joão gabriel rocha - o advento dos perioikoi - um indicativo de classe

8/9/2019 Joo Gabriel Rocha - O advento dos perioikoi - um indicativo de classe

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6 COLQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELSGT 3 - Marxismo e cincias humanas

O Advento dos Perioikoi: um indicativo de classe.*

Joo Gabriel da Rocha (PPGH-UFRRJ/CEIA-UFF/ NIEP-Marx)

(...) the great wealth of archaic objects which bytheir fresh light on early Sparta have given thisexcavation its chief importance 1.

R.M. Dawkins

Comunicar-se com o mundo antigo , antes de tudo, transporta-se para um

universo que h muito jaz silencioso, estanque em sua prpria temporalidade, estticoem uma dimenso espacial que lhe prpria, mas inesgotvel do ponto de vista dainterpretao humana. Um organismo que j no se reproduz mais, exceto porpensamento ou inteno, procriando-se ininterruptamente a cada leitura ou observao,permanecendo inabalvel em sua languidez absoluta.

Aos marxistas, indiscriminada e pejorativamente, apontam-se museus, sempreque possvel, covas, dcada aps dcada sob a forma de ps-modernismos e ps-

estruturalismos corriqueiramente cnicos e medocres. Criticado por sua rigidez, muitasvezes condenada como fator preponderante sobre o todo; a teoria marxista, se que issoexiste enquanto rtulo vlido, dados os inumerveis marxismos co-existentes no mundoacadmico e os poucos que adentraram o da prxis (se Marx soubesse...), mantm-secomo sistema de anlise atualizado e eficiente, tecendo uma comparaodespropositada, mas analogicamente coerente: Marxismo assim como Deus, cada uminventa o seu.

Sendo assim, propomo-nos a realizar, fecundamente, uma leitura de cunhomarxista de um dos pilares do mundo helnico, a sociedade lacedemnia. Extrair delarazes prticas de seu funcionamento e como isso, em relao dialtica, fomentou o seucarter estratificado, to caracterstico do Peloponeso.

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Esta comunicao integra a mesa coordenada proposta sob o ttulo A Anatomia do Macaco: Marxismoe Pr-Capitalismo.

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Paul Cartledge,Sparta and Lakonia, A Regional History 1300 to 362 B.C. London, Henley & Boston, p.357.


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Fundada no mito imemorial de Licurgo, Esparta foi, a um s tempo, senhora eserva de suas determinaes tanto econmicas, quanto polticas e culturais.Demonstraremos aqui, na medida do possvel, as intrnsecas relaes entre as trsesferas, insustentveis em sua solido, mas slidas em sua sustentabilidade conjunta,amalgamadas pelo vis religioso, bem maneira dos gregos.

A presente anlise abarcar a Idade das Trevas, que vai de cerca de 1200 a.C a800 a.C. at o momento imediatamente anterior a Primeira Guerra da Messnia (743a.C. a 724 a.C.), pois acreditamos que, se inclussemos esse evento enquanto parte doobjeto de estudo, estaramos aproximando dois momentos que compe etapas distintasda histria lacedemnia. A primeira parte, da qual nos ocuparemos aqui, onde se alocaa miscigenao inicial dos grupos heterogneos e a catalisao dos processossocializantes, seja atravs de trocas, comunicao e conflitos, todos inerentes formao da identidade lacedemnia, origem de esparciatas e periecos, unidade queveio a constituir o arcabouo para a Esparta do perodo Clssico. A segunda, com adireta interao dos habitantes da Mssenia, que at ento interagiam com oslacedemnios como qualquer outro conjunto populacional da regio, tais como osarglidas, corntios ou arcdios; agora enquanto contingente escravizado por uma foraguerreira devidamente aparelhada, representando ento uma especializao flagrante,

um dos frutos do processo que pretendemos descrever aqui. importanteesclarecermos, expressamente, o motivo de nos referirmos, nesse momento especfico, aessa sociedade como lacedemnios e no em termos de espartanos, esparciatas ouperiecos, pois como Massimo Nafissi define:

Tradition thus spotlights the Heraclid kings at the centre of Dorianethnogenesis in Laconia. They resided in Sparta, a group of villages whichprobably arose in the tenth century on a site of apparently scant importance inthe late Bronze Age. The myth of a Dorian ancestral homeland possiblyretained the memory of a provenance beyond the Peloponnese, but a Dorian

identity first crystallized in the Spartan community in Laconia and was thenassumed by other groups as well. Between the tenth and eighth centuries, thisprocess accompanied the development of a homogeneous regional materialculture and culminated in the formation of a Lacedaemonian identity2.

Devemos atentar ainda para as razes que nos levaram a eleger os vestgiosarqueolgicos, principalmente os encontrados no santurio de Artemis Orthia, comofonte principal de pistas sobre traos da organizao social lacedemnia da Idade das

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Massimo Nafissi,Sparta. In: Kurt A. Raaflaub and Hans van Wees (org.), A Companion to ArchaicGreece, 2009, p. 118.


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temticas e na autenticidade das olarias lacedemnias e suas figuras negras comcontornos brancos8, apresentando tcnicas cada vez mais especificas, a produocermica requer, cada vez mais, artesos inteiramente dedicados a sua confeco.Shanks ainda mais enftico quanto identificao de trabalhadores especializados noprocesso produtivo relativo cermica, insinuando at a presena de ajudantes, quedesempenhariam funes mais simples, por exemplo, adornando os vasos com os traosmais comuns e repetitivos, necessrios a formao de um mestre cermico. Sendoassim, o autor nos diz:

I suggest instead that polychromy was another mark of technical mastery;adding a secondary colour of slip complicates an already difficult process.() it is something else which risks spoiling the vase () Much of thedecoration, like the pot shapes, is repetitive. The areas of freehand andincised figured work are set off in linear friezes by border lines and areas of repeat geometric and floral devices. These all require much less skill,dexterity and risk, and could be undertaken by someone of less experiencethan the frieze painter, an apprentice perhaps. () The workmanship of risked hand and brush is new, but occurs within a frame (literally) of dependable technological and technical practice and knowledge9.

Todas essas afirmaes nos levam a crer que, houve em um momentoligeiramente anterior ao que se pensava, j no fim da Idade das Trevas e incio doPerodo Arcaico, uma sensvel elevao no nvel das forcas produtivas, nico fator que

poderia, satisfatoriamente, explicar a produo de to refinado e diverso material.Preocupados com a brevidade da anlise aqui proposta, tomamos, basicamente, comoexemplo apenas a produo cermica, mas poderamos nos referir com igualpropriedade produo em ferro, bronze ou marfim, por exemplo.

Uma das mais interessantes descobertas no santurio de Orthia foi a reputaoartstica dos primeiros espartanos, a qual foi enterrada sob o militarismo dos seusdescendentes10. Impulsionados por esse poderoso epteto, visamos relacionar osvestgios arqueolgicos encontrados no santurio de Artemis Orthia, escavado pelaequipe da Escola Britnica de Atenas entre 1906 e 191011, ao processo de especializao

8 Ibdem. p. 159.

9 Michael Shanks,op. cit. pp. 39-40.

10 Not the least interesting of the finds at the sanctuary of Orthia was the artistic reputation of earlySpartans, which had been buried beneath the militarism of their descendants. R. M. Dawkins,TheSanctuary of Artemis Orthia at Sparta . Londres, Mc Millian & CO, 1929, p. 52.

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O relatrio da escavao encontra-se completo e disponvel na internet atravs do site:http://www1.lib.uchicago.edu/cgi-bin/eos/eos_title.pl?callnum=DF261.S68D3


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e segmentao social engendrado no seio da sociedade lacedemnia, mais precisamenteentre os segmentos que viriam a se chamar esparciatas e periecos. Sobre a localizao efundao do santurio de Artemis Orthia, Nigel Kennell e Nino Luraghi caracterizam-no como mais importante relicrio da divindade em solo grego, localizado na margemoeste do Rio Eurotas no limite leste da aldeia espartana de Limnae. Fundado entre o fimdo nono e o comeo do oitavo sculo, j dotado de um local especfico, completamentepavimentado, para a realizao dos rituais e libaes12. O arquelogo J.P Droop enfatizaa singularidade daquele stio atravs da enorme quantidade de amostras fornecidas emsuas escavaes:

The local nature of the ware at Sparta is proved not only by the unbrokendevelopment of the series, and the vast quantity found of it compared withthe very minute amount of other known wares, but also by the identity of itsfabric which of that two other series of objects, the clay masks and thefigurines13.

Devemos ainda citar outras localidades para que sejam estabelecidos traosparalelsticos entre os stios arqueolgicos. O templo de Apollo em Amyklaion, o santurio deAtenas Chalkoikos e o de Zeus Massapeus, por exemplo, fornecem timos exemplos dedepsitos de cermica, tanto do tipo Geomtrico quanto Lacnio, demonstrando, atravs donmero de fragmentos encontrados, serem importantes centros de culto na sociedadelacedemnia. Nigel Kennel e Nino Luraghi, referindo-se ao santurio de Artemis Orthia,

estabelecem semelhanas entre as peas encontradas nessas localidades, mais especificamenteoferendas, na forma de estatuetas, mscaras e vasos:

The sanctuary is characterized by finds of terracotta masks representing avariety of types, from handsome youths to wrinkled old women andgrotesque monsters, and by a staggering quantity of small lead votives. Theselead votives are typical of shrines elsewhere in Laconia; they have beenfound in significant numbers not only here, but also at several other sitesincluding the Menelaion and the perioecic shrine at Aigies. A few came tolight during the excavations at the sanctuary of Zeus Messapeus, north-east of the city, and several hundred appeared on the acropolis near the temple of Athena Chalkioikos. However, these numbers pale into insignificance

compared with the 100,773 lead votives dedicated to Artemis Orthia14

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12 Nigel Kennel & Nino Luraghi,op. cit. p. 241.

13 The local nature of the ware at Sparta is proved not only by the unbroken development of the series,and the vast quantity found of it compared with the very minute amount of other known wares, but alsoby the identity of its fabric which of that two other series of objects, the clay masks and the figurines . R.M. Dawkins,op. cit. p. 53.



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Entender essa expressiva estatstica , ademais, compreender os pressupostosque, sorrateiramente, transpassavam o seio da sociedade lacedemnia. incomum, parano dizer singular, encontrar uma quantidade to extraordinria de artefatosmanufaturados em um nico stio arqueolgico. Devemos pensar, mais precisamente,em como essas pequenas comunidades e seus habitantes, na ordem dos milhares15,produziram to significativo montante de objetos, utilizando para a sua confecocomplexos processos tcnicos e variadas matrias-primas (cermica, marfim, ferro ebronze, por exemplo).

necessrio, no entanto, que articulemos alguns setores de nossa referidahiptese para que avivemos, enquanto vlidas nossas indicaes sobre essa peculiardisposio da sociedade lacedemnia. No presente estgio das escavaes doPeloponeso, possumos evidncias, para esse perodo, nas aldeias de Aegiae e,posteriormente, Geronthrae, ambas destinadas habitao dos perioikoi, quedemonstram, tambm nessa precoce aglomerao populacional, uma pioneiraespecializao, por exemplo, enquanto a aristocracia esparciata tendia-se a se encerrarem suas propriedades rurais ou nas cidades de maior porte16. Esse processo deassociao acometer irreversivelmente a sociedade lacedemnia, possibilitando, emmenos de dois sculos, o aparecimento de mais centros habitacionais na Lacnia, como

nos atestam Kennel e Luraghi que:Nonetheless, outside the few areas of habitation, seventh-century Laconiawas essentially an empty land, with later perioecic towns such as Gytheum,Asopus, and Epidaurus Limera not yet in existence. The dam finally burst inthe sixth century, when, within the astonishingly short space of only aboutfifty years, this wilderness was transformed into a landscape of farms,villages, and small towns17.

Articular o aparecimento de toda essa sorte de vestgios materiais e a inicialconcentrao dos perioikoi, que no Perodo Clssico sero considerados, efetivamente,

espartanos de segunda categoria excludos de participao poltica e bloqueados doacesso s propriedades rurais, fonte do prestigio no estgio de consolidao das cidades-estados, apreender a parte final do processo produtivo que tomou curso nas aldeiaslacedemnias dos sculos IX e VIII a.C. Pois, pensar esse oportuno jorrar de evidncias

15 Moses Finley, op. cit. p. 29.

16 Oswyn Murray, The End of the Dark Age: The Aristocracy. In: Early Greece. Glasgow: FontanaPaperback, 1980.



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em uma correlao direta ao aparecimento, em um momento imediatamente posterior,das comunidades perioikoi entender a sedimentao de oposies de classe,anteriormente inexistentes, e agora em curso, j em meados do sculo VIII a.C.Indicamos como contribuio central do presente texto ao entendimento das estruturassociais presentes ou em formao na sociedade lacedemnia, o aparecimento destasvariantes finamente elaboradas de cermica propriamente lacedemnias, dada a suaampla incidncia, seja concentradamente ou em pontos esparsos no Peloponeso, comoexpresso das relaes de processual especializao da populao das aldeias lacnicas.Karl Marx, em sua Ideologia Alem, ressalta o processo de especializao que acometetodas as sociedades ditas primitivas em seus mais distintos momentos, seja atrs doaparecimento do excedente agrcola, dos indivduos que o administram, da necessidadeflagrante de bens e utenslios, cada vez mais especializados, e dado o aprofundamentogradual da diviso das funes, que acomete uma crescente populao. Enunciando, emuma outra obra sobre a diferenciao entre grupos de um mesmo organismo social, oautor diz que:

A natureza da estrutura tribal conduz a diferenciao de grupos de parentescosuperiores e inferiores e esta diferenciao social se desenvolve ainda maispela mistura das tribos conquistadoras e conquistadas18.

Tudo nos leva a crer, que enxergar a sociedade lacedemnia ps-micnica comouma sociedade tribal apostar em uma coerncia e assepsia terico-metolgicas maisacuradas do que traar paralelos, muitas vezes forados, com a Esparta Clssica.Admitir que essa sociedade possui na primeira o seu embrio fundamental mais doque tautolgico, no obstante, apesar dessa conexo primordial, ela no pode serexplicada em termos prticos, se no considerarmos as duas Guerras Micnicas, e,portanto, como foi dito anteriormente, no cabe ao historiador beneficiar-se dosresultados de processos histricos posteriores de modo a extrair deles as razes queenunciaram seus desdobramentos anteriores, essa prtica teleolgica de proceder noganha espao ou respaldo no estudo aqui apresentado. Ento, posto este caminho muitomais sinuoso e extenuante, sugerimos que a presena dessa variedade cermicadestinada a esse organizada estrutura templria, somente poderia ter sido alcanada, emtermos de utenslios para o culto e oferendas feitas nos locais ritualsticos, caso o nvel

18 Karl Marx,Formaes Econmicas Pr-Capitalistas . Lisboa, Paz e Terra, p. 69.


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das foras produtivas da sociedade lacedemnia estivesse sendo gradualmente elevadopor uma progressiva especializao dos seus indivduos, e vice-versa.

O aparecimento desse indicativo de classe, que ir se constituir alguns sculosdepois, enquanto uma das divises mais fundamentais da cidade-estado espartanaenuncia que, mesmo antes do que se pensava, os traos da especializao aparecem noquadro social analisado. A concentrao de populaes em aldeias distintas e o elevadograu tcnico da produo nesse sentido permitem-nos afirmar que esse segmento,carentes de identificao plena e acesso a propriedade rural, ainda no constitudoenquanto classe no seu sentido pleno, j contm em si formas de opressocaractersticas, cristaliza-se anteriormente s Guerras Messnias, que iro, em suaespecificidade, dar a essa sociedade, j espartana aps o seu advento, o seu carterunilateralmente estratificado e rgido. A inerente afirmao dos produtores ruraisenquanto grupo identitrio e sua relevante preponderncia sobre os demais, poltica emilitarmente, aprofunda o abismo social de maneira gradual e irreversvel.

Por fim, entender a formao da fora trabalhadora lacedemnia , em certamedida, inquirir sobre o conjunto das relaes sociais que originaram a mais famosacidade-estado do Peloponeso; onerar-se de sua gerao buscar as razes queconstituram Esparta enquanto tal.


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