocasião emCr$ 256.152,27, juntamente com os ho-norários dos advogados, no valor de Cr$86.721,27. A mesma obrigação tambémdeveria ser observada no pagamento e ma-nutenção de tributos e insumos em geral.Os empreiteiros obrigavam-se ainda aeditar o jornal no mínimo seis vezes porsemana, observados os dias e horárioshabituais, sem restringir sua área de ven-da e influência.

Por breve período, dirigiu a Redação doCorreio da Manhã o jornalista Jânio deFreitas, que fez uma ampla reforma grá-fica no jornal, sob a orientação do artis-ta gráfico e escultor Amílcar de Castro.Momentaneamente, a publicação ga-nhou sobrevida, mas com a saída de Jâ-nio, experiências equivocadas que desfi-guraram o veículo acabaram por levá-loa uma progressiva decadência.

“Retirada” – A despedida emocionadae promessa de volta de NiomarEfetivamente, no dia 11 de setembro

de 1969, sem o seu nome, o de Edmun-do e o de Paulo Bittencourt no cabeça-lho, Niomar publicou um editorial emque faz longa digressão historiando osproblemas que passou a enfrentar após ogolpe de 1964 e as razões que a levaram

Em momento algum, ojornal fez a apologiado golpe militar. Parauma folha que semprefez da liberdade umdogma, não haveriaespaço para abrigarum movimento deruptura violenta daConstituição e da

democracia.

Niomar Moniz Sodré foi intimada a depor num Inquérito Policial Militar depois do AI-5.

O Correio da Manhã foi um dos poucos jornais que não tratou com preconceito os rebelados daRevolta da Chibata, incluíndo seu líder, João Cândido, que ganhou destaque na primeira página.

FOLH

APRESS

20 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

a tomar a decisão do arrendamento, naexpectativa de que, passada a crise e sane-ado o jornal, voltaria à direção.

Sob o título “Retirada”, com a esperan-ça de breve retorno à direção, ela escreve:

“A partir de hoje não mais estarei nadireção do Correio da Manhã. O contro-le jornalístico e administrativo que exer-ci ao longo de seis anos tumultuosos, su-cedendo a Paulo Bittencourt, transfiroagora a outras mãos”. Explica a seguirque quando assumiu a direção do jornalde Paulo Bittencourt, sua “única e obses-siva” preocupação foi manter-se “à altu-ra dele próprio”, dando continuidade àsua obra e ao seu pensamento. “Sempretive presente aquilo que Paulo Bitten-court escreveu nestas colunas em 17 demarço de 1929, ao receber o jornal de seupai: ‘Uma palavra basta para definir acarreira do Correio da Manhã até hoje: acoragem”. Niomar prossegue: “Comuma temeridade espantosa, o fundadordesta folha, repetidas vezes, arriscou aprópria vida provocando quase o perigopara melhor desprezá-lo depois”.

“De minha parte, avança Niomar emseu longo arrazoado, sempre considereio Correio da Manhã não como simplesherança na divisão de um espólio, mascomo patrimônio moral e instituiçãocultural, cujo dever de proteção transfor-mou-se na razão mesma de minha vida”.

O artigo faz uma reflexão sobre osdestinos da instituição, e as alternativasque lhe restaram diante do cerco impla-cável da ditadura: fechar o jornal oupassá-lo, provisoriamente, a terceiros.

“Fechar o jornal exprimiria, interna-cionalmente, a mais vigorosa denúnciacontra a situação antinacional que nosfoi imposta. Mas significaria tambémdesespero e abdicação, implicando mes-mo um voto de desconfiança na capaci-dade de luta de nosso povo pelo renas-cimento democrático do Brasil.”

No entanto, explica, pesou em suasconsiderações o fato de que, assim agin-do, não poderia mais reabrir o jornal, poisteria de liquidar o seu patrimônio mate-rial, com o agravante de que abandona-ria à própria sorte o destino de quase 600famílias que dependiam dos funcionári-os que ali trabalhavam.

função no jornal que a empresa edita.Entrego-o aos cuidados de Maurício Nu-nes de Alencar e Frederico Gomes da Silva,que saberão revigorá-lo, atendendo as suasnecessidades mais prementes, pois queestão isentos do ódio e da vingança de quevenho sendo o alvo sistemático”.

“Sempre considerei oCorreio da Manhã nãocomo simples herança

na divisão de umespólio, mas comopatrimônio moral einstituição cultural,

cujo dever de proteçãotransformou-se na razãomesma de minha vida”

A seguir, Niomar enumera os dramá-ticos fatos que pesaram em sua decisãode passar temporariamente o jornal aterceiros, para evitar o pior. Recorda que,já enfraquecido com o cerco econômicopoucos dias antes do AI-5, em 7 de de-zembro de 1968, a sucursal do Correio daManhã na esquina da Avenida Rio Bran-co com Almirante Barroso (o imóvel,hoje, é ocupado por uma agência de OGlobo), sofreu um atentado a bomba dealto poder explosivo que destruiu todasas instalações. Na noite do dia 13, nomomento mesmo em que era divulgadoo AI-5, a Redação foi invadida por poli-ciais armados de metralhadoras e revól-veres e prenderam o redator-chefe Osval-do Peralva. No início de janeiro de 1969,logo após o levantamento da censura,ocorre a apreensão de uma edição intei-ra do Correio da Manhã, antes mesmo deser impressa, com a cobertura completados fatos que não puderam ser publica-dos durante o período em que estevesuspenso pela censura. Nesse mesmo ato,seguiu-se a prisão de toda a sua diretoria,a suspensão da circulação do jornal porcinco dias e a interdição da sede, escritó-rios, agências e oficinas gráficas. Poucosdias depois, Niomar Moniz Sodré Bitten-court teve seus direitos políticos cassadospor dez anos.

O editorial fala do bloqueio sem dis-farce às fontes de publicidade e das per-seguições econômicas a que o jornal foisubmetido, provocando “o retraimentode numerosos anunciantes da área priva-

da”, agravado pelo veto à inserção deanúncios de empresas públicas.

“Foi por tudo isso que decidi afastar-meda direção do Correio da Manhã, confian-do-o provisoriamente à guarda de terceiros.Permaneço como Diretora-Presidente daSociedade Anônima, porém sem qualquer

MEMÓRIA A LENTA AGONIA DO CORREIO DA MANHÃ

FOTOS: ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ

21Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Niomar se despede dos “amigos quenão lhe faltaram em nenhum instante”,dos companheiros “que jamais abando-naram seus postos” e dos leitores quecontinuaram fiéis ao jornal, “mesmominguado e castrado” e de alguns anun-ciantes, “poucos, que não se deixaramatemorizar”. Com a esperança de retor-nar um dia, conclui, acenando com umretorno que não ocorreu:

“Acredito que em breve teremos no-vamente o nosso jornal, o jornal queEdmundo e Paulo Bittencourt legaram aeste País como a instituição mais pode-rosa na defesa da liberdade e da verdadei-ra democracia”.

Três dias depois, ou seja, a 14 de setem-bro, marcando a responsabilidade funci-onal e administrativa que assumiam apartir daquela data, aparecem no cabeça-lho da primeira página do jornal os nomesde Maurício Nunes de Alencar, Di-retor-Presidente, e Frederico A.Gomes da Silva, Diretor-Superin-tendente. Nessa edição, juntamen-te com Paulo Germano de Maga-lhães, os três assinam o editorial“Definição”, no qual destacam a “res-ponsabilidade social dos empresári-os” e o compromisso que assumiam“nos destinos do jornal”, a partir dali.

“Eles não têm somente responsa-bilidades legais e econômicas, limita-das ao âmbito restrito das empresasque gerem ou administram. Têmtambém responsabilidade para com asociedade, devendo ter interesse nobem estar da comunidade, do mundosocial que está à sua volta”. E arrema-tam, seguros de que “a consciência des-sas responsabilidades” é que os faz vi-rem a público “assumindo a direção deum veículo de comunicação como oCorreio da Manhã, para manifestar di-retamente os nossos propósitos e asnossas intenções”, ou seja, “dizer cla-ra e diretamente o que e como achamos

que se deva agir em benefício do nossoPaís, do progresso e do bem-estar da cole-tividade brasileira.”

A chegada dos empreiteiros ao coman-do do jornal marca uma clara rupturacom a linha oposicionista, sustentada atéentão no tripé liberdade democrática, le-galidade e justiça. Ao exaltar inúmerasmedidas e iniciativas do governo militar,o texto revela uma mudança de eixo.

“Tem sido extraordinária a colabora-ção das classes trabalhadoras e média parao soerguimento da economia nacional.Os efeitos do combate à inflação sobreelas tem se refletido mais direta e inten-samente”. A seguir, conclama “todos osbrasileiros a participarem da batalha pelodesenvolvimento”, para concluir enfati-camente: “Qualquer outra posição seria

mais cômoda. Dispensaria os ônus eencargos que ora assumimos, mas nosparece seria a mais autêntica”.

Terminado o arrendamento, maisendividado do que quando mudou demãos, Niomar recusou-se a receber ojornal de volta. Estava inteiramente di-lapidado, irreconhecível. Até hoje ques-tiona-se por que, ao contrário de outrosjornais, o Correio da Manhã não conse-guiu sobreviver ao furacão da ditadura.Afinal, no governo de Artur Bernardes,que governou o País sob permanente es-tado de sítio e rigorosa censura aos jornais,o Correio da Manhã resistiu a quase umano de interdição, culminada com a pri-são de Edmundo e Paulo Bittencourt.Poderia recuar estrategicamente, paraganhar alento mais adiante? Ou silenci-

ar diante das torturas, dos atentados, dasperseguições? Por que O Estado de S. Paulo,que mantinha postura idêntica à do Cor-reio da Manhã e sofreu das mesmas pu-nições, conseguiu sobreviver? Haveriaoutra saída?

Certamente, na tentativa de dobrar oespírito indomável do jornal, o estrangu-lamento econômico tenazmente aplica-do pela ditadura foi o fator preponderan-te que levou o Correio da Manhã à derro-cada final. Terá colaborado também ainexperiência administrativa empresarialpor parte tanto de Niomar quanto doscolaboradores que a cercaram, todos, naverdade, da melhor qualidade profissionale intelectual, como dos arrendatários, que,decididamente, não eram do ramo.

Considere-se ainda a assustadorasoma de punições impostas à Niomar.Teve seus direitos políticos cassados por10 anos, foi presa em circunstânciaspenosas e processada como subversiva,cumprindo um desgastante ritual decomparecimento a Auditorias Militares,numa forma de perseguição jamais vistaantes no País. Ela desabafaria mais tarde:“Enfrentei com altivez todas as pressõesdo poder totalitário com sacrifício da mi-nha pessoa e do próprio patrimônio.”

Reunindo as peças, evidencia-se queNiomar Moniz Sodré Bittencourt cami-nhou consciente para o sacrifício final.No discurso que pronunciou na home-nagem que amigos lhe prestaram numbanquete no Museu de Arte Moderna em26 de novembro de 1986, num tom derenúncia e prestação de contas, ela disse:

“Não medi sacrifícios para permane-cer fiel a mim mesma e ao destino dojornal que marchou conscientementepara a possível extinção. Tinha queoptar: ou submeter-me à ditadura mi-litar-policial com seu cortejo de prisões,de torturas, de exílios, ou travar uma lu-tar mortal pela independência e digni-dade do País. O Correio da Manhã foi des-truído pela ditadura que desgraçou o

Brasil. Mas não me arrependo doque fiz no cumprimento do desti-no que a história me reservou. Emminhas mãos ele não fraquejounem se curvou diante da violênciae da corrupção instaladas como nor-ma no País inteiro”.

Com seu gesto, Niomar ganhou di-mensão política, como observou ElioGaspari, porém à custa do sacrifício deuma instituição cujo dogma era a li-berdade, que ficará para sempre inscri-ta nos anais da imprensa brasileira.

O Correio da Manhã circulou pelaúltima vez em 8 de julho de 1974.Como um indigente largado à beirada estrada. Finou-se sem face, semalma. Era apenas cinza de memóriacremada. Não sobreviveu para sabo-rear a vitória que ajudou a construirnem pôde presenciar a retomada da de-mocracia em 1985, quando a liberda-de que defendera com tamanho desas-sombro foi restaurada.

FUAD ATALA é jornalista e está escrevendo um livrosobre o Correio da Manhã do qual este texto faz parte.

O inestimávelacervo fotográficodo Correio daManhã, queretratou comopoucos as revoltasestudantis contraa ditadura,principalmente apartir de 1968(como aspublicadas nestasduas páginas),encontram-seconservadas noArquivo Nacional,no Rio de Janeiro.

O Correio da Manhã defendeu a liberdade e a volta à democracia com desassombro.

22 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

o dia 14 de janeiro de1999, jornais e revis-tas de todo o País noti-ciavam a morte deNelson Werneck So-dré, ocorrida na vés-

pera, em Itu, interior de São Paulo. En-quanto alguns destacaram seu papel,lembrando fatos marcantes da vida e daobra do historiador, professor e generalreformado, outros foram bastante eco-nômicos ao falar sobre sua trajetória,limitando-se a mencionar que foi autorde 58 livros, entre eles obras de referên-cia como História Militar do Brasil eHistória da Imprensa no Brasil, que eraum marxista ortodoxo e que teve atu-ação destacada na campanha pelo mo-nopólio estatal do petróleo, ainda nosanos 1940.

Um registro burocrático, quase assép-tico, incapaz de fugir dos tantos rótulosdados ao pensador e que reduziram suaobra a uma produção “datada”, às vezes“ultrapassada”. Não foi a primeira vezque isso aconteceu. Ninguém dividiutanto opiniões na historiografia nacionalquanto Werneck Sodré. Agora, em meioàs comemorações pelos cem anos de seunascimento, um novo movimento pre-tende rediscutir a importância de seutrabalho. Trabalho que o qualifica nãosomente como um dos mais destacadosintérpretes do Brasil moderno, mas tam-bém como um construtor da nação.

O desafio passa por compreender au-tor e obra em seu próprio tempo. O “ge-neral”, como era conhecido, foi a expres-são mais bem formulada da esquerdabrasileira nos anos 1950 e 1960, tempoem que suas obras se tornaram verdadei-ros manuais, leitura obrigatória para aintelectualidade e, principalmente, en-tre estudantes de História e CiênciasSociais. Porém, ao superar a historiogra-fia empirista e factual de seu tempo, omarxista Nelson Werneck Sodré conse-guiu também ultrapassar seu métodopara se tornar um dos principais pensa-dores do desenvolvimento nacional.

“Ele foi não somente um dos últimosgrandes pensadores da literatura e dahistória militar do Brasil, fazendo umpanorama completo de nossa realidade.

Há cem anos nascia o autor de clássicos como História da Imprensa no Brasil eHistória Militar do Brasil e um dos grandes historiadores e pensadores do País.

CENTENÁRIO

UM INTÉRPRETE DO BRASIL QUE TEMOS.UM VISIONÁRIO DA NAÇÃO QUE QUEREMOS

POR MARCOS STEFANO

Nelson Werneck Sodré

NARQUIVO PESSOAL OLGA SODRÉ

23Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Foi um homem à frente de seu tempo.Seu estudo da imprensa nacional é pi-oneiro e até hoje o mais completo, aponto de ser considerado um precursordo movimento de comunicação noPaís. Mesmo com a ênfase no século pas-sado, sua obra continua atual e oportu-na, levantando o debate sobre que tipode desenvolvimento o País precisa, ba-seado na cultura ou apenas tecnicista.Lembrando que foi um dos primeiroscríticos do neoliberalismo e uma dasprimeiras vozes a discutir a globaliza-ção”, explica a psicóloga Olga ReginaFrugoli Sodré, filha de Nelson e cura-dora de sua obra.

Werneck Sodré fazia parte de outrageração de historiadores que não costu-mava ter formação acadêmica especi-alizada porque inexistiam cursos univer-sitários do ramo no Brasil até à década de1930. Ao unir a carreira militar à forma-ção como sociólogo e historiador marxis-ta, conseguiu respeito e tornou-se mito,apesar dos críticos, que o viam como umQuixote. Nascido no Rio de Janeiro, em27 de abril de 1911, ingressou no Colé-gio Militar, ainda em 1924, e na EscolaMilitar do Realengo, em 1930. Formado,fez a “declaração de aspirante” e foi ser-vir em Itu, no interior paulista.

“Era um tempo em que os sociólogose historiadores se formavam em Direito,Medicina e Engenharia. Estudavam emacademias militares ou seminários cató-licos. Tinham forte cultura geral, comconhecimentos de línguas, literatura,humanidades e ciências da natureza.Mas não eram acadê-micos e tendiam àcondição de polígra-fos, estudando dife-rentes campos do sa-ber. Esses traços po-dem ser encontradosno perfil dos clássi-cos Gilberto Freyre,Caio Prado Jr., SérgioBuarque de Holanda,Câmara Cascudo,Afonso de Taunay e opróprio Werneck So-dré, que no começode sua carreira, ainda como crítico literá-rio, apoiou-se no positivismo e no natu-ralismo. Sua sempre presente preocupa-ção social foi se adensando aos poucoscom o apelo à tradição marxista”, explicao professor Marcos Silva, da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo-FFLCH/Usp eorganizador do Dicionário Crítico NelsonWerneck Sodré (Editora UFRJ).

Satânia na imprensaParalela à militar, Werneck Sodré de-

senvolvia outra carreira, esta na impren-sa. A estréia aconteceu em 1929, com apublicação do conto Satânia na revistaO Cruzeiro. Cinco anos depois, tornou-se colaborador regular do Correio Paulis-tano, escrevendo para o jornal duas ve-zes por semana. Como ele mesmo admi-tiu, agora era um “homem de impren-sa”, assinando o rodapé das críticas literá-

autônomo do processo de industrializa-ção do País. A presença do capital estran-geiro, para estes, só seria admitida sob orígido controle do Estado. Era com a se-gunda que Nelson Werneck Sodré seidentificava e para a qual desenvolveuestudos sobre a relação entre o colonia-lismo e o capitalismo, a formação e cons-tituição das classes sociais no Brasil e adiscussão de quem seria o povo brasilei-ro e que papel poderia desempenhar naluta antiimperialista. A participação noIseb também foi marcada pelo retorno dohistoriador à publicação de livros.

Antídoto do empirismoAs disputas com as alas conservadoras

no Exército contrastavam com a crescen-te popularidade de Werneck entre a es-querda, principalmente intelectuais eestudantes universitários. Para eles, seuslivros eram obrigatórios e serviam comoum antídoto a uma historiografia que, naépoca, era por demais empirista, factua-lista e personificada no Rio de Janeiro.Mas Werneck Sodré não se limitou aescrever e lecionar no Iseb. Crítico doslivros didáticos de História do Brasilusados no ensino secundário, ele iniciou

o projeto História Nova do Brasil. Com aajuda de estagiários do Instituto, a idéiaera elaborar uma literatura diferenciadapara os docentes. Cinco obras foram pu-blicadas, a metade do que fora elaborado.Graças ao golpe militar.

Era apenas mais um capítulo de umconflito que se arrastava há tempos. Apósa renúncia do Presidente Jânio Quadros,em 1961, Werneck Sodré apoiara comentusiasmo a posse do Vice-Presidente,João Goulart. Algo proibitivo para osministros militares. Por isso, foi preso einterrogado durante dez dias. Destacadocontra sua vontade para servir em Belém(PA), passou à reserva no começo de1962. Fazendo jus à alcunha. Como forapromovido a coronel no ano anterior epossuía o curso de Estado-Maior, deixoua ativa como general-de-brigada.

Agora, de fato, general, queria se de-dicar a escrever e lecionar. E assim foi pe-los dois anos seguintes. Porém, o adven-to do regime militar foi um verdadeirogolpe em suas pretensões. Em 1964, oIseb foi fechado. Ele teve os direitos po-líticos cassados por dez anos. Refugia-do em uma fazenda de parentes em Fer-nandópolis, Werneck Sodré acabou pre-

rias que escrevia e sendo remunerado porcada artigo.Em pouco mais de duas déca-das, o “general” publicou pelo menos1.023 crônicas e críticas, material preser-vado no acervo do historiador, que apóssua morte foi doado à Biblioteca Nacional.

O ingresso na literatura aconteceriaainda em 1938, com a publicação de seuprimeiro grande livro, História da Litera-tura Brasileira, no qual faz uma análisede questões literárias a partir das relaçõesde propriedade e dos conflitos sociais.Nos sete anos seguintes, Werneck Sodrélançaria ainda outros seis livros. A litera-tura não lhe rendeu apenas fama e umapromissora carreira. Trouxe novas ami-zades e com elas a definição de posturaspolíticas. No começo dos anos 1940, elejá era amigo de Graciliano Ramos e Jor-ge Amado, e membro do então PartidoComunista do Brasil-PCB.

O sucesso literário coincidiu comuma brilhante carreira no Exército. De-pois de cursar a Escola de Comando eEstado-Maior, tornou-se professor dainstituição e chefe do Curso de HistóriaMilitar. Em 1950, a convite do futuroMinistro da Guerra, General NewtonEtillac Leal, Werneck Sodré ingressou nadiretoria do Clube Militar e mostrou-seum dos mais entusiasmados defensoresda campanha O petróleo é nosso, que lu-tava pelo monopólio estatal da pesquisae lavra do óleo negro no Brasil. Comodiretor do Departamento Cultural doClube, também publicava artigos narevista da entidade, alguns claramenteidentificados com as posições sustenta-

das pelo PCB. Todaessa militância políti-ca, no entanto, cobra-ria seu preço.

Como represália àssuas posições, Werne-ck Sodré foi desligadoda Escola de Estado-Maior e designadopara postos de menorexpressão. Primeiro,como oficial de arti-lharia numa guarni-ção em Cruz Alta,interior do Rio Gran-

de do Sul, unidade em que ficou duran-te cinco anos. Depois, lotado numa Cir-cunscrição de Recrutamento, no Rio.Apesar da posição, a volta à Capital Fe-deral não foi de toda ruim. Em 1956, elecomeçou a colaborar com o vespertinoÚltima Hora, escrevendo a seção literá-ria e os editoriais do jornal. No mesmoperíodo, ainda passou a integrar a Co-missão Diretora da Biblioteca do Exér-cito, colaborar com periódico naciona-lista O Semanário e atuar como profes-sor do Instituto Superior de Estudos Bra-sileiros-Iseb.

No Instituto, duas tendências dispu-tavam os debates sobre o desenvolvi-mento brasileiro desde o Governo deJuscelino Kubitschek. De um lado, ospartidários da participação de capitaisestrangeiros na economia brasileira paraacelerar o ritmo de sua expansão. Dooutro, aqueles que defendiam o caráter

O “general”, como eraconhecido, foi a

expressão mais bemformulada da esquerda

brasileira nos anos 1950e 1960, tempo em quesuas obras se tornaramverdadeiros manuais,

leitura obrigatória paraa intelectualidade.

Nelson Werneck em dois momento familiares: ele aparece de uniforme à esquerda, logo atrásde sua mãe, Amélia Werneck Sodré – ao centro de blusa branca. Logo atrás dela, à direita,

está seu pai, Heitor de Abreu Sodré. Abaixo, numa pose ao lado de sua esposa, Yolanda.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL OLGA SODRÉ

24 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

historiador NelsonWerneck Sodré e meupai, jornalista IvanAlves, foram grandesamigos. Mais do queisso, até: foram com-

panheiros de lutas partidárias, umavez que ambos pertenceram aos qua-dros do Partido Comunista Brasileiro.Vivenciaram juntos os embates pelanacionalização do petróleo e ajuda-ram a organizar a resistência democrá-tica ao golpe de 1964. Apesar da gran-de amizade existente entre eles, eumesmo só travei conhecimento pesso-al com Nelson Werneck em Paris, emmeados da década de 1970. Soube porsua filha, Olga, da estada dele na cida-de e fui ao seu encontro.

Fui muito bem recebido e logo co-meçamos a conversar. Aproveitei paraagradecer a ele a remessa de algumasobras sobre o Quilombo dos Palmares(sobretudo um livro editado pela Bibli-oteca do Exército, O Reino Negro de Pal-mares). Eu estava pesquisando o céle-bre quilombo alagoano na França e emPortugal e o Nelson, generosamente,resolvera me apoiar nisso.Seu ato co-moveu o historiador-aprendiz que euera. Nelson Werneck Sodré entenderaperfeitamente as dificuldades com queeu me deparava para encontrar certoslivros no exterior – e sabia, por meupai, que eu havia sido preso no Brasil enão poderia retornar tão cedo ao Brasil.

Muito tempo depois desse episódio,mais precisamente em 1988, quandolancei o livro Memorial dos Palmares,desloquei-me até sua casa para lhe pre-sentear com um exemplar da obra. Nãopoderia mesmo deixar de fazê-lo.

Democrata exemplar, Nelson sabiaconviver com o contraditório e as dife-renças, reconhecendo a pluralidade pre-sente nas sociedades humanas. Eu melembro de que me aconselhou a ler, porexemplo,O Índio Brasileiro e a Revolu-ção Francesa, de Afonso Arinos de MeloFranco. E mais de uma vez confessoupara mim sua admiração pela obra mo-numental de Hélio Silva, um histori-ador de orientação católica. Nelson per-

POR IVAN ALVES FILHO

so no dia 26 de maio. Em seguida, envi-ado ao Rio de Janeiro, permaneceu de-tido durante 57 dias.

Ao ser solto, a única certeza é de quea vida não seria mais a mesma. Não teriamais o direito de ensinar, muito menosas páginas da imprensa para divulgar seupensamento. Mesmo diante da violênciados coturnos, negou-se a deixar o País ese exilar. Permaneceu por aqui. A partirde então teria outro tipo de páginas embranco para escrever: as dos livros. Ain-da que muitos deles tenham sido apreen-didos das livrarias. Também não deixoude ser uma poderosa influência:

“Não o conhecia pessoalmente. Maslia seus livros com prazer e proveito,especialmente depois de sua prisão numadas fortalezas da Guanabara, logo após aquartelada. Era também um general, masdesagradava com seus pensamentos oshomens que haviam tomado o poder.Sodré se tornou citação obrigatória detodos os pesquisado-res que estudam oprocesso brasileirocomo um todo, e nãoem seus departamen-tos estanques. Umdos líderes mais res-peitados da nossa in-telectualidade, nun-ca se deixou fascinarpela badalação in-conseqüente de certaépoca, nem pelo radi-calismo carreiristaque marcou a carrei-ra de tantos. Nuncadeixou de ser um ponto de referência dopensamento brasileiro. Teórico do nacio-nalismo, jamais se tornou xenófobo”, es-creveu recentemente o jornalista Car-los Heitor Cony, em sua coluna no jor-nal Folha de S. Paulo.

A partir de 1965, o general lançoudiversas obras de referência, como Histó-ria Militar do Brasil, História da Imprensano Brasil, Fundamentos Teóricos do Mar-xismo e Brasil – Radiografia de um Mode-lo, este último escrito e lançado em Bu-enos Aires, na Argentina, em 1973. Tam-bém obras pessoais, com suas experiên-

cias, como Ofício de Escritor (1965) eMemórias de um Soldado (1967). A partirde 1978, quando publicou A Verdadesobre o Iseb, voltou-se para temas polêmi-cos da História do Brasil e assumiu umapostura cada vez mais crítica. Em relaçãoà política nacional e em relação às novastendências da historiografia, das quaisdenunciava “descaminhos ideológicos”e “concessões oportunistas”. “Há emtudo que escrevi uma direção e um sen-tido”, costumava dizer, reafirmando avocação didática e política de sua escri-ta e respondendo a seus críticos de direi-ta, do Instituto Histórico GeográficoBrasileiro, e de esquerda, da Universida-de de São Paulo.

“Infelizmente, como ele tambémbem o percebia, a vitória da contra-revo-lução de 1964 teve uma conseqüênciaquase fatal para sua historiografia: a“demonstração” de alguns dos erros maisevidentes do nacional-desenvolvimen-tismo, do populismo e do marxismo ise-bianos, e a eleição de bodes expiatórios,no caso, o Iseb, a História Nova e os li-vros de Nelson Werneck Sodré. Contraa “fábrica de ideologias” e o marxismomecanicista e economicista era necessá-rio desenvolver um outro marxismo –menos “ideológico”, mais “científico”,academicamente “bem comportado”,analisou em 1999, em artigo publicadona revista Ciência Hoje, o professor Fran-cisco José Calazans Falcon, da Universi-dade Salgado de Oliveira.

Ano Nelson Werneck SodréNa luta pela justa reabilitação de um

dos mais expressivos pensadores brasilei-ros, Olga Sodré conta com uma ajuda ex-pressiva: uma rede de mais de 80 acadê-micos, do mestrado ao pós-doutorado devárias universidades brasileiras. E a pe-quena Itu, cidade das grandes coisas, no

interior de São Paulo,tornou-se uma espé-cie de centro dessemovimento. Afinal,o “berço da Repúbli-ca”, onde passou seusúltimos dias e hojeestá sepultado, temgrande importânciasimbólica. Foi lá, noquartel do Regimen-to de Artilharia, o fa-moso Regimento De-odoro, que galgouseus primeiros postosmilitares. Lá também

conheceu uma moça chamada YolandaFrugoli, com quem viria a se casar.

No início do ano, o prefeito da cidade,Herculano Júnior, declarou 2011 comoo “Ano do Centenário de Nelson Werne-ck Sodré”. Desde então, debates e even-tos como o Jornalista 2.0 já foram reali-zados. Mas o objetivo é tornar isso naci-onal, fomentando outras iniciativas emvários lugares do Brasil. Para tanto, duasinstituições trabalham ativamente: oIseb Nelson Werneck Sodré, entidadecriada por Olga em 2008, e o Centro deEstudos Nelson Werneck Sodré, levanta-

do agora como um departamento doInstituto Cultural de Itu.

Já há encontros e atividades organiza-dos em parceria com universidades, aAcademia Brasileira de Letras, a Associa-ção Nacional de História, a BibliotecaNacional, o Instituto Histórico e Geográ-fico do Brasil e a ABI. Entre 2 e 6 de setem-bro, no Congresso Brasileiro de Comuni-cação, o Intercom, que será realizado noRecife (PE), haverá uma homenagem e orelançamento de História da Imprensa noBrasil, em edição atualizada.

“Essa é uma das grandes notícias docentenário, já que o livro é um clássiconão superado na historiografia da área.Uma análise que não é só minha. Existedesde os anos 1970, quando foi aponta-do assim pelo jornal Movimento. Nele,Werneck Sodré associa a história de nossaimprensa à história do capitalismo bra-sileiro. Todavia, não esquece do nasci-mento conjunto da imprensa empresa-rial e de imprensas operárias e de outrostipos de organizações. Não um objetoinerte de estudo, mas agente social im-portante, em que se destacaram diferen-tes intelectuais, de escritores a políticos,que a defendem ou confrontam. Maisuma vez, Sodré se mostrou um precur-sor que, muito antes de outros, viu otempo recente como História”, analisa oprofessor Marcos Silva.

As comemorações do centenário dodecano dos historiadores marxistas estãosendo organizadas como oportunidadepara compreender o significado de suavida e obra. Para Olga Sodré, seu pai foium ícone da soberania e do desenvolvi-mento independente do Brasil. A exem-plo do ambientalista Chico Mendes, quelutou pela Amazônia. Exagero? Segun-do ela, não. Tanto que lembra de umahistória vivida por ela mesma, enquan-to fazia pós-doutorado no Instituto deMedicina Social da Universidade do Es-tado do Rio de Janeiro-Uerj, em 2007.

“Meu orientador, o psicanalista Ju-randir Freire, observou a importânciaque eu dava ao trabalho de meu pai nodesenvolvimento psicológico de jovens.Curioso, indagou quem era meu pai.Quando soube que era o general, disse:

“Mas não é apenas seu pai. É o pai danação”.

ALEXAND

RE MAG

NO

CENTENÁRIO NELSON WERNECK SODRÉ

O

Ao ser solto, a únicacerteza é de que a vida

não seria mais a mesma.Não teria mais o direitode ensinar, muito menosas páginas da imprensa

para divulgar seupensamento. Mesmo

diante da violência doscoturnos, negou-se a

deixar o País e se exilar.

Marcos Silva: Sodré é um precursor queviu o tempo recente como História.

Olga Sodré: Meu pai foi um ícone dasoberania e do desenvolvimento

independente do Brasil.

25Jornal da ABI 367 Junho de 2011

to em relação a esse posicionamento deNelson Werneck Sodré:

“Eu me lembro de que tive algumasconversas com o Nelson sobre esse pro-blema do uso dos conceitos e das catego-rias históricas. Elas muito me fortalece-ram a prosseguir em minhas próprias in-quietações. Explico. No cerne do proble-ma, estava a noção marxista de modo deprodução e a sua aplicação à realidade bra-sileira, mais exatamente ao período co-lonial. Havia o conceito criado por KarlMarx, mas havia, igualmente, a vidaconcreta. Era preciso estabelecer umvaivém entre o conceito e o real. Eu con-cordava com ele quando definia o perí-odo colonial à luz das estruturas escra-vistas. Como ele, também, eu pensavaque não havia modo de produção histo-ricamente novo. ‘Onde estão as suas leispróprias?’, interrogava-se Nelson. Ouseja, não bastava adjetivar o supostomodo de produção, acrescentar a ele oqualificativo colonial para que se tornas-se um modo de produção historicamen-te novo. Essas conversas nós as mantínha-mos aí por volta de 1986, 1987.

Eu disse em determinada ocasião aoNelson que, a meu juízo, o conceito demodo de produção colonial revelava umacontradição embutida nos seus própriostermos. Pois modo de produção, no sen-tido concreto da expressão, implicava,forçosamente – esta era minha alegação–, que uma determinada realidade esti-vesse em condições de se auto-reprodu-zir, de forjar as suas próprias bases mate-riais, adequando-as a relações de produ-ção também determinadas, que lhescorrespondessem. Ocorre que o próprioestatuto de colônia era a sua dependên-cia diante do exterior, da Metrópole. Umacolônia vive para satisfazer demandas

externas – e o Brasil não seria mui-to diferente disso. Vale dizer,

não existe modo de produçãodependente – ao contrá-

rio, a independência éuma condição do pró-

prio modo de produ-ção. Assim, o queera específico doescravismo brasi-leiro – o seu traçocolonial, forjado

pela submissão formal da nova área sul-americana ao capital em expansão na Eu-ropa –, ao invés de apontar para a forma-ção de um modo de produção historica-mente novo, invalidava, muito pelo con-trário, a própria aplicação do conceito aosprimórdios da nossa História. Defendimais tarde no Memorial dos Palmares –e o Nelson não estava longe de concor-dar comigo – que no Brasil colonial vi-gorava uma forma social escravista deprodução (afinal, o caráter da existênciasocial da força de trabalho repousava naatividade compulsória). E que essa for-ma empalmava relações de produçãoerguidas sobre uma base material quedependia de uma outra realidade para sereproduzir (força de trabalho africanatrazida pelo tráfico de escravos; existên-cia de capitais, mercados e técnicas detrabalho inteiramente dependentes daEuropa etc. ‘Sem Angola não há Brasil’,já vaticinava Padre Antônio Vieira. Pos-to nesses termos, o conceito de modo deprodução não nos servia.”

Escrevi isso há dez anos,creio eu. E aoreler essa passagem, não posso deixar deme emocionar. Com ele e outros velhoslutadores do Partido, aprendi a importân-cia de pesquisar a realidade brasileira,para efetivamente transformá-la. Mais:aprendi que o sonho de um Brasil melhorpara todos foi o grande motor de sua obra.

Meu último contato pessoal comNelson Werneck Sodré ocorreu por oca-sião do lançamento de Tudo é Política, noPaço Imperial, em 1998. Palco memorá-vel das lutas pela Independência brasi-leira, impossível haver local mais ade-quado para se propagar a sua obra. No diaseguinte, eu embarcava para a França eele ainda me pediu para que transmitis-se seu abraço ao grande historiadormarxista Pierre Vilar. Apenas três mesesdepois, Nelson faleceria, em Itu, no in-terior de São Paulo.

Muito obrigado por tudo, Nelson.Sinto sua falta ainda hoje. E sei que inter-preto o sentimento de centenas de ami-gos e admiradores de sua obra – absolu-tamente inseparável de sua extraordiná-ria trajetória.

tenceu à primeira geração que se debru-çou conceitualmente sobre os rumos danossa História, após o extraordináriotrabalho de garimpagem realizado porpesquisadores como Varnhagen e Tau-nay nos arquivos brasileiros e estrangei-ros, algumas décadas antes. Ou seja, elefoi um dos promotores da primeira gran-de síntese da História brasileira, entre osanos 1930 e 1960, juntamente com CaioPrado Júnior e Sérgio Buarque de Holan-da. E isso não é pouco.

Humanista, professor de lógica, mili-tar nacionalista, Nelson Werneck Sodréencarava o marxismo como um huma-nismo também, advindo daí sua identifi-cação com a contribuição de teóricoscomo György Lukács e Antonio Gramsci.A base da sua disciplina intelectual se deupor intermédio da imprensa, já que Nel-son Werneck colaborou com alguns dosmaiores jornais brasileiros durante seisdécadas, ininterruptamente. Posso escre-ver isso no Jornal da ABI – dirigido pelomeu querido amigo Maurício Azêdo –sem medo de errar: o historiador NelsonWerneck Sodré não existiria sem a disci-plina que adquiriu em leituras voltadaspara a elaboração de textos críticos poste-riormente publicados na nossa imprensa.Ele mesmo reconhecia isso em algumasconversas que manteve comigo.

Aprendi muito com Nelson Werne-ck Sodré, ao longo de mais de 20 anos deconvivência com ele. Para minha hon-ra e alegria, chegamos a lançar umaobra juntos, Tudo é Política, em maisuma prova da imensa generosidade dele.Com Nelson, eu sempre me senti intei-ramente livre para emitir opiniões acercadoprocesso histórico brasileiro. Eu merecordo que debatia com ele questõesum tanto quanto complicadas, quetinham a ver com a naturezado modo de produção emvigor no Brasil Colônia,e ele me escutava cominfinita paciência.E, por vezes, atéconcordava co-migo...

O trecho re-produzido a se-guir traduz bemmeu sentimen-

Nelson Werneck,o general vermelho

Lembranças do historiador cuja disciplina intelectual adveiode sua colaboração de mais de 60 anos em artigos para a imprensa.

Jornalista e historiador, sócio da Casa, Ivan Alves Filhoé membro da Comissão de Ética dos Meios deComunicação da ABI.

ARQU

IVO PESSO

AL OLG

A SOD

28 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Históricos são os entraves para a de-mocratização da produção e do acesso àmídia no Brasil. Não foram poucos osdebates, e mesmo as iniciativas já ensai-adas nesta direção. De concreto, contu-do, poucos foram os avanços. No dia 19de abril, a Câmara dos Deputados lançoua Frente Parlamentar pela Liberdade deExpressão e o Direito à Comunicaçãocom Participação Popular. Trata-se deuma iniciativa de parlamentares e mem-bros da sociedade civil para acompanhare defender ações que ampliem o direitoà liberdade de expressão e comunicação.

Inicialmente, a Frente conta com aadesão de 181 parlamentares de 18 ban-cadas e cerca de 100 entidades da socie-dade civil. Para a Deputada Federal Lui-za Erundina (PSB-SP), que coordena ogrupo, o apoio mostra que o Brasil está,enfim, preparado para debater o assunto.Será mesmo?

“É importante ter a sociedade civilengajada nessa luta. Vamos discutir eacompanhar a implementação de umapolítica de comunicação neste País”, dizErundina, que espera ainda este ano de-finir pontos como a proposta que fixa omarco regulatório das comunicações e aaplicação dos recursos no Plano Nacio-nal de Banda Larga. “Neste sentido, é im-portante nos mobilizarmos para conse-guir a democratização”, explica.

Além de Luiza Erundina, fazem par-te da Frente parlamentares como Emili-ano José (PT-BA), Jean Wyllys (PSOL-RJ), Luciana Santos (PCdoB/PE), PauloPimenta (PT/RS), Paulo Teixeira (PT-SP)e Chico Alencar (Psol-RJ). Organizaçõessociais como o Instituto Bem-Estar Bra-sil, a Confederação Nacional dos Bisposdo Brasil-CNBB e o Movimento Negrotambém integram o grupo. O objetivo émostrar que o controle da mídia já existeno Brasil, mas não se dá no desejado cam-po social. Exatamente pela deturpação dosistema, ele é privado, exercido pelos do-nos das emissoras, como se fossem donosde uma propriedade particular absoluta –numa espécie de ditadura exercida sobrebens públicos, isto é, as freqüências derádio e tv.

Nesta entrevista ao Jornal da ABI, aDeputada Erundina fala dos principaisobstáculos enfrentados na luta pela de-mocratização do acesso aos meios de co-

te sobre o tema, tendo como referênciaas propostas aprovadas na I Conferênciade Comunicação. No mês de maio, a Co-ordenação promoveu reunião de plane-jamento das atividades da Frente e fez-se representar nos eventos que se realiza-ram nos Estados – entre outros, encon-tros de blogueiros e o Seminário Marcoregulatório – Propostas para uma Comu-nicação Democrática, promovido peloForo Nacional pela Democratização daComunicação-FNDC, nos dias 20 e 21 demaio, no Rio de Janeiro.

JORNAL DA ABI – A SENHORA ACREDITA QUE

HAVERÁ RESSONÂNCIA PARA A FRENTE NA CÂMA-RA, UMA VEZ QUE MUITOS POLÍTICOS SÃO DONOS

OU ESTÃO LIGADOS A GRANDES CONGLOMERADOS

DE COMUNICAÇÃO ESPALHADOS PELO PAÍS? OS

DEPUTADOS ABRIRÃO ESPAÇO PARA UM DEBATE

SOBRE A DEMOCRATIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMU-NICAÇÃO, ESTANDO BOA PARTE DELES CONCENTRA-DOS EM SUAS PRÓPRIAS MÃOS?

Luiza Erundina – Os deputados terãode se envolver no debate, a partir domomento em que o Governo encami-nhar para a Câmara a proposta de novomarco regulatório. Enquanto isso, audi-ências públicas ocorrem nas Comissõespara discutir temas relacionados à maté-ria. Certamente haverá resistência, masa participação de representantes da soci-edade nos debates, através da Frente Par-

lamentar, ajudará na criação de condi-ções políticas para se promoverem asmudanças necessárias.

JORNAL DA ABI - ACREDITA QUE ESSE PONTO

– EXATAMENTE O CONTROLE DA MÍDIA POR POLÍ-TICOS E SEU CONSEQÜENTE USO ELEITORAL – É UM

DOS ASPECTOS MAIS CRÍTICOS, QUE COLOCAM EM

RISCO A QUALIDADE E A ÉTICA DA COMUNICAÇÃO

NO PAÍS?Luiza Erundina – A concentração dos

meios de comunicação nas mãos de pou-cos grupos e a influência e o controle depolíticos nesse setor certamente compro-metem a qualidade e a ética da comuni-cação. Isso é agravado pela ausência demecanismos de participação da socieda-de e de controle público. Qualquer pro-posta neste sentido é logo criticada e tidacomo ameaça à liberdade de expressão.

JORNAL DA ABI - E A PRÓPRIA MÍDIA, ISTO É,JORNAIS, TELEVISÕES E RÁDIOS? ESSES CANAIS TÊM

DIVULGADO A CRIAÇÃO DA FRENTE PARLAMENTAR

E DEBATIDO SUAS PROPOSTAS? OU MANTÊM-SE ÀMARGEM DO PROCESSO?

Luiza Erundina – A mídia se mantémalheia à criação e atuação da Frente Parla-mentar, inclusive as entidades empresa-riais do setor foram convidadas a integrara Frente, mas declinaram do convite. Poroutro lado, a mídia alternativa acompa-nha com grande interesse, sobretudo as

Liberdade de imprensaLiberdade de imprensa

POR PAULO CHICO

A mídia comoum bem popular

Sob a liderança da Deputada Federal Luiza Erundina (PSB-SP), élançada a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito àComunicação com Participação Popular com o objetivo de questionar a

histórica concentração do controle dos veículos de comunicação no Brasil.

municação. O primeiro diz respeito jus-tamente às ações de órgãos federais eempresas privadas que, para o grupo,buscam cercear a liberdade de expressão.“Nós não podemos continuar com essaprática em que um grupo restrito de fa-mílias monopoliza a informação e a res-tringe. E só vamos conseguir isso se tiver-mos um olhar amplo sobre o problemajunto à população”, defende. Sua entre-vista, a seguir.

JORNAL DA ABI - QUAL O OBJETIVO DA

FRENTE PARLAMENTAR PELA LIBERDADE DE EX-PRESSÃO E O DIREITO À COMUNICAÇÃO? COMO

COORDENADORA, QUAL ACREDITA QUE SERÁ O SEU

MAIOR DESAFIO?Luiza Erundina – A Frente Parlamen-

tar pela Liberdade de Expressão e o Direi-to à Comunicação com ParticipaçãoPopular é uma iniciativa de parlamenta-res da Câmara dos Deputados, em parce-ria com entidades da sociedade civil, evisa a promover, acompanhar e apoiarações que contribuam para o exercício daliberdade de expressão e o direito huma-no à comunicação. Ela é coordenada porum coletivo formado por deputados detodas as bancadas partidárias da Câmarae por representantes de entidades da so-ciedade, e tem caráter paritário. O mai-or desafio é ser reconhecida e firmar-secomo mecanismo de interlocução e ar-ticulação entre os três segmentos direta-mente interessados na definição de umnovo marco regulatório e da política decomunicação do País: o Governo, o Con-gresso e a sociedade civil organizada, oque compreende as entidades sociais e osetor empresarial.

JORNAL DA ABI - QUAIS AS PRINCIPAIS PRO-POSTAS E AÇÕES E A AGENDA DA FRENTE NESTES

DOIS PRIMEIROS MESES?Luiza Erundina – O ato de lançamen-

to da Frente Parlamentar ocorreu naCâmara dos Deputados, no dia 19 deabril de 2011, quando foram aprovadoso Manifesto e o Estatuto e feita a eleiçãoda coordenação colegiada da Frente. Aprimeira atividade da Frente, após o atode lançamento, foi a realização de umaaudiência pública com o Ministro dasComunicações, Paulo Bernardo, no dia 25de abril, na Câmara dos Deputados, paradiscutir o processo de elaboração do novomarco regulatório das comunicações.Ocorreu então intenso e produtivo deba-

BETO

OLIVEIRA/AG

ÊNC

IA CAM

ARA

Erundina: O controle de políticos nos veículos compromete a qualidade e a ética da comunicação.

29Jornal da ABI 367 Junho de 2011

redes sociais que participam dos debatese divulgam as atividades da Frente.

JORNAL DA ABI - COMO EXPLICAR QUE OCONSELHO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO CON-GRESSO ESTEJA PARADO HÁ CINCO ANOS? QUAL

SUA IMPORTÂNCIA E QUAL DEVE SER O PAPEL DES-SE CONSELHO? ACREDITA QUE SE CONSEGUIRÁ

REATIVÁ-LO?Luiza Erundina – O único mecanismo

de participação que existe é esse Conse-lho de Comunicação Social, que estádesativado por todo este tempo poromissão da Presidência do Senado, quenão convoca sessão do Congresso paraeleger novos Conselheiros. Embora mi-tigado em suas prerrogativas, por serapenas um órgão de consulta e assesso-ria do Congresso, durante o tempo emque funcionou – apenas dois mandatos– o Conselho elaborou importantes es-tudos. Contudo, o que se precisa mesmoé de um Conselho de Comunicação So-cial com caráter deliberativo e paritário,com representantes eleitos diretamentepelos segmentos que compõem o setordas comunicações no País. Lancei mão detodos os meios de que o meu mandatodispõe na tentativa de que o Conselhofosse reativado, mas não consegui. Fiz,inclusive, uma representação ao Procu-rador-Geral do Ministério Público Fede-ral, no sentido de que questionasse a Pre-sidência do Senado sobre a omissão. Po-rém, sem sucesso.

JORNAL DA ABI - A MÍDIA BRASILEIRA RE-FLETE, DE FATO, O QUE É O BRASIL? COMO TOR-NÁ-LA MAIS PARTICIPATIVA, PLURALISTA E DEMO-CRÁTICA?

Luiza Erundina – A mídia brasileiranão reflete, de fato, a realidade atual doPaís. Daí a necessidade de um marco re-gulatório que corresponda à revoluçãotecnológica da era digital e da convergên-cia de plataformas de mídia. Ademais, épreciso teruma política de comunicaçãoque democratize os meios de comunica-ção; assegure o controle público sobre eles;e garanta a todas e todos os cidadãos bra-sileiros o direito à comunicação.

JORNAL DA ABI - HISTORICAMENTE, QUAIS

GRUPOS A SENHORA CONSIDERA OS MAIS EXCLU-ÍDOS DE PARTICIPAÇÃO E REPRESENTATIVIDADE NA

MÍDIA NO BRASIL? COMO INCLUÍ-LOS, POR EXEM-PLO, NA PRODUÇÃO E NA PAUTA DOS VEÍCULOS DE

COMUNICAÇÃO?Luiza Erundina – Historicamente, as

mulheres, os afrodescendentes e as mi-norias têm sido os segmentos mais ex-cluídos de representatividade na mídiano Brasil, como também o são econômi-ca, social, cultural e politicamente. Sócom a radicalização da democracia noPaís, o que supõe ampla e profunda refor-ma do sistema político brasileiro, serápossível eliminar as desigualdades e cor-rigir o desequilíbrio na distribuição depoder, especialmente o poder da mídia.

JORNAL DA ABI – A SENHORA FALA EM DE-MOCRATIZAÇÃO. MAS NÃO TEME QUE O PROJETO

DA FRENTE ACABE POR SER CONFUNDIDO COM UMA

PROPOSTA DE REGULAÇÃO DA MÍDIA?

Luiza Erundina – Não está sendo pro-posto um controle de mídia, alias, um ter-mo já estigmatizado, e sim que a socieda-de possa participar democraticamente naconstrução de uma comunicação maisdemocrática e pluralista. O controle soci-al terá que acontecer. É o Estado que faz aoutorga, a sociedade vai ter o controle.

JORNAL DA ABI - A INTERNET É, CADA VEZ

MAIS, FERRAMENTA FUNDAMENTAL PARA A DEMO-CRATIZAÇÃO DO ACESSO À INFORMAÇÃO E AO CO-NHECIMENTO. POR QUE OS SERVIÇOS DE BANDA

LARGA SÃO TÃO CAROS NO BRASIL? O GOVER-NO NÃO PODERIA – E DEVERIA – INTERVIR NESTE

MERCADO?Luiza Erundina – Para que a população

de menor nível de renda tenha acesso aosserviços de banda larga de qualidade e debaixo preço é preciso, sim, que o Gover-no intervenha nesse mercado, partici-pando diretamente da instalação de re-des e da prestação desse serviço a preçossubsidiados, de modo a universalizar oacesso à informação e ao conhecimentoda população das regiões mais distantese menos desenvolvidas. Atualmente, oserviço de banda larga está concentradona região Sudeste do País, a preço eleva-do. É preciso, pois, aumentar a competi-tividade das operadoras, para forçar a re-dução do preço e melhorar a qualidade emtermos de velocidade. Para tanto, espera-se a implantação do Plano Nacional deBanda Larga, que enfrenta resistência dasoperadoras desse serviço no País.

JORNAL DA ABI - A SENHORA TEM LONGA

TRAJETÓRIA POLÍTICA, COM PASSAGEM HISTÓRICA

PELA PREFEITURA DE SÃO PAULO. COMO DEFINI-RIA A RELAÇÃO DA POLÍTICA LUIZA ERUNDINA COM

A MÍDIA? ELA FOI SEMPRE CORRETA E CORDIAL OU,POR VEZES, A SENHORA SE SENTIU INCOMPREEN-DIDA E ATÉ MESMO VÍTIMA DE PRECONCEITOS?

Luiza Erundina – Como Prefeita, mi-nha relação com a mídia não foi nada fácil.Minha vitória eleitoral surpreendeu econtrariou os caciques da política paulis-tana, para quem foi intolerável seremderrotados por uma mulher, nordestina,pobre e de esquerda. Além de serem siste-maticamente críticos, certos veículos decomunicação não noticiavam as realiza-ções do nosso Governo e se recusavam acobrir os atos oficiais, mesmo quandoeram de interesse público, como a entre-ga, por exemplo, de obras importantes.Como Deputada federal, já no quartomandato, continuo sendo discriminadapela mídia, em razão da minha atuação,desde o primeiro mandato parlamentar,na Comissão de Ciência e Tecnologia, Co-municação e Informática, onde luto pelademocratização das comunicações, so-bretudo questionando as regras de ou-torga e renovação de concessões. Há poucotempo fui vetada pelo dono de uma emis-sora de rádio de São Paulo de participar deum programa jornalístico para o qual ti-nha sido convidada pela produção. Esse éo preço que pago por usar as prerrogativasdo mandato parlamentar na defesa dointeresse público. Contudo, tenho bomrelacionamento com jornalistas e demaistrabalhadores do setor.

O relatório anual do Comitê de Pro-teção aos Jornalistas-CPJ, divulgadono dia 20 de junho, em homenagem aoDia Mundial do Refugiado, informaque 70 jornalistas foram exilados nosúltimos 12 meses em razão de sua atu-ação profissional. Em 2010, 85 jorna-listas foram exilados.

A pesquisa considerou jornalistasque deixaram seus países de origem pormotivos profissionais e estão exilados hámais de três meses. Do total, 82% saíramdos países em virtude de ameaças de pri-são. Violência, assédio físico e moral econstantes ameaças também motiva-

Num comunicado divulgado em 27de junho, a ABI expressou seu protestocontra a decisão das autoridades polici-ais de São José do Rio Preto, São Paulo,e do representante local do MinistérioPúblico do Estado de pressionar o jornalDiário da Região para revelar a fonte dasinformações que vem publicando sobrea investigação de irregularidades admi-nistrativas no Município.

“O comportamento dessas autorida-des – disse a ABI – constitui grave agres-são à liberdade de imprensa, disfarçadasob o eufemismo de que o Diário daRegião vem publicando informaçõesacerca de investigações que ocorreriam

Promotor do interior de SPquer quebrar sigilo da fonte

sob segredo de Justiça. Essa alegação ca-rece de fundamento constitucional,pois a obrigação de manter e resguardarsegredos de Justiça em procedimentospoliciais ou judiciais é das autoridadesque a decretaram, e não dos jornalistasou da imprensa. A obrigação dos jorna-listas é com a divulgação de informa-ções, e não com o seu ocultamento.”

“A ABI está solidária com os compa-nheiros do Diário da Região e estimaque eles mobilizem o quanto antes osmeios judiciais de garantir o seu direitode acesso à informação”, conclui a nota,firmada pelo Presidente da ABI, Maurí-cio Azêdo.

Jornalista morto com 6 tirosno Rio Grande do Norte

A organização não-gover-namental Repórteres SemFronteiras-RSF divulgou co-municado em repúdio ao as-sassinato do jornalista e blo-gueiro Ednaldo Figueira (fo-to), 36 anos, no dia 15 de ju-nho, em Serra do Mel, no RioGrande do Norte. Ednaldofoi morto com seis tiros nasaída do trabalho. Os disparos teriam sidofeitos por três desconhecidos que circula-vam em uma motocicleta.

Fundador e proprietário do diário OSerrano e colaborador do blog Serra doMel (serradomel-rn.com), Ednaldo eraPresidente do Diretório Municipal doPartido dos Trabalhadores e conhecidocomo principal opositor do Prefeito deSerra do Mel, Josivan Bibiano de Azeve-do, do Partido da Social Democracia Bra-sileira (PSDB).

A nota do RSF informa que Ednaldoteria publicado recentemente uma re-portagem sobre a gestão do orçamentomunicipal. O Presidente do PT do RioGrande do Norte, Eraldo Paiva, infor-mou ao Diário de Natal que o jornalis-ta vinha recebendo ameaças, e anun-ciou a abertura de uma comissão de in-vestigação para atuar no caso.

“O contexto de sérias ten-sões políticas constatado emSerra do Mel leva a privilegiara pista política. No entanto,ter um blog e tratar do temasensível, como é a corrupção,constitui um risco no Brasil,como já demonstrou emmarço deste ano o atentadode que escapou com vida Ri-

cardo Gama, no Rio de Janeiro. Será fun-damental, nesse novo caso, que o conjun-to da classe política local se mobilize pelaaveriguação da verdade, em nome da defesadas liberdades e do debate democrático”,disse em nota a Repórteres Sem Fronteiras.

A organização relembrou ainda “aforte presença na região do crime orga-nizado, o qual poderia estar por trás desseassassinato, tendo em conta o modooperatório.”

Desde o início de 2011 houve dois assas-sinatos de jornalistas no Brasil: LucianoLeitão Pedrosa, funcionário da RádioMetropolitana FM e apresentador deum programa no canal local TV Vitória,foi morto no dia 9 de abril, em Pernam-buco; Valério Nascimento, proprietárioe diretor do jornal Panorama Geral, foimorto em 3 de maio, no Estado do Riode Janeiro. (Cláudia Souza)

Exílio, o destino de 70 jornalistas no mundoram o exílio. O relatório não leva em con-sideração o deslocamento de jornalistaspor razões financeiras, violência gene-ralizada ou por mudança de ocupaçãoprofissional.

Irã e Cuba lideram a lista de países commaior número de jornalistas exilados.Informa o CPJ que em cada um desses doispaíses foram exilados 18 profissionais nosúltimos 12 meses. O Irã lidera o rankingdo CPJ pelo segundo ano consecutivo.

Desde 2001, quando o CPJ iniciou esteestudo, 649 jornalistas foram exilados,metade deles oriundos da Etiópia, Somá-lia, Iraque e Zimbábue. (Cláudia Souza)

REPROD

UÇÃO

30 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

"No panorama atual, e por que não di-zer de sempre, do mundo islâmico, émuito difícil ser mulher, ser ideologica-mente contrário aos sistemas crônicose milenares de tratamento à pessoa e dosdisparates praticados por líderes que seperpetuam no poder. E chegam à barbá-rie de interferir para que as Constitui-ções desses países tenham artigos quepenalizem os cidadãos e, principalmen-te, a mulher com as penas mais abjetase humilhantes possíveis. E o que me dei-xa mais constrangida e indignada é queisso se passa em pleno século XXI e di-ante do olhar complacente dos países doOcidente.

Quero dizer que, apesar de ser irania-na e, portanto, originária de uma cultu-ra completamente diferente, não estouindiferente aos problemas femininosmundiais, mesmo morando na Alemanhae distante do mundo árabe. Mas na Ale-manha sei exatamente todas as situaçõesaflitivas por que passam as mulheres noBrasil e em tantos lugares. Entristeço-memuito, pois somente com a ajuda mascu-lina podemos subverter esse, digamos,padrão estabelecido; ela vem, em tantospaíses, de forma lenta e preconceituosa.

Até o ginásio, vesti meu véu, cobrimeu rosto, mostrando apenas meusolhos. Mas (quer saber?) já queria usarminissaia, sapato alto, óculos escuros.Não para me ocidentalizar, nada disso, esim para me rebelar, para transgredir, paradizer que tudo aquilo era uma grandebesteira e um imenso retrocesso social.No primeiro dia na Universidade de Ta-briz, onde estudava Medicina, joguei ovéu fora, coloquei um vestido e fui assimestudar (risos). As meninas me olharamespantadas; no entanto, no dia seguinte,algumas apareceram também de vestido.Por dentro eu ria satisfeita, havia conse-guido uma vitória.

Na universidade logo conheci uns ra-pazes e moças de esquerda. Protestáva-mos timidamente contra tudo e todos,pois naquele tempo (final do Governo doaiatolá Khomeini) não podíamos nem lerum livro que não fosse de nosso curso oureligioso e já éramos considerados sub-versivos. Fazíamos passeata, dispersadana força, a pancada mesmo, e eu lá. Euqueria ficar na frente, ser a primeira e, porisso mesmo, também a primeira a apa-nhar (mais risos). Fazia questão de meexpor, para eles saberem que eu existia eme opunha ao regime opressivo.

Um dia apareceram lá uns jornalistasda BBC de Londres e fizeram uma repor-tagem sobre o nosso movimento. Eu ti-nha 24 anos, hoje tenho 54, portanto, há30 anos esse Governo está no poder.Quero deixar bem claro que não me re-firo à política externa do Irã e à interfe-rência em nossos assuntos internos porparte dos Estados Unidos. Se uns podemter bomba atômica, por que outros paí-ses não podem? Estou apenas comentan-do essa situação. Por favor, não estouafirmando que temos. Segundo o Presi-dente Ahmadinejad (Mahmoud), nossautilização de energia nuclear é pacíficae devemos acreditar nisso, mas quem

tem que decidir sobre isso somos nós.Todos os países têm o direito inalienável,sagrado, de decidir sobre seu destino, decomandar seu veículo e não deixar queoutros o dirijam por ele.

Dizia então que não me refiro à polí-tica externa do Irã. Minha luta é contrao não cumprimento dos direitos huma-nos em meu país e no mundo árabe. Nãofaço política, tento mostrar ao mundoislâmico que existe algo chamado direi-tos humanos que precisa ser conhecidopor lá e cumprido. A mulher não podemais ser tratada abaixo de um animal,não pode mais ser alguém pela metade.Ser submetida a toda sorte de penas, comoo aviltante apedrejamento e a submissãoàs ordens do homem. Lá, uma mulhernão pode, por exemplo, pedir o divórcio.

“MULHERES NÃO PODIAMCONTESTAR SEUS MARIDOS E,

SENDO ASSIM, NÃO PODERIAMREQUERER O DIVÓRCIO”

Uma amiga minha, médica cirurgiã,procurou o juiz para requerer o divórcio.Ele perguntou a ela por que razão queriase divorciar. Ela respondeu que o maridoa submetia a toda sorte de maus tratos. Ojuiz então exigiu que relatasse os maus-tratos. Minha amiga falou que apanhavasempre, que era ofendida diariamente porpalavras e atitudes, forçada a fazer sexoquando não queria e muito mais. Calma-mente o juiz a mandou ir para casa, queisso não era nada e mulheres não podiamcontestar seus maridos e, sendo assim,não poderiam requerer o divórcio.

Lembro-me de quando eu era criançae era obrigada (obrigada para mim, por-que na sociedade é uma coisa normal) aservir meus irmãos na mesa, quandocomíamos. Um dizia: “Mina, vai pegar

Direitos humanosDireitos humanos

“No Oriente Médioa mulher é tratada piordo que um cachorro”

DEPOIMENTO A ARCÍRIO B. GOUVÊA NETO

Militante dos direitos humanos exilada na Alemanha,a iraniana Mina Ahadi descreve as desumanas restrições

impostas às mulheres em seu país e no mundo muçulmano,onde, diz, a mulher é tratada como animal.

Uma das mulheres mais admiráveis da atualidade, a iraniana Mina Aha-di, nascida na cidade de Abhar, em 1956, esteve no Brasil, convidada peloInstituto Millenium, para participar do 2º Fórum Democracia & Liber-dade, realizado em São Paulo. Visitou também o Rio de Janeiro, ondefez uma palestra no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais-Ibmec,e Brasília, onde manteve encontros com órgãos do Governo ligados aos

direitos humanos.Mina apareceu no cenário mundial

ao ter uma atuação de impressionantecoragem na defesa da sua compatriotaSakineh Mohammadi Ashtiani (foto),condenada à morte por apedrejamen-to e que, diante da manifestação derepúdio da opinião pública e da mídiado mundo inteiro, teve a pena suspensa.Ela nos deu essa entrevista exclusivano Rio, na sede do Ibmec; como só fala

os idiomas persa e alemão, a entrevista não teria sido possível sem a tra-dução do alemão para o português feita pela jornalista Christiane Romeo,que a acompanhava.

Fundadora do Comitê Internacional contra o Apedrejamento e aindado Conselho Central dos Ex-Muçulmanos e criadora dos sites notonemoreexecution.org e stopstonningnow.com, Mina integra também o Comitê Cen-tral e o Politburo do Partido Comunista Iraniano. Em 2008, foi agraciadacom um prêmio da mídia de Viena, por seu livro Ich habe abgeschworen (EuAbjurei), publicado em 2007, em co-autoria com Sina Vogt. Durante a Re-volução iraniana, ela estava em Tabriz e participou ativamente do movi-mento. Seu marido, também um ativista político, foi executado no dia doaniversário de casamento.

A execução foi uma motivação ainda maior para sua luta contra o ape-drejamento no Irã. Mãe de duas filhas, Mina Ahadi mora há 14 anos naAlemanha e recentemente ajudou a libertar a iraniana Nazanin Fateh, tam-bém condenada ao apedrejamento. Por causa das ameaças de morte, elavive sob proteção da Polícia alemã: ao criar o Conselho Central dos Ex-Muçulmanos, entidade de apoio às pessoas que abdicaram da fé islâmica,passou a receber ameaças de morte que a obrigam a viver quase reclusa.Renunciar ao Islã é considerado entre muçulmanos uma ofensa grave, pu-nível com a pena de morte.

No entanto, hoje, em razão de seu trabalho e de organizações interna-cionais de defesa dos direitos humanos, nenhum dos países onde vigora a“sharia” (conjunto de leis islâmicas), como a Arábia Saudita, aplicou estasentença nos últimos anos. Porém, dois grupos radicais muçulmanos, os“talibãs”, no Afeganistão, e os “shebab”, na Somália, ainda recorrem a essapunição. Até mesmo no Irã, onde, segundo a imprensa, seis pessoas foramapedrejadas nos últimos cinco anos, este tipo de condenação por adulté-rio ou fornicação é cada vez menos freqüente, analisa Malcolm Smart, di-retor do Departamento do Oriente Médio e do Magreb da Anistia Inter-nacional: “Atualmente, não se aplica muito no Oriente Médio, nem nomundo muçulmano, nem mesmo no Irã”, revela.

Neste depoimento, Mina Ahadi traça um quadro das agressões aos di-reitos humanos e às mulheres no Islã. Seu relato.

Mina Ahadi: Falei em todos os lugares emque me permitem falar e não tenho medo

de perder minha vida em prol dessa causa.REPROD

UÇÃO

MIC

HA

EL KO

OR

EN/R

EUTER

S

31Jornal da ABI 367 Junho de 2011

minha água”; outro: “Mina, traga meudoce ou meu chá”. E era assim o dia todo.Eles nem faziam por mal, era assim comseu pai, foi assim com seu avô e agiramdessa maneira nossos antepassados. Amulher, em muitas famílias, é vista abai-xo de um cachorro. No entanto, hojevejo que em escala menor é um proble-ma global. No Brasil, metade da popula-ção é de mulheres, mas apenas 20% ocu-pam cargos no Congresso.

É uma coisa doida, maluca. Uma or-dem sexual em que a mulher não podenem dizer um “não quero”, sem liberda-de de escolha nem de opinião. Uma soci-edade feita para os homens. Uma mulher,por exemplo, não pode fundar um parti-do. Vocês no Brasil não têm idéia do queseja isso. Quando um dia resolvi não usaro véu e mostrar meu rosto, um fatonormal em qualquer sociedade civiliza-da, começou o grande drama da minhavida. Mas essa reportagem da BBC, comoeu disse, espalhou nosso movimentopelo mundo todo. Foi ótimo. E o mundoacordou para o problema.

Essa minha via-crucis (para usar umaimagem cristã) começou cedo. Em 1980,meu marido, estudante de Física, foipreso, torturado e morto. A Polícia ficouuma semana em minha casa e eu escon-dida em outro lugar, fugindo daqui praali. Ao todo sete pessoas ligadas a mim,entre amigos e familiares, foram execu-tadas, sem julgamento. Cada dia eu fica-va em uma casa diferente, mudandosempre. Mas as pessoas que me abriga-vam tinham medo, muito medo, se fos-sem pegas era morte na certa.

Um dia aconteceu um fato inacredi-tável. Estava escondida na casa de umamigo, e ele me disse: ‘Se chegar a Polí-cia você pula pela janela. Só pra te avisar,eu moro no 3º andar’. Concordei, nãotinha outra saída. Nessa mesma noitechegou a Polícia. Acordei sobressaltadacom uma enorme confusão no prédio.Ele bateu levemente na porta do meuquarto e sussurrou: “Mina, eles estão aíse joga, se joga logo”. Eu fui até a janela,olhei pra baixo e pensei: “Não vou mejogar coisa nenhuma, não posso me jo-gar. Não vou morrer dessa forma ingló-ria e covarde. Eles que me prendam, quetenham, pelo menos, o trabalho de meprender e me matar”. Mas não era a mimque procuravam, era outra pessoa. Pega-ram-na e foram embora. Imagine se eutivesse me jogado.

Dali, fugi para o Kurdistão, aos tran-cos e barrancos. Fiquei morando numacidade do interior. Sabiam quem eu era.Ensinaram-me a trabalhar no rádio. Tiveum programa de boa audiência, sempreem defesa dos direitos humanos e damulher. Permaneci no Kurdistão por qua-tro anos. Depois fui morar em um vilarejo,praticamente feito de tendas, entre o Irãe o Iraque, na época da guerra entre os doispaíses e sobrevivi, aos ataques aéreos.Servia como médica cirurgiã em umcampo de refugiados e feridos e me sen-tia bem ali, trabalhando como voluntária.Eram umas tendas legais, tinham até ci-nema. Vivi de experiência em experiência

por cerca de dez anos até fugir para Vie-na, na Áustria, em 1990 e depois paraColônia, na Alemanha, em 1996.

Há dois anos estou em casa, à noite, erecebo uma ligação telefônica de umestudante do Irã muito assustado emque ele dizia: “Por favor, me ajude, minhamãe, Sakineh Mohammadi Ashtiani, vaiser apedrejada”. Respondi: “Vou ajudar”.E perguntei: “O que é isso, apedrejamen-to?” Ele disse que ela havia sido julgadapor adultério, condenada e a pena eraessa. Então, me surpreendi, pois não haviaesse artigo na Constituição iraniana,embora exista na “sharia”. É que, noperíodo posterior à minha fuga, ela ha-via sido mudada, covarde e cruelmente,para acrescentar itens que causassemsofrimento e humilhação às mulheres.

“A LEI DIZ QUE ELAS TÊM DESER GRANDES O SUFICIENTEPARA MACHUCAR A VÍTIMA,

MAS NÃO PARA MATÁ-LA NOPRIMEIRO OU SEGUNDO GOLPE.”

Para o mundo ocidental e para as feli-zes mulheres que moram aqui e nãosabem o que é um apedrejamento, voudescrevê-lo. Abre-se um buraco no chão,o suficiente para caber uma pessoa em pé.Busca-se a vítima em tal dia e tal hora,em geral ao amanhecer, e conduzem-napelas ruas, enrolada em uma túnicamortuária, para que seja alvo da curiosi-dade alheia e jogam-na no buraco e co-brem-na de terra até o peito; no caso doshomens, até à cintura.

Dependendo da condenação, é o juizquem atira a primeira pedra. Mas pode sertambém uma das testemunhas. Se a víti-ma é uma mulher sentenciada por adul-tério, por exemplo, tanto o seu maridoquanto a família dele podem lançar as pri-meiras pedras. A lei diz que elas têm deser grandes o suficiente para machucara vítima, mas não para matá-la no primei-ro ou segundo golpe. Os homens entãocomeçam a atirar tantas pedras quantassejam necessárias para que ela morra.

E o grande momento desse circo dehorror é saber quem atirará a últimapedra. Quando isso acontece, aquele queatirou essa pedra maldita é exaltado, fes-tejado e tratado como herói. No Irã, ohomem é enterrado até à cintura; amulher, até o peito. Se o condenado con-seguir sair sozinho, se livra da morte. Emoutros países, são presos a uma árvore oulançados ao chão, às vezes com os rostoscobertos, outras vezes, não. Praticamentetodos os dias eu recebo chamadas decondenados me pedindo ajuda para essetipo degradante de condenação. As pri-sões estão lotadas. Há, inclusive, criançase adolescentes aguardando fazer 18 anospara serem executados.

Esse crime não é somente praticadopelos que ali estão, é de todo o país, é detoda a humanidade. Se não houver umapressão mundial eles não vão parar comessa barbárie e me sinto honrada por estaentrevista à Associação Brasileira deImprensa, pois preciso da ajuda de enti-dades dessa importância para extinguir

uma prática que remete à pré-história daraça humana. Não descansarei enquan-to não acabar com essa violência que feretodos os princípios dos direitos humanosnos países em que é praticada e que é bomque se revele: não é somente no Irã, étambém no Sudão, Afeganistão, Nigéria,Arábia Saudita, Somália.

Minha vida é dedicada a essa luta. Jáfalei em todos os lugares do mundo emque me permitem falar e não tenhomedo de perder minha vida em prol dessacausa. Lutei contra o apedrejamento deNazanin Fateh, engenheira petrolífera,mãe de dois filhos, e consegui salvá-la.Mas em 2001, na Nigéria, cheguei tardepara salvar uma outra da morte. Quan-do viu os homens virem buscá-la, eladesmaiou. Foi levada numa maca ao lo-cal do apedrejamento e morta. Mortacomo se mata um animal selvagem emorta por homens muito mais culpadosdo que ela. Nunca a frase de Jesus foi tãoverdadeira: “Quem não tiver culpa queatire a primeira pedra”. E desde quandoadultério é crime de morte em uma so-ciedade moderna?

É crime de morte nos países em queexiste como arma política de intimida-ção. Para impor o medo, o terror. Comoforma de manter a autoridade. Os mes-mos processos utilizados pelos gover-nantes da Idade Média no mundo islâmi-co. Em alguns países, como na Nigéria,conseguimos salvar algumas mulheresdo apedrejamento (digo conseguimosporque hoje outras pessoas estão comi-go nessa luta). Desde que fundei o Comi-tê Internacional contra o Apedrejamen-to e ainda os sites notonemoreexecution.orge stopstonningnow.com as denúncias deapedrejamento e crimes de toda ordemcontra as mulheres chegam diariamentee nós tentamos resolvê-los da melhor for-ma possível, principalmente com o pre-cioso apoio dos meios de comunicação.

Embora tenha uma ideologia defini-da de esquerda, busco unicamente oobjetivo de salvar vidas humanas inocen-tes. Dirigentes de direita já me ajudarame dirigentes de esquerda já se mostrarammesquinhos com minha luta. Quantosgovernantes de países das mais variadastendências ideológicas já deram de om-bros aos meus apelos, dizendo que o Irãe as outras nações que praticam crimescontra os direitos humanos e as mulhe-res são países muçulmanos e lá é assimmesmo, é normal. Seria normal se asmães, as mulheres ou as filhas deles fos-sem apedrejadas?

Eu esperava mais de determinados lí-deres ocidentais. Estranhei, inclusive, ofato de o Presidente Luíz Inácio Lula daSilva, embora o respeite muito, ter abra-çado o Presidente Mahmoud Ahmadine-jad, anunciado ser seu amigo e não tê-lopressionado para acabar com as práticasmedievais aplicadas contra as mulheresno Irã. Fez exatamente o que outros líde-res fizeram. Pergunto: por que fechar osolhos para o que acontece nesse campo, sóporque existem outros interesses emjogo, como o comercial e o econômico?

Mas com relação à Sakineh, a partici-

pação do Brasil foi louvável, especialmen-te dos meios de comunicação. E possogarantir que pesou muito na decisão dereverter sua execução. Sakineh já estásalva. Por quê? Graças à repercussão queo caso alcançou, o regime não pode maisexecutá-la - nem pública nem clandesti-namente. O Governo já está convencidodisso. Apenas busca achar um meio denão sair desmoralizado do episódio. Todoesse processo, no fim, foi bom para o Irã.Chamou a atenção do mundo para abarbárie do regime. Antes do caso Saki-neh, a preocupação dos países em relaçãoao Irã se limitava à questão nuclear.

Estive em Brasília ontem (dia 5 demaio) e mantive encontros com a Mi-nistra Maria do Rosário, Secretária deDireitos Humanos da Presidência daRepública, o Senador Paulo Paim (PT—RS) e o Asssessor Especial da Presidên-cia da República Marco Aurélio Garcia,porém saí de lá desapontada. Esperavaatitudes mais enérgicas, mais objetivase senti apenas respostas evasivas e “va-mos ver”. Já conheço esse comporta-mento dos dirigentes ocidentais. É ape-nas uma forma cortês de dizer: “Nãotemos nada com isso”.

Na Europa é a mesma coisa. Os paísesmantêm relações comerciais com o Irã eoutras nações do Oriente Médio; então,não querem se envolver. Isso no campooficial, porque as organizações não-go-vernamentais nos auxiliam bastante. Noentanto, aos poucos, timidamente, va-mos nos impondo. Antes, na Europa,éramos estrangeiros, hoje somos muçul-manos. Na Alemanha, somos mais detrês milhões. E nos respeitam, especial-mente no campo religioso. E não aceita-mos que organizações árabes que nãoconhecemos a fundo, no seu núcleo ide-ológico, na sua infra-estrutura, falem pornós e decidam o que devemos fazer. Nofundo, muitas dessas organizações que-rem apenas fazer política ou espalharcontrovérsias e desentendimentos.

“SOMOS UMA CULTURA MILENAR,RIQUÍSSIMA E INTELIGENTE,QUE MUITO INFLUENCIOU OMODO DE VIDA OCIDENTAL.”

Recentemente, na Suíça, houve umdebate sobre os minaretes. E em váriosoutros países da Europa a discussão sobreo Islã se acentua e todos procuram nosconhecer melhor. Aqui mesmo no Brasilfez sucesso a novela O Clone. Nunca oOriente Médio esteve tão em evidência namídia e nossa cultura e religiosidade fo-ram motivo de curiosidade. Porém, é ne-cessário que o Ocidente compreenda quenão somos uma massa disforme e aliena-da; somos uma cultura milenar, riquíssi-ma e inteligente, que muito influenciouo modo de vida ocidental.

Nas minhas andanças pelo mundotento mostrar que a mulher pode e querparticipar. Na maioria das vezes falo parauma platéia de homens, mas adoro estarao lado deles (a gargalhada e o rosto ver-melho como tomate mostraram umaMina Ahadi bem globalizada), mas cer-

32 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Com a veemência de seu estilo, ojornalista Mino Carta contestou asgalas de Herói Nacional atribuídas aHipólito da Costa em texto da Edição366 Extra do Jornal da ABI, acusando-o de fugir do Brasil para expor seu“irremediável reacionarismo emLondres”. Em editorial publicado nasua revista CartaCapital, Ediçãonúmero 652, de 29 de junho passado,Mino aproveita para espalhar brasas,atacando os jornalistas Merval Pereira,recém-eleito para a AcademiaBrasileira de Letras, e Roberto Civita,Presidente da Editora Abril. Diz Mino:

Teste: quem escreveu o textoseguinte?

“Ninguém deseja mais do que nósas reformas úteis; mas ninguémaborrece mais do que nós, que essasreformas sejam feitas pelo povo, poisconhecemos as más consequênciasdesse modo de reformar; desejamos asreformas, mas feitas pelo governo, eurgimos que o governo as deve fazerenquanto é tempo, para que se eviteserem feitas pelo povo”.

Respostas: A) Editorialista de OGlobo; B) Merval Pereira; C) HipólitoJosé da Costa; D) Editorialista daProvíncia de São Paulo; E) BenitoMussolini.

Esclarecimentos. O Globo dispensaapresentações, Merval Pereira nem sefale, a fama de sua pena transpõefronteiras, bem como seu culto aopronome “que”. Província de SãoPaulo é o jornal que precedeu OEstado de S. Paulo, o berço do Estadão.Benito Mussolini, tambémconhecido como Il Duce, é ofundador do fascismo e ditador daItália por mais de duas décadas, até ofinal da Segunda Guerra Mundial.(Esta informação é dedicada aogovernador Tarso Genro e a umaplêiade de juristas doSTF). Hipólito José daCosta, jornalista,fundador do CorreioBraziliense em 1808,impresso em Londres, foidesignado primeiroHerói Nacional pelaPresidência da Repúblicano ano passado.

O teste, admito, não éfácil, e em benefício dequem até esta linhahesita em busca da resposta,docemente declino: Hipólito José daCosta. A ele o Jornal da ABI entrega acapa ao comemorar em edição extra oDia da Imprensa e tecer loas aobrasileiro que imprimia seu jornal

somente o escravo, mas os setoresnegativamente privilegiados (…) semescândalo ostensivo”.

Hipólito José da Costa foge doBrasil para livremente expor emLondres o seu irremediávelreacionarismo, próprio até hoje delarga porção dos privilegiados da terrae prontamente endossado pela mídianativa, a do pensamento único,baseado, essencialmente, na aversão eno temor da pressão popular. E nacerteza de que liberdade de imprensaé a de omitir e mesmo mentir, detodo modo de publicar a versão emlugar do fato.

É do próprio Faoro uma frase quesempre repito: “Querem um país de20 mil habitantes e uma democraciasem povo”. Como Hipólito José daCosta e como os jornalistas atuais,caninamente a serviço dos interessesdo patrão, que chamam de colega.Deste ponto de vista, o primeiroHerói Nacional merece a elevação aosaltares midiáticos e patrióticos.

O jornalismo brasileiro já foi,porém, muito melhor do que o deHipólito e de Merval Pereira, aomenos pela qualidade dos praticantes.Foi o jornalismo dos enviadosespeciais à frente italiana da SegundaGuerra Mundial, Rubem Braga e JoelSilveira, ou de um mestre autênticocomo Claudio Abramo, citado porRodolfo Konder em artigo publicadona edição extra do Jornal da ABI. Ouo da Realidade, tema de outro artigo,de Paulo Chico, a revista mensal deum grupo de excelentes profissionais,quase todos meus ex-companheirosem Quatro Rodas, jornalistas que,além de muito bem formados,lidavam com o vernáculo comextremo desembaraço.

A respeito deste artigo de PauloChico, só tenho a sublinhar para nãome sentir remoto seguidor deHipólito José da Costa, que RobertoCivita, editor da Realidade – naqualidade de filho do dono da Abril,não é e nunca foi jornalista, e simpatrão. E ainda é quem entregou aminha cabeça a um soturno indivíduochamado Armando Falcão, que no paísdos herdeiros da casa-grande e dasenzala foi ministro, imaginem, daJustiça do ditador Ernesto Geisel.Nada de surpresas, o mesmo RobertoCivita quase dois anos antes tentara,diante dos meus olhos estupefatos,entregar a cabeça de Millôr Fernandesao General Golbery do Couto e Silva,chefe da Casa Civil. Felizmente,Golbery não era Falcão.

“Hipólito fugiu do Brasil paraexpor seu irremediável reacionarismo”

Em editorial na sua CartaCapital, Mino Carta contesta o título de Herói Nacional do criador doCorreio Braziliense, como lembrado pelo Jornal da ABI, e ataca Merval Pereira e Roberto Civita.

POLÊMICA

fora do país para escapar à censura deD. João VI, aboletado no Rio, capitalda colônia. Maçom e liberal, o nossoherói. E antecessor de Merval Pereirana entronização do pronome “que”.

Extraio o trecho de Hipólito quemotiva o teste de um magistralensaio de Raymundo Faoro, Existe umPensamento Político Brasileiro? Aleitura, tanto do jornalista quanto dopensador, leva-me à conclusãoinescapável de que o fundador doCorreio Braziliense é perfeito comoHerói Nacional santificado pelamídia nativa. Até o mundo mineral

percebe que os herdeirosda casa-grande mantêmintacta a repulsa àsdemandas, por maistímidas, dos herdeiros dasenzala.

Ensina Faoro no seuensaio que os exiladosdos começos do séculoXIX “não se mostravamfascinados pelosprincípios da RevoluçãoFrancesa”, a ponto de

defini-los “abomináveis”. Vigora,esclarece o historiador, “o liberalismocomo tática absolutista”. Eacrescenta: “A participação popularno liberalismo, ao contrário dademocracia, exclui da cidadania não

“O fundador doCorreio Braziliense

é perfeito como HeróiNacional santificadopela mídia nativa.”

tamente eles transmitem o que eu digopara suas mulheres. Eu gasto tanto di-nheiro com ligações telefônicas paratodo o mundo, nessa luta, que minhafilha diz que com essa quantia poderiater comprado carros e casas (embora es-teja sempre ao meu lado nesse trabalho),mas creio que não seria mais recompen-sador do que divulgar aos quatro cantosas ofensas à dignidade e moral da mu-lher árabe.

No entanto, enquanto evoluímos emoutros campos, no dos direitos humanosestacionamos e mesmo em alguns aspec-tos regredimos. Nestes 30 anos, desdeque começou a minha luta, 150 mulhe-res morreram apedrejadas no mundoárabe e 50 gays. E muitas mulheres e gayspensam: “Se eu não for apedrejado ago-ra poderei ser no futuro”. E vivem comessa neurose opressiva na mente pelavida afora. Mas Deus quer que todos nosamemos. Tem uma música famosa no Irãque diz: “Vamos amar, dançar, ser felizes,ser alegres e curtir a vida, porque o amoré universal e eterno”.

Estou contente por estar no Rio deJaneiro, um lugar onde as mulheres al-cançaram, ou melhor, obtiveram umaliberdade invejável, a liberdade de ir àspraias e mostrar seus belos corpos debiquínis sumários (risos), de freqüentara vida noturna, de sair no Carnaval e,acima de tudo, de impor sua vontade, seupensamento, de exercer seu direito à li-berdade de expressão. Mas para isso tive-ram a participação masculina. Essas sãorelações recentes, num mundo ondeexistem agora o Facebook, o Orkut, oTwitter, a tv, as redes sociais. No entan-to, no Oriente Médio parece que tudoanda como há mil anos.

Líderes como Kadafi (Muammar),Mubarack (Hosni), Ahmadinejad, entreoutros, precisam ser extirpados da soci-edade. Não de uma forma cruel, ou porinterferência externa através da força,mas por decisões tomadas em votaçãopelos países integrantes da Onu. Deci-sões tomadas de forma civilizada e hu-mana, sem colocar mais violência e mi-séria em uma região tão devastada pelastragédias. Atingir o âmago da questão, asua essência milenar, através de meiossaudáveis e amigos e não oportunistas,casuais e interesseiros.

Hoje estamos muito próximos unsdos outros, a tv, a internet nos aproxima-ram definitivamente. Não existem maiso homem e a mulher brasileiros, irania-nos, americanos, franceses, chineses,existe o ser humano global, universal.Portanto, o resultado disso é que todos osdramas agora são nossos dramas, todas astragédias são nossas tragédias e todas asvitórias e conquistas nossas também.Hoje os meios de comunicação criaramum só homem e uma só mulher, unidos,todos, pelos olhos atentos dos satélites.E, acima de tudo, com a consciência,depois de tantas calamidades, de queestamos todos no mesmo barco e se nãoremarmos direito ele afundará”.

DEPOIMENTO MINA AHADI

CONTATOS DE MINA AHADI E-mail: [email protected]: 0049(0) 1775692413

33Jornal da ABI 367 Junho de 2011

O mutirão para lançamento do Co-mitê Brasil em Defesa das Florestas e doDesenvolvimento Sustentável funcionou.Além da ex-Senadora e ex-Ministra doMeio Ambiente Marina Silva, outrasestrelas participaram do evento, queaconteceu no dia 7 de junho no Auditó-rio do Conselho Federal da Ordem dosAdvogados do Brasil, em Brasília. Esti-veram presentes as atrizes Letícia Saba-tella, que deu um depoimento emocio-nante; Christiane Torloni, que coman-dou o cerimonial e leu o Manifesto decriação do Comitê; o ator Victor Fasa-no, vários senadores, deputados e pelomenos uma dezena de entidades e líde-res de movimentos sociais.

O encontro foi comandado por cin-co entidades de porte: Ordem dos Advo-gados do Brasil-OAB, Sociedade Brasi-leira para o Progresso da Ciência-SBPC,Conferência Nacional dos Bispos doBrasil-CNBB, Conselho Nacional deIgrejas Cristãs do Brasil-Conic, ABI eSOS Amazônia. O objetivo principal doComitê é promover uma mobilizaçãopelo Brasil, à semelhança do Diretas Jáe o projeto da Ficha Limpa. Foi abertauma campanha que pretende coletar 1milhão de assinaturas contrárias ao tex-to do novo Código Florestal, na formacomo foi aprovado pela Câmara dosDeputados.

Para a ex-Ministra Marina Silva, amentalidade dos brasileiros é melhor doque a do Congresso que votou esse pro-jeto: “Devemos sair daqui para ir além daagenda de conversas com líderes, parti-dos e com a Presidente Dilma Rousseff,para cumprir a agenda Um Milhão contraa Devastação”.

Segundo a ex-Ministra, o esforço decoletar 1 milhão de assinaturas contrao código e de organizar manifestaçõespúblicas será fundamental para dar res-paldo àqueles que decidirão sobre a for-ma como o novo código será aprovado.“Tudo depende de uma sustentabilida-de ética e política”, lembrou Marina,

MOBILIZAÇÃO

13 pontosessenciais

para a defesadas florestas

A convite da ex-Senadora Marina Silva, a ABIintegrou-se ao Comitê Brasil em Defesa das

Florestas, que definiu 13 pontos essenciais parauma atuação eficaz contra o desmatamento.Seu representante no Comitê é o jornalista

Silvestre Gorgulho, diretor da Folha do MeioAmbiente e antigo militante ambientalista.

1. Tratamento diferenciado para agricultoresfamiliares, permitindo que sob a lógica dointeresse social possam manter ocupaçõesem área de reserva legal paradesmatamentos consolidados.

2. Fortalecimento dos instrumentos degovernança e de controle de novosdesmatamentos ilegais, como o embargodas áreas desmatadas ilegalmente, a figurado crime de desmatamento e acorresponsabilidade dos financiadores deprodução em áreas desmatadas ilegalmente.

3. Recomposição obrigatória de 15 dos 30metros de APP de rio de até 10m de larguralimitada apenas à agricultura familiar desdeque com ações que comprovem a ausênciade riscos socioambientais.

4. Regularização da produção agrícola comsuspensão de aplicação de multas aosagricultores (que não se enquadrem noconceito de agricultura familiar) casoingressem em até um ano nos programasde regularização ambiental (federal ouestaduais) que deverão ser implementadosem até seis meses da publicação da lei eassumam o compromisso de recompor oucompensar as reservas legais em áreasprioritárias para conservação dabiodiversidade e recursos hídricos.

5. Programa de pagamento por serviçosambientais e instrumentos econômicosvoltados a pequenos produtores ruraisfamiliares e inserção da recomposição econservação de APP e reserva legal.

6. Cômputo das APPs no cálculo da reservalegal para pequena agricultura, não sendoválido para novos desmatamentos.

As principais propostaspara salvar nossas matas

Os pontos principais da ação do Comitê Brasil emDefesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável.

que acaba de criar o Instituto MarinaSilva-IMAS.

Christiane Torloni dividiu com Letí-cia Sabatella o charme e a posição cultu-ral do movimento. Christiane, que re-presenta o Movimento Amazônia paraSempre, lembrou a campanha Diretas Já,pela redemocratização do País:

“Na época, conseguimos colocar maisde 1 milhão de pessoas nas ruas. Achoisso perfeitamente viável, para conven-cer aqueles que têm de ser convencidose de constranger aqueles que têm de serconstrangidos.”

A atriz Letícia Sabatella, que há pou-co dirigiu o documentário Os PalhaçosSagrados da Tribo Krahô, é rígida defen-sora das questões ambientais. Sempreempresta sua imagem e seu talento nadefesa e preservação da natureza. Duran-te o lançamento do Comitê, ela fez umdepoimento emocionado e, por váriasvezes, pediu a palavra para complemen-tar dados, informações e, sobretudo,motivar as pessoas para a causa em ques-tão: o Código Florestal.

Representando a ABI, o jornalista Sil-vestre Gorgulho, que é diretor da Folhado Meio Ambiente e membro do ConselhoDeliberativo da Casa,, lembrou a partici-pação da entidade em todas as grandescausas nacionais: “A ABI é uma entida-de historicamente comprometida com aliberdade de expressão, com a ética enunca deixou de estar presente quandoo tema ou a luta era a favor do Brasil e dasociedade brasileira”.

Gorgulho acrescentou que a ABI sedispõe a participar ativamente das dis-cussões e debates pontuais sobre desma-tamento da Amazônia e sobre o CódigoFlorestal.

“A imprensa brasileira tem papel impor-tante na educação e na conscientização daspessoas para defesa da floresta, na divulga-ção dos crimes ambientais e contra o povoda floresta e, sobretudo, tem uma históriaquase centenária de luta por justiça sociale justiça política”, disse Gorgulho.

7. Utilização de áreas de topo de morro eáreas entre 25 e 45º de declividade jádesmatadas em zonas rurais, com espéciesarbóreas e sistemas agroflorestais, desdeque sob manejo adequado, medidas deconservação do solo, medidas que inibamnovos desmatamentos e recomposição dereservas legais (sem cômputo da área na RL).

8. Possibilidade de uso sustentável em áreasde planícies inundáveis conforme regulamentoespecífico a ser editado pelo ConselhoNacional do Meio Ambiente-Conamaatendendo a especificidades dos BiomasPantanal e nas áreas inundáveis da Amazônia.

9. Possibilidade de redução da RL de 80%para 50% na Amazônia nos casos deMunicípios com mais de 50% do seuterritório abrigados por Unidades deconservação e terras indígenas.

10. Manutenção dos atuais parâmetros dasáreas de preservação permanente, comreinserção no rol das APPs dos topos demorro, manguezais, dunas, áreas acima de1800m e restingas fixadoras de dunas ouestabilizadoras de mangues.

11. Manutenção do atual regime decompetência para autorização dedesmatamento com ênfase na competênciaestadual.

12. Cadastro ambiental rural georreferenciadoobrigatório para a regularização de todos osimóveis rurais com cadastramento gratuitopara a pequena propriedade rural

13. Incentivos econômicos para osprodutores rurais que não se utilizarem dasflexibilizações previstas na lei.

MU

NIR

AH

MED

34 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

“Atenção, câmeras... No ar!” A primei-ra vez que se ouviu para valer essa expres-são nos estúdios da Record News, no tra-dicional bairro da Barra Funda, Zona Oes-te da cidade de São Paulo, foi às 20 horas dodia 27 de setembro de 2007. Pairava no am-biente um clima de grandes expectativas,justificado por altos investimentos emequipamentos de última geração – osmesmos usados por emissoras como ainglesa BBC, a japonesa NHK e a árabe AlJazeera – contratação de profissionaisrenomados, e também por se tratar do pri-meiro canal dedicado exclusivamente anotícias na televisão aberta brasileira.

Passados quatro anos desse grande mo-mento, a empresa se diz satisfeita com osresultados, mas ainda busca a tão esperadarevolução no telejornalismo nacional. Epara alcançá-la aposta em novos investi-mentos, desta vez na qualificação daprogramação. O primeiro passo foi a con-tratação de Heródoto Barbeiro, para co-mandar a principal atração da casa, o Jor-nal da Record News, e de conceituados es-pecialistas para comentar os mais diversosassuntos, de política e economia à música,passando por saúde e esporte. Agora, a idéiaé juntar cada vez mais o hardnews com aanálise, ganhando profundidade e atrain-do novos públicos.

As mudanças começam a ser sentidasaos poucos. Quando o âncora HeródotoBarbeiro e a apresentadora Thalita Oli-veira entram no newsroom, o elegante eparamentado estúdio que a Record Newsmantém para apresentações ao vivo, e sedirigem à bancada para transmitir maisuma edição do telejornal, o agito é gran-de. Ao fundo, servindo como um cená-rio high tech, estão 60 posições em que tra-balham, correndo de um lado para ooutro, os jornalistas da casa. A concen-tração precisa ser total, já que o objeti-vo é transformar o Jornal da Record Newsno noticiário de maior interatividade datelevisão. A atração, no ar desde o últi-mo dia 28 de maio, começa às 21 horase vai até as 22 horas. No portal do grupo,o R7.com, o internauta consegue acom-panhar os bastidores dez minutos antese depois desse horário.

Antes do início do telejornal, fica sa-bendo das principais atrações da noite,acompanha comentários sobre os assun-tos em pauta e é chamado pelos apresen-tadores para comentar matérias, participarde enquetes e enviar dúvidas sobre os as-suntos do dia. Depois, geralmente, acom-panha a apresentação acústica de um mú-sico, que toca no encerramento da pro-

sente pelo apresentador da atração, aordem era trazer mais gente e qualificaro debate. Reuniram onze personalidades,entre elas o cirurgião Adib Jatene, a atrizBeth Goulart, os jornalistas especializa-dos Cosme Rímoli, Daniel Castro, Nirlan-do Beirão e Ricardo Kotscho, o economis-ta Roberto Macedo e o crítico de cinemaRubens Ewald Filho.

Muita densidade? Para quem pensaassim, a dupla ainda trouxe um humoris-ta stand up, o ator e publicitário BrunoMotta, responsável por dar um ar maisleve e divertido ao noticiário. Além des-sa turma de comentaristas fixos, há tam-bém alguns que comparecem de formamais esporádica. É a “equipe olímpica” daemissora, encarregada de preparar o ter-reno para o Pan-Americano de Guadala-jara, no México, ainda este ano, e para asOlimpíadas de Londres, na Inglaterra, em2012, eventos que serão transmitidos pelaRecord. Dela fazem parte o narradorÁlvaro José e ídolos do esporte brasilei-ro, como Magic Paula e Oscar Schmidt, dobasquete; Robson Caetano, do atletismo;e Luísa Parente, da ginástica.

“Temos um grupo de comen-taristas que se revezam na ban-cada muito maior que outrosjornais. Os fixos vêm uma vezpor semana. Apenas os de polí-tica e economia vêm duas. Masa prioridade na hora de reuni-losfoi a qualidade. Precisávamos degente com conteúdo, capaz demanter o interesse”, explicaMaria Martinez. Segundo os co-ordenadores, a comprovação deque o alvo foi atingido aconte-ceu durante a saída de AntônioPalocci do Ministério. Durantea semana toda, Ricardo Kotschoadiantou que o ex-Ministro daCasa Civil estava rumo à guilho-tina. Eventualmente, ganhavasobrevida por um motivo ououtro. Mas quando saiu a notí-

cia de que pediu demissão, o Jornal da Re-cord News estendeu seu horário para dara informação e analisá-la. “Aquele dia, ti-vemos que improvisar. Mas o Kotscho éum insider information. Junto com Heró-doto, formam uma dupla imbatível. Elesconseguiram segurar o jornal por duas ho-ras, sem script, sem TP e sem interrupção.Apenas fazendo alguns links e entrevis-tas, muitas vezes por telefone. Isso não épara qualquer um”, defende Nascimento.

Fugir da tradicional receita “mundo cão+ bichinho + mulher pelada” é um manda-mento não somente no jornal, mas na novalinha de programação da Record News. Sen-sacionalismo, de fato, é um assunto trata-do com muito cuidado na emissora. O quenão significa que casos de polícia, ou comodiz o canal “segurança pública”, sejam ig-norados. Pelo contrário. Recentemente,quando o Bope invadiu o Morro do Ale-mão, no Rio, e confrontou o tráfico local,foram dedicadas quase 30 horas diretas deprogramação. Mas é um caso excepcional,tratado como uma cobertura especial, umtipo de plantão – o Alerta News. Mesmo tra-tamento dispensado no começo do ano às

Criada há quatro anos para ser o primeiro canal abertoexclusivamente de notícias, a emissora paulista contrata Heródoto

Barbeiro e investe em atrações com mais conteúdo e análise.

COMPETIÇÃO

A Record Newscontra-ataca

POR MARCOS STEFANO gramação e traz mais uma ou duas músi-cas para os internautas. “A pessoa conse-gue assistir ao jornal em tempo real pelainternet. O sinal é perfeito, nãotrava nem cai, graças às parce-rias e ao investimento feitopelo portal. O broadcast já foipensado para ser visto pela redee com total interação. Para co-mentar, não é preciso abriroutra página e entrar na redesocial. Botões de interativida-de dão acesso imediato ao Fa-cebook, ao Twitter e ao e-mail”,diz Marco Antonio Nascimen-to, Coordenador-Geral do Jor-nal da Record News.

Talvez a melhor novidadepara os internautas não estejano começo nem no fim, mas nomeio. Na rede, os intervaloscomerciais de cinco minutossão “vazados”, ou seja, o públi-co pode acompanhar os basti-dores. Não somente isso. O no-ticiário praticamente não pára.Dá para acompanhar os apre-sentadores se ajeitando ou ar-rumando o cabelo, mas tam-bém interagir, já que os comen-taristas permanecem respon-dendo perguntas e debatendocom Heródoto e Thalita dúvi-das e sugestões dos internautas.Assim, depois de acompanhar omédico infectologista DavidUip, Diretor-Técnico do Instituto de In-fectologia Emílio Ribas, em São Paulo,comentando a fraca participação da po-pulação em uma campanha de vacinaçãocontra a gripe, por exemplo, as pessoaspodem debater outros pontos com ele.“Por que alguém fica gripado mesmo de-pois de tomar a vacina?” “Não há mesmoriscos para quem toma a vacina?” Até des-cobrir que o medo das agulhas de quetantos padecem é compartilhado tam-bém pelo âncora do telejornal, o próprioHeródoto Barbeiro.

Jornal tabletNos últimos três meses, a rotina de

Marco Antonio Nascimento e da Coor-denadora-Geral do Jornal da Record News,Maria das Neves Martinez, foi a de fazercontatos, marcar conversas e participarde reuniões. A missão não era simples. Osdois deveriam montar um time de notá-veis, que reunisse especialistas de diver-sas áreas para serem comentaristas dotelejornal. Como a programação deveriafugir do formato tradicional, com apenasuma posição, ocupada de maneira onipre-

Marco Antonio Nascimento eMaria Martinez participaram demuitas reuniões para escolher oscomentaristas que dividiriamespaço com Heródoto Barbeiro:“Precisávamos de gente comconteúdo, capaz de manter ointeresse”. Já Ailton MineiroNasser (acima) diz que é umgrande equívoco comparar aRecord News com emissorasabertas não segmentadas.

FOTOS FRANCISCO UCHA

35Jornal da ABI 367 Junho de 2011

enchentes de Teresópolis, também no Rio,e à visita do Presidente Barack Obama aoBrasil. Não vale apelar. Datena pode estarno mesmo grupo, mas vai continuar tra-balhando no estúdio vizinho.

Outro ponto que os profissionais daRecord News fazem questão de garantiré que não existe qualquer tipo de ingerên-cia da empresa em seu trabalho, censuraou mesmo obrigação de realizar determi-nadas matérias. A preocupação se dá porconta da guerra que a Igreja Universal doReino de Deus travou com alguns veícu-los de comunicação há poucos anos.

“Não vi isso por aqui. Temos mais liber-dade do que em vários outros grandes veí-culos. Mas meu contrato me garante isen-ção e independência. Se não fosse assim,jamais teria aceito o convite para vir traba-lhar aqui”, deixa claro Heródoto Barbeiro.

A fórmula parece fazer sucesso e agra-dar diferentes tipos de públicos. Além daclasse C, que já assiste ao canal, a RecordNews tem crescido muito entre as classesA e B. Prova disso é a comunidade virtu-al do Jornal da Record News no Facebook,que conta com mais de 2 mil seguidores,que se reúnem periodicamente para deba-ter o noticiário. E já escolheram um novoslogan para ele: “O primeiro jornal tabletdo mundo”.

Popular X profundoAs mudanças na programação da emis-

sora começaram em novembro do anopassado. Além de alterações no design, es-trearam quatro novas atrações e foi inau-gurado outro estúdio para os programasgravados. Mudanças ainda tímidas e quecoincidiram também com as realizadaspelos concorrentes Globo News e BandNews. Mesmo agora, as novidades devemser sentidas gradualmente, mais no horá-rio nobre. A verdade é que a Record Newsbusca aumentar sua audiência junto aoutras classes sociais, mas não quer perdero público já consolidado. Assim, mesmocom mais profundidade, o tom leve, popu-lar sem ser polularesco, será mantido.

“O novo jornal tem o objetivo de con-solidar o modelo de telejornalismo que aRecord vem desenvolvendo há algunsanos. O noticiário conversará com o te-lespectador, com linguagem fácil”, apon-tou o Vice-Presidente de Jornalismo, Dou-glas Tavolaro, na entrevista coletiva queapresentou a nova equipe do noticioso.

A equação faz todo o sentido com osnúmeros que os executivos do canal têmem suas mãos. “Segundo os números doIbope, apesar de a audiência na televisãoaberta da Record News ser pequena nadisputa contra outras emissoras, bate delonge seus concorrentes diretos, outroscanais só de notícias. Nas oito praças emque é feito o levantamento, ela alcança54% mais audiência do que a GloboNews e quase 800% mais que a BandNews”, diz Tavolaro.

O problema é que a comparação é difí-cil de ser feita. Isso porque para calcular aaudiência da Record News é preciso somara tv aberta, em que funciona em UHF, e nafechada. Já a Globo News, Band News, FoxNews, CNN em espanhol e outras estão dis-poníveis apenas na tv paga.

“É um grande equívoco nos compararcom emissoras abertas não segmentadas.Queremos avançar, inclusive em fatu-ramento, mas pela natureza do nossocanal, sem futebol, sem novelas e semsensacionalismo, chegar a dois pontos no

Ibope é difícil.” A análise vem de uma salaque fica junto à newsroom da RecordNews. Para conversar com Ailton Minei-ro Nasser, Chefe de Redação, é precisofechar a porta de vidro. É a única formade o trabalho lá fora não atrapalhar o papode dentro e vice-versa. Com 20 anos deempresa, ele ajudou a implantar o canale há um ano está à sua frente.

“A Record News deve ser comparada aoutros segmentados, como a MTV, quetantas vezes já superamos em audiência.Estamos reformulando para agregar con-ceito e credibilidade, não diretamenteaudiência. Por isso, trouxemos o Heródo-to”, afirma ele.

Telejornais devem continuar sendo oscarros-chefe da emissora. Hoje, além doJornal da Record News o canal tem outrosnoticiosos nacionais como Página 1 e oRecord News Brasil. Completam a listaproduções que, apesar de serem regionais,são exibidas em rede, caso do Record NewsNordeste, feito em Salvador (BA), RecordNews Paulista, em Araraquara (SP), RecordNews Sul, em Porto Alegre (RS), Record

ADIB JATENE - SAÚDECirurgião cardiovascular,professor emérito da Faculdadede Medicina da Usp, cientistabrasileiro com contribuiçõesoriginais na área deBioengenharia e no campo dacirurgia cardíaca, tendodesenvolvido técnicas cirúrgicasreconhecidasinternacionalmente. Já foiSecretário de Estado da Saúdede São Paulo e Ministro daSaúde. É Diretor-Geral doHospital do Coração-HCor eCoordenador da Comissão deAvaliação das Escolas MédicasMecEC-SeSu.

BETH GOULART - CULTURAAtriz, atuou em mais de vintepeças de teatro desde 1974.Ganhou diversos prêmios,como melhor atriz do PrêmioShell-Rio, por Decadência, deSteven Berkoff, em 2000, e oPrêmio Qualidade Brasil porSomos Irmãs, de SandraLouzada. Participou de vintenovelas, especiais de tv eminisséries. Atualmente fazparte do elenco da novela daRecord Vidas em Jogo, deCristianne Fridman.

BRUNO MOTTA - HUMORAtor e publicitário, começoucomo comediante stand up em1998, no Prêmio Multishow deBom Humor, do qual foi umdos cinco vencedores. Um dospioneiros em stand up noBrasil, durante dois anosparticipou do núcleo de humorda MTV. É apresentador de

News Centro-Oeste, em Brasília (DF), eRecord News Grande São Paulo.

Além deles, devem ser feitos novos in-vestimentos em atrações temáticas e pro-gramas de entrevista. À noite, no chamadohorário nobre, esses gêneros já dominam agrade, com o Entrevista Record, feito a cadadia por um apresentador diferente e comtemas que variam de atualidades e culturaa mundo, e depois com o Brasília Ao Vivo,focando autoridades, e Economia e Negócios.Especula-se que Heródoto Barbeiro possacomandar um programa de entrevista, tal-vez uma nova versão do Roda Viva.

Outra coisa que deve ser anunciada embreve é uma parceria com a revista Brasi-leiros. Claro, a primeira coisa que vem àmente de quem conhece a publicação é apossibilidade de um novo programa comgrandes reportagens. Infelizmente, nãoé isso em que a emissora está pensando.Já há espaço para alguns documentários.A nova parceria deve render mesmo umaatração que envolva entrevistas e deba-tes, quem sabe nos moldes do antigoManhattan Connection.

Quando o assunto é o futuro, Minei-ro evita entrar em muitos detalhes. Asmudanças acontecem aos poucos e nessemercado discrição é palavra de ordem.Além do mais, ninguém quer perder aaudiência na classe C, a que mais assisteà tv aberta. Nem as potenciais 20 milhõesde parabólicas espalhadas pela imensidãonacional. Território em que o sinal daRecord News consegue atingir 75 mi-lhões de pessoas. Uma pesquisa encomen-dada pela direção da emissora ouviu 1.200pessoas na Grande São Paulo. Descobriuque quase todas identificavam o canalcom o jornalismo, 83% consideravam aprogramação ótima e 9% boa. Manteresses números é tão necessário quantoampliar a penetração nas classes A e B.Para tanto, será fundamental não ser maispesado, mas se tornar mais plural. Esseparece ser um desafio quase histórico,que remete ainda aos tempos da extintaRede Mulher. E que não se restringe àRecord News ou a qualquer outro canalde notícias. É um desafio para toda a te-levisão brasileira.

Quem opina para oespectador da Record

São estes os notáveis que fazem as análises do Jornal da Record News.

Improvável, webserie deimproviso e humor com maisde 150 milhões de visitas. Seucanal particular de vídeos noYouTube está entre os 15 maisvistos e assinados do mundo.

COSME RÍMOLI - ESPORTETrabalhou 22 anos no Jornalda Tarde. Começou com seublog no Uol no início de 2009e em sete meses teve mais de11 milhões de acessos. Cobriuas últimas cinco Copas doMundo, cinco Eliminatórias paraa Copa, quatro Copas Américae dezenas de finais entreLibertadores, Brasileiros eCampeonatos Paulistas.Atualmente, seu blog está noportal R7.

DAVID UIP - SAÚDEMédico Infectologista, é diretortécnico do Instituto deInfectologia Emilio Ribas. Éprofessor livre docente eprofessor Titular doDepartamento de ClínicaMédica da FUABC. Foi Diretor-Presidente da Fundação Zerbini,Diretor-Executivo do Instituto doCoração do Hospital dasClínicas da FMUSP e assessorespecial do Estado de SãoPaulo no Governo Mário Covas.Coordenador do Programa deAIDS e Endemias de Angola.Comentarista de saúde.

DANIEL CASTRO - CULTURAJornalista e blogueiro do R7,trabalhou no NotíciasPopulares e na Folha de S.Paulo. Em julho de 2000,

tornou-se colunista de televisão,cargo que ocupou atésetembro de 2009.

NIRLANDO BEIRÃOCientista social e jornalistadesde 1967, tem oito livrospublicados. É um “senhorrevista”, tendo participado dolançamento de Caras, IstoÉ,Senhor, Forbes Brasil, WishReport e agora dorelançamento de Status.Trabalhou ainda para Veja,Playboy, O Estado de S. Pauloe CartaCapital. Hoje, é tambémDiretor-Adjunto da revistaBrasileiros.

RICARDO KOTSCHOJornalista desde 1964,trabalhou em praticamentetodos os principais veículos daimprensa brasileira, nas funçõesde repórter, editor, chefe dereportagem e diretor deRedação. Foi correspondentena Europa nos anos 1970 eexerceu o cargo de Secretáriode Imprensa e Divulgação daPresidência da República noGoverno Lula, no período2003-2004. Tem 19 livrospublicados, entre eles, DoGolpe ao Planalto - Uma Vidade Repórter. Um dosfundadores da revistaBrasileiros, criada há quatroanos, atua também comorepórter especial da publicação.

ROBERTO MACEDOEconomista pela Usp commestrado e doutorado emHarvard. É articulista do jornal

O Estado de S.Paulo, consultornas áreas de Economia eEnsino Superior e professorassociado da FundaçãoArmando Álvares Penteado-Faap. No Governo Federal,exerceu os cargos de Secretáriode Política Econômica doMinistério da Fazenda ePresidente do Instituto dePesquisas EconômicasAplicadas-Ipea.

RUBENS EWALD - CINEMACom mais de 40 anos deprofissão, foi o primeiro aescrever sobre filmes na tv,sobre vídeo, depois sobre dvd.Hoje, tem um blog no R7.Também é conhecido como oHomem do Oscar, depois decomentar 25 vezes a festa parao Brasil. Já trabalhou nosprincipais órgãos de imprensado Brasil e emissoras detelevisão. É autor de 30 livros ,entre eles Dicionário deCineastas, editado pela primeiravez em 1977. Tambémescreveu telenovelas, comoÉramos Seis, foi ator e roteiristade cinema. Professor de pós-graduação da Faap.

CHRISTINA LEMOSÉ jornalista em Brasília.Especializada em política,testemunhou os principaisacontecimentos da vida públicados últimos 20 anos na esferafederal. É repórter especial doJornal da Record e comandao programa de entrevistasdiário Brasília ao Vivo, naRecord News.

36 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Uma das últimas mudanças a agitar o jornalis-mo brasileiro aconteceu no mês de fevereiro. O apre-sentador Heródoto Barbeiro trocou a Rádio CBNe a TV Cultura, duas emissoras em que fez histó-ria e nas quais se tornou um dos rostos e uma dasvozes mais marcantes da imprensa, pelo emergentecanal de notícias Record News. Para muitos, algosurpreendente, já que o jornalista foi um dos fun-dadores da rádio e chegou ao posto de Diretor doSistema Globo de Rádio, em São Paulo. Tambémporque estava à frente daquele que é talvez o maisimportante programa de entrevistas da televisãono Brasil, o Roda Viva. Ainda mais quando se levaem conta que sua nova missão não é nada simples,já que sua nova casa ainda busca afirmação com oaumento da audiência. A notícia espantou fãs epúblico. Porém, para quem conhece a trajetória deBarbeiro, não se trata de nenhuma novidade.

Filho de operário, Heródoto cresceu na Baixadado Glicério, região central da Cidade de São Paulo,em meio a manifestações comunistas, protestossindicais e muita agitação. Desde cedo, aprendeu a

Depois de deixar a CBN e aTV Cultura, um dos apresentadores

mais conhecidos do rádio e datelevisão chega à Record Newspara realizar um novo projeto

em jornalismo multimídia.

DEPOIMENTO

POR FRANCISCO UCHA E MARCOS STEFANO

fazer jornalzinho escolar, improvisando um mime-ógrafo com a assadeira da mãe. No entanto, já adul-to, decidiu que sua vocação era lecionar. Até cur-sou Direito e abriu escritório com o pai, mas prefe-riu fazer História e seguir a carreira acadêmica, comoprofessor em escolas, cursinhos e na Universidadede São Paulo-Usp. Ao todo, foram 25 anos ensinan-do História Contemporânea.

Heródoto deixou de falar e escrever no passa-do para usar os verbos do presente por imposiçãolegal. Ainda nos anos 1970, depois de ser comen-tarista na TV Gazeta, começou a trabalhar na Rá-dio Jovem Pan, mas foi avisado de que, se quises-se continuar, precisava do diploma em jornalismo.O que para a maioria seria o fim precoce de umacarreira ou, no mínimo, uma grande tortura, paraele se tornou um prazer. Voltar aos bancos esco-lares era sempre uma alegria para ele. Tanto quechegou a cursar japonês na universidade para vi-ver melhor sua fé, como monge budista leigo.Dessa vez, foi fazer Jornalismo na tradicionalFaculdade Cásper Líbero. Não rompeu com a car-

reira docente de uma hora para outra. A transi-ção foi gradual. Só parou de lecionar quando nãofoi mais possível conciliar as duas coisas. Mas oPaís não perdeu um professor. Apenas amplificousua voz, para que pudesse falar não mais para cen-tenas, mas para milhares.

Na entrevista que concedeu ao Jornal da ABI, jános estúdios da Record News, Barbeiro contouhistórias curiosas e inusitadas sobre sua caminhada,falou sobre as expectativas em relação ao novotrabalho, religião, sua paixão por kombis e fezrevelações. Apesar de ser um dos mais renomadosprofissionais da imprensa brasileira, o jornalismoem sua vida é apenas um acidente, o Roda Viva traziagrandes entrevistados, mas era muito difícil de sefazer e, mesmo com tantas especulações sobre seufuturo na nova emissora, ele não teme falta de li-berdade editorial por conta do histórico de dispu-tas entre a Igreja Universal do Reino de Deus ediversos veículos de imprensa.

“Está tudo em contrato. Se não tivesse liberda-de, não teria vindo.”

FRANCISCO UCHA

37Jornal da ABI 367 Junho de 2011

JORNAL DA ABI – VOCÊ DEIXOU O SISTEMA

GLOBO DE RÁDIO, A TV CULTURA E VEIO PARA ARECORD NEWS. COMO É QUE FOI ESSE DESAFIO?

Heródoto Barbeiro – Eu vim fazer partede uma equipe que está construindo maisum espaço de jornalismo ao lado de ou-tros bons espaços que a gente tem. Achoque é um desafio que qualquer jornalistagostaria de ter, qualquer um que tivessesido convidado gostaria de fazer. Eu tenhono meu contrato: liberdade editorial,possibilidade de abrir mais espaços, co-mentaristas respeitados e isentos, pessoasque não estão em outras mídias eletrôni-cas, ou seja, nós estamos contribuindopara a diversidade. Então, qualquer jorna-lista toparia.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FICOU 28 ANOS NO

SISTEMA GLOBO DE RÁDIO. A PONTO DO JUCA

KFOURI FALAR QUE A RÁDIO CBN E HERÓDOTO

BARBEIRO ERAM SINÔNIMOS. MEXE CONTIGO?E EM RELAÇÃO À TV CULTURA, VOCÊ ESTAVA DES-GASTADO?

Heródoto – É que ele foi meu aluno nocursinho, mas é mais velho do que eu (ri-sos). É uma brincadeira. Mas estou com65 e entendi que era hora de novos de-safios. Em relação à Cultura, trabalhei 22anos lá. A primeira vez que eu passei naemissora, ainda quando trabalhava naJovem Pan, passava um programa cha-mado Vox Populi, sem apresentador. Ouseja, o entrevistado falava diretamentecom a câmera. Nos últimos seis meses,eles resolveram colocar um apresentadore me convidaram e eu fui, como frila. Issofoi antes de eu trabalhar no SBT. Depoisque saí do SBT, fui pedir emprego na Cul-tura para o Jorge Costelli, que era dire-tor de telejornalismo. Trabalhei no Jor-nal da Cultura, apresentado pelo Rodol-fo Konder, como comentarista, editor,editor de reportagem, repórter, repórterde link, redator e depois apresentei al-guns programas, como o Cesta Básica,Opinião Nacional, em duas oportunida-des o Roda Viva, e o que eu mais fiz lá foio Jornal da Cultura. Também saí de lá embusca de novos desafios.

JORNAL DA ABI – COMO FOI A SUA INFÂNCIA?Heródoto – Meu pai foi roceiro no inte-

riorzão até os 17 anos de idade, quandofugiu do sítio do meu avô para a casa doirmão dele, e depois veio para São Paulo.Meu pai foi operário numa fábrica demetalurgia em São Paulo, que existe atéhoje, chamada Indústria Aliança, que faztrincos etc. Encontrou a minha mãe aqui;ela também vinha do interior, de DoisCórregos, e trabalhava numa fábrica debotão. Então, meus pais eram operários.Depois disso, meu pai começou a estudarporque os irmãos dele começaram a ban-cá-lo, com 17 anos de idade. Ele comprouum bar na região da Baixada do Glicério,em frente ao quartel do Parque Dom Pe-dro II. Na época não era uma região tãodeteriorada quanto hoje, mas já era umaregião de operários. Eu fui educado nes-se lugar. De dono de bar, meu pai viroudono de oficina mecânica e borracharia,e eu comecei a trabalhar com ele aos 14anos de idade. Então, fui borracheiro,

mecânico e office-boy – na época nãohavia motoboy, eu era office-boy e faziaserviços para os comerciantes da regiãodo Centro velho. Conheci muito o Cen-tro velho, de andar por ali entregando cor-respondência. Fiz todo tipo de trabalhomanual, minha família era pobre e eutinha que ajudar – éramos cinco irmãos.Na Baixada do Glicério tinha um chalé dejogo do bicho, obviamente proibido. Àstardes, aquilo virava um jogo paralelo decavalos. Era de grupo, fora da lei, e elesalugaram o último andar de um prédio ebotaram portas de aço para a Polícia nãoatrapalhar. Alugavam os telefones dos vi-zinhos, porque todos os jogos eram pas-sados por telefone. E quem fazia as liga-ções? Eu. Eu entrava no chalé, quando jáestavam todos os bookmakers sentados emexia nas linhas telefônicas, no forro doprédio. Um dia chegou a Polícia, com ummachado para derrubar a porta e pegartodo mundo. Derrubaram a primeira, masa segunda era de aço. Demoraram e deutempo para os caras apagarem tudo, quei-marem documentos e não deixar ne-nhum vestígio. E eu desci pela lateral doprédio de três andares, pelo lado de fora.Como todos os fios telefônicos passavampor ali, pendurei-me neles e caí fora.

JORNAL DA ABI – VOCÊ JÁ DECLAROU QUE

NÃO PENSAVA EM SER JORNALISTA. COMO SE

TORNOU UM?Heródoto – Bem, minha ligação com a

imprensa vem da infância. Sempre estu-dei em escola pública, e quando entreipara a faculdade, com 20 anos, eu preci-sava trabalhar. Fui dar aula na mesmaescola onde eu tinha estudado, lá na Bai-xada do Glicério, que era uma escola pa-roquial. Foi o meu primeiro emprego,como professor de Inglês, porque à noi-te eu estudei na União Cultural Brasil-Estados Unidos. Na época, eu já tinha seteanos de curso de Inglês. A Secretaria daEducação fazia um exame, e se você pas-sasse, eles lhe davam uma autorizaçãoprecária para dar aula. Recebi essa auto-rização e comecei dando aula de Inglês.Dali, passei a trabalhar no Madureira, oSupletivo. Nessa altura, não pensava emser jornalista, ainda que já tivesse feitojornais. Eu morava no Parque Dom PedroII. Ali tinha a sede do Partido Comunis-ta e de várias centrais sindicais. Meu paitinha um bar por ali e, quando havia gre-ve e manifestação de operários, chegavaa Meganha – a Meganha era a antiga for-ça pública. Todo mundo corria para den-tro do bar. Eu devia ter uns 10 anos deidade. Junto com meu pai e minha mãenos escondíamos atrás do balcão; o restoapanhava de borracha.

JORNAL DA ABI – COMO ERAM ESSES PRI-MEIROS JORNAIS QUE VOCÊ FEZ?

Heródoto – Meus amigos eram todosativistas políticos. Aprendi a fazer umjornalzinho colocando uma gelatinadentro de uma assadeira de bolo. Escreviao texto no papel carbono e o colocava nagelatina. Aí era só ir colocando folhas embranco em cima. Funcionava como umcarimbo. Eu e meu irmão fazíamos o jor-

nal e o distribuíamos na escola. Só depoispassamos a usar um mimeógrafo da mar-ca Gestetner, fabricado na Alemanha Ori-ental, na sede do PCB.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FOI FILIADO AO PCB?Heródoto – Não, mas tinha bom relaci-

onamento com o pessoal. Com o Partidoaprendemos a fazer críticas à escola, àSecretaria de Educação. Chegávamosmais cedo no colégio e colocávamos ojornal debaixo das carteiras de todo mun-do. Quando o pessoal entrava, encontra-va a publicação. Essa foi a primeira expe-riência e, depois dela, segui a carreira deprofessor. Dei aula por 25 anos – 12 naUsp –, e só estudei para ser professor. Ojornalismo na minha vida foi um aciden-te que ocorreu um pouco mais tarde.

JORNAL DA ABI – SERÁ QUE FOI UM ACIDEN-TE MESMO?

Heródoto – Eu era professor de HistóriaContemporânea, tanto que adotei ummétodo de aula baseado na leitura dojornal. Numa situação daquelas viradas davida, perdi todos os meus empregos e fuiparar num colégio mais elitista em SãoPaulo, o Pueri Domus. Sempre dei aula emfaculdade e cursinho, mas foi a primeiravez na vida que eu fui lecionar no ensi-no básico e no médio. Era um curso deeducação política e a diretora me pergun-tou que material didático eu usaria. Quan-do disse que era só o jornal, ela se espan-tou. Na sala, avisei que uma semana usa-ríamos a Folha de S. Paulo, na outra o Esta-

dão e na seguinte a Última Hora. Quemnão trouxesse não ficaria na aula. De cara,metade não tinha trazido o jornal e man-dei todos para fora. Quando acabou aaula, a coordenadora me esperava naporta. Ali ninguém era mandado parafora. Por pouco, quem não ia embora eraeu. Mas mantive o método. Na outra se-mana 80% tinham o jornal. E, aos poucos,o pessoal passou a entrar na escola com ojornal debaixo do braço, para mostrar queestava lendo. Virou hit, todo mundo que-ria jornal. Essa é a minha outra ligação coma mídia. No cursinho, toda santa aula eudizia para os caras: “Vocês estão lendojornal? Não dá para explicar coisas dopassado se vocês não sabem o que estáacontecendo agora. Se vocês querempassar no vestibular, têm que ler jornal”.Eu achava que era uma forma não só deeles aprenderem um pouco de História,mas principalmente de se integraremdentro do mundo em que viviam.

JORNAL DA ABI – MAS O CURSINHO SERVIU

DE PONTE PARA SUA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NA

TELEVISÃO, CERTO?Heródoto – Foi no Objetivo da Aveni-

da Paulista. Na época, só havia aulas paraMedicina e o Dráuzio Varella me convi-dou para fazer aulas de revisão. Por essetempo, eles importaram uns equipamen-tos de televisão, coisa que ninguém tinha,e montaram num local pelo qual eu pas-sava todo dia. Não tinha como não ver.Curioso, procurei um diretor para saberdo que se tratava. Ele disse que pretendi-

Em 1955, em frente à borracharia do pai, Heródoto faz pose agachado ao lado esquerdo do irmãoHipócrates. Junto com eles estão vários vizinhos. Abaixo, aos 8 anos, como aluno do segundoano da Escola Nossa Senhora da Paz, em 1954, ano do IV Centenário da Cidade de São Paulo.

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

38 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

am gravar aulas para um telecurso. Comoo projeto era só para o outro ano, o equi-pamento já estava em funcionamento eo intervalo era de 40 minutos, propusfazermos um jornalzinho para os alunos.Quem faria? Eu mesmo, afinal, era pro-fessor de História Contemporânea. As-sim, entrava no estúdio ao lado de umcâmera man e fazia tudo sem ganharnada e sem qualquer orientação.

JORNAL DA ABI – FICOU BOM?Heródoto – Quebrou o galho durante

seis meses. Depois, chegou uma equipeprofissional da Record que eles haviamcontratado para produzir o tal telecurso.Aprendi muito com eles e gravei 30 horassobre História do Brasil. Recentemente,eles me deram uma aula gravada sobrepolítica externa no Segundo Reinado. Euestou de cabelo comprido, foi o maiorsarro. Bom, no mesmo prédio funciona aTV Gazeta e um dia eu me encontrei como Marco Aurélio, um dos diretores daemissora. Sabendo do que estava aconte-cendo, ele me perguntou se eu não queriaparticipar de um programa da casa. Mi-nha tarefa seria comentar as notícias jun-to com outros professores de cursinho emuma atração chamada Show de Ensino. Logocomecei a apresentar o programa e a par-ticipar também de outros. Depois, recebiconvite para trabalhar como comenta-rista na Rádio Jovem Pan, na área depolítica internacional. Nunca tinha en-trado num estúdio de rádio na vida; noprimeiro dia, não consegui fazer ne-nhum comentário.

JORNAL DA ABI – POR QUÊ?Heródoto – Fiquei intimidado, não sa-

bia como funcionava. Lá tinha o JosevalPeixoto, que hoje está no SBT; o FrancoNeto, que é um monstro da locução; o[Antonio] Del Fiol, outro monstro da lo-cução; e um cara que eu aprendi a admi-rar muito, o pai do Emerson Fittipaldi –o Barão Fittipaldi. Era uma mesa compri-da, uma bancada, e eu fui aprendendo comeles. Em certa altura , o departamento deRecursos Humanos da empresa disse quetinha que ter diploma de Jornalismo. Euera formado em História e Direito, comregistro na OAB, pós-graduação, mestra-do, mas não tinha o bendito diploma.

JORNAL DA ABI – VOCÊ É ADVOGADO?Heródoto – Tive escritório com meu

pai. Ele era um homem simples, que veioda roça e virou advogado depois de velho.Sempre me incentivou a estudar. Inclu-sive, fiz dois anos de japonês na Usp porconta dessa influência. Minha mãe erasemianalfabeta. Tinha habilidade comcoisas práticas, mas nenhuma culturaacadêmica. Meu pai também era um carasimples, mas apaixonado pelas letras.Gostava tanto da História da Grécia queaprendeu a ler grego e latim e deu aos fi-lhos nomes de gregos: um se chama Hipó-crates, o outro Teofrasto, o outro Aristó-teles... (risos). Os autores dele eram Eça deQueirós, Padre Vieira, Camões... só clás-sicos. Ele sabia partes inteiras de Os Lu-síadas de cor. Um autodidata que só de-

pois fez Direito. Era aquele cara que en-trava na sala e dava esporro no juiz, di-zendo quando estava falando bobagem.

JORNAL DA ABI – FOI TAMBÉM UMA INFLU-ÊNCIA PARA CURSAR JORNALISMO?

Heródoto – Por volta de 1975, quandoentrei na Faculdade Cásper Líbero, tive agrata surpresa de perceber que 90% dasala de aula já era composta por jornalis-tas formados, pessoas experientes e quejá trabalhavam em veículos de comunica-ção. Eu era o único foca, sem experiêncianenhuma, a não ser um pouco da Gazetae da Jovem Pan. Lá, eu encontro repórterespecial do Estadão, o Getúlio Bittencourt,encontro Maria Adelaide Amaral, encon-tro Carlos Costa, hoje professor da pró-pria Cásper e na época editor-chefe daPlayboy. Esses caras foram meus colegas.Então, imagine como se aprende ao estarnuma sala dessas. Eu via a dificuldade dosprofessores para dar aula para esses caras,era um fuá. O Gaudêncio Torquato briga-va todo dia, porque ele abria a boca echovia discussão na sala de aula. Apren-di muito naquele dia-a-dia.

JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA VOCÊ JÁ ES-TAVA DECIDIDO A MUDAR DE LADO?

Heródoto – Não, ainda nem pensava emviver do jornalismo. Eu fiz esse curso por-que precisava do diploma. No momento emque você se matriculava, você tinha tam-

bém uma autorização “precária”,e eu me filiei no Sindicato dosJornalistas, porque tambémpodia, lá na Rua Rego Freitas.Minha atividade, o meu ganha-pão era dar aula, e eu precisavaporque tinha a minha família,ajudava meus irmãos. Eu vivia dedar aula, mas fui conciliando.

JORNAL DA ABI – E QUANDO

OCORREU A TRANSIÇÃO?Heródoto – Eu passei a fazer

uma coluna de política cha-mada Ponto e Contraponto naGazeta de Pinheiros, a escrever

artigos também para outros jornais e areceber melhor. A transição foi mesmoem 1992, quando já tinha muita coisapara fazer na área de jornalismo, e tiveque diminuir a quantidade de aulas. Eu fuiparar na UniSantana, para dar aula deHistória do Pensamento Econômico.Estava com oito aulas, diminuí para qua-tro, pois gostava daquilo e, por fim, parei.Não agüentava mais o ritmo, pois eramaulas noturnas.

JORNAL DA ABI – COMO FOI SUA ROTINA NA

CASPER LÍBERO? VOCÊ IA TODOS OS DIAS À AULA?Heródoto – Ia, pois eu trabalhava naquele

prédio. Para mim era uma moleza. Eu co-meçava às 6 horas da manhã na Jovem Pan.Saía às 9 e ficava no cursinho até às 13 horas.Algumas vezes, dava aulas na Usp, no perí-odo da tarde, e voltava à Cásper, à noite. Erapós-graduado, mas nunca tive dedicação detempo integral, sempre parcial.

JORNAL DA ABI – QUANDO O BUDISMO EN-TROU EM SUA VIDA?

Heródoto – Minha mãe era católica pra-ticante, tanto que fiz a pré-escola na Esco-la Paroquial Nossa Senhora da Paz. Meupai era absolutamente ateu, porque o paidele, de origem portuguesa, era chamadode marrano em Portugal, um tipo de cristão-novo que não era nem católico nem judeu.Meu pai não teve formação religiosa e eucresci católico por causa de minha mãe, fui

até coroinha na Igreja de São Gonçalo, naPraça João Mendes. Na juventude, com ainfluência de muitos colegas comunistasque eram ateus, aos poucos eu passei a sercrítico da Igreja Católica, a religião era “oópio do povo”. Parei definitivamente de irà igreja por causa da amizade com um ra-paz que era neto de um dos primeiros líde-res operários do País, chamado Edgard Leu-enroth, lá na década de 1930. Virei anar-quista, freqüentando as reuniões no Brás,na Rua Rubino de Oliveira, 555. Na esco-la, quando tinha aula de religião, só ia parabrigar com o padre.

JORNAL DA ABI – DEVE TER ARRUMADO CON-FUSÃO COM A FAMÍLIA...

Heródoto – Minha mãe dizia que eu nãoia progredir, que isso era contra Deus. Elaficava louca da vida. Meu pai lavava asmãos, porque não acreditava em nada. Foinessa situação que, com 21 anos, eu co-nheci na Usp um professor catedráticochamado Ricardo Mauro Gonçalves, deHistória Oriental. Naquela época, vocêpodia escolher uma ou duas cadeiras op-tativas e eu escolhi História Oriental porter morado ao lado de um bairro oriental.Muitos dos meus amigos de infânciaeram japoneses e eu vivia na casa deles. Jáfazendo o curso, descobri que o Ricardoera monge da comunidade Soto Zenshu,na Liberdade. E um dia ele me perguntouse eu não queria dar umas aulas particu-lares de Inglês. Fui e conheci a esposa dosuperior do templo. Ela queria dar aula deikebana (arranjos florais) para a esposa docônsul britânico, mas não sabia inglês.Queria aprender pelo menos o bê-a-bá. Sóque ela não falava português, só japonês(risos). Acabei não dando as aulas, mas jáque estava ali comecei a fazer perguntasao Ricardo. Descobri que se tratava de umtemplo budista da comunidade japonesa,que não havia brasileiros. Ele era o únicoporque, quando criança, foi adotado comofilho pelo superior do templo. Falava flu-entemente japonês, chinês, sabia tudo,era e é um gênio. Eu entrei naquela salaenorme chamada zendro, sala de medita-ção. “E aquele magrinho, quem é?”, eu per-guntei. “Aquele é o Buda”, respondeu.“Mas Buda não é o gordão?” “Não, Budaé esse; aquele gordão é um cara que vemdo Panteão japonês.” Não tinha reza, mis-sa, só sessão de meditação, no sábado ànoite. Fiquei interessado, mas sábado eradia da balada (risos). “Se você quiser vir,venha; se não quiser, não venha”, ele dis-se. Fui. Quando cheguei, não sabia o quefazer. Sentei virado para a parede brancapor dois períodos de meia hora. “Mas voumeditar sobre o quê?”, perguntei. “Isso éproblema seu”, disse o Ricardo. Começoua meditação e ele, com os paramentos demonge, com uma vara comprida na mão,andava pela sala e batia com aquilo napessoa. Em vez de olhar para a parede,ficava observando isso. Na segunda par-te, o superior, sentado imóvel na frente,começou a fazer uma palestra sobre adoutrina do budismo, em japonês. O Ri-cardo traduzia, simultaneamente, para oportuguês. Terminou, mas tinha um cháverde que eu nunca tinha tomado – o

DEPOIMENTO HERÓDOTO BARBEIRO

Heródoto ao lado da esposaWalkiria e do jornalista Márcio

Bernardes (de branco) e dolocutor esportivo Oscar Ulisses

durante a entrega do PrêmioAPCA de Jornalismo, em 1988,

quando trabalhava na RádioExcelsior (ao lado).

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

39Jornal da ABI 367 Junho de 2011

“‘bancha –, sem açúcar, um negócio horro-roso. Perguntei se ele não me daria unslivros para ler, doutrina, catecismo. Eleexplicou que não, porque o ensinamen-to do zen não se traduz oralmente e nempor escrito. Eu só aprenderia indo lá. Aqui-lo para mim foi um desafio: como apren-der sem ninguém para ensinar? Continueipara desafiar aqueles caras, mas acabei fi-cando e por muitos anos. Recebi o títulode monge leigo, o nome de um patriarca dacomunidade, Gento Ryotetsu. Hoje souum budista independente.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONTINUA FREQÜEN-TANDO?

Heródoto – Sim, a base do budismo é ameditação e eu faço nos buracos do dia.Não precisa nem estar sentado, nem ras-par o cabelo, nem colocar um manto ama-relo, que é muito mais hábito de outras cul-turas. Escrevi um pequeno livro sobre obudismo chamado Buda: Mito e Realidade.Quando você estuda religião, o budismoaparece, mas não é esotérico, não tem esseconceito de um deus criador do céu e daterra. Não tem conversão, proselitismo.Eu diria mais, que o budismo é um way oflife, por ser classificado como um sistemareligioso, mas não monoteísta como são ocristianismo, o judaísmo, o islamismo.

JORNAL DA ABI – VOCÊ FEZ RÁDIO E TELEVI-SÃO. QUAL É O SEU PREFERIDO?

Heródoto – Não acho que fiz rádio etelevisão; eu faço jornalismo. Aprendi queo jornalismo é jornalismo em qualquer dasplataformas. Além de rádio e televisão, tivecoluna em jornal, o Diário Popular, quedepois virou Diário de S. Paulo, por uns seteanos. Fiz jornalismo em cima das caracte-rísticas técnicas de cada uma das platafor-mas. Agora também estou na internet.Sinto-me confortável em qualquer uma, oimportante é sentir a repercussão do pú-blico. Por exemplo: de manhã as pessoasestão muito mais disponíveis para ouvir doque ver, então o confortável de manhã éfazer rádio. À noite, o cara senta na poltro-na para ver televisão, então ao fazer jor-nalismo à noite, na televisão, você temuma maior resposta do público.

JORNAL DA ABI – POR QUANTO TEMPO VOCÊ

TRABALHOU NA JOVEM PAN?Heródoto – Sete anos. Depois, fiquei

outros dois anos no SBT. Na Jovem Pan,eu fiz reportagem de helicóptero, tinhatirado brevê. Convidava meus colegaspara dar uma volta de avião no aeroclu-be. Fui dar aula no Objetivo, em RibeirãoPreto, pilotando. Dividimos a grana commais três e fomos. Sempre andei assim, nofio da navalha.

JORNAL DA ABI – VOCÊ TAMBÉM COMENTOU

UMA VEZ QUE ANDAVA A 120 KM POR HORA NUMA

KOMBI. ISSO SIM É VIVER NO FIO DA NAVALHA...VOCÊ GOSTA DE KOMBI MESMO?

Heródoto – Como gosto! Meu pai teveoficina um tempo e comprou uma Kom-bi. Era um carro grande, de socorro, quepodia levar todas as ferramentas. Quan-do parei de trabalhar com isso, meu ir-mão, que também gostava de Kombi, pro-

pôs que a gente comprasse uma, meio ameio. Compramos uma e não paramosmais. Quando ele desistiu, eu continuei.Tenho uma propriedade em uma área dereserva ambiental de Mata Atlântica, naSerra do Mar, e como as estradas são de bar-ro, prefiro ir de Kombi.

JORNAL DA ABI – HÁ 20 ANOS SURGIU ACBN. COMO COMEÇOU ESSA HISTÓRIA?

Heródoto – Trabalhei nas empresas doGrupo Globo por 28 anos. Entrei na tvpara cobrir férias e fiquei. Trabalhei naRádio Globo, na Rádio Excelsior, na Rá-dio Rural. Fui gerente de jornalismo, di-retor de jornalismo do Sistema Globo deRádio, diretor substituto regional, apren-di gestão, área comercial, marketing,coisa que não sabia. No meio disso tudo,houve a decisão da empresa de abrir umanova rádio e fui um dos redatores do pro-jeto da CBN.

JORNAL DA ABI – E COMO SURGIU A IDÉIA DE

FAZER UMA RÁDIO SÓ DE NOTÍCIAS?Heródoto – Como disse, primeiro foi

uma decisão da empresa. Mas eu já vinhadesenvolvendo um projeto assim naRádio Excelsior, por encomenda da dire-toria da empresa. O Sistema Globo to-mou a decisão de iniciar uma nova emis-sora, juntaram várias pessoas sob o co-mando do José Roberto Marinho, que foiquem liderou o processo, e criamos aCBN. Fui com ele na DM9 para escolhero nome. Quando você falava radio onnews, olhava mais para as rádios america-nas, porque o movimento da segmenta-ção eletrônica aconteceu primeiro nosEstados Unidos. Em São Paulo havia trêsrádios jornalísticas – Jovem Pan, Eldora-do e Bandeirantes –, mas que eram partejornalística e parte talk show ou talk radio.Os concorrentes eram muito bons e pre-cisávamos de um diferencial. Como osconcorrentes faziam jornal apenas demanhã e no fim da tarde, queríamos apro-veitar também os outros períodos e du-rante toda a semana. A inspiração veio daCNN, que na época estourou no Brasil porcausa da Guerra do Golfo. Aliás, o nomeCBN deixa isso claro. Quando entrevis-tei o Pete Arnold, repórter da CNN, parao Roda Viva, perguntei como tinham sidosuas transmissões durante os ataques aBagdá. Ele respondeu que trabalhava paraa CNN TV, mas fez CNN Rádio, porqueteve um blecaute quando começou e ficounarrando no escuro durante todo o ata-que. As pessoas não conseguem percebera diferença conceitual entre rádio e tele-visão; acham que rádio é o equipamentoque tem botãozinho e a televisão é aqueleque aparece imagem. Eu ouço rádio hojenum equipamento que não tem botão, ocomputador da minha sala. E quando

entra um repórter em nossa programação,só com a foto e ele falando ao telefone,aquilo é rádio e não televisão. Nós, jorna-listas, fazemos confusão: aquilo que é co-municação só de áudio, não importa o apa-relho doméstico, é rádio. Se eu precisar daimagem para entender a mensagem, é te-levisão. Pegue o programa da Ana MariaBraga e tira a imagem, você vai ver queboa parte do programa dela é narrativo –é rádio. Por quê? Porque é dirigido para adona de casa, e a dona de casa não podeficar sentada na frente da televisão, elaestá trabalhando, ouve o programa e devez em quando dá uma olhada. Por issoque eu respondi que eu faço jornalismo,eu não faço rádio ou televisão.

JORNAL DA ABI – E AGORA, COM A INTERNET

E AS MÍDIAS SOCIAIS, A POSSIBILIDADE DE INTE-RAÇÃO SE TORNA BEM MAIOR...

Heródoto – Essa confluência de mídiasnos está dando a oportunidade de prota-gonizar algo inédito no jornalismo bra-sileiro: fazer o primeiro telejornal trans-mídia. No Jornal da Record News estamossimultaneamente na televisão e internet,mas a nossa internet abre dez minutosantes e fecha quinze minutos depois datelevisão. E outra coisa: como estamos nainternet, podemos ser vistos no mundointeiro. E eles desenharam uma páginaonde você vê o jornal, e já tem o Face-book, o Twitter, e link para e-mail... nãoprecisa abrir nada. Nossa interatividadeé total, porque não estamos fazendo jor-nal de televisão aqui. Estamos fazendojornal de televisão e internet simultane-amente, se a gente for por esse conceito.

JORNAL DA ABI – QUANTO TEMPO DEMOROU

PARA O PROJETO DA CBN DAR CERTO?Heródoto – Quando o projeto ficou

pronto, eu encontrei com o José Rober-to Marinho e ele disse que estava prontopara botar no ar. A proposta era colocarna AM 780. Mas por que não tentar naFM? Seria o nosso grande diferencialcompetitivo. Quando a discussão chegouà diretoria, a confusão foi enorme. Nãopassava pela cabeça de ninguém que jor-nalismo poderia ser feito em FM. Rádiofalada era em AM. FM era rádio musical.Mas eu insisti e fiquei quatro anos en-chendo o saco. A CBN começou no 780da AM e foi para a FM quando um canalchamado Rádio X, do qual eu era geren-te de jornalismo, mudou o diretor. O fa-turamento estava no vermelho e a emis-sora sairia do ar. Quando eu soube, corrina sala do cara, aqui em São Paulo, e per-guntei se podia colocar a CBN durantetrês meses até encontrarem uma novaprogramação. O pessoal do departamen-to técnico queria brigar comigo, mascolocamos a mesma programação da AM

na FM. E é assim até hoje. Uma mesa fi-cava ao lado da outra, trabalhando comose estivessem em cadeia. Cada uma comseus anunciantes comerciais e uma janelade cinco minutos reservada para tanto.Mas separadas, nunca preenchiam o tem-po. Assumi a responsabilidade e juntamosas janelas. O rapaz do comercial veio naminha sala, apontou para mim e falou oseguinte: “Se nós perdermos faturamen-to, você vai ser responsabilizado”. Eu ex-pliquei que ninguém ia sair; se a genteestava dando dois canais pro cara, por queele iria sair? É aquela dificuldade de acharque AM é diferente de FM, aquele rançodo passado. Provamos para as agências depublicidade: o problema não era de or-dem técnica, apenas comercial. E o fatu-ramento disparou.

JORNAL DA ABI – POR SER LÍDER, A GLOBO

TEM UMA FACILIDADE MUITO GRANDE EM CONSE-GUIR COISAS EXCLUSIVAS, INFORMAÇÕES DE BAS-TIDORES, E O JORNALISMO INVESTIGATIVO DELA

CONSEGUE MUITAS VEZES TER ACESSO À INFOR-MAÇÃO PRIVILEGIADA COM MAIS FACILIDADE.COMO VOCÊ VÊ ESSE TRABALHO?

Heródoto – Eu acho que a gente tem quese ver sempre do lado do público, se é bompara o público. Eles cobrem, fazem notí-cia e divulgam, então eu acho ótimo. Porexemplo, pegue a Folha de S. Paulo, talvezo mais importante jornal impresso doPaís, no caso das denúncias contra o Pa-locci. Não foi ela que começou com isso?É uma coisa ruim? Eu acho que não.

JORNAL DA ABI – A QUESTÃO É, QUANDO HÁ

DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA PARA UM

VEÍCULO, OS CONCORRENTES PODEM RECLAMAR...Heródoto – Eu acho que em vez de recla-

mar do termômetro devemos olhar a fe-bre. Eu acho que isso demonstra compe-tência. Acho que a gente tem que se esfor-çar para ser tão bom quanto eles. O públi-co só tem a ganhar com isso.

JORNAL DA ABI – O QUE SIGNIFICOU PARA

SUA CARREIRA DE JORNALISTA COMANDAR UM DOS

PRINCIPAIS PROGRAMAS DE ENTREVISTAS DA TVBRASILEIRA, O RODA VIVA? COMO LIDAVA COM

ENTREVISTADOS MAIS ARREDIOS?Heródoto – O Roda Viva era um progra-

ma muito difícil de apresentar. Além deo entrevistado ficar distante, ele ficavano meio de uma arena, os outros jornalis-tas convidados, geralmente quatro, fica-vam do outro lado da bancada. Assim erapreciso uma atenção intensa para darseguimento ao programa, uma vez que asperguntas nem sempre estavam amarra-das umas com as outras. Alguns convida-dos faziam perguntas muito longas, umaverdadeira tese para contrapor ao entre-vistado, especialmente se fosse um aca-dêmico. Certa vez o convidado era o so-ciólogo Manuel Castells, autor do livro ASociedade Em Rede. Ele foi trazido ao pro-grama por Dona Ruth Cardoso, que ficouno bastidor assistindo a entrevista. Asperguntas estavam muito longas. No in-tervalo, falei com os colegas que estáva-mos em um programa de tevê e não emuma banca de doutorado, e por isso pediaperguntas mais diretas e curtas, Na volta,

“EU FIZ REPORTAGEM DE HELICÓPTERO, TINHA TIRADOBREVÊ. CONVIDAVA MEUS COLEGAS PARA DAR UMAVOLTA DE AVIÃO NO AEROCLUBE. FUI DAR AULA NO

OBJETIVO, EM RIBEIRÃO PRETO, PILOTANDO.”

40 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

o primeiro entrevistador fez uma pergun-ta de sete minutos! Passei pelo programaduas vezes e foi uma oportunidade extra-ordinária de acompanhar e participar deentrevistas com pessoas notáveis, comoo professor Florestan Fernandes. Apresen-tei a série de entrevistas com presidenci-áveis, e na primeira houve um entreveroentre o candidato Orestes Quércia, doPMDB, e o jornalista Rui Xavier. Quemquiser pode assistir pelo site YouTube,procurando o programa comemorativodos 20 Anos do Roda Viva.

JORNAL DA ABI – TAMBÉM HOUVE UMA EN-TREVISTA SUA COM O JOSÉ SERRA, EM QUE HÁ UMA

DISCUSSÃO SOBRE O VALOR CARÍSSIMO DO PEDÁ-GIO NAS ESTRADAS DE SÃO PAULO...

Heródoto – Era uma rodada com os can-didatos a Presidente. Eu já tinha feitouma pela manhã na CBN, e depois fiz ànoite, no Roda Viva. Eu nem imaginavaque ele pudesse ficar tão descontroladocom um assunto de campanha, não erauma calúnia e nem invasão de privacida-de. Era um assunto público, e eu não en-tendo porque ele ficou tão bravo.

JORNAL DA ABI – QUAL A RECEITA PARA UMA

BOA ENTREVISTA?Heródoto – Creio que é preciso estudar

os temas, preparar perguntas, conhecer ocurrículo do entrevistado e segurar o ego.Este é um bom servo, mas um péssimo se-nhor. Sem controle, o entrevistador quertomar o espaço do entrevistado. É precisonão esquecer nunca que o jornalista é o in-termediário entre o público e o convida-do, portanto, as melhores perguntas sãoaquelas que mais satisfazem o público.

JORNAL DA ABI – O QUE ACHA DO NÍVEL

DE QUALIDADE DAS ENTREVISTAS NA IMPRENSA

BRASILEIRA? ULTIMAMENTE, DIVERSOS VEÍCU-LOS NÃO ESTÃO CAINDO NA MESMICE E NA SU-PERFICIALIDADE?

Heródoto – Realmente, mas penso queé falta de atenção, mesmo por parte domais rodado jornalista. Até aquele perso-nagem que já deu inúmeras entrevistassempre tem algo novo e diferente para fa-lar. Recentemente, o jornalista RicardoKotscho e eu entrevistamos o ex-Presi-dente Fernando Henrique Cardoso parao Jornal da Record News. Kotscho faz en-trevistas maravilhosas para a revista Bra-sileiros. Pouco antes, fizemos uma checa-gem das perguntas para selecionar aque-las que Fernando Henrique não tinhaainda respondido em outros veículos, paragarantir uma diferença com outras entre-vistas. Deu trabalho, mas ficou original emuito interessante. O caminho para fu-gir da mesmice passa por aí.

JORNAL DA ABI – VAMOS TOCAR NUM AS-SUNTO DELICADO E QUE ENVOLVE ISENÇÃO. VOCÊ

AGORA TRABALHA NUMA EMPRESA LIGADA ÀIGREJA UNIVERSAL, QUE TEM UM CURRÍCULO DE

ESCÂNDALOS E DE CENSURA À IMPRENSA. ESSES

CONFLITOS E PROCESSOS NÃO O DEIXARAM DES-CONFORTÁVEL AO VIR PARA A RECORD NEWS?

Heródoto – Não me veio à mente porqueeu estou vindo trabalhar na RecordNews, que é uma emissora segmentada do

Grupo Record, uma emissora voltadapara o jornalismo. Eu não trabalho naRecord aberta. Um dos comentaristasque convidamos, o Nirlando Beirão, que-ria saber o que devia falar. Quando eu disseque ele teria total liberdade, falaria o quequisesse, disse que nunca tinha chegadonuma empresa para trabalhar e disserama ele que ele podia falar o que quiser. Issoé mais uma demonstração da intenção doGrupo de abrir espaço para as pessoas fa-larem. Eu tenho uma garantia, uma cláu-sula no contrato me dando liberdadeeditorial. Se eu não tiver liberdade edito-rial, quebra-se o contrato, paga-se umamulta e eu vou embora. Mas não é isso oque eu estou sentido aqui. Até agora – e jáestamos na 14ª edição no ar – há totalliberdade. Existe um bom senso, equilí-brio, e ninguém disse que não se pode falardo Papa ou do que está acontecendo poraí. Igual ao trabalho que fazia no GrupoGlobo. Quando houve aquela guerra lá noRio, entre o Roberto Marinho e o Brizo-la, muitas vezes o Brizola falou na CBN.Nunca ninguém ligou para mim dizendoque não podia colocar o Brizola no ar.Agora, é óbvio que eu não ia colocar eleno ar para falar mal do Doutor Marinho.Dei voz a ele porque, primeiro, ele era Go-vernador no Rio e depois por ser um líderrespeitado no País. E ele, inteligentemen-te, não ia me colocar numa posição difí-cil, atacando o dono da emissora. Naépoca, o Lula não falava em lugar ne-nhum, mas falava na CBN. Estou falandoda minha experiência pessoal. Cada vezque tinha um assunto relevante, estava láo Brizola no ar. Ninguém nunca me faloupara ser assim ou assado. Agora, a gentesofre dois julgamentos: um sobre o que sefaz agora e o outro, o da História. Se a em-presa está assumindo essa postura de isen-ção e liberdade de expressão, então porque não aproveitar? Os deslizes serão jul-gados pela História. Os grupos de comu-nicação responderão perante a História.O projeto agora é fazer jornalismo? Mãosà obra!

JORNAL DA ABI – E ESSA JUNÇÃO DE MÍDIAS

OFERECE AINDA MAIS OPORTUNIDADES PARA ISSO...Heródoto – Sabe por quê? Porque eu

sempre lutei por isso. Desde que eu traba-lhava na CBN coleciono histórias sobrecomo a programação foi colocada na in-

ternet, coisas que não dá para acreditar.Uma hora eu vou contar essas histórias.Não vou fazer um livro sobre isso, masestou contando fatos que podem ajudara esclarecer situações. Sempre lutei paraque houvesse integração. Jornalistas têma obrigação de levantar a cabeça e olharo que está acontecendo no mundo, masuma boa parte só olha o umbigo, porquequer manter o emprego, porque quer umlugar na bancada que lhe dê prestígio. Osoutros setores também só olham o umbi-go: se não der certo, quem é que vai serresponsável? Ninguém quer assumir asresponsabilidades pela mudança. Masquando você levanta a cabeça, começa aperceber que vários paradigmas estãosendo quebrados. Ou você se enquadra noprocesso histórico ou vai ser atropeladopor ele. É só você olhar para ver que umaboa parte das pessoas imersas no proces-so histórico não enxergam as mudanças,e nós estamos imersos. Acho que estamospassando por um fenômeno arrasador, umprocesso que entre outras coisas levará àdesintermediação do jornalista, que é umacoisa a ser pensada. Se eu tenho um twit-ter, não dependo de um jornalista parafalar com o público. Eu ponho no twittere mando direto para o público. Qualquercidadão hoje pode ser jornalista. É só seguiras regras do jornalismo – sem diploma.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ A RELAÇÃO

ENTRE A INTERNET E O FUTURO DO JORNALISMO?Heródoto – O jornalismo vai sobreviver

na internet só para quem tiver credibili-dade. A questão vai ser conteúdo e credi-bilidade. Se eu não tiver essas duas coisas,posso ter blog, portal, site, dinheiro eninguém vai acreditar no que eu escrevo.Agora, se eu abro um blog do Noblat, temcredibilidade. O do Luis Nassif tem cre-dibilidade, assim como o da Miriam Lei-tão. E estão em veículos que não são ostradicionais. No blog do “Zé das Couves”,eu não vou acreditar, posso até ler e iratrás e apurar para saber se é verdade. Semcredibilidade e conteúdo, vai morrer.

JORNAL DA ABI – VOCÊ DEFENDEU A FOR-MAÇÃO EM JORNALISMO, MAS QUESTIONOU AOBRIGATORIEDADE DO DIPLOMA. QUAL É A SUA

OPINIÃO SOBRE O ASSUNTO?Heródoto – Creio que uma boa escola de

Jornalismo é importante. Acho que as

faculdades de Jorna-lismo são necessárias,porque a gente preci-sa aprender a fazer jor-nalismo em algum lu-gar. Se chegar na Reda-ção e pedir para apren-der, não vão nem me

deixar entrar. Na escola se pode aprendere entender qual é a função social do jor-nalismo, sua importância para a constru-ção da democracia e a formação de cons-ciência crítica na população. Contudo,um diploma não garante isso. Pelo con-trário, algumas escolas são verdadeiros es-telionatos educacionais, não formamninguém, mas dão diplomas. Imagine separa escrever um livro fosse necessárioter diploma do curso de Letras! Creio que,na nossa profissão, o julgamento deve serapoiado na competência e no conheci-mento que se tem dos limites éticos efuncionais do jornalismo.

JORNAL DA ABI – A QUALIDADE DO ENSINO

DE JORNALISMO NAS FACULDADES PODE SER CON-SIDERADA BOA?

Heródoto – Não creio. Boa parte delasfez o essencial virar supérfluo e o supér-fluo virar essencial. Como se pode imagi-nar uma disciplina que ensina alunos a lero tele prompter, enviar e-mails, ler com vozde locutorzão e não ensina a essência dojornalismo? Tenho ido a muitas escolaspara debates e palestras e avalio o que estásendo feito por lá pelo nível das pergun-tas apresentadas. E a coisa não anda bem...

JORNAL DA ABI – VOCÊ É AUTOR DE DIVER-SOS MANUAIS SOBRE JORNALISMO, O QUE REVE-LA SUA VOCAÇÃO DE PROFESSOR. NO BRASIL, HÁ

UMA FALTA DE BONS LIVROS NA FORMAÇÃO DOS

FUTUROS JORNALISTAS? Heródoto – Há muitos livros bons, escri-

tos por jornalistas extraordinários comoo Cláudio Abramo, Mino Carta, ClóvisRossi, Ricardo Kotcho, e muitos outros.Há também bons manuais no mercado.O que falta é o comprometimento dasescolas com a excelência da qualidade doensino. Olha que interessante: no mo-mento em que muitas escolas estão esva-ziadas por causa do diploma, a ESPM(Escola Superior de Propaganda e Marke-ting) abre o curso de Jornalismo com oEugênio Bucci. Aparentemente, na con-tramão do que está acontecendo. Não seiquem é que bolou isso lá*, mas alguém viuque, quando se tem uma boa escola, have-rá alunos, gente que queira aprender.

* O Jornal da ABI entrevistou o responsável pelacriação do curso de Jornalismo na Escola Superior dePropaganda e Marketing e publicará a entrevista empróxima edição.

DEPOIMENTO HERÓDOTO BARBEIROFRANCISCO UCHA

Ao lado da apresentadoraThalita Oliveira,Heródoto grava aschamadas do Jornal daRecord News momentosantes de entrar no ar.Na internet o programacomeça minutos antespara que os internautaspossam acompanhar osbastidores das gravações.

41Jornal da ABI 367 Junho de 2011

POR PAULO CHICO

A convocação de eleições diretas cos-tuma ser o meio mais sensato para a re-solução de processos sucessórios, sobre-tudo em regimes democráticos. O resul-tado das urnas é, por definição, incontes-tável. Embora, nem sempre, compreen-sível. Por vezes, a matemática dos núme-ros parece desprovida de lógica. As deci-sões coletivas parecem carecer de razão.A Academia Brasileira de Letras elegeuno dia 2 de junho o jornalista cariocaMerval Pereira para a cadeira número 31da instituição. Aos 61 anos, o colunistado jornal O Globo e comentarista daGlobo News e da Rádio CBN substitui-rá o escritor gaúcho Moacyr Scliar, fale-cido em 27 de fevereiro.Preterido na disputa, nooutro lado do ‘ringue’, eaparentemente com me-lhores ‘armas’, estavaAntônio Torres, nocaute-ado pelo placar final dadisputa. Merval recebeu25 dos 39 votos possíveise superou o escritor baia-no, que teve 13 votos.Votaram por carta 26 aca-dêmicos; na sessão,12.Houve uma abstenção.

Ao anúncio da vitória do jornalistasucederam-se, especialmente na inter-net, diversas manifestações de espanto edescontentamento diante da opção fei-ta pelos acadêmicos. Afinal, como com-preender que um jornalista, com apenasum livro solo publicado – O Lulismo noPoder, editado pela Record e, na verdade,uma coletânea de seus artigos em OGlobo – pudesse levar a melhor na dispu-ta com um escritor renomado, premia-do diversas vezes no Brasil e no exterior,autor de 11 romances, 1 livro de contos,1 livro infantil, 1 livro de crônicas, perfise memórias, além de diversos projetosespeciais? Pois, se o resultado do pleitogerou polêmica e estupefação geral, pare-ce não ter surpreendido Antônio Torres.

“Esta foi a segunda vez que disputeiuma vaga na ABL. Na primeira, concor-ri à cadeira que havia pertencido a ZéliaGattai. Fui incentivado por amigos daBahia, que achavam que aquela era umavaga baiana. Naquela ocasião, houveuma enxurrada de candidatos, mais de 20,dos quais só uns quatro tiveram votos:Luiz Paulo Horta, que desde o início es-

tava muito bem cotado e ganhou, Ziral-do, Isabel Lustosa e eu. O que me levoua me candidatar de novo foi a minharelação de amizade com o saudoso Mo-acyr Scliar, a quem conheci durante umpériplo de palestras pela Alemanha, em1985, e seguimos em frente, palestrandojuntos de Porto Alegre a Porto de Gali-nhas, do Rio de Janeiro a Frankfurt. Éra-mos autores de uma mesma geração – emuito afinados. E, para mim, não foisurpresa o resultado da eleição. Quandofiz minha inscrição, percebi que a candi-datura do Merval já estava bem pavimen-tada... Assim mesmo me mantive nadisputa, que transcorreu com muita ele-gância”, relata o escritor.

Embora não queira julgar méritos,Antônio Torres confir-ma ter recebido algunsdos artigos que saíramem sua defesa, e conde-naram de forma con-tundente a opção feitapela Academia.

“De certa forma, en-tendo a razão dessa polê-mica. Não há dúvidas deque a ABL faz parte doimaginário nacional. E,justamente por isso, agalera reage como se de

alguma maneira fizesse parte dela. E aíentram as idiossincrasias políticas, as di-ferenças ideológicas.... Isso é o que ima-gino”, aponta ele, que, no entanto, nãoconfirma nem descarta a possibilidadede se inscrever em novas disputas poruma vaga na Casa. “É de mau gosto – ouagouro – se falar nisso, quando todas ascadeiras estão muito bem ocupadas”,despista.

Nas críticas feitas à escolha de Merval,fato ocorrido sobretudo em sites e blogsde escritores e jornalistas, foi levantada,com bastante freqüência, a dúvida sobreo que teria motivado a preferência dosimortais pelo jornalista – e não pelo es-critor. Houve quem enxergasse na opçãoda ABL por um dos comentaristas polí-ticos mais conhecidos e respeitados doPaís, e contratado de um dos maiores gru-pos de comunicação do Brasil, uma estra-tégia para aproximar-se da mídia, atémesmo em busca de maior visibilidade.Uma artimanha que pode até render fru-tos imediatos. Mas que, a longo prazo,colocaria em risco o prestígio da cente-nária instituição.

“Quero dizer o seguinte: o meu apre-ço pela ABL independe dos resultados nosdois pleitos dos quais participei. Não seesqueça de que a instituição já me agra-ciou com o seu maior prêmio, o Macha-do de Assis, para o conjunto da obra, e quelhe sou muito grato por isso. Além do mais,esta eleição me reaproximou da Casa, cujaagenda cultural sempre me interessou.Assim como também me aproximou dopróprio Merval Pereira, que é uma pessoade fino trato. Isto posto, diria que a ABL,pelo seu peso institucional e a relevânciade seus eventos, tem presença garantidana mídia, constantemente. E que é umdireito dela eleger quem achar melhor”,concluiu Antônio Torres.

Na internet, uma reação indignadaAo tomar conhecimento do resultado

da eleição para a escolha do novo titularda cadeira 31, o Presidente da ABL, Mar-cos Vinicios Vilaça, declarou: “Com aeleição de Merval Pereira para a sucessãodo saudoso escritor e médico MoacyrScliar, mantém-se a tradição da presen-ça de grandes jornalistas na Academia.Muitos passaram por esta Casa, desdeJoaquim Nabuco”.

ELEIÇÃO

A Academia serendeu à mídia

Entre o jornalista Merval Pereira, autor de dois livrosmas que lhe assegurava boa repercussão nos meios decomunicação, e o escritor Antônio Torres, com 17 livros

publicados, a Academia preferiu o mais midiático.

Fora dos muros da Academia, porém,a reação parece não ter sido tão positiva.Em muitos casos, a reprovação chegou ase apresentar de forma raivosa, em vio-lência pouco velada. E não só exatamen-te pelo placar da eleição, mas também de-vido a posturas recentes da Academia.

“A população brasileira continua aaceitar, incontinenti, as formas pelasquais as instituições e os homens im-põem uma constante massificação damediocridade em detrimento de valoresreais. Tal letargia reverbera-se em todasas esferas da sociedade, forjando-se umanação irrelevantemente cívica e submis-sa. Os nossos valores, aqueles que deve-riam ser reverenciados, são tripudiadospublicamente e chegam a ser aplaudidospor uma turba dócil e ignóbil. Poucos sãoos que ousam levantar a voz! Não sevêem protestos e observa-se que a im-prensa encontra-se atrelada aos podero-

“Esta eleição mereaproximou da Casa,cuja agenda cultural

sempre me interessou.Assim como também

me aproximou dopróprio Merval

Pereira, que é umapessoa de fino trato.” Vozes dissonantes

questionam aMedalha dada a

Ronaldinho Gaúcho

DIVU

LGAÇ

ÃO

Torres: A galera reage como se fosse da Academia.

42 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

sos e políticos sem ética. Essa dormêncialevará à perda de uma geração, criada semcompromissos éticos, com pouca inteli-gência, cultura e a consciência moralcorroída”, disparou João Arlindo CorrêaNeto, no artigo A Academia Brasileira deLetras, o Jogador e o Imortal. Não enten-deu o título? Leia o próximo trecho.

“É no campo cultural que são criadasessas excrescências. Um País sem cultu-ra e que não venera as suas raízes é maisfácil de ser manipulado. Exemplo dessaletargia vem sendo reiteradamente pos-to em prática pela instituição que deve-ria primar pelo resguardoda cultura na sua formamais sublime: a Acade-mia Brasileira de Letras!Não bastasse ter concedi-do ao jogador Ronaldi-nho Gaúcho, no dia 11de abril passado, a Medalha Joaquim Na-buco, maior comenda da ABL, em come-moração aos 110 anos do nascimento doescritor paraibano e imortal José Lins doRego, agora, em mais uma escolha desas-trada, a Casa preteriu o grande escritorAntônio Torres em favor do jornalistaMerval Pereira. A Academia Brasileira deLetras demonstra, mais uma vez, que écomposta por pessoas que não estão sin-tonizadas com a cultura do País. Uma pe-quena elite provinciana e atrasada sobre-põe valores e atropela a história.”

João Arlindo Corrêa Neto é Promo-tor de Justiça e atual Vice-Presidente daConamp (Associação Nacional dos Mem-bros do Ministério Público), com sede emBrasília/DF. Antes de tudo isso, no en-tanto, é um apaixonado pelo universodas letras. Escreve crônicas, ensaios e po-esia, além, é claro, de artigos jurídicos.Tem várias crônicas publicadas em jor-nais e sites.

“Escrevi sobre o assunto em razão daanemia da ABL no que concerne à cultu-ra do País, esta, sempre relegada a planoinferior, em todos os níveis de governo- federal, estadual e municipal – e insti-tuições. Acho a forma de escolha dosmembros da ABL ultrapassada e nãomeritória! Quantas injustiças já não

foram perpetradas?”, questionou ele aoJornal da ABI.

Em seu artigo, o Promotor saiu emfranca defesa do escritor, cuja candidatu-ra não encontrou respaldo junto aoscolegas de academia. “Os livros de Antô-nio Torres ajudaram o Brasil a tornar-seum país conhecido, foram traduzidos esão respeitados na Itália, Argentina,México, Estados Unidos, Alemanha, In-glaterra, Portugal, Bélgica, Holanda, Isra-el, Bulgária. Um Táxi para Viena D’Áustriae Essa Terra, traduzidos na França, leva-ram o Governo Francês, em 1999, a lhe

conferir o título de ‘Ca-valeiro das Artes e das Le-tras’. Não se pode atri-buir o mesmo peso lite-rário ao jornalista MervalPereira, embora tenha omesmo, como moeda de

troca, a visibilidade e o poder proporcio-nados pela Rede Globo.”

Em tom indignado, João ArlindoCorrêa Neto lembra ainda que, além dacompilação de artigos de O Globo, Mer-val Pereira assinou outro livro, em 1979,feito a quatro mãos - A Segunda Guerra,a Sucessão de Geisel, em parceria comAndré Gustavo Stumpf.

“Antônio Torres passa a fazer compa-nhia a outro injustiçado, o poeta MárioQuintana. Na verdade, para que se fizes-se justiça, não deveria haver inscriçãopara a eleição na Academia Brasileira deLetras. A escolha prévia dos candidatosdeveria ser feita pelos imortais em vota-ções ‘secretas’, como ocorre na eleiçãopapal. Nos grandes jornais, nenhumacrítica. A imprensa emudeceu! Os inte-lectuais não denunciaram o ridículo doresultado e o povo, mais uma vez, passaa achar o medíocre natural. Resta espe-rar que Ronaldinho Gaúcho leia o exem-plar do livro que ganhou, Flamengo é PuroAmor. E que Merval Pereira adquira talen-to literário, inspirado pelo ambiente.”

Críticas a uma polêmica antigaEm texto originalmente publicado no

periódico Fazendo Media, em 5 de junho,e replicado em diversos sites, como o do

jornalista Luís Nassif, Mário AugustoJakobskind também avaliou o processosucessório da cadeira 31 da ABL.

“A memória do escritor Moacyr Scliarfoi conspurcada pelos integrantes da Aca-demia Brasileira de Letras. É que a cadei-ra vaga com a morte do escritor gaúchovai ser ocupada agora pelo jornalista dasOrganizações Globo, Merval Pereira. Osacadêmicos que votaram no jornalistaautor de um livro que agradou apenas osopositores de Lula devem ser cobrados,porque se dobraram ao esquema global.Votaram plim-plim”, escreveu.

No artigo, cujo título é Uma Afrontaaos Gaúchos, Jakobskind, também Con-selheiro da ABI, seguiu em sua análise.“Imaginava-se que, apesar dos pesares, aABL já havia se redimido dos tempos emque chegou a escolher como acadêmicoo então General Aurélio de Lira Tavares,Ministro do Exército, e isso em plena di-tadura. Em anos anteriores, Getúlio Var-gas, que nunca primou por sabedoria nomundo das letras, também foi escolhido.Pobre Moacyr Scliar, que nesta altura docampeonato, não só pelos seus antece-dentes literários, um gran-de escritor, como por seupassado político vinculadoàs causas progressistas, de-ve estar indignado com aescolha dos acadêmicos.

Segundo Jakobskind, nãoé de hoje que a ABL cometeequívocos em relação aoRio Grande do Sul. “A Casaignorou Fausto Wolf, estesim um brilhante jornalista e escritor,natural do Rio Grande do Sul. Deixou decolocar o fardão em uma das maioresfiguras literárias da região e de todo oPaís, o escritor Mário Quintana. Irônicocomo sempre foi, Quintana deve estarironizando com Scliar sobre o que repre-senta para a literatura brasileira o ingres-so na ABL de um global como MervalPereira. Provavelmente vai ironizar maisainda quando tomar conhecimento donoticiário da mídia de mercado sobre ofato. Realmente é o cúmulo não escolhero escritor, este sim escritor na verdadei-

ra acepção da palavra. Antônio Torresobteve apenas 13 votos dos acadêmicos,que voltaram a dever uma satisfação àHistória.”

Fotógrafo, redator de jornal, sócio deuma pequena editora de livros clássicose coordenador da Ação da Cidadania nacidade de Além Paraíba, em Minas Gerais,Carlos Moura escreveu mensagem en-dereçada a Merval Pereira, que tambémfoi publicada em diversos sites e blogs.

“É com incomensurável aprazimen-to que venho cumprimentar-lhe por suarecente eleição como novo membro daABL. Fez-se assim o reconhecimento desua prolífera, matizada e estilisticamenteirretocável prosa literária, exibida diari-amente nas páginas de O Globo (…) Suapresença nos salões machadianos da Ave-nida Presidente Wilson – logradourocujo nome desatualizou-se e que, hoje,poderia ser mais adequadamente chama-do de Avenida Presidente Bush – irá, comcerteza, dignificar uma casa onde ponti-ficam alguns nomes seminais de nossasletras, como Marco Maciel, Paulo Coelhoe Ivo Pitanguy”, provocou ele, esquecen-

do-se de fazer referência aoutros acadêmicos cujasobras no campo das letras– apontam analistas – sãomais descartáveis do queexatamente eternas.

Houve repercussão docaso também na mídia im-pressa. Na matéria Eleiçãoreaviva discussão sobre re-quisitos para entrar na

ABL, publicada pela Folha de S.Paulo em4 de junho, dois dias após a eleição, orepórter Fabio Victor trouxe à tona umahistória interessante. A controvérsia doscritérios das eleições na ABL deriva, naverdade, de um debate tão antigo quan-to a própria instituição, fundada em1897. Em seu discurso naquele ano, Jo-aquim Nabuco (1849-1910), um dosfundadores da Casa, já defendia a expan-são dos limites do perfil de seus membros:

“Algumas das nossas individualidadesmais salientes nos estudos morais e po-líticos, no jornalismo e na ciência, deixa-

“Um País sem culturae que não venera as

suas raízes é mais fácilde ser manipulado.”

“O Merval é umhomem da mídia,alguém que, na

política brasileira,tem importância.

Isso pesa paraalguns acadêmicos.”

ELEIÇÃO A ACADEMIA SE RENDEU À MÍDIA

Art. 1º - A Academia Brasileira deLetras, com sede no Rio deJaneiro, tem por fim a cultura dalíngua e da literatura nacional, efuncionará de acordo com asnormas estabelecidas em seuRegimento Interno.

§ 1º - A Academia compõe-se de40 membros efetivos e perpétuos,dos quais 25, pelo menos,residentes no Rio de Janeiro, e de20 membros correspondentesestrangeiros, constituindo-sedesde já com os membros queassinarem os presentes Estatutos.

§ 2º - Constituída a Academia,será o número de seus membroscompletado mediante eleição porescrutínio secreto; do mesmo

Tesoureiro, eleitos anualmente porescrutínio secreto e reelegíveis.

§ 1º - O Presidente dirige ostrabalhos da Academia e arepresenta em juízo e nas suasrelações com terceiros.

§ 2º - As funções dos três Secretáriosserão discriminadas no Regimento.

§ 3º - Ao Tesoureiro incumbe aguarda e a administração dopatrimônio social, de acordo comos outros membros da Diretoria.

Art. 4º - A Academia terá umacomissão de contas, composta detrês membros e eleita anualmente,além das demais comissões queforem criadas pelo Regimento.

Art. 5º - A Academia funciona com

ESTATUTOS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

modo serão preenchidas asvagas que de futuro ocorreremno quadro dos seus membrosefetivos ou correspondentes.

Art. 2º - Só podem ser membrosefetivos da Academia os brasileirosque tenham, em qualquer dosgêneros de literatura, publicadoobras de reconhecido mérito ou,fora desses gêneros, livro de valorliterário. As mesmas condições,menos a de nacionalidade,exigem-se para os membroscorrespondentes.

Art. 3º - A administração daAcademia compete a umPresidente, um Secretário-Geral,um Primeiro-Secretário, umSegundo-Secretário e um

cinco membros e delibera com dez.

Parágrafo único. Para eleiçõesexige-se, em primeira assembléia,a maioria absoluta dos membrosresidentes no Rio de Janeiro.

Art. 6º - Sem vênia da Academianenhum Acadêmico tem o direitode declarar essa qualidade noslivros que publicar.

Art. 7º - Os membros daAcademia não respondemindividualmente pelas obrigaçõescontraídas em nome dela,expressa ou implicitamente, pelosseus representantes.

Art. 8º - A Academia poderáaceitar auxílios oficiais eparticulares, bem como encargosque visem o progresso das letras

e da cultura nacional.

Art. 9º - No caso de extinção daAcademia, liquidado o seu passivo,reverterá o saldo, que houver, emfavor da União, se antes não seresolver seja transferido a algumestabelecimento público ou outraassociação nacional que tenha finsidênticos ou análogos aos seus.

Art. 10º - Para reforma destesestatutos, extinção da Academia eaplicação do patrimônio acadêmico,no caso do art. 9º, será preciso ovoto expresso da maioria absolutados membros efetivos da Academia.

Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1897.

Machado de Assis, PresidenteJoaquim Nabuco, Secretário-GeralRodrigo Octavio, Primeiro-SecretárioSilva Ramos, Segundo-SecretárioInglês de Sousa, Tesoureiro

43Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Passado o clima de controvérsias que seseguiu à eleição, o compasso é de esperapela posse do novo membro da ABL – ri-tual cercado de cuidados cerimoniais, eprevisto para setembro próximo. En-quanto prepara seu discurso oficial deposse, o que será que Merval Pereira teriaa dizer sobre toda essa polêmica? Pois bem.Assim como o candidato derrotado, ovencedor também falou ao Jornal da ABI.

“Considero uma honraria participarda ABL, a instituição cultural mais im-portante do País. Li todas as matérias nosblogs e nos jornais sobre a minha elei-ção com natural interesse, e, excetuan-do-se as que tentaram inutilmente po-litizar a escolha, acho que é normalhaver esse debate quando um ‘não escri-tor ’ é escolhido, embora o tema estejaum pouco batido e tenha sido ultrapas-sado pela realidade já há algum tempo”,afirma o jornalista de O Globo, que se-gue em sua análise.

“A ABL, fundada em 1897, teve jánaquele ano um debate sobre o tema. Jo-aquim Nabuco, um dos fundadores,defendia que ela fosse mais ampla, a

EDIÇÃO ESPECIALUchaParabéns novamente!Agora, estou lendo com a devida "fa-

cilidade". Excelente trabalho de edição.Esse conjunto de matérias talvez

seja o verdadeiro livro sobre Realidade.É a revista vista de vários ângulos, porvárias pessoas e em suas três fases.

Parabéns mesmo.Grande abraçoJOSÉ CARLOS MARÃO

Prezado Maurício Azêdo:A edição extra do Jornal da ABI – A

Imprensa e o Dia da Imprensa – é documen-to histórico. Valioso pela estrutura temá-tica, depoimentos, reprodução de fotos,emociona e acirra o interesse do leitor.

A partir da capa, a história da impren-sa nacional chega ao leitor no editorialdo Presidente da ABI, na pena de Ro-dolfo Konder, na de Alberto Dines, nodepoimento de Zuenir Ventura, na re-levância da revista Realidade, na ascen-são da mulher no jornalismo.

Parabéns ao Presidente da ABI pelaexcelência dessa edição especial.

ANNA MARIA MARTINS,Escritora

Caro Rodolfo Konder:Impressionou-me vivamente a Edi-

ção Extra do Jornal da ABI de maio de2011, pela enérgica defesa da liberdadede imprensa, bem como pela documen-tação histórica do jornalismo brasileiro,a começar pelo patrono Hipólito da Cos-ta. Considero instigantes as evocaçõesde Lima Barreto e da inesquecível revistaRealidade por parte de Marcos Stefanoe Paulo Chico. Boas matérias investiga-tivas e opinativas, como raramente se vêem nossa imprensa.

Parabéns,FÁBIO LUCAS

REFLEXÃOAlém de nos enriquecer com comen-

tários e denúncias a respeito do ladonoturno da nossa História, a AssociaçãoBrasileira de Imprensa, através do seuJornal da ABI, nos dá matéria para refle-xão imprescindível ao nosso trabalho emerece o apoio efetivo dos jornalistas.

Parabéns pela atividade jornalística esuas implicações corajosamente políticas.

Um forte abraço doLEANDRO KONDER

Após a Sessão de Saudade,o processo de escolha

Na prática, a sucessão entre os imor-tais funciona assim. Uma vaga na ABL sóé aberta com a morte de um de seus 40membros. Ao fim da chamada Sessão deSaudade, em que o acadêmico morto éhomenageado, é declarada oficialmentea vacância da cadeira. A partir daí, osinteressados podem se candidatar numprazo de 60 dias. É preciso enviar umacorrespondência à ABL com um currícu-lo, formalizando o interesse. As eleiçõesocorrem cerca de um mês depois do en-cerramento das inscrições. Não há outramaneira de ingressar na Academia. Todosos interessados precisam passar pelo pro-cesso eleitoral. Apenas os membros efe-tivos podem votar. Portanto, caso hajaapenas uma vaga em aberto, 39 inte-grantes têm direito a voto. Aqueles quenão puderem comparecer à sede da ABLna data da eleição, têm a opção de votarpor carta. A votação, ao menos teorica-mente, é secreta. Em várias ocasiões, di-versos membros declaram abertamen-te sua intenção. Em alguns casos, a pre-ferência por um candidato é tão claraque é possível contabilizar seus votospreviamente.

O novo membro é eleito por maioriaabsoluta de votos – metade mais um. Deacordo com as regras da Academia, pre-vistas em seu estatuto, para se candida-tar é preciso ter nacionalidade brasileirae ter publicado ao menos um obra de ‘re-conhecido’ valor cultural ou literário –e aí parece residir boa parte da fundamen-

Merval: Nabuco já defendiauma Academia mais ampla

O novo acadêmico acha naturais os reparos à sua eleição. E citaum opinamento de Joaquim Nabuco no primeiro ano da ABL, em 1897.

MensagensMensagens

tação dos críticos à eleição de Merval.Faltaria ao jornalista ‘representatividade’e ‘peso’ literário – sobretudo quandoconfrontado ao rival Antônio Torres.

Porém, é inegável que, desde a suaorigem, a ABL previa a reserva de algunsassentos para ‘personalidades’, pessoasque se destacassem em outras áreas.Quem sai derrotado de uma primeiradisputa pode, como já ocorreu com oescritor baiano, candidatar-se novamen-te. Foi assim com Paulo Coelho, que,numa segunda tentativa, acabou eleitoem 2002, derrotando o cientista políticoHélio Jaguaribe, graças ao que poderiatrazer de retorno e visibilidade à Casa, portratar-se de um best-seller internacional.

Apesar de inspirar disputas acirradas,com verdadeiras campanhas nos bastido-res dos chás das cinco, a perspectiva deocupar uma das cadeiras da ABL nãodeslumbra a todos. Grandes escritorescomo Carlos Drummond de Andrade eClarice Lispector nunca se candidataram.Apontado como candidato imbatível,caso queira concorrer, o poeta FerreiraGullar descarta a possibilidade de vir adisputar uma vaga na Academia. E ava-lia que é difícil uma Casa nos moldes daABL se manter fora do jogo de interessese pressões políticas.

“Não pertenço a nenhuma instituiçãopara não ter de lidar com esses problemas.Já tenho problemas demais”, diz, ressal-vando que considera Merval Pereira umescritor e um homem inteligente.

exemplo da Academia Francesa. Sua tesefoi vitoriosa, a tal ponto que, se pegar-mos o livro Academia Brasileira de Letras- Subsídios para sua História (1940-2008),poderemos ver que na História da Casa,entre os profissionais liberais, há maisjornalistas que escritores. E a categoriaprofissional de jornalistas só é menos nu-merosa que a do magistério público. NaHistória da ABL está registrada a presençade grandes nomes da imprensa como As-sis Chateaubriand, Austregésilo de Athay-de; Carlos Castello Branco, Roberto Ma-rinho e Barbosa Lima Sobrinho, para ficar-mos apenas nos que já morreram. Alémdisso, na cadeira 31 que ocupo, há váriosjornalistas, como o próprio fundador Pe-dro Luis, Moacyr Scliar, a quem sucedi,José Candido de Carvalho, Paulo Setubale Cassiano Ricardo. Assim, é possível per-ceber que é uma discussão anacrônicaessa de colocar a profissão de escritor emoposição a outras profissões ou ativida-des intelectuais, cujos integrantes a ABLrecebe historicamente”, concluiu Mer-val. Palavra de imortal.

ram de ser lembradas. A literatura querque as ciências, ainda as mais altas, lhedêem a parte que lhe pertence em todo odomínio da forma”. Em sintonia com opensamento de Nabuco, a abertura – queparece cada vez mais ‘ampla e irrestrita’ –é, ultimamente, uma política deliberadado presidente da ABL, Marcos Vinicios Vi-laça, que insere entre a programação daentidade, em sua sede, shows de samba econdecorações a jogadores de futebol.

Na mesma matéria, o crítico literárioFábio Lucas, membro das Academias Pau-lista e Mineira de Letras e candidato der-rotado à ABL em 2008, acredita que aCasa de Machado de Assis está mesmoexagerando na dose. “As academias – aABL e as estaduais – estão reunindo maisnotáveis de outras áreas do que da litera-tura. É justo que aspiremos a um maiornúmero de escritores”.

O romancista Cristóvão Tezza apontaque a diversidade resulta do caráter clubís-tico da ABL. “É uma instituição privada, umclube, que estabelece seus próprios critéri-os e vive sob o impacto de ondas políticas”.

Também ouvido pelo repórter da Folhade S.Paulo, o jornalista e acadêmico Cíce-ro Sandroni, que já presidiu a ABL, desta-ca o componente político da eleição. “OMerval é um homem da mídia, alguémque, na política brasileira, tem importân-cia. Isso pesa para alguns acadêmicos”, re-conhece, para completar logo em segui-da: “Votei no Torres, mas isso não quer di-zer que não queira o Merval. Ele vem nosajudar a construir uma Academia maisampla”, aposta.

CALU

VALVERD

E

44 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

os Estados Unidos, ele já foiconsiderado o “Delacroix dorabisco” e o “Voltaire visual”por conseguir retratar a “alma

americana” melhor do que os própriosartistas nascidos no país. Mas essa é ape-nas uma das facetas do romeno Saul Stein-berg (1914-1999) no mundo das artes.Grande nome entre os cartunistas quebrilharam nas páginas da revista The NewYorker, onde trabalhou por mais de 50 anose se tornou conhecido por suas 87 capas emais de 1.200 ilustrações, ele tambémintegra a vanguarda européia dos artistasgráficos no pós-guerra e, com a mistura detemas e estilos, é considerado um dos prin-cipais desenhistas do século XX e intérpre-tes da vida moderna. Agora, uma exposi-ção no Rio de Janeiro, organizada numaparceria entre o Instituto Moreira Sallese a Pinacoteca de São Paulo, e um novolivro com memórias e reflexões do artis-ta resgatam para o público brasileiro par-te dessa extensa obra, revelando um pou-co mais sobre a imensa influência do repór-ter que desenhava em vez de escrever.

Repórter, neste caso, não é mera forçade expressão, pois era assim mesmo queSteinberg se considerava: um observadorda vida. Fosse sua ou do universo que orodeava. Com simpatia e humor, ele cutu-cava o que de mais sólido havia e passavaa limpo clichês, idealizações, tipos popu-lares, comportamentos, lugares e conven-ções – os chamados totens da sociedade,que podiam ser Papai Noel, Tio Sam, odólar, as estrelas do cinema ou o fascíniopelos pioneiros. Em um de seus trabalhosmais conhecidos, capa da The New Yorker de29 de março de 1976, ele esboça um tipode mapa-múndi a partir de Manhattan,paraíso do cosmopolitismo e do provinci-anismo, fazendo uma síntese perfeita doimaginário de uma população. No primei-ro plano, a Nona Avenida é a realidade paraa metrópole que se desdobra na DécimaAvenida e praticamente acaba no Rio Hu-dson. Outros Estados como Nebraska,Texas e Utah, grandes cidades como LosAngeles, Chicago e a capital Washington,os vizinhos México e Canadá não passamde localidades vagas, distantes, desérticas,que por pouco não se confundem, comoChina, Japão e Sibéria, regiões pouco de-lineadas e que no pensamento de muitosnova-iorquinos não deveriam passar, real-mente, de miragens.

Diferentemente de outros car-tunistas, em Steinberg o traçoque retrata lugares-comuns al-cança sua eficácia máxima pormeio de uma ironia refinada euma visão privilegiada. Um car-tunista ligeiro, mas que também era umartista “sério”. Sempre fugindo dos con-vencionalismos acadêmicos e conjugandocomo poucos uma série de estilos.

“Em seu trabalho seria possível recons-truir uma formidável tradição com baseapenas em cartuns: a economia formal deseu conterrâneo Brancusi, a liberdade daslinhas de Miró e Klee, as estranhas justa-posições dos surrealistas, as colagens cubis-tas, o rigor formal dos construtivistas. Tudoisso não apenas como forma, mas como

conteúdo. Mais a ironia dos dadaístas”,escreve o crítico Rodrigo Naves, em umperfil do artista publicado originalmenteno primeiro número da revista Serrote e queintegra o catálogo da exposição Saul Stein-berg: As Aventuras da Linha, em cartaz noCentro Cultural do IMS no Rio desde odia 28 de maio e que em setembro irá paraa Pinacoteca de São Paulo.

Fazem parte da mostra 111 desenhosproduzidos pelo cartunista entre 1940 e

1960, tempo em que ele secredencia como grande artista inter-

nacional. Um período em que ainda cami-nhava para se tornar o “traço mais argu-to da The New Yorker”.

“É um momento revelador, capaz demostrar a lógica por trás do artista, umsujeito para quem o propósito da carica-tura não era explorar o ridículo, o cômi-co, mas servir de ponto em que realidadee imaginação se choquem”, diz a histori-adora Roberta Saraiva, curadora da expo-sição. Para tanto, foram selecionados tra-balhos que fizeram parte de três impor-tantes exposições. A primeira, uma mos-

ARTE

POR MARCOS STEFANO

Conhecido pelos cartuns e ilustrações publicados na conceituadarevista The New Yorker, Saul Steinberg foi um grande artista das

linhas. Uma exposição e um livro de memórias relembram aimportância de suas obras, muito além do jornalismo.

Um crítico da vida modernaSTEINBERG

tra coletiva organizada pelo MoMA, em1946, com o título Fourteen Americans, emque apareceu ao lado de outros artistasgráficos importantes da época. A segun-da, uma individual inaugurada em 1952,nas galerias Sidney Janis e Betty Parsons.Por fim, a última, uma exposição monta-da pelo Museu de Arte de São Paulo-Masp,também em 1952, dirigido então por Pi-etro Maria Bardi, que conhecia Steinbergde tempos comuns em Milão.

Na mostra atual há uma quantidadegenerosa de cowboys, trens, monumen-tos fictícios, pássaros, gatos e outros bi-chos, mulheres em casacos de pele, des-files, desenhos de arquitetura, bombar-deios e falsos documentos (passaportescom assinaturas ilegíveis, selos e carim-bos que Steinberg colecionava). Em al-guns casos, longas séries com variaçõesgráficas. Vários deles, diferentes dos li-vros e revistas em que apareceram, ago-ra estão em tamanho natural. Inclusive,os desenhos murais que o artista crioupara a Trienal de Milão, de 1954. Sãoquatro desenhos em rolos de papel e pro-porções arquitetônicas. Pela primeiravez, A Linha, com seus dez metros decomprimento; Tipos de Arquitetura, comsete metros; Litorais do Mediterrâneo, comcinco metros; e Cidades da Itália, comtrês metros, são expostos em conjunto.

Ainda integram a mostra dois traba-lhos com inspiração brasileira: Pernambu-co, uma mistura de personagens, bichos emotivos locais, e Grande Hotel de Belém,ambos baseados em anotações e cartões-

postais colecionados pelo artista duran-te sua viagem ao País nos anos 50.

“Steinberg conseguia, usando apenasuma única linha, questionar em seus de-senhos o papel da rotina humana. A expo-sição cerca um momento de maturação edenota o gênio que segurava o lápis”,avalia Roberta Saraiva, responsável tam-bém pela organização do catálogo, umapeça à parte nessa história, já que, além detrazer as imagens da mostra, publica pela

primeira vez as impressões do artistaem seu caderninho durante a andançapelo Brasil, em que conheceu, ao ladoda esposa, a pintora Hedda Sterne,

Aparecida, Petrópolis, Salvador, Recife,Belém, Manaus, Rio e São Paulo.

No livro, Saraiva e o ilustrador Dani-el Bueno apresentam um diário dessaviagem, que se junta a uma entrevista doartista para Grace Glueck, da Art in Ame-rica, de 1970; o texto já citado de Rodri-go Naves, publicado na Serrote, em 2009;um texto de 1952, do então professorFlavio Motta, da Fau-Usp, publicado noDiário de S. Paulo; e o perfil de Steinberg,que Adam Gopnik escreveu para a TheNew Yorker, quando o cartunista faleceu.

Na vanguarda, antes da pop artCédulas de dinheiro, rótulos de merca-

dorias ou selos postais. Tudo podia serusado por Steinberg em sua obra. E não

N

AUTO-RETRATO COMCARRO, C. 1947

TINTA SOBRE PAPELSAUL STEINBERG/

THE SAUL STEINBERGFOUNDATION

Nesta foto de EvelynHofer, Saul Steinbergde mãos dadas a umrecorte de si próprioquando era menino.

45Jornal da ABI 367 Junho de 2011

como os cubistas utilizavam, com estri-ta função formal. Eram parte do conteú-do. O crítico norte-americano Harold Ro-senberg, autor de alguns dos melhoresensaios sobre sua obra, via no artista umhomem na vanguarda de seu tempo, in-corporando em seus desenhos procedi-mentos que na arte pop só se tornariammais comuns a partir de 1960. Traços quepode explorar ainda mais ao escolher aspáginas da imprensa como sua tela.

“Minha obra é meu diário. Reflete oque li, minhas atrapalhações com as pes-soas, lugares, estados de espírito; diferen-tes formas de esquizofrenia que todos te-mos e que é burrice tentar disfarçar”,contou o cartunista na entrevista a Gra-ce Glueck, em 1970. Mesmo assim, é no-tório o avanço do artista, do particularpara o abstrato, do material para o cere-bral e do cômico para o universal.

Mais do que em outros, sua obra é frutode seu – nosso – tempo. Nascido em 1914em uma família judaica romena, SaulSteinberg tinha poucos meses de vidaquando sua família se mudou para Buca-reste. Ali passaria toda a infância e adoles-cência, iniciando os estudos de filosofia eliteratura na universidade local. Mas nãoos concluiria. Com 19 anos, decidiu semudar para Milão, onde viveria oito anose se graduaria em Arquitetura. Tambémpor lá publicaria seus primeiros desenhosna imprensa. Os trabalhos que fez para arevista satírica Bertoldo lhe proporcionari-am certa fama e lhe abririam portas, inclu-sive, na revista Sombra, do Rio de Janeiro.

Esse primeiro namoro foi interrompi-do pelas crescentes ameaças fascistas deMussolini, que levaram Steinberg a dei-xar a Europa em 1941. Depois de umaestada forçada em Santo Domingo, ocartunista chegaria aos Estados Unidos.Mas precisaria de mais algum tempoantes de fazer sucesso no Novo Mun-do. Em 1943, já naturalizado, serviu naMarinha norte-americana em missõesna China, na Índia e na Itália. Alémda experiência, essas viagens lherenderam desenhos marcantes. Devolta à América, casou-se com He-dda Sterne, em 1944, e estabeleceu-seem Nova York. Foi dali que o franzino

Steinberg começou a cutucar com humore simpatia o que o Tio Sam produzia demais sólido, publicando prolificamentenas principais revistas do país, especial-mente no templo maior do jornalismoliterário, a The New Yorker.

Relatos ao amigoParte das lembranças da extensa carrei-

ra foi contada em longas conversas como amigo, também escritor e desenhistaitaliano Aldo Buzzi, travadas na casa deSteinberg, em Long Island, antes de suamorte. Editadas, elas deram origem aolivro Reflexos e Sombras, agora lançado emportuguês pela primeira vez pelo IMS,com direito a ser a única amplamenteilustrada, com 63 imagens. Não se tratasimplesmente de um livro autobiográfi-co, mas de memórias que permitem enten-der a obra do cartunista e finas reflexõessobre seu ofício, sobre o mundo artísticoe sobre os conflitos presentes naquelesque fazem algo único, como a necessidadede vender ou comercializar suas obras.

“O ofício do cartunista é difícil. É pre-ciso ser editor de si mesmo e cortar, cortar,cortar. Uma pintura, uma colagem de de-senhos a lápis, uma paisagem – tudo isso eufaço com prazer e facilidade. São delíciasem comparação com a tortura de encon-trar uma idéia e representá-la em seguidade modo menos pessoal possível, porquede outro modo se prejudicaria a clareza daidéia. Pela manhã, pego o caderno e a lapi-seira e começo a desenhar. O que fazer? Oque farei? Sinto-me perdido, as idéias pare-cem finitas. Mas depois não é bem assim;e essas horas matinais, de observação e re-flexão, ao longo dos anos conservaram emmim uma espécie de vigor intelectual. Omais difícil é cortar rápido um bom núme-ro de coisas. Outras vezes, o computador damente deve fazer um elemento verticalpercorrer todas as linhas horizontais das

possibilidades. Mas, sobretudo, preci-so ser capaz de associar as idéias dasmaneiras mais imprevisíveis”, reve-la o mestre do desenho em Reflexos eSombras, prova de que até quando sedesenha em vez de escrever o ofíciodo repórter continua sendo mais

transpiração do que inspiração.

ACIMA: FOTOGRAFIA DA TERCEIRA AVENIDA, 1951.TINTA SOBRE IMPRESSÃO EM GELATINA DE PRATA.

ABAIXO: DESFILE, 1950. TINTA E GRAFITE SOBRE PAPELSAUL STEINBERG/ THE PACE GALLERY, NOVA YORK

SUBÚRBIO II, C. 1950-1951. TINTA E CRAYON SOBRE PAPEL.SAUL STEINBERG/THE SAUL STEINBERG FOUNDATION

GEORGETOWN CUISINE, 1967, LÁPIS DE COR, ÓLEO, GUACHE E TINTA SOBRE JORNAL.SAUL STEINBERG/ THE SAUL STEINBERG FOUDATION

46 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Até onde se sabe, tudo começou em se-tembro de 1864, quando, numa livraria noCentro de São Paulo, um pequeno gru-po de jornalistas bem-humorados lan-çou um jornal que se diferenciava emtamanho, conteúdo e apresentação dosoutros jornais da época. O nome era tãoprovocador quanto estranho: Diabo Coxo.Esta pequena publicação com veia humo-rística passou a circular semanalmentecom apenas oito páginas, sendo que qua-tro delas traziam as primeiras ilustraçõesproduzidas por um desenhista que viriaa ser o principal artista gráfico daquelaépoca, Angelo Agostini.

Essa personalidade é de grande impor-tância para a História da Imprensa noBrasil. Agora ela é tema deuma obra essencial paraquem quer conhecer umpouco mais sobre os pri-meiros passos de nossojornalismo: Angelo Agos-tini – A Imprensa Ilustra-da da Corte à Capital Fede-ral, 1864-1910, de GilbertoMaringoni (Devir, 256 pá-ginas). O livro, lançado re-centemente, é uma atuali-zação da tese de doutoradodefendida pelo autor em2006, fruto de uma pesqui-sa de quase 20 anos que começou emmeados da década de 1980, ao lado do amigoe quadrinista Ofeliano de Almeida.

“Começamos a pesquisar os quadri-nhos de Agostini e ficamos espantadoscom a alta qualidade narrativa e gráfica

auge. Ao chegar ao Rio de Janeiro em1859, apaixonou-se pelo País e logo de-cidiu fincar raízes aqui e não retornarà Europa. No ano seguinte mudou-separa São Paulo. Foi nessa época queHenrique Fleiuss fundou, no Rio deJaneiro, A Semana Illustrada, comum personagem satírico chamadode Dr. Semana que se tornou mui-to popular. Foi o primeiro a fazersucesso com uma publicação ilus-trada. Quatro anos depois, seriaa vez de Agostini lançar seu Di-

abo Coxo, em São Paulo.Na segunda série da publicação, a

partir de julho de 1865, Agostini temuma visível evolução, com um traço maismaduro e textos mais aprimorados. Énesse momento que a obra do artistaganha as características que marcariamseu trabalho nos anos seguintes, comilustrações panorâmicas finalizadas comgrande esmero – muitas vezes ocupan-do duas páginas –, e reportagens visuaisque culminariam com o desenvolvimen-to de histórias gráficas seqüenciais.

Em 1866, com Américo de Campos eAntônio Manuel Reis, o artista cria o jor-nal O Cabrião, outro periódico semanalonde publica diversos desenhos críticossobre a Guerra do Paraguai. Nesse jornal,apenas dois meses depois de seu lança-mento, Agostini enfrenta sua primeiragrande batalha, e esta se torna um marcohistórico na imprensa brasileira: o jornalsofreu o primeiro processo criminal mo-vido no Brasil por causa de um desenho.A publicação da charge O cemitério daConsolação no Dia de Finados, na ediçãode 4 de novembro, foi considerada de “maugosto” e a discussão sobre o assunto reper-cutiu até na Capital. Felizmente a Justiçada época era célere e o jornal foi absolvidoem 10 de dezembro. Essa história é conta-da em detalhes no livro de Maringoni.

Também exímio ilustrador e quadri-nista, Gilberto Maringoni foi chargistade O Estado de S. Paulo entre 1989 e 1996,publicou quadrinhos no Brasil e no ex-terior, entre os quais o elogiado álbumTocaia, lançado pela Devir em 2009. Éautor de onze livros e, como seu biogra-fado, tem múltiplos talentos. Desde quecomeçou a pesquisar a vida de Agostini,

formou-se em Arquitetura pela Faculda-de de Arquitetura e Urbanismo da Usp,tornou-se pesquisador do Ipea e profes-sor de Jornalismo na Fundação CasperLíbero, além de ser doutor em HistóriaSocial pela Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas, também da Usp.

Não foi um trabalho simples saberquem foi Angelo Agostini. “Eu tinha idéiade escrever uma biografia”, lembra Ma-ringoni. “Mas esbarrei num fato curio-so: apesar de ter publicado intensamen-te durante quase 40 anos, poucos são osregistros sobre como era Agostini, seushábitos, sua vida pessoal etc. Os poucoscontemporâneos que a ele se referem oelogiam tanto que o material mais enco-bre do que revela a personalidade do ar-tista. Assim tive de fazer uma biografiaanalítica, isto é, mesclar o pouco do quese sabe de sua vida com os registros dei-xados por ele nas cerca de 3.200 páginasque ilustrou e em outras tantas que es-creveu, entre 1864 e 1907”.

Maringoni acrescenta que Agostini éum personagem riquíssimo e pouco estu-dado, cita três bons trabalhos sobre o artistae faz uma comparação com o seu livro.

POR FRANCISCO UCHA

AgostiniJornalista, caricaturista, empreendedor, militante político

e precursor das histórias em quadrinhos no Brasil,Angelo Agostini tem sua densa trajetória narrada em livro.

dessa produção, que vai de 1869 a 1905.A partir daí, me dediquei a investigar atrajetória do artista italiano. No final dosanos 1990, tive a felicidade de compraruma coleção da Revista Illustrada e deDon Quixote, publicações lançadas porAgostini em fins do século XIX. Comesse material nas mãos decidi o tema demeu doutorado”, explica Maringoni.

No livro, o autor não poupa palavrasde elogio ao grande jornalista, caricatu-rista, repórter, editor e militante políti-co que lutou com veemência pelo fim daescravidão. Além disso, Agostini foi umdos pioneiros na criação de histórias emquadrinhos no mundo.

“Se as imagens que chegaram até nósdo final do período colonial têm em Debrete Rugendas seus principais autores, o regis-

tro visual das duas décadase meia que precederam aRepública encontra no ar-tista italiano sua mais per-feita tradução. Ele, segura-mente, produziu entre nósa mais extensa representa-ção gráfica de uma socieda-de que sai da monarquia edo regime de trabalho ser-vil, rumo a se tornar umarepública elitista que tei-ma em empurrar parafrente suas contradiçõesprofundas.”

Nascido na Itália, em Piemonte, nodia 8 de abril de 1843, Agostini passouparte da infância e adolescência em Paris,onde estudou na Escola de Belas-Artes eteve a oportunidade de conhecer o suces-so da imprensa ilustrada francesa em seu

HISTÓRIA

A IMPRENSA, SEGUNDO

O primeiro número de Diabo Coxo, “jornaldomingueiro” de oito páginas. Metade

delas ilustrada por Angelo Agostini.

REPR

OD

UÇÃ

O

47Jornal da ABI 367 Junho de 2011

“Os artigos de Antonio Luiz Cagnin;a dissertação de mestrado de Marcus Ta-deu Daniel Ribeiro, sobre a Revista Illus-trada; e o doutorado de Marcelo Balaban,publicado recentemente, aprofundam-se em aspectos importantes da obra dodesenhista. No meu caso, tentei exami-nar toda a sua trajetória. Há vantagens edesvantagens nisso. Podemos perder emprofundidade, em alguns tópicos, masficamos com uma visão ampla sobre suacarreira.”

E exatamente aí reside a importânciado livro Angelo Agostini – A ImprensaIlustrada da Corte à Capital Federal,1864-1910. Com um personagem tãoimportante e com tão pouca informaçãosobre esse período, o trabalho de Marin-goni nos dá uma visão muito clara dodesenvolvimento artístico de Agostini etecnológico da imprensa, apresentandodados bem documentados e muitas cu-riosidades. O livro é dividido em cincopartes – o início em São Paulo; os primei-ros tempos na Corte; a Revista Illustrada;o Don Quixote; os últimos anos.

A Revista Illustrada, o principal em-preendimento jornalístico de Agostini,recebe atenção especial na obra por setratar do período mais longo em que oartista permaneceu à frente de umapublicação. Este período coincide com adecadência da monarquia e a campanhada abolição. Quando retorna ao Rio de

Janeiro em 1867, ele passa a colaborar emO Arlequim, e no ano seguinte, na revis-ta Vida Fluminense – onde publicou NhôQuim ou Impressões de uma Viagem àCorte, considerada a primeira história emquadrinhos brasileira. Entre 1869 e 1875,colaborou em O Mosquito, porém a na-tureza empreendedora de Agostini faloumais alto e, em 1876, ele funda sua maisimportante publicação.

“À frente da Revista Illustrada, Agos-tini torna-se uma referência jornalística,estética e política, publicando trabalhosde grande impacto na opinião pública.Sua inventividade e criatividade na cri-ação de narrativas gráficas e na denúnciapolítica não têm paralelo na imprensa deentão”, salienta Maringoni em seu livro.

Ironicamente, 12 anos depois, no augedo sucesso e perto de ver o fim da mo-narquia, Angelo Agostini se muda paraa França, onde permanece até outubro de1894. Foi um período sombrio em suavida. Não se sabe exatamente por que eletomou essa decisão, mas o fato é que, em11 de outubro de 1888, embarcava novapor Portugal. Uma comitiva de notá-veis acompanhou-o ao navio, entre elesJoaquim Nabuco, José do Patrocínio,Álvaro Alvim, entre muitas personalida-des de destaque. Agostini acabou nãoacompanhando de perto o golpe militarque derrubou a monarquia e exilou aFamília Real.

Seis anos se passaram, e quando retor-nou a situação não era mais a mesma. ARevista Illustrada não tinha mais o mes-mo vigor e o panorama político mudaracompletamente. Mas Agostini não perdetempo e começa a pensar numa nova pu-blicação, Don Quixote, que começaria a cir-cular no início de 1895. Seu lançamentoaproveitou a curiosidade popular quecercou um trágico acidente numa barcana Baía de Guanabara. Numa brilhanteestratégia de marketing – muito antes dea palavra “marketing” existir com a cono-tação de hoje em dia –, Agostini fez circu-lar um suplemento com a ilustração dodesastre e anunciava a novidade editori-al. Foi um sucesso o lançamento.

O início do fimApesar do alto nível gráfico das ilustra-

ções de Agostini, esse estilo de publicaçãocomeçava, aos poucos, a ficar ultrapassa-do devido às novas técnicas e máquinasque surgiam. A imprensa mudava rapida-mente e se tornava um empreendimen-to empresarial de porte. O fim das peque-nas publicações estava próximo.

Foi nesse período também que se evi-denciou uma faceta escondida do dese-nhista. Maringoni se surpreendeu coma descoberta de que “de radical abolicio-nista”, Agostini se revela, nos anos se-guintes, um racista exaltado.

“Fiquei intrigado e isso ampliou os ho-rizontes de meu trabalho. Consegui per-ceber que o movimento abolicionistabranco não existiu especialmente porsolidariedade aos negros. Seu papel foimuito mais o de modernizar o País, criartrabalho assalariado, alargar o exíguomercado interno de então e possibilitara industrialização e uma nova inserçãodo Brasil no mercado internacional. Osnegros foram relegados à própria sorte,num projeto de reconfiguração socialque tinha na imigração do trabalhadoreuropeu o centro de uma política deembranquecimento do País. Outros já sereferiram ao fenômeno. Acho que mi-nha contribuição é examinar como issose expressou na imprensa.”

Don Quixote foi a última publicaçãolitografada relevante a circular no Rio deJaneiro. Agostini lutava com todas assuas armas, e se endividava. Mas a publi-cação fecha as suas portas em 1903, épocaem que Pereira Passos assume a Prefeitu-ra da Capital e começa a fazer revoluçãopara modernizar a cidade. Um ano antessurge O Malho, que seria editada pelamesma casa publicadora que mais tardelançaria O Tico-Tico e se tornaria umapotência editorial. Novos ilustradores ecaricaturistas ganham fama, entre eles,

Crispim, K. Lixto e Raul Pederneiras, quese tornaria Presidente da ABI. O novotraço não lembra em nada o estilo rebus-cado de Agostini; pouco a pouco, suafama desaparece.

Agostini passa a colaborar com publi-cações como Gazeta de Notícias e O Ma-lho. Nesta ele cria, em outubro de 1904,um conto para crianças chamado PorCausa de um Cachorro, na forma de qua-drinhos, uma das coisas que ele maissabia fazer. A receptividade do público auma história criada especialmente parao público infantil foi excelente e a em-presa viu aí uma nova fatia de mercadoa explorar. Logo uma nova equipe come-çava a planejar o lançamento de um pro-duto infantil. Assim, o primeiro núme-ro de O Tico-Tico, Jornal das Crianças

Apenas dois meses depois de seu lançamento, O Cabrião, de Agostini entra para a históriacomo a primeira publicação do Brasil a ser processada por causa de uma charge: muitos

ficaram incomodados com as caveiras no Cemitério da Consolação. Ao lado, a RevistaIllustrada, a maior criação de Agostini, e que marcou seu auge profissional.

O traço deAgostinidenunciava ohorror da torturaaos escravos, aomesmo tempoem que divertiacom a comédiade Nhô-Quim,um personagempioneiro nashistórias emquadrinhosmundiais.

A elegância do traço de Agostini num dosseus últimos trabalhos: a capa de O Malho.

48 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Outra obra importantíssima para oresgate da obra de Angelo Agostini naHistória da cultura brasileira é o livro AsAventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora, deautoria do pesquisador Athos EichlerCardoso, cuja primeira edição foi lança-da em 2002 dentro da série Edições doSenado Federal. O livro recebeu o troféuHQ Mix na categoria Valorização dosQuadrinhos. Esse foi um dos motivospara o lançamento de uma segunda edi-ção em 2005.

O álbum reproduz com cuidadosotrabalho de restauração digital os capítu-los de As Aventuras de Nhô-Quim, ou Im-pressões de uma Viagem à Corte, publica-dos em página dupla na Vida Fluminen-se, e As Aventuras do Zé Caipora, publica-das na Revista Illustrada, em Don Quixotee, numa última fase, em O Malho. Folhe-ar esta publicação impressa em papel cou-chê e no formato A4 é voltar no tempo edescobrir um verdadeiro tesouro artísti-co, criativo e absolutamente pioneiro. Écompreender melhor como era o Brasil,sua gente e seus costumes em fins do sé-culo 19. A recuperação desses documentos,portanto, é essencial para manter um regis-tro iconográfico fiel do período.

Publicada a partir de 1869, As Aven-turas de Nhô-Quim foi a primeira histó-ria em quadrinhos brasileira e a quintado mundo. A primazia de ser o pioneirocoube a um caricaturista suíço, RodolpheTopffer, que publicou em 1827 a históriaMonsieux Vieux Bois. Hoje o autor é con-siderado o pai dos quadrinhos, apesar deseus traços serem bem primários, quaseinfantis.

Em 1848 surgiu Monsieur Reac, cria-do pelo fotógrafo e desenhista francêsNadar, pseudônimo de Gaspard-Félix

Tournachon. A dupla endiabrada Maxund Moritz, famosa criação do pintor e ca-ricaturista alemão Wilhelm Busch, che-gou em 1865 e, dois anos depois AllySloper começaria a ser publicado regular-mente na revista britânica Judy. O perso-nagem era desenhado por Charles H.Ross, que também escrevia as histórias,e arte-finalizado com elegância por suamulher, a cartunista francesa MarieDuval, pseudônimo de Emilie de Tessier.

Uma diferença de 67 anos separam acriação de Topffer e The Yellow Kid, dodesenhista norte-americano Richard F.Outcault, que era alardeado aos quatroventos como o primeiro personagem dosquadrinhos. Mas ele só começou a serpublicado em 1894. Até o nosso Zé Cai-pora estreou bem antes do garoto ama-relo lançado no New York World, de Jose-ph Pulitzer.

Quando começou a desenhar As Aven-turas de Zé Caipora, em 27 de janeiro de1883, Agostini já era um quarentão famo-so, dono da principal publicação ilustra-da da Corte e de um traço refinado. Cri-ado para ser cômico, o personagem ganhanova dimensão criativa e gráfica quandose torna um aventureiro. A arte seqüen-cial de Agostini é dinâmica, ágil, elegan-te e, como linguagem moderna de qua-drinhos, antecede em muito tempo seuscongêneres Tarzan e Príncipe Valente,ambos de Hal Foster; e Flash Gordon eJim das Selvas, de Alex Raymond.

Como ressalta Athos Cardoso em seulivro, “cabe a Angelo Agostini o título deavô das tiras de aventura, como precur-sor da temática e a Zé Caipora, o de pri-meiro herói brasileiro e universal dogênero”. Realmente, As Aventuras de ZéCaipora pode ser considerada, sem som-bra de dúvidas, a primeira história emquadrinhos de aventura do mundo. Quenos desculpe Hal Foster.

Agora só falta o Conselho Editorial doSenado Federal autorizar uma terceirareimpressão do livro, pois a segundaedição também já se encontra esgotada.A memória brasileira merece.

Os pioneirismosde Nhô Quim e

Zé Caipora

começa a circular em 11 de outubro de1905, com seu logotipo desenhado porAngelo Agostini (acima).

Dez dias depois O Malho anuncia avolta do mais importante personagemdo artista: Zé Caipora retornaria apósuma interrupção de dois anos de suaúltima aparição nas páginas do DonQuixote. Nesse período Agostini colabo-rava nas duas mais importantes publi-cações da casa editorial de O Malho.Mas ele não tinha o mesmo vigor e, noinício de1908, o artista encerraria umacarreira de 43 anos. Dois anos depois, em23 de janeiro de 1910, morreria pratica-mente esquecido.

O livro de Maringoni se encerra comum texto extra que ele chama de “Ane-xo”: uma carta de Angelo Agostini aosseus assinantes, publicada na últimaedição de Don Quixote, de 10 de janeirode 1903, na qual ele faz um balanço desua carreira e fala das agruras de serempreendedor e jornalista no Brasil.Maringoni termina seu texto com umafrase de José do Patrocínio sobre o gran-de artista: “O presente já o estima; ofuturo há de adorá-lo”.

Maringoni acrescenta, dando um as-pecto de realidade e esperança: “O futu-ro é muito longo. Ainda não o adora, mascomeça a descobri-lo”.

Duas páginas com a dinâmica arte seqüencial de As Aventuras de Zé Caipora: já é hora de sereivindicar para Agostini a autoria da primeira história em quadrinhos de aventura do mundo.

Pioneiro nesse gênero, ele antecedeu Buck Rogers e Tarzan, de Hal Foster, em 46 anos.

HISTÓRIA A IMPRENSA, SEGUNDO AGOSTINI

49Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Dono de uma gráfica no Município,o empresário Valcir Almeida só não setornou o primeiro publisher de NovaIguaçu porque outro visionário se ante-cipou a ele: o jornalista Raul AzêdoNetto, que trabalhou num antigo sema-nário da cidade, o Correio de Maxambom-ba, do empresário Dionísio Bassi, enrai-zou-se na imprensa local e terminou porcriar o primeiro jornal diário iguaçuano,o Correio Diário, que ele manteve comextremadas dificuldades.

Longe de ficar enciumado, Valcir Al-meida procurou aliar-se a Raul Azêdopara utilizar a experiência deste na im-plantação de seu projeto jornalístico: acriação de um jornal diário. Azêdo tinhalarga experiência profissional, iniciada nofim dos anos 40 no diário comunistaImprensa Popular, do Rio de Janeiro, e con-tinuada depois nos diários Hoje, de SãoPaulo, proibido de circular pelo GovernoDutra, e Notícias de Hoje, que sucedera aoHoje após a proibição do primeiro.

Na trajetória profissional de Azêdo,sabia Valcir, constavam passagens pelos

Faltavam uns poucos dias para o jor-nalista e escritor Paulo Roberto Viola re-alizar um projeto que acalentava comgrande carinho: o lançamento de novaedição de uma de suas biografias, a daPrincesa Isabel, programado para a ABIno dia 13 de maio, a grande data que ornao nome da autora da Lei Áurea. O cora-ção foi injusto com Viola: exatamenteduas semanas antes da data do evento, eleteve um ataque cardíaco fulminante.“Meu pai desencarnou”, informou em e-mail à ABI seu filho Luiz Viola, numaalusão à crença de Paulo Roberto, que eraum dos mais destacados jornalistas eescritores espíritas do País.

Este seria o segundo lançamento quePaulo Roberto Viola faria na ABI, ondepromoveu em novembro de 2009 pres-tigiada sessão de apresentação de uma desuas obras mais importantes, Barão deSanto Ângelo, O Espírita da Corte, biogra-fia de uma das mais importantes perso-nalidades do País no século 19. Poeta,político, jornalista, pintor, caricaturista,arquiteto, crítico de arte, professor e di-plomata, Araújo Porto-Alegre foi o intro-dutor da ilustração na imprensa brasilei-ra em 1839, quando tinha pouco mais de33 anos. No ato então realizado, Violadeu prova do respeito que granjearacomo pesquisador e escritor: a sessão, re-

O nome era extenso – Roberto Pau-lino Fernando Ludolf Soares de Souza— assim como era imenso, também, ocarinho com que tratava não apenas osamigos, mas igualmente as pessoas co-muns com que se relacionava. Comgrande estatura, mais de um metro e80, que logo o destacava em qualquergrupo, olhos esverdeados, sorriso fran-co, natural, ele era descrito como asimpatia em pessoa. Confirmou issono contato com a comunidade daMangueira, que passara a freqüentarquase como uma extensão da família,que era sócia de uma fábrica de ladri-lhos e azulejos instalada na Rua Vis-conde de Niterói, no sopé do morro, naqual começou a trabalhar. Era o come-ço dos anos 1960, a quadra da Man-gueira ocupava nos dias de ensaio opiso de barro do pátio de carga e descar-ga da empresa. Ali Roberto Paulino seenturmou com os bambas da escola,que ainda não haviam alcançado o re-nome merecido: Hélio Turco, Cícero,Pelado, Padeirinho, Preto Rico.

Filho de celebrado cirurgião, o Dou-tor Roberto Paulino, considerado en-tão um dos ases da cirurgia do Rio deJaneiro, o jovem Roberto não seguiunem o caminho do pai nem a tradiçãoindustrial da família, que tinha pres-tígio e influência na Federação dasIndústrias. Preferiu formar-se em Di-reito, ainda que sem a pretensão deadvogar. O diploma cobria-o de respei-to ainda maior na comunidade, que otratava carinhosamente de Doutor Ro-bertinho, festejando o menino que seiniciara ali muito moço. Alçado preco-cemente a uma liderança que não co-biçava, Paulino tornou-se um dos maisjovens Presidentes da Escola de SambaEstação Primeira de Mangueira e a con-duziu a dois campeonatos entre 1960e 1963. Em 2003 ele lançou livro DoCountry Club à Mangueira, no qual re-lata esta passagem de sua vida.

A vocação real de Paulino era, po-rém, o jornalismo, no qual, já maduro,se iniciou como repórter, trabalhoucomo redator copidesque e se tornoucolunista, desobrigado das tarefas dodia-a-dia do fechamento das edições.Seu currículo inclui passagens peloantigo O Jornal, O Globo, Jornal doBrasil, O Estado de S. Paulo. Atribui-sea ele uma boutade de cordial crítica aoscopidesques. Na Redação de O Jornal,um redator iniciante teria tropeçadona grafia da palavra descanso e queriasaber se a escreveria com s ou ç. Pauli-no respondeu de plano: “Põe com s,companheiro, que o descanso serámais reparador”.

Paulino estava com 76 anos. Fale-ceu no dia 24 de junho de choque sép-tico. Deixou três filhos, nove netos edois bisnetos.

Viola, o biógrafo deAraújo Porto-Alegre

Estava tudo nos trinques para ele lançar uma nova edição de outra desuas biografias, a da Princesa Isabel, mas o coração não lhe deu tempo.

na Prússia, na Saxônia e em Lisboa, de-pois de ter ocupado cargos de confiançano Império, como o de Diretor da Seçãode Belas-Artes do Museu Nacional e pin-tor da Câmara Imperial, ele não revelavasua crença espírita, “por medo de falharcom o juramento de fidelidade à IgrejaCatólica exigido pelo cargo que ocupavacomo funcionário do Estado. Porto-Ale-gre guardou este segredo para manter oemprego e não ser vítima de discrimina-ção”, conta Paulo Roberto Viola.

VidasVidas

alizada no Auditório Oscar Guanabari-no, reuniu dois membros da AcademiaBrasileira de Letras – Cícero Sandroni eMurilo Melo Filho –, o então Diretor daBiblioteca Nacional, jornalista, escritore professor Muniz Sodré, a Diretora doMuseu Nacional de Belas-Artes, Môni-ca Xexéo, e a historiadora Mary Del Pri-ore. Sandroni fez aplaudida conferênciasobre o tema Dois Séculos de Araújo Por-to-Alegre: Valores Culturais, Éticos e Mo-rais, Acima de Tudo.

Nascido em 16 de maio de 1947 e só-cio da ABI desde 29 de março de 1983,Vi-ola era fascinado pela vida e pela obra depersonalidades do Segundo Reinado,sobre as quais vivia pesquisando e bus-cando ângulos novos para apresentar aopúblico. São elas que compõem sua sóli-da e diversificada bibliografia, expressaem títulos como Dom Pedro II e a Prince-sa Isabel; Princesa Isabel, Uma Viagem noTempo; Bezerra de Menezes, O Abolicionis-ta do Império; Francisco de Paula, O Ere-mita da Caridade; O Segundo Reinado naVisão do Espiritismo e o citado Barão deSanto Ângelo, O Espírita da Corte.

Em suas pesquisas Viola levantoudocumentos inéditos sobre Araújo Por-to-Alegre, entre os quais uma carta queele guardava a sete chaves. Cônsul doBrasil entre 1856 e 1879, quando morreu,

Valcir Almeida, um pioneiro

principais jornais do Rio, como repórter,redator, editor, chefe de reportagem, se-cretário gráfico. A aventura profissionalanterior de Azêdo fora o arrendamentodo diário Luta Democrática, de TenórioCavalcânti, que, cassado pelo golpe mi-litar de 1° de abril e afastado do jornalis-mo, cedeu o jornal sem qualquer contra-partida econômico-financeira, desde que

Azêdo assumisse, como assumiu, estescompromissos editoriais: manter a linhanacionalista da Luta; defender os inte-ressses do nascente Estado do Rio de Ja-neiro; tomar posição ao lado dos trabalha-dores e de suas lutas; condenar a políti-ca e as ações do regime militar.

Lançaram-se assim Valcir e Azêdo àcriação e produção do diário Hoje, no qualValcir via o embrião de uma sólida im-prensa diária em Nova Iguaçu, vaticínioque se confirmou em poucos anos;Azêdo, de seu lado, via na criação do jor-nal a oportunidade de ampliação domercado de trabalho de companheirosafastados das Redações do Rio de Janei-ro, como Artur Cantalice e João DuqueEstrada Meyer, que ele convidou paraintegrar a equipe do Hoje. Sua morte ines-perada, em 21 de maio de 1979, não impe-diu que Valcir mantivesse o projeto, hojetransformado no principal empreendi-mento jornalístico de Nova Iguaçu.

Valcir faleceu no dia 24 de junho.Deixou mulher, dois filhos e netos. Esta-va com 78 anos.

Paulino,líder precoce

AR

QU

IVO PESSO

AL

REPROD

UÇÃO

50 Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Com grande movimentação de pessoas, desde o finalda tarde do dia 26 de maio a Cinelândia foi o cenário deuma das homenagens póstumas ao jornalista, ator, diretorde teatro, artista plástico e ex-Senador Abdias Nascimen-to (1914-2011), cujo corpo foi velado no saguão da Câ-mara Municipal do Rio de Janeiro. Associado da ABIdesde 1948, ele morreu aos 97 anos, no dia 23, no Rio, eteve o corpo cremado na manhã do dia 27. Abdias esta-va internado no Hospital dos Servidores, no Centro doRio, há cerca de dois meses, com quadro de diabetes.

Centenas de militantes e lideranças do movimentonegro brasileiro e autoridades lotaram o ambiente daentrada principal da Casa legislativa carioca, para par-ticipar do velório de Abdias, que contou também coma presença do Governador do Rio, Sérgio Cabral, e doex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula chegou ao velório na companhia do Governa-dor e disse que o preconceito racial, contra o qual Ab-dias foi um lutador incansável, é uma doença difícil decurar. E falou sobre a condição do negro no Brasil:

“Acho que os negros já conquistaram muito espaçodesde a Constituição de 1988, mas ainda falta muito.O preconceito é uma doença que não tem cura fácil. Oremédio para combater o preconceito racial leva anos,mas penso que estamos avançando.”

Lula lembrou os anos de militância política e as ini-ciativas de Abdias inclusive na esfera pública em prolda igualdade racial no Brasil e disse que as políticas deAção Afirmativa implantadas no País foram adotadasinspiradas também na sua contribuição para o avançodesse processo.

Através de nota enviada aoSindicato dos Jornalistas do Mu-nicípio do Rio de Janeiro, Lula jáhavia se manifestado dizendoque Abdias foi um lutador bri-lhante e incansável contra o ra-cismo e por um Brasil melhor.“Militante político, jornalista,professor, intelectual e artista,sua coragem e inteligência nadefesa dos direitos e da auto-es-tima dos afro-brasileiros são umexemplo e motivo de orgulhopara todos nós. Nesse momentode dor, me solidarizo com sua es-posa, Elisa Larkin Nascimento,com todos os parentes e ami-gos”, disse Lula por meio da nota.

O Governador Sérgio Cabraltambém destacou a importân-cia de Abdias Nascimento naluta contra o racismo, elogian-do a maneira como o ex-Sena-dor conduziu suas propostas dedefesa dos direitos dos negros:

“Ele era um intelectual, artis-

VidasVidas

O ex-Presidente foi uma das personalidades que prestaramhomenagem póstuma ao mais destacado membro do movimento

negro no Brasil, falecido no Rio de Janeiro aos 97 anos.

ta plástico, uma pessoa comuma elegância cultural que lhedava um peso muito significati-vo na luta pela igualdade raciale pelo respeito religioso. Um bra-sileiro que marcou a História doPaís”, disse o Governador.

Estiveram presentes tambémà cerimônia os Deputados fede-rais Edson Santos (PT-RJ) e Be-nedita da Silva (PT-RJ), o ex-Deputado federal Vivaldo Bar-bosa (PDT-RJ), o jornalista e ex-Deputado federal Carlos Alber-to de Oliveira, o Caó.

Cerimônia ecumênicaÍcone das lutas contra o racismo no Brasil, por mais

de 40 anos, e uma das maiores autoridades brasileiras emrelações raciais, Abdias Nascimento foi saudado comuma celebração ecumênica autorizada pela família coma participação de integrantes da Comissão Contra aIntolerância Religiosa-CCIR, formada por representan-tes do candomblé, umbanda, Igreja Católica, comuni-dades judaica e islâmica, igrejas evangélica e protestante.

As manifestações de apreço à figura de Abdias foram li-deradas pela viúva, Elisa Larkin do Nascimento, que lem-brou que entre os importantes itens da agenda de lutas deAbdias Nascimento se encontrava também a defesa pelaigualdade dos direitos da mulher, “da mulher negra espe-cificamente para a qual ele sempre teve essa atenção”.

Elisa Larkin ressaltou que Abdias foi também um dosgrandes defensores dos direitosdos quilombolas, que na cerimô-nia foram representados pormoradores do quilombo deCampinho, de Parati, que é umdos lugares que Abdias visitoupara uma de suas pesquisas noinício dos anos 1980.

Como pesquisador e artistaplástico, Abdias Nascimentosempre manifestou apreço pe-las religiões de matriz africana,e com isso ganhou o respeito ea consideração das irmandadesdo candomblé e da umbanda,como ficou claro na saudaçãoespecial que recebeu da ialorixáMãe Beata de Iemanjá:

“Estou aqui neste momentonão para me despedir de você esim para lhe dar um até logo,pois nosso pai Olorum (Orixáque representa a divindade má-xima) quando precisa de um deseus filhos prediletos ele o cha-ma para o seu verdadeiro conví-vio, e assim, neste momento, ele

lhe escolheu, meu irmão e meu professor. Porém, saben-do que esta lacuna não haverá quem preencha, a lacu-na do teu potencial, da sua sabedoria física e mental.Grande guerreiro, “Oxun rerê catiri catê”, declarou MãeBeata, em uma saudação iorubá referindo-se a Oxum,Orixá da qual Abdias era devoto.

Mãe Beata acrescentou que na qualidade de mulhernegra nasceu para lutar, aprendeu muitas coisas e maisainda com a convivência com Abdias:

“Recebi aprendizado dos nossos ancestrais. Porém, emti também me espelhei, acredite continuarei na luta enão hei de fraquejar, a tua estrada eu seguirei, sou a suairmã Beata de Iemanjá.”

Como ZumbiSob forte emoção, Benedita da Silva disse que com

a morte de Abdias os negros perderam a sua grandeliderança, mas que o legado dele tem proporcionadoao País avançar com a experiência e a importância dasua determinação na defesa do povo negro brasilei-ro. Disse Benedita que Abdias era um líder que se tor-nou uma referência nacional, a exemplo de Zumbi dosPalmares:

“Ele é o nosso Zumbi, na expressão máxima de lide-rança que fez com que os adversários o respeitassem peladignidade e fecundidade com que defendeu o seu ide-al e os ideais de todos os negros”, afirmou a Deputada,referindo-se às lutas do ex-Senador.

Disse Benedita da Silva que tudo aquilo que produ-ziu Abdias Nascimento estará sempre presente na vidade todos os brasileiros, pois deixou um grande legado,por meio da arte “onde se destacam as marcas da religi-osidade de matriz africana que sempre defendeu”, doTeatro Experimental do Negro e nos livros que escreveu.

O radialista e pesquisador Rubem Confete falou daimportância histórica do porto do Valongo, no Cen-tro do Rio, por onde chegavam os escravos. Segundoele, esse foi um dos pontos da conversa que teve comAbdias em um encontro na Nigéria, em 1977, quan-do este estava no exílio:

“Foi daí que Abdias lançou para o mundo a grandeverdade dos problemas de quatro milhões de negros que

No adeus a Abdias, Lula, Cabral e axé

POR JOSÉ REINALDO MARQUES

Abdias Nascimento caracterizado como Otelo, napeça baseada em Shakespeare que comemorouo segundo aniversário do Teatro Experimental do

Negro, no Teatro Regina, em 1946.

JOSÁ

MED

EIRO

S/AC

ERVO

AB

DIA

S NA

SCIM

ENTO

DIVU

LGA

ÇÃ

O/R

ETRATO

S DO

BR

ASIL N

EGR

O

51Jornal da ABI 367 Junho de 2011

Integrante das equipes que,sob a liderança de Mino Carta,criaram o Jornal da Tarde, em1966, e a revista Veja, em 1968,Ulysses Alves de Souza iniciouno domínio da técnica deredação jornalística dezenas deprofissionais, como Sandro Vaia,Sérgio Rondino e Tão GomesPinto, que relembraram esta suacontribuição à imprensa, dianteda notícia de seu falecimento,em São Paulo, aos 85 anos, em27 de maio passado. Uru, seuapelido, foi assim evocado porestes seus companheiros:

SANDRO VAIA“Eu arrumei emprego no JT

através de uma carta quemandei ao Marcelino Ritter,redator-chefe do Estadão, que aencaminhou ao Mino Carta. Eleachou a carta de alguma formainteressante e mandou o Ulyssesme telefonar e me chamar parauma entrevista. Foi, portanto,meu primeiro contato e meuprimeiro chefe de reportagemdo JT, que me mandou fazeruma matéria na CMTC, queficava na Rua Martins Fontes,do lado do jornal. Eu, molequedo interior, não sabia onde era egastei uma boa hora para acharuma coisa que ficava a 50metros da Redação. Fazia partedo método de chefia dele nãofacilitar a vida do repórter.

O apelido dele era “Uru”, etinha uns 15 anos a mais do queeu. Era mais velho que o MinoCarta. Era um chefe dereportagem tipo “old fashion”,aqueles que nos filmesamericanos usavam uma viseirae um elástico na altura do braço,lembra? Tinha um humorsarcástico, quase destrutivo, masdaqueles que no fundoescondem uma boa alma.Lembro que ele, como umaespécie de preceptor do LuizMerlino, aquele jovem santistameio aristocrático que foimorto pela repressão, praticouuma célebre crueldade: lia amatéria, devolvia e dizia: nãoserve nem pra jogar no lixo. Aí opobre Merlino suava sanguepara reescrever, entregava praele, que lia e dizia: agora, sim,serve pra jogar no lixo. E jogava.

Tinha um grande sonho, quenunca chegou nem perto derealizar: criar uma rede de

jornais do interior. Em vez disso,saiu com aquela turma queacompanhou o Mino Carta parafazer a Veja. Depois da Veja, operdi de vista. Sei que faziaalgumas assessorias, quetrabalhou em alguns órgãospúblicos, mas que nunca mais ovi. Era uma figura de livro.Seria, tranqüilamente,personagem de algumacoletânea sobre velhosjornalistas, se alguém tivesseescrito uma. Acho que ele já eraum velho jornalista quando nósnem jornalistas éramos ainda.”

SÉRGIO RONDINO“Para mim Ulysses Alves de

Souza é inesquecível. Março de1967, chego ao Jornal da Tardepara meu primeiro dia naRedação. Estagiário, 20 anos, focatrêmulo, fui encaminhado aoUlysses, então chefe daReportagem Geral. Apresentei-me. Mal interrompeu o quefazia. Deu-me um recorte dejornal e ordenou: escreva 20linhas sobre esta notícia.

Passei uma eternidade nosuplício dessas 20 linhas.Terminei, lá estava Ulysses empé, conversando com alguém.Aproximei-me e estendi a lauda.Ele a pegou e amassou sem ler.Apenas disse:

– Isso não serve nem parajogar no lixo. Faça de novo!

Puta que pariu! No que foique errei? Se ele nem leu…

Obedientemente, lá fui euescrever de novo.

Mais algumas horastorturantes depois, tirei a laudada Olivetti e lá fui novamenteem direção ao chefe – que maisuma vez estava em pé falandocom alguém. “Porra, como essecara conversa…” Estendi a lauda.

Ele pegou e novamente nemleu. Amassou o papel e me disse:

– Ótimo, agora já dá parajogar no lixo. Volte amanhã.

A bolinha voou em direção àlata e o foca retirou-se com orabo entre as pernas, humilhado,espumando de ódio.

Tenho essas imagens namente como se tivessemocorrido ontem. Inesquecível.

Nos tempos que se seguiram,claro, descobri que aqueletratamento era pura diversãodele. E que aquele velhorabugento não era um velho

rabugento. Só fazia o gênerorabugento para encher o sacodos focas. Hoje me divirtolembrando aquele dia – e sintoenorme saudade!

Convivemos pouco tempo,pois Ulysses logo deixou ojornal, junto com Mino Carta.E poucas vezes o encontrei nosanos seguintes. Mas só melembro dele como um bomsujeito.”

TÃO GOMES PINTOSobre o Uru: devo minha

carreira ao Ulysses Alves deSouza. Trabalhávamos mesa amesa no inesquecível NotíciasPopulares , do Jean Mellé. Ele era‘editor de Internacional’ do NP.Devia ter outro emprego, poissempre chegava na Redação porvolta das 18h30min.

Não havia, na época, sequerteletipos. Motoboys precursoreslevavam o material das agênciasinternacionais em rolos edeixavam nas portarias. Comotambém não tínhamos porteiro,muito menos portaria, váriasvezes os entregadores da AP, UPI,France Presse, Ansa, etc….deixavam os rolos na minhamesa, vizinha à do Ulysses, paraeu entregar ao editor deInternacional.

Escusado dizer que o Ulysses,também conhecido como Uru,era o único funcionário daeditoria. Ele chegava, limpava amesa, me pedia os rolos com onoticiário das agências…Iadesenrolando e lendo… Às vezesachava alguma notíciainteressante, principalmente nomaterial da Ansa e da FrancePresse. Então gritava para oNarciso Kalili, que era o diretorde Redação: “Eu tenho umachamada pra primeira”. Gritava,porque a mesa do Kalili ficava amenos de 10 passos de distância.Lembro do dia em que o Urugritou: “Eu tenho a manchete!”De fato, a manchete do NP nodia seguinte saiu da áreainternacional, notíciatransmitida pela Ansa ou FrancePresse: “Família janta rapaz comvinho na Argentina!”.

Esse era o Uru, com quem eutrabalharia no JT e na Veja poranos a fio…

Um jornalista à moda antiga,como não se fazem mais…

(Fonte: 50anosdetextos.com.br)

desembarcaram no porto do Valongo no Rio de Janei-ro”, afirmou.

Confete lembrou que foi nesse momento que Abdiasse juntou a Elisa Larkin do Nascimento, que era acusa-da pelo movimento negro afro-americano de ser agen-te da Agência de Inteligência norte-americana-CIA:

“Era um momento crítico e os Panteras Negras di-ziam ‘cuidado com essa mulher’, porque ela é da CIA.Mas graças a ela o nosso mestre Abdias Nascimentoevoluiu ainda mais a partir daqueles anos. Essa é umaquestão que temos que discutir hoje. O porto do Valon-go está aí e por ele se constrói a nossa História. Esse ho-mem nos deixou um legado e cabe a cada um de nósprosseguir. Axé Abdias, Axé Elisa!”, declarou o radialista.

Um memorial no RioAproveitando a deixa de Rubem Confete, o Coor-

denador da Comissão Contra a Intolerância Religio-sa, Ivanir dos Santos, sugeriu que o Estado do Rio ergaum memorial em homenagem a Abdias Nascimentono antigo porto do Valongo. A proposta foi apresentadaao Governador Sérgio Cabral, que gostou da idéia edisse que vai aguardar uma manifestação da famíliapara tratar do assunto.

Para Ivanir dos Santos, a importância de Abdias parao Movimento Negro brasileiro pode ser medida pelacoerência entre o discurso e as atitudes:

“Ele foi uma fonte de inspiração para mim, princi-palmente pela coerência que manteve até os últimosdias de sua vida. Abdias nunca abandonou a agenda domovimento negro, nem quando assumiu cargos públi-cos, como Secretário de Estado no Rio, Deputado eSenador. Ele foi um dos pioneiros dessa agenda. A he-rança que deixou para nós, vamos deixar para as outrasgerações”, afirmou Ivanir dos Santos.

O historiador Joel Rufino dos Santos, que conviveu comAbdias por mais de três décadas, destacou a firmeza comque eletratava a causa política, sem nunca perder a genti-leza no trato pessoal, inclusive com seus oponentes:

“Sou testemunha da luta dele há 40 anos. A suabatalha contra o racismo foi um embate pela justiçasocial. Mas o que sempre me impressionou era o con-traste entre a ênfase que ele dava nos discursos e a de-licadeza nas relações pessoais”, declarou Joel.

A atriz Léa Garcia – que foi casada com Abdias e umadas integrantes do Teatro Experimental do Negro-TEN,fundado por ele em 1944 – disse que a emoção do mo-mento quase a impedia de descrever tudo de importanteque ele fez em relação à política no Brasil e em benefí-cio da igualdade racial dentro do País e no mundo:

“Abdias é o nosso ícone, não o estamos perdendo, poisele estará sempre presente nas questões políticas e ra-ciais brasileiras. Eu agradeço ao Abdias o incentivo queme deu, por ter me dado essa possibilidade de represen-tar. Eu sou agradecida de ele ter feito parte da minhavida como companheiro e pai dos meus filhos, avô dosmeus netos. Ele foi uma pessoa que me orientou muitodentro da minha profissão”, afirmou Léa Garcia.

A família de Abdias informou que as cinzas do lídernegro serão depositadas na Serra da Barriga, em Alagoas,local onde foi mantido pelos escravos o quilombo dosPalmares, o maior símbolo da resistência negra no Brasil,durante o período da escravidão.

O poeta Ele Semog, biógrafo de Abdias, falou sobrea importância da trajetória do líder negro:

“Abdias, de fato, é uma referência de luta do movimen-to negro do século passado, e continua sendo neste sé-culo e enquanto o racismo não for superado no Brasil.Ele conseguiu, ao longo de sua vida, nunca fraquejar emrelação às lutas do povo negro. E também em relação àconsciência de uma identidade racial de matriz africa-na, com a responsabilidade que ele tinha como cidadãona construção da democracia brasileira. O mais bonitoda vida dele foi ter conseguido ser um líder quase queunânime para todos nós do movimento negro”.

Ulysses, o homem do texto