jornal ccj em ação nº 5

12
UFPB - Centro de Ciências Jurídicas - Ano 1 - Nº 5 - Outubro/Novembro de 2010 - Venda Proibida Yulgan Tenno* Na sociedade, a incerteza, o indeterminismo, a imprevisibili- dade, a entropia e as possibili- dades predominam e provocam, como resultado, o caos. O siste- ma surge como meio de mitigar tal complexidade e estabelecer uma organização e uma ordem entre os elementos que o com- põem. Para a teoria de Niklas Luhmann, existe uma preocupa- ção em explicar de que forma é possível nascer a ordem a partir do caos. Para o Coronel Nasci- mento, entretanto, a ordem do “sistema” é o que provoca o caos. Luhmann foi um jurista e sociólogo que viveu na Alemanha, durante o sécu- lo XX. Como pensador, ele desenvolveu a teoria dos sistemas autopoiéticos, que são sistemas que possuem capacidade de se autoproduzir. Para Luhmann, os sistemas aspiram a minimizar a comple- xidade do ambiente, que se encontra desordenado. O sistema aumenta a pro- babilidade de prever as ações, uma vez que seleciona e retira, do ambiente, as possibilidades que lhe fazem sentido, de acordo com a função que desempenha, tornando o ambiente menos complexo para ele e aumentando a própria com- plexidade no seu interior. Para dirimir as complicações geradas pela complexida- de interna, o sistema se autodiferencia, provocando o surgimento de subsiste- mas. O sistema social, por exemplo, chegou a um nível de complexidade tal que se viu necessária sua diferenciação em subsistemas como o político, o jurídi- co e a medicina, os quais, por sua vez, geraram o Estado, o direito público, a fisiologia e, assim, sucessivamente. O Coronel Nascimento, da série de filmes “Tropa de Elite”, entende o “sistema” como “uma articulação de inte- resses escrotos”, algo impessoal, que não depende da vontade dos sujeitos, apenas das possibilidades internas e externas. Para Luhmann, o conceito de sistema tem que ser compreen- dido em contraposição ao con- ceito de ambiente. O sistema se estabelece, então, a partir de um corte, de uma ruptura com o ambiente, capaz de criar nele uma estrutura que é relati- vamente independente de todo o resto e, consequentemente, diferente do mesmo. O “sistema” é sempre o alvo do Subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o Coronel Nascimento. Para ele, a organização do “sistema” financia o tráfico de drogas e as milícias da capital fluminen- se e, de maneira lancinante, contribui para as incidentes violações de direitos humanos nas comunidades dessa cida- de, perpetuando o caos social, a “guerra civil”. Esse sistema a que se refere o Coronel Nascimento é um tipo de sub- sistema do sistema social, definido, no presente artigo, como sistema corrompi- do, já que se utiliza dos mecanismos e das ferramentas do sistema político, mas seleciona possibilidades e expecta- tivas diferentes, formando um novo tipo de subsistema: enquanto, no sistema político, o real interesse é promover o bem público com a intenção de se con- servar no poder, para o sistema corrom- pido, o interesse é promover o bem pri- vado de seus atores, para se manter, através de atividades ilícitas, com o po- der, uma vez que não necessariamente quem está no poder, entendido como Nesta edição 3 | Entrevista | Irandhir Santos, o deputado “Fraga” de Tropa de Elite 2, fala da experiên- cia no filme de José Padilha e da problemática que seu enredo evidencia 4 | Sociedade, conhecimento e práxis | Grupo de pesquisa Biotecnologia, Biodireito e Meio Ambiente em direitos humanos 5 | Mundialistas | Instrumentos normativos da OIT e seus reflexos no plano nacional de combate ao trabalho escravo, por Dalliana Vilar 6 | Espaço Discente | A tecnocracia e o pecado dos justos: esquecemos a justiça? 8 | Espaço Discente | Direito e literatura: quando a lei encontra a arte 11 | Espaço Docente | Subjetividade, violência e segurança pública, por Nelson Gomes Jr. 12 | Cinefilia! | O “Clube dos Cinco” e uma lição de tolerância, por Carlos Nazareno Continua na página 2 >> twitter.com/ccjemacao “Para o Coronel Nascimento, a ordem do „sistema‟ é o que provoca o caos” TROPA DE ELITE 2 E A “LÓGICA DO SISTEMA” O discurso do personagem Coronel Nascimento estabelece uma importante ponte de compreensão entre o contexto retratado no filme de José Padilha e a “teoria dos sistemas” do sociólogo alemão Niklas Luhmann. Com isso, se desenha uma das possíveis vias de entendimento da funcionalidade da violência, da corrupção e da violação aos direitos humanos no Brasil.

Upload: douglas-pinheiro-bezerra

Post on 25-Jun-2015

182 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

5ª edição do jornal CCJ EM AÇÃO, do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.

TRANSCRIPT

Page 1: Jornal CCJ em Ação nº 5

UFPB - Centro de Ciências Jurídicas - Ano 1 - Nº 5 - Outubro/Novembro de 2010 - Venda Proibida

Yulgan Tenno*

Na sociedade, a incerteza, o indeterminismo, a imprevisibili-dade, a entropia e as possibili-dades predominam e provocam, como resultado, o caos. O siste-ma surge como meio de mitigar tal complexidade e estabelecer uma organização e uma ordem entre os elementos que o com-põem. Para a teoria de Niklas Luhmann, existe uma preocupa-ção em explicar de que forma é possível nascer a ordem a partir do caos. Para o Coronel Nasci-mento, entretanto, a ordem do “sistema” é o que provoca o caos.

Luhmann foi um jurista e sociólogo que viveu na Alemanha, durante o sécu-lo XX. Como pensador, ele desenvolveu a teoria dos sistemas autopoiéticos, que são sistemas que possuem capacidade de se autoproduzir. Para Luhmann, os sistemas aspiram a minimizar a comple-xidade do ambiente, que se encontra desordenado. O sistema aumenta a pro-babilidade de prever as ações, uma vez que seleciona e retira, do ambiente, as possibilidades que lhe fazem sentido, de acordo com a função que desempenha, tornando o ambiente menos complexo para ele e aumentando a própria com-plexidade no seu interior. Para dirimir as complicações geradas pela complexida-de interna, o sistema se autodiferencia, provocando o surgimento de subsiste-mas. O sistema social, por exemplo,

chegou a um nível de complexidade tal que se viu necessária sua diferenciação em subsistemas como o político, o jurídi-co e a medicina, os quais, por sua vez, geraram o Estado, o direito público, a fisiologia e, assim, sucessivamente.

O Coronel Nascimento, da série de filmes “Tropa de Elite”, entende o “sistema” como “uma articulação de inte-resses escrotos”, algo impessoal, que não depende da vontade dos sujeitos, apenas das possibilidades internas e externas. Para Luhmann, o conceito de

sistema tem que ser compreen-dido em contraposição ao con-ceito de ambiente. O sistema se estabelece, então, a partir de um corte, de uma ruptura com o ambiente, capaz de criar nele uma estrutura que é relati-vamente independente de todo o resto e, consequentemente, diferente do mesmo.

O “sistema” é sempre o alvo do Subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o Coronel Nascimento. Para ele, a organização do “sistema” financia o tráfico de drogas e as milícias da capital fluminen-

se e, de maneira lancinante, contribui para as incidentes violações de direitos humanos nas comunidades dessa cida-de, perpetuando o caos social, a “guerra civil”. Esse sistema a que se refere o Coronel Nascimento é um tipo de sub-sistema do sistema social, definido, no presente artigo, como sistema corrompi-do, já que se utiliza dos mecanismos e das ferramentas do sistema político, mas seleciona possibilidades e expecta-tivas diferentes, formando um novo tipo de subsistema: enquanto, no sistema político, o real interesse é promover o bem público com a intenção de se con-servar no poder, para o sistema corrom-pido, o interesse é promover o bem pri-vado de seus atores, para se manter, através de atividades ilícitas, com o po-der, uma vez que não necessariamente quem está no poder, entendido como

Nesta edição

3 | Entrevista | Irandhir Santos, o deputado “Fraga” de Tropa de Elite 2, fala da experiên-

cia no filme de José Padilha e da problemática que seu enredo evidencia

4 | Sociedade, conhecimento e práxis | Grupo de pesquisa Biotecnologia, Biodireito e

Meio Ambiente em direitos humanos

5 | Mundialistas | Instrumentos normativos da OIT e seus reflexos no plano nacional de

combate ao trabalho escravo, por Dalliana Vilar

6 | Espaço Discente | A tecnocracia e o pecado dos justos: esquecemos a justiça?

8 | Espaço Discente | Direito e literatura: quando a lei encontra a arte

11 | Espaço Docente | Subjetividade, violência e segurança pública, por Nelson Gomes Jr.

12 | Cinefilia! | O “Clube dos Cinco” e uma lição de tolerância, por Carlos Nazareno

Continua na página 2 >>

twit

ter.

co

m/c

cje

ma

ca

o

“Para o Coronel Nascimento, a ordem do „sistema‟ é o que

provoca o caos”

TROPA DE ELITE 2 E A “LÓGICA DO SISTEMA” O discurso do personagem Coronel Nascimento estabelece uma importante ponte de compreensão entre o contexto retratado no filme de José Padilha e a “teoria dos sistemas” do sociólogo alemão Niklas Luhmann. Com isso, se desenha uma das possíveis

vias de entendimento da funcionalidade da violência, da corrupção e da violação aos direitos humanos no Brasil.

Page 2: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 2

Editorial

Um momento reflexivo: quando é preciso encarar críticas e desafios

O leitor tem em mãos a última edição de

um jornal que foi muito além das tímidas perspectivas traçadas por alguns tímidos estudantes do curso de Direito. Embora estejamos cientes do fato de que, não obstante um ano inteiro de trabalho, algu-mas pessoas da própria comunidade aca-dêmica ainda desconheçam o CCJ EM AÇÃO, é gratificante poder acompanhar a repercussão positiva que irradia de dentro e de fora dos muros da universidade.

Para quem nos acompanha há algumas edições, parece ter ficado claro o nosso papel, ou, ao menos, pouco obscuro: não ter o pudor de encarar o Direito, da forma como hegemonicamente se apresenta (e, na nossa situação, o ensino do Direito), como algo que nos prontifica para uma mecanização técnica, subtrai nosso poten-cial de indagação e nos insere em velhas estruturas funcionais.

O Direito, junto aos seus operadores, precisa encontrar referenciais de diálogo e compreensão capazes de legitimá-lo frente às demandas de uma democracia comple-xa, que exige mais do que ele pode ofere-cer, mas nele “aposta as fichas”. É preciso

entender conjunturas, anseios e “forças normativas” que viabilizem a conexão en-tre o jurídico e o social, que sustentem o discurso dos direitos humanos, da dignida-de e, sobretudo, da justiça (diga-se no seu sentido material, diga-se no sentido institu-cional - que passa, há tempos, por uma grave crise de métodos e de sujeitos).

Certo que o Direito não vai mudar o mundo, porém mais certo ainda que o mundo há que se deparar com um grande obstáculo à possibilidade de mudança se o sentido do jurídico não encontrar um dife-rencial qualitativo. E talvez isto aqui, este tablóide, seja um pouco desse sentimento a que alguns preferem empregar a lógica da utopia.

Ouvimos, também, críticas negativas que positivamente afetaram nossas estra-tégias. E com os críticos, em especial, temos uma grande dívida, pois, graças a eles, projetamos algo maior e melhor que, sob a aurora de um novo ano, promete amadurecer a empreitada persuasiva de um ideal comum. Não é nossa “última qui-mera”, como haveria de supor o poeta.

Por Douglas Pinheiro Bezerra

Em nome do OBSERVATÓRIO DO CCJ

Uma iniciativa do grupo OBSERVATÓRIO DO CCJ

Editores

Alysson Guerra Andrezza Melo Ariadne Costa

Caroline Carvalho Daniella Memória Douglas Pinheiro

Magno Duran Sarah Marques Yulgan Tenno Yure Tenno

Apoio editorial

Carlos Nazareno

Revisão textual

Andrezza Melo

Projeto gráfico

Sérgio Sombra

Finalização

Douglas Pinheiro

Contato

[email protected]

Este jornal é uma produção independente. As ideias aqui expostas não necessariamente refletem a

opinião da equipe editorial.

situação política, está também com o poder.

No início do segundo filme, o Coronel Nascimento achou que o problema do Rio de Janeiro se encontrava tanto no “sistema” quanto no tráfico de drogas; no decorrer da trama, ele percebe que o tráfico é apenas uma possibilidade do ambiente selecionada pelo sistema cor-rompido para efetivar suas expectativas. Ele demorou a perceber que o grande inimigo é o próprio “sistema”, senão o único. Identificando o verdadeiro alvo, ele tenta afrontá-lo diretamente, operar den-tro dele, causar alguma alteração em sua composição e em suas ações, o que é impossível. Dentro da lógica do filme, o cargo de subsecretário é exercido nos moldes do sistema político autêntico, que desempenha a função de promover o bem público, portanto seu posto faz parte do real sistema político, e, na teoria de Luhmann, em hipótese alguma um sub-sistema pode operar diretamente no inte-rior de outro.

Com a nova batalha de Nascimento – afinal, “o inimigo agora é outro” – é como se o subsistema político tentasse operar dentro do subsistema corrompido, no entanto, leciona Luhmann, a única possi-bilidade é que um sistema estimule a automodificação do outro, com suas pa-lavras, “irritando-o”, incentivando-o a mudar, emitir mensagens, esperando que elas sejam compreendidas pelo sistema destinatário e se transformem em uma possibilidade selecionada por ele. Isso pode provocar um processo de modifica-ção interna, iniciada pelo próprio sistema.

Nascimento parece entender essa dinâ-mica e, em vez de bater de frente com o sistema, tentar operar dentro dele, pas-sando a enfrentá-lo de outro modo: atra-vés do discurso.

Na lógica de Luhmann, a estrutura que suporta o sistema social e todos os sub-sistemas decorrentes dele é a comunica-ção: essa é a característica essencial da sociedade, é sua razão última. Na medi-da em que dialogamos, discutimos, ama-mos, escrevemos ou discursamos, são emitidas diferentes mensagens que, sen-do compreendidas pelo destinatário, ge-ram comunicação e sustentam a existên-cia da sociedade.

A única maneira de o Coronel Nasci-mento irritar o subsistema corrompido é emitindo comunicação e almejar que ela seja recebida e selecionada pelo sistema destinatário, de maneira a transformá-la em possibilidade e provocar sua automo-dificação, alterar suas expectativas e sua função central. Através de um discurso na plenária da Câmara, em que denuncia a prática da corrupção, sua oração envia mensagens dotadas de expectativas ao sistema social como um todo e acaba por alcançar o subsistema corrompido.

A mensagem é selecionada pelo siste-ma, que, por um minuto, parece ter co-meçado seu processo de automodifica-ção. Ele a transforma em uma possibili-dade, sob pena de ser desmascarado, de perder sua falsa legitimidade, entretanto tudo visa apenas a manter as aparên-cias, pois tal possibilidade não é afirmada pelo sistema corrompido, que permanece articulando novos interesses, organizan-

do suas ações ilícitas e ludibriando a opinião pública. O sistema evolui em nome de sua sobrevivência, higieniza-se; nas palavras do Coronel Nascimento: “cede a mão, para salvar o braço”. O sistema é impetuoso: ele se diferencia, cria novas lideranças, modifica-se e alte-ra a maneira de agir, adapta-se, cria uma nova segmentação, nova hierarquia, ves-te novas máscaras, constrói novas estru-turas, visando iludir a opinião pública.

“É por isso, parceiro, que é tão difícil modificar o sistema”. Essa ação íngreme tem que partir de dentro e não do meio externo. É da natureza do subsistema corrompido ser ambíguo, condenando o que, de fato, defende, defendendo o que não pratica e praticando o que deveria condenar. Enquanto as condições de existência do sistema permanecerem, ele sobreviverá, estimulando a modificação da sociedade, causando a sua deteriora-ção moral e física e arrasando a vida de pessoas em nome de expectativas medí-ocres. E uma sociedade que rejeita ver essa realidade só poderia contribuir para sua perpetuidade, pois a mentira e a hi-pocrisia são, sem dúvida, os maiores fundamentos de sustentabilidade da cor-rupção.

*Aluno do 2º período 2010.1 (manhã) [email protected]

Artigo escrito sob a orientação de Henrique Lenon (monitor da disciplina de Introdução

ao Estudo do Direito II)

Page 3: Jornal CCJ em Ação nº 5

“O BOPE é isso: uma arma a favor dessa ideologia da criminalização”

ENTREVISTA - IRANDHIR SANTOS (TROPA DE ELITE 2)

Irandhir Santos é pernambucano, natural de Barreiros. Ator de teatro, cinema e televisão, se formou em Licenciatura em Educação Artística pela UFPE e, de lá pra cá, viu sua carreira artística dar um salto que, talvez, nem ele mesmo poderia su-por. Na televisão, interpretou Quaderna, em A Pedra do Reino (2007). No cinema, entre outros, atuou nos filmes A morte de Quincas Berro D‟Água (2010), Olhos A-zuis (2010), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Tropa de Elite 2 (2010), onde ganhou uma ainda maior admiração do público através do personagem Diogo Fraga, ativista defensor dos direitos hu-manos e grande crítico do “herói” Coronel Nascimento. Irandhir aceitou o convite da equipe do CCJ EM AÇÃO para um cafezinho e uma proveitosa entrevista. Confiram: CCJ - O filme Tropa de Elite 2, no fim das contas, é a favor ou contra os direitos hu-manos? Irandhir - Desde que eu li o roteiro do segun-do filme, me senti motivado a fazê-lo, porque eu senti que o Padilha (diretor) acabou acres-centando o que, no primeiro, a meu ver, faltou, que é um diálogo entre aqueles que imprimem a força e as armas para a resolução de deter-minados problemas, de um lado, e, do outro, alguém que vem pra discutir, questionar. Em Tropa de Elite 2, quando eu li o roteiro e recebi o convite, do próprio Padilha, para fazer o Fraga, percebi, nesse personagem, a possibili-dade do diálogo, mas, desde já, eu sabia que não seria um trabalho fácil porque as figuras do Capitão Nascimento e do BOPE, de algu-ma forma, se personificaram como grandes forças heróicas para a resolução dos proble-mas. Então, como dialogar com essas forças? E isso foi o começo de uma caminhada dura, porque eu aceitei o convite e disse para o Padilha: “Vamos modificar algumas coisas do roteiro, porque eu acho que é preciso que se diga NÃO a muita coisa e é preciso que o outro lado escute também”.

Eu percebo que a repercussão do filme Tropa de Elite 2 surgiu como a concretização do que é o mito “Nascimento”. E o Nascimento é um policial que representa o BOPE e a reso-lução pela força, a resolução pelas armas, a resolução daqueles que sobem no morro pra matar. Então, quando se fala sobre direitos humanos nesse filme, eu digo que ainda está muito aquém de se ter os direitos humanos como resolução, de haver o respeito em rela-ção àqueles que lutam por esses direitos.

Quando Tropa de Elite 1 foi lançado, o Padilha pretendia, com aquilo, criticar o BOPE, mas o tiro saiu pela culatra em relação ao público brasileiro. O número de pessoas inscri-tas no BOPE, depois da exibição de Tropa de Elite 1, quadruplicou. As pessoas começaram a querer entrar no BOPE, então, onde é que está a crítica nisso? Era a intenção dele? Cla-ro que não!: a intenção do Padilha era trazer a crítica. A questão é que, se você tem uma obra dessas nas mãos, é preciso ter cuidado com o público a que se vai oferecê-la e com a maneira como se oferece.

CCJ - Qual a mensagem que o personagem Fraga quer passar ao público e como ele interfere ou contribui para o processo de amadurecimento do Coronel Nascimento? Irandhir - Eu tinha muito receio em relação a esse personagem porque, quando eu escuta-va a maneira como o Capitão Nascimento se referia a ele, temia que ele saísse como o “engraçadinho”, o “babaca” da história, tradu-zindo aquela visão deturpada que a maioria das pessoas tem em relação aos direitos hu-manos (“direitos de bandidos”). E eu acho que a ideia era fazer o Fraga o mais sério e íntegro possível para que não desse margem a ne-nhum tipo de interpretação diferente. Então foi muito bem lapidado o roteiro em relação a isso, de substituir palavras que não soavam bem, coisas pequenas, mas que seriam signifi-cantes no final, do tipo “o cara dos direitos humanos já chegou lá?”, no lugar de “o baba-ca dos direitos humanos”. A nossa pretensão era que, ao final do filme, as pessoas aprovas-sem, ainda que minimamente, o personagem, que olhassem e dissessem “não, o cara tem uma visão diferente do meu herói, que é o Nascimento, mas uma visão que também funciona, que é plausível, que deve ser ouvi-da”. Fátima Toledo (nossa preparadora de elenco), no primeiro exercício que eu fiz com o Wagner Moura, nos colocou frente a frente e disse “agora falem um para o outro tudo o que vocês precisam falar”. E uma coisa muito curi-osa que aconteceu é que o Wagner estava tapando a única luz do espaço, então eu via só a sombra dele e, por essa questão, come-cei a dizer que ele era uma pessoa que “só trazia sombra”, que a luz não passava por ele. Até que cheguei ao momento de dizer “você só enxerga o que tem na frente da sua mira. Por que você não enxerga o outro lado, o lado de quem está por trás dessa mira?”.

Depois do exercício, ele veio me dizer: “Irandhir, acho que a gente achou um caminho que pode oferecer pro roteiro, que é o olhar do Nascimento em relação ao que tem por trás dele, a quem o comanda”. Daí todo o discurso dele, no filme, sobre a questão do “sistema”, de ele se perceber no meio de algo que é muito maior do que imaginava e como alguém que está sendo usado por aquele sistema. A influência do Fraga já existe antes mesmo da primeira cena do filme, com experiências co-mo essa. Mas o filme, sem dúvida, é do Capi-tão Nascimento.

CCJ - Em sua concepção, por que o discurso da violação e da repressão tem mais legitimidade nos lugares nos quais as pessoas mais sofrem com a violência? Irandhir - Não é a toa que esse discurso se dá nesses lugares. Eu acho que, resu-mindo, isso é “criminalização”, não tem outra palavra. O que se faz com essas pessoas que não servem mais ao capita-lismo? Se escanteia, se coloca “atrás do muro”. Se você for hoje à cidade do Rio de Janeiro, há algo impressionante, pois, ao sair do aeroporto para ter acesso ao centro da cidade, você passa por diversas comunidades... Sabe o que eles [os admi-

nistradores públicos] estão fazendo agora? Estão levantando um muro, e a desculpa é que isso é para “protegê-los do som dos car-ros que entra nas casas”. É isso: se escanteia, se coloca atrás do muro, criminaliza, prende e mata. Não tem outro jeito. É isso o que eles pensam e é isso o que eles fazem. Para quê o BOPE, se não para isso? É pura arma. Nesse exercício que eu fiz com Wagner Moura [o das sombras], disse: “eu não estou vendo uma pessoa, estou vendo uma arma; você é uma arma. Eu posso desarmar você aqui agora”. O BOPE é isso: uma arma a favor dessa ideolo-gia da criminalização. Eles dizem que o perigo está no morro. Então, sobem no morro e ma-tam, sobem no morro e prendem.

Para mim, é muito visível, mas a maneira como eles fazem - deturpar para justificar a violência - é impressionante. Criminalizar es-sas pessoas, para mim, é questão de classe, não tem outra resposta. Uma pesquisa realiza-da pelo PSOL do Rio de Janeiro mostrou que, nos morros, os realmente envolvidos com o tráfico de drogas representam apenas 1% da população das comunidades. Então, quando você se refere ao morro, você não pode se referir a todos como traficantes, porque 99% descem o morro para ir trabalhar. CCJ - Qual a lição que o filme pode dar aos brasileiros? Irandhir - Para quem faz cinema, o filme Tro-pa de Elite 2 é um exemplo interessante do que se pode conseguir juntando arte e entrete-nimento. O resultado é uma obra que concede uma reflexão do tema tratado e fundamenta grandes debates a respeito. O que espero é que, da tela, saiam elementos que possam vir a ser analisados e debatidos, como as ques-tões da polícia, da política, do crime - elemen-tos que afloram no filme e que possuem liga-ção com os elementos do dia-dia.

Não quero que o filme afaste as pessoas da política, ou que as deixem decepcionadas em relação aos nossos representantes, por isso tive a preocupação de frisar a trajetória limpa do “Fraga”, para que existisse a realida-de de um político honesto, com o intuito de não causar o tipo de efeito “todos são corrup-tos”. O que eu quero é que esse filme dê mar-gem à produção cultural e acadêmica, que as pessoas escrevam sobre, falem sobre, discu-tam sobre; que cause certo tipo de “agito”, que é o que eu acho que todo bom filme deve provocar. ■

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 3

Foto removida em respeito a termos contratuais

Page 4: Jornal CCJ em Ação nº 5

SOCIEDADE, CONHECIMENTO E PRÁXIS

Grupo de Pesquisa Biotecnologia, Biodireito e Meio Ambiente em Direitos Humanos

Alex Jordan*

As diversas inovações tecnológicas no cam-

po da genética são certamente um dos sinais do progresso da ciência atual. Em meio a esse desenvolvimento progressista das áreas biomé-dicas e tecnológicas, o Direito tem que se pro-nunciar acerca dos caracteres éticos das pes-quisas científicas. A necessidade de uma regu-lamentação das pesquisas genéticas e das suas repercussões estimulou uma cesura irredutível entre o Direito, a ética e a tecnologia, tendo em vista as divergências que permeiam temas polê-micos como aborto, eutanásia, manipulação genética e pesquisas com embriões humanos. O grupo de pesquisa “Biotecnologia, Biodireito e Meio Ambiente em Direitos Humanos”, sob a coordenação do Professor Doutor Robson An-tão de Medeiros e da Professora Doutora Belin-da Pereira da Cunha, tentará analisar os caminhos mais oportu-nos para uma ciência pautada na observância dos Direitos Hu-manos.

Apesar da relutância de parte da comunidade científica, é de fundamental importância fortalecer o discurso da interdepen-dência entre o progresso científico, a Bioética e os Direitos Hu-manos, estipulando os parâmetros para que as pesquisas cien-tíficas, biológicas e tecnológicas não violem os direitos huma-nos consagrados nos costumes e tratados internacionais. Em decorrência dos avanços da medicina moderna, necessita-se cada vez mais da Bioética como eixo orientador ético e legal,

para que não ocorram abusos, e que se assegure um desenvol-vimento científico e tecnológico a favor da humanidade.

A Bioética é formada pela integração dos estudos biológicos, médicos, psicológicos, antropológicos e sociológicos, tendo por escopo elucidar, estabelecer diretrizes para o direcionamento

do trabalho dos cientistas e convidar os profis-sionais à discussão sobre o que é melhor para a preservação do ser humano e, jamais, para a sua destruição. Partindo de uma perspectiva interdisciplinar, este grupo pretende buscar uma visão holística do conhecimento humano. Os encontros terão a pretensão de estimular debates e organizações envolvidas com questões éticas, legais e sociais trazidas pelas situações persistentes e atuais da Biomedicina e seus avanços. A interdisciplinaridade facultada da integração do conhecimento jurídico com o conhecimento científico contribui para formar estudantes capa-zes de pensar de maneira ampla, aliando a rigi-dez conceitual do jurídico à flexibilidade de per-cepção proporcionada por outras disciplinas, permitindo uma renovação na forma de pensar,

ensinar e trabalhar o Direito. O grupo de pesquisa “Biotecnologia, Biodireito e Meio Ambi-

ente em Direitos Humanos” vem fortalecer a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão universitária, fomentando as mentes do presente para uma análise reflexiva sobre o real, como artifício de transformação global e atuação local com e para a sociedade.■

*Aluno do 2º período 2010.1 (noite)

[email protected]

ESPAÇO DATAB (Diretório Acadêmico Tarcísio Burity)

I Torneio Interjurídico de Futsal

O Diretório Acadêmico

Tarcisio Burity – DATAB

–, do curso de Direito

da UFPB, realizou, nos

dias 23 e 24 de outu-

bro, no Ginásio de Es-

portes principal da

UFPB, o “I Torneio In-

terjurídico de Futsal”,

competição esportiva realizada com a participação das princi-

pais faculdades de Direito de João Pessoa.

Iniciativa idealizada com o fim de uma maior integração en-

tre os acadêmicos de Direito de nossa capital e do incentivo a

uma vida saudável através da prática desportiva, o evento ob-

teve grande aceitação e foi um sucesso na visão de participan-

tes, patrocinadores e do público presente.

O torneio contou com equipes representando as faculdades

UFPB, UNIPÊ, IESP e Maurício de Nassau. O título ficou com

o time representante da IESP, que venceu, na final, um dos

times da UFPB, em uma grande partida, e ainda teve seus jo-

gadores premiados com troféus de artilheiro e melhor goleiro.

Em terceiro lugar ficou uma equipe da faculdade Maurício de

Nassau.

O evento foi realizado pelo DATAB, com o apoio da Vitop-

pan, Tartaruga‟s Lanches, Central do Trigo e Secretaria de

Esportes de João Pessoa.

DATAB Social

Um dos maiores focos dos membros da atual gestão do Di-

retório Acadêmico Tarcísio Burity é a solidariedade. Cientes da

importância de auxiliar aquelas pessoas que passam por difi-

culdades das mais diversas, nosso trabalho visa sempre a an-

gariar fundos para ajudá-las. Assim, quando organizamos di-

versos eventos, separamos determinada quantia do lucro obti-

do para ser revertida especialmente em ações sociais.

Os discentes, através de suas doações, proporcionaram

alegria para as crianças do Orfanato Dom Ulrico. Com parte do

lucro da Calourada – um dos maiores da presente gestão –,

tivemos a possibilidade de ajudar duas instituições: a Comuni-

dade Bom Pastor e a Casa da Misericórdia. Posteriormente,

por meio de novos fundos arrecadados, ajudamos os idosos do

asilo Nosso Lar.

Nosso desejo é estender o DATAB SOCIAL. Conheça a

fundo essas ações pretéritas e participe ativamente do que

ainda realizaremos. O auxílio ao próximo pode realizar-se atra-

vés de doações em dinheiro, de

alimentos, de fraldas (para ido-

sos e bebês) e de materiais de

higiene. Mais que isso, sua ati-

tude pode ajudar você mesmo a

tornar o mundo um pouco me-

lhor, assim, contamos com vo-

cê. Ajude sempre! ■

Aborto: descriminalizar ou apenar?

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 4

Orfanato Dom Ulrico

Page 5: Jornal CCJ em Ação nº 5

Dalliana Vilar Pereira*

Classicamente vinculada à Antigui-

dade Clássica, a escravidão, ao longo do processo histórico, apresentou dife-rentes significados até se consolidar na sua forma hodierna, em que, não mais inerente à raça ou à guerra, nem sendo expressão de um modo-de-produção pré-capitalista, é determina-da pelo poder do capital.

Assim, intrinsecamente atrelado à clandestinidade, o trabalho escravo atual, bem como o trabalho forçado, enquanto uma de suas facetas, é ex-tensivamente combatido, seja pela sociedade internacional, seja pela or-denança interna dos atores estatais, haja vista implicarem verdadeiros res-quícios de uma época em que não havia que se falar, ao menos com a força com que hoje se proclama, em direitos fundamentais no trabalho.

Nesse passo, a Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), face a seu objetivo primordial de estabelecer pa-drões internacionais mínimos para as relações laborais, garantindo melhores condições de trabalho em toda a soci-edade internacional, dialoga com o princípio da dignidade da pessoa hu-mana, tão caro ao direito internacional dos direitos humanos e à ordenança brasileira, e, nesse ínterim, estatui normas para o combate ao trabalho escravo.

Assim é que, nas Convenções 29-/1930 e 105/1957, universalizou o con-ceito de trabalho forçado, passível de ocorrer tanto em países desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento. Passo em que estatuiu que, mesmo aquele exigido para a consecução do interesse público, deverá ser progres-sivamente abolido. De modo a se as-segurar, nessa transição, com vistas a minorar os efeitos deletérios à dignida-de humana, que a execução desse trabalho não implique o afastamento do trabalhador da sua residência habi-tual, sopesando, ainda, a religião, a vida social e a agricultura.

Em paralelo, determinou que dever-se-ão realizar exames médicos à vista de tutelar a saúde do trabalhador, bem como respeitar os vínculos familiares e conjugais. Ademais, fixou o período máximo de submissão a trabalhos for-çados não superior a 60 dias num pe-

ríodo de 12 meses e a jornada diária de labuta não superior à admitida para o trabalho livre (no caso do Brasil, oito horas diárias), sendo as horas extras remuneradas tal qual neste tipo de trabalho. Foi-se assegurado um dia de repouso semanal, assim como a remu-neração do trabalho forçado nos mes-mos moldes do trabalho livre. De sorte a se lhe aplicar a legislação protetiva contra acidentes de trabalho e molés-tias graves neste adquiridas. Tudo a ser consignado em Relatórios Anuais, para fins de fiscali-zação.

No mesmo senti-do, foi erigida a De-claração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e Seu Segui-mento, com o intuito de dar concretude à Justi-ça, conjugando cresci-mento econômico e progresso social, pelo que esta organização intergovernamental (OI) colocou à disposição dos Estados-parte seu aparato técnico, bem como comprometeu-se a assisti-los na imple-mentação desses obje-tivos, seja com auxílio econômico-financeiro, seja mobilizando seus meios de ação normativa e de investi-gação.

Assim é que, transpondo as obriga-ções assumidas internacionalmente para a âmbiência nacional, o Estado brasileiro elaborou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE), o qual preconiza uma atua-ção integrada de distintas instituições, especiamente o MPT, o MTE e o MJ, através da Polícia Federal.

Assim, estabelecendo que a escra-vidão contemporânea manifesta-se com a clandestinidade, estatuiu metas a serem alcançadas. Nesse ínterim, fixou a erradicação do trabalho escra-vo como sua prioridade, pelo que inse-riu, no Programa Fome Zero, locais identificados como focos de recruta-mento ilegal de trabalhadores como mão de obra escrava (MA, PI, PA, MT,

TO) e erigiu os crimes correlatos à condição de hediondos. Nesse passo, priorizou a manutenção de uma base de dados integrados e estabeleceu nortes para a melhoria na estrutura do Grupo de Fiscalização Móvel, com uma reestruturação dos quadros des-sas instituições e do material disponí-vel para atuação. Pari passu a que destacou ações específicas de consci-entização, capacitação e sensibiliza-

ção. Também, com sua política de rein-serção social dos trabalhadores redu-zidos à condição de escravo, concedeu-lhes o benefício do seguro-desemprego e estabeleu a desa-propriação dos imó-veis respectivos pelo

INCRA, devido ao des-virtuamento de sua fun-ção social. De tal forma que, face às considerações espo-sadas, resta evidencia-da a imprescindibilidade do diálogo entre o inter-nacional e o nacional para a concretização do direito humano funda-mental a um trabalho digno, livre, remunerado e saudável. De sorte tal a indicar a implementa-ção dos preceitos da OIT no âmbito do PNE-

TE a própria efetividade das normas de direito internacional, a repousar no princípio do pacta sunt servanda, co-mo reflexo da percepção de que, dian-te da globalização hodierna, não mais se pode pensar o Direito do Trabalho tão-somente à luz da CLT e da CF, mas sim há de se conjulgá-lo às nor-mas internacionais, com vistas à con-cretização dos direitos fundamentais que lhe são inerentes.■

*Bacharelanda em Direito (UFPB), cur-

sou Relações Internacionais (UEPB) de 2007 a 2009. Monitora de Direito Proces-sual Civil, Extensionista (NAJAC/UFPB), Estagiária do MPT e Pesquisadora do VI Anuário Brasileiro de Direito Internacio-

nal (CEDIN/MG).

[email protected]

MUNDIALISTAS.com.brMUNDIALISTAS.com.br Opiniões Inteligentes sobre Relações Internacionais (ISSN 2176Opiniões Inteligentes sobre Relações Internacionais (ISSN 2176--5405)5405)

INSTRUMENTOS NORMATIVOS DA OIT E SEUS REFLEXOS NO PLANO NACIONAL DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO

“O trabalho escravo

atual, bem como o

trabalho forçado, en-

quanto uma de suas

facetas, é extensiva-

mente combatido, se-

ja pela sociedade in-

ternacional, seja pela

ordenança interna

dos atores estatais”

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 5

Page 6: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 6

ESPAÇO DISCENTE

A TECNOCRACIA E O PECADO DOS JUSTOS Igor Isídio Gomes da Silva*

Advogados de formação recente deparam-se com dúvidas inquietantes em suas primeiras demandas. “Seria com dois esses a grafia correta de „petição‟? Como redigir um mandato (sic) de segurança?”. Tornar-se-ia im-possível citar todas as anedotas rela-cionadas ao despreparo técnico de uma nova geração de operadores do Direito. Mas o que todos esses carica-tos exemplos guardam em comum – além da culpa pelas gargalhadas no corredor – é uma forte advertência, esteja ela mais ou menos explícita, ao resultado desastroso de uma má for-mação acadêmica, fomentada pela flexibilidade dos critérios avaliativos e pela recente explosão dos cursos jurí-dicos de qualidade questionável. “Sejam lidos os manuais!” é o imperati-vo da tecnocracia e o mantra dos bons docentes e discentes.

Mas os – cada vez mais cometidos – erros crassos na prática jurídica en-cerram em si um viés ainda mais per-turbador: evidenciam deficiências na esfera técnica dos recém-formados, gerando, em contrapartida, uma maior – e, às vezes, exagerada – preocupa-ção das boas faculdades com o com-pleto domínio da tecnologia do Direito pelos seus alunos. Fica eclipsado, des-tarte, um problema menos evidente e não menos preocupante: no esforço em dedicar todo o tempo a assimilar os ensinamentos dos volumosos manuais, acabamos por ter um considerável do-mínio técnico, mas não aprendemos (ou desaprendemos) a ser justos.

A prática daquilo que é justo tem se tornado objetivo se-cundário na vida dos novos juristas. Mas antes que essa última afirmação leve-nos a um maior aprofundamento em seu tema, cabe aqui um necessário esclarecimento em razão do caráter polissêmico do termo “justiça”. Aristóte-les, no livro V de sua Ética a Nicôma-co, já diferenciava nitidamente dois conceitos para os quais nosso idioma nos deu uma única palavra. Há a justi-ça como conformidade ao direito e eri-gida como instituição judiciária (to di-kaion); diferente da virtude daquele que é justo, da justiça moral (dikaiosunè). É sobre esta última e mais bela noção que se pretende refle-tir aqui.

O mesmo Aristóteles, também no mesmo livro, classifica a justiça como lei de coexistência das demais virtu-des; “virtude completa”. Cravada no ápice entre dois abismos – como as demais virtudes – a justiça é o meio-termo entre o egoísmo e o altruísmo cego; o desejo sincero de atribuir a cada um aquilo que é seu. Longe de ser conceituação definitiva, a noção aristotélica é apenas a pedra angular de uma discussão que vem, no trans-correr da história, alternadamente au-mentando e diminuindo a relevância desse mesmo conceito para o Direito.

Sendo as virtudes, então, um cons-tante esforço para manter-se em um ápice tenuemente equilibrado entre dois vícios, poderiam elas ser ensina-das? Teriam as faculdades de Direito o poder de nos purificar o espírito, trans-formando-nos em justos? Alain diria que “a justiça pertence à ordem das coisas que se devem fazer justamente porque não existem”, e “só existirá se a fizermos”. Logo, somos justos não quando sabemos ou pensamos saber o que a justiça é (ou deve ser), mas sim quando colocamos nossos valores

morais em prática, vividos em ato. Mui-to antes de purificar nossos espíritos, as faculdades têm o dever de atiçá-los, inquietá-los, levá-los

à estupefação diante da incerteza so-bre o que se diz justo ou injusto. É a partir das reflexões filosóficas - vistas por muitos como supérfluas à forma-ção de bacharéis necessariamente técnicos - que podemos saber o quão longe nosso ser está do dever ser, sentindo-nos, dessa forma, impelidos a continuar equilibrando-nos no estreito ápice da justiça.

As tentativas de abstrair a justiça do Direito, podendo assim elevá-lo à cate-goria de ciência, revelaram-se, no mí-nimo, insuficientes e ainda mais com-plicadoras, pois nos levam a escolher a justiça de Creonte e não a de Antígo-na, a do Führer e não a dos judeus, a

dos juristas e não a dos justos... O po-sitivismo jurídico, examinado em suas manifestações mais ortodoxas, teoriza o Direito como fenômeno puramente normativo e aparta-o claramente da justiça. Faz dele um filho rebelde que expulsou a própria mãe de seu pedes-tal de autoridade, brandindo o gládio que dela tomara. E qual seria, ainda alegoricamente, a situação mais ade-quada ao Direito de nossos dias? A de um filho que, com o braço fortalecido pela sua institucionalização, mantém empunhado o gládio, mas coloca-se docemente ao lado e bem perto de sua mãe para ouvir-lhe os conselhos.

A maior fatia de tempo dos estudan-tes de Direito é dedicada aos quilogra-mas de um vade-mécum e aos quilô-metros de artigos a serem percorridos, decodificados, memorizados... É esfor-ço necessário e louvável, mas até aí só conseguimos ser tão bons quanto o mais comum dos computadores. Se acreditamos ser a justiça o ápice teleo-lógico do Direito, precisamos ir além do preto no branco dos códigos. Precisa-mos daquela que é a marca de nossa humanidade – a Filosofia – a alimentar uma inquietante chama de dúvida em nossa consciência, interpelando-nos a todo momento: “o que é ser justo?” E na eterna busca por um dever-ser, a-cabamos sendo.

Pascal, no seio das concepções teológicas da justiça, teria afirmado que “só há dois tipos de homens: os justos que se creem pecadores e os pecadores que se creem justos.” Este-jamos, então, empenhados para que das faculdades de Direito saiam menos memorizadores de códigos e mais pe-cadores. E que estes - ao menos! - não pequem contra a já tão maltratada Lín-gua Portuguesa. ■

*Aluno do 2º período 2010.1 (manhã) [email protected]

“Acabamos por ter um considerável domínio

técnico, mas não apren-demos (ou desaprende-

mos) a ser justos”

“É a partir das reflexões filosófi-

cas que podemos saber o quão

longe nosso ser está do dever

ser”

Page 7: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 7

ESPAÇO DISCENTE

A SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL E OS 20 ANOS DO ECA: CRIMINALIZAR É EXAGERO?

Clara Rodrigues, Filipe Lins e Laryssa Brilhante*

A Síndrome da Alienação Pa-

rental, conhecida popularmente como SAP, é um processo de cu-nho psicológico que ocorre nos ambientes familiares, o qual con-siste em programar uma criança para que ela odeie um de seus genitores sem justificativa, por influência do outro genitor com quem a criança mantém um víncu-lo de dependência afetiva e esta-belece um pacto de lealdade in-consciente.

A SAP passou a fazer parte de muitos processos judiciais brasileiros há aproximadamente oito anos, e chamou a atenção não só de juristas, mas também de psicólogos e médicos, principalmente pediatras e psiquiatras. A verdade é que, com o crescimento quantitativo dos divór-cios e o processo de “banalização” do casamento, construir e desconstruir uma família passou a ser fato corriqueiro, ge-rando uma quantidade imensa de ex-mulheres e ex-maridos. E, no meio des-ses vínculos rompidos, fica a criança, fruto da ex-união.

A gênese da síndrome está associada à dissolução do casamento, ou o findar de um relacionamento conjugal, que se caracteriza por conflitos entre os cônju-ges, na presença dos filhos, que, na mai-oria das vezes, ao ser determinada a guarda, ficam com a mãe. A ocorrência do ato está no momento em que se co-meça a construção de um perfil alienador por parte de um dos cônjuges. Assim, inicia-se a elaboração de uma imagem completamente negativa do outro genitor e, portanto, a alienação principia-se.

Convém salientar que, pelo fato de geralmente a mãe ficar com as crianças, a maior parte dos alienadores é do sexo feminino, mas isso não significa que o perfil alienador envolva só a mulher, e sim os dois lados da moeda, ou seja, tanto o pai quanto a mãe.

O alienador apresenta comportamen-tos característicos, sempre dificultando a comunicação e interação da criança alie-nada com o outro genitor, também vítima da alienação. Atitudes como recusar pas-sar chamadas telefônicas aos filhos; to-mar decisões importantes sem consultar o outro genitor; impedir que este faça visitas; trocar (ou tentar trocar) nomes e sobrenomes; desvalorizar os presentes dados pelo outro genitor à criança; “esquecer”, com freqüência, de avisar sobre compromissos importantes

(dentista, médico, psicólogo, eventos escolares); ridicularizar o outro genitor na presença dos filhos; e recusar-se a infor-mar as atividades praticadas pelos mes-mos (esportes, grupos teatrais, escotis-mo, etc.), são alguns comportamentos típicos do alienador.

Diante de tal perfil, já é possível per-ceber a tortura e a opressão que sofre a criança alienada. Sendo construída essa realidade no ambiente familiar, passam a ser produzidos problemas psicológicos muito graves. Mas surge um outro pro-blema: como diferenciar os casos de abuso ou descuido dos casos da síndro-me de alienação parental?

Em muitas situações, o genitor acusa o outro de abusar (fisicamente e sexual-mente) dos filhos, ou mesmo de descui-dar da alimentação, higiene e educação da criança. Neste momento, os profissio-nais envolvidos no caso, tanto psicólogos quanto promotores, juízes, psiquiatras e educadores, precisam ter muito cuidado, porque abuso ou descuido grave não podem se enquadrar na SAP.

Em casos de SAP, quando entrevista-do, o filho não vai recordar imediatamen-te do que passou, porque de fato não sofreu abuso ou descuido, diferentemen-te do que ocorre com o filho abusado, quando é necessária apenas uma pala-vra para ativar sua memória.

Dando um grande passo para a luta

contra essa síndrome, no dia 26 de agosto de 2010 finalmente foi sancionada, pelo presidente da República, a lei nº 12.318, que vem em auxílio de pais vítimas da SAP. Agora, definitivamente, ape-sar de algumas objeções, é tipifi-cado como crime a “interferência na formação psicológica da crian-ça ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

Alguns acreditam ser um exagero tipi-ficar como crime a alienação parental. Diante do que foi exposto aqui, fica mais do que provado que a SAP é uma forma de tortura psicológica, que agride seres vulneráveis. Milhares são as justificativas jurídicas que ratificam a necessidade da nova lei.

A Síndrome de Alienação Parental desobedece ao art.17 do Estatuto da Criança e do Adolescente, já que engen-dra prejuízo à integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, bem como ao exercício equânime do poder familiar, pela mãe e pelo pai.

Neste ano de 2010, o Estatuto da Cri-ança e do Adolescente completou vinte anos de existência. Vitórias importantes aconteceram desde aquele 13 de julho de 1990, porém a realidade que bate à nossa porta, diante de tantas teorias e leis, é a de que a situação das crianças e dos adolescentes no Brasil ainda é críti-ca.

Todos os familiares são necessários na educação da criança e do adolescen-te, e não se pode permitir que uma atitu-de criminosa como a alienação parental ocorra. O amor entre o marido e a espo-sa pode acabar, mas, entre pais e filhos, jamais.

A aprovação da lei nº 12.318 é fato para ser comemorado porque vem em auxílio daqueles que trabalham em favor da infância e da juventude, que reconhe-cem a importância dos brasileiros meno-res de 18 anos. Agora, cabe aos profis-sionais da área jurídica, educacional e psicológica garantir a eficácia dessa nor-ma.■

*Alunos do 2º período 2010.1 (manhã) [email protected] [email protected] [email protected]

“O alienador apresenta comportamentos caracte-rísticos, sempre dificultan-do a comunicação e intera-

ção da criança alienada com o outro genitor, tam-bém vítima da alienação”

Page 8: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 8

ESPAÇO DISCENTE

DIREITO E LITERATURA: QUANDO A LEI ENCONTRA A ARTE

Ive F. Cândido e Maria Angélica*

Pensar as comunicações entre Direito e literatura está longe de ser uma novida-de. As duas disciplinas, caras à tradição ocidental, partilham uma relação que, em tempos passados, tinha limites turvos: basta lembrar que, sobretudo na Antigui-dade Clássica, os juristas costumavam ser, dentre outras coisas, também ho-mens de letras. O jurista medieval, igual-mente, tinha consciência de atuar no âmbito literário do qual partia para trans-formar a doutrina. Somente com a passa-gem para o mundo moderno, que traz consigo o processo de racionalização e positivação do Direito, é que aquela rela-ção passa a provocar estranhamento. Criam-se as dicotomias técnico/estético, normativo/artístico, e outras, que trazem em comum a impermeabilidade entre as categorias.

O campo reputado como “direito e literatura” pode ser visto como uma das formas de manifestação de um movimen-to maior, que busca as conexões entre Direito e arte, bem como parte do fenô-meno da proliferação de tentativas de encontrar novas bases interpretativas para o Direito. São uma reação à dogmá-tica jurídica moderna, excessivamente formalista, pretensamente autossuficiente e fechada sobre si mesma. Tais ideias encontram amparo no pensamento de Ronald Dworkin, que sustenta ser possí-vel melhor compreender a questão da interpretação do Direito lançando mão de métodos interpretativos de outras áreas do conhecimento, aproveitando-se do grande número de teorias da interpreta-ção já testadas, incluindo aquelas que contestam a divisão categórica entre descrição e valoração –- ideia que, em sua opinião, levou ao enfraquecimento da teoria jurídica. Nesse contexto, a inter-pretação literária sobressai como privile-giado instrumento.

O mais expressivo estudo acadêmico das pontes possíveis entre Direito e lite-ratura tem início nos Estados Unidos, na década de 70, no âmbito do Law and Literature Movement, fato que talvez ex-plique a profusão de disciplinas que se relacionam com a temática nas universi-

dades ame-ricanas, em contraposi-ção à inexis-

tência das mesmas nos currículos das faculdades de Direito brasileiras. À exce-ção de raros projetos de extensão e de pesquisa que focam no estudo de uma ou outra obra literária, e de não menos raras iniciativas de professores que le-vam a literatura para a sala de aula (geralmente como aporte ilustrativo do conteúdo programático), a temática pas-sa desprivilegiada no meio jurídico, quan-do não vista como mero diletantismo exótico.

No entanto, a experiência mostra o histórico de frutíferas interações entre Direito e literatura, que levam ao limite a discussão sobre interpretação do Direito (debate especialmente importante no campo da hermenêutica constitucional); que incentivam compreensões sobre os temas centrais da filosofia jurídica (apreendidas e posteriormente aprimora-das pela lógica funcional do Direito); que possibilitam uma contemplação mais profunda da condição humana e da natu-reza do jurídico; que levam a um maior entendimento sobre o meio social em que o Direito se desenvolve, configuran-do, para alguns, o mesmo instrumento provocador e meio através de quê se faz a reforma do Direito.

O foco neste ou naquele propósito depende da perspectiva adotada para se estudar o jurídico através do literário. A sistematização comumente utilizada deli-mita três caminhos: Direito na literatura, Direito como literatura e direito da litera-tura. O primeiro trata da representação do mundo jurídico na literatura. Compre-ende textos literários em cujos enredos reside uma questão essencialmente jurí-dica, abrindo espaço para a abordagem do justo/injusto, das relações de poder e do sentimento geral de uma sociedade em relação à sua ordem normativa. São exemplos emblemáticos o Mercador de Veneza, de Shakespeare (há inclusive quem afirme existir teorias do poder e de justiça em sua produção literária); Antígo-na, de Sófocles; O Processo, de Kafka; Crime e Castigo, de Dostoiévski; Os Mi-seráveis, de Victor Hugo; O Estrangeiro, de Camus, dentre outros diversos.

O segundo caminho vê o Direito e suas peculiaridades procedimentais co-mo essencialmente literários. É o espaço da tomada da teoria literária como mode-lo para a hermenêutica jurídica, após a conclusão sobre a inexorabilidade da

interpretação do texto nor-mativo. Tam-bém no Direito (posto que expresso atra-vés de lingua-

gem), assim como na arte, é necessária a atribuição de sentido ao texto, a partir da reconstrução do intérprete, implicando na transição entre o mundo da vida e a linguagem. É também o espaço em que se admite o Direito como exercício de retórica.

Quanto ao direito da literatura, não é nada mais que a coletânea de dispositi-vos normativos referentes às relações jurídicas do exercício da produção e difu-são da obra literária e os direitos daí de-correntes, como os direitos autorais, pas-sando também pelo tema da liberdade artística e de expressão, e os delitos rela-tivos a estes.

A visão predominantemente romântica da literatura é o obstáculo que se impõe à visão do Direito enquanto arte, porém, mesmo que não se admita ao jurídico tal dimensão ou qualquer utilidade prática às imbricações entre este e a literatura, res-ta inegável ponto em comum que os une: a linguagem - dimensão cuja exploração é essencial para a compreensão (levando em conta que as perspectivas técnica, científica e artística se comple-mentam nesse sentido) do fenômeno jurídico. Divagar sobre a linguagem e suas características é transitar entre ca-minhos específicos que separam-se e interpõem-se na transformação do real. Tanto o Direito quanto a arte, seguindo linha de Germano Schwartz, são abstra-ções sobre outras abstrações (sejam normas ou obras), que passam necessa-riamente pelos fatos da vida na (re)construção de seus significados.■

*Alunas do 3º período 2009.2 (manhã)

[email protected] [email protected]

“A visão predominante-mente romântica da litera-tura é o obstáculo que se impõe à visão do direito

enquanto arte”

Cosette, personagem de “Os Mi-seráveis”, de Victor Hugo: roman-ce do século XIX aborda aspectos da criminologia crítica e da digni-

dade da pessoa humana

Page 9: Jornal CCJ em Ação nº 5

INF

OR

ME

CC

J E

M A

ÇÃ

O

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 9

ESPAÇO DISCENTE

O MITO DE PROMETEU E O PAPEL SOCIAL DA UNIVERSIDADE Luiza Iolanda Cortez*

A universidade possui como funda-mentos as atividades do ensino, pesqui-sa e extensão. Por constituírem-se em perspectivas do saber (e sendo este u-no), possuem um caráter transversal, ou seja, são complementares e indissociá-veis. Em razão de sua natureza, não são postas como uma linha de conhecimento verticalizado, da qual se pressupõe uma hierarquia, mas horizontal, na qual o alu-no, o pesquisador e o extensionista, em parceria com a comunidade, fazem fluir o conhecimento por meio de suas contribu-ições.

Queremos, neste texto, tratar particu-larmente da perspectiva da extensão. Em razão de ser uma responsabilidade de educação recíproca, com desafios diutur-nos, traçamos, a título metafórico, uma conexão com a mitologia grega, uma das grandes influências da cultura ocidental: como o “mito de Prometeu” se encaixa na experiência da extensão universitária?

O nome Prometeu, segundo a etimo-logia popular, teria vindo da conjunção das palavras gregas pró (antes) e man-thánein (saber, ver). Ou seja, Prometeu equivaleria a “prudente ou previdente”, ou até mesmo a “aquele que antevê”. Responsável pela criação humana, via na sua criatura uma alma, mas percebia que o homem não havia descoberto seu

potencial. O Titã queria uma raça que confrontasse os olímpicos: era necessá-rio que os homens fossem equiparados aos deuses em termos de desenvoltura e astúcia, que enxergassem os segredos divinos e aqueles que diziam respeito a si próprios. Portanto, cabia a Prometeu ensinar os conhecimentos universais à humanidade.

Zeus guardava o segredo do fogo distante do alcance dos homens. O se-nhor dos deuses não percebia, naquela criação que andava pelo mundo entre as sombras, qualquer habilidade que a des-tacasse dos demais seres viventes. Eram obedientes e servis aos deuses, fato que era agradável aos seus olhos. Ciente desta condição, Prometeu sentia cada vez mais a urgência de organizar a alma humana. Certa vez, ao caminhar pela terra, pegou um pedaço de galho seco, voou até Hélios - o Sol - e encostou o galho no carro do deus, que se acendeu imediatamente. Prometeu possuía o fogo

dos deuses em suas mãos; então, desceu à Terra e o entregou aos homens. Era o início da revelação da sabedoria à humanida-de, que se iria fazer mais inteligente e audaz. Com o roubo do fogo, reani-mou a inteligência huma-na, que passou a confron-tar, a cada dia, o poder

dos deuses. Em razão de tamanha afron-ta, Zeus condenou Prometeu – preso pelas correntes de Hefesto ao cimo do Monte Cáucaso – a ter uma águia co-mendo-lhe o fígado. Ao fim do dia, che-gava a noite ansiada por Prometeu, e seu fígado tornava a crescer. Mesmo diante de tamanha atribulação, jamais pede perdão aos deuses. Sua dor maior é ver a humanidade que criara destruir-se na efemeridade. Teria sido assim eter-namente se não fosse por intervenção de Héracles, que matou a águia com o con-sentimento de Zeus.

A questão da rebeldia, do questiona-mento e da reinvenção são correntes na prática humana. A virtude apenas é al-cançável pela prática e estudo aplicado. Este mito não foi utilizado como uma metáfora de privilégio ou superioridade; em verdade, Prometeu, ao questionar um dogma e ao levar o fogo divino ao ser humano, foi agente e paciente da situa-ção que criou: pôde enxergar melhor, assim como foi melhor visto pelos ho-mens. Da mesma forma, compartilhou algo que estava distante de ambas as realidades. Os extensionistas e a comu-nidade são, concomitantemente, os hu-manos e o Titã Prometeu: esclarecem e compartilham vivências, questionamen-tos e projeções. E assim objetiva-se o que o Direito deve ser: próximo, passível de compreensão e presente na vida dos que necessitam dele. Esse, portanto, deve ser o estímulo e a meta dos estu-dantes que vivem a extensão universitá-ria: transformar a prática jurídica em algo claro, útil e real, apesar das correntes.■

*Aluna do 5º ano (tarde) [email protected]

Este artigo é a síntese de um trabalho apresentado no XXII Encontro de Extensão da

UFPB, em 19/10/2010.

“Os extensionistas e a comuni-dade são, concomitantemente, os humanos e o Titã Prometeu: esclarecem e compartilham vi-

vências, questionamentos e projeções”

Um setembro agitado para a comuni-dade acadêmica

O jornal CCJ em Ação e o grupo de pes-

quisa Justiça Política - coordenado pelo pro-fessor Gustavo Rabay Guerra - proporciona-ram à comunidade acadêmica da UFPB um mês de setembro bastante rico e atrativo, através de palestras proferidas por dois pro-fessores vindos de Brasília, contando com a participação de diretores de escolas superio-res e de professores do próprio CCJ.

O primeiro evento ocorreu no dia 2, com Marco Antonio Meneghetti (mestre em Ciência Política pela UnB e membro do Instituto Brasi-liense de Direito Público), com a palestra “Capitalismo de Estado: Dominação Tradicio-nal de Natureza Patrimonial e Estamental na Formação do Estado Brasileiro”. Meneghetti, no início de sua fala, fez questão de destacar positivamente o nível da comunidade acadê-mica UFPB, bem como deixar claro que aque-

le evento lhe dava muito mais a sensação de ser uma “conversa entre amigos”.

Seu discurso focou a relação entre a práxis eleitoral brasileira e a estrutura de dominação capitalista do Estado, dando ênfase ao concei-to político-jurídico da “liberdade” e como ele condiciona as idéias do “voto obrigatório”, da “representação partidária” e do “clientelismo político”. Não faltou, também, uma análise crítica acerca do fenômeno jurídico e da sua

ligação com tais estruturas: “O Direito se aris-tocratiza, se deslegitima, quando passa a olhar os fatos de cima para baixo”, disse.

A segunda palestra ocorreu no dia 14, com o professor Terrie Ralph, intitulada “Pesquisa Jurídica: Um Campo em Busca de sua Meto-dologia”. Terrie, que é doutor em Ciência Polí-tica pela Universidade da Califórnia (EUA) e pesquisador da UnB, alertou, a todo momento, para o status crítico da pesquisa científica no campo jurídico. Para ele, “a literatura jurídica é pouco tendenciosa para a incitação à pesqui-sa” e a metodologia científica do Direito é vista com maus olhos.

“Não está consolidada a ideia do que é a pesquisa jurídica e não se sabe também como ensiná-la”, disse. O professor defendeu um momento reflexivo conjunto entre os operado-res da área para amadurecer o conceito da pesquisa no Direito, bem como estimulá-la no meio acadêmico.

Mais eventos estão sendo planejados para o próximo ano. Aguardem! ■

O professor Meneghetti também participou de evento promovido pela Escola Superior de Advo-

cacia da OAB/PB

Page 10: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 10

O Encontro Regional de Estudan-tes de Direito (ERED) é um evento

em que alunos do curso se reúnem e se integram através de fóruns, mesas-redondas e grupos de trabalhos, com o fim de discutir e organizar as diretrizes de reivindicação estudantil e pautar as bandeiras defendidas em determinada região e, posteriormente, no âmbito nacional. A Paraíba, assim como Per-nambuco e Rio Grande do Norte, faz parte do grupo NE-II, que realizou, neste ano, o ERED em Natal (UFRN), entre os dias 09 e 12 de outubro.

O encontro teve como tema geral “O Direito como meio de transformação social”, uma oportunidade para proble-matizarmos a questão do ensino jurídi-co e discutirmos o espaço dos movi-mentos sociais no concreto acadêmico, o acesso à Justiça e a “crise” na Defen-soria Pública.

Na mesa de abertura, debatemos, junto com Gabriel Vitullo (Coordenador de Ciências Sociais da UFRN), Daniel Valença (professor da Universidade Rural do Semi-Árido) e José Humberto de Góes (mestre em Direitos Humanos pela UFPB), a querela de um Direito que se ensina errado (que dissocia o en-sino, a pesquisa e a extensão), escutan-do palavreados descontextualizados, unidisciplinares e dogmáticos: tudo numa bolha de sabão, abstraindo a realidade social e os conhecimentos construídos por outras áreas, fazendo-nos acreditar que podemos resolver o mundo recortan-do a vida e encaixando-a nas gavetas dos códigos.

Noaldo Meireles, Roberto Efrem, Mari-na dos Santos e Dennys Lucas, na mesa redonda “Sentindo as correntes que nos prendem: a criminalização dos movimen-tos sociais”, partiram da ideia de que a criminalização é uma criação hegemônica que cresce e aparece de forma nítida à medida que os grupos sociais se organi-zam. Fora exposto que a criminalização se inicia no Brasil em relação a índios e negros – a exemplo da Revolta de Ca-nudos, mostrada pela história como um movimento de fanatismo religioso.

Atualmente, temos o MST como grande vítima da criminaliza-

ção. Infere-se, disso, que

basta contestar o poder para ser criminali-zado. Para a diretora do MST, Marina dos Santos, essa criminalização é fruto de um processo de articulação de espaços e estruturas reacionárias e atrasadas.

No terceiro dia, tivemos a mesa-redonda sobre a crise da defensoria pú-blica e o acesso à Justiça. Os palestran-tes foram o professor Ronaldo Alencar, da FARN, a professora Ana Lia Almeida, da UFPB, o juiz federal Mario Jambo e o defensor público André Castro. O professor Ronaldo iniciou sua palestra falando sobre o acesso à Justiça e o en-tendimento atual da expressão, que vai muito além do acesso aos órgãos do Po-der Judiciário, envolvendo, também, um contexto histórico e político. O tema cen-tral de seu discurso foi a elevação da importância do acesso à Justiça como direito fundamental dentro de um Estado Democrático, além da importância de sua eficácia máxima e imediata, concluindo na necessidade de uma construção edu-cacional no âmbito popular, para que haja uma formação jurídica mínima.

Outro tema abordado foi a re-construção das ideias da mediação e da conciliação de conflitos, que ten-dem a ser consideradas como meios para desafogar o Judiciário, quando os focos, na verdade, são a harmonização e a humanização dos conflitos, para se alcançar uma solução real, que benefi-cie as partes. Após os três dias de discussões, pai-néis e oficinas, os estudantes de Direi-to da Regional já podiam colocar uma interrogação ao lado do tema do En-contro. Foi na Plenária Final que nós, estudantes, pontuamos o que quere-mos para o curso. Pontos que acredita-mos serem necessários à formação política e que não podem deixar de passar por nossos currículos, PPPs, grades, seminários, e (por que não?) encontros. Juntamos as palavras, as questões e os pontos. Procuramos uma sequência lógica - a sistematização. Penduramos. Misturamos os verbos, os sujeitos, objetos e predicados e trocamos com os demais. Escutamos as palavras, as questões e os pontos. No final, sabía-mos claramente sentir e definir quais

são os nossos propósitos. Cada um con-seguiu apreender o que cada palavra entregava como responsabilidade.

Todos saímos com o compromisso de levar as palavras, as questões e os pon-tos para outros estudantes. E, sem dúvi-da, saímos com a interrogação inicial. Tivemos a oportunidade de conhecer outras pessoas com quem compartilha-mos sonhos e perceber que há muita gente nessa caminhada. Infelizmente, poucos estudantes da UFPB tiveram a oportunidade de participar des-se momento, mas não foi a última chan-ce. No nosso Centro ocorrem discussões e construções acerca dos temas discuti-dos no ERED e também nos outros E-REDs que virão. Ajude a construir um Direito que sirva para a transformação social! ■ Cobertura do Coletivo

OS ESTUDANTES DE DIREITO E O DISCURSO DA RESPONSABILIDADE: UM BALANÇO DO ERED 2010

Projeto do CCJ/UFPB obtém 1º lu-gar em avaliação do CNJ Acadêmico

O projeto “Alternativas Penais na Pers-pectiva da Vítima: Justiça Restaurativa como um Novo Paradigma da Justiça Cri-minal para a Eficácia das Políticas Públi-cas de Reinserção Social”, do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB, foi avaliado em primeiro lugar pelo CNJ Acadêmico - uma parceria entre a CAPES e o CNJ que visa estimular a pesquisa em campos de interesse estratégico para o Poder Judiciá-rio.

O coordenador do projeto é o professor Rômulo Palitot, contando também com os trabalhos da professora Maria Coeli, vice-diretora do CCJ, e do professor Nelson Gomes Júnior, entre outros. Sua área te-mática foi “O sistema de Justiça Criminal no Brasil - seus problemas e desafios”, superando projetos de universidades co-mo UFPE, UnB e Mackenzie.

Para a professora Coeli, “as perspecti-vas são realmente muito boas no sentido não só de propiciar uma pesquisa restrita à alternatividade das penas e sua restau-ração, mas também, uma pesquisa com

uma visão diferenciada de justiça, que abarque questões filosóficas e sociológi-cas mais críticas”.

Ainda segundo a professora, a premia-ção significará investimentos na universi-dade, por meio de verbas para a pós-graduação, a níveis de mestrado e douto-rado. “A gente espera dar uma grande contribuição para a sociedade, para o sis-tema de justiça criminal e, acima de tudo, dentro de uma visão humanista, para os próprios aprisionados”, disse.■

Por Caroline Carvalho e Magno Duran

INF

OR

ME

CC

J E

M A

ÇÃ

O

Page 11: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 11

ESPAÇO DOCENTE - Prof. Nelson Gomes Júnior*

SUBJETIVIDADE, VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA: O ANALISADOR “ÔNIBUS 174”

Rio de Janeiro, 12 de junho de 2000. En-trava para os anais da falência da Segurança Pública o sequestro do ônibus 174, aconteci-mento transformado no importante vídeo-documentário de José Padilha, nos idos de 2002.

O vídeo tem sua narrativa inicial em torno de uma ocorrência policial que apontava para um ônibus interceptado em uma das princi-pais vias de acesso do Jardim Botânico, bair-ro de classe média-alta da capital fluminense. Começa ali a história do filme vencedor de diversos prêmios e festivais do cinema nacio-nal e internacional. Entretanto, nota-se que uma das mais brilhantes compreensões do documentário é a de que a história daquele episódio de violência não nascia naquele momento. O caso do ônibus 174, como toda historia de violência, apresenta relação es-treita com o entrecruzamento de histórias pessoais e sociais que atravessam e consti-tuem o humano e seus comportamentos.

Sandro do Nascimento, posteriormente reconhecido como um dos sobreviventes da famosa e trágica chacina da Candelária, anunciava-se como personagem principal daquele enredo político-policial. Sequestrara um ônibus à luz do dia e obrigara o motorista a estacioná-lo em meio à via pública, levando-nos a questionar o que pretendia com aque-la história que se diferenciava, em muito, de um assalto e mesmo de um sequestro clássi-co, geralmente acompanhado de algum tipo de extorsão. Sandro não fazia exigências, não pedia dinheiro, não solicitava armas nem mesmo uma rota de fuga, levando os mais ingênuos a acreditar que não queria nada.

A história pessoal de Sandro segue curso semelhante à de muitos jovens brasileiros. Negro, pobre, morador de região periférica, “mutilado” pela violência naturalizada e pro-porcional ao abandono e ausência do Estado em diversos territórios. Tem a mãe assassi-nada quando criança e, não suportando o novo locus familiar, toma a rua como sua nova casa. Conhece as drogas e envolve-se em pequenos delitos que colaboram com sua subsistência. Experimenta as medidas sócio-educativas de internação e sua pouca ou nenhuma eficácia junto aos processos de ressignificação subjetiva. Como mencionado anteriormente, sobrevive ao covarde intento armado contra os meninos de rua que ocupa-vam regularmente o entorno da Igreja da Candelária, região central da cidade do Rio de Janeiro. Já na idade adulta, volta a fre-quentar as instituições prisionais, conhecen-do bem o descaso e a pouca dignidade com que são tratados os que deveriam ali consti-tuir uma subjetividade, supostamente, pouco afeita aos atos infracionais.

Do ponto de vista social, o percurso de Sandro do Nascimento, representa fidedigna-mente a história de invisibilidade social a que muitos jovens e comunidades brasileiras têm sido sistematicamente submetidos. O Estado brasileiro, bastante atento e servil a determi-nados grupos e segmentos sociais, tem fre-quentemente abandonado diversas comuni-dades e classes sociais à própria sorte, lan-çando mão, quando muito, do aparato policial como principal braço de relação institucional

junto a tais coletivos. O fato é que nós, humanos, do ponto de vista da sobrevivência psi-cológica, temos a necessidade cabal de sermos vistos, enxer-gados e reconhecidos. Desde o momento do nascimento, temos a necessidade de um outro que nos olhe, cuide de nós e colabore com nosso processo de constituição de humanidade. Sob a égide ma-crossocial, cabe ao Estado este papel de olhar constituin-te, cuidador e investidor sob a pena de delegar a outras for-ças que assim o façam e ga-rantam visibilidade, desafios e reconhecimen-to, a exemplo do que o tráfico tem conquista-do com muitos dos nossos jovens.

Os gritos por visibilidade social são cons-tantes em nossa sociedade, levando-nos a crer que a invisibilidade social constitui-se como uma condição subjetiva pouco ou nada salutar. Muitos de nós esforçamo-nos e te-mos condições de nos tornarmos vistos e valorizados por nossas produções intelectu-ais, nosso trabalho ou bens que ostentamos. Entretanto, para muitos outros de nós, a vio-lência tem sido a única ou principal forma de alcance da visibilidade. Muitos destes garotos que circulam imperceptíveis nas grandes e pequenas metrópoles só conseguem ser notados a partir do medo que são capazes de produzir em nós. A violência teria, neste ca-so, uma função instrumental equivalente a um clamor pela própria existência.

Retornemos agora à cena do crime. San-dro não exige resgate ou mesmo paraferná-lias bélicas, contudo, vive o clímax dos quin-ze minutos de fama, ou, como afirma Luís Eduardo Soares, no documentário em análi-se, goza, naquele momento, com a “pequena glória”. O circo midiático, amplamente trans-mitido para todo o planeta, configurava-se como aquilo que convencionamos chamar de espetacularização da violência, rendendo muita audiência e pouca análise qualificada. Interessante lembrar que Sandro, dias antes, comunica à “mãe de criação” que ficará fa-moso, mas não poderá se ver, como preven-do que naquela narrativa midiática não seria mais expectador, mas o próprio ator da trági-ca trama. Com o sequestro do ônibus, San-dro redefine o relato social no qual sempre foi um mero coadjuvante ou mesmo um figuran-te raramente notado e passa a se configurar, agora, como o protagonista de um “novo” enredo.

A crônica de final anunciado caminha para seu desfecho evidenciando, ainda, o comple-to sucateamento das forças policiais brasilei-ras, em níveis materiais, de formação técnica ou mesmo no que tange à compreensão e respeito aos direitos humanos. Ao assistir-mos o documentário, fica notório, ainda, o quanto o empenho dos profissionais da segu-rança pública é suplantado pela falta de equi-pamentos adequados e treinamentos especi-alizados, configurando grave limitação do Estado no trato e gerenciamento de situa-ções de crise.

A chacina da Candelária, aprovada por grande parte dos ouvintes em pesquisa reali-zada por uma rádio local, acabara de ser concluída. Sandro do Nascimento fora assas-sinado pela força policial quando já se encon-trava rendido e devidamente enjaulado em uma viatura institucional, tendo como causa mortis a asfixia. À Polícia Militar coube o trabalho sujo e de grave violação aos direitos humanos. Coube a ela, portanto, a execução daquilo que, ainda que reprimido e escamote-ado em algum lugar do inconsciente, é dese-jado por muitos daqueles que conosco com-partilham mesas de trabalho, bancos escola-res, calçadas, bares e filas para o cinema.

Por fim, o documentário alerta-nos para a ilusória crença de que a violência urbana deve ter como principal estratégia de enfren-tamento a construção de mais presídios, o aparelhamento policial, ou mesmo a redução da maioridade penal. Tais discursos tratam de tão importante mazela tomando como referência apenas a ponta do iceberg, não dando conta, portanto, das diferentes causas psicossociais do ato criminoso. Além disso, muitos desses discursos, engendrados pelas ideologias dominantes, culminam por imputar culpa e criminalizar muitos daqueles indiví-duos, grupos e comunidades que, mais do que algozes, são, cotidianamente, vitimados pelas ações ou omissões do próprio Estado. Isto possibilita-nos problematizar, por exem-plo, por que comunidades paupérrimas são frequentemente asfixiadas pela polícia, mas não por outros braços do Estado, como infra-estrutura, saúde, educação e lazer. ■

*Nelson Gomes Júnior é professor de Psicologia Jurídica e chefe do Departa-

mento de Ciências Jurídicas da UFPB [email protected]

“Nós, humanos, do ponto de vista da sobrevivência psicológica, temos a ne-cessidade cabal de ser-

mos vistos, enxergados e reconhecidos”

Page 12: Jornal CCJ em Ação nº 5

CCJ em Ação ∙ Ano 1 ∙ Nº 5 Página 12

CHARGE

Breakfast Club (Clube dos Cinco)

Não creio que o sau-doso John Hughes (1950 – 2009), res-ponsável pela direção das comédias Sixteen Candles (Gatinhas e Gatões – 1984), Weird Science (Mulher Nota Mil – 1985) e Ferris Buller’s Day (Curtindo a Vida Adoidado – 1986), dentre outras, tivesse ideia da dimensão e profundidade que teria o filme Breakfast Club (Clube dos Cin-

co – 1985), escrito e dirigido pelo referido cine-asta norte-americano.

Não se trata de uma superficial comédia de adolescentes problemáticos e sedentos por sexo. É muito mais denso do que isso.

Regado ao som do clássico Don’t You For-get About Me da banda Simple Minds e com base em um pensamento filosófico do músico e ator britânico David Bowie, bem voltado à temá-tica central da obra, Breakfast Club aborda um sábado na vida de 05 adolescentes do High School, os quais apresentam estereótipos bem distintos: um gênio, um atleta, uma louca, uma princesa e um marginal. Essa era a imagem que, inclusive, os próprios tinham deles mes-mos.

Todos foram castigados, por faltas cometi-das, a comparecer ao colégio e escrever uma redação de, no mínimo, 1.000 palavras sobre o que eles pensam de si próprios. Aos poucos, com a convivência e partilha de seus dilemas pessoais, os personagens passam a perceber que são muito além do que aparentavam ser. Entre qualidades, interesses e defeitos, apesar da diversidade de trajes e ideais, percebe-se que a disparidade outrora tão evidente não retrata a realidade. Revelam-se humanos chei-os de problemas como todos. Nesse sentido, os pré-conceitos dão lugar à aceitação e isso faz emergir uma identidade entre eles.

Com discretas referências às experiências hodiernas da adolescência (sexo, drogas e rock’n roll) retratadas em filmes análogos, John Hughes mostra, com uma incomparável sensi-bilidade, que apenas a própria pessoa sabe o que ocorre com si e, por isso, não deve repudi-ar determinadas atitudes de outros que, à pri-meira vista, possam merecer alguma censura. Ao revés, imprescindível a necessidade de compreensão da carga psicossocial intrínseca a cada indivíduo. Aprender com as diferenças daqueles que nos cercam é bem mais sábio do que tratar o próximo com intolerância.

Emocione-se com as excelentes atuações de Molly Ringwald, Anthony Michael Hall, Emilio Stevez, Judd Nelson e Ally Sheedy!

Avaliado no Site The Internet Movie Data Base (IMDb) com a nota 7,9. Dou 10,0.

Carlos Nazareno é estudante de Licencia-

tura em Artes Visuais (UFPB) [email protected]

APOIO