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Entrevista Traço 14 “A cenografia é a arquitectura do tempo limitado”

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Entrevista ao arquitecto João Mendes Ribeiro no âmbito do tema Arquitectura e Cenografia

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Entrevista Traço14

“A cenografia é aarquitectura do

tempo limitado”

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Texto: Ana Rita Sevilha | Fotos: D.R.

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Éarquitecto e cenógrafo, e sublinhaque esta última pode funcionar

como extensão do trabalho da primeira.Entende a cenografia como um aconteci-mento espacial, ressalvando que é forte-mente marcada pelo sentido daefemeridade.

A cenografia pode funcionar como ex-perimentação arquitectónica? Em quemedida?

Embora consideradas disciplinas subs-tancialmente distintas, a cenografia podeconstituir uma extensão do trabalho em ar-quitectura, enquanto experimentação detemas e linguagens comuns. Não se trata ex-clusivamente de reproduzir em palco mo-delos arquitectónicos, mas também deaveriguar como pode a arquitectura ser re-presentada a partir de usos que lhe são afinsou o modo como é entendida e habitada.Trata-se ainda da utilização de signos ar-quitectónicos para sugerir espaços e situa-ções contidas na dramaturgia. De algumaforma, pode-se afirmar que a arquitecturase transforma em objecto cénico e este emelemento configurador do espaço numa es-treita relação com o corpo do intérprete. Ascenografias constroem espaço, propondoque o intérprete se mobilize, utilizando-o.Aproximando-se à arquitectura, enquantolugar de vivências afectivas. É por meio daacção dos intérpretes e da sua relação como espaço e objectos cénicos (elementos me-diadores da relação com o lugar) que sepode sugerir a vivência desse lugar. Nessesentido é necessário que as acções no palco,nomeadamente a relação dos intérpretescom os objectos, correspondam a uma vi-vência efectiva e não a uma prática simu-lada, para que os espectadores se possamrelacionar (e identificar) com o lugar, o con-texto do espectáculo.

No que é que estas duas “artes” setocam?

Entendo a cenografia como um aconteci-mento espacial, os dispositivos cénicos in-corporam estruturas eminentementearquitectónicas (tanto na forma como nosmateriais), procurando reflectir sobre apassagem de um espaço destinado apenasà percepção visual, para um espaço viven-cial, centrado no corpo do intérprete. A ce-nografia é, neste contexto, abordada doponto de vista da experimentação de pro-cessos e linguagens comuns à arquitectura,a partir de temas como a autenticidade ma-terial e construtiva, ou o recurso a objectosgeométricos e modulares. Os dispositivoscénicos convocam noções de volume, es-cala, gravidade, espessura, densidade, queremetem para a própria tradição da arqui-

tectura e, simultaneamente, para a relaçãoque esta estabelece com os intérpretes, con-vocando o corpo e afectando o modo comoeste experiencia os objectos cénicos.

A cenografia pode ser entendida comoarquitectura efémera?

A cenografia é fortemente marcada pelosentido da efemeridade do acontecimento cé-nico, da rápida passagem do tempo; é, por ex-celência, a arte do efémero e assenta numdiscurso próprio da sua precaridade. A ceno-grafia é a arquitectura do tempo limitado, odesenho com prazo de validade. A arquitec-tura ligeira e nómada, projectada para a suaconstrução e também para o seu desmantela-mento. Como refere a crítica de dança MónicaGuerreiro, “à arquitectura exigimos pereni-dade e adaptabilidade, resistência à circuns-tancialidade de significados e potencialidades;à cenografia, efemeridade, transportabilidade,sugestão cartográfica de movimento e per-cursos até à enésima repetição”.

E a arquitectura, procura criar espa-ços cénicos?

Interessa-me sobretudo o contrário,

transportar a arquitectura para o palco,para surgir como uma nova linguagem que,levada ao limite, tenta criar pontos de ro-tura, subvertendo os papéis. De facto, osprojectos cenográficos transformam ele-mentos arquitectónicos em objectos simbó-licos, sublinhando o seu valor plástico econceptual. Contudo, este desvio funcionalnão os reduz necessariamente a meros ob-jectos de contemplação estética, mas traduzum desvio face a uma concepção estrita-mente funcionalista da arquitectura, paraacentuar a qualidade plástica dos objectosna construção da narrativa e na represen-tação de uma realidade sublimada pela es-tética, pelo simbólico.

Acha que a arquitectura incorpora va-lores cinematográficos e o cinema valo-res arquitectónicos?

A relação e intersecção entre arquitecturae cinema existe desde que existe o cinema.O uso e a presença da arquitectura é recor-rente na história do cinema. Penso que é so-bretudo o cinema que incorpora valoresarquitectónicos.

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“Vermelhos, Negros e Ignorantes”, de Eduard Bond, encenada por Paulo Castro

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Nesta relação entre as duas disciplinas aquestão central é de que modo a arquitec-tura é vista pelo cinema. Uma das vocaçõesmais evidentes do cinema contemporâneotem sido a de enfatizar algumas das confi-gurações possíveis da experiência do quoti-diano, afastando-se da noção da capacidademetafórica artificial do próprio teatro. Aocontrário do teatro tradicional, o cinemavolta-se mais para a vida do quotidiano,onde as rotinas diárias são analisadas parase transformarem em objecto da realização.Neste contexto, a apropriação de objectosarquitectónicos do quotidiano pode consti-tuir uma matriz de leitura e identificaçãopara o espectador. Esta corrente enquadra-se na tendência geral que, nas artes, carac-teriza a (re)utilização de materiaismundanos, urbanos e a reciclagem de pro-dutos da sociedade de consumo.

A fórmula do sucesso do cinema resideprecisamente na capacidade de criar acon-tecimentos em que o público pode facil-mente identificar-se, tendo como motivaçãoa narrativa e a forma de levar o cinema areflectir e a entrar no dia-a-dia, mesmo queseja só para criar ilusões. É neste contextoque a arquitectura pode ter um papel fun-damental.

No entanto, se, por um lado, o uso de ele-mentos proporciona uma aproximação ourelacionamento empático entre o público eo objecto arquitectónico por outro, o reco-nhecimento de formas familiares é tambémmotivo de estranheza, sobretudo se consi-derarmos a alteração de contexto. Muitasvezes, a arquitectura quando transportadapara o cinema, perde a sua verdade quoti-diana para entrar no plano poético da rea-

lização, investida de outra amplitude e sig-nificado.

O cinema propícia inusitados modos dever a arquitectura (com o olhar e a memó-ria), numa adequação que oscila, com fre-quência entre o reconhecimento e aestranheza, o insólito e o exagero. A pro-jecção num écran bidimensional funcionacomo um mecanismo de armadilhas per-ceptivas. A manipulação da escala, da massae densidade dos edifícios, desorienta as dis-tâncias, ilude os contextos. Trata-se de umprocesso de reelaboração da densidade dosmateriais e de convocação de mecanismosque iludem a perspectiva, gerando umaequívoca percepção do espaço. Nesse sen-tido, no cinema, abdica-se conscientementeda percepção habitual da arquitectura paraver de maneira diferente e extraordinária.Trata-se, no limite, de apontar o momentoem que o invisível, que se esconde em cadaobjecto, se torna matéria perceptiva.

Na cenografia, a arquitectura pode serusada para sugerir valores emocionaisaos personagens?

A transposição de formas e temas arqui-tectónicos para as artes cénicas está mui-tas vezes associada à retórica dos espaçoscénicos e ao seu sentido semântico, en-quanto oportunidade de abordagem críticade fenómenos sociais e humanos no con-texto da dramaturgia. A cenografia de “Pro-priedade Privada” de Olga Roriz constituium dos exemplos da arquitectura tornadatemática para reflectir uma visão singular ehíbrida da paisagem urbana e do conflitoabsurdo do que move as personagens. Re-presenta uma instalação habitada pelo

caos dos sentimentos e do sentido, ser-vindo a figura humana e diminuindo-anum contexto habitável. Procura-se explo-rar uma representação crítica da realidadea partir de um número concreto de activi-dades básicas do individuo e de elementospróprios da arquitectura. Expõem-se,assim, o conflito entre funcionalidade ecomportamento humano, expresso pelosintérpretes a partir de pequenos absurdos eparadoxos. Do mesmo modo, no espectá-culo “Entrada de Palhaços” encenado porAntónio Pires, tal como o caos dos senti-mentos das personagens, também o cená-

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“A casa de Bernarda Alba”, de FedericoGarcia Lorca, encenada por Diogo Infante

“Casa de Chá”, nas ruínas do Paço das Infantas no castelo de Montemor-o-Velho

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rio constitui uma estrutura híbrida ser-vindo, por um lado, a figura humana e, poroutro, constringindo-a no confronto comos espaços habitáveis. Em “Entrada de Pa-lhaços”, uma colecção de objectos procedea reconversões simbólicas do quotidianodas personagens, estabelecendo novas re-lações contextuais de espaço e escala.Assim, de aparente resposta a um pro-grama funcional, estabelece-se um absurdocontraponto onde o dispositivo cénico fun-ciona como cavidade extensiva do corpodos actores e, simultaneamente, como me-canismo de exclusão e repressão. Outroexemplo é o dispositivo cénico para a peçade teatro “A Casa de Bernarda Alba”, deGarcia Lorca, com encenação de Diogo In-fante e Ana Luísa Guimarães. Neste espec-táculo, o cenário materializa a opressãocontida no texto de Lorca e suscita a at-mosfera fria que se vive na casa de Ber-narda Alba. De forma simbólica, o cenáriosublinha a atenção entre a dominadoraBernarda Alba e as suas filhas, através deuma arquitectura que se impõem sobre aspersonagens. Sugere-se um espaço domés-tico onde a casa é mais uma prisão do queuma extensão material dos seus habitantes.Numa clara alusão ao conceito dos “SkyS-paces” de James Turrell recorta-se apenasuma abertura no centro do tecto, que re-presenta a única possibilidade de contactocom o exterior, reforçando a impressãoclaustrofóbica e concentracionária da peçade Lorca. Na versão coreografada destapeça (coreografia de Benvindo Fonseca), oduo entre Adela e Pepe Romano, o machodesejado por todas as filhas e objecto dasua disputa, decorre dentro de um armá-rio. Este objecto que encerra um espaçomínimo, serve de símbolo da casa/prisãoem que Bernarda fecha as filhas, momentoem que os corpos assumem plenamente odesejo e atracção mútuos, funcionandocomo uma casa-dentro-da-casa.

Na sua opinião, o que é que a arqui-tectura retira do cinema e o cinema re-tira da arquitectura?

Enquanto arquitecto, o que me interessasão as diferentes formas de ver arquitecturaque o cinema nos propõe, desafiando a ca-pacidade cinemática de fragmentar e rees-truturar aquilo que se vê. O cinemaconstitui um mecanismo de medição doolhar que nos permite dar a ver simulta-neamente o mais ínfimo e o mais vasto doespaço arquitectónico. As imagens mutan-tes e em movimento, procedendo a umadeslocação do ponto de vista, onde a rela-ção entre as partes do objecto arquitectó-nico é mais importante do que os pontos devista fixos, o que permite ao espectador,apesar de estático, uma aproximação à ex-periência arquitectónica. Ao contrário doteatro, o facto de não haver um modo de verúnico e/ou privilegiado significa um au-mento dos limites da visibilidade do objectoarquitectónico e, ao mesmo tempo, um au-mento da capacidade destes objectos pode-rem figurar num universo mais amplo.Neste sentido, poderemos afirmar queo cinema se situa algures entre o teatroe a arquitectura.

Acha que pode existir uma leituracinematográfica da arquitectura, no-meadamente na relação plano / se-quência?

A experiência do espaço arquitectónico,do espaço sequencial, a partir do corpo emmovimento pode aproximar-nos duma lei-tura cinematográfica da arquitectura. Noensaio teórico “The Manhattan Transcripts”,Bernard Tschumi define uma arquitecturabaseada no confronto/relação entre espaçoacontecimento e movimento, onde o espaçodeve ser habitado de forma sucessiva. Outente descobre o edifício percorrendo-o,segundo enquadramentos sucessivos ondecada vista é sempre fragmentada. Este con-

ceito de visão incompleta de Tschumi (ex-presso em La Villete) tal como acontece nocinema, garante um impulso crescente demovimento e surpresa. A sequencialidadede espaços a partir de técnicas como frag-mentação, desconstrução, desintegração edisjunção, traduz mais uma montagem dotipo cinematográfico do que as regras tradi-cionais de composição, de hierarquia e deordem. Na tentativa de libertar a arquitec-tura de preceitos convencionais, os espaçossão desenvolvidos de maneira sequencial, detal forma que a significação de cada movi-mento está ligado tanto ao que o precedecomo ao que o segue. Também no campodas artes cénicas a multiplicidade de refe-rências envolvidas no espaço cenográficocontemporâneo leva frequentemente a ques-tionar e, nalguns casos, a ultrapassar as con-venções teatrais, para abordar conceitosprovenientes de outras disciplinas como,por exemplo, o cinema. No espectáculo“Propriedade Privada”, Olga Roriz aplicaesta abordagem transdisciplinar como umamaneira de explorar novas vias de criação.Nesta peça, as memórias, relações e analo-gias com o cinema, constituem um pretextopara uma investigação alargada sobre asconvenções associadas à dança. “Proprie-dade privada” é um espectáculo feito de ali-nhamentos de diversas cenas onde é clara ainspiração no cinema como arte curadorade um real que, por vez, se sobrepõe à pró-pria realidade. Neste espectáculo todos osespaços de movimentação, e as cenas co-reográficas adquirem um modo cinemato-gráfico, quer a partir do próprioenquadramento formado pelas múltiplasaberturas, jogos de portas e janelas, quer

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“Escada Mecânica”, no castelo de Rivoli(Turim)

“Propriedade Privada”

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através dos movimentos que se sucedem emplanos cinematográficos – um fluxo à ma-neira de Wim Wenders. Uma sequência deimagens “ao correr do tempo”, mais confi-nadas às reflexões do que às emoções. Comonas fotografias analíticas do movimento deEadweard Muybridge do final do séculoXIX, o resultado evoca imagens cinemato-gráficas, onde se reproduz uma sequênciade movimentos, protagonizada pelos baila-rinos e pelos objectos cénicos.

Qual dos seus projectos consideraque tenha um maior carácter cénico,

e porquê? Neste processo de sinalizar aspectos da

encenação traduzidos no âmbito da arqui-tectura destaca-se a “Casa de Chá”, nas ruí-nas do Paço das Infantas no castelo deMontemor-o-velho: em primeiro lugar opróprio processo de implantação do edifí-cio, com a construção de um plateau ele-vado, que não toca o solo, subverte a suapercepção e cria a impressão de um corteno tempo, de uma interrupção fixada numcenário onde se pressente algo não con-cluído, um objecto suspenso; em segundolugar a escada de inclinação excessiva(como uma escada de mão encostada con-tra a parede) que sugere movimento e geraexpectativa, convidando os utentes a subire a contemplar a paisagem a partir de umajanela alta. Como refere o crítico de dançaDaniel Tércio esta escada desenha-se entreduas polaridades: “a cenográfica e a cine-matográfica, entendida esta a partir doconceito de cinesis (ou movimento)”. Oexemplo do projecto da “Escada Mecâ-nica”, no castelo de Rivoli (Turim), ilustraigualmente bem a passagem das artes depalco, nomeadamente da dança, para a ar-quitectura. Aqui um condutor do espaçoconstituído por três conjuntos de escadasrolantes propõem um movimento contí-nuo e condicionado desde a praça Bollanino centro histórico da cidade de Rivoli, atéao castelo, situado a uma cota mais alta.Este movimento inscreve-se e funde-se naencosta e nasce da dinâmica virtual entrequatro eixos visuais que incidem sobre oselementos excepcionais do tecido urbano.Procurando espessura, este espaço interiorestrutura-se em triangulações tencionadas

e é subdividido em elementos verticais (es-cadas rolantes) e elementos horizontais(“espaçamentos” entre escadas rolantes).Nestas plataformas, espaços de reencontroe convergência das escadas rolantes comas ruas existentes, pretende-se teatralizar,recriando uma rua coberta, como interfaceurbano. Com a introdução deste espaço,prolonga-se o espaço de acção e de visão,criando uma noção de extensão e refor-çando a ideia de tempo. Para Daniel Tér-cio, a “aproximação deste projecto às artesdo espectáculo reside tanto no respeitopela coreografia do lugar, pelos percursosexistentes, como pela exposição do movi-mento do corpo do viajante, do actor quesobe e do actor que desce, como final-mente pela oportunidade de tornar o via-jante, também, espectador do palco dacidade”. Como numa coreografia esta ar-quitectura constrói-se a partir da mobili-dade dos transeuntes. Deste modo, oespaço incorpora o corpo em movimento.E, nesta medida, como refere Tércio, “aausteridade estática pode ser dissolvidapelo movimento e a arquitectura torna-seuma cinética”. Tal como descreve BernardTschumi em “The Manhatan Transcripts”,esta acumulação de acontecimentos temcomo característica principal a sequênciae envolve “uma sucessão heterógenea deenquadramentos que confrontam o es-paço, os movimentos e os acontecimentos,as suas estruturas respectivas e as regrasespecificas”. Esta sequência acumulativade enquadramentos traduz a experiênciade uma “sequência arquitectural”, numaaproximação a temas e procedimentos ci-nematográficos.

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