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71REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

REVISÃO CONSTITUCIONAL

E DIREITOS SOCIAIS

(*) Juiz do Trabalho, titular da 3a. Vara do Trabalho de Jundiaí, SP. Professor livre-docente de Direito do Trabalho,da Faculdade de Direito da USP.

Resumo: O presente texto trata da proposta de revisão constitucional que tem se difun-dido, ultimamente, no meio jurídico por influência de intenções políticas deter-minadas. O texto tenta demonstrar o quanto é equivocada tal proposta, sobre-tudo quando tendente a eliminar direitos sociais. Busca, ainda, demonstrarcomo é equivocada a separação estanque entre os diversos ramos do conhe-cimento, vez que isto pode acabar provocando que alguém, em razão docargo que ocupe, se ache no “direito” de neglicenciar a ordem jurídica, a qual,por sua vez, sem a compreensão exata do seu alcance, deixa de ser instru-mento para regular o próprio poder.

Palavras-chaves: Constituição; Revisão Constitucional; Direitos Sociais; Poder;Imperatividade da Ordem Jurídica.

Tramita pelo Congresso Nacional aPEC 157/03, de autoria do deputado LuizCarlos Santos (PFL-SP), já aprovada pelaComissão de Constituição e Justiça da Câ-mara dos Deputados em agosto de 2005, queprevê a realização de uma Assembléia deRevisão Constitucional, formada por depu-tados e senadores, a ser instalada em 1° defevereiro de 2007. Nos termos dosubstitutivo do deputado Michel Temer(PMDB-SP), o “quorum” para aprovaçãodo texto “revisional” seria por votação damaioria absoluta dos membros de cada Casa,em votações separadas, em dois turnos de

discussão e votação. Ainda nos termos dosubstitutivo, o texto aprovado deve ser sub-metido a um referendo popular, no primeirodomingo de junho de 2007, e só depois po-derá ser promulgado. Finalmente, a PECdetermina a realização da revisão constitu-cional a cada dez anos.

A este respeito pronunciou-se (em 08de fevereiro de 2006, na audiência públicada comissão especial da Câmara dos De-putados, que analisa a Proposta de EmendaConstitucional), o então ministro do STF,Nelson Jobim, no sentido de que a Constituição

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Federal deve mesmo sofrer uma“lipoaspiração”, para eliminar, do texto, odetalhamento de temas que são meramentede Direito infraconstitucional, como a regula-mentação do ICMS. A medida,afirmou, contribuiria para que o debate políti-co se encerrasse no Congresso Nacional enão se estendesse ao Judiciário. Com a au-toridade do chefe supremo do Judiciário, Jobimdisse que o processo de revisão constitucio-nal é político. “Sou contrário a outorgar-se opoder de elaborar uma Constituição a juristasou acadêmicos”, proclamou. E completou,dizendo: “Isso é função exclusiva da pers-pectiva política da nação e não, da percep-ção acadêmica a partir de teses de mestrado”.

Mas, disse mais o Mi-nistro Jobim: “Quando seconstitucionalizam temas decompetência de lei, os se-nhores [parlamentares] ou-torgam poder à magistratu-ra”, advertiu, sobretudoquando o texto aprovado noCongresso, exatamente,para conseguir aprovação,contém ambigüidade: “Essaambigüidade transfere, aosjuízes, o poder de decidir oque os senhores não decidi-ram”, constatou. “Os senho-res deixam um leque imen-so de interpretação e, aí, co-meçam a se estabelecer osconflitos, que são decorren-tes da falta de entendimen-to no corpo parlamentar; imaginem issotransferido para a Constituição”, alertou.

Coincidência, ou não, recentemente, noSTJ, proferiu-se decisão no seguinte sentido:

“Não me importa o que pensam osdoutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a au-toridade da minha jurisdição. O pensamen-to daqueles que não são Ministros deste Tri-bunal importa como orientação. A eles, po-rém, não me submeto. Interessa conhecer adoutrina de Barbosa Moreira ou Athos Car-neiro. Decido, porém, conforme minha cons-ciência. Precisamos estabelecer nossa au-tonomia intelectual, para que este Tribunalseja respeitado. É preciso consolidar o en-tendimento de que os Srs. Ministros Fran-

cisco Peçanha Martins e Humberto Gomesde Barros decidem assim, porque pensamassim. E o STJ decide assim, porque a mai-oria de seus integrantes pensa como essesMinistros. Esse é o pensamento do SuperiorTribunal de Justiça, e a doutrina que se amol-de a ele. É fundamental expressarmos o quesomos. Ninguém nos dá lições. Não somosaprendizes de ninguém. Quando viemos paraeste Tribunal, corajosamente assumimos adeclaração de que temos notável saber jurí-dico - uma imposição da Constituição Fede-ral. Pode não ser verdade. Em relação amim, certamente, não é, mas, para efeitosconstitucionais, minha investidura obriga-mea pensar que assim seja”. (Trecho do voto

do Ministro Humberto Go-mes de Barros, do STJ, arespeito da “doutrina” -AgReg, em ERESP n.279.889-AL).

Duas manifestaçõesaparentemente sem nenhu-ma ligação e até de certomodo contrastantes, masque revelam, em comum,um profundo desprezo pelotrabalho acadêmico (doutri-nário), como se o estudo nãogerasse nenhum benefíciopara a sociedade e para aconstrução do direito ou quepudesse ser desprezado pelosimples poder de fazê-lo.

A diferença entre osdois reside no fato de que

para o Ministro Jobim, deve-se limitar o po-der dos juízes, enquanto para o MinistroHumberto Gomes, o poder dos juízes nãodeve nenhuma explicação a ninguém, vistoadvir do poder constitucional de julgar.

Por razões distintas, os dois, no en-tanto, “data venia”, cometem o mesmo equí-voco, qual seja, o de desprezarem o traba-lho acadêmico e o seu papel essencial naconstrução do direito. Ao assim agirem, en-tretanto, cometem um erro ainda maior, ode esquecerem que na solução dos confli-tos sociais o juiz aplica o direito, que é umconceito muito mais amplo do que a lei, emsentido restrito, e que, portanto, está muitoacima das forças políticas de grupos, aindamais quando se pensa no direito social.

“...na solução dos conflitossociais o juiz aplica o direito,que é um conceito muito maisamplo do que a lei, em sentidorestrito, e que, portanto, está

muito acima das forças políticasde grupos, ainda mais quando

se pensa no direito social.”

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O entendimento do que vem a ser odireito, ademais, só pode ser obtido pelo es-tudo metódico e cuidadoso da doutrina, alia-do a exames de ordem histórica, sociológi-ca, filosófica e, sobretudo, humanista. Quemsabe só o texto da lei, não conhece o direito.E quem decide um conflito apenas com oargumento do poder, na verdade, despreza odireito e, por conseguinte, desrespeita a pró-pria ordem constitucional que lhe confere talpoder. O poder de julgar não épersonalíssimo. Não é atributo da personali-dade. É o exercício de uma função constitu-cionalmente estabelecida, para que se apli-que o direito ao caso concreto.

Aliás, equívoco deigual natureza, embora emsentido inverso, é o de con-siderar que o estudo acadê-mico possa desprezar o quese passa na vivência práticado direito que se verifica nosjuízos de primeiro grau e nostribunais, como aludiu, re-centemente, o Diretor da Fa-culdade de Direito da USP,Eduardo Cesar Silveira VitaMarchi, em entrevistapublicada na Folha de SãoPaulo, até porque, não sepode negar, um dos pontosmais marcantes de toda te-oria jurídica é o do seu aca-tamento pela jurisprudência.

O fato é que, ao des-prezar a doutrina, para afir-mar o seu poder, o juiz, paradoxalmente, aca-ba limitando o seu próprio poder. E o acadê-mico, que não considera as particularidadesdas condições existenciais de sua teoria, so-bretudo nas questões de natureza processu-al, acaba pregando no deserto.

Além disso, tentar negar, como fez oMinistro Jobim, o poder dos juízes de profe-rirem de forma independente suas decisõese buscar diminuir a importância da atividadejurisdicional na construção do direito, o queimplica valorar as regras em conformidadecom a realidade social, podendo mesmo sig-nificar interferência nas políticas públicas deEstado, no que tange ao cumprimento dospreceitos contidos nas normas jurídicas,constituem graves atentados ao EstadoDemocrático de Direito.

“...tentar negar, como fez oMinistro Jobim, o poder dosjuízes de proferirem de formaindependente suas decisões e

buscar diminuir a importânciada atividade jurisdicional na

construção do direito...”

Lembre-se, a propósito, que a divisãode poderes é organizacional. O poder doEstado é um só. O cumprimento dos direi-tos sociais é dever do Estado e não de umaou de outra de suas divisões organizacionais.Na inércia de uma deve agir a outra e, prin-cipalmente, o Judiciário.

Só o desprezo ao estudo acadêmico,aliás, é que pode motivar manifestaçõescomo estas, que não resistem sequer, comose diz no meio rural, “a um dedo de prosa”jurídica.

Analisemos, uma a uma, as manifes-tações.

Primeiro, a do Minis-tro Humberto Gomes.

De sua decisão, épossível extrair a idéia de quequalquer decisão vale, des-de que tenha sido proferidapor um juiz. O juiz decideconforme seu pensamento eponto. Não deve satisfaçãoa ninguém.

Não é bem assim.

Mesmo tendo pode-res para interpretar a lei, ojuiz possui como limite oordenamento jurídico. O juizpode ultrapassar o limite dalei, mas deve fundamentar,juridicamente, sua decisão.Esta fundamentação se fará

com base em linguagem jurídica, extraída daconcepção do direito enquanto ordenamento.Desse modo, quanto maior o domínio da lin-guagem jurídica e, portanto, da idéia do di-reito como ciência, construção tipicamentedoutrinária, maior o leque de atuação do juiz,pela via da jurisprudência.

Claro, a doutrina não é uma exclusivi-dade dos acadêmicos. Uma decisão judicialpode ser uma referência doutrinária, mas as-sim será não pelo atributo do poder de deci-dir, e sim pelo domínio da técnica jurídica.

Partindo da idéia do direito como ci-ência, todos que trabalham com o direitodevem conferir a este ramo do conhecimentouma necessária coerência sistêmica e, porconseqüência, somente as decisões que a

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respeitam, segundo uma avaliação tipica-mente acadêmica, são, então, fontes do di-reito, embora possam ter validade para asolução do caso concreto. Esta autoridadeda decisão judicial, para ser reconhecida,doutrinariamente, como fonte do direito, de-pende, evidentemente, dos argumentos jurí-dicos utilizados, extraídos da própria lógicado sistema. Não sendo assim, a decisão temvalor como técnica de solução do conflito,mas não tem a força de integrar o sistemacomo uma de suas fontes. Este, ademais, éo aspecto democrático que envolve a atuaçãojurisdicional.

Elemento importante, portanto, daconsideração da jurisprudência como fontedo direito é o da receptividade.

As decisões judiciais, mesmo as doSupremo Tribunal Federal, embora tenhamautoridade para a solução do caso concreto,não se revertem em autênticas fontes dodireito, no sentido científico e mesmo da“praxis”, quando se reconhece, publicamen-te, que as razões políticas da decisão sobre-pujaram as razões jurídicas, desprezandofrontalmente a realidade social e os princí-pios fundamentais de direito, sobretudo quan-do ligados aos direitos humanos, agasalha-dos pelas Declarações e Tratados Interna-cionais e, por conseqüência, são rechaçadaspelo mundo jurídico (ex. Súmula 330, doTST).

Quando se pensa o direito como dadohistórico, principalmente no aspecto consti-tucional, esta visão é essencial, para que acultura de um povo, que se consagra comodireito fundamental, mesmo sem uma lei quea assegure, seja respeitada, valendo lembrarque lhe devem respeito também os legisla-dores e políticos em geral.

O fato é que a formação de um “di-reito jurisprudencial”, que tem por base oadvento de uma decisão judicial, baseada nomero argumento da autoridade, desprezan-do os aspectos jurídicos que se lhe apresen-tam, e que, unicamente pelo prisma da auto-ridade se impõe no meio jurídico, sendo, as-sim, seguida de forma irrefletida pelos de-

mais membros do Judiciário e acatada, semavaliação crítica, pela doutrina, como fontedo direito, impede a evolução da ciência ju-rídica, ainda que em termos da “praxis” pos-sa ter algum efeito aparentemente benéfi-co, representando, por outro lado, a limita-ção do poder do juiz, pois o mesmo resulta-do, com bons argumentos jurídicos, poderiaser produzido, contribuindo, assim, para oaprimoramento do direito.

Ademais, olvida o Ministro Gomes deBarros que se deve à doutrina atransmutação do juiz, de mero “escravo dalei” (“la bouche de la loi”, como se dizia naépoca de Napoleão) em verdadeiro “intér-prete do direito” com poderes para reconhe-cer a normatividade dos princípios e fazervaler normas constitucionais no caso con-creto, em vez de simplesmente “aplicar umsilogismo” típico do positivismo acrítico, quese reduzia a “afirmar que as leis válidas de-vem ser obedecidas incondicionalmente, ouseja, independentemente do seu conteúdo”1 .

O Ministro Gomes de Barros, portan-to, volta-se contra a relevante fonte de seupoder, valendo, pois, a crítica construtiva quese faz à sua decisão, para que o Judiciário,como um todo, não se deixe influenciar poruma tal “doutrina”, pois que isto representa-ria grande diminuição do poder dos juízes,afinal, sob o aspecto jurídico formal, as leise as Constituições não se alteraram de umestágio do direito para o outro, tendo sido asteorias elaboradas, discutidas e consolida-das, que garantiram ao magistrado o poderde “fazer justiça” no caso concreto, ao in-vés de atuar como “burocrata” ou “batedorde carimbos”, como era o juiz na visãopositivista clássica do direito.

Vejamos, agora, o argumento do Mi-nistro Jobim.

Ao desprezar a ciência acadêmica, oMinistro Jobim escorregou no conceito fun-damental do que é uma Constituição (e pen-sar que ele é o chefe da instituição guardiãda Constituição), atribuindo-lhe apenas umcaráter político.

1Norberto Bobbio, Jusnaturalisme et positivisme juridique (trad. Michel Guéret), in. Essais de Téorie du Droit. Paris:L.G.D.J., 1998, p. 44, apud BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Argumentação contra legem: a teoria dodiscurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 13.

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Durante muito tempo, com base nateoria de Lassale, dizia-se que a Constitui-ção não significava mais que um pedaço depapel. Acreditava-se que as questões cons-titucionais não seriam questões jurídicas, esim problemas de ordem política.

Como diz Konrad Hesse2 , no entan-to, o “Direito Constitucional não está obri-gado a abdicar de sua posição enquanto dis-ciplina científica. Se a Constituição jurídicapossui significado próprio em face da Cons-tituição real, não se pode cogitar de perdade legitimidade dessa disciplina enquanto ci-ência jurídica”.

O próprio Hans Kelsen incorporou aConstituição ao ordenamento jurídico, fixan-do-a como fundamento de validade de to-das as demais normas e vinculando-a ao dadohistórico do qual ela adveio, que seria, as-sim, a norma fundamental.

Pode-se, é verdade, discutir se naConstituição existem, ou não, normas de ca-ráter programático, que dependeriam, assim,para sua eficácia, da existência de condi-ções econômicas necessárias para sua via-bilidade (corrente à qual não me filio), masnão se pode negar que, mesmo sem eficá-cia plena, as normas constitucionais, sobre-tudo os seus princípios, possuem forçanormativa dentro do ordenamento, impulsi-onando tanto a atividade jurisdicional comoa do próprio legislador infraconstitucional.

Como explica Konrad Hesse, “aconcretização plena da força normativa cons-titui meta a ser almejada pela Ciência doDireito Constitucional. Ela cumpre seu mis-ter de forma adequada não quando procurademonstrar que as questões constitucionaissão questões do poder, mas quando envidaesforços para evitar que elas se convertamem questões de poder (Machtfragen). Emoutros termos, o Direito Constitucional deveexplicitar as condições sob as quais as nor-mas constitucionais podem adquirir a maioreficácia possível, propiciando, assim, o de-senvolvimento da dogmática e da interpre-tação constitucional. Portanto, compete aoDireito Constitucional realçar, despertar e

preservar a vontade da Constituição (Willezur Verfassung), que, indubitavelmente,constitui a maior garantia de sua forçanormativa.”3

Além disso, no Estado Democráticode Direito o acesso à justiça e, conseqüen-temente, o poder que se confere aos juízespara aplicarem, com independência, o direi-to (constituído, fundamentalmente, pelasnormas constitucionais e seus princípios) éessência da identificação de um povo consi-go mesmo, ou, em outras palavras, da pre-servação das conquistas da humanidade naconstrução de um mundo em que o respeitoaos valores de uma sociedade mais justa nãoesteja na dependência da vontade políticade grupos dominantes.

Uma revisão constitucional, portanto,com base na necessidade de diminuição doalcance das decisões judiciais é duro golpeàs conquistas sociais.

Vale acrescentar que ao defenderuma proposta de revisão constitucional, forados parâmetros fixados pela Constituição,que se faria, pura e simplesmente, em vota-ção por maioria absoluta dos membros deambas as casas do Congresso (o que facili-ta, sobremaneira, a retirada de direitos), maisuma vez, o Ministro Jobim (pois que já o fi-zera por ocasião da publicação do texto daConstituição, ao inserir artigo não aprovadopela Constituinte, conforme reconheceu, re-centemente) faz pouco caso da Constitui-ção, e, por conseguinte, do povo brasileiro edo próprio Poder Judiciário.

A proposta por si só, sem adentrar oseu mérito, é inconstitucional, pois uma vezpromulgada a Constituição, as suas altera-ções devem seguir os trâmites fixados naprópria Constituição.

A Constituição pode sofrer alteração,seguindo-se os requisitos fixados no seu ar-tigo 60, ou seja, por Emenda Constitucional,que exige votação em dois turnos em cadaCasa do Congresso e aprovação por trêsquintos dos votos dos respectivos membros(§2o.).

2HESSE, Konrad, A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, SérgioFabris, 1991, p 26.

3Ob. cit., pp. 26-27.

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Além disso, não se pode por EmendaConstitucional remoer questões tratadas naschamadas cláusulas pétreas, dentre elas osdireitos e garantias fundamentais, nos ter-mos, do inciso IV, do § 4o., do art. 60.

A Constituição somente previu possi-bilidade de Revisão nos termos do art. 3o.,do ADCT, o que já se consumara em 1993,com a edição de seis Emendas de Revisão.

Lembre-se, ademais, de que além dasproibições expressas de alteração da Cons-tituição, menciona a doutrina a existência delimitações implícitas, incluindo-se nestas úl-timas a impossibilidade de leiinfraconstitucional, de qual-quer espécie, modificar oprocedimento fixado naConstituição para a sua mo-dificação.

Neste sentido, têm-se, curiosamente, as liçõesdo próprio Michel Temer,que é o autor do substitutivoà proposta revisional que tra-mita no Congresso:

“Finalmente, é proibi-ção implícita aquela atinenteao procedimento de criaçãoda norma constitucional, emnível derivado. Isto porque oconstituinte estabeleceu pro-cedimento rígido para a re-forma e em grau determina-do. Não pode o órgão aquem se atribui a competência reformadoramodificar o critério de rigidez estabelecidopelo legislador constituinte”4

Assim, alterar a Constituição fora dosparâmetros estabelecidos na Constituiçãonão tem outra designação possível: é golpe;um atentado contra a ordem jurídica consti-tucional.

O Poder Judiciário tem o dever deimpedir que isto venha a acontecer e não secolocar em sua defesa, como fez o MinistroJobim, pois que isto representa deixar a so-ciedade sem ter como se defender, juridica-mente, de um assalto à Constituição.

O Congresso, vale lembrar, não pos-sui poder constituinte originário (ao qual sepoderia atribuir uma feição política, mas nun-ca irrestrita, pois o dado histórico,principiológico, que se integra, naturalmen-te, ao direito, mesmo sem norma expressa,sobretudo na perspectiva dos direitos huma-nos, constitui limite intransponível à vontadedo próprio constituinte originário e este limi-te não é político, é jurídico). O poder do Con-gresso, de criar normas constitucionais, éderivado e, portanto, deve seguir os padrõesjurídicos fixados na própria Constituição, es-tando, por isto mesmo, sujeito ao controlede constitucionalidade, que é, como diz Paulo

Bonavides, “fruto de umafeliz reflexão acerca da su-premacia da Constituiçãosobre as leis ordinárias”5.

Mas alguém poderiacontra-argumentar: e não sepoderia instituir uma novaassembléia constituinte?Sim, mas para que isto acon-teça devem existir situaçõesfáticas que requeiram e jus-tifiquem a reformulação dopróprio Estado. As razõesdessa nova Constituição de-vem, portanto, ser ampla-mente discutidas no âmbitoda população (na qual se in-cluem, por óbvio, os acadê-micos).

Uma revisão constitu-cional não se pode instituir fora dos padrõesconstitucionais. A proposta neste sentido, nofundo, tenta disfarçar o seu real objetivo derefazer por completo a Constituição, semobedecer aos parâmetros necessários paratanto.

A alegação de que a Constituição“possui regras demais” é apenas retóricapara se escamotear um propósito obscuro.Mesmo desconsiderando a Constituição, sefosse para discutir seriamente a proposta derevisão, seria essencial que os seus defen-sores colocassem as cartas abertas na mesae dissessem quais as normas que pretendem

4Elementos de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 36.5Curso de Direito Constitucional, Malheiros, São Paulo, 1997, p. 275.

“O poder do Congresso, decriar normas constitucionais, é

derivado e, portanto, deveseguir os padrões jurídicos

fixados na própriaConstituição, estando, por istomesmo, sujeito ao controle de

constitucionalidade...”