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O verdadeiro poder é o SERVIÇO Jorge M. Bergoglio Papa Francisco

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O verdadeiro poder é o SERVIÇO

Jorge M. BergoglioPapa Francisco

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Prefácio

Em tempos de competição, de busca desenfreada por status, de se estar em destaque, o Papa Francisco volta às ori-gens do cristianismo, suscitando em nós o verdadeiro ensina-mento do mestre – o servir, não o ser servido. Essa mensagem pode parecer anacrônica numa sociedade que, em geral, su-pervaloriza a autoimagem.

Para o Papa, beber da espiritualidade do Cristo do lava--pés não é sinal de submissão ou de uma prática devocional que busca resignar-se diante dos “grandes” constituídos, mas percepção de que nossa natureza vai além das aparências.

“A concepção cristã de ‘pessoa humana’ não tem muito a ver com a pós-moderna entronização do indivíduo como único sujeito da vida social.”

Ontologicamente o ser humano, sendo imagem e se-melhança de Deus, adquire sentido para a vida através da en-trega de si, da doação irrestrita.

O verdadeiro poder é o serviço! O poder aqui não é entendido como dominação nem

tão pouco como ostentação; o poder de Jesus se concentra na cruz. Os pregadores da corrente teológica da prosperidade (tão presente em nossos dias) podem se sentir incomodados com a imagem de Cristo que encontra sua realeza cingindo sua cintura com uma tolha e se ajoelhando para servir os seus,

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cena que antecede a perseguição, a condenação, a via dolo-rosa e a morte na cruz.

Não existe cristianismo sem um entendimento da men-sagem de amor-oblação de Cristo. O cristão, sendo coerente com sua fé, nunca se sentirá confortável com a realidade que o cerca.

“Porque a Igreja foi, é e será perseguida. O Senhor já no-lo advertiu (cf. Mt 24,4-14; Mc 13,9-13; Lc 21,12-19) para que estivéssemos preparados. Será perseguida não precisa-mente em seus filhos medíocres que pactuam com o mundo como o fizeram aqueles renegados dos quais nos fala o livro dos Macabeus (cf. 1Mc 1,11-15): esses nunca são perseguidos; e sim os outros filhos que, no meio da nuvem de tantas teste-munhas, optam por ter os olhos fixos em Jesus (cf. Hb 12,1-2) e continuar seus passos qualquer que seja o preço. A Igreja será perseguida na medida em que mantenha sua fidelidade ao Evangelho” (p. 340).

Pe. Luís Erlin, CMF Editor

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Apresentação

Já faz alguns anos que o grupo Editorial Claretiana, da Argentina, vem publicando pequenos livros do Arcebispo de Buenos Aires, cujas edições foram muito bem recebidas pelo público. Cheguei a pensar em publicar todos os seus escritos em um só volume. Depois de refletir muito e discernir o as-sunto com meus companheiros da equipe editorial, desisti de reunir o já publicado – que continua permanecendo à dispo-sição dos leitores – e só recopilar os escritos que ainda não haviam sido editados de maneira sistemática. Penso que eles podem prestar hoje um excelente serviço, não só à Igreja par-ticular de Buenos Aires, mas a todo o Povo de Deus.

Com a equipe editorial, estruturamos o livro seguindo certos núcleos que nos vão mostrando o pensamento e o en-sinamento de Jorge Bergoglio. Primeiro, agrupamos os escritos catequéticos, educativos e marianos. Depois, as homilias de Natal, da Quinta-feira Santa, da Páscoa e do Corpus Christi. Finalmente, uma série de escritos dirigidos ao diálogo com a sociedade contemporânea.

Existem certas constantes que atravessam todo o livro, todas as suas exposições, consequentemente toda a sua ação pastoral, o que me parece importante destacar.

Se, por um lado, o fato de se “criar cidadania”, nos leva ao desafio de sentir “o chamado profundo a procurar a alegria e a satisfação de construir juntos um lar, nossa Pátria”, por

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outro lado, em uma conjuntura difícil e complicada como a que estamos atravessando, faz-se necessário que nos deixe-mos “convocar pela força transformadora da amizade social, essa que nosso povo cultivou com tantos grupos e culturas que povoaram e povoam nosso país. Um povo que aposta no tempo e não no momento...”.

E tudo isso realizado sob a chave do serviço: “Fazer pelos outros e para os outros”. “Trata-se de uma revolução baseada no vínculo social do serviço. O poder é o serviço.” Por certo que não devemos confundir serviço com servilis-mo – cega e baixa adesão à autoridade. Devemos “entrar no território do serviçalismo, esse espaço que se estende até onde chega nossa preocupação pelo bem comum e que é a pátria verdadeira”.

Finalmente, devemos ser conscientes da fragilidade que estamos vivendo em todos os sentidos no âmbito pessoal, em nossas famílias, em nossos trabalhos, em nossa socieda-de. “Temos de cuidar da fragilidade de nosso povo. Esta é a boa-nova: que pobres, frágeis e vulneráveis, pequenos como somos, temos sido olhados, como Maria, com bondade em nossa pequenez e somos parte de um povo sobre o qual se estende, de geração em geração, a misericórdia do Deus de nossos pais.”

Pe. Gustavo Larrazábal, CMF

Editorial Claretiana

PRIMEIRA PARTE

“As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”

(Jo 6,63)

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“Convertam-se e creiam na boa-nova”

“Convertam-se e creiam na boa-nova”, como nos disse o sacerdote, na quarta-feira passada, quando nos impôs a cinza.

Comecemos a Quaresma com esse mandato. Que-bran tar nosso coração, abri-lo e crer no Evangelho da verda-de, não no Evangelho delineado, não no Evangelho light, não no Evangelho destilado, mas no Evangelho verdadeiro. E isso, hoje, de uma maneira especial, lhes é pedido como catequis-tas: “Convertam-se e creiam no Evangelho”.

Porém, além do mais, é dado a vocês na Igreja uma missão: façam que outros creiam no Evangelho vendo vocês, vendo o que fazem, como se conduzem, o que dizem, como sentem, como amam. Creiam no Evangelho.

O Evangelho diz que o Espírito levou Jesus para o de-serto, onde convivia entre as feras como se nada acontecesse. Isso nos faz recordar o que sucedeu no princípio: o primei-ro homem e a primeira mulher viviam entre as feras, e nada acontecia. Naquele paraíso tudo era paz, tudo era alegria. Foram tentados, e Jesus foi tentado.

Jesus quer reeditar, no começo de sua vida, depois de seu batismo, algo parecido ao que foi o princípio. Esse gesto de Jesus de conviver em paz com toda a natureza, em solidão fecunda do coração e em tentação, nos indica o que veio Ele

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fazer. Veio para restaurar, veio para recriar. Nós, em uma oração da missa, durante o ano, dizemos algo muito lindo: “Deus, que tão admiravelmente criou todas as coisas, mais admiravelmente as recriou”.

Jesus veio com a maravilha de sua vocação de obe-diência para recriar, para reequilibrar as coisas, para dar har-monia no meio da tentação. Isso está claro? E a Quaresma é esse caminho. Todos temos, na Quaresma, de abrir lugar em nosso coração para que Jesus, com a força de seu Espírito, o mesmo que o levou para o deserto, harmonize novamente nosso coração. Que o realize, porém, não como alguns pre-tendem, com orações raras e intimismos baratos, mas sim, com a missão, o trabalho apostólico, a oração de cada dia, a força, o testemunho. Temos de abrir espaço para Jesus por-que os tempos se tornam curtos, diz-nos o Evangelho. Já es-tamos nos últimos tempos, faz 2 mil anos que Jesus instaurou os tempos desse processo de harmonizar de novo.

Os tempos nos urgem. Não temos direito de permanecer acariciando-nos a alma. De permanecer encerrados em nossa imaturidade... nossa pequenez. Não temos direito a estar tran-quilos e a querer bem a nós mesmos. Como gosto de mim mes-mo! Não, não temos esse direito. Temos de sair para contar que, há 2 mil anos, houve um homem que quis reeditar o paraíso terrestre, e veio para isso. Para harmonizar de novo as coisas. E temos de dizer isso a “dona Rosa”, pessoa que vimos no balcão. Temos de contar às crianças, temos de dizê-lo àqueles que per-dem toda ilusão e àqueles para os quais tudo perdeu a graça, tudo é letra de música de tango, tudo é substituível. Temos de dizê-lo à senhora obesa “delicada” que acredita que, estirando a pele, vai ganhar a vida eterna. Temos de dizer a todos os jo-vens que, como aquela que vimos no balcão, agora todos nos querem amassar num mesmo molde. Não diz a letra do tango, mas poderia tê-lo dito: “deixe que vá, que tudo é igual”.

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“As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”

Temos de sair para falar a esta gente da cidade a quem vimos nos balcões. Temos de sair de nossa casca e dizer--lhes que Jesus vive, e que Jesus vive para ele, para ela, e dizê-lo com alegria... ainda que às vezes possa parecer um tanto maluco. A mensagem do Evangelho é loucura, diz São Paulo. O tempo da vida não nos vai bastar para entregar-nos e anunciar que Jesus está restaurando a vida. Temos de ir semear esperança, temos de sair para a rua. Temos de sair para procurar.

Quantos velhinhos como essa “dona Rosa” estão com a vida aborrecida, não lhes sendo suficiente, às vezes, nem o dinheiro nem para comprar remédios. Quantas crianças estão sendo bombardeadas com ideias já descartadas na Europa e nos Estados Unidos, mas que nós consideramos grande pro-gresso educativo.

Quantos jovens passam suas vidas aturdindo-se com as drogas e o ruído, porque não têm um sentido, porque nin-guém lhes contou que havia algo maior. Quantos nostálgicos também existem em nossa cidade que necessitam de um es-pelho para ir saboreando parte por parte de suas memórias e assim vão se esquecendo da imagem maior, ainda a ser vista.

Quanta gente boa, mas vaidosa e que vive da aparên-cia, e corre o perigo de cair na soberba e no orgulho.

E nós vamos nos aquietar em casa? Vamos permane-cer na paróquia, encerrados? Vamos nos deixar permanecer na sala fechada da paróquia, do colégio, das dependências eclesiais, quando toda essa gente nos está esperando? A gente de nossa cidade! Uma cidade que tem reservas religiosas, que tem reservas culturais, uma cidade preciosa, bela, mas que está muito tentada por Satanás. Não podemos permanecer so-zinhos, não podemos permanecer na paróquia e no colégio. Catequista, para a rua! Para catequizar, para buscar, para bater nas portas. Para bater nos corações.

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A primeira coisa que fez ela (a Virgem Maria), quando recebeu a boa-nova em seu seio foi sair correndo para prestar um serviço. Saiamos correndo para prestar o serviço de dar aos outros a boa-nova na qual cremos. Que esta seja nossa conversão: a boa-nova de Cristo ontem, hoje e sempre. Que assim seja.

Homilia aos Catequistas, Encontro Arquidiocesano de Catequese, março de 2000.

Deixar-se encontrar para ajudar no encontro

A cada segundo sábado de março temos a oportu-nidade de nos encontrar no Encontro Arquidiocesano de Catequese (EAC). Ali, juntos, retomamos o ciclo anual da ca-tequese, centrando-nos em uma ideia-força que nos acompa-nhará ao longo do ano. É um momento intenso de encontro, de festa, de comunhão, que valorizo muito e estou seguro de que vocês também.

Agora, aproximando-se a festa de São Pio X, padroeiro dos catequistas, gostaria de dirigir-me a cada um de vocês através desta carta. Em meio às atividades, quando o cansaço começa a fazer-se sentir, desejo animá-los, como pai e irmão, e convidá-los para fazer uma parada a fim de poder refletir juntos sobre algum aspecto da pastoral catequética.

Faço-o consciente de que, como bispo, estou chama-do a ser o primeiro catequista da diocese... Mas, sobretudo,

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quisera, por este meio, vencer um pouco o anonimato próprio da grande cidade que impede muitas vezes o encontro pes-soal, que certamente todos buscamos. Além disso, este pode ser um meio a mais para ir traçando linhas comuns à pas-toral catequética arquidiocesana que permitam uma unidade dentro da lógica e da pluralidade próprias de uma cidade tão grande e complexa como Buenos Aires.

Nesta carta preferi não me deter em algum aspecto da práxis catequética, mas preferivelmente na própria pessoa do catequista.

Numerosos documentos nos recordam que toda a co-munidade cristã é responsável pela catequese. Algo lógico, já que a catequese é um aspecto da evangelização. E a Igreja toda é a que evangeliza; portanto, a este período de ensina-mento e de aprofundamento no mistério da pessoa de Cristo “não devem procurá-la somente os catequistas ou sacerdo-tes, mas toda a comunidade dos fiéis...” [Catechesi Tradendae (CT), 16]. A catequese se veria seriamente comprometida se permanecesse relegada à ação isolada e solitária dos catequis-tas. Por isso, nunca serão poucos os esforços que se façam nessa tomada de consciência. O caminho empreendido faz anos, na procura de uma pastoral orgânica, contribuiu nota-velmente para um maior compromisso de toda a comunidade cristã na responsabilidade de iniciar cristãmente e educar na maturidade da fé. No âmbito dessa corresponsabilidade da comunidade cristã na transmissão da fé, não posso deixar de resgatar a realidade da pessoa do catequista.

A Igreja reconhece no catequista uma forma de minis-tério que, ao longo da história, permitiu que Jesus seja conhe-cido de geração em geração. Não de maneira excludente, mas de maneira privilegiada, a Igreja reconhece na porção do Povo de Deus a cadeia de testemunhas da qual nos fala o Catecismo da Igreja Católica: “O crente que recebeu a fé de outros... é

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como um elo na grande corrente dos crentes. Eu não posso crer sem ser sustentado pela fé dos outros, e pela minha fé eu contribuo para sustentar a fé dos outros” [Catecismo da Igreja Católica (CIC), 166].

Todos, ao fazermos memória de nosso próprio proces-so pessoal de crescimento na fé, descobrimos rostos de cate-quistas simples que, com seu testemunho de vida e sua en-trega generosa, nos ajudaram a conhecer e a nos enamorar de Cristo. Recordo com carinho e gratidão a irmã Dolores, do colégio da Misericórdia de Flores, que foi quem me pre-parou para a Primeira Comunhão e a Confirmação. E até faz poucos meses ainda vivia outra de minhas catequistas: fazia-me bem visitá-la, recebê-la ou chamá-la ao telefone. Hoje também são muitos os jovens e adultos que silencio-samente, com humildade e desde o início, continuam sendo instrumentos do Senhor para edificar a comunidade e fazer presente o Reino.

Por isso, atualmente penso em cada catequista, ressal-tando um aspecto que me parece, nas atuais circunstâncias em que vivemos, o de maior urgência: o catequista e sua relação pessoal com o Senhor.

Com toda lucidez nos adverte João Paulo II na carta apostólica Novo Millennio Ineunte: “O nosso tempo é vivido em contínuo movimento que muitas vezes chega à agita-ção, caindo-se facilmente no risco de ‘fazer por fazer’. Há que resistir a esta tentação, procurando o ‘ser’ acima do ‘fa-zer’. A tal propósito, recordemos a censura de Jesus a Marta: ‘Andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária’ (Lc 10,41-42)” [João Paulo II, Novo Millennio Ineunte (NMI), 15].

No ser e vocação de todo cristão está o encontro pessoal com o Senhor. Buscar Deus é buscar seu Rosto, é adentrar em sua intimidade. Toda vocação, muito mais a do

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catequista, pressupõe uma pergunta e uma resposta: “mestre, onde você vive? Venha e verá”. Da qualidade da resposta, da profundidade do encontro surgirá a qualidade de nossa mediação como catequistas. A Igreja se constitui sobre este “venha e verá”. Encontro pessoal e intimidade com o mestre que fundamentam o verdadeiro discipulado e asseguram à catequese seu sabor genuíno, afastando a espreita sempre atual de racionalismos e ideologizações que tiram vitalidade e esterilizam a boa-nova.

A catequese necessita de catequistas santos que conta-giem com sua simples presença, que ajudem com seu testemu-nho de vida a superar uma civilização individualista domina-da por uma “ética minimalista e uma religiosidade superficial” (NMI, 31). Hoje mais que nunca urge a necessidade de deixar-se encontrar pelo Amor, que sempre tem a iniciativa, para ajudar os homens a experimentar a Boa Notícia do encontro.

Hoje, mais que nunca, pode-se descobrir, por trás de tantas demandas de nossa gente, uma busca do Absoluto que, por momentos, adquire a forma de grito doloroso de uma hu-manidade ultrajada: “Senhor, quiséramos ver Jesus” (Jo 12,21). São muitos os rostos que, com um silêncio mais eloquente que mil palavras, nos formulam esse pedido. Conhecemo-los bem: estão no meio de nós, são parte desse povo fiel que Deus nos confia. Rostos de crianças, de jovens, de adultos... Alguns deles têm o olhar puro do “discípulo amado”, outros, o olhar baixo do filho pródigo. Não faltam rostos marcados pela dor e pela desesperança.

Porém, todos esperam, buscam, desejam ver Jesus. E por isso necessitam dos crentes, especialmente dos catequis-tas que “não só que lhes ‘falem’ de Cristo, mas também que de certa forma lhe façam o ‘ver’... Mas o nosso testemunho seria excessivamente pobre, se não fôssemos primeiro con-templativos do seu rosto” (NMI, 16).

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Hoje, mais que nunca, as dificuldades presentes obri-gam a quem Deus convoca a consolar seu Povo, a lançar raí-zes na oração, para poder sentir “algo que se assemelha à ex-periência de Jesus na cruz, num misto paradoxal de beatitude e dor” (NMI, 27). Só a partir de um encontro pessoal com o Senhor poderemos desempenhar a diaconia da ternura, sem nos quebrar ou deixar-nos preocupar pela presença da dor e do sofrimento.

Hoje, mais que nunca, é necessário que todo movi-mento para o irmão, todo serviço eclesial tenha o pressuposto e fundamento da cercania e da familiaridade com o Senhor. Assim como a visita de Maria a Isabel, rica em atitudes de serviço e de alegria, só se entende e se faz realidade a partir da experiência profunda de encontro e escuta acontecida no silêncio de Nazaré.

Nosso povo está cansado de palavras: não necessita de tantos mestres, mas sim de testemunhas...

E a testemunha se consolida na interioridade, no en-contro com Jesus Cristo. Todo cristão, mas muito mais o ca-tequista, deve ser permanentemente um discípulo do mes-tre na arte de rezar: “É necessário aprender a orar, voltando sempre de novo a conhecer esta arte dos próprios lábios do divino mestre, como os primeiros discípulos: ‘Senhor, ensina--nos a orar’ (Lc 11,1). Na oração, desenrola-se aquele diálogo com Jesus que faz de nós seus amigos íntimos. ‘Permanecei em mim e eu permanecerei em vós’ (Jo 15,4)” (NMI, 32).

Daí que devemos entender o convite de Jesus a na-vegar mar adentro como um chamado e nos abandonar na profundidade da oração que não permite e aos espinhos as-fixiarem a semente. Às vezes nossa pesca é infrutífera porque não a fazemos em seu nome; porque estamos demasiado preocupados com nossas redes... e nos esquecemos de fazê--la com Ele e por Ele.

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Estes tempos não são fáceis, não são tempos para en-tusiasmos passageiros, para espiritualidades espasmódicas, sentimentalistas ou gnósticas. A Igreja Católica tem uma rica tradição espiritual, com numerosos e variados mestres que po-dem guiar e nutrir uma verdadeira espiritualidade que hoje torne possível a diaconia da escuta e a pastoral do encontro. Na leitura atenta e receptiva do capítulo III da carta do Papa João Paulo II, Novo Millennio Ineunte, encontrarão a fonte inspiradora de muito do que quis compartilhar com vocês. Simplesmente para terminar, animo-me a pedir-lhes que refor-cem três aspectos fundamentais para a vida espiritual de todo cristão e muito mais para a de um catequista.

O encontro pessoal e vivo através de uma leitura orante

da Palavra de Deus

Dou graças ao Senhor porque sua Palavra está cada vez mais presente nos encontros de catequistas. Consta-me, além disso, que são muitos os avanços quanto à formação bíblica dos catequistas. Mas se correria o risco de permanecer em uma fria exegese o emprego do texto da Sagrada Escritura se faltasse o encontro pessoal, a ruminação insubstituível que cada crente e cada comunidade devem fazer da Palavra para que se produza o “encontro vital, segundo a antiga e sempre válida tradição da lec-tio divina: esta permite ler o texto bíblico como palavra viva que interpela, orienta, plasma a existência” (NMI, 39). O catequista encontrará, assim, a fonte inspiradora de toda a sua pedagogia, que necessariamente estará marcada pelo amor que se faz proxi-midade, oferenda e comunhão.

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O encontro pessoal e vivo através da Eucaristia

Todos experimentamos o gozo, como Igreja, desta presença próxima e cotidiana do Senhor Ressuscitado até o fim da história, mistério central de nossa fé, que realiza a comunhão e nos fortalece na missão. O Catecismo da Igreja Católica nos recorda que na Eucaristia encontramos todo o bem da Igreja. Nela temos a certeza de que Deus é fiel à sua promessa e permanece até o fim dos tempos (Mt 28,20).

Na visita e na adoração ao Santíssimo Sacramento, experimentamos a proximidade do Bom Pastor, a ternura de seu amor, a presença do amigo fiel. Todos temos expe-rimentado a ajuda tão grande que oferece a fé, o diálogo íntimo e pessoal com o Senhor Sacramentado. E o catequista não pode claudicar nesta belíssima vocação de contar o que contemplou (1Jo 1,1ss).

Ao celebrar a Fração do Pão, somos interpelados uma vez mais a imitar sua entrega e renovar o gesto inédito de multiplicar as ações de solidariedade. Desde o Banquete Eucarístico, a Igreja experimenta a Comunhão e é convida-da a tornar efetivo o milagre da “proximidade” pelo qual é possível neste mundo globalizado dar um espaço ao ir-mão e fazer que o pobre se sinta em cada comunidade como em sua casa (cf. NMI, 50). O catequista está chama-do a fazer que a doutrina se torne mensagem e a mensa-gem seja vida. Só assim a Palavra proclamada poderá ser celebrada e constituir-se verdadeiramente um sacramento de Comunhão.

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O encontro comunitário e festivo da Celebração

do domingo

Na Eucaristia dominical se atualiza a Páscoa, a Passagem do Senhor que quis entrar na história para fazer-nos participantes de sua vida divina. Congrega-nos cada domingo como família de Deus reunida em torno do altar, que se alimenta do Pão Vivo, e que traz e celebra o acontecido no caminho para renovar suas forças e continuar gritando que Ele vive entre nós. Na missa de cada domingo, experimentamos nossa pertença cordial a esse Povo de Deus ao qual fomos incorporados pelo Batismo e faze-mos memória do “primeiro dia da semana” (Mc 16,2.9). No mun-do atual, muitas vezes enfermo de secularismo e consumismo, parece que se vai perdendo a capacidade de celebrar, de viver como família. Por isso, o catequista está chamado a comprome-ter sua vida para que não se roube o domingo do cristão ajudan-do a que no coração do homem não se acabe a festa e recupere sentido e plenitude o seu peregrinar da semana.

Santa Teresinha, com esse poder de síntese próprio das almas grandes e simples, escreve a uma de suas irmãs, resu-mindo no que consiste a vida cristã: “Amá-lo e fazê-lo amar...”. Essa é também a razão de ser de todo catequista. Somente se existe um encontro pessoal pode-se ser instrumento para que outros o encontrem.

Ao saudar você pelo dia do catequista, quero agrade-cê-lo de coração por toda a sua entrega ao serviço do Povo fiel. E pedir a Maria Santíssima que mantenha viva em seu coração essa sede de Deus para você não se cansar nunca de buscar seu rosto.

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O verdadeiro poder é o serviço

Não deixe de rezar por mim para que seja um bom ca-tequista. Que Jesus o abençoe e a Virgem Santa cuide de você.

Homilia aos Catequistas, EAC, março de 2001.

“Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele servirás”(Mt 4,10)

“Talvez como poucas vezes em nossa história, esta socie-dade malferida aguarda uma nova chegada do Senhor. Aguarda a entrada curadora e reconciliadora daquele que é Caminho, Verdade e Vida. Temos razões para esperar. Não esqueçamos que sua passagem e sua presença salvífica foram uma constante em nossa história. Descobrimos a maravilhosa marca de sua obra criadora em uma natureza incomparavelmente rica. A generosi-dade divina também se refletiu no testemunho de vida, de entre-ga e sacrifício de nossos pais e próceres, do mesmo modo que em milhões de rostos humildes e crentes, irmãos nossos, protago-nistas anônimos do trabalho e das lutas heroicas, encarnação da silenciosa epopeia do Espírito que funda povos.

Não obstante, vivemos muito distantes da gratidão que mereceria tanto dom recebido. O que nos impede de ver essa chegada do Senhor? O que torna impossível o ‘provar e ver quão bom é o Senhor’ [cf. Sl 33(34),9] diante de tanta prodigalidade na terra e nos homens? Sobre o que tratam as possibilidades de se aproveitar, em nossa nação, o encontro pleno entre o Senhor, seus dons e nós? Como na Jerusalém de então, quando Jesus atravessava a cidade e aquele homem chamado Zaqueu não conseguia vê-lo entre tanta multidão, algo nos impede de ver e sentir sua presença.”

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“As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”

Com essas palavras, começava a homilia do Te Deum do último 25 de maio. E gostaria que servisse de introdução a esta carta que, com afeto agradecido, faço chegar no meio de sua silenciosa, mas importante, tarefa de construir a Igreja.

Como não exagerar ao afirmar que estamos em um tem-po de “miopia espiritual e chatice moral” que nos quer impor como normal uma “cultura do vulgar”, na qual pareceu não haver lugar para a transcendência e a esperança?

Mas você sabe bem por ser catequista, pela sabedo-ria que lhe dá o trato semanal com o povo, que no homem continua pulsando um desejo e necessidade de Deus. Diante da soberba e invasora prepotência dos novos Golias que, a partir de alguns meios de comunicação e não menos de despachos oficiais, reatualizam preconceitos e ideologismos autistas, faz-se necessária hoje mais que nunca a serena con-fiança de Davi para desde o início defender a herança. Por isso, gostaria de insistir com você naquilo que lhe escrevia um ano atrás: “Hoje, mais que nunca, pode-se descobrir por trás de tantos pedidos de nossa gente uma busca do Absoluto que, por momentos, adquire a forma de grito doloroso de uma humanidade ultrajada: ‘Queríamos ver Jesus’ (Jo 12,21). São muitos os rostos que, com um silêncio mais decidido que mil palavras, nos formulam esse pedido. Conhecemo-los bem: estão no meio de nós, são parte desse povo fiel que Deus nos confia. Rostos de crianças, de jovens, de adultos... Alguns deles têm o olhar puro do ‘discípulo amado’, outros, o olhar baixo do filho pródigo. Não faltam rostos marcados pela dor e pela desesperança. Porém, todos esperam, buscam, desejam ver Jesus. E por isso necessitam dos crentes, especialmente dos catequistas que não só ‘falem’ de Cristo, e sim, em certo modo, que lhes façam ‘vê-lo’... Daí que nosso testemunho se-ria enormemente deficiente, se nós não fôssemos os primeiros contempladores do seu rosto” (cf. NMI 16).

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O verdadeiro poder é o serviço

Por isso, me animo a propor-lhe que nos detenhamos este ano a aprofundar o tema da adoração.

Hoje, mais que nunca, torna-se necessário “adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4,24). É uma tarefa indispensável do catequista que quer lançar raízes em Deus, que queira não desfalecer em meio a tanta comoção.

Hoje, mais que nunca, se faz necessário adorar para tornar possível a “proximidade” que reclamam estes tempos de crise. Só na contemplação do mistério de Amor que vence distâncias e se faz proximidade, encontraremos a força para não cair na tentação de seguir do outro lado, sem nos deter no caminho.

Hoje, mais que nunca, faz-se necessário ensinar a ado-rar a nossos catequizandos, para que nossa catequese seja verdadeiramente iniciação e não só ensinamento.

Hoje, mais que nunca, faz-se necessário adorar para não nos confundir com palavras que às vezes ocultam o Mistério, mas regalar-nos no silêncio cheio de admiração que cala diante da Palavra que se faz presença e proximidade.

Hoje, mais que nunca, se faz necessário adorar!Porque adorar é prostrar-se, é reconhecer da humilda-

de à grandeza infinita de Deus. Só a verdadeira humildade pode reconhecer a verdadeira grandeza, e reconhece também o pequeno que pretende apresentar-se como grande. Talvez uma das maiores perversões de nosso tempo é que se nos propõe adorar o humano deixando de lado o divino. “Só ao Senhor adorarás” é o grande desafio diante de tantas propos-tas do nada e do vazio. Não adorar os ídolos contemporâneos – com seus cantos de sereia – é o grande desafio de nosso pre-sente, não adorar o não adorável é o grande sinal dos tempos de hoje. Ídolos que causam morte não merecem adoração nenhuma, só o Deus da vida merece “adoração e glória” [cf. Documento de Puebla (DP)].

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“As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”

Adorar é olhar com confiança para aquele que aparece como confiável porque é quem dá a vida, instrumento de paz, gerador de encontro e solidariedade.

Adorar é estar de pé diante de todo o não adorável, porque a adoração nos torna livres e nos torna pessoas cheias de vida.

Adorar não é esvaziar-se, mas encher-se, é reconhe-cer e entrar em comunhão com o Amor. Ninguém adora a quem não ama, ninguém adora a quem não considera como seu amor. Somos amados! Somos queridos! Deus é amor. Essa certeza é a que nos leva a adorar com todo o nosso coração Aquele que “nos amou primeiro” (1Jo 4,19). Adorar é descobrir sua ternura, é achar consolo e descanso em sua presença, é poder experimentar o que diz o Salmo 22(23),4-6: “Ainda que eu atravesse o vale escuro, nada temerei, pois estais comigo... A vossa bondade e misericórdia hão de seguir-me por todos os dias de minha vida”.

Adorar é ser testemunhas alegres de sua vitória, é não deixar-nos vencer pela grande tribulação e apreciar antecipa-damente a festa do encontro com o Cordeiro, o único digno de adoração que enxugará todas as nossas lágrimas e em quem celebramos o triunfo da vida e do amor sobre a morte e o de-samparo (cf. Ap 21–22).

Adorar é aproximar-nos da unidade, é descobrir-nos fi-lhos de um mesmo Pai, membros de uma só família, é como o descobriu São Francisco, cantar os louvores unidos a toda a criação e a todos os homens. É atar os laços que temos rompido com nossa terra, com nossos irmãos, é reconhecê-lo a Ele como Senhor de todas as coisas, Pai bondoso do mundo inteiro.

Adorar é dizer “Deus” e dizer “vida”. Encontrar-nos face a face em nossa vida cotidiana com o Deus da vida, é adorá--lo com a vida e o testemunho. É saber que temos um Deus fiel que ficou conosco e que confia em nós.

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O verdadeiro poder é o serviço

Adorar é dizer AMÉM!Ao saudá-lo pelo dia do catequista, quero novamente

agradecer-lhe toda a sua entrega a serviço do Povo fiel. E pedir a Maria Santíssima que mantenha viva em seu coração essa sede de Deus para que você possa, como a samaritana do Evangelho, “adorar em espírito e verdade” e fazer que muitos se aproximem de Jesus (Jo 4,24.39). Não deixe de rezar por mim para que seja um bom catequista. Que Jesus o abençoe e a Virgem Santa cuide de você.

Carta aos Catequistas, agosto de 2002.

O tesouro de nosso barro

“Temos este tesouro em casos de barro, para que trans-pareça claramente que esse poder extraordinário provém de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).

Durante todo este ano, estamos procurando, como Igreja arquidiocesana, cuidar da “fragilidade de nosso povo”, fazendo-o inclusive tema e estilo da missão arquidiocesana.

Nesta linha, quisera que também o tema da “fragilida-de” estivesse presente na carta que ano após ano lhes escrevo pelo motivo da festa de São Pio X, padroeiro dos catequistas.

Em 2002 os convidava a refletir sobre a missão do cate-quista como adorador, como aquele que sabe que está diante de um mistério tão grande e maravilhoso que o supera, até conver-ter-se em oração e louvor. Hoje me animo a insistir com vocês neste aspecto. Diante de um mundo fragmentado, diante da ten-tação de novas fraturas fratricidas de nosso país, diante da expe-riência dolorosa de nossa própria fragilidade, faz-se necessário

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e urgente, e me animaria a dizer, imprescindível, aprofundar na oração e na adoração. Ela nos ajudará a unificar nosso coração e nos dará “entranhas de misericórdia” para sermos homens de encontro e comunhão que assumem como vocação própria o encarregar-se da ferida do irmão. Não privem a Igreja de seu mi-nistério de oração que lhes permite oxigenar o cansaço cotidia-no, dando testemunho de um Deus tão próximo, tão Outro: Pai, Irmão, e Espírito; pão, companheiro de caminho e dador de vida.

Faz um ano eu lhes escrevia: “... Hoje mais que nunca se torna necessário adorar para fazer possível a ‘proximidade’ que reclamam estes tempos de crise. Só na contemplação do mistério do Amor, que vence distâncias e se faz proximidade, encontra-remos a força para não cair na tentação de seguir do outro lado, sem nos deter no caminho...”.

Justamente, o texto do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) foi aquele que iluminou o Te Deum do 25 de maio daquele ano. Nele convidava a “ressignificar toda a nossa vida – como pessoas e como nação – desde o gozo de Cristo ressuscitado para permitir que brote, na fragilidade mesma de nossa carne, a esperança de viver como uma verdadeira comunidade...”.

Anunciar o kerigma, dar novo sentido à vida, formar comunidade, são tarefas que a Igreja confia de um modo par-ticular aos catequistas. Tarefa grande que nos ultrapassa e até por momentos nos preocupa. De alguma maneira sentimo--nos refletidos no jovem Gedeão que, ante o envio a com-bater os madianitas, sente-se desamparado e perplexo dian-te da aparente superioridade do inimigo invasor (Jz 6,11-24). Também nós, diante desta nova invasão pseudocultural que nos apresenta os novos rostos pagãos dos “baal” do passado, experimentamos a desproporção das forças e a pequenez do enviado. Mas é justamente a partir da experiência da fragilida-de própria que se evidencia a força do alto, a presença daque-le que é nossa garantia, nossa garantia e nossa paz.

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Por isso, me animo neste ano a convidá-lo a que com o mesmo olhar contemplativo com o qual você descobre a proximidade do Senhor da História, reconheça em sua fragili-dade o tesouro escondido, que confunde os soberbos e derru-ba os poderosos. Hoje o Senhor nos convida a abraçar nossa fragilidade como fonte de um grande tesouro evangelizador. Reconhecer-nos barro, vasilha e caminho é também dar culto ao verdadeiro Deus.

Porque só aquele que se reconhece vulnerável é capaz de uma ação solidária. Pois comover-se (“mover-se – com”), compadecer-se (“padecer – com”) de quem está caído à beira do caminho são atitudes de quem sabe reconhecer no outro sua própria imagem, uma mistura de terra e tesouro, e por isso não a rejeita. Ao contrário, a ama, se aproxima dela, e sem bus-cá-lo, descobre que as feridas que cura no irmão são unguento para as próprias. A compaixão se transforma em comunhão, em ponte que aproxima e estreita laços. Nem os salteadores nem os que seguem do lado de lá diante do caído têm consciência de seu tesouro e de seu barro. Por isso, os primeiros não va-lorizam a vida do outro e se atrevem a deixá-lo quase morto. Se não valorizam a própria, como poderão reconhecer como um tesouro a vida dos outros? Os que seguem do lado de lá da estrada, por sua vez, valorizam sua vida, mas, parcialmen-te, atrevem-se a olhar só uma parte, a que eles creem valiosa: sentem-se escolhidos e amados por Deus (evidentemente na parábola são dois personagens religiosos nos tempos de Jesus: um levita e um sacerdote), mas não se atrevem a reconhecer-se argila, barro frágil. Por isso o caído lhes dá medo e não sabem reconhecê-lo; como poderão reconhecer o barro dos demais se não aceitam o próprio?

Se algo caracteriza a pedagogia catequética, se em algo deveria ser especialista todo catequista, é em sua capa-cidade de acolhida, de encarregar-se do outro, de ocupar-se

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que ninguém fique à margem do caminho. Por isso, diante da gravidade e do extenso da crise, diante do desafio como Igreja arquidiocesana de comprometer-nos em “cuidar da fragilidade de nosso povo”, convido você a que renove sua vocação de catequista e coloque toda a sua criatividade em “saber estar” próximo daquele que sofre, tornando realidade uma “pedagogia da presença”, na qual a escuta e a “proximi-dade” não só sejam um estilo, mas conteúdo da catequese.

E nesta formosa vocação artesanal de ser “crisma e carícia do que sofre” não tenha medo de cuidar da fragilidade do ir-mão a partir de sua própria fragilidade: sua dor, seu cansaço, suas pausas. Deus os transforma em riqueza, unguento, sacramento. Recorde o que juntos meditávamos no dia de Corpus Christi: há uma fragilidade, a Eucaristia, que esconde o segredo do compar-tilhar. Existe uma fragmentação que permite, no gesto terno do dar-se, alimentar, unificar, dar sentido à vida. Que nesta festa de São Pio X possa você em oração apresentar ao Senhor seus can-saços e fadigas, como o das pessoas que o Senhor colocou em seu caminho, e deixe que o Senhor abrace sua fragilidade, seu barro, para transformá-lo em força evangelizadora e em fonte de fortaleza. Assim o experimentou o apóstolo Paulo:

Em tudo somos oprimidos, mas não sucumbimos. Vivemos em completa penúria, mas não desesperamos.

Somos perseguidos, mas não ficamos desamparados. Somos abatidos, mas não somos destruídos. Trazemos sempre em

nosso corpo os traços da morte de jesus para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo (2Cor 4,8-10).

É na fragilidade que somos chamados a ser catequistas. A vocação não seria plena se excluísse nosso barro, nossas quedas, nossos fracassos, nossas lutas cotidianas: é nela que a vida de Jesus se manifesta e se faz anúncio salvador. Graças a

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ela descobrimos as dores do irmão como próprias. E a partir dela, a voz do profeta se faz boa-nova para todos:

Fortificai as mãos desfalecidas, robustecei os joelhos vacilantes. Dizei àqueles que têm o coração perturbado:

“Tomai ânimo, não temais! Eis que chega a retribuição de Deus: ele mesmo vem salvar-vos”. E uma alegria eterna

coroará sua cabeça; a alegria e o gozo os possuirão; a tristeza e os queixumes fugirão (Is 35,3-6.10).

Que Maria nos conceda valorizar o tesouro de nosso barro para poder cantar com ela o Magnificat de nossa peque-nez junto com a grandeza de Deus.

Não deixe de rezar por mim para que também eu viva essa experiência de limite e de graça. Que Jesus o abençoe e a Virgem Santíssima cuide de você. Com todo carinho.

Carta aos Catequistas, agosto de 2003.

“Levante-te e come, porque tens um longo

caminho por percorrer...”

Como Igreja diocesana, transitamos por um cami-nho que terá um momento forte do Espírito: as próximas Assembleias do Povo de Deus. Desejo que esse tempo de pre-paração implique colocar-se em marcha em um caminho de discernimento comunitário por meio da oração.

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Como Igreja na Argentina, peregrinamos para a cidade de Corrientes onde, em poucos dias mais, nos congregaremos como Povo fiel em torno da Eucaristia, para pedir ao Senhor que a ce-lebração cotidiana nos ajude a tornar realidade o sonho tantas vezes adiado de uma nação verdadeiramente reconciliada e so-lidária. E o fazemos com a triste constatação de que existe gente que não tem o que comer na terra bendita do pão.

Identidade, memória, pertença de um povo que sabe que é peregrino, a caminho.

Nesta realidade dinâmica da Igreja quero, na cercania da festividade de São Pio X, fazer-lhes chegar minha sauda-ção e afeto agradecido pelo dia do catequista. Desejo com-partilhar com vocês algumas reflexões que neste último tem-po foram objeto de minha oração, em consonância com o que lhes escrevia na Quarta-feira de Cinzas, quando os con-vidava a cuidar da fragilidade do irmão a partir da audácia própria dos discípulos de Jesus que confiam em sua presença de Ressuscitado.

Nossa Igreja em Buenos Aires está necessitada dessa audácia e fervor, que é obra do Espírito Santo, e que nos leva a anunciar, a gritar Jesus Cristo com toda a nossa vida. É ne-cessária muita audácia e valentia para continuar caminhando hoje no meio de tanta perplexidade.

Sabemos que existe a tentação de ficarmos agarrados pelo medo paralisante que às vezes se maquila de desdobra-mento e cálculo realista e, em outros casos, de rotineira repe-tição. Mas sempre esconde a vocação covarde e conformista de uma cultura minimalista acostumada só à segurança do andar pela orla marginal.

Audácia apostólica implicará busca, criatividade, nave-gar mar adentro!

Nesta espiritualidade do caminho, também é grande a tentação de atraiçoar o chamado e caminhar como povo,

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renunciando ao mandato da peregrinação para correr alouca-damente a maratona do sucesso somando-nos à cultura da ilu-são. Desta maneira hipotecamos nosso estilo, somando-nos à cultura da exclusão, na qual já não existe lugar para o ancião, à criança incômoda, e não existe tempo para deter-se à beira do caminho. A tentação é grande, sobretudo porque se apoia nos novos dogmas modernos como a eficiência e o pragmatismo. Por isso, é preciso muita audácia para ir contra a corrente, para não renunciar à utopia possível de que seja precisamente a in-clusão a que marca o estilo e ritmo de nosso passo.

Caminhar como povo é sempre mais lento. Além do mais ninguém ignora que o caminho é longo e difícil. Como naquela experiência fundamental do Povo de Deus pelo de-serto, não faltarão o cansaço e a desorientação.

A todos nos sucedeu alguma vez encontrar-nos detidos e desorientados no caminho, sem saber que passos dar. A reali-dade muitas vezes se nos impõe enclausurada, sem esperança. Duvidamos, como o povo de Israel, das promessas e da presen-ça do Senhor da História e nos deixamos envolver pela mentali-dade positivista, que pretende constituir-se chave interpretativa da realidade. Renunciamos à nossa vocação de fazer história, para somar-nos ao coro nostálgico de queixas e censuras: “Não te dizíamos no Egito: deixa-nos servir os egípcios! É melhor ser escravos dos egípcios do que morrer no deserto” (Ex 14,12). O fervor apostólico nos ajudará a ter memória, a não renunciar à liberdade, a caminhar como povo da aliança: “Então, guarda-te de esquecer o Senhor que te tirou do Egito, da casa da servidão” (Dt 6,12). Como catequistas de tempos difíceis, devem pedir a Deus a audácia e o fervor que lhes permitam ajudar a recordar! “Guarda-te, pois, a ti mesmo! Cuida de nunca esquecer o que viste com os teus olhos...” (Dt 4,9). Na memória transmitida e celebrada, encontraremos como povo a força necessária para não cair no medo que paralisa e angustia.

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Esse caminhar de Povo de Deus reconhece tempos e ritmos, tentações e provações, acontecimentos de graça nos quais se faz necessário renovar a aliança.

Também hoje, em nosso caminhar como Igreja em Buenos Aires, vivemos um momento muito especial que nos animamos a vislumbrar como tempo de graça. Queremos abrir--nos ao Espírito para deixar que Ele nos coloque em movimen-to espiritual, para que as próximas Assembleias Diocesanas sejam um verdadeiro “Tempo de Deus” no qual, na presença do Senhor, possamos aprofundar em nossa identidade e na tomada de consciência de nossa missão. Poder fazer uma ex-periência fraterna de discernimento comunitário e fraternal em que a oração e o diálogo nos permitam superar desencontros e crescer na santidade comunitária e missionária.

Como todo caminhar, nos obriga a colocar-nos em mar-cha, em movimento, nos desinstala, e nos coloca em situação de lutas espirituais. Devemos prestar especial atenção ao que se passa no coração; estar atento ao movimento dos diversos espíritos (o bom, o mau, o próprio). Isso, para poder discernir e encontrar a vontade de Deus.

Não se deverá estranhar que neste caminho que come-çamos a transitar apareça a tentação sutil da sedução “alternati-vista”, que se expressa em nunca aceitar um caminho comum, para apresentar sempre como absoluto outras possibilidades. Não se trata do sadio e enriquecedor pluralismo, ou matizes, no momento do discernimento comunitário; mas da incapacidade de percorrer um caminho com outros, porque no fundo do co-ração se prefere andar solitariamente por caminhos elitistas que, em muitos casos, conduzem a dobrar-se egoisticamente sobre si mesmo. O catequista, ao contrário, o verdadeiro catequista, tem a sabedoria que se forja na proximidade com o povo e com a riqueza de tantos rostos e histórias compartilhadas que o afas-tam de qualquer versão atualizada de “caricatura”.

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Não se deve estranhar que no caminho também se faça presente o mau espírito, o que se nega a toda novidade. O que se agarra ao adquirido e prefere as seguranças do Egito às pro-messas do Senhor. Esse mau espírito nos leva a regozijar-nos nas dificuldades, a apostar desde o início no fracasso, a des-pedir “com realismo” as multidões porque não sabemos, não podemos e, no fundo, não queremos incluí-las. Deste mau espírito ninguém está isento.

Daí, que o convite a renovar o fervor seja um convite a pe-dir a Deus uma graça para nossa Igreja em Buenos Aires: “A graça da audácia apostólica, audácia forte e fervorosa do Espírito”.

Sabemos que toda essa renovação espiritual não pode ser o resultado de um movimento de vontade ou uma simples mudança de ânimo. É graça, renovação interior, transforma-ção profunda que se fundamenta e apoia em uma Presença que, como aquela tarde do primeiro dia da história nova, faz--se caminho conosco para transformar nossos medos em ar-dor, nossa tristeza em alegria, nossa fuga em anúncio.

Só falta reconhecê-lo como em Emaús. Ele continua par-tindo o pão para que nós o reconheçamos também ao partir nos-so pão. E se nos falta audácia para assumir o desafio de sermos nós os que demos de comer, atualizemos em nossa vida as or-dens de Deus ao cansado e agoniado profeta Elias: “Levante-te e come, porque tens um longo caminho por percorrer...” (1Rs 19,7). Ao agradecer-lhe por todo seu caminho de catequista, peço ao Senhor Eucaristia que renove seu ardor e fervor apostólico para que não se acomode jamais aos rostos de tantas crianças que não conhecem Jesus, aos rostos de tantos jovens que andam pela vida sem sentido, aos rostos de multidões de excluídos que, com suas famílias e anciãos, lutam para ser comunidade, cuja passa-gem cotidiana por nossa cidade nos dói e interpela.

Mais que nunca necessitamos de seu olhar próximo de catequista para contemplar, comover-se e deter-se quantas

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vezes forem necessárias para dar ao nosso caminhar o ritmo curador de “proximidade”. E poderá assim você fazer a expe-riência da verdadeira compaixão, a de Jesus, que, longe de paralisar, mobiliza, o impulsiona a sair com mais força, com mais audácia a anunciar, a curar, a libertar (cf. Lc 4,16-22).

Mais que nunca necessitamos de seu coração deli-cado de catequista que oferece, desde sua experiência de acompanhamento, a sabedoria da vida e dos processos em que campeia a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar, até o sentido de pertença, para cuidar assim – entre todos – das ovelhas a nós confiadas, dentre os lobos instruídos que procuram desagregar o rebanho.

Mais que nunca necessitamos de sua pessoa e minis-tério catequético para que com seus gestos criativos coloque, como Davi, música e alegria no andar cansado do nosso povo! (2Sm 6,14-15).

Peço-lhe, por favor, que reze por mim para que seja um bom catequista. Que Jesus o abençoe e a Virgem Santíssima cuide de você.

Carta aos Catequistas, agosto de 2004.

“Depois subiu ao monte e chamou os que ele quis.

E foram a ele...”

“Designou doze dentre eles para ficar em sua com-panhia. Ele os enviaria a pregar...” (Mc 3,13-15). O texto de Marcos permite situar-nos na perspectiva do chamado.

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Por trás de cada catequista, de cada um de vocês, existe um chamado, uma escolha, uma vocação. Essa é uma verdade fundamental de nossa identidade: fomos chamados por Deus, escolhidos por Ele. Cremos e confessamos a iniciativa de amor que existe na origem do que somos. Reconhecemo-nos como dom, como graça...

E fomos chamados para estar com Ele. Por isso nos di-zemos cristãos, nos reconhecemos em estreita relação com Cristo... Com o apóstolo Paulo, podemos dizer: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim...” (Gl 2,20). Esse vi-ver com Cristo é realmente uma vida nova: a vida do cristão, e determina tudo o que se é e se faz. Daí que todo catequista deve procurar permanecer no Senhor (Jo 15,4) e cuidar, com a oração, de seu coração transformado com a graça, porque é o que tem para oferecer e onde está seu verdadeiro “tesouro” (cf. Lc 12,34).

Alguém talvez esteja pensando em seu interior: “mas isso que nos está dizendo poderia ser aplicado a todo cristão”. Sim, assim é. E é o que justamente queria compartilhar com vocês esta manhã. Todo catequista é antes de tudo um cristão.

Pode resultar quase evidente... Não obstante, um dos problemas mais sérios que a Igreja tem, e que atrapalha mui-tas vezes sua tarefa evangelizadora, é que nós os agentes de pastoral – os que costumamos estar mais com as “coisas de Deus”, os que estamos mais inseridos no mundo eclesiásti-co – frequentemente nos esquecemos de ser bons cristãos. Começa nesse momento a tentação de se tornar absolutas as espiritualidades na relação de posse, ou seja, do ou da: a es-piritualidade do leigo, do catequista, do sacerdote..., com o grave perigo de perder sua originalidade e simplicidade evan-gélica. E uma vez perdido o horizonte comum cristão, corre-mos a tentação do esnobe, do afetado, daquele que entretém e engorda, mas não alimenta nem ajuda a crescer. As partes se

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convertem em particularidades e, ao privilegiar as particulari-dades, facilmente nos esquecemos do todo, de que formamos um mesmo povo. Então começam os movimentos centrífugos que nada têm de missionários e sim exatamente o contrário: dispersam-nos, distraem-nos e, paradoxalmente, enredam-nos em nossas interioridades e particularidades pastorais. Não es-queçamos: o todo é superior à parte.

Parece-me importante insistir nisso porque uma ten-tação sutil do Maligno é fazer-nos esquecer nossa pertença comum, que tem como fonte o Batismo. E quando perdemos a identidade de filhos, irmãos e membros do Povo de Deus, entretemo-nos em cultivar uma “pseudoespiritualidade” ar-tificial, elitista... Deixamos de transmitir pelos frescos verdes pastos para ficar encurralados nos sofismas paralisantes de um “cristianismo de proveta”. Já não somos cristãos, mas “elites ilustradas” com ideias cristãs.

Tendo já bem presente essas questões, podemos assi-nalar traços específicos.

O catequista é o homem da Palavra. Da Palavra com maiúscula. Foi precisamente com a Palavra que Nosso Senhor ganhou o coração da gente. “... de toda a parte vinham ter com ele” (Mc 1,45). “Ficavam maravilhados bebendo seus en-sinamentos” (cf. Mc 6,2). “Sentiam que falava como quem tem autoridade” (cf. Mc 1,27). Foi com a Palavra que os apóstolos, aos quais “instituiu para que estivessem com Ele e para enviá--los a pregar” (cf. Mc 3,14s), atraíram ao seio da Igreja todos os povos (cf. Mc 16,15-20).

Essa relação da catequese com a Palavra não se move tanto na ordem do “fazer”, e sim mais do “ser”. Não se pode ter realmente uma verdadeira catequese sem uma centralidade e referência real à Palavra de Deus que anime, sustente e fe-cunde todo o seu agir. O catequista se compromete diante da comunidade a meditar e ruminar a Palavra de Deus para que

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suas palavras sejam eco dela. Por isso, a acolhe com a alegria que dá o Espírito (1Ts 1,6), a interioriza e a torna carne e gesto como Maria (Lc 2,19). Encontra na Palavra a sabedoria do alto que lhe permitirá fazer o necessário e agudo discernimento, tanto pessoal quanto comunitário.

“A Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e as intenções do coração” (Hb 4,12).

O catequista é um servidor da Palavra, deixa-se educar por ela, e nela tem a serena confiança de uma fecundidade que excede suas forças: “... Ela não volta a mim estéril, mas que reali-za tudo o que eu quero e cumpre a missão que eu lhe atribuí” (cf. Is 55,10-11). O catequista pode fazer o que João Paulo II escreve sobre o sacerdote: “... deve ser o primeiro ‘crente’ da Palavra com a plena consciência de que as palavras de seu ministério não sejam ‘suas’, mas d’Aquele que o enviou. Ele não é o dono desta palavra; é seu servidor...” (Pastores dabo vobis, 26).

Para que seja possível essa escuta da Palavra, o cate-quista deve ser homem e mulher que goste do silêncio. Sim! O catequista, porque é homem ou mulher da Palavra, deverá ser também homem ou mulher do silêncio... Silêncio contem-plativo, que lhe permitirá libertar-se da inflação de palavras que reduzem e empobrecem seu ministério a um palavrório oco, como tantos que nos oferece a sociedade atual. Silêncio dialogal, que fará possível a escuta respeitosa do outro e assim embelezará a Igreja com a diaconia da palavra que se ofere-ce como resposta. Silêncio transbordante de “proximidade” a complementar a palavra com gestos decididores, que facilitam o encontro e tornam possível a “teofania do nós”. Por isso, eu me animo a convidá-los, a vocês, homens e mulheres da Palavra: amem o silêncio, busquem o silêncio, façam fecundo em seu ministério o silêncio!

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Mas se algo peculiar deve caracterizar o catequista é seu olhar. O catequista, diz-nos o Directorio Catequístico General, é um homem especialista na arte de comunicar. “O cume e o centro da formação de catequistas é a aptidão e habilidade de comunicar a mensagem evangélica” (235). O catequista está cha-mado a ser um pedagogo da comunicação. Quer e busca que a mensagem se faça vida. E isso também sem desprezar todas as contribuições das ciências atuais sobre a comunicação. Em Jesus temos sempre o modelo, o caminho, a vida. Como o Bom mestre, cada catequista deverá fazer presente o “olhar amoroso”, que é início e condição de todo encontro verdadeiramente hu-mano. Os Evangelhos não pouparam versículos para documentar a profunda marca que deixou, nos primeiros discípulos, o olhar de Jesus. Não se cansem de olhar com os olhos de Deus!

Em uma civilização paradoxalmente ferida por anonimato e, ao mesmo tempo, vergonhosamente enferma de curiosidade malsã pelo outro, a Igreja necessita do olhar próximo do cate-quista para contemplar, comover-se e deter-se quantas vezes for necessário para dar ao nosso caminhar o ritmo curador da “pro-ximidade”. Neste mundo precisamente o catequista deverá tor-nar presente a fragrância do olhar do coração de Jesus. E terá de iniciar seus irmãos nesta “arte do acompanhamento”, para que pequenos e grandes aprendam sempre a descalçar as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5). Olhar respeitoso, olhar curador, olhar cheio de compaixão também diante do es-petáculo sombrio da onipotência manipuladora dos meios, do passo prepotente e desrespeitoso dos que, como gurus do pensa-mento único, até dos despachos oficiais, nos querem fazer clau-dicar na defesa da dignidade da pessoa, contagiando-nos uma incapacidade de amar.

Por isso, peço a vocês, catequistas: cuidem de seu olhar! Não claudiquem nesse olhar dignificador. Não fe-chem nunca os olhos diante do rosto de uma criança que

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não conhece Jesus. Não desviem seu olhar, não se façam de distraídos. Deus os coloca, os envia para que amem, olhem, acariciem, ensinem. E os rostos que Deus lhes con-fia não se encontram somente nos salões da paróquia, no templo... Vão mais além: estejam abertos às novas encru-zilhadas dos caminhos nas quais a fidelidade adquire o nome de criatividade. Vocês certamente recordarão que o Directorio Catequístico General na Introdução nos propõe a palavra do semeador. Tendo presente esse horizonte bí-blico, não percam a identidade de seu olhar de catequistas. Porque existem modos e modos de olhar... Existem os que olham com olhos de estatísticas... e muitas vezes só veem números, só sabem contar... Existem os que olham com olhos de resultados... e muitas vezes só veem fracassos... Existem os que olham com olhos de impaciência... e só veem esperas inúteis...

Peçamos a quem nos colocou nesta semeadura que nos faça participantes de seu olhar, o do semeador bom e “esbanjador” de ternura. Para que seja um olhar confiante e de longo alento, que não ceda à tentação estéril de querer ape-nas satisfazer sua curiosidade cada dia quanto à semeadura porque sabe bem que, mesmo que durma ou esteja vigilante, a semente cresce por si mesma.

Um olhar esperançoso e amoroso que, quando vê despontar a cizânia no meio do trigo, não reage com queixas nem se alarma, porque sabe e recorda a fecundidade gratuita da caridade.

Mas se algo é próprio do catequista é reconhecer-se como o homem e a mulher que “anuncia”. Se é certo que todo cristão deve participar da missão profética da Igreja, o catequista o faz de uma maneira especial.

Que significa anunciar? É mais que dizer algo, que con-tar algo. É mais que ensinar algo. Anunciar é afirmar, gritar,

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comunicar, é transmitir com toda a vida. É aproximar do outro seu próprio ato de fé que – por ser totalizador – se torna ges-to, palavra, visita, comunhão... E anunciamos não uma mensa-gem fria ou um simples corpo doutrinal. Anunciamos antes de tudo uma Pessoa, um acontecimento: Cristo nos ama e nos deu sua vida por nós (cf. Ef 2,1-9). O catequista, como todo cristão, anuncia e testemunha com certeza: que Cristo ressuscitou e está vivo no meio de nós (cf. At 10,34-44). O catequista oferece seu tempo, seu coração, seus dons e sua criatividade para que essa certeza se faça vida no outro, para que o projeto de Deus se faça história no outro. É próprio também do catequista que esse anúncio que tem como centro uma pessoa, Cristo, se faça também anúncio de sua mensagem, de seus ensinamentos, de sua doutrina. A catequese é ensinamento. Deve-se dizê-lo sem complexo. Não se esqueçam de que vocês como catequistas completam a ação missionária da Igreja. Sem uma apresentação sistemática da fé, nosso seguimento do Senhor será incompleto, tornará difícil darmos razão do que cremos, seremos cúmplices de que muitos não chegarão à maturidade da fé.

Em alguns momentos da história da Igreja se separou demasiadamente kerigma e catequese, hoje, porém devem estar unidos, ainda que não identificados. A catequese deve-rá nestes tempos de descrença e indiferença generalizada ter uma forte marca querigmática. Mas não deverá ser somente kerigma, senão no passar do tempo deixará de ser catequese. Deverá gritar e anunciar: Jesus é o Senhor!, mas deverá tam-bém levar gradual e pedagogicamente o catecúmeno a co-nhecer e a amar a Deus, a entrar em sua intimidade, a iniciá-lo nos sacramentos e na vida do discípulo.

Não deixem de anunciar que Jesus é o Senhor... aju-dem justamente a que seja realmente “Senhor” de seus ca-tequizandos... Para isso os ajudem a rezar em profundidade, a entrar em seus mistérios, a gostar de sua presença... Não

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esvaziem de conteúdo a catequese, nem mesmo a deixem reduzida a simples ideias, as quais, quando saem de seu engaste humano, de seu enraizamento na pessoa, no Povo de Deus e na história da Igreja, acarretam enfermidade. As ideias assim entendidas acabam sendo palavras que não di-zem nada e que podem transformar-nos em nominalistas modernos, em “elites ilustradas”.

Neste contexto ganha muita importância o testemu-nho. A catequese, como educação na fé, como transmissão de uma doutrina, exige sempre um sustento testemunhal. Isso é comum a todo cristão, não obstante no catequista adqui-re uma dimensão especial. Porque se reconhece chamado e convocado pela Igreja para dar testemunho. A testemunha é aquele que tendo visto algo, o quer contar, narrar, comuni-car... No catequista o encontro pessoal com o Senhor dá não só credibilidade a suas palavras, mas dá credibilidade a seu ministério, ao que é e ao que faz.

Se o catequista não contemplou o rosto do Verbo feito carne, não merece ser chamado catequista. E mais, pode che-gar a receber o nome de impostor, porque está enganando seus catequizandos.

Algo mais: vocês são catequistas deste tempo, desta cidade imponente que é Buenos Aires, nesta Igreja diocesa-na que está caminhando em assembleia... E por serem cate-quistas deste tempo assinalado pelas crises e pelas mudanças não se envergonhem de propor certezas... Nem tudo está em mudança, nem tudo é instável, nem tudo é fruto da cultura ou do consenso. Existe algo que se nos foi dado como dom, que supera nossas capacidades, que supera tudo o que possamos imaginar ou pensar. O catequista deve viver como ministério próprio aquilo que diz o evangelista São João: “Nós conhe-cemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e

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Deus nele” (1Jo 4,16). Estamos certamente diante de um tem-po difícil, de muitas mudanças, que inclusive nos levam a fa-lar de mudança de época. O catequista, diante deste novo e desafiador horizonte cultural, sentir-se-á em mais de uma ocasião questionado, perplexo, mas nunca abatido. Desde a memória do atuar de Deus em nossas vidas, podemos dizer com o apóstolo: “Sei em quem pus minha confiança” (2Tm 1,12). Nestes momentos de encruzilhada histórica e de grande crise, a Igreja necessita da fortaleza e da perseverança do ca-tequista que, com sua fé humilde, mas segura, ajude as novas gerações a dizer com o salmista: “...com meu Deus escalarei muralhas” (Sl 17(18),30). “Ainda que eu atravesse o vale escu-ro, nada temerei, pois estais comigo” (Sl 22(23),4).

Os afazeres de catequistas de grandes cidades, com sua complexidade, como Buenos Aires, diferenciam-se dos afazeres do catequista de qualquer outro lugar.

Toda grande cidade tem muitas riquezas, muitas pos-sibilidades, mas também são muitos os perigos. Um deles é o da exclusão. Às vezes me pergunto se como Igreja dioce-sana não somos cúmplices de uma cultura da exclusão na qual já não exista lugar para o ancião, a criança incômoda, não exista tempo para deter-se à beira do caminho. A tenta-ção é grande, sobretudo porque se apoia nos novos dogmas modernos como a eficiência e o pragmatismo. Por isso, falta muita audácia para ir contra a corrente, para não renunciar à utopia possível de que seja precisamente a inclusão a que marque o estilo e ritmo do nosso passo.

Animem-se a pensar a pastoral e a catequese a partir da periferia, a partir daqueles que estão mais afastados, dos que ha-bitualmente não acorrem à paróquia. Eles também estão con-vidados para as Bodas do Cordeiro. Faz alguns anos lhes dizia em um EAC: saiam das suas covas! Hoje lhes repito: saiam da sacristia, da secretaria paroquial, dos salões vip!, saiam! Façam

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presente a pastoral do átrio, das portas, das casas, da rua. Não es-perem, saiam! E, sobretudo, tornem presente uma catequese que não exclua, que tenha sabor de ritmos diversos, aberta aos novos desafios deste mundo complexo. Não se transformem em fun-cionários rígidos, fundamentalistas do planejamento que exclui.

Deus os chamou a ser seus catequistas. Nesta Igreja de Buenos Aires que está transitando por tempos do Espírito, sejam parte e protagonistas da assembleia diocesana, não para “ma-nejar”, nem impor, mas para fazer juntos a apaixonante expe-riência do discernir com outros, de deixar que seja Deus quem escreve a história.

A cada ano vocês, como catequistas, se reúnem no Encontro Arquidiocesano de Catequese (EAC). E o EAC é sinô-nimo de comunhão. Deixam por um dia o trabalho da paróquia para experimentar a riqueza da comunhão, bela sinfonia do dis-tinto e comum. É um dia de compartilhar, de enriquecer-se com o outro, de fazer a experiência de viver no pátio do La Salle “a maravilha do encontro” dos que semana após semana, aos grandes e aos pequenos, anunciam Jesus. Vivam essa comu-nhão também com os outros agentes de pastoral, com os outros membros do povo fiel. Sejam diáconos, isto é, servidores quase obsessivos da comunhão. Somem-se a este sopro do Espírito que nos convida a superar nosso individualismo que canoniza o “não se meta”. Desterremos por um momento a mentalidade nostálgica do “não se vá”, para vencer os profetas da infelicida-de que já o caminho os encontra velhos e cansados...

No mundo atual, já existe demasiadamente dor e rostos entristecidos para nós, que cremos na boa-nova do Evangelho, escondermos o prazer pascal. Por isso, anunciem com alegria que Jesus é o Senhor... Essa alegria profunda que tem sua causa justamente no Senhor.

Com os catequistas de todo o mundo, peçam a Deus essa graça para este ano e todos os outros. Por isso caminharam

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os catequistas juntos, para cuidar e preservar a capacidade de festa, a alegria do peregrinar com outro, o prazer de saber-se irmanados nesta bela vocação de catequistas. Ficarão alivia-dos de bagagens, com o coração cheio de fervor... E o farão em Luján1, junto da Mãe Fiel, para que ela os ajude a encon-trar-se com seu Filho, com todo o Povo de Deus que peregrina nesta terra da Argentina...

Renovarão sua vocação, confirmarão sua missão. Pedirão a graça de ser instrumentos de comunhão, para que, fazendo da Igreja uma Casa de todos, possam fazer presente a ternura de Deus nas penosas situações da vida, mesmo nos tempos de conflitos que sei que se vislumbram em um futuro não muito distante.

Que Maria de Luján lhes conceda o que pedem com os catequistas de todo o país: “Fazer de seu ministério um lugar de escuta, anúncio e alegria”.

Homilia aos Catequistas, EAC, março de 2005.

Vigie seus passos quando for para a casa de Deus. Aproxime-se

disposto a escutar

A festividade de São Pio X e a celebração do dia do Catequista são uma oportunidade propícia para fazer chegar a você meu sentimento de gratidão por sua entrega silenciosa e comprometida no ministério da catequese.

1 Cidade argentina localizada na província de Buenos Aires, palco de encontro de catequistas em 2005.

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Ministério que tem tantas crianças, jovens e adultos como destinatários, e é uma das formas nas quais a Igreja faz hoje realidade o mandato do Senhor: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).

Ministério da Palavra que terá muito de anúncio, de ensinamento, de educação da fé, de discipulado, de inicia-ção cristã.

Ministério da Igreja servidora que deseja fazer presente e próximo o único mestre, que tem “palavras da vida eterna” (Jo 6,68).

Ministério que nos necessita orantes (Lc 22,46), felizes por estar com Ele (Mc 3,14). Para que, a partir da experiência sempre renovadora e libertadora do encontro com o messias, possam ser mais testemunhas que mestres. Porque o anúncio se simplifica e adquire força de boa notícia quando no centro da catequese e de toda a vida da Igreja é preciso uma pessoa e um acontecimento: Cristo, sua Páscoa, seu Amor.

Só assim poderá ter autoridade o ministério, brindando nestes tempos de tanta desagregação o serviço incomensu-rável de fazer presente e próximo o Bom mestre, que ensina com autoridade. Claro que não com uma autoridade como muitas vezes a concebe o mundo, próxima da eloquência, do poder ou dos títulos ilustrados; mas sim com aquela au-toridade que produzia o pasmo e a admiração dos homens simples, contemporâneos de Jesus. Autoridade e sabedoria que nada têm dessa instrução que engorda e ensimesma, mas do sentido que etimologicamente nos refere o vocábulo autoridade “o que nutre e faz crescer” (autoritas, de augere). Você está chamado, como catequista, a acompanhar, a con-duzir para as águas tranquilas a fim de que o encontro se faça fonte, festa, abrigo.

Para isso se exigirá de você que saiba escutar e ensi-ne a escutar tal como o fez Jesus. E não simplesmente como

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uma atitude que facilita o encontro entre as pessoas, mas, fun-damentalmente, como um elemento essencial da mensagem revelada. Com efeito, toda a Bíblia se vê atravessada por um convite repetido: escute!

Por isso, será parte do seu ministério catequético não só saber escutar e ajudar a aprender a escutar, mas principalmen-te mostrar a Deus que você sabe e quer escutar.

Foi justamente essa ideia, para a qual todos fizemos oração por ocasião da festividade de São Caetano. “A leitura do Êxodo nos diz algo muito simples e por sua vez algo muito belo, muito consolador: que Deus nos escuta. Que Deus, nos-so Pai, escuta o clamor de seu povo.” Esse clamor silencioso da fila interminável que passa diante de São Caetano. Nosso Pai do céu escuta o rumor de nossos passos, a oração que vamos ruminando em nosso coração, na medida em que nos aproximamos.

Nosso Pai escuta os sentimentos que nos comovem, ao recordar os nossos seres queridos, ao ver a fé dos outros e suas necessidades, ao recordar-nos de coisas lindas e coisas tristes que nos aconteceram este ano... Deus nos escuta.

Ele não é como os ídolos, que têm ouvidos mas não escutam. Não é como os poderosos, que escutam o que lhes convêm. Ele escuta tudo. Também as queixas e os aborreci-mentos dos seus filhos. E não só escuta, mas gosta de escu-tar. Gosta de estar atento. “Ouvir bem, ouvir tudo o que nos acontece...”

Não deve estranhar que neste caminho em que transi-tamos como Igreja diocesana nesses últimos anos haja apare-cido em mais de uma ocasião o tema da escuta.

Porque aprender a escutar vai nos permitir dar o primei-ro passo para que, em nossas comunidades, se faça realidade a tão anelada acolhida cordial. Quem escuta sadiamente recria os vínculos pessoais, tantas vezes lastimados, com o simples

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bálsamo de reconhecer o outro como importante e com algo para me dizer. A escuta aprimora o diálogo e torna possível o milagre da empatia que vence distâncias e inquietações.

Essa atitude nos libertará de alguns perigos que podem comprometer nosso estilo pastoral. O de entrincheirar-nos como Igreja, edificando muros que nos impeçam de ver o horizonte. O perigo de ser Igreja autorreferencial que espreita todas as encruzilhadas da história e que é capaz de tornar histéricos com a doença da interioridade até as melhores ini-ciativas pastorais; o perigo de empobrecer a catequese con-cebendo-a como um simples ensinamento, ou uma simples doutrinação com conceitos frios e distantes no tempo.

A atitude da escuta irá nos ajudar a não atraiçoar o frescor e a força do anúncio querigmático numa forjada e aguada moral sem convicção, transformando a novidade do “Caminho” em lama que cega e empantana.

Necessitamos exercitar-nos na escuta... Para que a nossa ação evangelizadora se enraíze nesse âmbito da inte-rioridade onde se desenvolve o verdadeiro catequista que, mais além de sua atividade, sabe fazer de seu ministério diaconia do acompanhamento.

Escutar é mais que ouvir... Este último está na linha da informação. O primeiro na linha da comunicação, na capa-cidade do coração que torna possível a profundidade, sem a qual não é possível um verdadeiro encontro. A escuta nos aju-da a encontrar o gesto e a palavra oportuna que nos desinstala da sempre mais tranquila condição de espectador.

Quer você como catequista animar verdadeiros en-contros de catequese? Peça ao Senhor a graça da escuta! Deus o chamou a ser catequista, não simples técnico de co-municação. Deus o elegeu para que faça presente o calor da Igreja Mãe, matriz indispensável para que Jesus seja amado e conhecido hoje.

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Escutar é também capacidade de compartilhar pergun-tas e buscas, de fazer caminho juntos, de afastar-nos de todo complexo de onipotência, para nos unirmos no trabalho co-mum que se faz peregrinação, pertença, povo.

Nem sempre é fácil escutar. Às vezes é mais cômodo fazer-se de surdo, colocar o fone de ouvido para não escutar ninguém. Com facilidade suplantamos a escuta por e-mail, pela mensagem e pelo chat, e assim privamos a escuta da realidade de rostos, olhares e abraços. Podemos também pré-selecionar a escuta e escutar alguns, e logicamente os que nos convêm. Nunca faltam em nossos ambientes eclesiais aduladores que porão em nosso ouvido justamente o que nós queremos escutar.

Escutar é atender, querer entender, valorizar, respeitar, salvar a proposição alheia... É preciso pôr os meios para escu-tar bem, para que todos possam falar, para que se tenha em consideração o que cada um quer dizer. Tem-se – no escu-tar – algo martirial, algo de morrer a si mesmo que recria o gesto sagrado do Êxodo: tire as sandálias, ande com cuidado, não atropele. Cale-se, é terra sagrada, há alguém que tem algo para dizer! Saber escutar é uma graça muito grande! É dom que é preciso pedir e exercitar-se nele.

Sempre me chamou a atenção que quando perguntam a Jesus qual é o mandamento principal, Ele responde com a oração judaica mais famosa: o “Shemá”. Palavra que em he-braico quer dizer “escute”, deu nome próprio a um dos textos mais importantes da Sagrada Escritura.

Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.

Amará o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração,com toda a tua alma e com todas as tuas forças.

Os mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu coração.

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Tu os inculcarás a teus filhos, e deles falarásseja sentado em tua casa, seja andando pelo caminho,

ao te deitares e ao te levantares. Hás de prendê-los à tua mão como sinal,

E os levarás como uma faixa frontal diante dos olhos (Dt 6,4-8)

Para o povo de Israel, essa oração é tão importante, que os judeus piedosos a guardam em pequenos rolos atados sobre sua fronte ou no braço próximo do coração, e constitui o ensinamento inicial e principal que se transmite de pais a filhos, de geração em geração. Por trás de tudo isso está a certeza comunicada de geração em geração: a consciência de que o único modo de aprender e transmitir a aliança de Deus é este, escutando.

Jesus soma a este primeiro mandamento outro que o segue em importância:

Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior que

estes não existe (Mc 12,31).

Escutar para amar, escutar para entrar em diálogo e res-ponder; “escutar e colocar em prática a Palavra de Deus”, dirá em outras oportunidades para falar sobre o chamado e a res-posta ao amor de Deus. Escutar e comover-se será sua atitude permanente diante do que sofre. Não existe possibilidade de amor a Deus e ao próximo sem esta primeira atitude: escutá-los.

Nesta mesma linha, São Bento inicia sua regra monásti-ca que tanta influência teve na vida da Igreja: “Escute, filho, os preceitos do mestre, e incline o ouvido de seu coração” (Regra beneditina, Prólogo).

São Bento nos sintetiza, neste primeiro conselho, toda a sabedoria monástica. O verbo original que ele utiliza no

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idioma latino é: “obsculta” que, além de “escuta”, significa: “ausculta”, “examina”, “explora”, “observe”, “reconheça”. Isto é, escutar inclinando o ouvido de nosso coração com uma atenção que tudo examina, tudo observa, e sabe abrir-se a tudo o que o mestre quer dizer a você para poder entrar em comunhão com Ele.

Tendo em consideração essas coisas, neste tempo que nos reconhecemos como Igreja em assembleia, convido você a que assuma, como parte do ministério que a Igreja lhe con-fiou, a pedagogia do diálogo. Assim você fará presente, com seus gestos e palavras oportunas, o rosto da Mãe Igreja, carac-terizada por uma autêntica atitude dialogal.

Dialogar é estar atento à Palavra de Deus e deixar-me perguntar por Ele; dialogar é anunciar sua boa-nova e também saber “auscultar” os questionamentos, as dúvidas, os sofri-mentos e as esperanças de nossos irmãos, aos quais nos toca acompanhar e também aos quais reconhecemos como nossos acompanhantes e guias no caminho.

Será este um serviço eclesial muito valioso e um modo concreto de sair ao encontro de homens e mulheres de Buenos Aires que, mais além de sua condição religiosa, como todo ser humano, anelam e buscam espaços de diálogo verdadeiro.

Escutar para tornar possível o verdadeiro diálogo hoje. Em todos os níveis... em todos os âmbitos. Diálogo, encontro, respeito... constantes de Deus, trinitário e pró-ximo, que fez você participante de sua pedagogia de sal-vação. Não se esqueça: como catequista, mais que falar, deverá escutar; você está chamado a dialogar.

Maria é especialista em tudo isso. Como ninguém ela fez de sua vida escuta de Deus e olhar pronto às necessidades dos outros. Que ela nos ensine a ter os ouvidos do coração atentos para poder ser hoje, nesta Buenos Aires convulsionada e pagã, discípulos de Jesus e irmãos de todos.

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“O Senhor Deus deu-me a língua de um discípulo para que eu saiba reconfortar pela palavra o que está abatido. Cada manhã ele desperta meus ouvidos para que escute como dis-cípulo; o Senhor Deus abriu-me o ouvido e eu não relutei, não me esquivei” (Is 50,4-5).

Não deixe de rezar por mim para que seja um bom catequista. Que Jesus o abençoe e a Virgem Santíssima cuide de você.

Carta aos Catequistas, agosto de 2006.

Modelo do peregrino incansável

A vida cristã é sempre um caminhar na presença de Deus, mas não está isenta de lutas e provações, como a que nos narra a primeira leitura, na qual aparece um velho co-nhecido por todos nós, Abraão. Figura do crente fiel, modelo do peregrino incansável, do homem que tem um santo temor de Deus a ponto de não lhe negar o próprio filho, o qual será abençoado com uma grande descendência.

Hoje Abraão nos interpela como Igreja em Buenos Aires em estado de assembleia, sobre a maneira na qual estamos caminhando na presença de Deus... Porque existem modos e modos de caminhar na presença de Deus. Um verdadeiro, o de Abraão, irrepreensível, em liberdade, sem medo, porque confiava no Senhor. Deus era sua força e sua segurança, como cantamos no salmo. O outro modo, aquele que às vezes fa-zemos e no qual nos dizemos peregrinos, mas no fundo já escolhemos o caminho, o ritmo, os tempos...; nem somos dis-cípulos, porque seguimos a nós mesmos; nem somos irmãos,

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porque agimos “à nossa maneira”. Isso sim, talvez já tenhamos aprendido, essa arte de fazer os outros crer, e às vezes até nós mesmos, que sempre foi a vontade de Deus.

Por isso, sempre é bom o deserto quaresmal, que nos permite ano após ano “peregrinar interiormente para a fonte de misericórdia” (Bento XVI) para purificar o coração, lançar luz sobre as tentações do nosso caminhar como Igreja, e, no caso de vocês, as tentações no caminhar como catequistas. E isso é o que os congregou nesta reunião de todos os anos que é o EAC. Para, em um clima de comunhão e festa, olhar ao Deus fiel, a fim de que a memória se faça identidade, e a missão, fraternidade...

Assim é nossa vida de cristãos... olhar para Deus e nele refletir-nos... Um Deus fiel, mas desinstalador, exigen-te, que nos pede a obediência da fé... Um cristão que se reconhece peregrino, que experimenta em sua vida a passa-gem ciumenta do Deus da aliança, mas que sabe, ao mesmo tempo, caminhar na presença amorosa do Pai, abandonar-se nele com uma infinita confiança como o soube fazer Santa Teresinha ou o irmão Charles de Foucauld... Na vida de todo cristão, de todo discípulo, de todo catequista, não pode fal-tar a experiência do deserto, da purificação interior, da noite escura, da obediência da fé, como a que viveu nosso Pai Abraão. Mas aí também está a raiz do discipulado, do aban-dono, da experiência de povo, que nos permite reconhecer--nos como irmãos.

Inclusive sua providência. Vocês mesmos experimenta-ram hoje em pequena escala o desinstalar-se... e deixaram os amplos pátios do La Salle para viver a novidade que lhes trazia a mudança de sede. Talvez me equivoque, porém penso que não terá faltado algum enfermo de nostalgia, com sintomas de aburguesamento, que não apreciou o presente, saudoso das co-modidades passadas.

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Algo assim, mas muito mais grave, pode acontecer em nossa vida espiritual e eclesial. Se existe algo que paralise a vida é renunciar a continuar caminhando para agarrar-se ao já adquirido, ao seguro, ao de sempre. Por isso, o Senhor de-sinstala você, e o faz sem anestesia... Como hoje a Abraão, pede-lhe que lhe entregue seu filho, seus sonhos, seus pro-jetos... Ele o está podando sem explicação, está iniciando-o na escola do desprendimento, para que seja autenticamente livre, plenamente disponível aos projetos de Deus, com a finalidade de fazê-lo, assim, colaborador da grande história, da história da salvação para ele e, sobretudo, para o povo a ele confiado.

As únicas palavras de Abraão a Deus que aparecem no texto que hoje escutamos são: “aqui estou”. Somente estas pa-lavras diz Abraão: “aqui estou”. E nestas duas palavras, “aqui estou”, está tudo. Como o profeta, como o crente, como o pe-regrino... o “aqui estou”, o “faça-se em mim segundo sua pala-vra”, o “amém”... são as únicas respostas possíveis. Se não são estas, tudo o mais é ruído, distrai, confunde... Se não podemos pronunciar com nossa vida o “aqui estou”, melhor calar.

Como nos custa dizer “aqui estou”! Muitas vezes o condicionamos...

“Aqui estou”, se coincidir com o que penso...“Aqui estou”, se me agradar a proposta, os termos...“Aqui estou”, se não significar morrer por meus planos,

projetos, pequenas coisas da vida...Por isso, neste segundo domingo da Quaresma, tem-

po de conversão interior, convido vocês a encarnar em suas vidas todo o caminho interior que pressupõe o estado de Assembleia: o de colocar-nos em “movimento espiritual” que nos permita ir incorporando critérios pastorais e gestos ade-quados comuns para fazer presente um estilo comum de ser Igreja hoje em Buenos Aires.

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Mas tudo isso não será possível se estamos instalados... protegidos em nosso pequeno mundo. Quando perdemos a capacidade de abrir-nos para a novidade do Espírito não podemos responder aos sinais dos tempos... E não podemos ser autênticos discípulos e, menos ainda, irmãos de todos... Transformamo-nos em “atualizados fariseus” que vão fechan-do sua capacidade de escuta e acolhida, para fazer de nossa Igreja comunidades estéreis, tristes e envelhecidas... Cheia de medos paralisantes que nos levam muitas vezes a atraiçoar a mensagem e dizer e fazer qualquer coisa, menos anunciar a boa-nova. E, quando não estamos abertos à novidade do Espírito, que sempre tem o frescor da comunhão, corremos o perigo de ir convivendo em nosso coração com um certo de-sejo veemente de desagrado diante de qualquer postura que se entenda ou não como controle de meus irmãos.

Prestemos também atenção ao Evangelho de hoje. Diz o texto de Marcos: “Pedro estava tão assustado que não sabia o que dizia”. Ao Pedro medroso, fechado ao Espírito, nasce a tentação de permanecer ali instalado no monte, renunciando ao chamado de ser fermento no plano. É uma tentação sutil do espírito do mal. Não o tenta com algo grosseiro, mas sim com algo aparentemente piedoso, mas que o desvia de sua missão, daquilo para o qual foi escolhido por Deus. O olhar se apeque-na, a tentação de instalar-se também se faz presente na vida do apóstolo... O estar bem, seguro, cômodo, até espiritualmente contido, pode ser tentação do caminho de nossa vida e minis-tério de catequistas. Fiquemos aqui em nossas tendas, em nos-sos montes, em nossas praias, em nossas paróquias, em nossas comunidades tão lindas e prolixas... pode ser muitas vezes, não sinal de piedade e pertença eclesial, mas covardia, comodida-de, falta de horizontes, rotina... que costuma ter como principal causa o não ter escutado bem o Filho amado de Deus, não o termos contemplado, não o termos entendido...

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O bom Deus em sua providência nos permite concluir este encontro de catequistas com o Evangelho da Transfiguração, que nos convida a colocar nosso olhar no Senhor; só nele, para poder também nós dizermos “aqui estou”. E o fazemos também como Igreja em Buenos Aires em estado de Assembleia, que pede a graça de “reforçar os vínculos de caridade fraterna, para assim poder recriar a consciência de pertencer ao único Povo de Deus”. E para isso é necessário pedir, uns pelos outros, a graça de uma sincera conversão...

Conversão pessoal e eclesial para poder-nos renovar no espírito de comunhão e participação que nos permita, superando os medos paralisantes, canalizar na liberdade do Espírito... Conversão pessoal e eclesial para enfrentar purifi-cações, correções, que nos permitam crescer em fidelidade e encontrar caminhos novos de evangelização... Conversão pessoal e eclesial para encarnar em gestos de proximidade a pedagogia da santidade, que se faz escuta, diálogo, discerni-mento... Conversão pessoal e eclesial para não se deixar levar pelos profetas do “não se vá”, para não se deixar adoecer pelo coração desiludido que, à medida que vai endurecendo, vai perdendo a pulsação da festa e da vida para só abraçar as críticas e os medos...

Que, no meio desta peregrinação quaresmal, possa-mos redescobrir o Cristo transfigurado para que Ele, só Ele..., com sua presença de proximidade e ternura, cure, sare, su-pere todo temor e medo, porque Ele é o Deus-conosco, o Emanuel. E, “se Deus está conosco, quem poderá estar con-tra nós?” (cf. Rm 8,31).

Homilia aos Catequistas, EAC, março de 2007.

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“Ele chama cada um por seu nome, e o faz sair...”

Como todos os anos, a festa de São Pio X é ocasião para que juntos demos graças a Deus por este belo ministério eclesial no qual a Palavra se torna compreensível e significa-tiva para a vida de tantas crianças, jovens e adultos. Faço-o no marco sempre atual do caminho que estamos percorren-do como Igreja diocesana em estado de assembleia, a fim de encontrar as atitudes próprias que façam possível uma evan-gelização orientada para as periferias, para que todos, e não simplesmente alguns, tenham vida em plenitude.

Escrevo-lhes consciente das enormes dificuldades que apresenta a tarefa de vocês. A transmissão da fé nunca foi traba-lho simples, mas nestes tempos de mudanças de época o desafio ainda é maior.

Nossas tradições culturais já não se transmitem de uma geração para outra com a mesma fluidez que no passado. Isso afeta, inclusive, o núcleo mais profundo de cada cultura, cons-tituído pela experiência religiosa, agora igualmente difícil de ser transmitida através da educação e da beleza das expressões cul-turais, alcançando ainda até a mesma família que, como lugar do diálogo e da solidariedade intergeracionais, havia sido um dos veículos mais importantes da transmissão da fé (Aparecida, 39). Daí que necessitamos “... recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seu sen-tido” (Aparecida, 41). Só colocando o olhar no Senhor podere-mos cumprir sua missão e adotar suas atitudes.

Uma das contribuições mais lúcidas da recente Assembleia de Aparecida foi tomar consciência de que talvez

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o perigo maior da Igreja não deva ser buscado fora, mas den-tro mesmo de seus filhos; na eterna e sutil tentação do res-guardar-se e encerrar-se para estar protegidos e seguros.

A Igreja não pode dobrar-se diante dos que só veem confusão, perigos e ameaças ou dos que pretendem cobrir a variedade e complexidade de situações com uma capa de ideologismos desgastados ou de agressões irresponsá-veis. Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho enraizada em nossa história, a começar de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo que suscite discípulos e missionários. Isso não depende tanto de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem tal tradição e novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino, protagonistas de vida nova para uma América Latina que quer reconhecer com a luz e a força do Espírito.

Não resistiria aos embates do tempo uma fé católi-ca reduzida à bagagem, a elenco de normas e proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados. Nossa maior ameaça é o cinzento prag-matismo da vida cotidiana da Igreja na qual aparentemente tudo procede com normalidade, mas na realidade a fé se vai desgastando e degenerando em mesquinharia. A todos nos cumpre “recomeçar a partir de Cristo”, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva (Aparecida, 11-12).

Este centrar-nos em Cristo paradoxalmente nos tem de descentralizar. Porque onde existe verdadeira vida em Cristo

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existe saída em nome de Cristo. Isso é autenticamente reco-meçar em Cristo! É reconhecer-nos chamados por Ele, a estar com Ele, a ser seus discípulos, para experimentar a graça do envio, para sair e anunciar, para ir ao encontro do outro (cf. Mc 3,14). Recomeçar a partir de Cristo é olhar para o bom mestre que nos convida a sair de nosso caminho habitual para fazer do que acontece junto do caminho, à margem, na perife-ria, experiência de “proximidade” e verdadeiro encontro com o amor que nos faz livres e plenos.

Recordo o que compartilhava com vocês em um dos primeiros EACs, há muitos anos: “Uma coisa que é preciso ter em consideração para orientar a catequese é que o recebido deve ser anunciado (cf. 1Cor 15,3). O coração do catequista se submete a este duplo movimento centrípeto e centrífugo (receber e dar). Centrípeto enquanto ‘recebe’ o kerigma como dom, acolhe-o no centro de seu coração. Centrífugo, enquanto o anuncia com uma necessidade existencial (‘ai de mim se não evangelizo’). A concessão do kerigma é missionária: nesta ten-são se move o coração do catequista. Trata-se de um coração eclesial que ‘escuta religiosamente a Palavra de Deus e a pro-clama com coragem’” (Vaticano II, Dei Verbum).

Permitam-me que insista sobre isto com vocês: por se-rem catequistas, por acompanharem o processo de crescimen-to da fé, por estarem comprometidos no ensinamento, pode o “tentador” fazê-los crer que seu âmbito de ação se reduz ao intraeclesial e os leve a permanecer demasiado tempo em torno do templo e do átrio. Isso costuma acontecer... Quando nossas palavras e nosso horizonte têm a perspectiva do encer-ramento e do pequeno mundo, não nos deve assombrar que nossa catequese perca a força do kerigma e se transforme em ensinamento insípido de doutrina, em transmissão frustrante de normas morais, em experiência esgotadora de se estar se-meando inutilmente.

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Por isso, “recomeçar a partir de Cristo” é concretamente imitar o Bom mestre, o único que tem Palavra de Vida Eterna, e sair uma e mil vezes pelos caminhos em busca da pessoa em suas mais diversas situações.

“Recomeçar a partir de Cristo” é olhar para o Bom mes-tre; para o qual soube diferenciar-se dos rabinos de seu tempo porque seu ensinamento e seu ministério não ficavam localiza-dos na esplanada do templo, mas que foi capaz de “tornar-se caminho”, porque saiu ao encontro da vida de seu povo para fazê-los partícipes das primícias do Reino (Lc 9,57-62).

“Recomeçar a partir de Cristo” é cuidar da oração no meio de uma cultura agressivamente pagã, para que a alma não se enrugue, o coração não perca seu calor e a ação não se deixe invadir pela pusilanimidade.

“Recomeçar a partir de Cristo” é sentir-se interpelados por sua palavra, por seu envio e não ceder à tentação mini-malista de contentar-se com só conservar a fé e dar-se por satisfeito de que alguém continue vindo à catequese.

“Recomeçar a partir de Cristo” implica empreender continuamente a peregrinação para a periferia. Como Abraão, modelo do peregrino incansável, cheio de liberdade, sem medo, porque confiava no Senhor. Ele era sua força e sua se-gurança, por isso soube não se deter em seu caminhar, porque o fazia na presença do Senhor (cf. Gn 17,1).

Além disso, na vida de todo cristão, de todo discípulo, de todo catequista, não falta a experiência do deserto, da purifica-ção interior, da noite escura, da obediência da fé, como a que vi-veu nosso pai Abraão. Mas aí também está a raiz do discipulado. Os cansaços do caminho não podem acovardar e deter nossos passos porque equivaleria a paralisar a vida. “Recomeçar a partir de Cristo” é deixar-se desinstalar para não se agarrar ao já adqui-rido, ao seguro, ao de sempre. E porque só em Deus descansa minha alma, por isso saio ao encontro das almas.

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“As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”

“Recomeçar a partir de Cristo” supõe não ter medo da periferia. Aprendamos de Jonas a quem olhamos em mais de uma oportunidade este ano. Sua figura é paradigmática neste tempo de tantas mudanças e incertezas. É um homem piedoso, que tem uma vida tranquila e ordenada. Mas justamente, como às vezes esse tipo de espiritualidade pode trazer tanta ordem, tanta clareza no modo de viver a religião, leva a enquadrar rigi-damente os lugares de missão, a deixar-se tentar pela segurança do que “sempre se havia tido”. E, para o assustadiço Jonas, o envio para Nínive trouxe crise, desorientação, medo. Resultava um convite a aproximar-se do desconhecido, do que não tem resposta, da periferia de seu mundo eclesial. E por isso o discí-pulo quis escapar da missão, preferiu fugir...

As fugas não são boas. Muitas escondem traições e renúncias. E costumam ter semblantes tristes e conversações amargas (cf. Lc 24,17-18). Na vida de todo cristão, de todo discípulo, de todo catequista deverá estar presente o animar--se para a periferia, o sair de seus esquemas, do contrário não poderá hoje ser testemunha do mestre; e mais, seguramente se converterá em pedra e escândalo para os outros (cf. Mt 16,23).

“Recomeçar a partir de Cristo” é ter em todo momen-to a experiência de que Ele é nosso único Pastor, nosso único centro. Por isso centrar-nos em Cristo significa “sair com Cristo”. E, assim, nossa saída para a periferia não será afastar-nos do centro, mas permanecer na videira e dar desta maneira verda-deiro fruto em seu amor (Jo 15,4). O paradoxo cristão exige que o itinerário do coração do discípulo necessite sair para poder permanecer, mudar para poder ser fiel.

Por isso, desde aquela bendita madrugada de domingo na história, ressoam, no tempo e no espaço, as palavras do anjo que acompanham o anúncio da ressurreição: “Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia” (Mc 16,7). O mestre sempre nos precede. Ele vai adiante (Lc 19,28) e, por

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O verdadeiro poder é o serviço

isso, nos coloca a caminho, nos ensina a não permanecermos quietos. Se existe algo mais oposto ao acontecimento pascal é dizer: “Estamos aqui, venham”. O verdadeiro discípulo sabe e cuida de um mandato que lhe dá identidade, sentido e beleza ao seu crer: “Vão...” (cf. Mt 28,19). Então, sim, o anúncio será kerig-ma; a religião, vida plena; o discípulo, autêntico cristão.

Não obstante, a tentação do encerramento, do medo paralisador acompanhou também os primeiros passos dos se-guidores de Jesus: “...os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por medo dos judeus” (Jo 20,19-20). Hoje como ontem podemos ter medo. Hoje também muitas vezes estamos com as portas fechadas. Reconheçamos que estamos em dívida.

Hoje, ao dar-lhe graças por toda a sua entrega, querido catequista, animo-me uma vez mais a pedir-lhe: saia, deixe sua cova, abra suas portas, anime-se a transitar por caminhos no-vos. A fidelidade não é repetição. Buenos Aires necessita que você não deixe de pedir ao Senhor a criatividade e audácia para transpor muralhas e esquemas que possibilitem, como naquela façanha de Paulo e Barnabé, a alegria de muitos irmãos (cf. At 15,3).

Convido-o a que uma vez mais voltemos nosso olhar e oração à Virgem de Luján. Peçamos-lhe que transforme nosso coração vacilante e temeroso para que, como São Paulo, faça-mos realidade uma Igreja fiel, que conhece feridas, perigos e sofrimentos por ter descoberto que, quando o amor nos apres-sa, tudo é pouco para que ressoe na periferia a boa-nova de Jesus (2Cor 11,26).

Peço-lhe, por-favor, que reze por mim para que seja um bom catequista. Que Jesus o abençoe e a Virgem Santíssima cuide de você.

Carta aos Catequistas, agosto de 2007.