jorge luis borges - a memória de shakespeare

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Este livro: A Memória de Shakespeare é parte integrante da coleção:

JORGE LUIS BORGES – OBRAS COMPLETASJORGE LUIS BORGES – OBRAS COMPLETASVOLUME III

1975-1985Título do original em espanhol: Jorge Luis Borges – Obras Completas

98-3272Copyright ©1998 by Maria Kodama Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A.

1ª Reimpressão-9/98 2ª Reimpressão-1/99 3ª Reimpressão – 12/99

Edição baseada em: Jorge Luis Borges – Obras Completas,

publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona – Espanha.

Coordenação editorial: Carlos V. Frías

Capa: Joseph Ulbach / Emecé Editores

Ilustração: Alberto Ciupiak

Coordenação editorial da edição brasileira: Eliana Sá

Assessoria editorial: Jorge Schwartz

Preparação de textos: Maria Carolina de Araújo

Revisão de textos: Flávio Martins, Levon Yacubian,

Luciana Vieira Alves e Márcia Menin

Projeto gráfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

Fotolitos: GraphBox

Agradecimentos a Antonio Fernández Ferrer, Maite Celada, Ana Cecilia Olmos,Blas Matamoro, Fernando Paixão, Daniel Samoilovich e Michel Sleiman

Page 3: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

Agradecimentos especiais a Élida Lois

Direitos mundiais em língua portuguesa, para o Brasil, cedidos à

EDITORA GLOBO S.A.

Avenida Jaguaré, 1485

CEP O5346-9O2 – Tel.: 3767-7OOO, São Paulo, SP

E-mail: [email protected]

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação

etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.

Impressão e acabamento:

Gráfica Círculo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte – Câmara Brasileira do Livro, SPBorges, Jorge Luis, 1899-1986.

Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. – São Paulo : Globo, 1999.

Título original: Obras completas Jorge Luis Borges.Vários tradutores.

V. 1. 1923-1949 / v. 2. 1952-1972 / v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) / ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2) ISBN 85-25O-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-25O-288O-O

(v. 4.)

1. Ficção argentina 1. Título.Índices para catálogo sistemático

1. Ficção : Século 2O : Literatura argentina ar863.4

2. Século 2O : Ficção : Literatura argentina ar863.4CDD-ar863.4

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A Memória de ShakespeareLa memória de Shakespeare

Tradução:Bella Jozef

Page 5: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

A MEMÓRIAA MEMÓRIADEDE

SHAKESPEARESHAKESPEARE11

1 Compreende três contos inseridos em diferentes publicações, anteriores a 1983, e um intitulado "A memória de Shakespeare" (1980), não incluído até agora em livro.

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VINTE E CINCO DE AGOSTO, 1983

Vi no relógio da pequena estação que já passavam das onzeda noite. Fui caminhando até o hotel. Senti, como das outrasvezes, a resignação e o alívio que os lugares muito conhecidosnos infundem. O largo portão estava aberto; a casa de campo, às escuras. Entrei no vestíbulo, cujos pálidos espelhos repetiamas plantas do salão. Curiosamente, o dono do hotel não mereconheceu e estendeu-me o livro de registro. Peguei a penaque estava presa à escrivaninha, molhei-a no tinteiro de bronzee, ao inclinar-me sobre o livro aberto, ocorreu a primeira surpre-sa das muitas que essa noite me depararia. Meu nome, JorgeLuis Borges, já estava escrito e a tinta, ainda fresca.

O dono disse-me:– Pensei que o senhor já tivesse subido.Depois, olhou-me bem e corrigiu-se:– Desculpe. O outro se parece tanto, mas o senhor é mais

jovem.Perguntei-lhe:– Em que quarto ele está?– Pediu o 19 – foi a resposta.Era o que eu temia.Larguei a pena e subi correndo as escadas. O quarto 19

ficava no segundo andar e dava para um pobre pátio desman-telado em que havia uma varanda e, lembro-me, um banco de

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praça. Era o quarto mais alto do hotel. Abri a porta que cedeu. Não haviam apagado o lustre. Sob a impiedosa luz eu mereconheci. De costas na estreita cama de ferro, mais velho, enfraquecido e muito pálido, estava eu, os olhos perdidos nasaltas molduras de gesso. Veio-me a voz. Não era precisamente a minha; mas a que costumo ouvir em minhas gravações, ingrata e sem matizes.

– Que estranho – dizia –, somos dois e somos o mesmo.Mas nada e estranho nos sonhos.

Perguntei assustado:– Então, tudo isto é um sonho?– É, tenho certeza, meu último sonho.Com a mão mostrou o frasco vazio sobre o mármore da

mesinha-de-cabeceira.Você terá, entretanto, muito com que sonhar, antes de che-

gar a esta noite. Em que dia você está?– Não sei muito bem – disse-lhe aturdido. – Mas ontem fiz

sessenta e um anos.– Quando sua vigília chegar a esta noite, você terá feito,

ontem, oitenta e quatro. Hoje estamos em 25 de agosto de 1983.– Terei de esperar muitos anos – murmurei.– Para mim já nada me resta – disse ele bruscamente.– Posso morrer a qualquer momento, posso perder-me

naquilo que não sei e continuo sonhando com o duplo. O fati-gado tema que me deram os espelhos e Stevenson.

Senti que a evocação de Stevenson era uma despedida enão uma atitude pedante. Eu era ele e compreendia. Não bas-tam os momentos mais dramáticos para ser Shakespeare e darcom frases memoráveis. Para distraí-lo, disse-lhe:

– Sabia que isso ia acontecer com você. Aqui mesmo háanos, em um dos quartos abaixo, iniciamos o rascunho da his-tória deste suicídio.

– Sim – respondeu-me lentamente, como se amealhasse

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recordações, Mas não vejo relação. Naquele rascunho eu haviacomprado uma passagem de ida para Adrogué, e já no hotelLas Delicias havia subido até o quarto 19, o mais afastado detodos. Ali eu me suicidara.

– Por isso estou aqui – disse-lhe.– Aqui? Sempre estamos aqui. Aqui o estou sonhando na

casa da rua Maipú. Aqui estou indo embora, no quarto que foida mãe.

– Que foi da mãe – repeti, sem querer entender. – Eu sonhocom você no quarto 19, no pátio de cima.

– Quem sonha com quem? Eu sei que sonho com você, mas não sei se você está sonhando comigo. O hotel deAdrogué foi demolido já faz tantos anos, vinte, talvez trinta. Quem sabe quantos.

– O sonhador sou eu – repliquei com certo desafio.– Você não se dá conta de que o fundamental é averiguar

se há um único homem sonhando ou dois que sonham umcom o outro.

– Eu sou Borges, que viu seu nome no livro de registro esubiu.

– Borges sou eu, que estou morrendo na rua Maipú.Houve um silêncio, o outro disse-me:

– Vamos fazer a prova. Qual foi o momento mais terrívelde nossa vida?

Inclinei-me sobre ele e ambos falamos ao mesmo tempo. Sei que nós dois mentimos.

Um tênue sorriso iluminou o rosto envelhecido. Sentique, de algum modo, esse sorriso refletia o meu.

– Nós mentimos um para o outro – disse-me ele – porquenos sentimos dois e não um. A verdade é que somos dois esomos um.

Essa conversa me irritava. Foi o que eu lhe disse.Acrescentei:– E você, em 1983, não vai revelar-me nada sobre os anos

que me faltam?

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– O que posso dizer-lhe, pobre Borges? Repetir-se-ão asdesgraças às quais você já está acostumado. Ficará sozinhonesta casa. Tocará nos livros sem letras e no medalhão deSwedenborg e na bandeja de madeira com a Cruz Federal. A cegueira não é a treva; é uma forma de solidão. Você voltará à Islândia.

– A Islândia! A Islândia dos mares!– Em Roma, você repetirá os versos de Keats, cujo nome,

como o de todos, foi escrito na água.– Nunca estive em Roma.– Há outras coisas também. Você escreverá nosso melhor

poema, que será uma elegia.– À morte de... – disse eu. Não me atrevi a dizer o nome.– Não. Ela viverá mais do que você.Ficamos em silêncio. Prosseguiu:– Você escreverá o livro com o qual sonhamos tanto

tempo. Por volta de 1979, você compreenderá que sua suposta obra é apenas uma série de rascunhos, uma miscelânea derascunhos, e você cederá à vã e supersticiosa tentação de escre-ver seu grande livro. A superstição que nos infligiu o Fausto deGoethe, Salammbô, o Ulysses. Inacreditavelmente, enchi muitaspáginas.

– E, afinal você compreendeu que havia fracassado.– Algo pior. Compreendi que era uma obra-prima no sen-

tido mais opressivo da palavra. Minhas boas intenções nãohaviam passado das primeiras páginas; nas demais estavamos labirintos, as facas, o homem que se crê uma imagem, oreflexo que se crê verdadeiro, o tigre das noites, as batalhasque retornam ao sangue, Juan Muraria cego e fatal, a voz deMacedonio, a nave feita com as unhas dos mortos, o inglêsantigo repetido durante as tardes.

– Esse museu me é familiar – observei com ironia.– Além disso, as falsas recordações, o duplo jogo dos sím-

bolos, as longas enumerações, o bom manejo do prosaísmo, assimetrias imperfeitas que os críticos descobrem com estarda-

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lhaço, as citações nem sempre apócrifas.– Você publicou esse livro?– Brinquei, sem convicção, com o melodramático propósito

de destruí-lo, talvez pelo fogo. Acabei publicando-o emMadri, sob pseudônimo. Falou-se de um inábil imitador deBorges, que tinha o defeito de não ser Borges e de haver repe-tido o aspecto exterior do modelo.

– Isso não me surpreende – disse eu. – Todo escritor acabasendo seu discípulo menos inteligente.

– Esse livro foi um dos caminhos que me conduziram aesta noite. Quanto aos demais... A humilhação da velhice, a con-vicção de já haver vivido cada dia...

– Não escreverei esse livro – disse.– Você vai escrevê-lo. Minhas palavras, que agora são o

presente, serão apenas a memória de um sonho.Incomodou-me seu tom dogmático, sem dúvida o mesmo

que uso em minhas aulas. Incomodou-me que nos parecêsse-mos tanto e que ele se aproveitasse da impunidade que a imi-nência da morte lhe propiciava. Para revidar, disse-lhe:

– Você tem tanta certeza de que vai morrer?– Sim – replicou. – Sinto uma espécie de doçura e de alívio

que nunca senti. Nem posso expressá-lo. Todas as palavrasrequerem uma experiência compartilhada. Por que o que digoparece incomodá-lo tanto?

– Porque nos parecemos demais. Detesto sua cara, que éminha caricatura, detesto sua voz, que é arremedo da minha,detesto sua sintaxe patética, que é a minha.

– Eu também – disse o outro. – Por isso resolvi suicidar-me.Um pássaro cantou lá na casa de campo.

– É o último – disse o outro.Com um gesto, chamou-me para seu lado. Sua mão pro-

curou a minha. Recuei; temi que as duas se confundissem.Disse-me:– Os estóicos ensinam que não devemos queixar-nos da

vida; a porta da prisão está aberta. Sempre entendi assim,

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mas a preguiça e a covardia me detiveram. Há uns doze dias, eu estava dando uma conferência em La Plata sobre o LivroVI da Eneida. De repente, ao escandir um hexâmetro, descobriqual era meu caminho. Tomei esta decisão. A partir daquelemomento, senti-me invulnerável. Minha sorte será a sua, você receberá a inesperada revelação, em meio ao latim e aVirgílio, e já terá esquecido inteiramente este curioso diálogoprofético, que transcorre em dois tempos e em dois lugares. Quando voltar a sonhar com isso, você será o que eu sou evocê será meu sonho.

– Não esquecerei isso e vou escrevê-lo amanhã.– Ficará no fundo de sua memória, debaixo da maré

dos sonhos. Quando você o escrever, pensará estar urdindoum conto fantástico. Não será amanhã, ainda lhe faltammuitos anos.

Parou de falar, compreendi que havia morrido. De certomodo eu morria com ele; inclinei-me angustiado sobre o tra-vesseiro e já não havia ninguém.

Fugi do quarto. Do lado de fora não havia o pátio, nem asescadas de mármore, nem a grande casa silenciosa, nem oseucaliptos, nem as estátuas, nem o caramanchão, nem os cha-farizes, nem o portão da grade da casa de campo no povoadode Adrogué.

Fora outros sonhos esperavam-me.

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TIGRES AZUIS

Uma famosa página de Blake faz do tigre um fogo queresplandece e um arquétipo eterno do Mal; prefiro aquelafrase de Chesterton, que o define como símbolo de terrível ele-gância. Não há palavras, além do mais, que possam ser cifrado tigre, essa forma que há séculos habita a imaginação doshomens. O tigre sempre me atraiu. Sei que me demorava, quando garoto, diante de certa jaula do Zoológico: as outrasnada me interessavam. Julgava as enciclopédias e os textos dehistória natural pelas gravuras dos tigres. Quando os JungleBooks me foram revelados, desagradou-me que Shere Khan, otigre, fosse inimigo do herói. Ao longo do tempo, esse curiosoamor não me abandonou. Sobreviveu a minha paradoxal von-tade de ser caçador e às comuns vicissitudes humanas. Até hápouco – a data parece-me longínqua, mas na realidade não oé –, conviveu de modo tranqüilo com minhas tarefas habituaisna Universidade de Lahore. Sou professor de lógica ocidentale oriental e consagro meus domingos a um seminário sobrea obra de Spinoza. Devo acrescentar que sou escocês; talvez oamor pelos tigres tenha sido o que me trouxe de Aberdeen aoPunjab. O curso de minha vida tem sido normal, nos sonhossempre vi tigres. (Agora outras formas os povoam,)

Mais de uma vez narrei essas coisas e agora parecem-meestranhas. Transcrevo-as, entretanto, já que minha confissãoas exige.

Em fins de 1904, li que na região do delta do Ganges

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haviam descoberto uma variedade azul da espécie. A notícia foiconfirmada por telegramas posteriores, com as contradições edisparidades próprias do caso. Meu velho amor reanimou-se. Suspeitei ser um erro, dada a habitual imprecisão dos nomesdas cores. Recordei ter lido que em islandês o nome da Etiópia era "Bláland", Terra Azul ou Terra de Negros. O tigre azul bempodia ser uma pantera negra. Nada se disse das listras nem daestampa de um tigre azul com listras de prata que a imprensade Londres divulgou; era evidentemente apócrifa. O azul dailustração pareceu-me mais próprio da heráldica que da reali-dade. Em um sonho vi tigres de um azul que eu nunca haviavisto e para o qual não achei a palavra justa. Sei que era quasenegro, mas essa circunstância não basta para imaginar o matiz.

Meses depois, um colega disse-me que em certa aldeiamuito distante do Ganges havia ouvido falar de tigres azuis. O dado não deixou de surpreender-me, porque sei que nessaregião os tigres são raros. Sonhei novamente com o tigre azul, que, ao andar, projetava sua longa sombra sobre o solo arenoso. Aproveitei as férias para empreender a viagem a essaaldeia, de cujo nome – por motivos que depois esclarecerei – não quero lembrar-me.

Cheguei quando já terminava a estação das chuvas. A aldeia estava encolhida ao pé de um monte, que me pareceumais largo que alto, e a selva, de cor parda, cercava-a e aameaçava. Em alguma página de Kipling tem de estar a aldeola de minha aventura, já que nelas está toda a índia, e dealgum modo todo o orbe. Para mim, basta contar que umavala, com pontes oscilantes de bambu, mal protegia as choças. Em direção ao sul havia pântanos e arrozais e umadepressão com um rio lodoso cujo nome nunca soube, edepois, de novo, a selva.

A população era de hindus. O fato, que eu havia previsto, não me agradou. Sempre me dei melhor com os muçulmanos, apesar de o Islã, bem sei, ser a mais pobre das crenças que pro-cedem do judaísmo.

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Sentimos que na índia o homem pulula; na aldeia sentique o que pulula é a selva, que quase penetrava nas choças. O dia era sufocante e as noites não refrescavam.

Os anciãos deram-me as boas-vindas e com eles mantiveum primeiro diálogo, feito de vagas cortesias. Já falei dapobreza do lugar, mas sei que todo homem tem certeza de quesua pátria encerra algo único. Ponderei as duvidosas acomo-dações e os não menos duvidosos manjares e disse que a famadessa região havia chegado a Lahore. Os rostos dos homensmudaram; intuí, imediatamente, que havia cometido uma infâmia e que devia arrepender-me. Senti-os possuidores deum segredo que não compartilhariam com um estranho. Talvez venerassem o Tigre Azul e lhe professassem um culto queminhas temerárias palavras haviam profanado.

Esperei a manhã do outro dia. Consumido o arroz e bebido o chá, abordei meu tema. Apesar da véspera, não entendi, não consegui entender, o que sucedeu. Todos olharam-me comestupor e quase com espanto, mas, quando lhes disse que meupropósito era prender a fera da curiosa pele, ouviram-me comalívio. Alguém disse que o havia divisado no limite da selva.

No meio da noite despertaram-me. Um rapaz disse-meque uma cabra havia escapado do cercado e que, ao procurá-la, divisara o tigre azul na outra margem do rio. Pensei que aluz da lua nova não permitisse precisar a cor, mas todos com-firmaram o relato, e alguém, que antes guardara silêncio, disseque também o havia visto. Saímos com os rifles e vi, ou pensei ver, uma sombra felina que se perdia na treva da selva. Não deram com a cabra, mas a fera que a levara bem podianão ser meu tigre azul. Indicaram-me com ênfase alguns rastros que, claro, nada provavam.

Depois de algumas noites, compreendi que esses falsosalarmes constituíam uma rotina. Como Daniel Defoe, oshomens do lugar eram destros na invenção de dados circuns-tanciais. O tigre podia ser avistado a qualquer hora, perto dosarrozais do sul ou perto da maranha do norte, mas não demo-

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rei a perceber que os observadores se revezavam com umaregularidade suspeita. Minha chegada coincidia invariavel-mente com o exato momento em que o tigre acabava de fugir. Sempre me mostravam a pegada e algum estrago, mas o punhode um homem pode falsificar os rastros de um tigre. Uma ououtra vez fui testemunha de um cão morto. Uma noite de lua, pusemos uma cabra como isca e esperamos em vão até a auro-ra. Pensei, a princípio, que essas fábulas cotidianas obedeces-sem ao propósito de que eu prorrogasse minha estada, quebeneficiava a aldeia, já que as pessoas me vendiam alimentos ecuidavam de meus afazeres domésticos. Para verificar essa con-jetura, disse-lhes que pensava procurar o tigre em outra região, localizada águas abaixo. Surpreendeu-me que todos aprovas-sem minha decisão. Continuei percebendo, entretanto, que haviaum segredo e que todos desconfiavam de mim.

Já disse que o monte frondoso em cujo pé se amontoava aaldeia não era muito alto; um planalto o truncava. Do outrolado, em direção ao oeste e ao norte, estendia-se a selva. Comoa encosta não era áspera, propus-lhes uma tarde escalar omonte. Minhas simples palavras os consternaram. Um excla-mou que a ladeira era muito escarpada. O mais idoso dissecom gravidade que meu propósito era de impossível execução. O cume era sagrado e estava proibido aos homens por obstá-culos mágicos. Quem o pisasse com pés mortais corria o riscode ver a divindade e de ficar louco ou cego.

Não insisti, mas nessa noite, quando todos dormiam,esgueirei-me da choça sem fazer ruído e subi a fácil encosta. Não havia caminho e o mato me fez demorar.

A lua estava no horizonte. Reparei com singular atençãoem todas as coisas, como se pressentisse que aquele dia ia serimportante, talvez o mais importante de meus dias. Lembroainda os tons escuros, às vezes quase negros, da folhagem. Clareava e no espaço das selvas não cantou um único pássaro.

Vinte ou trinta minutos de subida e pisei o planalto. Nadame custou imaginar que era mais fresco que a aldeia, sufocada a

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seus pés. Comprovei que não era o cume, mas sim umaespécie de plataforma, não muito dilatada, e que a selva seestendia para cima, no flanco da montanha. Senti-me livre, como se minha permanência na aldeia tivesse sido uma prisão. Não me importava que seus habitantes houvessem querido enganar-me; senti que de algum modo eram crianças.

Quanto ao tigre... As muitas frustrações haviam desgastado minha curiosidade e minha fé, mas de modo quase mecânico procurei rastros.

O solo era gretado e arenoso. Em uma das fendas, que porcerto não eram profundas e ramificavam-se em outras, reco-nheci uma cor. Era, inacreditavelmente, o azul do tigre de meusonho. Oxalá não o houvesse visto nunca. Prestei muita aten-ção. A greta estava cheia de pedrinhas, todas iguais, circulares, muito lisas e de poucos centímetros de diâmetro. Sua regulari-dade emprestava-lhes algo de artificial, como se fossem fichas.

Inclinei-me, pus a mão na fenda e peguei algumas. Sentium levíssimo tremor. Guardei o punhado no bolso direito, emque havia uma tesourinha e uma carta de Allahabad. Estesdois objetos casuais têm seu lugar em minha história.

Já na choça, tirei o casaco. Deitei-me na cama e voltei asonhar com o tigre. No sonho observei a cor; era a do tigre jásonhado e a das pedrinhas do planalto. Despertou-me o solalto no rosto. Levantei-me. A tesoura e a carta estorvavam-me para tirar os discos. Tirei um primeiro punhado e sentique ainda restavam dois ou três. Uma espécie de comichão, uma agitação muito leve, deu calor a minha mão. Ao abri-la, vi que os discos eram trinta ou quarenta. Eu teria jurado quenão passavam de dez. Deixei-os sobre a mesa e procurei osoutros. Não precisei contá-los para verificar que se haviammultiplicado. Juntei-os em uma única pilha e tentei contá-losum a um.

A simples operação tornou-se impossível. Olhava firme-mente qualquer um deles, retirava-os com o polegar e o indi-cador e, quando havia um só, eram muitos. Comprovei que

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não tinha febre e experimentei várias vezes. O obsceno milagre repetia-se. Senti frio nos pés e no baixo-ventre e tremiam-me os joelhos. Não sei quanto tempo passou.

Sem olhá-los, juntei os discos em uma única pilha e atirei-os pela janela. Com estranho alívio, senti que seu númerohavia diminuído. Fechei a porta com firmeza e deitei-me nacama. Procurei a exata posição anterior e quis persuadir-mede que tudo havia sido um sonho. Para não pensar nos discos, para povoar de algum modo o tempo, repeti com lenta precisão, em voz alta, as oito definições e os sete axiomas da Ética. Não sei se me ajudaram. Estava em tais exorcismos quandoouvi uma batida. Instintivamente, temi que me houvessemescutado falar sozinho e abri a porta.

Era o mais velho, Bhagwan Dass. Por um instante suapresença pareceu restituir-me o cotidiano. Saímos. Eu tinha aesperança de que houvessem desaparecido os discos, mas aíestavam na terra. Já não sei quantos eram.

O ancião olhou-os e olhou-me.– Estas pedras não são daqui. São lá de cima – disse com

uma voz que não era a sua.– E isso mesmo – respondi-lhe. Acrescentei, não sem um

desafio, que as havia encontrado no planalto, e imediatamente envergonhei-me de dar-lhe explicações. Bhagwan Dass, sem dar-me atenção, ficou olhando-as fascinado. Ordenei-lheque as recolhesse. Não se mexeu.

Dói-me confessar que tirei o revólver e repeti a ordem emvoz mais alta.

Bhagwan Dass balbuciou:– Mais vale uma bala no peito do que uma pedra azul

na mão.– Você é um covarde – disse-lhe.Eu estava, creio, não menos apavorado, mas fechei os

olhos e peguei um punhado de pedras com a mão esquerda.Guardei o revólver e deixei-as cair na palma aberta da outra.Seu número era muito maior,

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Sem saber, já estava acostumando-me a essas transforma-ções. Surpreenderam-me menos que os gritos de Bhagwan Dass.

– São as pedras que procriam! – exclamou. – Agora sãomuitas, mas podem mudar. Têm a forma da lua quando estácheia e essa cor azul que só é permitido ver nos sonhos. Os paisde meus pais não mentiam quando falavam de seu poder.

A aldeia inteira cercava-nos.Senti-me o mágico possuidor dessas maravilhas. Ante o

assombro unânime, apanhava os discos, elevava-os, deixava-os cair, espalhava-os, via-os crescer e multiplicar-se ou diminuir estranhamente.

As pessoas aglomeravam-se, acometidas de estupor e dehorror. Os homens obrigavam suas mulheres a olharem o pro-dígio. Uma tapava o rosto com o antebraço, outra fechava aspálpebras. Ninguém se animou a tocar os discos, salvo ummenino feliz que brincou com eles. Naquele momento sentique essa desordem estava profanando o milagre. Juntei todosos discos que pude e voltei para a choça.

Talvez tenha tentado esquecer o resto daquele dia, que foio primeiro de uma série de desventuras que não terminouainda. O certo é que não lembro. Por volta do entardecer, pen-sei com nostalgia na véspera, que não havia sido particular-mente feliz, já que esteve povoada, como as outras, pela obses-são do tigre. Quis amparar-me nessa imagem, antes armadade poder e agora insignificante. O tigre azul pareceu-me nãomenos inócuo que o cisne negro do romano, que descobriramdepois na Austrália.

Releio minhas notas anteriores e comprovo que cometium erro capital. Desviado pelo hábito dessa boa ou má litera-tura que pessimamente se chama psicológica, quis recuperar, não sei por quê, a sucessiva crônica de minha descoberta.Mais me teria valido insistir na monstruosa índole dos discos.

Se me dissessem que há unicórnios na lua, eu aprovaria ourejeitaria essa informação ou retiraria minha opinião, maspoderia imaginá-los. Em compensação, se me dissessem que na

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lua seis ou sete unicórnios podem ser três, eu afirmaria de ante-mão que o fato é impossível. Quem entendeu que três e um sãoquatro não faz a prova com moedas, com dados, com peças dexadrez ou com lápis. Entende a coisa e basta. Não pode conce-ber outra cifra. Há matemáticos que afirmam que três e um éuma tautologia de quatro, um modo diferente de dizer quatro... Coube a mim, Alexander Craigie, a sorte de descobrir, entretodos os homens da terra, os únicos objetos que contradizemessa lei essencial da mente humana.

A princípio eu temera estar louco; com o tempo, creio queteria preferido estar louco, já que minha alucinação pessoalimportaria menos que a prova de que no universo cabe adesordem. Se três e um podem ser dois ou podem ser catorze, a razão é uma loucura.

Naquele tempo adquiri o hábito de sonhar com as pedras. A circunstância de que o sonho não voltasse todas as noitesme concedia um resquício de esperança, que não tardava aconverter-se em terror. O sonho era mais ou menos o mesmo. O princípio anunciava o temido fim. Uma varanda e unsdegraus de ferro que desciam em espiral e depois um porãoou um sistema de porões que se afundavam em outras escadas cortadas quase a pique, em ferrarias, em serralharias, emcalabouços e em pântanos. No fundo, em sua esperada fenda, as pedras, que eram também Behemoth ou Leviatã, os animaisque significam na Escritura que o Senhor é irracional. Eu acor-dava tremendo e aí estavam as pedras na gaveta, prontas parase transformarem.

As pessoas estavam diferentes comigo. Alguma coisa dadivindade dos discos, que eles apelidavam de tigres azuis, havia-me tocado, mas também sabiam que eu era culpado porhaver profanado o cume. A qualquer instante da noite, a qual-quer instante do dia, os deuses podiam castigar-me. Não seatreveram a atacar-me ou a condenar meu ato, mas notei quetodos eram agora perigosamente servis. Não voltei a ver ogaroto que havia brincado com os discos. Temi o veneno ou um

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punhal nas costas. Uma manhã, antes da aurora, evadi-meda aldeia. Senti que a população inteira me espiava e queminha fuga foi um alívio. Ninguém, desde aquela primeiramanhã, havia querido ver as pedras.

Voltei a Lahore. Em meu bolso estava o punhado de discos. O âmbito familiar de meus livros não me trouxe o alívioque eu procurava. Senti que no planeta persistiam a tediosaaldeia e a selva e o declive espinhoso com o planalto e no pla-nalto as pequenas fendas e nas fendas as pedras. Meus sonhosconfundiam e multiplicavam essas coisas díspares. A aldeiaeram as pedras, a selva era o pântano e o pântano era a selva.

Fugi da companhia de meus amigos. Temi ceder à tentação de mostrar-lhes esse milagre atroz que solapava a ciênciados homens.

Ensaiei diversas experiências. Fiz uma incisão em formade cruz em um dos discos. Misturei-o aos demais e perdi-odepois de uma ou duas conversões, apesar de ter aumentadoo número dos discos. Fiz uma prova análoga com um discoque havia aparado com uma lima, um arco de círculo. Estetambém se perdeu. Com um buril, abri um orifício no centrode um disco e repeti a operação. Perdi-o para sempre. No diaseguinte, retornou de sua permanência no nada o disco dacruz. Que misterioso espaço era esse, que absorvia as pedras edevolvia com o tempo uma ou outra, obedecendo a leis ines-crutáveis ou a um arbítrio inumano?

O mesmo desejo de ordem que no princípio criou a mate-mática fez com que eu procurasse uma ordem nessa aberraçãoda matemática que são as insensatas pedras que procriam. Em suas imprevisíveis variações quis encontrar uma lei. Con-sagrei os dias e as noites a fixar uma estatística das mudanças. Dessa etapa conservo alguns cadernos, em vão carregados decifras. Meu procedimento era este. Contava com os olhos aspeças e anotava o número. Depois as dividia em dois punhados, que eu jogava sobre a mesa. Contava as duas cifras, anotava-as e repetia a operação. Inútil foi a busca de uma ordem, de

Page 22: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

um desenho secreto nas rotações. O máximo de peças que con-segui foi 419; o mínimo, três. Houve um momento em que espe-rei, ou temi, que desaparecessem. Pouco depois de ensaiar, comprovei que um disco isolado dos outros não podia multipli-car-se ou desaparecer.

Naturalmente, as quatro operações de somar, subtrair,multiplicar ou dividir eram impossíveis. As pedras negavam-se à aritmética e ao cálculo de probabilidades. Quarenta discos podiam, divididos, dar nove; os nove divididos, por sua vez, podiam ser trezentos. Não sei quanto pesavam. Não recorri a uma balança, mas tenho certeza de que seupeso era constante e leve. A cor era sempre aquele azul.

Essas operações ajudaram-me a salvar-me da loucura. Ao manipular as pedras que destroem a ciência matemática, pensei mais de uma vez naquelas pedras do grego que foramos primeiros algarismos e que legaram a tantos idiomas apalavra "cálculo". A matemática, disse a mim mesmo, tem suaorigem e agora seu fim nas pedras. Se Pitágoras houvesse feitoas operações com estas...

No fim de um mês, compreendi que o caos era inextricável. Indômitos, aí estavam os discos e a perpétua tentação detocá-los, de voltar a sentir comichão, de atirá-los, de vê-losaumentar ou diminuir e de prestar atenção em pares ou impa-res. Cheguei a temer que contaminassem as coisas e particu-larmente os dedos que insistiam em manipulá-los.

Durante alguns dias, impus-me o íntimo dever de pensarcontinuamente nas pedras, porque sabia que o esquecimentosó podia ser momentâneo e que redescobrir meu tormento seria intolerável.

Não dormi na noite de 10 de fevereiro. Após uma caminhada que me levou até a aurora, transpus os portais da mesquita de Wazil Khan. Era a hora em que a luz não revela aindaas cores. Não havia vivalma no pátio. Sem saber por quê, me-gulhei as mãos na água da cisterna. Já no recinto, pensei queDeus e Alá são dois nomes de um único Ser inconcebível

Page 23: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

e pedi-lhe em voz alta que me livrasse de minha carga. Imóvel, aguardei uma resposta.

Não ouvi os passos, mas uma voz próxima disse-me:– Aqui estou.Ao meu lado estava o mendigo. Decifrei no crepúsculo o

turbante, os olhos apagados, a pele citrina e a barba cinzenta. Não era muito alto.

Estendeu-me a mão e disse-me, sempre em voz baixa:– Uma esmola, Protetor dos Pobres.Procurei e respondi-lhe:– Não tenho uma única moeda.– Você tem muitas – foi a resposta.Em meu bolso direito estavam as pedras. Tirei uma e deixei-

a cair na mão oca. Não se ouviu o menor ruído.– Você tem de dar-me todas – disse-me. – Aquele que não

deu tudo não deu nada.Compreendi e disse-lhe:–Quero que você saiba que minha esmola pode ser

espantosa.Respondeu-me:–Talvez essa esmola seja a única que eu possa receber.

Pequei.Deixei cair todas as pedras na mão côncava. Caíram como

no fundo do mar, sem o mais leve rumor.Depois, disse-me:–Não sei ainda qual é sua esmola, mas a minha é espantosa.

Você fica com os dias e as noites, com a prudência, comos hábitos, com o mundo.

Não ouvi os passos do mendigo cego nem o vi perder-sena aurora.

Page 24: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

A ROSA DE PARACELSO

DE QUINCEY: Writings, XIII, 345.

Em sua oficina, que abrangia os dois quartos do porão, Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, aqualquer Deus, que lhe enviasse um discípulo. Entardecia. O escasso fogo da lareira lançava sombras irregulares. Levantar-se para acender o candeeiro de ferro dava trabalhodemais. Paracelso, distraído pela fadiga, esqueceu suaprece. A noite havia apagado os empoeirados alambiques eo cadinho quando bateram à porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve escada de caracol e abriu umadas folhas da porta. Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso indicou-lhe um banco; o outrosentou-se e esperou. Durante algum tempo não trocaramuma palavra.

O mestre foi o primeiro a falar.– Lembro rostos do Ocidente e rostos do Oriente – disse,

não sem certa pompa. – Não recordo o seu. Quem é você e oque deseja de mim?

– Meu nome é o de menos – replicou o outro. – Caminheidurante três dias e três noites para entrar em sua casa. Queroser seu discípulo. Trago todos os meus bens.

Tirou um saco e virou-o sobre a mesa. As moedas erammuitas e de ouro. Fez isso com a mão direita. Paracelso lhetinha dado as costas para acender o candeeiro. Quando sevirou, percebeu que a mão esquerda segurava uma rosa. A rosao inquietou.

Recostou-se, juntou a ponta dos dedos e disse:

Page 25: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

–Você me julga capaz de elaborar a pedra que transformatodos os elementos em ouro e oferece-me ouro. Não é ouro o que procuro, e, se o ouro lhe interessa, você nunca será meudiscípulo.

– O ouro não me interessa – respondeu o outro. – Essasmoedas são apenas uma parte de minha vontade de trabalha r.Quero que você me ensine a Arte. Quero percorrer a seu ladoo caminho que conduz à Pedra.

Paracelso disse com lentidão:– O caminho é a Pedra. O ponto de partida é a Pedra.

Se não entende estas palavras, você não começou a entenderainda. Cada passo que você der será a meta.

O outro olhou-o com receio. Disse com voz diferente:– Mas há uma meta?Paracelso riu.– Meus detratores, que não são menos numerosos que

estúpidos, dizem que não e me chamam de impostor. Não lhesdou razão, mas não é impossível que seja um iludido. Sei que "há" um Caminho.

Houve um silêncio, e o outro disse:– Estou pronto para percorrê-lo com você, embora deva-mos

caminhar muitos anos. Deixe-me atravessar o deserto. Deixe-me divisar, ainda que de longe, a terra prometida, apesar de os astros não me deixarem pisá-la. Quero uma prova, antes de empreender o caminho.

– Quando? – disse Paracelso com inquietação.– Agora mesmo – disse o discípulo com brusca decisão.Começaram falando em latim; agora, em alemão.O rapaz ergueu a rosa no ar.– É fama – disse ele – que você pode queimar uma rosa e

fazê-la ressurgir das cinzas, por obra de sua arte. Deixe-me sertestemunha desse prodígio. Isso lhe peço, e dar-lhe-ei depoisminha vida inteira.

– Você é muito crédulo – disse o mestre. – Não preciso dacredulidade; exijo a fé.

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O outro insistiu.–Precisamente porque não sou crédulo quero ver com

meus olhos a extinção e a ressurreição da rosa.Paracelso a havia segurado e, ao falar, brincava com ela.–Você é crédulo – disse. – Você diz que sou capaz de

destruí-la?–Ninguém é capaz de destruí-la – disse o discípulo.– Você está enganado. Porventura, acredita que algo

pode ser devolvido ao nada? Você acredita que o primeiroAdão no Paraíso conseguiu destruir uma única flor ou umfiapo de capim?

– Não estamos no Paraíso – disse teimosamente o rapaz – ;aqui, sob a lua, tudo é mortal.

Paracelso havia-se posto de pé.– Em que outro lugar estamos? Você acha que a divindade

pode criar um lugar que não seja o Paraíso? Acredita que aQueda não é outra coisa senão ignorar que estamos no Paraíso?

– Uma rosa pode queimar-se – disse com desafio o dis-cípulo.

– Ainda resta fogo na lareira – disse Paracelso. – Se vocêatirasse esta rosa às brasas, acreditaria que foi consumida eque as cinzas são verdadeiras. Digo-lhe que a rosa é eternae que só sua aparência pode mudar. Para mim, uma palavrabastaria para que você a visse de novo.

– Uma palavra? – disse com estranheza o discípulo. -O cadinho está apagado e os alambiques estão cheios depó. O que faria você para que ressurgisse?

Paracelso olhou-o com tristeza.– O cadinho está apagado – repetiu – e os alambiques

estão cheios de pó. Neste trecho de minha longa jornada usooutros instrumentos.

– Não me atrevo a perguntar quais são – disse o outrocom astúcia ou com humildade.

– Falo daquilo que a divindade usou para criar os céus ea terra e o invisível Paraíso em que estamos e que o pecado

Page 27: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

original nos oculta. Falo da Palavra que nos ensina a ciênciada Cabala.

O discípulo disse com frieza:– Peço-lhe a gentileza de mostrar-me o desaparecimento

e o aparecimento da rosa. Não me importa que você operecom alquitaras ou com o Verbo.Paracelso refletiu. Por fim, disse:

– Se eu fizesse isso, você diria que se trata de uma aparên-cia imposta pela magia de seus olhos. O prodígio não lhe dariaa fé que você procura. Portanto, deixe a rosa.

O jovem olhou-o, sempre receoso. O mestre levantou avoz e disse-lhe:

–Além disso, quem é você para entrar na casa de ummestre e exigir-lhe um prodígio? Que fez você para merecersemelhante dádiva?

O outro replicou, trêmulo:–Já sei que não fiz nada. Peço-lhe em nome dos muitos

anos que estudarei a sua sombra que você me deixe ver as cin-zas e depois a rosa. Não lhe pedirei mais nada. Acreditarei notestemunho de meus olhos.

Bruscamente, pegou a rosa encarnada que Paracelsohavia deixado sobre a escrivaninha e lançou-a às chamas.A cor perdeu-se e só ficou um pouco das cinzas. Durante uminstante infinito esperou as palavras e o milagre.

Paracelso não se alterara. Disse com curiosa simplicidade:–Todos os médicos e todos os boticários de Basiléia afir-

mam que sou um embusteiro. Talvez estejam certos. Aí estãoas cinzas que a rosa foi e que não tornará.

O rapaz sentiu vergonha. Paracelso era um charlatão ouum mero visionário, e ele, um intruso, havia franqueado suaporta e obrigava-o agora a confessar que suas famosas artesmágicas eram vãs.Ajoelhou-se e disse-lhe:

– Agi de modo imperdoável. Faltou-me a fé, que o Senhorexigia dos crentes. Deixe que continue vendo a cinza. Voltarei

Page 28: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

quando for mais forte e serei seu discípulo, e no fim do Cami-nho verei a rosa.

Falava com genuína paixão, mas essa paixão era a piedade que lhe inspirava o velho mestre, tão venerado, tão agredido, tão insigne e, portanto, tão vazio. Quem era ele, JohannesGrisebach, para descobrir com mão sacrílega que por trás damáscara não havia ninguém?

Deixar-lhe as moedas de ouro seria uma esmola. Retomou-as ao sair. Paracelso acompanhou-o até o pé da escada edisse-lhe que nessa casa sempre seria bem-vindo. Ambossabiam que não voltariam a ver-se.

Paracelso ficou só. Antes de apagar o candeeiro e de sentar-se na fatigada poltrona, virou o tênue punhado de cinzasna mão côncava e disse uma palavra em voz baixa. A rosaressurgiu.

Page 29: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE

Há devotos de Goethe, das Eddas e do tardio cantar dosNibelungos; Shakespeare foi meu destino. Ainda é, mas deum modo que ninguém teria podido pressentir, salvo umúnico homem, Daniel Thorpe, que acaba de morrer em Pretó-ria. Há outro cujo rosto nunca vi.

Sou Hermann Soergel. O curioso leitor talvez tenhafolheado minha "Cronologia de Shakespeare", que achei sernecessária certa vez à boa inteligência do texto e que foi tradu-zida para vários idiomas, inclusive o castelhano. Não é impos-sível que recorde também uma prolongada polêmica sobrecerta emenda que Theobald intercalou em sua edição crítica de1734 e que, desde essa data, é parte não discutida do cânone. Hoje, surpreende-me o tom incivil daquelas quase alheiaspáginas. Por volta de 1914 redigi, e não entreguei à publicação, um estudo sobre as palavras compostas que o helenista e dra-maturgo George Chapman forjou para suas versões homéricase que retrocedem o inglês, sem que ele pudesse suspeitar disso, a sua origem (Urprung) anglo-saxônica. Nunca pensei que suavoz, que esqueci agora, ser-me-ia familiar... Alguma separataassinada com iniciais completa, creio, minha biografia literária. Não sei se é lícito acrescentar uma versão inédita de Macbeth, que realizei para não continuar pensando na morte de meuirmão Oito Julius, que caiu na frente ocidental em 1917. Não aconcluí; compreendi que o inglês dispõe, para seu bem, de doisregistros – o germânico e o latino –, enquanto nosso alemão, apesar de sua melhor música, deve limitar-se a um só.

Nomeei Daniel Thorpe. Apresentou-o a mim o majorBarclay, em certo congresso shakespeariano. Não direi o lugarnem a data; sei muito bem que tais precisões são, na realidade,

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imprecisões.Mais importante que o rosto de Daniel Thorpe, que

minha cegueira parcial me ajuda a esquecer, era sua notóriainfelicidade. Ao longo dos anos, um homem pode simularmuitas coisas, mas não a felicidade. De modo quase físico, Daniel Thorpe exalava melancolia.

Depois de uma longa sessão, a noite encontrou-nos emuma taverna qualquer. Para sentir-nos na Inglaterra (onde jáestávamos), apuramos em rituais jarras de peltre, cerveja mornae negra.

– No Punjab – disse o major – mostraram-me um mendigo. Uma tradição do Islã atribui ao rei Salomão um anel quelhe permitia entender a língua dos pássaros. Era fama que omendigo tinha em seu poder o anel. Seu valor era tão inesti-mável que nunca pôde vendê-lo e morreu em um dos pátiosda mesquita de Wazil Khan, em Lahore.

Pensei que Chaucer não desconhecesse a fábula do prodi-gioso anel, mas dizê-lo teria sido o mesmo que estragar a his-torieta de Barclay.

– E o anel? – perguntei.– Perdeu-se, segundo o costume dos objetos mágicos.

Talvez esteja agora em algum esconderijo da mesquita ou namão de um homem que viva em algum lugar onde faltempássaros.

– Ou onde haja tantos – disse – que o que dizem se confunde.

– Sua história, Barclay, tem alguma coisa de parábola.Foi então que Daniel Thorpe falou. Ele o fez de modo im-

pessoal, sem olhar-nos. Pronunciava o inglês de modo peculiar, que atribuí a uma longa permanência no Oriente.

– Não é uma parábola – disse ele –, e, se o for, é verdade. Há coisas de um valor tão inestimável que não podem servendidas.

As palavras que tento reconstruir me impressionarammenos do que a convicção com que as disse Daniel Thorpe.

Page 31: Jorge Luis Borges - A Memória de Shakespeare

Achamos que diria algo mais, mas de repente calou-se, comoque arrependido. Barclay despediu-se. Juntos, nós dois volta-mos ao hotel. Era muito tarde, mas Daniel Thorpe propôs-meque prosseguíssemos a conversa em seu quarto. Após algumas trivialidades, disse-me:

– Ofereço-lhe o anel do rei. É claro que se trata de umametáfora, mas o que essa metáfora encobre não é menos pro-digioso que o anel. Ofereço-lhe a memória de Shakespeare desde os dias mais pueris e antigos até os do início de abril de 1616.

Não acertei em pronunciar uma palavra. Foi como se meoferecessem o mar.

Thorpe continuou:–Não sou um impostor. Não estou louco. Rogo-lhe que

não julgue até depois de ouvir-me. O major deve ter-lhe ditoque sou, ou era, médico militar. A história cabe em poucaspalavras. Começa no Oriente, ao alvorecer, em um hospital desangue. A data precisa não importa. Em suas últimas palavras, um soldado raso, Adam Clay, que havia sido atingido porduas descargas de fuzil, ofereceu-me, pouco antes do fim, apreciosa memória. A agonia e a febre são inventivas; aceiteia oferta sem dar-lhe crédito. Além disso, depois de uma açãode guerra, nada é muito estranho. Mal teve tempo de explicar-me as singulares condições do presente. O possuidor tem deoferecê-lo em voz alta e o outro, de aceitá-lo. Aquele que o ofe-rece perde-o para sempre.

O nome do soldado e a cena patética da entrega pareceram-me literários, no mau sentido da palavra.

Um pouco intimidado, perguntei-lhe:–O senhor, agora, tem a memória de Shakespeare?Thorpe respondeu:– Tenho, ainda, duas memórias. A minha pessoal e a

daquele Shakespeare que parcialmente sou. Ou melhor, duasmemórias me têm. Há uma zona em que se confundem. Há umrosto de mulher que não sei a que século atribuir.

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Perguntei-lhe então:– O que fez o senhor com a memória de Shakespeare?Houve um silêncio. Depois disse:– Escrevi uma biografia romanceada que mereceu o des-

dém da crítica e algum sucesso comercial nos Estados Unidose nas colônias. Acho que é tudo. Preveni-o de que meu presente não é uma sinecura. Continuo à espera de sua resposta.

Fiquei pensando. Não havia consagrado minha vida, nãomenos incolor que estranha, à busca de Shakespeare? Não seriajusto que no fim da jornada eu desse com ele?

Disse, articulando bem cada palavra:– Aceito a memória de Shakespeare.Algo, sem dúvida, aconteceu, mas não percebi.Apenas um princípio de fadiga, talvez imaginária.Lembro claramente que Thorpe me disse:– A memória já entrou em sua consciência, mas é preciso

descobri-la. Surgirá nos sonhos, na vigília, ao virar as folhasde um livro ou ao dobrar uma esquina. O senhor não se impa-ciente, não invente lembranças. O acaso pode favorecê-lo ouatrasá-lo, segundo seu misterioso modo. A medida que eu váesquecendo, o senhor recordará. Não lhe prometo um prazo.

O que sobrava da noite foi dedicado a discutir o caráterde Shylock. Abstive-me de indagar se Shakespeare havia tidocontato pessoal com judeus. Não quis que Thorpe imaginasseque eu o submetia a uma prova. Comprovei, não sei se comalívio ou com inquietação, que suas opiniões eram tão acadê-micas e tão convencionais como as minhas.

Apesar da vigília anterior, quase não dormi na noiteseguinte. Descobri, como em outras tantas ocasiões, que euera um covarde. Pelo temor de ser defraudado, não me entre-guei à generosa esperança. Quis pensar que era ilusório o pre-sente de Thorpe. Irresistivelmente, a esperança prevaleceu. Shakespeare seria meu, como ninguém foi de ninguém, nemno amor, nem na amizade, nem sequer no ódio. De algummodo eu seria Shakespeare. Não escreveria as tragédias nem

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os intrincados sonetos, mas recordaria o instante em que meforam reveladas as bruxas, que também são as parcas, e aquele outro em que me foram dadas as vastas linhas:

And shake the yoke of inauspicious starsFrom this worldweary flesh.

Lembraria Anne Hathaway como lembro aquela mulher, já madura, que me ensinou o amor em um apartamento deLübeck, há tantos anos. (Tentei recordá-la e só pude recuperar o papel de parede, que era amarelo, e a claridade quevinha da janela. Esse primeiro fracasso deveria antecipar-meos demais.)

Eu havia postulado que as imagens da prodigiosa memória seriam, antes de mais nada, visuais. Não foi o que aconteceu. Dias depois, ao barbear-me, pronunciei ante o espelhoalgumas palavras que me surpreenderam e que pertenciam, como um colega me assinalou, ao A, B, C de Chaucer. Uma tarde, ao sair do Museu Britânico, assobiei uma melodia muito simples que nunca ouvira.

Já terá o leitor percebido o traço comum dessas primeirasrevelações de uma memória que era, apesar do esplendor dealgumas metáforas, bem mais auditiva do que visual.

De Quincey afirma que o cérebro do homem é um palimp-sesto. Cada nova escrita encobre a escrita anterior e é encoberta pela seguinte, mas a todo-poderosa memória podeexumar qualquer impressão, por mais momentânea quetenha sido, se lhe derem o suficiente estímulo. A julgar porseu testamento, não havia um único livro, nem sequer aBíblia, na casa de Shakespeare, mas ninguém ignora asobras que freqüentou. Chaucer, Gower, Spenser, ChristopherMarlowe, a Crônica de Holinshed, o Montaigne de Florio, oPlutarco de North. Eu possuía de maneira latente a memória de Shakespeare; a leitura, quer dizer, a releitura dessesvelhos volumes seria o estímulo que procurava. Relitambém os sonetos, que são sua obra mais imediata. Em algum

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momento encontrei a explicação ou várias explicações. Os bons versos impõem a leitura em voz alta; depois dealguns dias recuperei sem esforço os erres ásperos e as vogais abertas do século XVI.

Escrevi na Zeitschrift für germanische Philologie que o sone-to 127 referia-se à memorável derrota da Armada Invencível. Não lembrei que Samuel Butler, em 1899, já havia formuladoessa tese.

Uma visita a Stratford-on-Avon foi, previsivelmente, estéril.Depois ocorreu a transformação gradual de meus sonhos.

Não me foram oferecidos, como a De Quincey, pesadelosesplêndidos nem piedosas visões alegóricas, à maneira de seumestre, Jean Paul. Rostos e quartos desconhecidos adentraramminhas noites. O primeiro rosto que identifiquei foi o deChapman; depois, o de Ben Jonson e o de um vizinho do poeta, que não consta nas biografias, mas que Shakespeare veria comfreqüência.

Quem adquire uma enciclopédia não adquire cada linha, cada parágrafo, cada página e cada gravura; adquire a merapossibilidade de conhecer algumas dessas coisas. Se isso acon-tece com um ente concreto e relativamente simples, tendo emvista a ordem alfabética das partes, o que não acontecerá com um ente abstrato e variável, ondoyant et divers, como a mágicamemória de um morto?

A ninguém é dado abarcar em um único instante a plenitude de seu passado. Nem a Shakespeare, que eu saiba, nem amim, que fui seu parcial herdeiro, ofereceram esse dom. A memória do homem não é uma soma; é uma desordem depossibilidades indefinidas. Santo Agostinho, se não me engano, fala dos palácios e cavernas da memória. A segunda metáfora é a mais justa. Foi nessas cavernas que entrei.

Tal como a nossa, a memória de Shakespeare incluíazonas, grandes zonas de sombra repelidas voluntariamentepor ele. Não sem algum escândalo lembrei que Ben Jonsonfazia-lhe recitar hexâmetros latinos e gregos e que o ouvido, o

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incomparável ouvido de Shakespeare, costumava errar umaquantidade deles, em meio às risadas dos colegas.

Conheci estados de felicidade e de sombra que transcendem a comum experiência humana. Sem que eu soubesse, alonga e estudiosa solidão havia-me preparado para a dócilrecepção do milagre.

Depois de uns trinta dias, a memória do morto animava-me. Durante uma semana de curiosa felicidade, quase acrediteiser Shakespeare. A obra renovou-se para mim. Sei que a lua, para Shakespeare, era menos a lua que Diana e menos Dianaque essa obscura palavra que se demora: moon. Anotei outradescoberta. As aparentes negligências de Shakespeare, essasabsence dans l'infini de que apologeticamente fala Hugo, foramdeliberadas. Shakespeare tolerou-as, ou as intercalou, para queseu discurso, destinado à cena, parecesse espontâneo, nemburilado nem artificial demais (nicht allzu glatt und gekünstelt),Essa mesma razão levou-o a misturar suas metáforas.

my way of lifeIs fall´n into the sear, the yellow leaf.

Certa manhã discerni uma culpa no fundo de sua memória, Não procurei defini-la; Shakespeare o fez para sempre.Para mim, basta declarar que essa culpa nada tinha em comum com a perversão.

Compreendi que as três faculdades da alma humana, memória, entendimento e vontade, não são uma ficção esco-lástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outracoisa que as circunstâncias de Shakespeare. É evidente queestas não constituem a singularidade do poeta; o que importaé a obra que executou com esse material inconsistente.

Ingenuamente, eu havia premeditado, como Thorpe, umabiografia. Não demorei em descobrir que esse gênero Literáriorequer condições de escritor que por certo não são minhas. Nãosei narrar. Não sei narrar minha própria história, que é bemmais extraordinária que a de Shakespeare. Além do mais, esse

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livro seria inútil. O acaso ou o destino deram a Shakespeare astriviais coisas terríveis que todo homem conhece; ele soubetransmutá-las em fábulas, em personagens muito mais vividosque o homem cinza que sonhou com eles, em versos que asgerações não deixarão desaparecer, em música verbal. Para quedestecer essa rede, para que minar a torre, para que reduzir àsmódicas proporções de uma biografia documental ou de umromance realista o som e a fúria de Macbeth?

Goethe constitui, segundo se sabe, o culto oficial da Alema-nha; mais íntimo é o culto a Shakespeare, que professamos comnostalgia. {Na Inglaterra, Shakespeare, que tão distante está dosingleses, constitui o culto oficial; o livro da Inglaterra é a Bíblia.)

Na primeira etapa da aventura senti a felicidade de serShakespeare; na última, a opressão e o terror. No início, asduas memórias não misturavam suas águas. Com o tempo, ogrande rio de Shakespeare ameaçou, e quase afogou, meumodesto caudal. Percebi com temor que estava esquecendo alíngua de meus pais. Já que a identidade pessoal baseia-se namemória, temi por minha razão.

Meus amigos vinham visitar-me; assombrou-me que nãopercebessem que eu estava no inferno.

Comecei a não entender as coisas cotidianas que me ro-deavam (díe alltägliche Umwelt).1 Certa manhã perdi-me entregrandes formas de ferro, de madeira e de cristal. Aturdiram-me assobios e clamores. Demorei um instante, que pôde pare-cer-me infinito, em reconhecer as máquinas e vagões da esta-ção de Brêmen.

À medida que transcorrem os anos, todo homem é obrigado a suportar o crescente peso de sua memória. Duas me angustiavam, confundindo-se às vezes: a minha e a do outro, incomunicável.

Todas as coisas querem perseverar em seu ser, escreveu

1 "O meio ambiente cotidiano." (N. da T.)

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Spinoza. A pedra quer ser uma pedra, o tigre, um tigre, euqueria voltar a ser Hermann Soergel.

Esqueci a data em que decidi libertar-me. Dei com ométodo mais fácil. No telefone marquei números ao acaso.Vozes de criança ou de mulher respondiam. Achei que meudever era respeitá-las. Dei por fim com uma voz culta dehomem. Disse-lhe:

– Você quer a memória de Shakespeare? Sei que o que lheofereço é muito sério. Pense bem.

Uma voz incrédula replicou:– Enfrentarei esse risco. Aceito a memória de Shakespeare.Declarei as condições da dádiva. Paradoxalmente, sentia ao

mesmo tempo a nostalgia do livro que eu deveria ter escrito e que me foi proibido escrever e o temor de que o hóspede, o espectro, nunca me deixasse.

Desliguei o telefone e repeti como uma esperança estasresignadas palavras:

Simply the thing I am shall make me live.Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga

memória; tive de buscar outras para apagá-la. Uma entre tantas foi o estudo da mitologia de William Blake, discípulo rebelde de Swedenborg. Comprovei que era menos complexa doque complicada.

Esse e outros caminhos foram inúteis; todos levavam-mea Shakespeare.

Encontrei, enfim, a única solução para povoar a espera: aestrita e vasta música, Bach.

PS. 1924 – Já sou um homem entre os homens. Na vigíliasou o professor emérito Hermann Soergel; manuseio umfichário e redijo trivialidades eruditas, mas na aurora sei, algu-mas vezes, que aquele que sonha é o outro. De vez em quando, surpreendem-me pequenas e fugazes memórias que talvez sejam

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autênticas.

Í N D I C E

A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE

Vinte e cinco de agosto, 1983..... 425Tigres azuis................................ 430A rosa de Paracelso.................... 440A memória de Shakespeare........ 444

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