jorge luiz feitoza machado

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0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA JORGE LUIZ FEITOZA MACHADO O QUE SE PASSOU EM SÃO LUÍS? Representações sobre a greve da meia passagem em 1979 São Luís 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA

JORGE LUIZ FEITOZA MACHADO

O QUE SE PASSOU EM SÃO LUÍS? Representações sobre a greve da meia passagem em 1979

São Luís 2009

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JORGE LUIZ FEITOZA MACHADO

O QUE SE PASSOU EM SÃO LUÍS? Representações sobre a greve da meia passagem em 1979

Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de graduação no Curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão

Orientador: Prof.º Ms. Yuri Michael Pereira Costa

São Luís 2009

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JORGE LUIZ FEITOZA MACHADO

Machado, Jorge Luiz Feitoza O que se passou em São Luís? Representações sobre a greve da meia passagem em 1979 / Jorge Luiz Feitoza Machado. – São Luis, 2009.

80fls Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2009.

Orientador: Profº. Msc. Yuri Michael Pereira Costa

1. Analise do discurso 2. Representações 3. Greve dos estudantes I. Titulo CDU: 94(812.1): 801.73

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JORGE LUIZ FEITOZA MACHADO

O QUE SE PASSOU EM SÃO LUÍS? Representações sobre a greve da meia passagem em 1979

Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de graduação no Curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão Orientador: Prof.º Ms. Yuri Michael Pereira Costa

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________ Prof.º Ms. Yuri Michael Pereira Costa

(Orientador)

____________________________________________ 1º examinador (a)

_____________________________________________ 2º examinador (a)

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Em memória de Raimundo Nonato Machado

Para sempre.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de estender neste momento os meus sinceros agradecimentos àqueles que

acreditaram e contribuíram de alguma forma para a consecução desta etapa importante de

minha formação educacional. Poderia mencionar muitas pessoas, mas é que o instante de

agradecer sempre é marcado pelas preocupações de última hora com o trabalho, detalhe que,

em regra, pode ocasionar o esquecimento de alguém. Se isso acontecer espero que esse

alguém me perdoe.

Inicio agradecendo à minha mãe, Dona Fátima, pela dedicação de todos esses anos

sempre zelosa e atenta à educação de seus filhos.

Ao meu irmão Jobson, fundamental com seu apoio moral quando chegava de alguma

festa a tantas da noite.

À Susy Richarly, alguém especial e importante nesta conquista pessoal.

Ao caro amigo João Gilberto, pelo companheirismo e força manifestados.

À amiga Douliane, por sua ajuda providencial.

A todos os professores do curso, responsáveis por nos apresentar de maneira

fascinante essa “velha louca que guarda seus trapos coloridos no armário e depois os joga

fora”, espécie de metáfora para História eventualmente utilizada por Borralho em suas aulas.

Meus agradecimentos especiais a Yuri Costa que me orientou de maneira competente

na elaboração deste trabalho.

Aos colegas de turma (Daisy, Paulo, Fernando, Clenilson, Arlin, Renata, Leandro...)

por todas as experiências partilhadas durante esses anos de convivência acadêmica, sem

esquecer é claro, as atividades de extensão das quais não fui tão assíduo, nas proximidades do

Campus (Pimenta, Izaqueu, Melo’s...) ou na região do Centro Histórico nas noites de sexta-

feira.

Não poderia esquecer nestes agradecimentos os funcionários da Biblioteca Pública

Benedito Leite, que foram bastante pacientes e atenciosos durante as pesquisas.

Agradeço profundamente a todos que mencionei e também os que tenham fugido à

lembrança pela força nesta caminhada, etapa superada de uma realidade cheia de desafios.

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“Gostaria de perceber no momento de falar que uma voz sem nome me

precedia há muito tempo: bastaria, então que eu encadeasse, prosseguisse a

frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me

houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa”.

Michel Foucault

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RESUMO

A segunda metade do século XX no Brasil, pelo menos por duas décadas (1964-1985), pode ser pensada como um período de significativa mudança no que se refere às diretrizes político-administrativas inauguradas com o regime militar. O período lembrado pelas imagens de autoritarismo manifestado sob formas distintas de repressão é objeto de várias discussões, análises e olhares diferenciados. São Luís, Capital do Maranhão, está situada nesse contexto específico. O ano de 1979, para a Cidade, foi simbólico por reproduzir cenas que podem ser entendidas como a confirmação de um momento político instável no país. A greve dos estudantes pela meia passagem, série de manifestações reivindicatórias que exigiam a redução nas tarifas dos transportes coletivos urbanos, teria sido representada distintamente em seus aspectos, a partir dos vários discursos veiculados pela imprensa local. Articular um novo enredo sobre o evento grevista de São Luís com base nas representações registradas constitui, portanto, a idéia central deste trabalho. Palavras-chave: Análise do discurso; Representações; Greve dos estudantes.

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ABSTRACT The second half of century XX in Brazil, at least per two decades (1964-1985), can be thought as a period of significant change as for the inaugurated politician-administrative lines of direction with the military regimen. The period remembered for the images of authoritarianism revealed under distinct forms of repression, is differentiated object of some quarrels, analyses and looks. São Luís, Capital of the Maranhão, is situated in this specific context. The year of 1979, for the city, was symbolic for reproducing scenes that can be understood as the confirmation of a moment unstable politician in the country. The strike of the students for the half ticket, series of vindicative manifestations that demanded the reduction in the tariffs of the urban collective transports, would have been represented distinct in its aspects, from some speeches propagated for the local press. To articulate a new plot on the event striker of São Luís on the basis of the registered representations constitutes, therefore, the central idea of this work. Key words: Analysis of the speech; Representations; Strike of the students.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................10

1. TRAMAS DE UM ENREDO GREVISTA.....................................................................19

1.1. Uma questão de direito: a gestação do conflito................................................19

1.2. Fermento na massa: firmes na fé, prontos pra ação..........................................29

1.3. Um olhar sobre a multidão: participação popular na greve..............................36

2. DAS IMAGENS DE ANGÚSTIAS ÀS LEMBRANÇAS MAIS

LISONJEIRAS..................................................................................................................44

2.1. Os empreiteiros do caos na Ilha da Rebeldia..................................................44

2.2. Faça-se a ordem pela autoridade nesta terra de glórias.................................53

2.3. Por um lugar na memória: todos se sagraram vencedores...............................63

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................75

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................79

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INTRODUÇÃO

A temática desenvolvida neste trabalho trata da análise dos discursos produzidos sobre

a Greve Estudantil de 1979, em São Luís, bem como de eventuais representações posteriores

a partir da circulação de periódicos locais (Jornal Pequeno, O Estado do Maranhão e O

Imparcial). O referido “evento” consistiu numa série de manifestações pela cidade durante o

mês de setembro daquele ano, encabeçada por estudantes universitários e reforçada por

secundaristas, que saíram às ruas em protesto contra o aumento nas tarifas dos transportes

coletivos urbanos. O episódio também ficou muito conhecido como a “Greve pela meia

passagem” e contou com o apoio de segmentos específicos da sociedade civil ludovicense. O

objeto está situado no contexto da Ditadura Militar em seus instantes finais, período em que o

regime já apresentava sinais de desgaste, momento em que o país vivia a expectativa do

processo de abertura política que apontaria para os rumos da democracia.

É nesse panorama de agitação e transição política que movimentos sociais são

articulados ou revigorados na reivindicação por maiores liberdades civis. Partidos políticos de

cunho popular surgem também com este mesmo propósito. Quadros da Igreja progressista,

orientados por padres politizados, reforçam as mobilizações e a classe estudantil também se

manifesta com intensidade. Eram os diversos segmentos sociais da Capital maranhense

vivendo os desdobramentos do golpe de 1964, empenhando-se na superação da ordem política

fragilizada, porém, ainda vigente no final da década de 1970.

Analisa-se aqui a repercussão do “acontecimento” em suas interpretações e

representações ao atingir o grande público através da circulação das notícias pela mídia

impressa, bem como, perceber a articulação dos discursos presentes nos periódicos referentes

ao evento da greve. Pode-se destacar que a manifestação grevista dos estudantes de São Luís

está inserida entre os episódios políticos de relevância para a historiografia maranhense do

século XX.

O objeto analisado apresenta características de uma produção reflexiva identificada ao

domínio historiográfico dos estudos sobre o “tempo presente” 1. O referido trabalho, bem

mais que revisitar aspectos de um tema explorado por outros autores, traz o aporte teórico da

análise discursiva, recurso aplicado crescentemente a vários estudos históricos. Nesse sentido 1 “história do tempo presente”, segundo Angela de Castro Gomes (1996, p. 2-3), entendida não apenas como voltada para um período cronológico recente (o pós- Segunda Guerra, em geral), mas igualmente como a resultante de uma demanda social que busca uma interpretação histórica para os eventos com que cada vez mais intensamente convive.

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a abordagem preenche lacunas na bibliografia já existente, reforçando, portanto, a relevância

científica e acadêmica desta pesquisa.

O tema em questão reveste-se também de importância na medida em que trata da

elaboração de discursos que partem de um lugar específico. Nesse caso, a representação dos

“fatos” mediados pela imprensa escrita ensejaria o condicionamento de um olhar determinado

sobre a “realidade”. Dessa forma, a pesquisa alerta para a percepção do que há de implícito

em notícias e informações articuladas em representações, e difundidas como pretensas

verdades num fluxo intenso servindo a interesses distintos.

A pesquisa empreendida efetivou-se de forma inteiramente viável no que se refere ao

acesso às fontes utilizadas. As edições dos jornais que serviram como referentes de

aproximação do objeto analisado encontraram-se disponíveis na Biblioteca Pública Benedito

Leite, centro de São Luís. Os periódicos mencionados foram subsídios fundamentais para a

elaboração do texto destacando-se, ainda, a utilização de outras referências como

monografias, dissertações, depoimentos e artigos.

A reflexão empregada nesta produção, teoricamente está balizada pelas idéias da

história política. No entanto, é necessário distinguir as noções concebidas acerca da própria

dimensão política em História. Em oposição à velha história política predominante no século

XIX e início do XX, cuja característica marcante era a abordagem de temas como o Estado, as

instituições e os grandes personagens, surge uma nova perspectiva de investigação no referido

campo superando a maneira factualista de interpretação que lhe era dirigida no fazer

historiográfico.

A nova história política que começa a se consolidar a partir dos anos 1980 passa a se

interessar também pelo “poder” nas suas outras modalidades (que incluem também os

micropoderes presentes na vida cotidiana, o uso político dos sistemas de representações, e

assim por diante). Para, além disto, a nova história política passou a abrir um espaço

correspondente para uma “história vista de baixo”, ora preocupada com as grandes massas

anônimas, ora preocupada com o “indivíduo comum” e por isso mesmo pode se mostrar como

o portador de indícios que dizem respeito ao social mais amplo. (BARROS, 2004, p. 107)

Estabelecida a devida diferenciação entre as noções que podem ser atribuídas à

história política, pode-se pontuar que a discussão contemplada neste trabalho é referenciada

por esta segunda acepção que representou uma “revolução” no campo da abordagem histórica.

A ênfase deste estudo recai, especialmente, sobre o discurso como modalidade de

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investigação cujo objeto está inserido numa história mais atual, do “tempo presente”, recorte

temporal que não compromete o teor qualitativo de análises como esta, uma vez que estudos

contemporâneos, independente de teoria fundamentadora aplicada, ainda são encarados com

alguma desconfiança na prática historiográfica, sobretudo, em se tratando de temáticas

situadas no domínio da história política.

A noção de discurso utilizada nas reflexões, “tenta se afastar de sua identificação

enquanto algo desligado das práticas sociais” (COSTA, 2005, p. 4). Nesse sentido, são

indispensáveis as considerações de Michel Foucault relativas ao discurso. O autor entende que

o discurso deve ser percebido, sobretudo, como acontecimento, ou seja, enquanto algo que, mais do que mero reprodutor de uma experiência vivida pelo narrador, constitui-se enquanto estratégia política de posicionamento deste dentro de embates sociais. o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito (FOUCAULT, 2008, p. 57).

Convém destacar que o instrumento metodológico baseado na análise de um discurso,

uma vez que as fontes determinantes para esta pesquisa foram textos de jornais, envolveu

simultaneamente três dimensões fundamentais que conduziram a investigação: o intratexto, o

intertexto e o contexto. O ‘intratexto’ corresponde aos aspectos internos do texto e implica

exclusivamente na avaliação do texto como objeto de significação; o ‘intertexto’ refere-se ao

relacionamento de um texto com outros textos; e o contexto corresponde à relação do texto

com a realidade que o produziu e que o envolve. (BARROS, 2004, p. 136-137)

Outra perspectiva de metodologia empregada ao trabalho e, complementar à análise

dos jornais, foi a realização de entrevistas orientadas pela técnica da História Oral,

instrumento metodológico de grande contribuição à elaboração de estudos históricos mais

contemporâneos. Nesse sentido, utilizei depoimentos de líderes estudantis à época do

“acontecimento”, como Renato Dionísio, Cunha Santos, Juarez Medeiros e João

(“Joãozinho”) Ribeiro.

O primeiro, homem público conhecido na cidade por sua atuação política, foi

entrevistado por mim em seu local de trabalho, o escritório de um estabelecimento comercial

do qual é proprietário. A entrevista com Cunha Santos aconteceu na redação do Jornal

Pequeno também em seu ambiente de trabalho. Atualmente, ele desenvolve a função de editor

chefe do periódico. Os depoimentos dos outros dois, que serviram de fonte a uma atividade

referente à disciplina de História Oral, foram cedidos gentilmente por Clícia Adriana. As

entrevistas foram realizadas na residência de ambos (Juarez Medeiros e João Ribeiro).

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Entendo que o exercício comparativo de fontes como entrevistas e jornais com ênfase nos

discursos dos sujeitos envolvidos (estudantes, professores, lideranças políticas etc.),

possibilitou uma análise interessante e consistente do recorte temático proposto.

O trabalho está organizado em dois capítulos, cada qual dividido em três seções onde

analiso as representações que figuram nos variados discursos em (periódicos, depoimentos e

outras fontes utilizadas), referentes à greve de 1979. O encadeamento dos argumentos com

base nas inferências e interpretações abstraídas engendra a articulação de um novo enredo que

dota de particularidade a construção textual em torno do objeto. Nesse sentido, os aspectos

elencados para a composição do texto expressam algo de arbitrário na medida em que

emergem da subjetividade, esta sempre fonte de onde são evocadas intenções. A elaboração

deste trabalho não escapa a este esquema.

No primeiro capítulo, intitulado Tramas de um enredo grevista, inicialmente destaco

alguns elementos que entendo como importantes pra se pensar os momentos precedentes à

configuração da greve dos estudantes. A consolidação do movimento estudantil na

Universidade Federal do Maranhão, no contexto de rearticulação da União Nacional dos

Estudantes – UNE, teria sido um aspecto significativo que deu contorno ao “evento” (a

greve). Isso, porque se observa nesse período uma mobilização intensa deste segmento pela

cidade bem antes dos acontecimentos de 1979. Nesse sentido, ressalta-se a campanha do

abaixo assinado, episódio em que foram colhidas em torno de 34 mil assinaturas nas escolas

secundaristas da Capital. A finalidade era reforçar as reivindicações estudantis através de um

documento com as assinaturas, que seria entregue às autoridades. Outra imagem foi a

Caminhada pela Paz em homenagem ao Papa Paulo VI. O ato contou com a participação de

dezenas de jovens.

Uma questão de direito: a gestação do conflito, seção inicial deste primeiro capítulo,

apresenta cenas da indefinição que se arrastou com relação à concessão do direito à meia

passagem pleiteada pelos estudantes ludovicenses. Registra-se nesse momento, a participação

de segmentos específicos da sociedade civil de São Luís, a exemplo do intermédio do

arcebispo da Cidade, D. Motta, representante da Igreja Católica, que levou as reivindicações

dos estudantes ao governador Castelo, no sentido de contribuir com uma solução para o

impasse.

Ressalta-se ainda nesta parte do trabalho, a iniciativa das lideranças estudantis em

procurar a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/MA, para maiores esclarecimentos sobre

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a questão de seu interesse à luz do direito. Convém observar, que o posicionamento da

referida instituição representou mais um entre os diferentes discursos difundidos sobre o

evento grevista. No entanto, deve-se ponderar que o fato de seu parecer ter sido favorável às

aspirações dos estudantes, esta procurou manter uma posição de “neutralidade” em meio aos

embates veiculados nos periódicos sobre a greve.

Outro aspecto destacado como discurso, no meu entendimento interessante para a

articulação do texto, refere-se à segunda seção deste capítulo, intitulada Fermento na massa:

firmes na fé, prontos pra ação. Aqui, enfatizo as idéias de um segmento influente da Igreja

Católica que refletiram na participação de um grupo determinado de jovens no movimento

estudantil da Universidade Federal do Maranhão. A atuação dos membros do Grupo Unidade,

vencedor das eleições para o Diretório Central dos Estudantes em 1978, esteve marcada pelas

idéias da Teologia da Libertação, tendência progressista da Igreja naquele momento, uma vez

que a maior parte deles teve a experiência eclesial antes de entrar na faculdade.

Nesse sentido, exponho um pouco do que seriam essas noções relativas à Teologia da

Libertação dentro da trajetória da própria Igreja Católica enquanto instituição. Assim,

apresento o significado de renovação do Concílio Vaticano II reunião das autoridades

eclesiais (Bispos, Cardeais e Papa) na década de 1960, que possibilitou uma postura da Igreja

mais aberta e sensível aos problemas políticos, sociais e econômicos verificados naquele

período. Na trilha dessas idéias, evoco algumas formulações que caracterizam a Teologia da

Libertação à luz de autores como Segundo Galiléia e Leonardo Boff. A centralidade do

aspecto fé e vida e a opção preferencial pelos pobres, síntese da Teologia, são destacados

ainda quando elenco pontualmente algumas conclusões das Conferências dos Bispos Latino

Americanos, realizadas em Medelín (1968) e Puebla (1979). Entendo desta forma, o discurso

religioso como um elemento interessante pra se articular um exercício de compreensão do

objeto.

Na seção que finaliza o primeiro capítulo do trabalho, intitulada; Um olhar sobre a

multidão: participação popular na greve, analiso os variados discursos que envolvem as

representações sobre as grandes concentrações, as multidões, as massas de São Luís em 1979.

Com a exposição de tais idéias, apresento como vai se constituindo no contexto grevista as

imagens de um movimento expressivo no sentido do envolvimento da população, aspecto este

bastante enfatizado, conforme se observou durante as pesquisas.

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Nesse sentido, algumas considerações empreendidas no estudo do fenômeno foram

destacadas, como a própria idéia sobre “as condições de ocorrência das massas” nos centros

urbanos e as noções de violência, medo e descontrole que o comportamento das multidões

pode despertar. Estes aspectos mencionados, assim como outros evidenciados nesta discussão

estão referendados por reflexões de autores como Michel Foucault, Jean Delumeau,

Baudrillard, entre outros.

No segundo capítulo do trabalho, intitulado: Das imagens de angústia às lembranças

mais lisonjeiras, elenco aquelas representações que remetem aos momentos de tensão

“vivenciados” durante a greve estudantil e expressam o sentimento de “medo”, “insegurança”

e “terror” que teria se abatido sobre a Capital maranhense em 1979. Tal imagem delineada,

sobretudo nos discursos oficiais amplamente difundidos pela imprensa, enseja um aspecto

fundamental desse estudo que é o “uso político do sistema de representações”. Nesse sentido,

apresento na seqüência do capítulo o embate no domínio representativo entre governo e

estudantes que buscaram respaldar sua posição perante a opinião pública no episódio da

greve.

Na seção inicial deste capítulo, intitulada: Os empreiteiros do caos na ilha da

rebeldia, destaco as inúmeras evocações que apontam para a idéia de “descontrole”,

“distúrbio” generalizado, “pânico”, a mais completa “desordem” instalada na cidade no

período das mobilizações pela meia passagem. Ratifico a noção de embate de representações

ao ressaltar, já a partir do título desta seção, a contra partida discursiva dos estudantes e

daqueles que se pronunciaram tomando sua defesa. Refiro-me à associação de idéias que

envolveram as reivindicações grevistas e o comportamento das multidões, atreladas à imagem

de uma São Luis rebelde, dando a entender que a causa estudantil seria uma preocupação

coletiva da cidade. Nesse sentido, exponho pontualmente como essa noção foi construída na

historiografia maranhense, a partir das análises de Wagner Cabral da Costa acerca do

imaginário elaborado pelas oposições coligadas no contexto da greve de 1951.

Um aspecto importante ainda contemplado nessa discussão refere-se a uma questão

latente que permeou todo o processo grevista em 1979, sobretudo em momentos agudos como

a necessidade por parte do governo de estabelecer um rígido controle social diante da situação

“caótica”. Procuro aqui, articular a aplicabilidade desta noção, utilizada por Michel Foucault

em suas análises referentes ao surgimento da medicina social, ao contexto particular do objeto

analisado. Convém observar, que embora o autor francês estivesse debruçado sobre questões

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completamente diferentes ao utilizar a idéia de controle social, tal noção satisfaz as

pretensões reflexivas ensejadas pela problematização das fontes no tocante a esse aspecto.

Dando seqüência ao trabalho, na segunda seção intitulada: Faça-se a ordem pela

autoridade nesta terra de glórias, abordo mais detidamente a questão conceitual do termo

autoridade, representação bastante presente nos pronunciamentos oficiais. O propósito aqui é

entender de que forma se constitui esse princípio evocado com veemência por João Castelo

durante os desdobramentos da greve. Para embasar a discussão utilizo nas reflexões as

considerações clássicas de Max Weber e as análises de Hannah Arendt, uma autora mais

contemporânea. O aspecto central nesta seção, referente ao restabelecimento da ordem via

autoridade, está articulado aos pressupostos teóricos apresentados.

No desfecho desta seção, destaco ainda as representações de um passado honroso,

repleto de glórias, por essa razão, motivo de orgulho e respeito. Refiro-me ao discurso

evocado por João Castelo, que ao resgatar em sua fala a imagem de São Luís como a

“Athenas Brasil, aposta no poder de uma memória nostálgica e prestigiosa. Seu objetivo era a

manutenção da ordem no contexto de instabilidade política da greve. Para ilustrar melhor o

significado dessa representação em nossa historiografia, recorro às análises de Henrique

Borralho que entende esta imagem como uma “construção alegórica de um passado glorioso”.

O aspecto importante ressaltado nesta elaboração representacional presente no discurso de

Castelo, diz respeito à “tradição que por repetidas vezes tem sido utilizada para referendar

práticas de elites intelectuais e políticas no plano regional”.

Na parte final do trabalho, com a seção intitulada; Por um lugar na memória: todos se

sagraram vencedores, analiso os discursos que remetem à idéia de vitória quando da

concessão do direito da meia passagem aos estudantes. Convém destacar, que as

representações observadas nos periódicos dão maior destaque a determinado grupo,

enfatizando um ou outro aspecto de modo a enaltecer os esforços empreendidos pelo triunfo.

No Jornal Pequeno, os méritos são creditados a “luta”, ao “empenho”, a “força” e a

“resistência” dos estudantes que perseveraram até o desfecho da questão. Em O Estado do

Maranhão, as congratulações são dirigidas ao governador João Castelo que soube conduzir

com habilidade o processo decidindo favoravelmente à classe estudantil no momento mais

oportuno. A intenção dos jornais ao expor tais imagens sobre o fim da greve é demonstrar que

estas, ensejam a noção de disputa pela memória vitoriosa relativa aos episódios de 1979.

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Parte das reflexões sobre memória discutidas nesta seção está contemplada pela

perspectiva teórica postulada por Jaques Le Goff. Para o autor, esta é entendida como uma

“propriedade de conservar certas informações” pelas quais se pode “atualizar impressões”.

Outro aspecto relevante abordado sobre a questão da memória refere-se à sua relação com

determinados espaços da cidade. Nesse sentido, o “texto urbano” e a significação que um

lugar específico pode representar para a experiência de indivíduos e grupos, devem ser

entendidos como uma modalidade de discurso que transmite uma idéia particular. Dessa

forma, enfatizo aquelas representações que mencionam a Praça Deodoro como o lugar das

grandes manifestações e espaço de celebração da vitória dos estudantes, bem como, as que a

apresentam como um logradouro inspirador de ameaça à ordem pública. O embasamento

teórico dessa discussão está ancorado em considerações de autores como Maurice Halbwachs

e Guy Debord, este evocado nas análises de Wagner Cabral da Costa.

Os discursos de vitória que colocaram em evidência a memória da greve podem ser

evocados também de forma diversa do texto impresso ou complementar a ele. Refiro-me às

fotografias, às imagens que ilustraram as manchetes noticiando a concessão da meia

passagem. Tais representações visuais têm sua significação especial nos estudos históricos,

enquanto fonte referente de aproximação do objeto analisado. Neste tópico específico,

exponho duas fotografias que registram a comemoração dos estudantes na Praça Deodoro no

final de setembro de 1979. O propósito ao utilizar as imagens é demonstrar seu efeito

discursivo, apresentando-as como um recurso interessante na elaboração do texto. Noções

conceituais como “referente fotográfico” e “efeito de realidade”, respectivamente empregadas

em análises de Roland Barthes e Jacques Aumont, são contempladas no trabalho de Yuri

Pereira Costa, e estão diretamente associadas à idéia de representações.

Dando contornos finais ao trabalho, apresento argumentos que apontam para a idéia de

manipulação da memória em História. A partir de uma representação colhida em O Estado do

Maranhão dez anos após a greve pela meia passagem, observei um discurso diferente com

relação aos acontecimentos de 1979. A nuance radical veiculada em artigo do jornal no ano de

1989 colocava a responsabilidade em João Castelo, governador do Estado na época da greve,

pela situação de desordem generalizada que teria se abatido sobre a Cidade. Nesse sentido,

exponho algumas indagações acerca de um provável desgaste político entre Castelo e o grupo

dirigente do referido jornal. A influência deste canal de comunicação, que à época dos

acontecimentos grevistas apoiou Castelo, serviu de instrumento para ataques políticos

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direcionados a ele anos mais tarde. O objetivo aqui é demonstrar o poder de manipulação dos

“fatos” expressos pelos discursos pontuando que, de acordo com as contingências de um

período, este pode apresentar-se modificado, com outra roupagem, portando uma nova

“verdade” para os acontecimentos.

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1 TRAMAS DE UM ENREDO GREVISTA

1.1 Uma questão de direito: a gestação do conflito

As manifestações da greve estudantil em setembro de 1979, ocorridas em São Luís,

constituem, sem dúvida, um dos episódios marcantes da história política recente nesta capital.

Um acontecimento de ampla ressonância que envolveu segmentos da sociedade ludovicense,

apresentando características peculiares ao seu tempo, dotam o referido recorte de

possibilidades a serem analisadas. A situação vivenciada na Capital maranhense soprou como

vento forte de setembro e foi estampada também nas manchetes jornalísticas de outros

lugares.

Repercussão tão intensa assim acentuou a dimensão dos fatos e suscitou as mais

variadas opiniões, especulações, ou mesmo esforços de interpretação com enredos articulados

sob matizes diversos. Pensar a greve de 1979, na capital maranhense, requer um olhar

cuidadoso de quem esteja analisando, atento às circunstâncias e particularidades da época em

que as ações sucedidas do referido episódio estejam devidamente situadas.

Desta forma, merece destaque a análise do papel social, atuações, necessidades,

motivações ou obrigações dos sujeitos envolvidos no processo, possibilitando, assim, uma

interpretação dos aspectos delineadores da greve estudantil, pontuando a impossibilidade em

se dar conta da realidade dos acontecimentos relacionados ao “evento histórico”.

Alguns elementos importantes devem ser considerados para o entendimento do que

aconteceu em São Luís. Convém destacar, inicialmente, os esforços de segmentos específicos

da sociedade civil em torno de reivindicações que refletiam as dificuldades do período, ao

passo que demarcavam ainda o maior engajamento e envolvimento de tais segmentos,

possibilitando uma participação ativa na vida política da Cidade.

Os últimos anos da década de 1970 podem ser entendidos como um momento de

insatisfação de segmentos sociais marginalizados, e diretamente prejudicados pela conjuntura

político-econômica e ingerência do regime de exceção vigente. Em São Luís observou-se uma

constante a atuação das chamadas frentes, constituídas por movimentos, entidades e

lideranças políticas que aglutinavam forças, muito embora fossem portadores de

reivindicações especificas. A estratégia era eleger uma bandeira, uma causa que concentrasse

esforços propiciando assim maior poder de barganha junto ao governo.

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Na Cidade ocorriam manifestações contra a carestia, pois o custo de vida sufocava os

segmentos mais populares, além de mobilizações pela anistia, paralisações de categorias

profissionais, como a greve de taxistas da capital, ocupações urbanas irregulares, destacando-

se o processo de ocupação do bairro Coroadinho. Enfim, uma série de eventos que denotaram

claramente a debilidade do governo local em atender as demandas necessárias dos segmentos

em questão. Convém desconsiderar aqui, no entanto, a idéia de “oposição” entre governo e

sociedade civil que o referido cenário sugere, uma vez que inúmeros segmentos desta tiveram

participação no regime militar2.

O movimento estudantil universitário tem papel destacado neste período por reunir um

contingente de jovens atuando, quer seja no interior da instituição acadêmica, ou nas questões

importantes inerentes ao cotidiano da cidade de São Luís. Indiscutivelmente, o movimento

dos estudantes que deu dinâmica à greve pela meia passagem representou aspirações diversas,

que apontavam para um tempo de entendimento, participação popular, liberdade de expressão

e organização, elementos estes que sugeriam a rápida transição política para o regime

democrático de direito.

Já em 1977, tem-se a atuação importante dos estudantes da Universidade Federal do

Maranhão através de sua representação; o DCE – Diretório central dos estudantes, no sentido

de estabelecer uma vivência acadêmica intensa, a despeito dos mecanismos de vigilância

instalados nas instituições superiores de ensino, a exemplo da ASI (Assessoria de Segurança e

Informação), ou das limitações advindas do atrelamento das entidades estudantis à

Universidade/MEC, despolitizando-as e impedido que se constituíssem em “autênticos

espaços de representação dos interesses do segmento estudantil” (BORGES, 1998, p. 6).

Tendo-se em conta as condições adversas do período em questão, limitadoras da

atuação estudantil, a representação que iniciou sua gestão neste mesmo ano, segundo um

jornal da época, desempenhou um bom trabalho como observamos no trecho noticiado a

seguir:

O DCE teve uma participação efetiva na vida política maranhense quando aderiu ao primeiro dia nacional de luta, realizado em todo Brasil, realizou várias assembléias gerais em prol da meia passagem; mantinha uma certa independência de acesso ao restaurante universitário e impulsionava a cultura e o saber através de seminários, concursos, e contatos com autoridades responsáveis pela educação brasileira, como foi o caso da visita ao ministro da educação em 1977, também desafiou a posição do

2 É importante se observar acerca da participação de vários segmentos da sociedade civil no regime militar do Brasil, a contribuição dos autores Enrique Padrós (2004, p. 45-77) e Carlos Fico (2004, p. 15-58), que por esta razão, empregam em suas análises sobre o período, a expressão “regime cívico-militar”.

21

reitor quando este proibiu a realização da 2ª semana dos calouros, que acabou acontecendo fora do Campus ( Jornal O Imparcial, 01/04/1978, p. 5).

O processo de reconstrução da UNE3, entidade máxima da representação estudantil no

país, foi um evento fundamental para a consolidação e vigor do movimento estudantil em São

Luís. Entre os delegados maranhenses que participaram do 31º congresso nacional dos

estudantes, em maio de 1979, na cidade de Salvador, estiveram Joãozinho Ribeiro, Agenor

Gomes e Juarez Medeiros, jovens líderes que desempenharam, meses mais tarde, papel

destacado na condução do movimento grevista pelo direito à meia passagem.

No ano anterior ao congresso dos estudantes na Capital baiana, a Universidade Federal

do Maranhão passou por eleições para escolha da nova representação estudantil. Concorreu ao

pleito para o DCE neste ano de 1978, com o apoio da gestão anterior, o Grupo Unidade. A

referida chapa sagrou-se vitoriosa. Tinha em sua composição jovens oriundos de um

segmento progressista da Igreja Católica, muito influente entre os estudantes recém

ingressados na instituição.

O matiz religioso inerente a este grupo é destacado em ações como a caminhada pela

paz, episódio que teve por objetivo homenagear o Papa Paulo VI que havia falecido.

Entretanto, a atmosfera de medo, censura e tensão, típicos do momento político vivido no

país, mobilizou a atenção do serviço de segurança, que enxergou naquele gesto de

homenagem dos estudantes o perigo iminente de uma situação de desordem.

A sensação de “risco” que a caminhada pela paz teria representado para a cidade é

relatada no depoimento de uma liderança estudantil presente ao evento. Ele diz que:

[...] essa iniciativa foi comunicada oficialmente a universidade, a secretaria de segurança, a arquidiocese e pra nossa surpresa, surpresa de todos, ela foi duramente reprimida, nós éramos um grupo de 60 ou 70 pessoas entre estudantes e pessoas da comunidade que vínhamos descendo do campus do Bacanga e a barragem do Bacanga foi literalmente obstruída por pelotões de choque, a cidade passou o dia com policia nas portas de igreja, rodoviária, aeroporto, saída da cidade [...] era como se São Luis estivesse preparada para alguma invasão (Juarez Medeiros em entrevista).4

3 O destaque a este evento que marcou a reorganização da União Nacional dos Estudantes é bastante

significativo por representar o rompimento com as barreiras da proscrição e da clandestinidade. Não apenas a UNE, mas também outras entidades representativas foram perseguidas e tiveram seu direito à liberdade de expressão cerceado, sendo extinta pela ditadura militar em 1964. A entidade estudantil teria sido “a primeira entidade de massa a ser reestruturada” no entendimento de Matias (2004, p. 55). 4 Na seqüência deste depoimento Juarez Medeiros afirma que a caminhada pela paz marcou no 2º semestre de

1978, uma espécie de “batismo do movimento estudantil”.

22

Essa atuação dos estudantes ensejava um potencial de mobilização, aspecto peculiar a

outros movimentos reivindicatórios espalhados pelo país. Muitas eram as causas, diversos os

atores, mas os enredos das histórias pareciam os mesmos. Uma realidade social difícil

delineada pelos desdobramentos políticos e econômicos dos governos militares se constituiu

terreno propício à germinação do sentimento de insatisfação, figurando um tempo de esforços

pela (re)conquista de direitos negligenciados ou suprimidos.

Em São Luís, um dos reflexos destacados desta realidade foi o episódio da greve

estudantil pela meia passagem. Os contornos específicos do referido acontecimento foram

gestados em meio a um possível descaso ou má vontade política do governo no atendimento à

reivindicação dos estudantes e uma inclinação aos interesses dos empresários do setor de

transportes coletivos da capital. Na medida em que esse impasse perdurava, maturava-se um

desfecho indesejado e até previsível que se confirmou em 1979.

Desde 1977, havia entre os estudantes uma grande mobilização em torno da questão da

meia passagem, quando a reconstrução dos movimentos e entidades estudantis foi colocada na

ordem do dia.

O empenho dos estudantes na busca de uma solução para sua reivindicação pode ser

verificado no trecho a seguir:

Em 12 de setembro de 1978, o DCE da UFMA e DAs da UEMA fizeram o lançamento oficial da campanha pela meia passagem para os estudantes nos transportes coletivos urbanos de São Luis. Desde então, iniciou-se o processo de mobilização, começando com um abaixo assinado onde reuniram mais de 34 mil assinaturas solicitando ao prefeito a implantação da medida. Em 09/11/78, um Ato Público na Praça Deodoro, com cerca de 500 pessoas, celebra a entrega deste documento à prefeitura da cidade (BORGES, 1998, p. 11).

A estratégia do abaixo assinado junto aos estudantes dos estabelecimentos de 2º grau

(atual ensino médio) foi fundamental para a divulgação da causa, ao passo que a mobilização

nas feiras, mercados e bairros também angariava simpatias. No entanto, mesmo com o

respaldo das milhares de assinaturas colhidas na cidade, a entrega do documento não produziu

o efeito esperado, no sentido de uma decisão favorável aos estudantes. A atitude de

sensibilização que as assinaturas poderiam despertar nas autoridades responsáveis se traduziu

na mais frustrante morosidade ou confirmação da má vontade política com o caso, através de

uma emperrada burocracia da qual não se tinha respostas.

23

Apesar de todos os esforços dos estudantes em buscar um diálogo aberto com as

autoridades municipais5, não houve um retorno. Os detentores do poder político local não

deram a devida seriedade à reivindicação estudantil. A ausência de sintonia entre o segmento

dos jovens estudantes e os agentes do governo era um aspecto sintomático do

encaminhamento dos “fatos”. Os traços dessa situação indefinida davam indícios plausíveis

de um desfecho conflituoso para a questão. A Capital maranhense estaria, então, na iminência

de dias agitados no último ano da década de 1970.

No dia 15 de setembro de 1979, a população de São Luís acordou surpresa com a

notícia de mais um aumento nas tarifas dos transportes coletivos urbanos6. Entre os

estudantes, o sentimento de insatisfação se acentuava. Os contornos mal traçados de um

persistente e incômodo impasse fomentaram a mobilização de milhares de jovens

descontentes, porém, muito dispostos em fazer valer seu direito. O tempo de gestação do

conflito atingia sua maturação.

Os aumentos sucessivos nos transportes coletivos verificados naquele ano podem ser

entendidos como o produto da relação estreita entre o poder público municipal e os

responsáveis pelos serviços dos coletivos urbanos. A dinâmica desta relação foi analisada

desta forma por João (“Joãozinho”) Ribeiro, militante estudantil na época:

[...] continua havendo nas cidades brasileiras e, de uma forma geral, os empresários ainda são quase que sócios das prefeituras e mexer nos lucros deles é uma questão de sacrilégio do ponto de vista (...) e da atividade que eles desenvolvem do poder que eles tem político perante as prefeituras e naquele tempo muito mais ainda por que eles financiam campanha de prefeitos e geralmente levam a fatura e pra implantar a meia passagem aqui foi (...) uma guerra muito grande, já que o governo sempre foi financiado por eles, embora naquela época não houvesse eleição pra prefeito, mas agente sabe da relação promíscua e (...) imoral que sempre existiu entre esses concessionários do serviço público, que o transporte é um deles [...] (João Ribeiro em entrevista).

Na Universidade Federal do Maranhão, o que se verificou foi uma reação automática

dos estudantes numa atitude de repúdio à medida de aumento anunciada pelo prefeito. A

mobilização estudantil foi noticiada em edição de um periódico local da época.

No final do dia realizaram assembléia geral na Praça do Campus reunindo cerca de 1000 estudantes, que decidiu no final prosseguir o movimento hoje e, na segunda-feira promover panfletagem e comícios relâmpagos na cidade, e nos colégios de modo geral para tentar adesão de todos os estudantes e da população, para uma

5 O ato de entrega do documento com as assinaturas em 1978 não foi feito diretamente ao prefeito da época

Loreno Nunes que não se encontrava na prefeitura, sendo entregue ao chefe de gabinete Tyrone Silva. 6Tratava-se do terceiro aumento nas tarifas dos transportes coletivos naquele ano, sancionado em 14/09/1979, pelo

então prefeito Mauro fecury.

24

concentração às 18:00h na Praça Deodoro, pela meia-passagem (Jornal O Estado do

Maranhão, 15/09/1979, p. 3).

Com relação ao posicionamento da instituição sobre as primeiras manifestações dos

estudantes (realização de piquetes, paralisação das aulas e a organização de boicotes) em

reação ao aumento das tarifas, observou-se a postura de cautela do Pró-Reitor de extensão e

assuntos estudantis da UFMA, Aldir Melo, diante deste fato, que se dirigiu aos estudantes a

fim de convencê-los que a ação do boicote não resolveria a situação (Jornal O Estado do

Maranhão, 15/09/1979, p. 3).

Uma questão importante a ser pensada sobre o episódio diz respeito à reação dos

estudantes diante da iniciativa de Aldir Melo, representante da universidade, ao tentar ajudar

na resolução do problema. De acordo com a fonte supracitada, a opinião do pró- reitor teria

sido recusada pelos manifestantes por estes entenderem que aquela instituição “participava da

luta através da omissão”, ou seja, que a Universidade não tomou partido incisivamente pela

causa dos estudantes. Notícia sobre o mesmo fato veiculado em outra fonte analisada (Jornal

Pequeno, 15/09/1979, p.1), informa que os estudantes, orientados pelo pró-reitor,

reconheceram que a luta não deveria ser travada contra a Taguatur (empresa de transporte

urbano responsável pela linha do Campus). Segundo Melo: “às autoridades é que deve ser

levado o problema”.

Algumas indagações podem ser consideradas acerca do discurso observado nos dois

periódicos ao noticiarem o mesmo fato. O Estado do Maranhão, ao evidenciar a atitude de

ataque dos estudantes em relação à postura omissa da instituição nas lutas, estaria sugerindo

um caráter rebelde da organização dos estudantes, que ganhava força diante da precipitação

dos fatos? Em que medida a representação para os fatos neste periódico guardava relação com

o receio de prejuízos políticos para os seus dirigentes, uma vez que os detentores do poder

local na época tinham este “canal” a serviço dos seus interesses?

Outras inferências surgem naturalmente como conseqüência das indagações elencadas

acima, ao se perceber, na noticia veiculada no Jornal Pequeno, a supressão de qualquer idéia

de desentendimento ou mal estar entre os estudantes e o Pró-Reitor Aldir Melo. Nota-se, já no

principio das mobilizações dos estudantes pela meia passagem, uma inclinação deste

periódico à causa estudantil. A representação de um movimento organizado e coeso em torno

de uma causa, que as páginas deste jornal estampavam com o desenrolar dos acontecimentos,

denotava seu caráter de oposição ao grupo estabelecido no poder, sendo este, o responsável

pelo periódico rival.

25

A elevação nas tarifas dos transportes coletivos urbanos significou naquele instante,

um sinal evidente da debilidade de uma famigerada proposta de governo, que se apoiava nos

interesses de uma classe média, defendendo-os em detrimento das necessidades dos

segmentos mais populares.

O referido contexto de instabilidade política em São Luís aguçada com os aumentos

abusivos das passagens de ônibus, desencadeou a manifestação do segmento estudantil, que,

sentido-se prejudicado, passou a reivindicar. Em análise de Arleth Borges sobre o período, a

autora apresenta sua visão quanto à mobilização dos estudantes.

A mensagem dos grevistas relacionava a greve com a política econômica que vinha sendo implementada no país pelos governos militares, e pelos governantes estaduais, a qual resultava em graves dificuldades para os “pais de família” maranhenses. Destacavam a universalidade do direito e a exorbitância dos custos com transporte coletivo sobre o orçamento familiar e que a conquista da reivindicação só viria com um movimento forte, que aglutinasse estudantes e os trabalhadores em geral, sobretudo os mais pobres, que eram os mais afetados pelo problema (BORGES, 1998, p. 12-13).

A preocupação com o momento pelo qual passava a Cidade foi expressa em

assembléia por vários estudantes, entre eles, Renato Dionísio, Juarez Medeiros, Agenor

Gomes, e outros, ao manifestarem o argumento de que o sistema econômico implantado pelo

regime militar a partir de 64 faliu, e não caberia ao povo arcar com o ônus da falência.

Afirmaram, ainda, que o sistema exclui a maioria da população brasileira de participar nas

decisões nacionais e defenderam uma “sociedade sem explorados ou exploradores” (Jornal O

Estado do Maranhão, 15/09/1979, p. 3).

Os desdobramentos das reivindicações dos estudantes já ecoavam pela Cidade, e

conforme avançavam os dias do mês de setembro, a tensão e o desencontro entre o governo e

o comando de greve se acirrava mais. Todos os esforços possíveis pareciam ter sido

empreendidos no sentido de que se evitasse o conflito. A causa dos estudantes contou

inclusive com a iniciativa da “bancada emedebista” na Assembléia Legislativa7 que

encaminhou um ofício ao governador solicitando o atendimento das reivindicações estudantis

(Jornal O Estado do Maranhão, 19/09/1979, p.2).

Essa ausência de entendimento parecia permear, também, o centro das decisões

políticas governamentais, pois, conforme ressaltou o deputado Guterres, não houve sintonia

entre o chefe do Executivo e seus auxiliares. O deputado também retomou o episódio da

7 Em manifestação do deputado Carlos Guterres ao falar do desprestígio do legislativo, o parlamentar do MDB, informou que a casa não obteve resposta alguma com relação ao oficio encaminhado.

26

solicitação da casa legislativa em favor da concessão da meia passagem, ocasião em que o

documento não teria sido entregue ao governador. Diante desses fatos, Guterres afirmou o

seguinte: “estão sabotando o Governador João Castelo e assim não dá mais para entender o

que realmente está se passando no Palácio dos Leões” (Jornal O Estado do Maranhão,

19/09/1979, p. 2).

As investidas dos estudantes junto às autoridades competentes, com vistas a uma

solução satisfatória para a questão da meia passagem, não lograram êxito. O impasse se

prolongava. As explicações oficiais argumentavam não deter o governo a competência legal

para decidir sobre o caso. O prefeito insistia em sustentar que se tratava de matéria de alçada

da Comissão Interministerial de Preços (CIP), enquanto, o segmento dos empresários de

transportes urbanos defendia com afinco a inviabilidade da adoção de medidas favoráveis aos

estudantes. Afinal de contas, aos homens de negócios do transporte cabia, tão somente, a

garantia do seu coletivo desejo de continuar lucrando.

Diante do completo quadro de indefinição para a situação, a causa dos estudantes

contou com um reforço fundamental, que ajudou bastante na melhor compreensão do caso e

certamente teve um peso significativo na elucidação do problema. Em análise embasada nos

aspectos jurídicos da questão, José Mário Carneiro, economista maranhense, expõe sua

interpretação para os fatos.

Conforme José Mário, o aspecto do licenciamento de veículos destinados ao transporte

coletivo de passageiros está situado dentro da competência municipal, cujos pontos

primordiais, devidamente previstos nos dispositivos de lei, possibilitam entender que este é

assim, “dos poucos assuntos mantidos na esfera deliberativa municipal onde, o poder

concedente defere a terceiros, a titulo precário, o licenciamento para, na qualidade de

concessionários de um serviço eminentemente público, realizarem o transporte coletivo de

passageiros, sob determinadas condições” (Jornal Pequeno, 19/09/1979, p.6).

Dentre os elementos contemplados na perspectiva jurídica que habilitava a intervenção

política das autoridades locais na questão, era explicitamente clara a “obrigação por parte do

requerente, de conceder o abatimento de 50% nas tarifas aos estudantes fardados ou que

apresentassem carteira fornecida por entidade estudantil estadual considerada de utilidade

pública por lei municipal”. Esse dispositivo legal, argumento contundente favorável às

pretensões dos estudantes, figurou na redação dada pela lei nº 1.371/63 (Jornal Pequeno,

19/09/1979, p.6).

27

A lei previa ainda, por parte do requerente, a “obrigação do compromisso de

acatamento às ordens e regulamentos existentes ou que viessem a existir, sob pena de

cancelamento da licença que tivesse sido concedida”.8

Ao Conselho Interministerial de Preços (CIP), órgão de deliberação coletiva federal,

cabia a proposição aos “órgãos e entidades competentes da administração pública federal,

estadual e municipal, a adoção, em caráter prioritário, das providências que se fizessem

necessárias para, sob a forma de ação integrada, neutralizar quaisquer causas perturbadoras do

comportamento dos preços no mercado interno”.9

Merece destaque, nesse sentido, a repercussão da análise do caso, requisitada à Ordem

dos Advogados, cujo diagnóstico contemplava juridicamente, as reivindicações dos

estudantes, uma vez que, se tratou de um discurso autorizado em nome da lei e, sobretudo, por

ter sido largamente veiculado na imprensa escrita, de grande alcance na Capital. Em meio ao

embate de opiniões – as mais dissonantes sobre a greve estampadas nas matérias dos jornais –

o discurso legal da entidade também reforçou, sem dúvida, a convicção dos estudantes.

O mês de setembro daquele ano de 1979 encaminhava-se para seu desfecho. Depois de

muita tensão pelas ruas da cidade, mobilizações, tentativas frustradas, os estudantes não

desanimaram de seu propósito. As expectativas foram revigoradas com o respaldo da Ordem

dos Advogados do Brasil, secção Maranhão, que prestou grande contribuição aos estudantes

quando solicitada pelo comando de greve, analisou e constatou a viabilidade do direito à meia

passagem.

Os estudantes se manifestaram novamente. Por iniciativa das lideranças estudantis do

comando de greve foi dirigido um novo documento ao palácio do governo. Com uma

fundamentação calcada na percepção particular do segmento acerca dos “acontecimentos”, o

documento elaborado pelos estudantes foi recebido pelo serviço de protocolo da sede do

executivo estadual. A motivação que ensejava o discurso dos estudantes durante todo o

processo de greve, instrumento que contemplava suas reivindicações, é apresentada no trecho

a seguir:

[...] No citado documento, a Comissão Central de Luta Pela Meia-Passagem destaca inicialmente ao Governador João Castelo que as condições sócio-econômicas da população maranhense têm colocado o povo constantemente sob as

8 Lei nº 807, de 08 de agosto de 1957, que deu nova redação a artigos da Lei nº 107, de 4 de abril de 1949.

9 Fragmento referente ao artigo 12 do Decreto nº 63.196, de 29 de agosto de 1968, que estabelecia a forma de atuação do Conselho Interministerial de Preços em todo o país.

28

ameaças do subdesenvolvimento, da miséria e da marginalidade. Sabemos, frisam os estudantes, que a educação representa um dos fatores primordiais que pode decisivamente contribuir na libertação desse povo, bem como proporcionar um futuro mais nobre e uma pátria mais justa. Sabemos da deficiência dos nossos sistemas educacionais, aqui e em outros pontos do país, devido ao pouco empenho das autoridades afetas ao problema e a reduzida aplicação de recursos em área tão prioritária para o desenvolvimento. Sabemos muito mais ainda, das impossibilidades que o povo tem em custear a educação de seus filhos. Continuando a exposição de motivos, os estudantes destacam ocorrer que a instável economia nacional impõe, a classes populares, alterações bruscas no seu parco orçamento. Assim é que aos constantes espasmos da crise energética mundial e à descalabrosa ascensão do custo de vida, a nossa população tem vivido em estado de sobrevivência marginal [...] (Jornal O Estado do Maranhão, 27/09/1979, p. 3).

Toda a atmosfera de conflito inerente aos fatos da greve dos estudantes em 1979 é

ininteligível se pensada de forma apartada do seu contexto peculiar. O documento enviado

pelos estudantes ao governador, destaque nas manchetes da imprensa local na época, sintetiza,

pontualmente, a dimensão da necessidade da meia passagem para milhares de jovens de São

Luís. Daí, a partir de uma análise atenta ao discurso dos estudantes, neste documento, por

exemplo, torna-se mais nítida a percepção das dissonâncias que marcaram a relação entre o

governo local, representado pela figura simbólica do “governador biônico” 10, João Castelo, e

os segmentos da sociedade civil ludovicense que se colocaram ao lado dos jovens estudantes.

Convém observar aqui, o movimento estudantil como um segmento catalisador de

insatisfações as mais diversas, e que durante o processo de greve na capital, empenhou-se na

crítica da situação político-econômica vigente, segundo sua leitura específica para os

“acontecimentos”. As mobilizações reivindicatórias dos estudantes tinham ainda como

substrato a motivação da experiência cristã católica de muitos jovens que adentraram a

universidade, contribuindo, dessa forma, com a dinâmica do movimento.

No entanto, é necessário ponderar que o matiz religioso foi uma característica

preponderante no movimento, inerente à orientação de um grupo de estudantes que assumiu a

gestão do DCE, entidade representativa estudantil, no ano de 1978. O intento aqui é ressaltar a

dimensão da contribuição e influência de um determinado grupo em evidência no movimento

estudantil – Grupo Unidade – sem tomar sua orientação, contudo, como hegemônica para o

conjunto de estudantes do movimento, uma vez que as clivagens verificadas implicaram,

10

O posto de governador naquele momento, em todo país, era ocupado por designação do governo militar ou por influência de autoridades políticas ligadas a este. Não havia eleições. João Castelo foi escolhido pelos “legítimos representantes” da ditadura, daí o apelido de governador biônico.

29

segundo Cunha Santos, militante estudantil na época, rupturas no próprio Grupo Unidade um

tempo depois da greve de 1979.

É importante destacar mais detidamente esse aspecto, na compreensão de idéias

específicas que nortearam o envolvimento de um conjunto de estudantes na greve. A

representação do discurso religioso, precisamente as idéias da Teologia da Libertação, é

inegavelmente um dos elementos centrais particular ao contexto em que se desenrolam os

eventos da greve pela meia passagem em São Luís, merecendo, desta forma, uma atenção

especifica.

1.2 Fermento na massa: firmes na fé, prontos pra ação

A dimensão religiosa tem lugar relevante no entendimento dos eventos analisados,

associados ao contexto da greve dos estudantes de 1979. Pensar a atuação estudantil sugere,

para além da reivindicação em si, motivações, aspirações e concepções sobre uma realidade

que demarca o posicionamento de grupos e o potencial de influência de suas idéias sobre

outros indivíduos. O protagonismo dos estudantes, verificado durante as manifestações pela

meia passagem, ensejou em sua deflagração um caráter de transformação da realidade adversa

a partir do atributo subjetivo da fé.

Para melhor entendimento desse viés religioso, elemento influenciador das posturas

assumidas por vários jovens da Capital maranhense em 1979, é necessário situar

pontualmente a posição da Igreja Católica enquanto instituição inserida num contexto mais

amplo, de maior envolvimento com as questões de ordem política, econômica e social do país.

Eram as necessidades mais imanentes impostas ao homem, e a situação de injustiça, que à luz

da fé, precisavam ser transformados. Os ventos da Teologia da Libertação sopraram por todos

os cantos da América Latina chegando naquele momento à ilha de São Luís.

A partir do concílio Vaticano II, reunião das autoridades eclesiais católicas no início

da década 1960, evidenciou-se uma abertura maior da Igreja diante de um contexto

desfavorável e opressivo, em quase toda a América Latina, pela manifestação de uma crise no

sistema econômico, político, social e ideológico. No modelo imperante do capitalismo

dependente, o acelerado processo de industrialização e urbanização nos países latino-

americanos relegava os trabalhadores à marginalização. O “desenvolvimento” cobrava seu

30

alto preço. O concílio teve, portanto, uma significação especial quando legitimou a renovação

da Igreja. Renovação esta já em curso e que representou um avanço importante nas práticas

institucionais tidas como conservadoras no período. Dessa forma, o Vaticano II com seus ares

renovadores, teria proporcionado à Igreja uma recepção criativa de si. (BOFF, 1984, p. 20-

21).

Neste cenário específico, as condições objetivas de uma realidade indígna de vários

segmentos sociais interpelavam a igreja no sentido de intervir e se comprometer com a

transformação da realidade. O “processo de libertação integral do homem” implicava,

necessariamente, na superação das estruturas de opressão em suas dimensões cultural,

econômica e política. A Teologia da Libertação surge, portanto, num momento sui generis,

emergindo de uma práxis de fé, diante da realidade de pobreza de um continente. As diretrizes

conciliares do Vaticano II orientaram a necessidade urgente de uma Igreja que deve se fazer

presente ante as angústias e situações que agridem a dignidade humana.

As Conferências Gerais do Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM),

ocorridas anos mais tarde em Medellín (1968) e Puebla (1979), sobretudo esta última,

assimilaram de forma substancial a mensagem teológica de Libertação subjacente à prática

das comunidades eclesiais e pastorais específicas da Igreja.

Alguns temas de reflexão teológica na perspectiva da Libertação podem ser

verificados em Medellín: a presença salvífica de Deus nas libertações históricas, o

desenvolvimento e libertação humana como antecipação do reino, a opção da Igreja pelos

pobres e pela pobreza, a relação fé-justiça, entre outros (GALILEA, 1978, p. 47-48).

O documento de Puebla evidencia uma opção preferencial pelos pobres, justificada

bíblica e pastoralmente. O compromisso com a libertação dos pobres é apresentado como o

mais urgente e significativo para os cristãos, como a melhor expressão de seu amor a Deus e

da imitação de Jesus. “Puebla afirma a dimensão libertadora e política da fé; a dimensão

histórica (social, política, econômica, cultural) da libertação de Jesus Cristo. E a cada instante

reitera que a evangelização, portanto, é histórica na mesma linha da salvação de Jesus Cristo”

(GALILEA, 1978, p. 48-49).

As preocupações da Igreja latino-americana, enunciadas tanto em Medellín como em

Puebla, logo ressoaram distante dali. A verdade é que a idéia de libertação assumiu uma

conotação muito forte, até mesmo se pensarmos nela desprovida de um conteúdo teológico,

num momento em que as ditaduras militares eram uma realidade presente na maioria dos

31

países da América Latina. Porém, é o seu entendimento na acepção cristã, que motiva o

engajamento dos setores ditos progressistas da Igreja Católica a lutarem por uma realidade

justa em defesa de uma vida mais digna aos desabonados. O discurso de lideranças estudantis

do comando de greve é marcado por essas representações.

Em São Luís do Maranhão, no contexto da greve estudantil de 1979, havia um núcleo

católico aberto à Teologia da Libertação, acepção, por assim dizer, mais ousada de

explicitação da fé. Emprego a palavra ousadia porque os simpatizantes e aqueles que

pautavam suas ações a partir da Teologia da Libertação eram tratados com reservas e

desconfiança não apenas pelo governo, mas também pela hierarquia conservadora da própria

Igreja. Segundo os estudos de Leonardo Boff em sua obra Igreja: Carisma e Poder, a

perspectiva de transformação inerente ao conteúdo da Teologia da Libertação também se

aplica às estruturas incoerentes presentes na Igreja enquanto instituição.

Um exemplo emblemático dessa situação foi o desabafo do Padre Marcos Passerini,

religioso que manifestou apoio irrestrito aos estudantes, quando cobrou um posicionamento

mais aberto do governo com relação a sua pessoa perante a sociedade ludovicense.

O desabafo do Vigário da Igreja de São João quanto às insinuações do Governador

João Castelo foi assim noticiado: “Eu me pergunto por que o Governador do Estado não teve

a coragem de dizer abertamente que os infiltradores que lideravam a passeata dos estudantes

eram alguns membros da igreja, e só ficou insinuando aqui acolá nas notas oficiais

distribuídas à imprensa local” (Jornal O Estado do Maranhão, 22/09/1979).

É necessário observar que a alusão constante a “elementos infiltrados” entre os

estudantes é um aspecto que salta aos olhos no discurso das autoridades, verificado na análise

dos periódicos que cobriram a greve pela meia passagem. Essas ocorrências freqüentes nas

manchetes jornalísticas podem ser interpretadas como estratégias discursivas estreitamente

associadas ao contexto da época.

Vivia-se a tensão da Guerra Fria e o perigo iminente da “influência subversiva”

estrangeira. Neste sentido, é razoável inferir que Castelo tentou associar tal idéia à imagem do

Padre Marcos Passerine. O próprio discurso do sacerdote, noticiado pelo Jornal O Estado do

Maranhão, em 22/09/1979, no qual ele falou sobre a “falta de coragem e convicção pessoal,

já bem definida, de membros deste mesmo governo a respeito de padres estrangeiros”, possui

um valor significante como enunciado atribuindo um sentido à inferência apontada.

32

Os Padres Marcos Passerini e Rejean Racini foram referências como lideranças no

trabalho com jovens. A atuação pastoral de ambos se orientava pela idéia de que uma

sociedade mais justa, transformada, passava por uma conscientização coletiva, à luz da fé, que

motivaria a participação ativa na realidade. As lideranças jovens do Grupo Unidade e outros

identificados a esse discurso deram vazão a tais idéias e vislumbraram em sua perspectiva

particular, no plano discursivo, o conjunto dos estudantes.

Aliás, o empenho de Padre Marcos em apoio aos estudantes foi fundamental para a

manutenção da confiança dos jovens diante dos momentos de tensão vividos naqueles dias de

setembro. As dependências da Igreja de São João também amparavam os estudantes em

termos logísticos, quando se fazia necessário atuar na clandestinidade. A assistência oferecida

pelo religioso possibilitou que o movimento prosseguisse com suas reivindicações mesmo em

vista da ação repressiva da polícia.

Racini e Passerini colocavam à disposição das entidades e dos militantes estudantis –

organizados, seja na Pastoral Universitária, que reunia parte dos católicos, seja no Grupo

Unidade, que abrangia também estudantes não católicos -, espaços físicos para a realização de

reuniões (Igreja de São João), assinaturas de jornais e revistas de circulação nacional,

mimeógrafo e outros, de acordo com as necessidades. Além do apoio material, davam

referências ideológicas, desenhadas a partir de ideais cristãos da Igreja Católica, cuja doutrina

igualitarista incentiva o apego à “justiça e defesa dos oprimidos” (BORGES, 1998, p. 8-9).

Embora a Teologia da Libertação não tenha fincado plenamente suas raízes no

Maranhão e não tenha sido unânime entre os estudantes, é inegável a grande contribuição de

suas idéias junto a algumas pessoas e grupos que se mostraram abertos a essa proposta. A

influência marcante desse discurso no contexto ao qual o objeto aqui discutido (a greve

estudantil) está inscrito, é ressaltada com destaque segundo o ponto de vista de Arleth Borges:

Este fato nos permite afirmar, por exemplo, que o empenho em vivenciar a dimensão política da fé religiosa foi uma poderosa força a animar o movimento estudantil em 1978 e 1979 e também se fez presente na maior parte das lutas de caráter popular daquela época (BORGES, 1998, p. 9).

Entendo que essa perspectiva tem seu lugar significativo na articulação de um enredo

discursivo, onde outras representações importantes também são contempladas, contribuindo

assim para uma percepção pretensamente mais apurada e imparcial do evento, reconhecendo,

é claro, os efeitos do próprio discurso que está sendo produzido marcado pela subjetividade de

quem o produz, aspecto que enseja, portanto, a inevitável parcialidade. Considerando a idéia

33

de que todos somos produtores de discursos, vejamos o relato de uma liderança estudantil na

época da greve, acerca da influência da Teologia da Libertação sobre o movimento:

à medida que foi avançando esse movimento e que a sociedade começava a buscar espaço e de questionar o status quo, questionar a realidade social, esse movimento foi se impregnando não é, sabe! de toda essa questão social, e acabou que a gente que participava disso começou a ter uma profunda convicção religiosa de que nós éramos o sal da terra, que tínhamos que dar gosto à terra, nós tínhamos que buscar a transformação da realidade, que o paraíso é aqui, de que não basta a gente pensar que vai ser feliz do outro lado na vida eterna, mas que a vida eterna poderia ser construída aqui, a coisa da construção de um mundo melhor.

Este grupo, a partir da igreja, a partir desse viés profundamente religioso mais, muito calcado na teologia da libertação, muito calcado nesses movimentos libertários, na nova visão da igreja na América Latina, baseado em Dom Hélder Câmara, em Dom Paulo Evaristo Arns, em Dom Pedro Casadáliga e aqui no Maranhão em Marcos Passerini e Rejean Racini [...] esse grupo resolve um dia ir pra dentro da universidade, éramos universitários, alguns já com o tempo um pouco maior, outros menor, mas um grupo aí de trinta universitários mais ou menos, vinte universitários resolvem concorrer aos DCE’S [Renato Dionísio em entrevista].

A Teologia da Libertação, ou seu nível de influência sobre os estudantes no contexto

da greve em São Luís, pode ser entendido como um discurso presente apenas, por assim dizer,

nas entrelinhas dos fatos repercutidos nos jornais que circulavam pela cidade, porém, não

menos importante por isso. Um discurso implícito, que ganha materialidade quando um grupo

de estudantes se manifesta saindo às ruas, expondo o problema, denunciando as estruturas

pesadas impostas à população, enfim, se colocando na luta a cada reivindicação como agentes

transformadores daquela realidade, à luz de sua fé, por uma vida digna e justa.

A ausência ou mesmo omissão de referências à Teologia da Libertação em artigos de

jornais durante o episódio pela meia passagem muito provavelmente se justifica pela dispersa

repercussão de suas idéias, que encontraram receptividade calorosa, notadamente, nos núcleos

religiosos simpatizantes, leia-se; a “turma do Padre Passerine da Igreja de São João”. Ainda

que sua difusão encontrasse amplitude maior, é possível que não figurassem estampadas nos

periódicos por conta de seu teor “subversivo”, sobretudo, para aquela época.

A idéia de subversão subjacente ao conteúdo da Teologia da Libertação em toda

América Latina, que pregava a superação das “injustiças sociais” e a transformação das

“estruturas opressoras”, assemelhava-se em muito às análises sociológicas de tendência

marxistas de interpretação da realidade. Ambas se apresentavam, num contexto atribulado,

como alternativas revolucionárias, pode-se dizer, contemplando causas em comum, porém, a

partir de convicções distintas.

34

Para os adeptos da Teologia da Libertação, transformar a realidade, viver intensamente

- de forma profética a dimensão política da fé e promover a justiça entre os homens -,

significava ser o “sal da terra”, dando “gosto” a ela, atuando firme pela antecipação do reino

de Deus já entre nós, sendo “fermento na massa” para fazê-lo crescer, diferentemente do

marxismo, cuja perspectiva de igualdade, justiça, transformação, de uma vida digna para

todos, orientava-se por convicções estritamente imanentes.

A idéia de ser o fermento na massa está bem sintetizada no depoimento de outro líder

estudantil quando este fala sobre o seu processo de socialização e engajamento no movimento

dos estudantes:

O nosso engajamento, falando particularmente do engajamento no movimento estudantil, se deve a partir do movimento de igreja, de pastoral de juventude, em que se travavam algumas discussões sobre o engajamento do jovem no movimento de libertação da sociedade, de mudança da sociedade, e isso fez com que vários dos jovens que participavam da pastoral de juventude tivessem oportunidade de confrontar a realidade com o seu paradigma de fé (Juarez Medeiros em entrevista).

De fato, a Capital maranhense em 1979 viveu uma “fermentação de protestos”, a greve

dos estudantes foi a expressão maior, motivada pelas difíceis condições de vida, de

significativa parcela da população. As reivindicações estudantis pela meia passagem tinham

como base não meramente a concessão do benefício em si, mas suas motivações partiam de

uma preocupação mais estrutural, cujas dimensões abarcavam a Cidade por inteiro.

Uma percepção da conjuntura vivida em São Luís naquele momento pode ser assim

esboçada:

Veja bem, São Luís naquela época devia ter aproximadamente 350 mil habitantes né!? Uma cidade extremamente pobre, bem mais pobre do que hoje e a classe dominante muito fechada, pequena e fechada. Começa a surgir uma classe média, começam a surgir os setores populares, uma classe média maior, com aspirações diferentes [...] a cidade não tinha grandes movimentos sociais, grandes movimentos culturais, tudo era muito incipiente em São Luis naquela época, do ponto de vista da contestação do poder [...] a cidade daquela época vivia praticamente do serviço público e um pouco do comércio. A agricultura já em queda e a subsistência com base na extração do babaçu [...] [Renato Dionísio em entrevista].

Essa é a descrição do panorama da Cidade. O momento específico ludovicense parecia

anunciar, inevitavelmente, tempos de conflito, onde cada sujeito, dadas as condições,

situavam-se em um dos pólos da contenda. Nesse sentido, o envolvimento da Igreja através do

segmento progressista, identificado com a Teologia da Libertação, significou de todo modo,

35

uma resposta incisiva desta mesma instituição que se calou por um bom tempo ante aos

abusos do regime de exceção vigente no país.

A manifestação de solidariedade à causa estudantil também se verificou

destacadamente nos jornais de grande circulação na Capital (O Estado do Maranhão e o

Jornal Pequeno), através da atitude mediadora do arcebispo da arquidiocese de São Luís na

época, Dom Mota, quando este se prontificou em colher as assinaturas das lideranças

estudantis que não constavam no documento elaborado pela Comissão Central da Luta pela

Meia Passagem, enviado ao Palácio dos Leões.

O episódio da ausência das assinaturas no documento dirigido ao governador,

interpretado como “uma prova da má fé dos estudantes”, foi habilmente contornado por Dom

Mota, que interveio junto aos estudantes argumentando que tal fato ocorreu devido à falta de

costume dos estudantes em lidar com os trâmites burocráticos (MATIAS, 2004, p. 102-103).

Convém ressaltar, entretanto, que os jornais também registraram o estreito contato

entre o governador João Castelo e seus auxiliares com o alto clero de São Luís em

determinadas situações onde, reservadamente, estiveram reunidos. Também consta como nota

distribuída pela imprensa à época, uma carta sigilosa enviada pelo governador Castelo ao

arcebispo Dom Mota.

Sobre esta ligação confidente entre as referidas autoridades noticiada nos periódicos, é

razoável pensarmos nas seguintes indagações: teria a aproximação mais reservada entre o

governo e a cúpula eclesial da arquidiocese, correspondência com o desprestigio - pra não

dizer desconfiança - do segmento mais progressista da instituição (a Teologia da Libertação)?

Em que medida tal segmento representou uma preocupação para o governo, haja vista as

acusações dos órgãos governamentais e de segurança do Estado dirigidas ao padre Marcos

Passerini, colocando-o como mentor principal do movimento?

Estas indagações apresentadas não são destituídas de coerência ao se pensar, segundo

a lógica governista, o “perigo” que representaram as idéias influentes do grupo de Padre

Marcos no contexto da greve, soando como real ameaça ao poder estabelecido, em função do

seu teor contestatório. O receio até de um golpe de estado e o conseqüente endurecimento

frente às manifestações seria o argumento plausível para uma das indagações.

Quanto à outra, é perfeitamente cabível a justificativa de que, tanto Igreja Católica (a

cúpula institucional) como governo, comungavam do mesmo receio, quais sejam: prestígio

posição e poder ameaçados.

36

Porém, a despeito de quaisquer inferências sobre articulações contra os adeptos da

Teologia da Libertação, a questão da participação efetiva da Igreja Católica na busca de uma

solução para a greve foi inegavelmente de grande importância, quer seja, através da atuação

mais incisiva ao lado dos estudantes nas manifestações, ou pela via mais diplomática das

negociações com o governo. Esta é a representação mais corrente nos periódicos sobre este

aspecto.

Ser o “fermento na massa”. Mas que massa era essa? Como a definir? Um mundo de

gente? Anônimos aglomerados? Portadores das reações mais indistintas e imprevisíveis, dos

anseios insondáveis diluídos na articulação de um discurso? De que forma as multidões pela

meia passagem foram representadas pelos jornais de São Luís? O que as análises em História

têm a dizer sobre as massas? As possibilidades em lhe atribuir características, qualidades,

parecem variadas, fluídas, ao passo que pensá-la em sua complexidade sugere um maior

esforço.

A questão das concentrações populares certamente é um aspecto que desperta grande

interesse ao se analisar a greve de 1979. As mobilizações estudantis denotaram, naquele

referido contexto, um grande potencial de articulação política dos estudantes, que por

conseqüência, levou à participação massiva de populares nas reivindicações pela cidade,

angariando amplamente a simpatia e a adesão de ilustres desconhecidos, cujo apoio, porém,

foi relevante. Neste momento do trabalho, destacamos uma atenção especial às multidões de

1979 pela meia passagem em São Luís.

1.3 Um olhar sobre a multidão: participação popular na greve

A Capital maranhense vivenciou no ano de 1979 um momento de efervescência

política singular. No decorrer do mês de setembro deste ano, as ruas de São Luís foram palco

de calorosas manifestações envolvendo um grande contingente de sujeitos dispostos a dar

vazão às distintas formas de insatisfação. A decretação do aumento das tarifas nos transportes

coletivos urbanos desencadeou entre os estudantes, estes mais diretamente prejudicados com a

medida, uma organização imediata de contestação à decisão do governo.

O movimento contestatório de repúdio ao aumento das passagens começou a tomar

corpo dentro da própria Universidade Federal do Maranhão com a atitude deliberada de um

37

grupo de alunos decididos a não mais assistirem aulas e nem tomarem os ônibus que faziam a

linha do Campus, numa clara demonstração de contrariedade ao aumento. A postura de

resistência se acentuou na medida em que os jovens se davam conta do abuso que

representava a elevação da tarifa, uma vez que o aumento de setembro se tratava do terceiro

reajuste naquele ano.

Da rebeldia expressa com a realização de piquetes, passando pela sensibilização dos

companheiros de curso e tantos outros universitários, até a articulação das primeiras

assembléias, emergiu um núcleo determinado a levantar a bandeira do direito à meia

passagem. Em questão de pouco tempo as reivindicações ganharam consistência e se

expandiram pela Cidade. O envolvimento dos estudantes pela causa tinha precedente: o

trabalho junto à população há pelo menos dois anos, antes da eclosão da greve em 1979. Este

trabalho era basicamente a realização de campanhas de sensibilização dos populares em torno

da causa pleiteada pelos estudantes. Justificavam ser aquele um problema não apenas

particular à classe discente, mas também uma questão que atingia as famílias dos jovens

estudantes. O contato direto com o povo acontecia em locais abertos como feiras, mercados

etc.

Um sinal bem evidente das dimensões que tomaram as mobilizações dias depois,

manifestou-se logo no mesmo dia em que foi noticiado o aumento nas tarifas dos coletivos. O

DCE chamou para si a direção do movimento, convocando para a tarde daquele mesmo dia

(14/09/79), uma assembléia geral que oficializou a deflagração da greve dos estudantes da

UFMA contra o aumento nas tarifas de transporte. A assembléia estudantil, com 1.500

participantes, inaugurou uma série de grandes eventos que marcaram esta fase da luta pela

meia passagem (BORGES, 1998, p.12).

Segundo a percepção do comando de greve, manifestada no discurso de lideranças

como Agenor Gomes e Renato Dionísio, a elevação nas tarifas era considerada “um peso no

orçamento modesto de muitas famílias de São Luís”. Dever-se-ia, então, fazer um alerta a

população para as dificuldades na manutenção das necessidades básicas, como a alimentação,

em vista do acanhado salário comprometido.

Esta visão particular dos líderes estudantis acerca da conjuntura vivida naquele

momento – na economia e na política -, ensejou a confecção de documentos que solicitavam

ao governo a concessão da meia passagem, ao passo que explicitaram a situação de pobreza

de significativa parcela da população. A inquietação que parecia atingir somente aos

38

estudantes se espraiou também às famílias que custeariam a seus filhos um transporte mais

caro.

A causa dos estudantes se tornou também a de milhares de famílias que se

envolveram. Progressivamente, de forma bastante hábil, e através do intenso trabalho de

mobilização direta e das notas veiculadas nos jornais expondo a situação, os estudantes

canalizaram o apoio popular às suas reivindicações. Na medida em que adesões se

confirmavam, o movimento crescia. Afinal de contas, como sugeriu o discurso das lideranças

estudantis em nota veiculada no Jornal Pequeno de 21/09/1979, “a luta pela conquista da

meia passagem é, indiscutivelmente, a luta da maioria das famílias de São Luís [...]”

A cada ato público, assembléia convocada, caminhada, onde houvesse estudante, era

considerável a concentração de indivíduos. Entendo que a adesão popular foi um aspecto

fundamental para se pensar os contornos vultosos adquiridos pelo movimento, bem como as

proporções atingidas por ele em potencial de contestação. Entretanto, de acordo com a

interpretação de João Ribeiro, participante ativo da greve, há um enaltecimento um tanto

desmedido das massas quando faz referência ao envolvimento destas durante o processo

grevista em 1979:

A população foi o maior sujeito dessa história! O pessoal fala muito em estudante, mas se não houvesse uma grande adesão das massas populares, das pessoas que tava é [...] envolvidos por essa questão do arrocho salarial, do desemprego, uma carestia desenfreada [...] tanto é que os nossos principais discursos e convocações foram nos mercados, nas feiras e nos bairros e, não somente nas escolas [João Ribeiro em entrevista].

Com o desenrolar dos acontecimentos, o poder de aglutinação dos estudantes era o

reflexo do engajamento, da vontade e do esforço coletivo. Observou-se na Cidade a formação

de grandes concentrações a céu aberto, ou melhor, em praça pública, com as lideranças do

movimento conduzindo as discussões onde as deliberações sobre os rumos da greve

aconteciam.

Um registro bem contundente de manifestação dessas multidões verificou-se com a

realização de Ato Público convocado para o dia 17/09/1979, quando “São Luís conheceu uma

das maiores aglomerações de massas de sua história. Cerca de 15 mil pessoas (destacando-se

pelo uso de uniformes, muitos estudantes secundaristas) lotavam a Praça Deodoro”

(BORGES, 1998, p.13).

Muitas são as referências às manifestações em várias situações pela Cidade no

contexto da greve, caracterizando-as como um “movimento de massa”, um aglomerado

39

humano que logo assumiu a natureza de uma luta também do “povo”, segundo as

representações dos próprios estudantes. A evocação do envolvimento popular (das massas)

nas reivindicações pela meia passagem, aspecto sempre presente no discurso das lideranças

estudantis, enseja aqui uma reflexão importante no sentido de se analisar os variados

discursos (inclusive as representações oficiais), à luz do que pensam alguns autores sobre a

idéia de multidão.

O fenômeno das multidões verificado no episódio da greve de 1979, bem como em

outros eventos registrados pela historiografia, tem adquirido, recentemente, um lugar de

destaque nas análises que envolvem contextos de crises política e social. Embora a cidade de

São Luís nessa época estivesse longe de ser caracterizada como uma “metrópole”, pode-se

afirmar que existiu em São Luís aquilo que Michel Foucault concebe como a “ocorrência das

massas, reflexo da complexidade heterogênea que reside nas aglomerações humanas das

cidades metropolitanas” (1982, p. 187, grifou-se).

No que se refere a esse fenômeno, são relevantes as considerações do jornalista

americano Bill Buford, contempladas pela análise de Yuri Costa em seu artigo intitulado O

medo das massas: representações científicas e literárias sobre a multidão e a violência.

“Buford entende que os vários inconvenientes provocados pelas aglomerações humanas nas

grandes cidades européias do século XIX de sobremaneira tiveram reflexo na forma como a

elite letrada percebia (e escrevia sobre) tais acontecimentos”.

A história das multidões é uma “história do medo”, pois escrita por suas “vítimas”, ou seja, por intelectuais que temiam perder bens materiais ou sentiam ameaçada sua integridade física. Por isso é uma história em que se tenta, sob o manto da cientificidade moderna, dar um nome e uma razão às massas, em que, racionalizando a “irracionalidade” da multidão, procura-se entendê-la (BUFORD, apud, COSTA, 1992, p. 169).

Na trilha dessas idéias, ao se analisar o evento da greve de 1979 em São Luís, pode-se

verificar representações que procuram dotar de sentido as ações da multidão. Como exemplo,

temos matéria veiculada pelo Jornal Pequeno em 19/09/1979, apresentando como manchete

“A guerra de S. Luís na imprensa de fora”, que destacou as impressões de O Liberal

(periódico de Belém do Pará), em relação aos acontecimentos do dia anterior enfatizando a

violência, a destruição, o clima de pânico, enfim, o medo que se alastrou pelo centro de São

Luís.

Se a história das multidões é uma “história do medo” como afirma Buford,

considerando seu potencial destrutivo, “irracional” e passional, as ações violentas

40

empreendidas deliberadamente por essas massas, remetem a momentos de desordem, que

representam um ultraje aos valores de civilidade ostentados por aqueles que zelam pela ordem

e, obviamente, temem por si, e por seus negócios (propriedades).

Essa situação verificou-se ainda na cobertura dos distúrbios do dia 18/09/1979 em São

Luís. Segundo as representações do periódico paraense, O Liberal, veiculadas em um jornal

local da época: “Na Praça João Lisboa quase nada – loja, residências, bancos – ficou inteiro.

Na Rua do Sol, na Praça Deodoro, na Rua Jansen Müller e na Avenida Beira Mar, o panorama

era semelhante ao final da noite”. (Jornal Pequeno, 19/09/1979, p. 6).

O acirramento das tensões e a ênfase à “fúria do povo”, sempre com destaque para os

prejuízos causados ao patrimônio (público e privado) da cidade, bem como a idéia implícita

de medo gerado pelo descontrole das multidões, estiveram presentes na percepção da

imprensa, ao noticiar que:

na Rua Grande foram totalmente danificadas as vidraças do “Unibanco”, que, posteriormente, mereceu um serviço de guarda oficial. A King Jóias foi depredada mais seriamente. Enfim, são poucas as placas luminosas das lojas da Rua Grande que não foram apredrejadas e, às vezes, destruídas por completo [...] (Jornal

Pequeno, 19/09/1979, p. 5).

A idéia de “massa descontrolada” foi evocada com muita força nas representações

sobre a greve de 1979, sobretudo no discurso político de partidários do governo que se

manifestaram sobre o assunto. No embate midiático, era importante para os detentores do

comando político que a manifestação das multidões pelas ruas da cidade, fosse retratada à

opinião pública como um perigo iminente, como algo que comprometesse extremamente a

“ordem das coisas”. Nas palavras do vereador Hilton de Oliveira Rodrigues: “uma revolução,

que por certo, cortará a cabeça de muita gente, não muito tarde, se Deus não tiver compaixão

do povo brasileiro”.

Segundo Yuri Costa (2004, p. 133), o temor à multidão está ligado substancialmente à

necessidade de segurança. Essa afirmação não é uma referência a qualquer multidão, mas

remete-se apenas à “multidão insegura”, ao medo da “multidão desorganizada”. Costa entende

que, para o historiador Jean Delumeau, a história do medo das massas não é a história dos

movimentos maduramente premeditados, organizados e conduzidos segundo uma estratégia

elaborada, mas sim “das explosões súbitas, das violências excessivas, das utopias sangrentas e

das rápidas debandadas [...]. É o medo de uma multidão que se reúne sem objetivos precisos,

41

acolhe rumores, amplifica-os, ataca pessoas, pilha e saqueia (DELUMEAU apud COSTA,

2004, p. 134).

O sentimento de temeridade das “massas descontroladas” sempre foi um elemento

muito marcante nas situações de convulsões sociais registradas pela historiografia. No

episódio da greve estudantil em São Luís, embora o discurso dos estudantes sustentasse ser o

pacifico o caráter de suas manifestações, a ocupação das ruas por milhares de pessoas, as

grandes concentrações humanas na Praça Deodoro, a marcha ao Palácio dos Leões, davam a

conotação, no entendimento das autoridades, de uma “ameaça permanente” à tranqüilidade da

“pacata ilha”.

Em outro importante capitulo da nossa História, durante as manifestações dos vários

segmentos populares envolvidos na famosa greve de 1951, a Capital maranhense também

teria vivido momentos de intranqüilidade, violência, medo e caos generalizado diante do

comportamento da multidão. O olhar sobre este contexto, que remete a outras representações

de instabilidade política e social sobre 1979, é apresentado no seguinte trecho:

Veiculada a noticia de que o Sr. Eugênio Barros havia tomado posse, as coisas tomaram feição gravíssima. A incomputável massa humana que se acotovelara na Praça João Lisboa, fortemente trabalhada pelo verbo fogoso dos líderes oposicionistas, fremiu de cólera. Um grupo de populares exaltados arremeteu contra Rádio Timbira, invadindo o prédio e danificando as instalações. Tomada de fúria vandálica a multidão invadiu e depredou os estúdios da Rádio Ribamar... (SIQUEIRA, apud, RIBEIRO, 2003, p. 162).

Diante da discussão acerca do comportamento das multidões cabe a seguinte

indagação: que aspecto, especialmente, enseja o temor das multidões de São Luís em 1979?

Mais uma vez evocando as análises de Yuri Costa (2004, p. 134), tem-se que a diluição da

subjetividade (individual) na multidão gera a crença na impossibilidade de identificação dos

sujeitos que dela participam. “Na concepção de Walter Benjamin, é recorrente para os

literatos do séc. XIX a idéia de que um homem se torna tanto mais suspeito quanto mais

difícil seja encontrá-lo. Por isso, ‘a massa aparece como asilo que protege o elemento associal

frente aos seus perseguidores”’ (COSTA, 2004, p. 134).

No decorrer dos acontecimentos, diante dos momentos mais instáveis da greve pela

meia passagem, o discurso das autoridades, notadamente do governador João Castelo, atribuía

sempre a autoria dos episódios de violência a “elementos estranhos” infiltrados entre os

estudantes. Seriam então estes elementos os promotores da situação de desordem instalada na

42

Capital. A sensação de caos e, sobretudo, a impossibilidade em se definir quem de fato seriam

os responsáveis pelos distúrbios, certamente, aguçou o sentimento de temor.

A massa que envolveu milhares de anônimos foi representada com sinônimo de

“desespero e prejuízos”. O anonimato assegurado pela densidade das multidões significaria o

asilo protetor de muitos. Tal situação suscitou do governo ferozes acusações atribuídas a

elementos que estariam manipulando os estudantes e incitando a desordem. A veemência das

palavras de João Castelo, registradas pela imprensa, refletiu a urgência e a preocupação do

governo em penalizar infratores “baderneiros” escamoteados sob o manto opaco da multidão.

O governo não faz acordo com terroristas” – disse o Governador, referindo-se à presença de elementos estranhos a classe estudantil que se infiltraram no movimento para insuflar a população, esclarecendo que “os órgãos de segurança já prenderam diversos agitadores profissionais que se aproveitaram da oportunidade para promover depredações, arrombamentos e saques à propriedade comum (Jornal O

Estado do Maranhão, 22/09/1979).

Longe de qualquer pretensão em dar por esgotada as discussões sobre o fenômeno das

multidões, a ocorrência das aglomerações humanas, as massas representadas nos discursos

sobre a greve pela meia passagem, entendo que seja bastante oportuno, antes das reticências,

destacar o posicionamento de Jean Baudrillard a respeito das massas. Em suas considerações

ele diz:

Querer especificar o termo massa é justamente um contra-senso – é querer procurar um sentido que não o tem. Diz-se “a massa de trabalhadores”, mas a massa nunca é de trabalhadores, nem de qualquer sujeito social. As “massas camponesas” de outrora não eram exatamente massas: só se comportam como massas aqueles que estão liberados de suas obrigações simbólicas, “anulados” (presos nas infinitas “redes”) e destinados a serem apenas o terminal dos mesmos modelos que não chegam a integrá-los e que finalmente só os apresenta como resíduos estáticos. A massa é sem atributo, sem predicado, sem qualidade, sem referência. Aí está a sua definição, ou sua indefinição radical. Ela não tem “realidade” sociológica. Ela não tem nada haver com alguma população real, com algum corpo, com algum agregado social específico. Qualquer tentativa de qualificá-la é somente um esforço para transferi-la para a sociologia e arrancá-la dessa indistinção que não é sequer a da equivalência (soma ilimitada de indivíduos equivalentes: 1+1+1 – tal é a definição sociológica), mas a do neutro, isto é, nem um nem outro (ne-uter). (BAUDRILLARD, apud, GOMES, 2008, p. 36).

As referidas ponderações do autor francês relegam a um plano fragmentário, ou

mesmo inviável, qualquer esforço de abstração acerca da idéia de massas. Sua argumentação,

marcada pela dispersão, aponta para a impossibilidade de uma “objetividade” epistemológica

em História. Por outro lado, sua “definição” ou “indefinição radical” das massas, denota uma

intenção do autor em dizer algo sobre o assunto, ainda que seus argumentos remetam ao mais

43

completo esvaziamento de sentido para as massas. Talvez seja mesmo esse o propósito de

Baudrillard, que ratifica sua posição no sentido da desconstrução, a despeito da cientificidade

moderna preocupada em dar um nome e uma razão às massas, “racionalizando a

irracionalidade” da multidão buscando entendê-la.

É importante destacar, que tais considerações são reflexos da interpretação particular

do autor e adquirem substância na articulação do seu discurso. Embora pareça concreta a idéia

das massas “sem atributo”, “sem predicado”, “sem qualidade” e “sem referência”, entendo

que estas, apesar de destituídas de inteligibilidade, figuram como importantes representações

de um vivido que de fato existiu, mas se perdeu na opacidade das múltiplas interpretações.

Como verificado, a consistência do movimento estudantil na reivindicação pela

meia passagem, segundo alguns discursos, muito se deveu à adesão popular e ao apoio

também de entidades da sociedade civil. Em momentos críticos de muita tensão no desenrolar

dos acontecimentos em São Luís, a multidão de 1979 foi representada nos jornais como

sinônimo de balburdia, confusão e ameaça. No capítulo seguinte, analiso num tópico

específico, as representações veiculadas sobre as idéias de violência e desordem associadas a

uma imagem radical do comportamento das multidões.

44

2 DAS IMAGENS DE ANGÚSTIA ÀS LEMBRAÇAS MAIS LISONJEIRAS

2.1 Os empreiteiros do caos na Ilha da Rebeldia

Atualizando algumas impressões sobre o episódio da greve de 1979 em São Luís,

podem ser verificadas inúmeras alusões identificadas ao acontecimento. Dentre as alusões de

que se tem registro são comuns as imagens de violência, distúrbios, descontrole generalizado,

enfim, a idéia de caos instalado na Cidade. Estas representações estão diretamente associadas

aos momentos mais tensos vivenciados na Capital. As grandes manifestações pela meia

passagem naquele período, em instantes críticos, teriam degenerado em desordem, solapando

uma rotina de tranqüilidade que precisava ser devolvida à população.

O rótulo de uma Capital pacata, constantemente evocado na tentativa de amainar os

ânimos, desbotava na mesma rapidez com que os conflitos se aguçavam diante da perspectiva

distante de um entendimento entre governo e movimento grevista. O cenário de uma praça de

guerra era a imagem utilizada para representar a Capital maranhense nos dias mais agudos de

setembro de 1979.

A multidão de estudantes e simpatizantes era tida como a expressão da rebeldia,

espécie de atributo identificado aos manifestantes. A iniciativa dos estudantes de sair às ruas

reivindicando direitos e tentando sensibilizar a população representou momentos intensos e

agitados para o cotidiano da Capital. A “tranqüilidade costumeira” dava lugar à sensação de

inquietude e expectativa.

No entanto, convém ressaltar que as representações sobre a instalação do caos durante

os desdobramentos da greve pela meia passagem, sempre a partir dos discursos oficiais,

estiveram preocupadas em não associar as manifestações “reconhecidamente legítimas” dos

estudantes aos atos de “balbúrdia e desordem”. A responsabilidade acerca das ações de

baderna e desatinos nocivos à estabilidade social da Capital era atribuída a uma “minoria

imbecil”, aos “empreiteiros do caos” e aos “eternos inimigos da democracia”.

No desenrolar do processo grevista, à medida que o impasse persistia e os dois lados

se mostravam inflexíveis, foram crescentes as insinuações e, mesmo, as declarações diretas

nos jornais de infiltração no movimento dos estudantes. Muitas destas afirmações oficiosas,

45

noticiadas pelos periódicos, tiveram por objetivo associar a manifestação grevista ao interesse

subversivo internacional.

Desta forma, retirava-se a “autonomia” das mãos dos estudantes na condução do

processo de greve e, conseqüentemente, reforçava-se a idéia de que estes estariam sendo

manipulados por agentes “a serviço do comunismo”. Essas representações eram evocadas

com freqüência, especificamente, nessas situações de crise social e política, haja vista o

cenário mundial de disputa por influência entre os modelos político-econômico socialista e

capitalista. Naquele momento, portanto, qualquer manifestação popular estaria associada à

idéia de subversão. Não foi diferente com a greve pela meia passagem em São Luís.

Os “elementos estranhos” infiltrados entre os estudantes seriam, nessa lógica, os

promotores da situação de desordem instalada na Capital. Um estado de caos cuja proliferação

era sinônimo de violência, desespero e prejuízos, sobretudo, àqueles mais abonados, os

segmentos (comercial, industrial, entre outros) responsáveis pelo desenvolvimento e geração

de riquezas da ilha.

Tem-se explicitamente em jogo interesses diversos nesse momento. Segmentos como

a indústria e o comércio, agentes diretos do setor econômico, obviamente manifestaram apoio

irrestrito ao governador Castelo, preocupados com a preservação da ordem, leia-se, com a

inviolabilidade de suas propriedades ou comprometimento dos seus negócios.

A atmosfera caótica que envolveu a Cidade, conseqüência do enfrentamento direto

entre as forças policiais e a multidão de manifestantes, foi notícia em conhecidos jornais do

país. A situação em São Luís despertou a atenção da imprensa. Diversas análises tentavam

compreender o que se passou na “pacata” ilha do nordeste em setembro do ano de 1979. As

manchetes que relatavam a situação de “caos” pelas ruas da Capital maranhense, em regra,

davam um tom de descontrole, insegurança e medo às manifestações.

Obviamente, essa repercussão negativa dos acontecimentos, politicamente, foi

bastante desfavorável à imagem do governo. Com certeza não era das tarefas mais fáceis ao

governador João Castelo contornar a situação delicada e angustiante que se abateu sobre a

Capital. Na condição de autoridade política maior do Estado, ele deveria mostrar

tranqüilidade, equilíbrio e habilidade para lidar com os interesses diversos colocados em

questão, revertendo, desta forma, a contenda.

No entanto, o desordenamento das coisas evoluiu progressivamente como reflexo

imediato da postura dúbia do governador na relação com as partes envolvidas. A parcialidade

46

de Castelo, captada em seus discursos veiculados pela imprensa, foi demonstrada claramente

através de sua preocupação em tranqüilizar os empresários diante dos distúrbios ocorridos. O

governo agiria com rigor, se necessário, para reverter o quadro, garantia o líder do executivo

aos empresários.

No sentido oposto das declarações do próprio governo, que reconheciam como válida

a manifestação dos estudantes, a relação entre ambos sempre se mostrou mais difícil. A

multidão de jovens que constituía o movimento foi encarada com desconfiança e descrédito

em suas reivindicações. Uma evidência nítida da inflexibilidade do governo para com os

estudantes está na fala de Castelo quando o mesmo adiantou não existir qualquer dúvida a

respeito da origem do movimento estudantil, atribuindo o desvirtuamento da greve à ação de

elementos pertencentes a organizações internacionais, largamente financiados e dispostos a

criar uma situação de “caos”. “No Maranhão – acrescentou Castelo – posso garantir que os

subversivos e os baderneiros não obterão qualquer sucesso” (Jornal O Estado do Maranhão,

22/09/1979, p. 1).

De acordo com análise do Correio brasiliense, veiculada em edição de O Estado do

Maranhão de 22/09/1979, “os fatos ocorridos no Maranhão, num processo que durava quase

dez dias, envolvendo em aparente antagonismo os estudantes de um lado e as autoridades

estaduais do outro, estiveram perfeitamente enquadrados no que se poderia chamar de

síndrome da intolerância burra e inconseqüente”.

O ponto de vista do referido jornal reforça com propriedade a dificuldade de

entendimento entre estudantes e autoridades governamentais competentes para solucionar o

impasse. Todavia, o periódico manifestou apoio “ao posicionamento firme e inabalável,

porém tolerante”, de João Castelo diante da situação. No entanto, a ênfase na “boa vontade” e

na “compreensão” do governador, destacadas pelo jornal, destoam da rispidez com que o

aparato repressivo agiu, sem nenhuma cordialidade, sobre os manifestantes.

O discurso oficial sustentou com firmeza, que a responsabilidade pelo “descontrole,

violência e pânico” na cidade, o “estado de caos”, era devido a um restrito grupo de

desordeiros que, movidos por subalternidades extremas, sob impulsos da mais inconseqüente

das imbecilidades, optou por um confronto de autoridade, numa indisfarçável tentativa de

intimidação. O objetivo imediato seria a implantação do caos, através da completa subversão

da ordem, numa escalada de intolerância, de todo injustificável (Jornal O Estado do

Maranhão, 22/09/1979).

47

Nesse momento, as representações caóticas acerca dos episódios verificados em São

Luís, sobretudo, aquelas oficiais (de autoridades governamentais), ensejaram, em linhas

gerais, a seguinte idéia: a instabilidade política e social verificada com a “proliferação da

desordem” na Cidade implicava a necessidade urgente em se restabelecer a ordem das coisas.

A efetivação de um controle social diante da situação seria a medida mais provável tomada

pelo governo.

Questão particular à discussão sobre as representações de caos durante a greve, a idéia

de controle social está presente nas análises de Michel Foucault, embora o autor esteja

ocupado com uma problemática inteiramente distinta. Ao lançar um olhar sobre o surgimento

e desenvolvimento da medicina social em fins do século XVIII e inicio do século XIX,

Michel Foucault (2007, p. 80) entende que o controle da sociedade sobre os indivíduos não se

opera simplesmente pela “consciência” ou pela “ideologia”, mas começa no corpo. Foi na

esfera biológica, somática, corporal, que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O

corpo é, para o autor francês, uma realidade bio-política.

À primeira vista, tais considerações não evocam imediatamente qualquer relação com

a idéia de distúrbio ou desordem urbana na acepção político-social contemplada nos episódios

da greve pela meia passagem. No entanto, pensando a situação específica analisada por

Foucault, as epidemias que acometeram as populações e demandaram uma intervenção (nesse

caso sanitária), remetem-nos a uma idéia de caos que precisava ser controlado. Medidas

saneadoras que ensejaram estratégias de controle e poder sobre os indivíduos, pois o autor

entende que

o poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos (FOUCAULT, 2007, p.89).

Eis aí a possibilidade de se observar determinada forma de representação do controle

social. Reservadas as distinções devidas acerca dos fenômenos históricos destacados, a noção

de controle é um aspecto muito importante no domínio das representações sobre a greve dos

estudantes em São Luís. Desta forma, a exemplo de várias imagens empregadas nos discursos

remetendo à idéia de caos, têm-se outras referências que podem ser entendidas como

estratégias de controle social diante do momento de instabilidade na Cidade.

48

Geralmente em situações de crise social e desestabilidade política, a manifestação

mais direta e vigorosa desse controle (que precisa ser garantido) é a própria repressão física.

Práticas de isolamento, individualização e vigilância. Aspectos de um poder (autoridade)

resguardado nas franquias da “legalidade” política, que foram também expedientes utilizados

pelo governo que constaram nos registros jornalísticos da época;

Os manifestantes presos, anteontem, só começaram a ser liberados, a partir de 14 horas de ontem, apesar do governador João Castelo, em reunião com vários segmentos ligados à manifestação, inclusive de alguns líderes estudantis, haver prometido a soltura imediata dos estudantes detidos, o que só veio ocorrer já à tardinha. Assim, ficaram nos xadrezes muitos populares que, às vezes, presos acidentalmente, nem participaram do movimento. “mas que precisavam de uma maior verificação”, segundo a polícia (Jornal Pequeno, 19/09/1979, p. 1).

As prisões efetuadas deliberadamente pelas ruas da Capital maranhense teria sido o

único procedimento cabível e urgente para “sanear” a Cidade. Um contingente impreciso de

estudantes e populares anônimos esteve vulnerável a ação da polícia. O aglomerado

constituído de “agitadores e baderneiros”, os “empreiteiros do caos” ameaçadores do bem-

estar precisou ser combatido. O controle social deveria ser aplicado imediatamente. O

mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano

(FOUCAULT, 2007, p. 88).

Nesse sentido, preservar São Luís da massa desordeira foi uma preocupação evidente

do governo, sobretudo após os primeiros registros de violência, depredações e distúrbios pela

Cidade verificados com mais apreensão nos dias 17 e 18/09/1979. Nesses dias, segundo os

relatos analisados, a Capital maranhense foi a imagem do verdadeiro caos. A “ação furiosa”

do povo dirigida à polícia, que teve veículos destruídos e incendiados em alguns pontos da

Cidade, foi destaque em edição do Jornal Pequeno de 19/09/1979. A notícia foi descrita como

o “2º dia de baderna”.

Diante dessa situação de contingência social, as autoridades se depararam com um

problema; de que forma preservar a Cidade da ação destrutiva da massa? Como contê-la,

mantendo-a afastada? Recolher alguns indivíduos efetuando prisões não era o mesmo que

anular a influência de um contingente expressivo de manifestantes. Que estratégia poderia,

então, auxiliar o governo no controle da multidão?

A idéia partiu do próprio governador Castelo, durante as negociações por um desfecho

da greve. A ocasião foi assim relatada:

49

Na reunião do Governador João Castelo com alguns membros da imprensa, os líderes estudantis e parlamentares, ficou acertado, também, que seria concedido o Estádio Nhozinho Santos, para que os estudantes pudessem fazer, ali, suas manifestações, e onde o Governador compareceria para anunciar as medidas que poderia pôr em prática em prol da reivindicação dos estudantes (Jornal Pequeno, 19/09/1979, p. 1).

O Estádio municipal Nhozinho Santos foi cedido para realização da assembléia dos

estudantes diante dos episódios de violência generalizada presenciados no centro da Cidade.

Tratou-se de uma estratégia governamental com vistas a amainar os ânimos e evitar que as

mesmas cenas de “baderna” se alastrassem novamente ao sabor do vento e por todos os

cantos. O isolamento dos manifestantes, num ambiente fechado, evitaria sua dispersão

violenta em caso de descontrole, poupando a população de eventuais sobressaltos,

resguardando o patrimônio de novos prejuízos, enfim, transmitiria a sensação de segurança.

Convém destacar, no entanto, que a tentativa de “esquadrinhamento” dos espaços

urbanos, demarcando limites, isolando o risco a fim de garantir o controle social, não se

mostrou tão eficaz assim. Pelo menos no episódio da assembléia no Nhozinho Santos,

exemplo mais nítido deste intento, a violência policial se repetiu. A decisão pela continuidade

da greve foi aclamada e um possível entendimento não foi consumado.

A situação de instabilidade política se arrastou até meados de setembro sem que se

chegasse a uma decisão satisfatória, tempo de impasse suficiente para a iminência de uma

“convulsão social” retratada nos periódicos. Nem mesmo a imprensa escapou aos dias de fúria

experimentados pela Capital. No cumprimento de suas atividades, os profissionais da notícia

estiveram no olho do furacão. Em meio à “desordem” que teria se instalado na Cidade houve

ocorrências de destruição de um veículo do Diário do Povo, bem como, agressões sofridas

por funcionário do referido jornal. A imprensa maranhense, indignada, manifestou-se diante

de “fatos revoltantes, arbitrariedades e agressões” (Jornal Pequeno, 19/09/1979, p. 1)

Inúmeros discursos que evocam aspectos da greve pela meia passagem em 1979,

produziram e ainda produzem representações de um conflito político acerca da “realidade

histórica” em estudo. A própria idéia de conflito sugere, no caso, uma relação de interesses

opostos. Nesse sentido, a noção de resistência pode ser verificada em muitas análises sobre o

assunto, sempre associada à outra representação mais conhecida da Capital, a de que São

Luís se constitui como Ilha Rebelde. Direciono neste instante, algumas reflexões sobre esta

idéia-imagem que mesmo antecedendo a greve estudantil, permeia discursos de estudantes em

1979. A intenção é perceber na interpretação dos fatos como se construiu essa representação,

50

entender o poder do seu efeito articulado a um discurso, identificá-la como objeto de

apropriação e assimilação no imaginário coletivo.

Em situações sociais tidas como “instáveis”, sobretudo quando a ordem política é

ameaçada, comumente a noção de rebeldia é empregada para descrever um comportamento

específico. Tais usos assumem conotações distintas dependendo do discurso produzido, ou

melhor, de quem o evoca. A rigor, o rótulo de rebelde é identificado a um grupo, um

segmento, ou assume contornos mais universais envolvendo massas, multidões, uma Cidade

inteira. Entendendo rebeldia como uma designação sugestiva para espírito de contestação,

provavelmente, tem-se aí, o sentido evocado em 1979. É importante, ainda, considerar tal

representação como produto de uma construção histórica particular a um determinado tempo,

elaborada por segmentos específicos, depositária de aspirações.

No caso particular da invenção da Ilha Rebelde, famosa alcunha representativa da

Capital São Luís, faz-se necessário um pequeno “recuo” a um contexto da política local não

tão distante a 1979, no qual se verificou a cunhagem dessa figura de palavra que remete a uma

suposta identidade de São Luis.

De acordo com a análise de Wagner Cabral da Costa, historiador maranhense,

Em épocas de acentuada crise política se intensifica o processo de elaboração de representações sociais, símbolos e idéias-imagens (idées-images) por parte dos diferentes grupos em conflito, disputando a legitimidade do exercício do poder político. Por ocasião da Greve de 1951, o conflito colocou em jogo os imaginários sociais, bem como as relações de força em seu domínio, demandando das diversas partes envolvidas a elaboração de técnicas e estratégias simbólicas adaptadas às especificidades do conflito (COSTA, 2006, P. 85).

O propósito de um variado repertório de representações elaboradas, propalado aos

quatro cantos pela imprensa, no caso do referido conflito político, esteve dotado de um caráter

desqualificante dirigido a uma das partes, aquela que detinha o poder e era combatida. Essa

estratégia discursiva, amplamente empregada pelas oposições coligadas de 1951, também

buscava exaltar a legitimidade de suas aspirações.

Segundo Costa (2006, p.85), “tal conjunto de representações conformando um

imaginário político oposicionista constituía-se de emblemas, bandeiras de luta, imagens,

heróis, mártires: imaginário a projetar-se continuamente sobre o espaço físico da Capital

maranhense, que no mesmo processo é ressignificada, através da expansão e reescritura de seu

‘texto’, a partir das experiências dos grupos sociais: São Luís, Atenas Brasileira, Ilha dos

Amores, agora Ilha Rebelde”.

51

No processo de construção imagética de São Luís como cidade “rebelde”, os sujeitos

ligados às forças de oposição, que encabeçavam a luta contra a hegemonia política de

Victorino, teciam representações sobre o oligarca como um “invasor”, um “intruso” ou

mesmo um “agente demoníaco”. Não por acaso, a luta oposicionista é constantemente referida

às idéias-imagens de “redenção”, “libertação”, “cruzada”, “jornada redentora”, contando

também com seus “mártires” e “heróis” imolados no altar de “sacrifícios” da campanha

libertadora (COSTA, 2006, p.88).

O jogo de representações articuladas no discurso oposicionista remetia de imediato, à

idéia do dever, enquanto cidadãos “livres e conscientes”, que os maranhenses teriam de

assumir diante da luta contra a “arrogância e o desmando político” de Victorino e seus

aliados. A assimilação dessas idéias configurou no imaginário dos sujeitos envolvidos o

sentimento de resistência à opressão impingida.

A Campanha Libertadora das Oposições Coligadas durante os conflitos da Greve de

1951 teria sido na opinião de muitos, a expressão do espírito de contestação e rebeldia de uma

geração. A amplitude de acontecimentos como a ocorrência de incêndios pela Cidade, a partir

do comportamento das multidões, ajudou na construção de representações sociais no sentido

de uma remissão ao ímpeto rebelde e delineou traços no comportamento das multidões que

teria assimilado a idéia de rebeldia. São Luís, a Ilha Rebelde, passou a figurar dessa forma na

historiografia política maranhense.

Anos mais tarde, nesta mesma Capital nordestina, ecoaria em novos discursos as

mesmas idéias de luta, resistência e liberdade. Tratava-se do mesmo lugar com outros

sujeitos e um enredo diferente, relacionado agora com as circunstâncias da greve dos

estudantes em 1979, porém, sob a influência de um passado recente aos acontecimentos da

meia passagem, a Greve de 1951. A reprodução da idéia de São Luís como “Ilha Rebelde”

permeou falas de sujeitos envolvidos nos acontecimentos de 1979, ratificando o artifício de

apropriação sobre algum evento, aplicado a um acontecimento posterior.

Uma percepção mais clara que ilustra tal fenômeno está presente no discurso do

deputado maranhense Haroldo Sabóia, ao se pronunciar sobre a conquista do direito pleiteado

pelos estudantes. Nas palavras do parlamentar, em edição do jornal pequeno de 25/09/1979,

“A Ilha Rebelde demonstrou com a luta pela meia-passagem e a explosão popular de

setembro que, de fato, o povo maranhense jamais será vencido”. Ao enaltecer o triunfo dos

estudantes pela conquista da meia-passagem, Sabóia se utiliza da representação de São Luís

52

como uma terra rebelde, sugerindo que “seus filhos não se curvam às situações de opressão”,

levantando-se “com voz alta e postura combativa em defesa dos seus direitos”, lutando

sempre que valores como justiça e dignidade são ofuscados.

Em regra, a idéia de rebeldia é associada à questão da violência. No entanto, convém

destacar que o “comportamento rebelde” dos estudantes teria se manifestado, ainda, através

do embate na imprensa escrita. A nota dirigida aos pais dos estudantes secundaristas, pelo

comando de greve, pode ser entendida como uma atitude rebelde por seu conteúdo. Um jornal

da época veiculou a mensagem dos estudantes.

A luta pela conquista da meia-passagem é, indiscutivelmente, a luta da maioria das famílias de São Luis por ser uma expressão da realidade sofrida no dia a dia dos lares sanluizenses. Por entendermos assim, pedimos a compreensão e ajuda dos senhores pais no sentido de evitarem que seus filhos venham assistir às aulas até que o senhor governador do Estado conceda a meia-passagem para todos os estudantes. Não podemos esquecer que estamos lutando por um direito, uma causa justa e que a violência que campeou a nossa São Luis não partiu dos estudantes. A conquista da MEIA-PASSAGEM é uma vitória do povo, portanto, não podemos deixar de dar o nosso apoio irrestrito. Compreendemos que sem o apoio da população a conquista do direito da MEIA-PASSAGEM torna-se impossível (Jornal Pequeno, 21/09/1979, p. 2).

A estratégia das lideranças estudantis foi, claramente, paralisar as atividades escolares

secundaristas, exercendo, assim, maior pressão sobre o governo para atingir seu propósito e,

obviamente, angariar apoio popular, sobretudo das famílias dos alunos. A “rebeldia da ilha”,

numa presunção um tanto generalista daqueles que evocaram esta representação em favor de

sua causa, assume feições de desobediência civil, como demonstra o mencionado discurso do

comando de greve.

Os empreiteiros do caos na ilha da rebeldia, expressão que intitula esta seção do

trabalho, é, por assim dizer, uma síntese das representações presentes nos discursos

produzidos e divulgados pelos jornais de época. O referido título traduz em si, no campo das

representações sobre a greve da meia passagem, a relação conflituosa travada entre governo e

manifestantes grevistas.

Uma questão importante a ser considerada é que, na dimensão das representações

sobre os acontecimentos, São Luís teria vivenciado momentos de “angústia, medo, tensão e

violência”. A terra “sossegada, tranqüila”, de “gente pacata e humilde”, viu-se tomada pela

polícia a serviço de seus superiores, orientada a cumprir com um único dever naquele

momento: preservar a ordem na Cidade. A Capital maranhense, inspiradora de tantas glórias,

precisava ser poupada de tamanho ultraje. Os discursos oficiais sugeriam essa idéia.

53

A garantia da ordem, portanto, fez-se urgente. A força da repressão mostrou suas

credenciais de vitalidade e disposição diante da “baderna” que precisava ser contida. No

próximo tópico, discorrerei sobre as estratégias discursivas oficiais que sustentavam e

legitimavam a necessidade da intervenção policial, nem um pouco sutil, em nome da

manutenção da ordem política estabelecida. Veremos ainda que as práticas repressivas

dirigidas aos manifestantes, “os empreiteiros do caos”, estão articuladas também à elaboração

de idéias-imagens sobre São Luís como um lugar glorioso, de prestígio, Capital de uma terra

de tantas honras e tradições, cujo status não condizia com a “desordem instalada”.

2.2 Faça-se a ordem pela autoridade nesta terra de glórias

“O Maranhão não pode ficar a mercê de uma pequena minoria de fora que aqui vem com interesses

inconfessáveis e subalternos... A todos a minha confiança e a certeza que saberei contar com o apoio,

compreensão e ajuda para que possamos dar uma compreensão ao resto do país que o Maranhão é realmente a

Athenas Brasil que nós conhecemos desde o nascer”.

(João Castelo)

Os dias de setembro do ano de 1979 transcorriam sem que alguma decisão sensata

decretasse o desfecho da greve pela meia passagem. Pelo contrário, à medida que o tempo

passava e nada era resolvido, adensou-se sobre a Capital um clima de tensão, aguçado pelo

sentimento de crescente insatisfação e precipitado com a tempestade da violência

institucionalizada, numa demonstração contundente de que a ação repressiva do governo

através de sua força policial, estava disposta a assegurar a “ordem pública”.

O comportamento do chefe do executivo do Maranhão teria sido representado pela

firmeza e austeridade inabaláveis ante aos “distúrbios” verificados na Cidade, de acordo com

relatos. Suas ações seriam, então, uma confirmação da postura rígida e intolerante no combate

aos “vândalos”, “desordeiros” e “terroristas”, estes, retratados pelos jornais como iminente

ameaça à “costumeira tranqüilidade” local. Na condição de governador do Estado, Castelo

tomou pra si a responsabilidade diante dos “fatos”, figurando nas manchetes de jornais, como

o bastião da moralidade e colocando-se como o portador dos dispositivos necessários ao

restabelecimento da “paz” aos ludovicenses.

54

Inegavelmente, Castelo parece ter cumprido com êxito o papel ao qual se propôs,

fazendo valer de maneira visceral, o evocado princípio da autoridade, espécie de respaldo

oficial que legitimou suas decisões “doesse a quem doesse”. A propósito, no que se refere às

manifestações de “autoridade” emanadas das ações do governador no desenrolar dos

acontecimentos, pode-se afirmar que Castelo, como “bom representante no domínio da

política”, agiu com habilidade. Segundo seus discursos, posicionou-se diante das

circunstâncias que melhor contemplaram suas conveniências demonstrando virtú, sobretudo,

considerando-se a tensão de interesses que marcou naquele momento a transição política no

país.

Tamanha destreza política, evidente em sua estratégia discursiva, faz remissão à idéia

recorrente de autoridade. Esta, inevitavelmente, aponta para as análises clássicas de Max

Weber, que sugerem três razões internas justificadoras do domínio e, por conseqüência,

fundamentos de legitimidade. O autor entende que

Existe a autoridade do “passado eterno”, ou seja, dos costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito, enraizado nos homens, de respeitá-los [...]. Em segundo lugar, existe a autoridade que se baseia em dons pessoais e extraordinários de um indivíduo (carisma) – devoção e confiança estritamente pessoais depositadas em alguém que se diferencia por qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que dele fazem o chefe [...] Em suma, existe a autoridade que se impõe pela “legalidade”, pela crença na validez de um estatuto legal e de uma “competência” positiva, estruturada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outras palavras, a autoridade fincada na obediência, que reconhece obrigações concernentes ao estatuto estabelecido (WEBER, 2006, p. 61).

Pode-se verificar um forte apelo ao povo maranhense analisando-se detidamente o

discurso de João Castelo veiculado pela imprensa à época das manifestações pela meia

passagem. Sua condição de líder experiente, preparado para enfrentar as turbulências do

momento difícil, precisava ser “legitimada popularmente”. Nesse sentido, tem-se uma

aproximação dessas idéias, presentes na fala de Castelo, com a noção de admiração, respeito e

carisma que ensejariam a autoridade enquanto categoria contemplada por Weber. Certamente,

seu intento foi difundir a imagem de uma liderança segura, de alguém em quem a população

poderia depositar sua confiança e em quem deveria esperar pra ver restabelecida a ordem das

coisas. Se alguma coisa estava fora da ordem, o discurso da autoridade governamental se

prontificou em anunciar que logo tudo se reordenaria tudo estaria de volta ao seu “devido

lugar”.

A idéia de uma retomada urgente da rotina pacífica peculiar à Capital ludovicense tomou,

nas palavras de Castelo, uma dimensão quase missionária. O dever obstinado do homem

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público seria, portanto, ratificar sua posição de autoridade maior do Estado projetando, desta

forma, sua auto-imagem como alguém honrado, preocupado com a aflição do seu povo e que

deveria fazer jus ao professado respeito de seus conterrâneos. Nesse sentido, a noção

Weberiana de “carisma” como aspecto legitimador do poder político assume feições bem

delineadas que podem ser verificadas no discurso do governador maranhense.

Todas as qualidades atribuídas e menções dirigidas ao governador João Castelo

enalteciam seu brio de homem público, parecendo conferir-lhe o status de alguém

extraordinário, prodigioso, um verdadeiro herói que devolveria a São Luís os seus melhores

dias. Essas idéias remetem de imediato à noção de carisma adensado sobre um indivíduo que

assim exerce sua autoridade de chefe político. Tamanha estima pela pessoa do governador

maranhense é observada em artigo jornalístico da época ao expor sua opinião sobre os

“acontecimentos” na Cidade. De acordo com o periódico,

O Governador João Castelo sempre se dirigiu aos maranhenses com palavras de afeto e de compreensão. Seu dia a dia, como Chefe de Estado, tem sido dar tudo de si pra construir, realmente, um grande Maranhão para todos. Com esse objetivo, só merecedor do respeito e admiração do povo maranhense, tem sacrificado conforto e sua saúde pessoal. O Governador está em casa. O povo maranhense recebe S. Exa

. de braços abertos e com toda sua solidariedade. Conforta saber que o Governador está em casa em passagem tão negra da vida maranhão [...]. Conforta porque todos sabem que o ilustre caxiense não decide sob pressão e, ainda, não admite nem admitirá que elementos alheios à família maranhense venham perturbar o seu sagrado sossego [...]. O Governador está em casa. Respeito e solidariedade do povo maranhense não lhe faltaram jamais, quaisquer que sejam as medidas que S. Exa. decidir tomar em defesa da ordem institucional e da paz [...]. Quem conhece o cidadão João Castelo mesmo naquela sua humildade que a todos causa admiração, sabe bem que o Chefe do Executivo não abre mão do principio de autoridade (Jornal O Estado do Maranhão, 19/09/1979, p. 1).

Observa-se expressamente neste discurso produzido e difundido pelo periódico seu

posicionamento político bem demarcado, servindo aos interesses governamentais. Pode-se

dizer que o referido veículo midiático teria sido o porta voz oficial de João Castelo e de seus

aliados de governo em seus pronunciamentos à sociedade durante a greve. Uma indagação

instigante pode ser colocada pra se pensar sobre a inclinação bem definida de, O Estado do

Maranhão, à época dos acontecimentos em 1979: em que medida se deu a censura na linha

editorial do jornal?

Ao que parece, e talvez seja a justificativa mais coerente, as interpretações sobre a

meia passagem que circularam nas manchetes deste jornal, refletiram o posicionamento de

indivíduos que se manifestaram de um lugar específico. Entretanto, deve-se entender que o

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discurso produzido, em muitos casos, pode estar condicionado a questões imperiosas. Em

outras palavras, refiro-me a um provável controle sobre o que era produzido no Estado do

Maranhão, cuja parcialidade desmedida em seu discurso pró-governo remete,

inevitavelmente, a articulações políticas entre Castelo e o grupo responsável pelo referido

canal de comunicação. A mesma autoridade que restabeleceria a ordem social teria forjado o

que foi noticiado?

Quando falo em produção e controle do discurso, me refiro àquilo que possa

influenciar a posição parcial em demasia de um periódico, a exemplo da citação que remete

ao carisma de Castelo junto à população. Faço, nesse aspecto, direta alusão às analises de

Foucault quando ele supõe

que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Em uma sociedade existem procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa [...] (FOUCAULT, 2008, p. 8-9).

Considerando-se a noção de interdição presente na elaboração do discurso, tem-se que

as reportagens veiculadas sobre os acontecimentos da greve estiveram de fato submetidas a

condicionamentos inerentes ao processo de produção da notícia. Percebe-se por tudo isto,

relatos mais comedidos calcados pela atenção na descrição dos acontecimentos, o

policiamento das análises, eventuais supressões de dados mais contundentes, o silêncio

estratégico acerca de um aspecto...

Depois desse desvio pontual acerca da discussão mais conceitual de autoridade,

convém esmiuçar ainda, um pouco essa idéia (de autoridade) evocada explicitamente ou posta

nas entrelinhas dos periódicos. Nesse sentido, algumas alusões à noção de carisma foram

representadas. Um exemplo ilustrativo foi uma nota do Correio brasiliense veiculada no jornal

O Estado do Maranhão de 22/09/1979. O periódico da Capital federal se manifestou

destacando “a disposição do Governador para o diálogo com os estudantes”.

É importante destacar, também, que, subjacente à necessidade do restabelecimento da

ordem, tem-se a idéia da autoridade que se impõe pela “legalidade”, “pela crença na validez

de um estatuto legal”, enfim, aquela imposta pela “obediência”. Talvez esta acepção seja a

mais corrente nos discursos verificados, justamente por representar o significante oposto das

descrições de uma Cidade atônita em meio às badernas, distúrbios, violência e demais

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sinônimos que possam ser abarcados nesse sentido. Onde a desobediência parecia imperar,

fez-se urgente a imposição da ordem pela autoridade.

Diversos foram os episódios registrados pela imprensa relatando as ações do governo

respaldadas nas franquias da “legalidade”. Muitas intervenções policiais, no intento de

“dispersar manifestações e garantir a segurança”, tiveram como fundamento norteador a

noção de uma “competência positiva estruturada em regras racionalmente estabelecidas”.

Esses elementos articulam a idéia de uma reorganização das coisas a partir do preceito da

obediência. Se a situação de desordem era a tônica na Cidade, tornar-se-ia crucial, para a

estabilidade social, a reintrodução da ordem. Tal ordem se manifestou tendo como base a

coerção pela violência policial em suas incursões.

Desta forma, o princípio de autoridade evocado nos discursos de João Castelo, estaria

referendado por um conjunto de leis expressas, conformando, assim, um estatuto legítimo

cujas diretrizes resguardavam incondicionalmente a ordem. Contudo, é conveniente que se

pontue aqui, algumas reflexões sobre idéias como: obediência, ordem, imposição, coerção e

violência, no sentido de se articular relações e mesmo se pensar sobre essa “legitimidade” da

autoridade governamental diante dos fatos relatados sobre a situação em São Luís.

Esta questão, em especial, remete às análises de Hannah Arendt acerca do que seria a

própria natureza da autoridade. Ao expor suas considerações a esse respeito, e a partir da

idéia de que a autoridade sempre exige obediência, a autora entende que por essa razão

ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção: onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos. A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado (ARENDT, 2002, p. 129).

Na trilha dos argumentos de Arendt, entendo que as freqüentes representações de

violência, desordem e caos para a greve da meia passagem esvaziaram, por assim dizer, o

discurso de uma pretensa autoridade que tentou se manter pela força. Nesse sentido, a

justificativa sustentada pelo governo de uma autoridade com base na “legalidade”, pode ser

entendida como uma estratégia de auto-afirmação diante do “momento de crise”. Desta

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forma, à medida que os conflitos se confirmavam, o acirramento da situação em São Luís

teria anulado qualquer efeito de uma autoridade evocada pelo governo.

A ausência de validade deste princípio como que sagrado para Castelo, à luz das

reflexões de Arendt, parece fazer sentido quando se pensa o aspecto da coerção dirigida aos

estudantes em episódios marcantes de repressão durante a greve. Um exemplo ilustrativo

dessa situação foi a organização de uma caminhada (cerca de 500 estudantes) em direção ao

centro da Cidade interrompida por forte aparato policial ao atingir a Rua de São Pantaleão. O

cerco repressivo aos estudantes foi assim descrito: “Mais de uma centena de policiais

militares, armados até os dentes de fuzis, cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo, escudos e

até metralhadoras, cercaram os universitários que nada mais faziam do que cantar sambas ao

som de uma roda de samba” (Jornal Pequeno, 15/09/1979, p. 1).

Inevitavelmente, em algum momento a tensão natural da situação levaria a atos de

violência generalizada, descritos pela imprensa como “selvageria”, “baderna”, “subversão”,

“terrorismo”, dentre outras terminologias dirigidas aos responsáveis por essa “desordem”.

Tudo degenerando então “no mais completo desentendimento”, a instabilidade vigente

caracterizada pela agudez dos acontecimentos, minava completamente a estratégia de apelo à

autoridade amplamente difundida. Aliás, principio este que inexiste nessas circunstâncias,

aludindo à perspectiva de Arendt.

Se representações jornalísticas para os atos de “balbúrdia” verificados na Cidade

tendiam a atribuir de forma quase que generalizada a culpa aos estudantes, uma opinião

diferente é apresentada por João Batista Ribeiro, militante estudantil na época. Ao expor suas

impressões acerca da repressão policial às manifestações pela meia passagem ele diz:

Em duas palavras: sem igual. Primeiro, que a polícia era fruto de todo aquele regime autoritário e militar que estava instalado no país e a polícia estava preparada pra bater realmente, pra reprimir a questão que chamavam naquela época de subversão. Então a polícia era treinada realmente pra reprimir os movimentos sociais como ainda hoje ela se manifesta de vez enquanto. Então não poderia dar outra coisa. A repressão foi muito violenta, atingiu níveis inimagináveis, não escolheu nem cara, nem sexo, nem idade, nem classe social. Apanhou filhinho de papai, apanhou classe média, apanhou os militantes populares mesmo, as pessoas humildes, do povo mesmo (...). E foi uma repressão sem limites (sic!), mas ela se prolongou pela semana e até mais tempo ainda, até porque a repressão era uma política de Estado naquela época oficializada, a repressão aos movimentos sociais (João Ribeiro em entrevista).

Ressalvando-se devidamente que este discurso é evocado segundo as experiências de

alguém que esteve envolvido nas manifestações como militante e, portanto, carregado de

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subjetividade, a questão a ser observada é que seu depoimento, através de representações

distintas, expõe por outro ângulo a mesma violência relacionada aos olhares sobre a greve.

O expediente da violência também foi destacado em carta dos estudantes enviada ao

procurador de São Paulo Hélio Bicudo. A intenção dos estudantes foi claramente expor os

acontecimentos, enfatizando com detalhes, o clima de intolerância. O conteúdo da carta

descreve o rigor policial desta forma:

“[...] A polícia já nos aguardava jogando inexplicavelmente jatos d’água e agredindo os estudantes a cassetetes, chegando mesmo alguns a dispararem armas, causando pânico na multidão, indo mesmo muitos dos nossos companheiros e outros participantes do ato para o hospital.O certo, frisam, é que não escapou ninguém. Os estudantes foram massacrados, reprimidos num episódio chocante com as bombas de gás lacrimogêneo atingindo a todos indiscrimidamente, e até jornalistas que faziam a cobertura sofreram violência da policia, resultando num saldo ao final de quatrocentas pessoas presas, entre estudantes e populares, e oitocentas outras feridas [...]” (Jornal O Estado do Maranhão, 27/09/1979, p. 3).

Hannah Arendt apresenta ainda o artifício da persuasão como algo incompatível com a

autoridade. Tal artifício pressupõe uma ”igualdade” que “opera mediante um processo de

argumentação”. Para a autora, a verificação desta premissa anula a autoridade. Dessa forma,

as representações que destacaram as situações de “diálogo” com vistas a um entendimento

ensejaram a idéia de convencimento, persuasão. Assim, em conformidade com a análise de

Arendt, os esforços empreendidos pela “via diplomática”, através da conversa, estariam

desprovidos de um efeito prático, vazios de fundamento, sem algum sentido.

Registrou-se a ocorrência de algumas reuniões, cujo objetivo era o estabelecimento de

um acordo satisfatório que contemplasse as expectativas de todos envolvidos no processo

grevista. Os jornais da Capital acompanharam o andamento da situação dando suas

interpretações para os “fatos”. A política da diplomacia, que reuniu na mesa de negociações

lideranças estudantis, representantes do clero, empresários do setor de transporte coletivo e

integrantes do governo, teria sido um imperativo resultante das divergências envolvidas na

questão.

Contudo, a iniciativa dos segmentos de se encontrarem para discutirem uma solução

para o impasse não produziu resultados que satisfizessem as expectativas dos estudantes. Pelo

menos, essa é a impressão captada ao se analisar em nota veiculada por um periódico da

época, a desconfiança no processo de entendimento entre estudantes e governo. De acordo

com o jornal, a insatisfação estudantil é assim descrita:

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A comissão mostrou sua verdadeira face: formada pelo governo, ela atendia aos interesses do governo e dos empresários, unidos como sempre, deixando a sociedade civil, representada pelos estudantes e pela OAB, sem voz e sem vez, situação em que está o povo brasileiro há quinze anos, vitima da ditadura militar que infecta o país (Jornal Pequeno, 28/09/1979, p. 5).

É importante destacar que apesar do direito à meia passagem ter sido anunciado

dias antes a esta declaração dos estudantes, o que deveria ter sido motivo de satisfação, tal

concessão, da forma como se deu, causou a sensação de descontentamento e revolta de

alguns. Durante as negociações parece ter prevalecido a estratégia da persuasão. O discurso

apresentado pelos estudantes enseja a idéia de que a condução do processo até a confirmação

do direito pleiteado teria sido tendenciosa, afastando a noção difundida pelo governo de uma

participação equilibrada dos segmentos nas decisões tomadas.

Desta forma, a condição de “igualdade” das partes envolvidas, pressuposta na relação

persuasiva (exposição de argumentos) é desconsiderada aqui. Tem-se, portanto, uma situação

bastante instigante em que a autoridade não se constitui nem pela verificação da persuasão,

como sustenta Hannah Arendt, nem pelo desequilíbrio das relações no processo de

entendimento, como sugere o relato dos estudantes contrariados. Ao postular que “a

autoridade deve ser definida tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão

através de argumentos”, a autora estabelece limites à compreensão do termo.

Convém observar que as reflexões colocadas por Arendt sobre autoridade, embora

aqui não exploradas em profundidade, contemplaram, em si, o aspecto central da análise

proposta nesta seção, ou seja, perceber as articulações de um discurso que se mostrou

veemente nos jornais e ao que parece insustentável na prática.

Nesse sentido, é oportuno lembrar, ainda, que os esforços pela manutenção da ordem

não se limitaram apenas às qualidades pessoais de Castelo que inspiravam seu pretenso

carisma ou às tentativas de persuasão através da exposição de argumentos, mas se deu

também com apelos que remetiam a um passado tradicional, glorioso de São Luís. Refiro-me

pontualmente, à representação sobre a “glória” que teria a Capital maranhense, sendo

“realmente a Athenas Brasil que nós conhecemos desde o nascer”.

Em nome de um “passado honroso”, inspirador de respeito e motivo de orgulho para o

Maranhão, verificou-se em algumas falas oficias, notadamente nos pronunciamentos de João

Castelo, uma remissão a um tempo glorioso, como se o tradicionalismo evocado diante dos

momentos críticos de 1979, tivesse o poder de respaldar a ordem social embasada em

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preceitos de civilidade e cultura herdados por São Luís e que, por força das contingências,

via-se ameaçado.

Nesse sentido, a alegoria da Capital maranhense como Atenas brasileira teve por

intenção despertar a noção, no imaginário social, de ser São Luís um lugar de pessoas

“cultas”, “pacíficas”, “inclinadas por excelência aos ideais de civilização”. Esta imagem

evocada como representação - pretenso modelo de organização social - figurou como um

discurso oficial de repúdio à “desordem” diante dos acontecimentos da greve. A força de uma

tradição elaborada em outro momento e apropriada para um fim específico (a manutenção da

ordem em 1979) foi um expediente bastante útil nos argumentos oficiais. Mas de que forma se

construiu tal tradição? Qual o seu propósito?

De acordo com José Henrique Borralho,

São Luis é pensada como terra de prodigalidade, terra propícia ao desenvolvimento das letras desde o século XVII. Essas questões [...] servem para figurar como pano de fundo das questões que trataremos a partir de uma certa alegoria histórica: O lugar e o peso das tradições e invenções da identidade maranhense que os literatos e intelectuais maranhenses construíram, e que o século XX reconstrói e reinventa a todo instante. Tradição que por repetidas vezes tem sido utilizada para referendar determinadas práticas de elites intelectuais e políticas no plano regional. Assim a idéia ou ideação de decadência econômica e cultural não nasceu no século XX e nem são essas elites suas únicas continuadoras. No entanto, foi à chancela que estas utilizaram para demarcar seu espaço, se autoconsagrarem como portadores, porta-vozes de uma inteligência, um saber distinto de outras camadas da população (BORRALHO, 2000, s/p).

A produção de discursos permeados por elaborações representativas que são criadas,

resignificadas e apropriadas servindo ao interesse particular de determinado grupo, é uma

tendência um tanto corrente na historiografia maranhense. Nesse sentido, a (re)construção

alegórica de São Luís como Atenas Brasileira, demandou nas primeiras décadas do século

XX, o esforço de um grupo de intelectuais em assegurar ao Maranhão um lugar de

visibilidade no contexto de consolidação da nação nos momentos iniciais da República. Tal

elaboração estaria ancorada nas glórias de um passado nostálgico que remontam a uma época

áurea da produção intelectual maranhense: meados do séc. XIX.

Assim, a fabricação da imagem de uma Capital culta, civilizada, terra dos mais

notáveis poetas, foi sendo cristalizada na percepção social. Um tradicionalismo que

respaldava ações específicas de “elites políticas no plano regional”. Dessa forma, são bastante

pertinentes as considerações evocadas por Borralho, ao ressaltar que

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Wagner Cabral aponta aspectos relevantes ao proferir a idéia de que o mito da “Atenas Brasileira” serve para os mais diferenciados propósitos, inclusive para as elites políticas regionais se perpetuarem como pretensas salvaguardas de um passado laborioso. As produções intelectuais, ao reproduzir este mito nas mais diferentes áreas, estão construindo e reinventando a tradição, que serve inclusive para a legitimação diferenciada em relação aos demais moradores do Estado desprovidos de um certo tipo de capital cultural, numa posição privilegiada que as letras e a bela pena ainda ocupam e, mune a elite política regional (também letrada) de um magma tão cristalizado que chega quase a ser impossível se pensar as questões relativas ao Estado de um outro prisma (COSTA, apud, BORRALHO, 2000, s/p).

“[...] A todos a minha confiança e a certeza que saberei contar com o apoio,

compreensão e ajuda para que possamos dar uma compreensão ao resto do país que o

Maranhão é realmente a Athenas Brasil que nós conhecemos desde o nascer”. Este fragmento

de um pronunciamento do Governador João Castelo, diante dos acontecimentos da greve

estudantil em 1979, pode ser entendido, talvez, como a expressão que melhor resume o uso

político da tradição alegórica ora destacada. O apelo de Castelo, no sentido de angariar a

simpatia do povo, é referendado pela construção imagética de São Luís como “lugar de honras

e glórias”. A apropriação de imagens do passado teria por objetivo, no contexto da greve,

demonstrar ao resto do país que o Maranhão, de fato, era a terra herdeira dos valores de

civilidade e, por esta razão, não poderia sucumbir à “desordem” que teria se abatido sobre a

Capital em 1979.

O passado ludovicense de “glórias”, legitimado pela notoriedade intelectual e cultural

dos seus “filhos ilustres”, também é destacado nas representações elaboradas por um jornal da

época. Durante as negociações com a polícia sobre a realização ou não das comemorações

pelo primeiro ano da conquista do direito à meia passagem, de parte a parte verificou-se a

transferência de responsabilidade pelos fatos ocorridos em 1979. Na ocasião, Joãozinho

Ribeiro “criticou a PMMA responsabilizado-a pelo clima de expectativa e tensão que

marcaram a Capital Gonçalvina durante as várias manifestações” (Jornal Pequeno,

12/09/1980, p. 1).

Observa-se aqui, que, tanto a alusão a São Luís como Atenas Brasileira, representação

corrente no discurso do governo, quanto a evocação da Cidade como a Capital Gonçalvina,

alegoria presente no referido periódico, engendram a mesma idéia de uma terra prodigiosa,

gloriosa, culta e motivo de orgulho para o maranhense. Entretanto, convém destacar que

evocando tais idéias, o propósito dos discursos teria sido atribuir a culpa a alguém pelos

episódios de violência verificados durante a greve. A estratégia seria então, exaltar um

passado honroso que foi maculado pela ação repressiva da polícia, na ótica do jornal. Ao

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passo que o governo tentava transmitir a imagem de um lugar de hábitos e costumes

civilizados, profanado pela conduta “baderneira” e “subversiva” dos manifestantes.

O referido diálogo entre policiais e estudantes é classificado como “democrático” e

“surpreendente” pelos jornalistas. As justificativas na busca pela afirmação de uma verdade

particular a cada lado, talvez refletissem ainda resquícios de ressentimentos velados pelos

acontecimentos de 1979.

Desta forma, é oportuno destacar que as estratégias discursivas acerca da greve pela

meia passagem, figuram num universo amplo de representações que estão sempre se

entrecruzando no sentido de portarem a intenção emanada por um grupo específico que aspira

firmar uma posição. Nesse sentido, a Atenas Brasileira, imagem de uma tradição edificada,

tem o propósito de salvaguardar a “ordem ameaçada” em São Luís pelas manifestações

grevistas no fim da década de 1970. O ordenamento das coisas que se pretendeu estabelecer

pela autoridade governamental, não logrando tanto êxito assim, tentou instalar-se pelas

memórias nostálgicas de glórias fabricadas.

2.3 Por um lugar na memória: todos se sagraram vencedores

A história constituída de reminiscências, recordações, lembranças que tendem a

exaltar um passado de vitórias remontam à própria concepção clássica de que um homem é

lembrado por gerações através de seus feitos gloriosos. Triunfo, êxito e honra. Entrar pra

história como alguém que venceu talvez seja como tantas outras influências, um traço muito

presente dos gregos que permeia ainda em boa medida, a historiografia contemporânea. A

greve pela meia passagem em São Luís pode ser enquadrada como um episódio

contemporâneo objeto de disputa da memória, batalha simbólica estampada nos discursos

daqueles que, de modo mais efetivo, tomaram uma posição.

É importante considerar que as representações como resquícios da lembrança sobre o

“evento”, no caso da greve de 1979, têm o mesmo objetivo daquelas construídas no calor dos

acontecimentos: afirmar uma postura defendida, tida como a mais coerente diante das

circunstâncias. A reafirmação disto posteriormente cumpre com o intento de determinado

segmento em galgar um lugar destacado na memória. Dessa forma, são produzidas as mais

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distintas versões, portadoras cada uma de sua “verdade”. Trata-se portanto, da elaboração de

novos discursos com uma característica comum: a evocação da vitória.

Nesse sentido, mais uma vez os meios de comunicação local (imprensa escrita)

tiveram papel fundamental na produção e difusão dos discursos que anunciaram o desfecho da

greve, comemorado tanto pelo governo como por estudantes. Esses registros documentais são

o suporte material que reúne as representações cujo propósito é inscrever na memória os

“atos bem sucedidos” dos sujeitos dessa história. Sendo assim, as notícias veiculadas nas

páginas dos periódicos não levaram apenas informações à população, mas vestígios

mnemônicos, materializados em discursos com uma pretensão bem definida: o desafio de

permear as lembranças.

A estratégia de inscrição das “experiências” vivenciadas por indivíduos e segmentos

sociais, no episódio da greve pela meia passagem, conformam imagens de um enredo

particular, significativo aos sujeitos que buscam eternizar momentos. Dessa forma, a memória

seria o terreno fértil a acomodar tais elaborações, carregadas do subjetivismo de quem as

produz, projetando-as neste domínio. Jaques Le Goff (1996, p. 423) diz que a memória, como

propriedade de conservar certas informações, remete-nos, em primeiro lugar, a um conjunto

de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações

passadas, ou que ele representa como passadas.

Assim, portanto, acionando as representações desse passado é possível reencontrar os

“fatos” marcantes de cada experiência vivida, devendo-se pontuar que a memória apresenta

como característica de seu processamento o aspecto da seletividade. Assim, “o processo de

memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura

desses vestígios” (CHANGEUX, apud, LE GOFF, p. 424).

As recordações de alguns “fatos” pertinentes à greve fizeram parte da comemoração

dos estudantes pela vitória. “Com a participação maciça de universitários e secundaristas, a

Praça Deodoro viveu momentos de grande festa”, destacou um jornal da época. A festa dos

estudantes embalada ao som do “forró democrático” e das “rodas de samba”, teve outro

momento como relata o periódico:

[...] por volta das 10 horas, os universitários encenaram uma peça, na qual rememoravam todos os acontecimentos na luta pela meia-passagem. No ato teatral, feios bonecos (fofões) representavam a polícia militar, os quais munidos com armas de madeira malhavam os estudantes. Estes, por outro lado, repetiam as frases que pronunciavam durante as manifestações. A peça atingiu seu topo quando os estudantes chegaram próximo ao Palácio dos Leões e Prefeitura, e são duramente

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castigados pela Polícia. Aí então, começa a pancadaria de parte a parte [...] (Jornal

Pequeno, 25/09/1979, p. 6).

Observa-se claramente, de acordo com a nota jornalística, o propósito dos estudantes

em “atualizar impressões” de acontecimentos ainda recentes, porém significativos para o

segmento e, por esta razão, enfaticamente rememorados. A questão da repressão policial ainda

estava viva nas lembranças e, mesmo tendo representado uma espécie de trauma coletivo, foi

evocada. Nesse caso, ainda sob o calor da hora, os estudantes inscreviam na memória, ao

destacar a repressão, sua própria imagem de sujeitos que resistiram e venceram. Foi esta a

visão que os estudantes projetaram sobre si mesmos, sendo também esta a natureza de outras

representações posteriores.

A confirmação do direito à meia passagem aos estudantes também foi saudada como

um grande triunfo pela bancada parlamentar de oposição na Capital. O MDB, através dos

deputados Bete Lago, Carlos Guterres e Haroldo Sabóia, manifestou seu apoio às

reivindicações estudantis. “Grande vitória dos estudantes e do povo maranhense”, foi à

expressão utilizada por Sabóia para representar o desfecho da greve anunciado pelos jornais.

A exaltação à vitória manifestada pelo deputado foi assim noticiada: “Louvamos a bravura e a

coragem dos estudantes de São Luís que souberam manter-se firmes mesmo nas horas mais

negras de repressão e, também, a determinação de suas lideranças que com habilidade

conduziram a luta em suas diferentes fases” (Jornal Pequeno, 25/09/1979, p.6).

É interessante observar que, simultaneamente às comemorações de estudantes e

oposicionistas, o Governador João Castelo também é congratulado por correligionários

políticos, que destacam seu papel fundamental na condução do processo, tendo mesmo ele

figurado, em tal discurso, como “o maior responsável” pela resolução da questão. O Deputado

Federal Luiz Rocha manifesta seus préstimos de estima a Castelo, saudando-o pela “vitória”.

Em telegrama enviado ao Governador maranhense, Rocha diz:

No final de mais uma difícil etapa do seu governo, congratulo-me com Vossa Excelência pela maneira inteligente e digna com que foram conduzidos os entendimentos com nossa briosa e brava classe estudantil. Mais uma vez Vossa Excelência dá prova do desempenho do cargo de Governador. Fico alegre e feliz com a vitória. Saudações (O Estado do Maranhão, 25/09/1979, p. 1).

Ao se analisar os discursos colocados pelos jornais, que noticiaram a maneira como foi

recebida a confirmação da meia passagem, percebe-se com bastante clareza a articulação das

versões produzidas, a intenção que entremeia as falas, as convicções subjacentes ao que se

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diz. Nesse sentido, os periódicos portadores de tais representações discursivas estão despidos

de qualquer principio de imparcialidade. Ao se observar o viés escolhido para noticiar o

mesmo “fato”, tem-se que as inclinações políticas de ambos (Jornal Pequeno e O Estado do

Maranhão) desvelam-se por completo neste momento. Pode-se afirmar, desta forma, que a

construção da memória dá-se arbitrariamente.

Convém destacar nessas análises um aspecto bastante interessante que pode ajudar na

articulação das idéias até aqui expostas: a questão da memória e sua relação com os espaços.

Ambos guardam uma aproximação extremamente familiar, podendo-se dizer ainda, que uma

atração recíproca se estabelece entre eles, conformando assim, laços de identidade. No caso

da greve pela meia passagem em São Luís, destaca-se nas representações analisadas um lugar

em especial: a Praça Deodoro.

Desde o início das manifestações estudantis, tal praça teria sido uma espécie de

“palco” reservado aos atos públicos, logradouro acolhedor das grandes concentrações, das

assembléias deliberativas sobre os rumos da greve e também da celebração da “vitória”

quando anunciada a concessão do direito aos estudantes. A praça era estrategicamente

perfeita às pretensões de levar ao conhecimento da população a causa da meia passagem.

Situando-se no centro da cidade, o movimento adquiriu uma visibilidade evidente. Dessa

forma, considerando-se a significação dos espaços para a memória, “atualizar impressões” e

proceder a uma releitura dos vestígios relacionados à greve pela meia passagem, implica

visualizar a Deodoro como um lugar de experiências marcantes.

Nesse sentido, são muito pertinentes as considerações de Wagner Cabral ao falar de

um mapa narrativo (e não descritivo), inspirado na “psicogeografia das cidades” de Guy

Debord, a qual

pressupõe a cidade como sendo também a representação que os cidadãos têm dela, isto é, a cidade enquanto usina do imaginário social. Debord propõe a construção de mapas imaginários, mapas vivenciais e narrativos, onde os trajetos estão amarrados às histórias, às experiências dos cidadãos na cidade e às diferentes cargas afetivas que distinguem os diversos pontos das cidades. Mapas não mensuráveis, que selecionam lugares significativos da experiência urbana, ligando-os através de possíveis trajetórias narrativas – mapas subjetivos, rastreando sensibilidades individuais e coletivas (DEBORD, apud, COSTA, 2006, p. 97).

Tendo como referência as idéias de Debord, tem-se que a Praça Deodoro, lugar

significativo de tantas experiências à época da greve, não poderia escapar às lembranças

daqueles que inscreveram momentos importantes de suas histórias naquele espaço. Sendo

assim, este lugar de afetividade especial para os manifestantes de 1979, figurou também nas

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manchetes como palco da celebração da “vitória” dos estudantes. Com a nota de chamada

“Estudantes festejam decisão do Governo”, um jornal à época assim relatou o clima de festa

estudantil na Praça:

mais de cinco mil estudantes, entre universitários e secundaristas, reuniram-se ontem pela manhã na Praça Deodoro para comemorar a vitória na luta pela conquista do desconto de cinqüenta por cento nos preços das passagens dos transportes coletivos de São Luis. Era grande a euforia dos estudantes, aplaudindo a atitude do governador João Castelo, que domingo à noite afirmou que “o Governo reimplantará o sistema de meia passagem”, e repetindo a cada instante que, “a festa é nossa, com o estudante não há quem possa (Jornal O Estado do Maranhão, 25/09/1979, p. 5).

Convém refletir, considerando-se a nota jornalística que faz referência à manifestação

pela conquista da meia passagem na Deodoro, sobre como se processa a inserção dos espaços

na memória coletiva, tendo-se em conta as considerações já expostas acerca da significação

da Praça para os manifestantes durante o processo grevista.

Nesse sentido, Maurice Halbwachs afirma que

assim, não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço – aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças (HALBWACHS, 1990, p. 143).

Dessa forma, a memória coletiva que abarca as experiências estudantis no espaço

esquadrinhado da Praça Deodoro, evoca inevitavelmente, a idéia de reciprocidade,

engendrando a noção de “mapas subjetivos” pelos quais, “sensibilidades individuais e

coletivas” são rastreadas, remontando, assim, a assertiva de Halbwachs (1990, p. 133), de que

“o lugar recebeu a marca do grupo e vice-versa”.

Refletindo sobre esta afirmação do autor, considerando-se a relação de identidade do

grupo (segmento estudantil) com o espaço, tem-se que tais marcas indeléveis, uma vez

reatualizadas, podem dotar de um caráter subversivo a memória na medida em que esta

suscita recordações “perigosas” remetendo a situações de “ameaça” e “desordem”. Pode-se

inferir tal impressão, ao se perceber nos jornais de um ano após a greve, a preocupação do

governo com as comemorações dos estudantes pela vitória na Praça Deodoro.

68

A repercussão sobre este “dia festivo” por ocasião do primeiro aniversário da

“conquista da meia passagem” foi assim noticiado por um jornal da época:

O presidente do Diretório Central dos Estudantes, Jomar Fernandes, disse ontem que o próximo dia 17, quando se pretende comemorar na Praça Deodoro, a greve pela meia passagem, passará a ser considerado o dia do estudante maranhense pois “a história ou vive-se ou perde-se no esquecimento”. Para este dia o DCE marcou além do ato público na Deodoro, uma feira de música, Poesia, Selos Show, Teatro, Assembléia, pretendendo também afixar uma placa no coreto da Praça, marcando o dia da vitória. Embora a programação do dia 17 ainda não esteja delineada, Jomar acrescentou que esta deverá recordar em toda a sua plenitude a grandeza do movimento grevista de setembro passado, como o mais significado do Maranhão em todos os tempos (Diário do Povo, 04/09/1980, p. 5, grifou-se).

De acordo com as expectativas para o evento e analisando a programação anunciada

no referido jornal, pode-se entender que se tratava de uma comemoração simbólica e sem

maiores conseqüências. Certo? Definitivamente não. As reservas com que o acontecimento foi

encarado pelas autoridades emanavam das lembranças recentes de 1979. O receio do Serviço

de Segurança Pública era de que tal reencontro carregado de “afetividade” comprometesse

mais uma vez a “ordem”. A manifestação comemorativa dos estudantes na Praça em 1980,

bem mais que um “perigo real” à segurança, representou a tentativa de inscrição na memória,

de um triunfo que ofuscaria a imagem do governo. Logo, era preciso evitar que tais

recordações figurassem.

Tal episódio apresenta características de algo que poderia ser definido como uma

espécie de disputa pela memória sobre o desfecho da greve. Retomando-se a frase de Jomar

Fernandes de que “a história ou vive-se ou perde-se no esquecimento”, tem-se que as

impressões acerca de determinado “evento” estão suscetíveis a reatualizações ou supressões

de acordo com as conveniências dos indivíduos ou grupos que dele participaram,

reapresentando-as, assim, sob um enredo altruístico a ser apreciado em um tempo posterior.

Nesse sentido, poderia aqui ser reiterado que o processo de construção (apropriação ou

manipulação) da memória em história opera-se segundo procedimentos arbitrários conforme

expectativas vividas no “presente”.

Os momentos que antecederam o dia 17/09/1980 teriam representado talvez uma

necessidade (ou estratégia forçosa) de intervenção na memória. A justificativa para a não

realização das comemorações na Deodoro foi anunciada pelo Secretário de Segurança Pública

do Estado, Raimundo Marques, através de um jornal:

[...] temendo que aquela concentração estudantil redunda-se em tumultos, haja vista a inevitável penetração de pessoas estranhas ao movimento dos estudantes, movidas

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por ‘interesses desconhecidos’, que a exemplo do ano passado poderiam levar a população ao pânico e provocar grandes prejuízos ao patrimônio público e privado. Por isso desde as primeiras horas da manhã de ontem foi colocado o policiamento ostensivo nas principais artérias de São Luis e nos pontos mais estratégicos como preventivo a quaisquer eventualidades (O Estado do Maranhão, 18/09/1980, p. 3).

As representações evocadas, exaltando a “vitória” pela concessão da meia passagem,

partiram dos mais variados discursos articulados segundo a fala de alguém e veiculados de

forma escrita pela imprensa. Convém destacar, porém, a importância de uma estratégia

discursiva diferente que também figurou nos jornais ludovicenses, e que, de forma similar, foi

portadora de representações da “vitória” dos estudantes; a fotografia.

De fato, as imagens parecem ter o poder de registrar um momento determinado, que

venha a perdurar por bastante tempo assegurando assim, fragmentos de lembranças que

permanecem instantâneos na fotografia. Dessa forma, a memória de um “fato” específico

encontra-se resguardada e as possibilidades de elaboração de um discurso, são retocadas

substantivamente. Nesse sentido, tais imagens veiculadas nos jornais assumem o status de

cópia fiel de um “evento” retratado.

De acordo com Yuri Costa (2005, p. 13), para ajudar a compor um “documento”, as

fotografias devem aparecer como reproduções precisas, instantâneas, como imagens de um

determinado modelo como ele realmente era num momento específico. Devem produzir o

“efeito de realidade”.

O efeito de realidade designa o efeito produzido no espectador pelo conjunto dos índices de analogia em uma imagem representativa (quadro, foto ou filme, indiferentemente) [...]. O espectador induz um “julgamento de existência” sobre as figuras da representação e atribui-lhes um referente do real. Ou seja, o espectador acredita não que o quê vê é o real propriamente, mas, que o quê vê existiu, ou pôde

existir, no real [...]. O efeito do real é também interpretável como regulagem, entre outros possíveis, do investimento do espectador na imagem (AUMONT, apud, COSTA, 2005, p. 13).

Sendo assim, tem-se que o discurso exteriorizado pela fotografia nos jornais impressos

estabelece uma relação direta com a percepção daqueles que recepcionam a imagem e como

as interpretam conforme suas pré-noções. Pode-se destacar assim, que uma imagem

estampada num periódico cumpre com o seu propósito discursivo na medida em que é

entendida enquanto referencial de um “fato”. Dessa forma, a memória da greve pela meia

passagem pode ser reatualizada através das ilustrações capturadas dos “acontecimentos” e

veiculadas destacadamente para a apreciação e interpretação dos leitores.

70

A concessão do direito aos estudantes ludovicenses em 1979, festejada na Praça

Deodoro, teria sido retratada como a imagem de uma vitória legítima.

Foto 1 – Composição de imagens sobre a comemoração dos estudantes, veiculada no Jornal O Estado

do Maranhão

Fonte: O Estado do Maranhão (1979)

Com a sobreposição de fotografias distintas, a estratégia nesta edição do jornal foi

compor apenas uma imagem, que formando um conjunto articulado destacasse o aspecto da

concentração de indivíduos presentes à Praça, despertando assim, a atenção para a notícia.

Entendo que, a intenção do jornal ao expor o conjugado de fotos diferentes engendrou uma

dimensão singular para a cena, recomposta assim como única.

Acerca dessas técnicas, são muito pertinentes as considerações de Rodrigues, evocadas

por Yuri Costa em seu trabalho.

Um dos processos de trucagem mais correntes consiste na montagem de imagens independentemente para reconstruir uma nova imagem e denotar assim a existência

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de uma nova realidade. Isso se dá através de poses, disposição (ou eliminação) de objetos, ângulo da tomada de vista, iluminação, encadeamento da seqüência de imagens etc. (RODRIGUES, apud, COSTA, 2005, p. 14).

Em outra fotografia referente às comemorações estudantis pela conquista da meia

passagem, um efeito verificado na imagem analisada é o enfoque destacado sobre um ponto

específico.

Foto 2 – Destaque dado a lideranças comemorado no coreto da Praça.

Fonte: A Revolta da Meia Passagem (2004)

O enquadramento dos líderes estudantis num plano mais aproximado da imagem, com

a concentração de estudantes mais distanciada, induz a uma percepção (representação) de

comando, unidade, coesão na luta, enfim, de vitória incontestável a ser inscrita na memória.

Entendo que, o propósito do autor ao destacar a fotografia, foi enfatizar a idéia de que a

efusão comemorativa fez jus à causa reivindicada pelos estudantes.

Evocando mais uma vez as considerações de Yuri Costa (2005, p. 18), este atribui às

fotografias uma estreita relação com a idéia de representação. Neste aspecto, para ele, as

teorizações de Roland Barthes sobre a fotografia aproximam a noção de significado, inerente

72

às representações, à idéia de referente fotográfico, por entender ser a fotografia forma

representacional peculiar.

O Referente da Fotografia não é o mesmo que o dos outros sistemas de representação. Chamo de “referente fotográfico”, não a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem a tê-la visto [...]. Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá (BARTHES, apud, COSTA, 2005, p. 18).

Desta forma, de palavras e imagens foram tecidos os mais variados discursos sobre o

ato de concessão da meia passagem aos estudantes de São Luís. Todos portadores de um

matiz diverso de representações, tiveram como pretensão figurar como memória legítima do

referido episódio. Nesse sentido, tomam destaque as palavras do governador João Castelo ao

expor suas considerações em meio à repercussão do direito concedido.

Em pronunciamento a um jornal da época cuja manchete principal dizia: Governo

concede meia passagem – Vitória dos estudantes, Castelo se manifestou desta forma:

Brasileiros do Maranhão, a classe estudantil tem grande responsabilidade no meu governo. Ela, ao lado de outras, apresentou maiores subsídios que integram as diretrizes e as metas do meu plano governamental. Este nasceu, portanto, do dialogo, do idealismo com a experiência. Lamento que esse diálogo tenha sofrido interrupção [...] mas não posso deixar de externar a minha satisfação diante das possibilidades que se me ofereceram para sua manutenção. Ao homem público, infiltrado nas lutas democráticas, não me assiste o direito de condenar pura e simplesmente uma manifestação popular [...]. Desarmaram-se os espíritos, serenaram-se os ânimos, manteve-se o diálogo. Agora, que tenho em meu poder a reivindicação formalizada da classe estudantil e já num clima propicio a decisões, declaro ao povo maranhense que me sinto feliz em poder ajudar os estudante de minha terra [...] (Jornal Pequeno, 24/09/1979, p. 1).

No discurso de João Castelo percebe-se o destaque dado ao suposto “diálogo” com os

estudantes como elemento primordial para que se chegasse a um entendimento. Aproximação

que teria se verificado durante as manifestações e tentativas, por parte dos estudantes, de um

diálogo com as autoridades políticas locais. Pela fala de Castelo, entende-se que ele não havia

sido procurado anteriormente, uma vez que só agora, com a reivindicação formalizada em

suas mãos, o clima estaria propício a decisões. Ao declarar ao “povo maranhense” que se

sentia “feliz em poder ajudar” os estudantes de sua terra, Castelo transmite a idéia de que o

ato de concessão do direito, bem mais que uma obrigação política, seria um gesto generoso do

homem público preocupado com a sua gente. A vitória estaria proclamada e devidamente

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registrada para a memória, somente com a chancela do governador. Talvez seu discurso

trouxesse nas entrelinhas essa intenção.

Um aspecto importante a ser destacado em toda essa discussão é observar o quanto a

memória pode sofrer resignificações. Aquilo que alguém falou sobre determinada coisa,

tempos depois já não tem mais consistência. As representações que sustentaram uma idéia

ontem, podem ser lembradas mais tarde por um viés completamente oposto. Assim os

acontecimentos são representados, cabendo ao exercício de interpretação atribuir sentido ou

não ao que é dito.

Para ilustrar essas considerações, exponho uma nota jornalística de dez anos após a

greve da meia passagem relembrando o dia 17/09/1979, como “um dia de cão em São Luís”.

O editorial destaca que

No dia 17 de setembro de 1979, o centro de São Luis lembrava uma praça de guerra. Contrário ao movimento estudantil que defendia a instituição da meia passagem, o então Governador João Castelo mandou a policia sitiar a cidade, espancar e prender estudantes. A violência de um Governador prepotente não impediu, contudo, que o movimento se tornasse vitorioso e pudesse comemorar, hoje, o resultado de uma luta sem precedentes na história da organização estudantil no Maranhão (Jornal O

Estado do Maranhão, 17/09/1989, p. 3).

Comparando-se as edições do referido periódico à época da greve com esta de dez

anos após, que aspecto se poderia perceber de diferente em seu discurso?

Observa-se claramente no trecho acima, que as representações sobre o ex - governador

Castelo são extremamente contrárias às imagens do homem público “experiente”, detentor da

autoridade que restabeleceria a ordem pública em 1979. Aquele em que a população poderia

depositar sua confiança e creditar todo seu respeito. À época da greve, O Estado do

Maranhão foi o porta-voz do governador, levou à população os feitos governamentais no

sentido de transmitir a idéia de que o poder público estava empenhado na busca de uma

resolução para o problema. A imagem de um governo forte, preocupado, solidário às

necessidades do povo, estava associada à figura de João Castelo, herói caricaturado nas

manchetes dos periódicos.

Anos mais tarde, em 1989, por que a ênfase no discurso da vitória dos estudantes

ressaltando a intervenção truculenta e intolerante, traduzida na violência a mando do

governador?

Tal nuance discursiva - na edição do jornal dez anos depois da greve - traz à tona a

discussão sobre a autonomia dos veículos de comunicação em 1979. No caso de O Estado do

74

Maranhão, pode-se inferir que as edições acerca dos aspectos que envolveram a greve,

estiveram condicionadas às conveniências políticas entre o governador e o grupo proprietário

do periódico. Além disso, havia dispositivos de controle governamentais que regulavam a

produção editorial. Nesse sentido, é bastante razoável a idéia de que, em 1989, tais afinidades

políticas se encontrassem abaladas, justificando assim, os ataques do jornal que

responsabilizaram Castelo pelos episódios de violência em 1979, colocando-o como vilão e

exaltando o triunfo dos estudantes. A memória da greve, dez anos depois, ao retirar os

“méritos” de João Castelo, talvez tivesse por objetivo prejudicar politicamente o ex-

governador.

Dessa forma, destaca-se que os eventos históricos além de construções alegóricas

elaboradas a partir de interpretações distintas, são também objeto de manipulação da memória

sempre suscetível de apropriação, servindo aos interesses imediatos de quem processa

determinados “fatos” de acordo com suas conveniências. A greve pela meia passagem em São

Luís é mais um dentre tantos exemplos de recorte temático da história que se torna alvo de

disputa da memória.

As diversas representações sobre os eventos de 1979 estabelecem um leque ampliado

de considerações, análises, inferências, hipóteses e conclusões acerca dos aspectos

correspondentes aos “fatos”. Cada representação engendra um enredo particular. Nesse

sentido, as articulações discursivas podem reservar armadilhas que implicariam em

contradições inerentes às próprias palavras emanadas. Ao se sagrarem vencedores com o

desfecho da greve, todos os sujeitos envolvidos pleitearam abertamente inscrever na memória

sua experiência altruística, mesmo que tais lembranças sofressem eventuais distorções. Afinal

de contas, o propósito era figurar com destaque nas recordações.

.

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O episódio que ficou conhecido na historiografia maranhense como a “a greve da meia

passagem”, ocorrido em São Luís, no ano de 1979, teve como motivação determinante o

aumento nas tarifas dos transportes coletivos urbanos da Capital. A medida anunciada pelas

autoridades políticas da época desencadeou uma série de manifestações contrárias à decisão,

sobretudo, do segmento estudantil muito prejudicado com a elevação das passagens nos

ônibus

. A situação foi considerada abusiva, uma vez que a taxação dos coletivos estava se

efetuando num curto espaço de tempo com certa freqüência naquele período.

O mal estar gerado em torno da questão colocou em evidência os interesses distintos

de dois segmentos sociais. A expectativa era por uma definição imediata do poder público. Os

empresários do setor de transportes urbanos esperavam que a medida relativa ao aumento nas

tarifas entrasse logo em vigor, ao passo que os estudantes defendiam a implementação da

meia passagem. Estes argumentavam em suas reivindicações, ser a causa pleiteada, um direito

assegurado legalmente, que estaria sendo negligenciado pelas autoridades.

A posição do governo diante dos acontecimentos foi verificada de modo bastante

dúbio no sentido da administração dos interesses envolvidos, pois durante o processo de

negociação em busca de uma solução para o caso, a relação do governador João Castelo com

os segmentos dos empresários, comerciantes e industriais da Cidade foi marcada por uma

maior receptividade, enquanto que, o segmento dos estudantes teria sido encarado com

reserva e desconfiança. O episódio também pode ser lembrado pelo impasse estabelecido

diante da morosidade do poder público, que sofreu muita pressão antes de decidir pela

concessão do direito.

Um aspecto relacionado aos fatos que não deve ser esquecido trata-se do envolvimento

de entidades da sociedade civil de São Luís. Destacou-se, nesse sentido, a contribuição do

Arcebispo da cidade, Dom Motta, que foi o “portador” das reivindicações estudantis junto ao

governador. Sua atuação como mediador representou o apoio da Igreja Católica aos jovens

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estudantes. Registrou-se, ainda, a importante assistência da Ordem dos Advogados, seção

MA, ao constatarem a viabilidade jurídica do direito pleiteado.

Outro elemento interessante relativo ao evento grevista foi à influência da Teologia da

Libertação e suas idéias, que marcaram a atuação de um grupo oriundo da Igreja no

movimento estudantil. Idéias como a antecipação do Reino de Deus na terra, a construção de

uma sociedade mais justa e uma opção preferencial pelos empobrecidos, nortearam o trabalho

de religiosos junto à juventude no sentido de “despertar uma consciência crítica” diante da

realidade, a partir da fé. Ressaltou-se, que no contexto da greve, o engajamento dos padres

Marcos Passerine e Rejean Racini foi fundamental no apoio aos jovens. Na Universidade

Federal do Maranhão essa tendência esteve representada pelo Grupo Unidade que venceu as

eleições para o DCE em 1978.

A greve estudantil pela meia passagem também foi marcada pelos discursos que

fizeram alusão ao envolvimento das “massas” no episódio. Procurei analisar representações

associadas ao comportamento das multidões, como a sensação de “medo, pânico e

insegurança” que as massas descontroladas podem transmitir. As considerações acerca do

fenômeno foram articuladas com base em discussões contempladas atualmente pela História.

Um detalhe bastante importante das reflexões expostas sobre as multidões, diz respeito à força

que esta representação pode exercer num discurso. As conotações que lhes são atribuídas

refletem sempre uma intenção específica de quem as profere. Nos jornais que noticiaram a

greve, as multidões permearam falas tanto de estudantes como de autoridades.

A imagem “caótica” da Cidade durante os episódios de 1979 teve destaque nas

manchetes da imprensa escrita. Aliás, a repercussão midiática que enfatizou, de forma

substantiva, cenas de destruição pela Cidade reforçou tal representação conformando um

imaginário de violência relacionado à greve. Os desdobramentos grevistas de São Luís

estiveram em evidência, ainda, nas páginas de periódicos nacionais, a exemplo de O Liberal,

do Pará e o Correio brasiliense. Ambos reproduziram em suas análises a situação de “caos”

que teria se abatido sobre a Capital maranhense.

No desenvolvimento das idéias apresentadas observou-se o artifício da apropriação de

representações relativas a outros contextos históricos. Nesse sentido, expus, brevemente,

como na historiografia maranhense, outros autores analisaram a construção das representações

de São Luís como “Ilha Rebelde e Atenas brasileira”. Entendi como importante a abordagem

desse aspecto para explicitar os usos políticos de tais imagens, que resignificadas em

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conformidade com as circunstâncias de um dado momento, são evocadas com vistas a atender

aspirações particulares. Em 1979, a “Ilha Rebelde” teria simbolizado a “resistência do povo”

ludovicense, a “luta dos estudantes”, enquanto a idéia de “Atenas brasileira” associada à

Capital maranhense seria um apelo oficial a um passado de tradições que precisava ser

preservado.

Outra questão importante observada durante as análises foi o discurso veemente das

autoridades locais pela manutenção da ordem pública. As imagens retratando um “momento

conturbado”, de desestabilidade que a Cidade vivenciou, teriam exigido uma postura mais

austera do Serviço de Segurança do Estado. Não por acaso, ao se atualizar algumas

impressões sobre o evento tem-se o registro de inúmeros relatos relacionados à questão da

repressão policial. A idéia foi articular a justificativa apresentada pelo governo, que priorizava

a manutenção da ordem, aos discursos que evocavam o respaldo do “princípio da autoridade”.

Dessa forma, em termos pontuais, procurei em autores como, Max Weber e Hannah Arendt,

aspectos conceituais relacionados à representação de autoridade empregada em falas oficiais

no contexto da greve. Assim foi possível identificar intenções colocadas nas entrelinhas do

discurso.

Destacou-se, ainda, o aspecto da memória referente às representações sobre o ato de

concessão da meia passagem. Enfatizei as análises acerca dos variados discursos que, em

regra, apresentaram uma característica comum: a meia passagem como uma vitória de todos.

Os jornais da época noticiaram o desfecho do episódio em suas manchetes. Se houve uma

vitória de todos, os méritos por ela, no entanto, estavam bem direcionados em discursos

colocados nos periódicos. Nesse sentido, faz-se oportuna a observação sobre este aspecto que

poderia ter sido melhor explorado nas discussões colocadas no trabalho, uma vez que é

evidente a distinção observada nos discursos em torno da questão: a vitória da meia passagem

teria sido resultado do ato de concessão do governador ou da conquista de um direito pela

atuação dos estudantes?

Uma questão importante ressaltada com as análises da memória sobre a greve de 1979

foi a reflexão acerca de como os “acontecimentos” se tornam, em história, objetos de disputa

de uma memória. Dessa forma, algumas representações colocadas em evidência pelos jornais

estiveram diretamente associadas às ações dos segmentos envolvidos no episódio, sobretudo

de estudantes e autoridades. Procurava-se ressaltar, assim, os feitos de um momento que

deveria ser registrado para lembranças posteriores. Outro aspecto interessante analisado, nesse

78

sentido, foi a respeito da significação que os espaços urbanos podem assumir nas experiências

de indivíduos e grupos. Apresentei, pontualmente, uma reflexão sobre a Praça Deodoro como

um lugar central das manifestações e experiências estudantis no contexto grevista. Procurei

demonstrar que existe aí uma relação dialógica também produtora de memória.

Analisei ainda, os discursos de vitória da greve através de imagens. Duas reproduções

fotográficas, ambas retratando a comemoração dos estudantes pela meia passagem,

possibilitaram um viés diferente de interpretação do evento. Nesse sentido, ao apresentar o

registro visual, quis demonstrar que este é uma forma de representação para os “fatos”, uma

vez que designa o olhar de alguém que emoldurou em imagens um momento específico. A

greve estudantil de 1979, portanto, pode ser reatualizada pelas impressões a partir de diversos

olhares, por assim dizer.

Entendo que, o trabalho abordou questões interessantes pra se pensar sobre o episódio

analisado, bem como, deixou lacunas que podem ser preenchidas em produções posteriores.

No entanto, pode ser dito que os argumentos e as idéias expostas ensejam uma unidade de

sentido que apresenta sua especificidade enquanto novo discurso. Creio que, a produção dos

variados discursos guardam, em si, a noção de arbitrariedade relacionada às intenções

depositadas em suas entrelinhas. Em linhas gerais, esta produção sobre a greve estudantil

significou uma compilação de impressões do que se falou a respeito do evento, porém, dotada

de um efeito próprio. Tais imagens estão objetivadas na articulação desse novo enredo.

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BIBLIOGRAFIA

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PERIÓDICOS E OUTRAS FONTES CONSULTADAS

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Jornal O Estado do Maranhão, nas edições dos dias 15, 19, 22, 25 e 27/09/1979; 18/09/1980 e no dia 17/09/1989.

Jornal Pequeno, nas edições dos dias 15, 19, 21, 24, 25, 28/09/1979 e no dia 12/09/1980.

Diário do Povo, em edição de 04/09/1980.

Ata da trigésima Sessão Ordinária, do segundo período legislativo, da terceira sessão legislativa, da nova legislatura em 19/09/1979 (documento da Câmara municipal de São Luis).

ENTREVISTAS

(1) Juarez Medeiros, presidente do DCE/UFMA em 1979. Exerce atualmente a atividade de promotor de Justiça em Mirador.

(2) João Batista Ribeiro, presidente do DCE/FESM em 1979. Atualmente é advogado e exerce a função de Secretario de Cultura do Estado.

(3) Renato Dionísio, liderança estudantil na época da greve. Atua na política local. Deixou o cargo de Vereador recentemente.

(4) Cunha Santos, estudante de jornalismo e militante no contexto grevista. Tem a função de editor chefe no Jornal Pequeno.