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JOO FERNANDES VIEIRA MESTRE-DE-CAMPO DO TERO DE INFANTARIA

DE PERNAMBUCO

Joo Fernandes Vieira, c. 1 675-1 679. De um desenho de artista desconhecido, provavelmente colonial,

em Frei Rafael de Jesus, Castrioto Ltlsitallo, Lisboa, 1 679.

Jos Antnio Gonsalves de Mlello

JOO FERNANDES VIEIRA

MESTRE-DE-CAMPO DO TERO DE INFANTARIA DE PERNAMBUCO

COMISSO NACIONAL PARA AS COMEMORAES

DOS DESCOBRIMENTOS

PORTUGUESES

LISBOA, 2000

c o e c o O u t r a s M a r g e n s

Ttulo: Joo Feflla/ldes Vieira - !\l1eSlre-de-Calllpo do Tero de lll{al/laria de Pel'llallllJ/lco

Autor: Jos Antnio Gonsalves de Mello

Jos Antnio Gonsalves de Mello, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses e Centro de Estudos de Histria do Atlntico

Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor

Capa: Fernando Felgueiras Reviso: Pedro A. Baptista

Composio e fotolitos: Multitipo - Artes Grficas, Lda. Impresso e acabamento: Grfica Maiadouro, S. A.

1.' edio portuguesa: Setembro de 2000 ISBN: 972-8325-88-6

Depsito legal: 154 629/00

CNCDP - Catalogao na Fonte

MELO, Jos Antnio Goosalves de Joo Fema"des Vieira: Mestrede-Calllllo do Te.ra de I/lfal/tarill de Pe1llfllllbuco I Jos Antnio Gonsalves de Mello. - Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses; 2000. - 488p; 24cm. - (Outras Margens). - ISBN 972-8325886 I - MELO, Jos Antnio Gonsalves de

A Leonardo Dantas Silva,

carssimo amigo, com os agradecimentos

e a admirao pelo seu trabalho.

A P RESENTAO

No tm sido muitos os historiadores de lngua portuguesa a atreverem-se escrita de biografias. Gnero sobremaneira difcil e arriscado, necessitado de atenes especiais de erudi:o acompanhada de conhecimento apurado do contexto em que decorre a vida que se quer contar.

Boa sorte teve Joo Fernandes Vieira; /Vlesfre-de-Cal/1p'o do Tero de II/fanfaria de Pernambuco: um notvel historiador brasileiro, o pernambucano Jos Antnio Gonsalves de Mello, abalanou-se a esquadrinhar-lhe a vida e aces. Tratando-se de um dos heris libertadores do Nordeste brasileiro, com peso decisivo na luta cont:ra os Holandeses, com ele ficam tambm devidamente averiguados aspectos essenciais da histria do Brasil. Porque o Professor Jos Antnio Gonsalves de Mello procura sempre explicar o homem pelas circunstncias em que age. Para ele, a vida do homem sempre explicada em situao.

Perodo agitado e conturbado da histria luso-brasileira. A pretenso da Companhia das ndias Ocidentais de se apropriar da produo e comrcio aucareiro do Nordeste do Brasil leva breve conquista ela Bahia, em 1 624-1625, e conquista elo Recife em 1 630. Os armadores neerlandeses contratam o ilustrado Joo-Maurcio de Nassau como governador de Pernambuco. E inicia-se o Brasil holands, o Tempo dos Flamel1gos. Mas a restaurao portuguesa (1 640) vai alterar essa instalao, com os Holandeses a progredirem na conquista do ultramar portugus do Atlntico, nomeadamente Angola e So Tom. Contra esta profunda quebra no imprio se vai montar a sua reconquista . Que acabar por ser conseguida em 1 654. De um modo por vezes obscuro, que nem sequer h segurana documental sobre as posies do prprio monarca, aparentemente fixado na defesa exclusiva de Portugal. Em que as trataes diplomticas na Europa tm preponderante papel. Enquanto isto, sero os prprios moradores de Pernambuco a tomar em mos a efectiva restaurao

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APRESENTAO

da terra. Libertao esta em que entram personagens e grupos sociais variados e contraditrios. Aos luso-brasileiros juntam-se os ndios de D. Filipe Camaro, os negros de Henrique Dias. Em actuao convergente contra o Holands. Que vai perder, rendendo-se finalmente.

Figura central de um drama de lealdades e traies, Joo Fernandes Vieira tem um papel militar e de organizao da reviravolta poltica de extrema importncia para o futuro de Portugal e do Brasil. Que o historiador Jos Antnio Gonsalves de Mello inscreve em apurado conhecimento da regio e da sociedade. Insurreio que ps fim a esse Telllpo dos FIa 111 e I1gos que estudara antes com rigor. E que soube transmitir nesta longa biografia, que a Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses e o Centro de Estudos de Histria do Atlntico reeditam com gosto.

1 2

Joaquim ROll1ero Nlagalhes

COIII isst rio-Geral

Graas colaborao da Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses com o Centro de Estudos de Histria do Atlntico possvel reeditar a obra do Prof. Jos Antnio Gonsalves de Mello, Joo Fernandes Vieira. Nlestre de Campo do Tero de Infantaria de Pernambuco. H muito que se fazia sentir a premncia desta reedio, obra fundamental para os estudiosos do domnio holands no Brasil.

O autor, um perfeito conhecedor dos arquivos portugueses e holandeses, conseguiu estruturar uma obra no apenas biogrfica mas tambm com segura interpretao dos acontecimentos e das figuras preponderantes no perodo de ocupao holandesa.

Ao comemorar-se o quinto centenrio do achamento do Brasil, a Madeira, terra de naturalidade do libertador de Pernambuco, no podia deixar passar esta oportunidade de proporcionar ao pblico a reedio de uma obra de tanto nvel e indispensvel aos estudos da Histria comum de Portugal, Brasil e Holanda.

Uma palavra de apreo e reconhecimento para o Prof. Jos Antnio Gonsalves de Mello que se dignou autorizar esta reedio, contribuindo assim para a projeco desta destacada personalidade madeirense, que foi o Mestre-de-Campo Joo Fernandes Vieira.

Jos Pereira da Costa

Presidente do Centro de Estudos de Histria do Atlntico

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PRINCIPAIS ABREVIA':)ES

ABN - Al1ais da Biblioteca Nacional do Rio de Jal1eiro.

AHU - Arquivo Histrico Ultramarino, Lisboa. Histria - Diogo Lopes de Santiago, Histria da Guerra de

Perna1l1buco, Recife, 1943. IAP - Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico

Pernambucano, Recife. Lucidel10 - Frei Manuel Calado do Salvador, O Valeroso Lucideno,

2 vIs . Recife, 1 942 . RJAP - Revista do II/stituto Arqueolgico, Histrico e Geogr{tco

Pemalllbucal1o.

RJHB - Revista do 1I1stituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

do Rio de Janeiro.

TI - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.

CAPTUL O I

NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO

PERODO D A VIDA DE JOO FERNANDES

VIEIRA. 1610-1629

1. Na IIIralidade. 2. Ascwdllcia. 3. Nascilllel1lo. 4. NOllle.

5. Vil1da para Pemalllbuco.

1 . Poucas figuras da histria brasileira tero dado tantas oportunidades dvida e controvrsia quanto a de Joo Fernandes Vieira. Muitos episdios de sua vida, desde o seu nascimento at a sua morte, esto carregados de incertezas e obscuridades . Apesar das biografias laudatrias dos documentos pessoais, de algumas dezenas de cartas suas, as hesitaes no tm podido ser afastadas. H como que um escrpulo da parte dele de falar de sua ascendncia e os seus contemporneos parecem t-lo respeitado, pelo menos aqueles melhor informados e em condies de prestar depoimento isento de suspeita . Os prprios documentos oficiais que poderiam cabalmente nos elucidar a respeito, desapareceram ou no so suficientemente claros.

No confiando no j uzo da Histria, Vieira encomendou em vida que lhe narrassem os feitos, mas, quanto aos elementos iniciais de sua biografia, deixou os autores, propositadamente, ao que parece, sem notcias seguras. O mais antigo deles, Frei Manuel Calado do Salvador, diz que era ele natural da cidade do Funchal, capital da ilha da Madeira:

Nesta cidade e ilha foi criado, De nobre, ilustre e grave pai nascido, O sem par Lucideno, e doutrinado

Na f de Cristo, e em armas instrudo; Nisto ocupava o tempo e o cuidado Dos pueris impulsos retrado,

At que seu brioso peito forte O meteu na palestra de Mavorte [ . . . ) Visto que em os dous lustros acabando Foi sua amada ptria atrs deixando[ . . . )

A Pernambuco chega humilde e pobre

(Porque quem foge aos pais tem mil desgraas)

1 7

NASCIMENTO, ASCENDENCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE j. F'. VIEIRA. 16101629

Porm como seu sangue sangue nobre Para passar a vida busca traas I.

Um outro, o autor da Histria da Guerra de Pemambuco (que seria Diogo Lopes de Santiago, a crer Diogo Barbosa Machado), escreveu : posto que ele era j quase natural e patrcio de Pernambuco [ . . . ) contudo a cidade de Funchal nesta Ilha da Madeira, foi onde nasceu e passou os primeiros anos de sua mocidade e nela foi criado, nascendo de nobres pais [ . . . ) Determinou a pr em efeito deixar sua ptria, sendo de to pouca idade como era a de 1 1 anos , etc. Referindo-se sua participao na defesa do Arraial Velho do Bom Jesus ( 1635), diz que Joo Fernandes Vieira tinha ento 22 anos2

O ltimo, Frei Rafael de Jesus, referiu que em a cidade do Funchal [ . . . ) nasceu Fernandes Vieira no ano de 1613, sua criao qualificou seu nascimento, e seus generosos procedimentos o claro de sua ascendncia [ . . . ) Passou o tempo da puercia na ptria [ . . . ) Era de 11 anos [ . . . ) quando resolveu-se em passar s partes do Brasil [ . . . ) e se embarcou no ano de 1 6243.

Em resumo, todos o do como nascido de pai ou pais nobres, no Funchal; a Histria/ repetida pelo Castrioto/ indica o ano de 1 613 como do seu nascimento e o de 1 624 como o de seu embarque para Pernambuco .

O prprio Joo Fernandes Vieira em carta ao provedor e Irmos da Santa Casa de Misericrdia da dittoza Cidade do Funchal e Ilha da Madeyra diz que era ela sua ptria, de onde se ausentou com

I FR. MANUEL CALADO DO SALVADOR, O Valeroso Lllcide/lo, 2 vIs., Recife, 1 942, I, pp. 1 22, 32933 1 . Em trabalho anterior, nesta mesma srie de biografias, mostramos que esse livro foi escrito de Setembro de 1 645 a julho de 1 646; foi publicado em Lisboa em 1648.

2 DIOGO LOPES DE SANTIAGO, Histria da Gllerra de Pe/'llal/l/J/Ico, Recife, 1 943, pp. 1 06, 220222 . Em trabalho que apresentmos ao Congresso de Histria Comemorativo da Restaurao Pernambucana (Recife, Agosto de 1954), estudmos a au toria, o valor do testemunho, a data da composio desse livro e a integridade do texto. A nica cpia MS desse livro, pela qual se fez. a publicao, se encontra na Biblioteca Municipal do Porto, Portugal, cdice III.

3 FR. RAFAEL DE JESUS, O Caslrioto Lllsitallo, Lisboa, 1 679, livro I, 8 e 9. O MS desse livro foi concludo em Braga, em 25 de Janeiro de 1 675: encontra-se na TI, Livros do Brasil, cdice 20. Fr. Rafael de jesus limita-se a repetir o livro citado na nota anterior, pelo que no o consideramos fonte primria. aqui citado apenas para con firmao do outro.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PER[ODO DA VIDA DE J. F. VIEIRA. 1 610-1629

1 0 annos e alguns mezes de idade. No fica esclarecido, ao referir-se ptria, se alude cidade ou ilha; entretanto, chamando ditosa cidade, recordando dela o sitio da Santa Caza e acrescentando que na minha tenrra ydade, conhecy o aperto della (o que denota conhecimento pessoal do lugar), parece confirmar que tivesse nascido no Funcha14.

Entretanto, alguns genealogistas o q uerem dar por natural do Faial, na mesma ilha, de modo a pod-lo entroncar na filiao legtima de Francisco de Ornelas Muniz. As duas cidades no so vizinhas; pelo contrrio, h razovel distncia entre elas (33 km). A suspeita de ter ele nascido no Funchal no impossibilita o aceitar-se a legitimidade da sua ascendncia, no fossem algumas razes de peso que autorizam uma atitude de dvida.

2 . Constitui motivo de estranheza o no mencionar Joo Fernandes Vieira no seu testamento os nomes dos pais. Em todos os demais documentos dessa natureza, do sculo XVlI, que conhecemos, a indicao do local do nascimento e dos pais, no falta. E no caso de Vieira, ainda mais de notar-se o ter calado tais informaes, pois, ao se referir ao seu casamento, no esqueceu de indicar os nomes dos seus sogros. Dizem as verbas de seu testamento: Declaro que sou filho da Ilha da Madeira, e no tenho herdeiros forados alguns, por os meus paes e avs serem j mortos . E na verba seguinte: Declaro que sou casado com D. Maria Cezar, filha legtima de Francisco Berenguer de Andrada, e da primeira sua mulher D. Joana de Albuquerque.5 estranho este silncio em tal documento, no qual, como bem observou o Sr. Joo Cabral do Nascimento, Vieira cuidou da sua glria com desvelada mincia, detendo-se em pormenores, enumerando os cruzados despendidos na campanha, os engenhos que possua, os filhos que tivera6. Os bigrafos seus contemporneos so do mesmo modo silenciosos a tal respeito -- o que tudo parece evidenciar uma imposio do interessado ou um assunto omitido de propsito.

4 Arquivo Distrital do Funchal, Ilha da Madeira, Cartrio da antiga Santa Casa de Misericrdia do Funchal, papis avulsos.

5 "Testamento de Joo Fernandes Vieira" , in RJAP, n.O 25, Recife, 1 872, pp. 19-20. 6 "Gente das Ilhas nas Guerras da Restaurao", in Aliais ria Acadelllia Portllgllesa

ria J-listrirt, vaI. VII, Lisboa, 1 942, p. 435.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE). P. VIEIRA. 16101629

At 1871 no era conhecida dos historiadores qualquer notcia acerca dos ascendentes de Vieira, pois desse ano a Histria das Lulas de Francisco Adolfo de Varnhagen, que mostra desconhec-los7 . Dois anos depois, a Academia Real elas Cincias de Lisboa publicou uma memria de Rodrigo Jos de Lima Felner, com a qual se comeou a desvendar o mistrio. Nessa monografia, Lima Felner divulgou quatro documentos, dos quais constava ser Vieira filho de Francisco de Omelas Muniz, trs que coligira na Torre do Tombo, a saber, duas portarias, de 2 de Maio e 30 de Setembro de 1 652, e um alvar de 25 de Junho de 1 654 e uma consulta de 17 de Setembro de 1649 colhida no Arquivo do Conselho Ultramarino (ento na Biblioteca Nacional de Lisboa)B

Levando adiante a pesquisa, passou Felner a indagar quem era Francisco de Omelas Muniz. Em seu auxlio, o genealogista madeirense Augusto Maria Camacho, do Funchal, informou que em 1 601 existiu ali um Francisco de Omelas que casara com Antnia Mendes e deixara gerao, conforme constava "do Nobilirio de Henrique Henriques de Noronha, archivado na Cmara do Funchal e d' oulros I/obilirios que lI1erecell1 lI1ais ou menos f9 O Nobilirio de Noronha, escrito no fim do sculo XVIll e repetido pelos demais, enumera assim a descendncia do casal:

Manuel de Omelas, que morreu moo sem gerao; Francisco de Omelas, adiante; Maria de Omelas, mulher de Jos Dias, sem gerao;

Antnia de Omelas, mulher de Antnio Pires, com gerao e Helena de Omelas, mulher de Pedro de Freitas Peixoto, com gerao.

Francisco de Omelas, "filho segundo, sendo rapaz fugiu para o Brasil, onde mudou o nome para o de Joo Fernandes Vieira, e aumentando seus procedimentos foi restaurador de Pernambuco 10.

7 Historia das Llletas COI// os Ho/ntldezes 110 Brasi/, 1 .' ed. , Viena, 1 87 1 , p. 1 70. Entretanto, desde 1858, estava publicado um documento que indicava que Vieira era filho de Francisco de Omelas Muniz: ANTNIO JOAQUIM DE MELO, Biographias de AlglIl/s Poetas e HOII/e/Is Jl/lIstres da Provil/cia de Pemalll/J/lCO, 3 vis., Recife, 1856-58, 11, p. 13 .

B NOllle Verdadeiro do Portllgllez Joo Femaudes Vieira, Lisboa, 1873. 9 Liv. cit., p. 6. O grifo nosso. 10 HENRIQUE HENRIQUES DE NORONHA, Nobiliario Gwea/ogico das Fali/i/ias Qlle

Passaro a Viver a Esta Ilha r/a Mar/eira [. . .) AI/IIO de -1700, 3 vis . , com numerao nica,

2 0

NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERfoDO DA VIDA DE ). F. VIE IRA. 1 610 1 629

A famlia de Francisco de OmeIas (o Nobilirio no acrescenta o apelido Muniz, nem Camacho tinha encontrado referncia a este apelido nas pesquisas que realizara) pertencia a um ramo da do capito de Machico, Tristo Vaz, fidalgo da casa do infante D. Henrique e seu descendente por linha varonil, de acordo com a mesma fonte. Dele e de Branca Teixeira, "nobilssima senhora da famlia dos T eixeiras de Vila Real, Senhores de Teixeira , nasceu como 4.0 filho, lana rote Teixeira que casou no Algarve com Brites d e Coes, "filha de Joo do Rego e Brites de Coes, fidalgos daquelle Reino . Desse casal foi filho 2 .0, Francisco de Coes, que casou com Brbara de Mendona, senhora i lustre , dos quais foi 2.0 filho Mendo de Omelas de Vasconcelos que casou duas vezes, ambas modestamente" , a primeira das quais com Helena ou Crcia Comes, de quem houve, como primognito, o referido Francisco de Omelas que casou com Antnia Mendes, natural de Lombada de Santa Cruz . Augusto Maria Camacho diz e repete que Francisco de Omelas parece ser homem pobre, sem indicar os motivos, nem citar as fontes II

lima Felner, que no conhecia essas indicaes genealgicas, observou, porm, um fato at ento no salientado: Desvanecido com o que praticara, e querendo dar cpia de si posterida.de, fez Vieira gravar e publicar o seu retrato em 1679, frente do Castrioto Lusitano. Ali o podemos contemplar com a farda rica de general e um braso de armas ou escudo cortado, no qual figuram, em vez das dos Fernandes e dos Vieiras, as dos Omelas e dos Monizes, circunstncia em que at agora, que o saibamos, ningum fez reparo, e que poderia, contudo, ajudar a descobrir a origem do embora vaidoso, mas prestantssimo madeirense . 1 2 Era mais uma confirmao das indicaes documentais, referentes aos apelidos do pai de Vieira .

sem indicao de lugar, nem ano, nem editor, Funchal, 1 948, pp. 503-504. Deve-se a publicao ao genealogista Joo Jos Maria Rodrigues de Oliveira, que, entretanto, no a fez preceder de qualquer esclarecimento acerca da fidedignidade ou no do texto, nem ao menos para indicar a data aproximada em que o MS foi redigido. Que no o Foi em 1700 se verifica do prprio texto, onde h inmeras referncias a fatos ocorridos depois de 1 760. Observa-se ainda que o autor menciona documentos para comprovar certas asseres suas, mas na que diz respeito mudana de nome de Francisco de Ornelas a afirmativa no acompanhada de citao de fonte.

II R. J. DE liMA FELNER, NOllle Verdadeiro, cit., pp. 7-8. 12 Liv. cit., p. 3.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE J. F. VIEIRA 1 610-1629

A suposio da mudana de nome indicada pelo nobiliarista Noronha, tomou vulto neste sculo com a publicao da certido de nascimento de um Francisco, filho de Francisco de Ornelas e Antnia Mendes. Divulgou-a pela primeira vez o genealogista Alberto Artur Sampaio, em 1 928. Entretanto, segundo esse papel, o nascimento ocorrera em 1596 no Faial, e no no Funchal, como diz Calado e o autor da Hisfri da Guerra de Pernambllco e o prprio Vieira parece confirmaria

A tal certido, que tivemos ocasio de examinar pessoalmente no Arquivo Distrital do Funchal, no se conserva em original, mas em cpia de letra do sculo XIX, em um caderno que ali se afirma conter traslados de um livro (incompleto e dilacerado, que no se preservou) de registro de batizados e casamentos do Faial, do perodo de 1 530 a 1599 14 Diz a certido, textualmente:

Em os vinte e nove dias do mes de Junho de [ . . . ] zei nesta Igreja a

Francisco filho de francisco dornellas e de Antonia Mendes e foro padrinhos Bras Pereira e de Zu [ . . . ] filha de Beatriz oris e assim os padrinhos com os bautizados so freguezes desta Igreja de N.S. [ o o .] Verdade

fis este termo oje dia mes e anno e s [ . . . ] Sebastio Gonalves e Bras Pereira 15 Falta indicao do ano; entretanto os registras imediatamente

anteriores e posteriores so de 1 596, de modo que neste ano deve ter ocorrido o batismo.

Ao tempo da insurreio pernambucana, foi levado presena de D. Joo IV um papel que lhe causou forte impresso: tratava-se de uma representao endereada ao governador-geral do Brasil, Antnio Teles da Silva, datada de Pernambuco, de 5 de Abril de 1646,

13 ALBERTO ARTUR SAMPAIO, HOII/Cllagell/ flJoo Femallrles \!ieira, o Liver/arlor de PerI/all/VI/CO, Funchal, 1 928, p. 2 1 , nota 1 . A respeito veja-se tambm MRIO MELO, Joo Fernandes Vieira no era bastardo, in RJAP, n.O> 1 5 1 - 154, Recife, 1 934, pp. 47-5 1 , artigo q u e seguido d e duas contribuies d o genealogista madeirense Joo Jos Maria Rodrigues de Oliveira, pp. 5 1 -60. Os trabalhos citados de Felner, Sampaio, Oliveira, etc, constituem exemplos de como so feitos os estudos genealgicos em Portugal e no Brasil: sem documentao, nem crtica histrica.

14 Arquivo Distrital do Funchal, Cartrios Paroquiais, Faial, Livro 1 . de Batizados e Casamentos, EIs. 2 1 .

15 Desdobramos as abreviaturas, apenas; os pontos correspondem a trechos em branco no manuscrito que se supe ser cpia de um livro antigo.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERfoDO DA VIDA DE I. F. VIE IRA. 16 1 0- 1629

e sem assinatura, mas concluindo com a frase Cappelo de V.S . que o encomenda muito a Deus . O annimo atribua-se funo eclesistica, como que para afianar a fidedignidade de sua denncia . O documento evidentemente de um inimigo de Vieira, portanto, suspeito nas suas informaes. Com relao sua ascendncia, diz: Veyo este Senhor a esta terra e Capitania de Pemambuco da Ilha da Madeira donde he natural e filho de uma mulata rameira a quem chamo a Bemfeitinha e de hum homem que lhe do por pay, que foi ali degredado em titolo de ladro. At hoje no foi possvel comprovar a veracidade de tal informao, nem se sabe se existiu um degredado com o nome de Francisco de Omelas Muniz, como pessoa diversa do Francisco de Omelas, mencionado no Nobiliriol6.

Com base em documentao oficial, apenas h a indicao daquele nome como sendo o do seu pai, e no h motivos para recus-la, tanto mais quanto o seu braso de armas, publicado no Castrioto Lusita11o, inclui as dos Omelas e Munizes. Parece-nos mesmo aceitvel a identificao de Francisco de Omelas Muniz dos documentos, com o Francisco de Omelas dos genealogistas. O mesmo no diremos, porm, com relao a Antnia Mendes, que os nobiliaristas lhe do por me, sem a confirmao de qualquer fonte.

Um documento que poderia esclarecer em definitivo o mistrio seria a habilitao de Joo Femandes Vieira Ordem de Cristo. Como se sabe, para admisso Ordem, faziam provanas sobre a qualidade e ,dimpesa de sangue do candidato, e recolhiam-se depoimentos acerca dos pais e dos quatro avs . Infelizmente, a provana relativa a Joo Femandes Vieira se extraviou. Conservou-se porm a Consulta relativa provana feita para admisso mesma Ordem, do seu filho, o Padre Manuel Fernandes Vieira, da q ual consta laconicamente, que mandandosselhe fazer as provanas de sua habilitao, constou ter a limpesa que se requere, e qualidade necessria pela parte paterna e Av matemo, etc . 1 7 Reconhecia a Mesa da Conscincia e Ordens a que estava afeto a consulta dos can-

16 AHU, Pernambuco, papis avulsos, caixa 3-A. Estes documentos foram publicados por ALBERTO LAMEGO, "Papis lnditos sobre Joo Fernandes Vieira, in R/HB, t. 75, 2 .' parte, Rio, 1 913, pp. 33-50; esta publicao, porm, no merece f, pois so sem conta os erros de leitura e as omisses.

17 TI, Habilitaes Ordem de Cristo, processo letra M, mao 41, n.O 24, consulta da Mesa da Conscincia e Ordens, datada de Lisboa 2 de Se tembro de 1 688.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE). F. VIEIRA. 1610-1 629

didatos admisso nas ordens militares, que da parte paterna - o pai e avs paternos do Padre Manuel - no havia defeito de qualidade nem de limpeza de sangue. Tambm a carta de concesso de hbito a Joo Fernandes Vieira no faz qualquer referncia a defeitoS que se tivessem apurado nas provanas e porventura dispensados pelo rei, como em tais casos constava dos textos desses documentos. Nela menciona-se apenas que Vieira abelitou sua pessoa diante do Presidente e Deputados do despacho da Mesa da Conscincia e Ordens e juiz dellas, e . . . constou pela dita Abelitao que se lhe fez segundo forma dos definitorios e estatutos da mesma Ordem, o dito Joo Fernandes Vieira ter todas as qualidades necessrias conforme a ellas para ser recebido, e tc . IS Do contexto pode inferir-se que a habilitao no apurou defeito algum.

Entretanto, h motivos para crer que as testemunhas que depuseram no processo de habilitao, no foram plenamente esclarecedoras, pois havia, sem dvida, defeitos de qualidade: na pessoa de Vieira, aos quais entretanto no fizeram meno. Ofcio mecnico, isto , manual, e negociar, eram considerados vis e como tais incapacitavam os que os tinham exercido para admisso Ordem, a no ser que o rei dispensasse esses defeitos . Vieira, sabe-se que foi empregado de um marchante, e ele prprio, no seu testamento, diz que toda a fazenda que possuo adquiri com minha agncia e indstria e com as mos 19

Alm disto, vrios contemporneos seus q ualificam-no de mulato, o que exclui limpeza de sangue , defeito que tambm exigia dispensa real para admisso Ordem. Alguns deles o conheceram pessoalmente: tal o caso de Gaspar Dias Ferreira e do rabino sefardim Isaac Aboab da Fonseca, que residiu no Recife de 1 642 a 1 654. O primeiro, em carta escrita em latim e dirigida ao conde Joo Maurcio de Nassau, datada de Amsterdo, de 2 de Outubro de 1645, diz-lhe que j devia estar informado da insurreio pernambucana pois era de crer tivesse recebido a notcia [ . . . ] do crime e

18 TI, Chancelaria da Ordem de Cristo, livro 41, fls. 162, carta de hbito datada de Lisboa 10 de Setembro de 1 652.

19 Testamento, cit., p. 20. A Regra, Estatutos e Definies da Ordem de Cristo ento em vigor eram os de Madrid, de 30 de Maio de 1 627, e publicou-os J. J. DE ANDRADE E SilVA, Colleiio Cilrollologica da Legislao PorlllgueStl, 1 1 vIs., Lisboa, 1 855-1 859, III, pp. 18 1 -271 .

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERloDO DA VroA DE J. F. VIEIRA. 16 10 1 629

traio do mulato Vieira ("notitiam [. . .) de see/ere et perfidia il/ius lI1ulati

Vieira), concluindo com a frase do Evangelho: "l1on potest arbor mala, bonos fruetus faeere.20 O segundo, em um poema composto em 1 646 e que comea com a frase "Erigi um memorial aos milagres de Deus, escreveu acerca de Vieira: " conhecido como um homem cruel e sua me uma negra e do seu pai no se sabe o paradeiro . 21

Contemporneos so dois outros portugueses, talvez se us desafetos, mas cujas afirmativas no devem ser esquecidas: Jorge de Castilho, conselheiro ultramarino, que diz dele ser "homem de baixssima sorte , e Rui de Moura, do Conselho de Estado, que declarou ser ele "homem baixo por nascimento 22 . Outros h que no do depoimento pessoal, mas transmitem-nos a notcia do que ouviram contar. Pierre Moreau, que aqui esteve de 1 646 a 1 647, diz, por duas vezes: ,,!ohan Fernandes Viera Mo/ate, e "lo/ial1 Fernandes Viera, Mo/ate de naissance, esc/ave affral1chy [. . .} sol1l pere estal1f Portugais, etc .23 O autor annimo do Dirio ou Breve Discurso chama-o de "mulato e bastardo (ou, traduzindo literalmente, "de meio sangue negro, e bastardo)24 O folheto intitulado EXlract ende Copye van verseheyde Brievel1 el1 Sehrifiel11 be/al1gel1de de Rebellie der Paepsehe Portugesel1

chama-o de /'nu/aet, seguido pelo De Brasi/sche Breed-By/ (O Machado do Brasil): !an Ferdil1andes Vieira eel1 mulato \\'las, etc . 25 Mais explcito o folheto raro intitulado Le Bon Voisil1i elest a dire /e Portvgais (1 646): !eal1 Femandes Viera premieI' & pril1cipa/ ehet /e segl10r

20 Cartas e Pareceres de Gaspar Dias Ferreira", in RIAP, n.O al, Recife, 1 886, p. 333.

21 H. KAYSERLING, Isaac Aboab, the fiyst Jewish author in rnerica", in Pllb/;cal;olls of Iile A /IIer;call je\'(l;sil H;slor;ca/ Sociel)', vol. 5, Nova Iorque, 1 897, pp. 1 27, 129- 1 32 . A traduo do hebraico devemo-la ao Prof. Isaac Manuel Halper Filho.

22 Consulta do Conselho Ultramarino de 17 de Fevereiro de 1 647, AHU, Pernambuco, papis avulsos, caixa 3-A e cdice 1 4, fls. 13 v/14; Arquivo da Casa de Cadaval, Memrias", cdice 1081 , fls. 1 55-156, consulta do Conselho de Estado de 7 de Fevereiro de 1 656.

23 P. MOREAU, }-/islo;re des Dem;ers Trollbles dll Bres;/. Elllre /es Hol/alldo;s el /es Portllgais, Paris, 1 65 1 , pp. 44 e 48.

24 Dirio ou Breve Discurso acerca da rebelio e dos prfidos desgnios dos portuguses do Brasih, traduo do holands segundo edio de Arnhem, 1 647, por Jos Higino, in RIAP, n.O 32, Recife, 1 887, p. 128.

2 5 Exlracl elide COIl)'e vali versclle)'de Br;eve/l e I l Scilr;fre/l be/allge/lde de Rebellie der Paepscile Portllgese/l [ . . . ] 5.1., 1 646, p. 3, eDe Brasi/scil Breede-B)'/ [ . . . ] S.l., 1647, p. 28. A traduo deste ltimo folheto para o portugus, feita por Pedro Souto Maior, corrigida por Alfredo de Carvalho e publicada na RIA P, n.O 7 1 , Recife, 1 908, muito defeituosa.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERfoDO DA VIDA DE r. f. VIEIRA. 1610-1629

Governador, est natif de /'is/e de Madere. Fi/s d'ul1 portugaes & d'urt

Negril1 11 e, bastard par consequel1t & /nu/ate, etc 26 H, como se viu, ao lado dos informantes portugueses, o Cape

lo da denncia annima de 1 646 e Gaspar Dias Ferreira, uma srie de depoimentos de holandeses, todos informando que Vieira era mulato, sendo seu pai portugus (degredado, diz aquela denncia) e a sua me mulata ou negra. Dada a convergncia dessas declaraes, de origens diversas, no podem elas ser desprezadas . Contrariando-as depem os panegiristas, Frei Manuel Calado do Salvador e o autor da Histria da Guerra de Pernambuco, a quem Frei Rafael de Jesus se limita a repetir. Calado escreveu que Vieira e ra "de nobre, ilustre e grave pai nascido e o autor da Histria referiu-se aos seus "nobres pais . Ouereria dizer apenas nobre pai como o outro? O fato de conservar-se a Histria em cpia defeituosa, e no no manuscrito original, como j deixmos apontado em outro trabalho, permite propor a dvida. Apresentam-se tambm contra os depoimentos os dois documentos da Ordem de Cristo j mencionados, a saber, o alvar do hbito de cavaleiro e a consulta de 1 688, referente ao Padre Manuel, mas indicmos que as testemunhas da "provana no foram explcitas com relao a certos "defeitos de falta de qualidade. Teriam ocultado tambm o "defeito d e limpeza de sangue?

Do conjunto de todos esses elementos, parece-nos poder concluir que Joo Fernandes Vieira era filho do portugus Francisco de Ornelas Muniz, que bem pode ser o Francisco de Ornelas, descendente do capito de Machico; com relao ao lado materno, porm, as informaes so de tal forma contraditrias, que no deixam margem a uma concluso segura, permitindo todavia que se formule a hiptese de ter provindo dele o sobrenome de Fernandes Vieira.

3. O ano do nascimento de Joo Fernandes Vieira tambm um pormenor de que os seus bigrafos e panegiristas no estavam informados com segurana. Frei Manuel Calado nada esclarece; o autor da

26 Le BOII \1oisill; e'esl a dire /e Porlllgais [oo.], s.l . , 1 646, p. 15. ARNOLDUS MONTANUS, De Niwwe eI/ Ollbekel/de \.f/eere/d, Amsterdo, 1671 , p. 508, e Ol.FERT DAPPER, Die Ullbekallle Neue We/I, Amsterdo, 1 673, p. 573, escreveram: um mulato, Joo Fernandes Vieira, etc.

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NASCIMENTO, ASCENDtNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE J. F. V IEIRA. 1610-1629

Histria, repetido por Frei Rafael, escreve que ele contava 22 anos em 1 635, o que d como ano do nascimento, o de 1613 e que partira da ilha da Madeira com 1 1 anos, portanto, em 1 62427.

A cpia da certido de batismo de Francisco, filho de Francisco de Ornelas, nascido no Faial - se aceitarmos a suposio da mudana de nome - recua o nascimento para 1596, pois () batismo era feito ento, em geral, pouco depois do nasciment028.

O prprio Vieira aumenta a confuso, apontando d uas datas de nascimento, com diferena de oito anos entre elas. Em um depoimento prestado perante um comissrio do Santo Ofcio em Pernambuco, no processo do Padre Manuel de Morais, S. J., declarou sob juramento, em data de 23 de Maio de 1 647, ser de 37 annos de edade pouco mais ou menos", pelo que teria nascido por volta de 1 61 029 Entretanto, na carta j atrs citada, infelizmente dilacerada na margem direita do papel, datada de Pernambuco, de 20 de Agosto de 1 672", escreveu ele:

Reseby este favor de VMs, com [ . . . ] Amor que devo a essa ptria, que

suposto, que nella no [ . . . ] mais que 10 anos e alguns meses do meu nascim [ . . . ] . [con] fesso dever-lhe as mayores obrigasoins, porque della [ . . . ]

[recebi?] o ser, e della me prezey sempre que era, e se eu no ti [ . . . ] [vera]

a idade de 70 almos pudera bem manifestar meu [ . . . ] [senti] mento, etc.30

Os 70 anos em 1 672 fixam em 1 602 o seu nascimento. Temos assim, indicadas pelo prprio Vieira, duas datas. Parece-nos prefervel, porm, a primeira, dada sob juramento - embora o impreciso do mais ou menos , alis quase de praxe nos depoimentos de ento

27 FREI MANUEL CALADO, Lllcidwo, I, p. 334, escreveu, nos versos com que entremeou o livro, que Vieira, em chegando idade de 30 anos", casou-se com D. Maria Csar. Apesar de nossa desconfiana com relao a nmeros nestes trechos em verso - em que as exigncias do ritmo e da rima poderiam obrigar o autor a false-los -no devemos deixar de chamar ateno para esta indicao, que vem confirmar a notcia da Histria da Gllerra com relao data do nascimento de Vieira, pois se, quaDdo do seu casamento, que parece ter ocorrido em 1 643, contava 30 anos, teria nascido em 1613 .

28 Arquivo Distrital do Funchal, doe. cit. na nota 14, supra. 29TI, Inquisio de Lisboa, processo n.O 4847, do Padre Manuel de Morais, fls.

1 53 . Este processo foi publicado na RIl-lB, vaI. 70, 1 .' parte, Rio, 1 908, p. 125 . 3 0 Arquivo Distrital do Funchal, doe. cit na nota 4 , supra.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE J. F. VIEIRA. 1610-1629

- por ser mais prxima da de 1613 que lhe atribui o autor da Histria que o conheceu pessoalmente e estava portanto em condies de avaliar a sua idade.

De qualquer modo, cremos que a suposta certido de nascimento de Vieira, de 1596, deve ser desprezada, pois est em desacordo com as duas idades apontadas pelo prprio Vieira. Dir-se- que quem errou duas vezes, poderia ter errado trs, o que verdade; mas se considerarmos' que h outras razes que j ustificam a recusa do documento - como seja o nome do batizando e o local do nascimento - no vemos como mant-lo. Nm disto, se nascido em 1 596, teria Vieira ao falecer em 1 681 , a idade de 85 anos, o que no sculo XVll no deveria ser comum.

4. A suposio da mudana de nome no encontra confirmao em qualquer documento; os que a aceitam, o fazem com base na informao dos genealogistas madeirenses. E perdeu qualquer valor que pudesse ter, com o encontro da cpia da certido de batismo de 1 596, de Francisco, filho de Francisco de Ornelas, que se pretendia fosse o mesmo Joo Fernandes Vieira, pois, as declaraes deste, das quais se conclui que nasceu em 1 602 ou 1 610 no permitem que se o identifique com o batizando do Faial, nascido nos ltimos anos do sculo xv!.

Parece-nos que deve ser afastada esta suposio, pois h em contrrio razes ponderveis.

Que Vieira - descendente pelo lado paterno dos Ornelas e Munizes - tenha sido batizado com o nome de Joo - e no Francisco - o que indica o seu bigrafo e panegirista Frei Manuel Calado do Salvador, ao aludir, por trs vezes, devoo que tinha por So Joo Batista, santo do seu nome , e por ser o Santo do nome de Sua Majestade, como tambm por se ele chamar Joo, e o haver tomado por padroeiro na empresa da liberdade 31 . Observa Cabral do Nascimento: No nos parece crvel haver em nenhum catlico devoo pelo santo do nome de emprstimo., mas sim pelo de batismo. Se Vieira escolhia o dia 24 de Junho como de bom auspcio, que na verdade se chamava Joo . 32

31 Lucidel/O, cit., II, pp. 342, 360 e 361; a Histria da Guerra, p. 530, repete Calado, o que Frei Rafael de Jesus tambm faz, Castrioto, p. 499.

32 Artigo cito p. 432.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE j. r. VIE.IRA. 1 6 1 U- 1 629

5 . No so conhecidas as razes que levaram Joo Fernandes Vieira a deixar a sua ptria e emigrar para o Brasil. Entretanto, uma verba do seu testamento, deixando entrever ressentimento contra a famlia, talvez explique o gesto de t-la deixado com to pouca idade, isto , aos 10 anos e alguns meses, segundo a carta de 1 672:

Declaro que sou filho da Ilha da Madeira e no tenho herdeiros forados alguns, por os meus pais e avs serem j mortos; de mais, caso que fossem vivos, no eram meus herdeiros, porque no trouxe de sua casa fazenda alguma, e vim para esta Capitania de Pernambuco de idade de 1 1 anos, e toda a fazenda que possuo adquiri com minha agncia e indstria e com as mos, que ficam sendo bens castrenses, que no so obrigados a herdeiros .3a

Procederia esse sentimento da situao da famlia, de filho ilegtimo? No h quaisquer elementos para esclarecer se Vieira emigrou

s ou com pessoa da famlia; se tinha parente no Brasil que o acolhesse e o encaminhasse; se veio, como muitos outros conterrneos, para servir como caixeiro no Brasil ou a convite de amigo ou padrinho, para o ajudar no seu negcio . A impresso que nos deixa na carta de 1 672 e no testamento, que veio s e por iniciativa prpria . Se assim foi, demonstrou desde os 10 anos e poucos meses de idade, qualidades nada comuns de resoluo, iniciativa e vontade de vencer, das quais veio a dar mostra em muitas ocasies posteriores.

A denncia do Capelo de 1 646 informa que chegando aqui se

alquilou e ps a servir a hum Joo Peres Correya homem de naso e

depois deste a um marchante por nome Affono Roiz Serro para lhe matar e cortar carne ao povo por ser obrigado na vila dolinda a lha dar e vender como he ordenado por as Cmaras das sidades e vilas e lugares no que se exercitou alguns annos34

o nome de Afonso Rodrigues Seno ocorre uma vez no testamento de Vieira, na seguinte verba, referindo-se a Olinda : Tenho na dita villa, que herdei e por doao e por direito que se me dera todas

33 Testamento, cit., pp. 19-20 . . >4 AHU, doe. cit. na nota 1 6, supra.

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NASCIMENTO, ASCENDNCIA E PRIMEIRO PERODO DA VIDA DE I. F. VIEIRA. 1 6 1 0 - 1 629

as terras e fros de casas, olarias e todas as pertenes que foram de Affonso Rodrigues Seno e de sua mulher Isabel Ferreira, que tudo me pertencia . 35 Seria um dos cnj uges parente de Vieira ? Como explicar, seno assim, o ter herdado bens do casal?

A sua viagem para Pernambuco - pois foi a Pernambuco que logo se dirigiu - deve ter-se realizado em 1 620, pois nasceu, ao que parece, em 1 61 0 e emigrou com 10 anos e poucos meses. Aqui chegando, os seus princpios de vida foram humildes, como disse o seu contemporneo Salvador Correia de S e Benavides . Vrios depoimentos do sculo XVII indicam que serviu como assalariado e depois trabalhou como auxiliar de um marchante. J mostrmos que ele prprio escreveu que ganhou a vida com as mos , num tempo em que exercitar ofcios mecnicos representava inferioridade. A informao merece f, pois confirmada por outras fontes . O seu panegirista Frei Manuel Calado (que escreveu em 1 645- 1 646) diz que :

A Pernambuco chega humilde e pobre [ . . . ) E assim para buscar a honesta vida Serve a um mercador por a comida. [ . . . ) Sai-se do Arrecife incontinenti [ . . . ] Busca a um mercador rico e honrado Que tinha o trato grosso em demasia,

E logo sente o peito afeioado

Ao modo agencia I da mercanciai Na arte se faz mui destro e consumado,

Nota as grandes ganncias que ali havia, Compra, vende, chatina e mercadeja E aos vizinhos causa grande inveja .36

A sada do Recife deve-se entender, parece-nos, como tendo passado a residir na vila de Olinda, cabea da Capitania e centro de sua atividade comercial, antes da invaso holandesa.

35 "Verbas inditas do testamento de Joo Fernandes Vieira", in RIA P, n.o 64, Recife, 1 904, p. 767. Em 1639, havia um Joo Peres Correia como lavrador de canas (15 tarefas) do Engenho N. S. do Rosrio da Vrzea, de Jacques Hack: veja-se ADRlAEN VAN DER DUSSEN, Relatrio sobre as Capital/ias COI/quis/adas 1/0 Brasil pelos Holal/deses, 1 639, Rio, 1947, p. 44.

36 LlIdmo, cito I, pp. 33 1-332.

3 0

NASCIMENTO, ASCENDNCIA e PRIMEIRO PeRODO DA VIDA DE ]. F. VIEIRA. 1610-1629

o autor da Histria da Guerra de Pernambuco diz que dos 1 1 anos, quando emigrou, at aos 17, isto , de 1 620 a 1 627,

tomou conhecimento com dois homens, para sustentar a vida [os dois citados pelo capelo,,)] [ . . . ] e de idade de 17 anos teve sempre sua casa, indo sempre em aumento [ . . . ] e o mais deste tempo viveu sempre lei

da nobreza [ . . . ] Teve neste tempo e pelo decurso de sua vida algum negcio de mercancia", etc 37

H outros depoimentos : o autor annimo de Le BOI1 Voisin diz que arriv au Bresil fUI valet de Bouchen> e Jean Racine, nos seus Fragl11ens Hisloriques, refere tambm que Vieira serviu como silnple garol1 bourchen>38,

Parece pois comprovado o fato de que Vieira teve princpios humildes ; e com relao sua origem e criao talvez haja apenas exagero na expresso do conselheiro ultramarino Jorge de Castilho, de que era de baixssima sorte 39 .

Homem ativo e ambicioso, inteligente e afeioado ao modo agencia I da mercancia pde, depois de alguns anos de assalariado, estabelecer-se por conta prpria, com negcio de compra e venda. o que afirma Calado nos seus versos40 Infelizmente nada sabemos com segurana dessa fase da vida de Vieira e nenhum documento contemporneo se conserva, em que o seu nome seja indicado. Com a destruio do arquivo da Cmara de Olinda e de outros papis, no incndio da vila, provvel que nunca venhamos a apurar algo de definitivo sobre o madeirense, antes de 1 630.

Do que fica exposto, no parece imprudncia sugerir que Joo Fernandes Vieira tenha sido filho ilegtimo de Francisco de Ornelas Muniz, havido em mulher de condio humilde e talvez de cor, pelos anos de 1610.

37 Histria, cito pp. 222-223. 38 Le BOII Voisill, cit., p . 15, e JEAN RACINE, OWl'res COlllpltes, 3 vaIs., Paris, 1906,

JII, p. 157. Veja-se ALFREDO DE CARVAlHO, "Racine e o Brasil", in ESII/dos PemalllbllCCl/lOS, Recife, 1 907, pp. 157-164.

39 Consulta do Conselho Ultramarino de 1 7 de Fevereiro de 1647, ABU, Pernambuco, papis avulsos, caixa 3-A e cdice 1 4, fls. 1 3v/14 .

10 Lllcidwo, cito I , p. 332.

3 1

C A P T U L O I I

A DOM I NAO HOLANDESA . JOO F ERNANDES

V I EIRA NO PERODO 1630 - 164 5

1 . Sua /7articipao lia guerra. 2 . Sua alllizade COIII StachOi/lr1er e a forlllao de sI/a riqueza. 3. Seu prestgio entre os conterrneos

e o seu Ct/salllwto.

1 . Joo Fernandes Vieira apresentou-se como voluntrio, para o servio da guerra, nos primeiros d ias da invaso holandesa. Papel oficial a seu respeito refere que

por tres certides dos Sargentos-mores Pedro Correa da Gama, Martim Soares Moreno e dos capites Simo Caeiro Machado, Manoel Tavares, Gomes de Abreu Soares e outros, consta conhecerem ao d!to Joo Fernandes Vieira assistir naquella guerra desde o seu principio, em todas as occasies que se oferecero com o inimigo, selvindo sua custa como bom soldado 1 .

Perderam-se os originais de tais certides, no havendo possibilidade de se verificar se foram passadas logo aps ou muito tempo depois dos fatos certificados, para aquila tar-se do valor probante de todo o seu contedo.

Neste servio estariam compreendidos a participao, o desprendimento e o gesto romanesco - afirmado por uns e por outros negado - de Vieira na defesa do Forte de So Jorge ou de Terra. Rendida a vila de Olinda, os holandeses trataram de tomar o Recife; para tanto se fazia necessrio investir o forte, situado entrada da povoao, pelo caminho do istmo. Para reforar a sua guarnio, Matias de Albuquerque havia enviado vrios soldados, comandados por Gomes de Abreu Soares . Alguns a bandonaram o posto, sendo preciso enviar novo contingente, para o que se ofereceu o capito Afonso de Albuquerque, com seu alferes Antnio Borges e Belchior Velho, o nico soldado da sua companhia que no havia desertado . Tambm entraram nele o capito Roque de Barros (igualmente sem gente porque lhe havia fugido); lvaro F:ragoso de

I Consulta do Conselho Ultramarino de 17 de Setembro de 1649, AHU, cdice 8 1 , fIs. 298/300v.

3 5

A DOMINAO HOLANDESA. J. P. VIEIRA NO PERfoDO 1630- 1 645

Albuquerque e seu irmo Paulo Fragoso de Albuquerque, Pedro Correia da Silva e os irmos Antnio e Gaspar Andr, Manuel Martins e at 25 homens mais, escreveu o cronista D uarte de Albuquerque Coelh02 Um destes 25 homens, conforme afirmao do seu bigrafo, autor da Histria da Guerra de Pernal11buco, era Joo Fernandes Vieira3.

Contra o forte intentaram os invasores o primeiro ataque, sob o comando do tenente-coronel Hartman Godtfrielt van Steyncalenfelts, no dia 20 de Fevereiro de 1 630, conseguindo apenas matar 5 e ferir 8 dos defensores4 No dia seguinte, Matias de Albuquerque visitou o forte e aumentou para 80 o nmero da sua guarnio, acrescida depois com a incorporao do capito Francisco de Figueiroa com sua pequena companhia e outra gente e o capito reformado Gil Corra de Castelo Branco5 A 27 voltaram os holandeses ao ataquei mandava-os desta vez o tenente-coronel Adolf van der Elts . Pesadamente batido o forte pela artilharia, durante todo o dia 1 . 0 de Maro, viu-se forada a guarnio a pedir rendio no dia imediato, lavrando-se em seguida a capitulao en este Campo )I sitio adelante de la fortaleza de San Ieorge, segundo a qual seria el dicho Capitan Antonio de Lima despues de hecha la dicha e/tfriega [do forte], /levado juntame/1te CO/1 todos sus soldados )1 suas armas ordi/1arias, sin bandera )I sin mechas encendidas, CO/1 barcos ou bateles a la olra banda deI Rio, en tien'a firma, para

el a)l passar donde bien les pareciere 6. Do forte saram cerca de 80 a 90 pessoas, tendo havido alguns mortos7,

2 DUARTE DE ALBUQUERQUE COELHO, /(I[elllrias Dirias da Guerra do Brasil, Recife, 1 944, pp . 17 e 22. A edio original destas /(I[elllrias foi publicada em Madrid em 1654. A propsito deste livro, consulte-se o MS intitulado Rezones que no se deve imprimir la Historia que tratta de las guerras de Pernambuco compuesta por Duarte de Albuquerque, etc., no Brithish Museum, Additional MSS 28 46 1 , fls. 95-102, em letra de fins do sculo XVIIJ ou comeos do XIX. A Biblioteca Nacional do Rio possui cpia, seco de MSS, 1-26, 25, 16.

3 Histria, cito p. 37. 4 Liv. cit., pp. 25-26, e ] . DE LAET, laerljlck Verl,ael val/ de Vel;riclttil/gltel/ der

GeoC/rojleerde W'est ll/disclte COlllpagl/ie, 4 vols., Haia, 1931 -37, II, p. 133. A edio original desta obra de De Laet de Leyden, 1 644.

5 Memrias Dirias, cit., pp. 27 e 3 1 . 6 Veroveril/glt val/ de Sradt Olil/da, Gelegeu il/ de Capital/ia val i Pemalllbuco (Amster

do, 1 630, pp . n. num. Publicou-se a tambm o que se achou no forte: 2 pipas de vinho espanhol, 1 caixa de acar e 2 jarros com gua.

7]. DE LAET, laerl)'ck Verltael, cit., II, p. 134.

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A DOMINAO HOLANDESA. j. f. VIEIRA NO PERIoDO 1 630- 1 645

A Histria da Guerra de Pel'l1al11buco a nica fonte a mencionar a participao de Joo Fernandes Vieira na defesa do Forte de So Jorge; Frei Rafael de Jesus, que se limita a repetir a Histria, refere o episdio exagerando aquela participao, a confirmar o ditado, de que quem conta um conto aumenta um ponto. Segundo a Histria, Vieira, como consta de suas certides, prestou nessa ocasio servios de valor, tendo estado trs dias e trs noites de sentinela e, no momento da rendio, mandou a um moo que tinha na sua companhia que salvasse a bandeira da infantaria do capito Afonso de Albuquerque . . . e a prata da gineta8 .

Os artigos da rendio acima transcritos determinavam que os luso-brasileiros sairiam do Forte de So Jorge sin bandercz . Que saram assim - e os vencedores haveriam de atentar no cumprimento do estipulado - comprova-o a carta do coronel Diederick van Waerdenburch ao Conselho dos XIX, na qual, referindo-se ao dito forte e ao de So Francisco (do Pico, ou do Mar), escreveu :

Nos fortes por mim dominados foram tomadas duas bandeiras, uma das quais tem o Senhor General [Lonck] e a outro remeto por este

navio, assim como uma fImula de um corneteiro que minha gente tomou na mata a alguns cavaleiros, a qual, j untamente com a bandeira, podem W. SS. conservar como trofu e lembrana eterna .9

Joo Fernandes Vieira no abandonou os defensores; passou a servi-los como encarregado da distribuio de vveres . o que afirmam as certides que lhe foram dadas pelos sargentos-mores e capites acima nomeados: continuou ele por tempo de quatro annos na repartio dos mantimentos da gente de guerra, supprindo com sua propria fazenda por varias vezes em muitas ocasies, em que houve falta na de Sua Magestade, de que se lhe est devendo grande quantia

de dinheiro 10 O folheto holands De Brasilsche Breede B)l1 (1647) con-

B Histria, cit. , p. 42, e Castrioto, cit., p. 39. Veja-se ainda ADELlNO ANTNIO DE LUNA FREIRE, Joo Fernandes Vieira, in RiA ?, n.O 46, Recife, 1894, pp. 126- 1 4 1 .

9 Carta de D. van Waerdenburch a o Conselho dos XIX d a WIC, Olinda, 3 d e Abril d e 1 630, W , Coleo Jos Higino, Brieven e n Papieren u i t Brazilie. A traduo deste trecho, apresentada por Francisco Augusto Pereira da Costa, defeituosa: Joo Fernandes Vieira luz da histria e da crtica, in RiA ?, n.O 67, Recife, 1907, p. 273.

10 AHU, doe. cit. na nota 1, supra.

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A DOMINAO HOLANDESA. J. F. VIE IRA NO PER[ODO 1 6301645

firma o fato com sentido depreciativo, ao dizer que ele tornou a servir no Arraial na sua antiga profisso de empregado de aougueiro: No Arraial no era mais do que empregado de talhador (s/achters knecht) . 1 1

O autor do folheto ao recordar este fato, visava a apontar a baixa condio d e Vieira entre os portugueses e insinuar que foram as facilidades que lhe concederam os maus governadores holandeses que lhe deram oportunidade de enriquecer e contrair dvidas e que, afinal, para se livrar delas, levantara-se em armas contra a Companhia. Entretanto, parece certo que j ento, isto , pouco depois de 1 630, gozava ele de situao econmica mediana, pois tinha a seu servio dois criados , como se verifica do texto da consulta do Conselho Ultramarino, na qual se resumem as certides de seus servios a que j nos reportmos:

Senhoreando os olandeses no anno de 1 635 a campanha e, pondo

cerco ao Arrayal batendo-o por differentes partes, esteve dentro neUe pelejando por tres mezes que durou o sitio, em que o inimigo lhe meteo dentro mais de 2200 bailas de artelharia e outros artifcios de fogo, acodindo de dia e de noite aos continuos rebates e s fortificaes que se fizero, com dois criados seus, portando-se em tudo com muito valor,

padecendo muitas miserias e fomes pela estreitesa a que chegaro, at

que foro rendidos.12

No nosso propsito referir aqui o episdio pico da defesa do Arraial Velho e os extremos de misrias e fomes a que chegaram os seus defensores, cuja bravura salientada pelos prprios holandeses. A respeito citaremos apenas um documento indito, a carta de Matias de Albuquerque ao rei, datada de Vila Formosa (isto , de Sirinham), de 8 de Junho de 1635, um dia depois do em que recebera ali a notcia da rendio do Arraial. Nela escreveu que "dos mesmos inimigos constaria o mrito dos defensores, que no ficava abaixo do que

fizero os melhores nossos paados, vasalos de Vossa Magestade em

semelhantes ocasies assi em sofrer trabalhos, padecer fomes, doens-

I I De Bmsilscl,e Breede-Byl, cit., p. 28. 12 AHV, doc. cit. na nota 1 , supra. A Histria da GI/erra, cit., p. 7 1 , refere-se tam

bm participao de Vieira na luta nesse perodo, mencionando que tomou parte na defesa do Arraial por ocasio do ataque de 24 de Maro de 1633, assinalando-se nela e matando muitos flamengos, descobrindo a campanha COIIIO COl'/Sta de SI/as CeI1ides.

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sas e nesecidades, como no vallor e procedimento de todas as ocasies em que tanto sangue tem deramado, como na fidelidade e constancia com que tem proedido sem meo algum umano . I3

o que custou aos holandeses em esforo, em homens e munies, di-lo o capito Comelis van den Brande, que participou do stio, em carta aos diretores da cmara da Zeelndia:

Os sitiados perderam 50 homens e tiveram muitos feridos; do nosso lado, foram, aproximadamente, 40 os mortos e mai.s de 100 os

feridos; perdemos aqui 2 capites e o Coronel Artisofski foi ferido no brao; levantamos em torno do Arraial 6 redutos . . . e 2 baterias, uma de 3 peas e outra de dois meios canhes; despendeu-se com a artilharia e infantaria a atirar contra o Arraial, 34 mil libras de plvora. A maior parte do trabalho foi feito com 600 homens, de modo que o inimigo era, de dentro, mais forte do que ns, de fora, embora depois tenhamos recebido algum reforo de companhias de recrutas, vindas da metrpole

e, na ocasio da rendio, eram cerca de 1 100 os que tnhamos em luta. I"

Contra esse efetivo holands, encontrava-se no Arraial, alm dos soldados regulares, um grande nmero de moradores em armas com suas famlias, escravos e bens mveis. Nas "Condies e Artigos da rendio, assinados em 8 de Junho de 1625 por Andres Marin, determinava-se que

o Governador e Capelo-mr, Capites e mais oficiais e soldados pagos

pelo Rei, sairo livremente com suas armas, com morres acesos, balas na boca e na mochila, os polvorinhos cheios, as bandeiras de suas companhias desfraldadas, tambores batentes, sacos com roupa e tudo mais necessrio vida e que puderem conduzir aos ombros, sendo lhes dada

13 Biblioteca da Universidade de Coimbra, cdice 645, As. 40-41v. Esta uma das raras cartas da vasta correspondncia que Matias de Albuquerque deve ter mantido com a corte, acerca da defesa de Pernambuco. Onde existiro as demais?

14 Carta de C. van den Brande aos diretores da Cmara da Zeelndia, de 16 de Junho de 1 635, lAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazilie. Um outro documento, a Lyste van de compagnien, het gecommandeerde volck soo op verscheyden plaestsen tot bevrijdinge van de fortificatien alhier in Brasil ge.leecht synsJJ, 1 635, na mesma coleo, relaciona com mincia os efetivos que participavam do stio na ocasio da rendio: 1 1 86 soldados.

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conduo para as Antilhas, Ilhas Terceira, de So Miguel ou da Madeira. Isto, com relao aos oficiais e soldados pagosi quanto aos moradores,

entregavam-se sem condies: "Todos os moradores entregar-se-o ao nosso poder e agiremos com relao a eles como nos aprouver. Os escravos "de quem quer que sejo, ser-nos-o entregues 15.

No dia seguinte, marcharam os rendidos com 8 bandeiras e foram levados para o Recifei deles disse o vencedor, Arciszewsky, que foram os melhores soldados que at agora achamos no Brasil, sendo que os da Paraba e de outros lugares nunca mostraram tanta valentia como estes 16. Eram, segundo documento oficial holands, 5 1 8 homens. Os moradores ficaram retidos no Arraial, pois decidiu-se que pagariam resgate de suas pessoas e bens. Os conselheiros polticos, que formavam ento o governo supremo da colonia, escreveram aos seus superiores na Holanda:

Todos os moradores em nmero de 2 10 ficaram no interior [do Arraial], juntamente com os negros que eram uns 200 e tantos. Ouando entramos, eles se prosternaram e lhes asseguramos a vida com a condio de que eles e os bens mveis que possuam no Arraial, se resga

tariam de modo a reunirmos uma soma de dinheiro com a qual pagssemos os soldados (que no cerco bem o tinham merecido) dois ou trs

mezes de soldo. Fixou-se-lhes o resgate a cada um em particular, com o que esperamos reunir 50.000 florins, embora temamos que na oca

sio da entrega do dinheiro venham a faltar com ele. Entre estes moradores, encontram-se dois sujeitos indesejveis, um chamado Pedro da

Cunha de Andrade e outro Antnio de Freitas, que somos de opinio no devem permanecer no pas por causa de sua animosidade e grande prestgioi na primeira oportunidade, f-lo-emos embarcar para a e recomendamos a W. SS. que os retenham tanto quanto for possvel. 17

15 Texto em J. DE LAET, laerl)'ck Verl/ael, cit., N, p. 1 48. 16 Carta de C. de A. Arciszewsky ao Conselho dos XIX, Sirinham, 13 de Junho

de 1 636, lAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazilie. Sobre Arciszewsky consultar o estudo de J.C.M. WARNSINCK, Christoffel Artichewsky, iII J . DE LAET, laerl)'ck Verilael, cit., N, pp. XXV-LXXIII.

17 Carta do Conselho Poltico ao Conselho dos XIX, s.l., s.d., mas escrita no Recife, entre 15 e 25 de Junho de 1 635, IAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazillie.

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Citamos este trecho acerca de como se fez o resgate, porque vem confirmar informaes contidas na Histria da G/lerra de Perl1ambuco que, a propsito de Vieira, acrescenta que ele neste cerco se resgatou tambm . . . com dois moos seus 18.

2. Desde quando data a aproximao de Joo Fernandes Vieira e Jacob S tachouwer, no possvel indicar. Sabe-se que foi atravs dessa aproximao que Vieira estabeleceu ligaes estreitas com os invasores, e que data da o irucio da sua ascenso social e econmica, para o primeiro plano da comunidade luso-brasileira de Pernambuco, vindo finalmente a tornar-se o seu lder.

Stachouwer acompanhou o cerco do Arraial, na sua qualidade de conselheiro poltico, sendo pois de crer que desde Julho de 1 635, quando ocorreu a rendio, se tivessem conhecido. O Capelo da denncia de 1 646 exps com pormenores e nomes - o que por si s no refora a credibilidade do testemunho - a origem dessa aproximao. Segundo ele, Vieira teria servido de informante da soma que cada um dos moradores rendidos no Arraial Velho poderia pagar de resgate. E mais: teria apontado quem possua ouro e prata", para ser resgatado por maior quantia ou roubado desses haveres 19 Que nesse episdio houve roubos e crimes praticados pelos holandeses contra os moradores - inclusive pelo prprio Stachouwer - informao que nos transmite pessoa presente aos acontecimentos, o coronel Arciszewsky20 . O Capelo , porm, um informante to suspeito, que no possvel, falta de outros elementos de confronto, apurar a verdade da sua afirmativa, embora Vieira tenha sido homem pouco escrupuloso e dominado pela ambio de fazer fortuna.

Vieira, pelas referncias da consulta do Conselho Ultramarino j citada - de que adiantara dinheiro Fazenda Real e tinha a seu ser-

18 Histria, cit., pp. 109- 1 10, onde h referncia aos nomes de Pedro da Cunha de Andrade e Antnio de Freitas da Silva. Cornelis van den Brande, na carta citada na nota 1 4, supra, menciona que os holandeses, para atemorizar os rendidos, "levantaram uma forca nova em frente ao Arraial.

19 Denncia do "Capelo ao governador Antnio Teles da Silva, Pernambuco, 5 de Abril de 1 646, AHU, Pernambuco, papis avulsos, caixa 3-A. Veja-se nota 1 6 do cap. ! .

20 Carta de C. de A. Arciszewsky ao conde de Nassau e Alto Conselho, datada do fim de Maro de 1 637, in Krolliek vali I,et Hist. Ceu. te Utrecl", vol. 25, Utrecht, 1 870, p. 33 1 .

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vio "dois criados - e do cronista, - que o d como se tendo resgatado a si e a dois moos que o serviam - devia ter j ento uma situao econmica mediana. Que razes o teriam levado a permanecer entre os holandeses e a servi-los?

Embora tivesse de h muito deixado a condio de assalariado pela de patro, possivelmente no teria querido desprender-se dos seus interesses em Pernambuco, para tentar novo comeo de vida na Bahia ou em territrio livre de holandeses. Por outro lado, perspicaz como era, haveria de ter percebido as possibilidades de fortuna em negcios ou a servio dos invasores, que no demonstravam seno desejar aproveitar-se das riquezas da terra e dos moradores. E nem seria ele dos primeiros e dos menos alevantados a prestar-se a colaborar com os hereges, rebeldes coroa de Espanha. Outros, e da melhor nobreza da terra, j se tinham antecipado a e le em lhes reconhecer a soberania, quando no em lhes oferecer apoio. O tenente-coronel Balthazar Bijma em relatrio apresentado em 1 634 na Holanda, depois de referir-se elogiosamente fidelidade de muitos moradores ao governo portugus, ajunta que outros ainda se mantinham contrrios aos invasores por temerem represlias de Matias de Albuquerque. E acrescenta:

Alguns [ . . . ] e no dos menos importantes, mas dos principais da

terra, como Francisco Bezerra que era capito de cavalaria, Francisco de

Brito, Lus Brs Bezerra que eram senhores de engenho, pediram salva

guarda para si e todos os seus lavradores; Pedro da Rocha Leito, capi

to dos moradores de Iguarau e senhor de engenho, Gonalo Novo de

Lira, Manuel Jcome Bezerra, Filipe Soares, Luciano Brando, Geraldo

do Prado, todos senhores de engenho [ . . . ] mantinham. dia e noite boa correspondncia conosco.21

E Frei Manuel Calado confirma a informao dizendo que vrios portugueses e no dos mais abatidos do POVO se correspondiam com os holandeses22.

2 1 Relatrio datado de Amsterdo, de 13 de Outubro de 1 634, IAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazilie. Nem todos os apontados como senhores de engenho o eram: Geraldo do Prado Leo era apenas lavrador.

22 Lucirle/lO, cit., I , p. 48.

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No era ele, pois, seno um dos muitos que ficaram entre os holandeses; mas, no seu caso, h a particularidade de que no s ficou, como se salientou em prstimos aos invasores . A princpio serviu apenas a Stachouwer, mas pouco a pouco conseguiu granjear de tal forma a confiana dos holandeses (e, dizem os seus desafetos, que sobretudo dos mais venais, a cujos interesses favorecia), que veio a ser pessoa de confiana dos do governo, que no lhe escondiam segredo. O que de incio no passou de prestao de servios a um particular - depois seu associado nos negcios - veio a ser, mais tarde, verdadeira colaborao com os dominadores, o q ue explica a animosidade que contra ele manifestaram muitos dos que, ao seu lado, se empenharam na campanha da Restaurao.

Rendidos o Arraial e o Forte de Nazar (1635), a Companhia das ndias Ocidentais e os particulares, holandeses e portugueses, pretenderam iniciar imediatamente transaes comerciais . A terra, porm, estava devastada: engenhos queimados, a escravaria fugida, lavradores e oficiais dos engenhos emigrados . Alm disto, bandos de campanhistas percorriam o territrio conquistado, incendiando e matando . No era possvel confiar nos moradores p ortugueses ; fazia-se necessrio atrair colonos holandeses para se fixarem na conquista e cultivarem os campos. Capitais tambm no havia: era indispensvel muito dinheiro para restaurar os engenhos e fundar novas safras . Em 1635, os conselheiros polticos recomendaram ao Conselho dos XIX conceder favores aos particulares que trouxerem dinheiro para c, os quais o emprestem mediante contrato ou eles prprios adquiram engenhos, pois do contrrio este pas continuar por muito tempo deserto23 . Os moradores estavam ansiosos por negcios, para se ressarcirem das perdas da guerra:

Depois da conquista do Cabo de S. Agostinho e cio Arraial, os moradores tm-se mostrado muito dispostos a negociar e causa-nos

tristeza no termos com que os animar nisso; os comerciantes tm-se aproveitado e conseguido bons lucros. Todos os habitantes que ficaram com salvo-condutos que lhes concedemos, estariam j a cultivar a terra, se Albuquerque no tivesse forado os principais a emigrar. Em

23 Carta ao Conselho dos XIX, 5 . 1 . , s .d. , Recife, Julho ou Agosto de 1 635, IAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazilie.

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breve esperamos bons frutos para a Companhia. Todos clamam por

negros de Angola, que no temos. 24

Mas a averso aos invasores era forte:

Enquanto este pas no for povoado pelos holandeses, enquanto os seus antigos moradores no se mostrarem afeioados a ns e dispostos a defender o nosso Estado, o Norte do Brasil ter que ser mantido com

guarnies militares.25

Outro documento dizia:

Os engenhos que esto confiscados devem necessariamente ser entregues a senhores que os possam manter e pr a moer quanto antes, pois no podero continuar ao abandono por mais tempo sem arruinarem de todo [ . . . ) e nisto se deve considerar um aspecto importante, qual o da preferncia que se deve dar nisto aos holandeses e no aos portu

gueses, com razo de estado, que a da segurana da conquista.26

Os poucos que se aventuraram a restaurar engenhos, tiveram o desgosto de v-los novamente devastados pelos campanhistas27

Foi com as vitrias de Joo Maurcio, conde de Nassau, que a conquista holandesa se consolidou; batido o exrcito ibero-brasileiro at alm do rio So Francisco, puderam os holandeses e os naturais dedicar-se com menos risco s tarefas agrcolas.

o pas, do Rio Grande at onde se acha o nosso exrcito, est seguro, de modo que entre o povo [ . . . ) uns se mostram dispostos a construir casas, outros a cultivar o campo, ainda outros a restaurar engenhos 28

24 Carta do conselheiro poltico Willem Schott ao Conselho dos XIX, Sirinham, 12 de Agosto de 1 635, IAP, coleo cito

25 Carta de C. de A. Arciszewsky ao Conselho dos XIX, So Gonalo de Paripueira, 4 de Novembro de 1635, IAP, coleo cit.

26 Relatrio (2.' parte) de Servaes Carpentier ao Conselho dos XIX, Holanda, 1 1 de Junho d e 1636, IAP, coleo cito

27 Carta do Conselho Poltico ao Conselho dos XIX, Recife, 25 de Julho de 1 636, IAP, coleo cit.

28 Carta do conselheiro poltico Paulus Serooskercke Cmara da Zeelndia, 2 1 d e Maro d e 1 637, IAP, coleo cit.

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Vrios holandeses demonstraram logo confiana nos lucros do acar e decidiram-se a comprar engenhos, com o compromisso de pag-los com o produto das safras. Tais foram Jacob Stachouwer que adquiriu em 27 de Maio de 1 637 o Engenho do Meio, na Vrzea do Capibaribe, por 62 .000 florins; Jacques Hack, no dia seguinte, o Engenho do Rosrio ou So Joo da Vrzea, por 32 .500 florins; Sigemund t von S chkoppe e Nicolaes de Ridder, no dia 30, os Engenhos Velho e Guerra, no Cabo, por 70.000 florins; Servaes Carpentier, no mesmo dia, os Engenhos Tres Paus e Tracunham de Cima em Goiana, por 60.000 florins, e outras pessoas mais29.

Entretanto, era inadivel facilitar o crdito, de maneira a permitir aos novos senhores a reconstruo dos engenhos e a aquisio de escravos . Em um documento oficial assinado por Nassau e pelos altos conselheiros, datado de Maio de 1 637, diz-se:

Os engenhos esto em geral por toda a parte e em conseqncia das ltimas invases dos campanhistas do inimigo, muito arruinados;

grandes partidas de negros e de bois foram levadas; as casas de moenda e outros edifcios, incendiados; os canaviais em muitos lugares reduzi

dos a cinza e os moradores mortos, ou pelo menos, to saqueados que nada possuem. E a mais recente incurso do inimigo causou maior des

truio nestas terras do que toda a guerra nos seis anos anteriores. Assim, muitos senhores de engenho esto de tal modo empobre

cidos e faltos de negros, bois e fbricas, que no podero pr as suas propriedades em atividade a no ser concedendo-se-lhes crdito ou for

necendo-se-lhes negros, bois, etc., com que possam moer, cousas que muitos dos nossos esto solicitando e ser muito conveniente que se lhes conceda (e os engenhos so uma boa garantia do que se lhes adiantar) e com os pagamentos dos primeiros acares fabricados a Companhia obter bons lucros.

Alm disto, a Companhia ter ainda grande vantagem com os engenhos se os ajudar a p-los mo entes, pois percebendo o dzimo e a recognio arrecadar em acar, por engenho, 30% da safra, isto , num engenho que moer 30 000 arrobas, receber 600 arrobas do branco,

300 do mascava do e 500 a 600 do panela, as quaes aqui valem, no

29 Ceuerale Missive, Recife, 2 de Junho de 1637, lAP, coleo citada e apenso I I a A. VAN DER DUSSEN, Relatrio, cit., pp. 158-159.

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mnimo, 6000 florins por ano. Em um nmero grand e de engenhos a restaurar, o total ser uma soma importante, anualmente, que por agora se no recebe. Pelo exposto se v quo necessrio , e conveniente para

a Companhia, que os engenhos sejam reparados.30

Os d iretores da Companhia e os acionistas ficaram decepcionados com a notcia, pois contavam com lucros imediatos, com a venda dos engenhos; em vez disto, pedia-se-Ihes que adiantassem dinheiro para a reconstruo deles31 . Os negociantes holandeses particulares anteciparam-se Companhia no fornecer a crdito aos senhores de engenho e lavradores:

Os trabalhos agrcolas esto em progresso e em todos os lugares a fundao de canaviais est sendo fei ta com nimo; acredita-se que nmero maior de engenhos do que se esperava, venha a moer, de modo que ainda este ano se conta com uma safra razovel e com maior quan

tidade de acar do que era dado esperar, considerada a devastao geral dos engenhos e a pobreza dos seus proprietrios. Mas tudo foi facilitado com os grandes carregamentos de mercadorias que os negociantes trouxeram e que tm adiantado aos senhores em muita quantidade, para serem pagos na safra seguinte prxima, isto , daqui a dois anos e mais. Os senhores de engenho comearam a trabalhar e a restaurar as suas propriedades, embora a maior parte deles esteja to cheia de dvidas que o acar que vierem a fabricar nos dois ou trs prximos anos j est todo empenhado.32

Foi com este esprito e com essas perspectivas de lucro, que Jacob Stachouwer se decidiu a fazer-se senhor de engenho. Entretanto, faltava-lhe, como a todos os seus patrcios, a experincia necessria sua nova ocupao. Deixou em Agosto de 1 637 o cargo de conselheiro poltico para, como simples particular, dedicar-se agricultura33. possvel que j ento contasse com a colaborao de Joo Fernandes Vieira, ou que pouco depois o tivesse convidado para fei-

3 Gellerale Missive, Recife, 28 de Maro de 1 637, lAP, coleo cito 3\ Gellerale lvIissive, cito 32 Gel/erale Missive, Recife, 17 de Novembro de 1 637, LAP, coleo cito 33 Gel/erale J\!Tissive, Recife, 25 de Agosto de 1 637, idem.

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tor de seu engenho, vindo mais tarde, confiante na sua experincia e inteligncia, a faz-lo seu scio e procurador. Vieira devia estar ento afastado de sua atividade de marchante, no s pela nova organizao dada pela Companhia ao abastecimento de carnes, como pela devastao do gado durante a guerra. Achava-se pois em condies de aceitar uma nova a tividade. S erviu a princpio a Stachouwer como empregado (alguns folhetos holandeses dizem-no jonge isto , criado de Stachouwer), depois como feitor dos seus engenhos e mais tarde como seu procurador34 .

J ento os holandeses tinham percebido que no podiam dispensar a colaborao do elemento portugus nos diversos ofcios especializados, requeridos pelo cultivo da cana e fabricao do acar. Foram inmeras as informaes dirigidas do Recife Holanda de que se fazia necessrio promover a imigrao de colonos que se fixassem na zona rural e se dedicassem ao cultivo dos campos e ao aprendizado e exerccio daqueles ofcios; adiantavam que uma tal imigrao viria reduzir as despesas com guarnies militares e, mais importante, era o nico meio de retirar aos portugueses qualquer veleidade de se levantarem contra os seus conquistadores . Razes to convincentes, entretanto, no tiveram acolhida de parte dos dirigentes da Companhia das ndias Ocidentais; no s no houve qualquer iniciativa sria em favor da colonizao rural, como nio se tentou interessar a gente mida proveniente da Holanda nos ofcios mecnicos dos engenhos. Os holandeses, escoceses, franceses, ingleses e israelitas que passaram ento ao Brasil em grande nmero fizeram do comrcio e das profisses burguesas, o seu meio de vida. E assim a vida rural continuou na inteira dependncia dos luso-brasileiros, embora por todos os holandeses fosse proclamada a m;. f dos portugueses35 .

31 Ex/ra/ e/l{{e Cop)'e vali versche)'r/e Brievw ell Schrifrm, belallgwde r/e Rebellie der Pae/Jsc!le Por/llgesm, cito p. 4, diz Johan Fernandes Vieira, een Molaet, die weynich jaren te vooren de Jonghe was gheweest van de Heer Stachouwer e Vieira die Facteur is van de Ingenios vande Heer Stachouwerj P . MOREAU, [-/is/oire, cito p . refere que Vieira avoit et quelques annes domestique de I 'un des (conselheiros) politiquesj Llldr/mo, cito I, p. 123.

35 Para citar documento da primeira fase da guerra: Breeder verclaringe eeniger articulen in de instructie der Politicque Raeden den gecommitteerden Raedt (Servaes Carpentier) met gegeven, apresentado em sesso do Conselho dos XIX de 19 de Junho de 1636, lAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazilie.

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Talve.z se explique assim, pela experincia brasileira de Vieira melhor do que o faz o Capelo da denncia de 1 646, no trecho j citado - a sua aproximao ou, na frase de que usa no seu testamento, a apertada amizade que o uniu a Stachouwer.

A mais antiga referncia a Vieira, em papis holandeses, ocorre num documento do comeo de 1 637, como subscritor, entre vrios, de um memorial endereado ao conde de Nassau pela Cmara de Olinda e por homens de negcio, alguns deles cristos-novos. Nessa petio declaravam que tinha chegado ao seu conhecimento o propsito da d ireo da Companhia de monopolizar o comrcio do Brasil e expunham que, se verdadeira a notcia, era ela

contrria a todas as promessas que aqui nos foram fe.itas pelos chefes ento no governo supremo e pelos que conquistaram estas terras, os quais, em nome das Altas Potncias os Senhores Estados Gerais dos Pases Baixos Unidos, de Sua Alteza o Senhor Prncipe de Orange e da Companhia, asseveraram que continuaramos a desfrutar os nossos

direitos, deixando-nos gozar de todos os privilgios e liberdades que tnhamos conseguido sob a coroa de Espanha; e mais, uma ou outra vez nos foi dito que teramos maiores liberdades, no s em privilgios de j ustia e de religio, como no desenvolvimento dos nossos negcios e

capitais.

Esse requerimento, datado do Recife de 7 de Maro de 1 637, estava assinado por Gaspar da Silva e Bemardim de Carvalho, vereadores, Pedro da Cunha Pereira, procurador, todos da Cmara de Olinda, e por Ferno do Vale, Antnio Pais de Azevedo, Baltazar da Fonseca, Simo do Vale, Baltazar Gonalves Moreno, Miguel Roiz Mendes, Manuel Roiz Tavares, Antnio Roiz Tavares, Joo de Barros Corra, Toms Lus, Gaspar Francisco da Costa, Manuel Rodrigues Cardoso, Manuel Gonalves Dinis, Joo da Torre de vila, Gabriel Soares, Joo Fernandes Vieira, Lus Brs Bezerra e Pedro da Cunha de Andrade36.

Estaria j ento a servio de Stachouwer ou negociaria por conta prpria? No h e lementos para indicar desde quando passou a servi-lo, sendo possvel que a partir da compra do Engenho do Meio. O que parece certo que foi a travs dos servios prestados a

36 IAP, Coleo Jos Higino, Brieven en Papieren uit Brazilie.

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Stachouwer que Vieira conseguiu ascender na confiana dos prprios holandeses do governo. Os documentos confirmam a informao que nos transmite Pierre Moreau: Vieira avoit et qllelques a1111es domestique de 1'1I11 des t:Jo/itiques, t:Jrit C011/'1oissal1ce des affaires, s'acquit de la

crea11ce, te110it fume /es droits de la COIl1t:Jagnie SUl' le sucre qui se faisoit da11s les E11gins, faisoit cout:Ju /e bois de bresi/, avoit toujours que/q/le t:Jro

t:J0sitio11 faire /10ur le t:Jrofit de la C0l1wagnie 37 Stachouwer regressou Holanda em Maio de 16383B Vrios con

temporneos so unnimes em afirmar que a esse tempo Vieira conquistara completa confiana do seu patro, de tal modo que este, ao embarcar, f-lo seu procurador, com amplos poderes . O fato confirmado tanto pelos seus panegiristas (Calado e outros) como pelos detratores (como o Capelo). Era grande o encargo de administrao que Vieira assumiu, pois, alm do Engenho do Meio, comprado a crdito em Maio de 1 637, Stachouwer adquirira ainda, em sociedade com Nicolaes de Ridder (que exercera as funes de advogado-fiscal, isto , promotor pblico da Companhia), dois outros: em 6 de Maio de 1638, o Engenho Ilhetas, na Ribeira do Una, por 27.000 florins, e no dia 17 do mesmo ms e ano, o Engenho Sant'Ana, em Jaboato, por 30.000 florins39 De Ridder voltou ptria na mesma frota em que o seu associado e a Joo Fernandes Vieira coube a incumbncia de gerir as trs propriedades.

Conquistada a confiana de Stachouwer, procurou Vieira captar a dos altos conselheiros holandeses, para o que comeou a oferecer-lhes os seus servios, ao mesmo tempo que procurava multiplicar os seus negcios. Em 29 de Maio de 1638, incumbiu-se de adquirir acar para a Companhia, nos engenhos do interior40. Em 17 de Agosto do mesmo ano, concedeu-se-Ihe permisso para apreender todos os negros pertencentes quelas pessoas que se tinham retirado, trazendo todos os que apanhasse presena dos membros do mesmo Conselho, para lhe serem vendidos a 130 reais a pea, no estado em que se achassem, fossem moos ou velhos, homens ou mulheres4 1 .

37 P. MOREAU, l-lis/oire, cit., p . 48. 38 Gwerale Missivell, Recife, 23 de Maio e 29 de Junho de 1 638. 39 Apenso II a A. van der Dussen, Rela/rio, c. , pp. 158-159. 40 Dag. NO/llle da data citada, lAP, Coleo Jos Higino . . " Jos HIGINO DUARTE PEREIRA, Relatrio, in RIAP, n.O 3D, Recife, 1 886, p. 30.

No encontramos, porm, o documento, entre as cpias da Coleo Jos Higino; entre-

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A DOMINAO HOLANDESA. J. F. VIEIRA NO PERODO 1 60101645

Em 1 2 de Agosto, ainda de 1 638, Vieira arrematou, em seu prprio nome, por 26.000 florins, o contrato anual da "penso , sobre os acares dos engenhos de Pernambuc042 Por esta mesma poca (entre 1 de Agosto e 6 de Outubro de 1 638), Vieira adquiriU! a crdito, em leilo, "para o Senhor Jacob Stachouwer, um partido de canas que pertencera a Lus Barbalho Bezerra, por 28.500 florins43 Pelo preo seria mais que um simples partido : seria terreno de excepcional fertilidade e talvez suficiente para se levantar nele um engenho.

A 2 de Agosto de 1 638, ocorreu a priso de vrios senhores de engenho e lavradores, acusados de manterem correspondncia com o inimigo e de dar acolhida aos seus campanhistas. Foram eles, em Pernambuco, Pedro da Cunha de Andrade, senhor do Engenho So Sebastio (do Curado), Joo Carneiro de Mariz, senhor do Engenho Sibir de Riba em Ipojuca, Filipe Pais Barreto, senhor do Engenho Garapu, Arnau de Holanda, senhor do Engenho Maciape, Rodrigo de Barros Pimentel, senhor dos Engenhos do Morro e de Santo Antnio em Porto Calvo, Bernardim de Carvalho e Francisco Berenguer de Andrada, lavradores de cana, Belchior lvares, proprietrio de currais de gado no rio de So Francisco e de terrenos na ilha de Antnio Vaz. Na Paraba: Duarte Gomes da Silveira, senhor do Engenho do Salvador, e Joo do Souto, senhor do Engenho Santa Luzia. Foram apreendidos todos os papis dos acusados e estabelecida uma comisso de inqurito . Depois de longa demora, nada se apurou contra eles. Entretanto, morrera na priso Pedro da Cunha d e Andrade, um dos mais prestigiosos dentre os acusados; e os holandeses fizeram uma demonstrao de severidade apenas com os mais modestos

tanto, no h dvida acerca da fidedignidade da informao, pois da Dag NO/llle, de 21 de Setembro de 1 638, consta ter Vieira comparecido ao Conselho e prestado depoimento sobre 5 negros que tinha apreendido.

42 Dag. NO/llle, da data citada, e Cellerale i\!lissive, Recife, 7 de Outubro de 1 638, IAP, coleo citada. Entendia-se por "penso" o foro de 3% de todo o acar fabricado naqueles engenhos em que tivesse havido permisso do donatrio para explorao das guas existentes no terreno dado em sesmaria, conforme preceituava a carta de doao da Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho, I-{is/ria ria Colollizao Por/IIgllsa rio Brasil, 3 vis. , Porto, 1921-24, III, p . 310 .

43 Ceuerale i\!Tissive, Recife, 6 de Outubro de 1 638, IAP, coleo citada. O "partido que foi de Luiz Barbalholl foi incorporado ao Engenho So Joo, como se v de uma escritura de hipoteca feita por D. Maria Csar a Jernimo Csar de Melo, datada de Olinda, 20 de Dezembro de 1 686, MS, includo na miscelnea "Notas Histricas e Curiosas", datada de 1876, vaI. I, fls. 42-48, do arquivo do IAI'.

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daqueles, mandando decapitar Joo Batista e Julio de Arajo e banir outros para a ilha de Fernando de Noronha e para a Guin . Condenada tambm degolao foi D. Jernima de Almeida, mulher de Rodrigo de Barros, mas as senhoras portuguesas intercederam por ela junto ao conde de Nassau, sendo perdoada (veja-se a biografia de Frei Manuel Calado nesta srie)* . Um grupo de senhoras holandesas pediu o perdo de Julio de Arajo, sendo atendidas. O nico a ser decapitado foi Joo Batista. Os senhores de engenho sofreram penas menores: Duarte Gomes foi exilado no Rio Grande do Norte e Filipe Pais e Rodrigo de Barros tiveram seus engenhos por menagem44.

O nome de Joo Fernandes Vieira no apareceu entre os dos suspeitos. Estava ele ento voltado de todo para os negcios, muito empenhado em fazer fortuna para se inimizar com os holandeses, embora no tivesse deixado de interferir pelos seus conterrneos. Entre os detidos estava como vimos, Francisco Berenguer de Andrada, seu futuro sogro, que talvez no esquecesse nunca os sofrimentos por que passou na priso.

Em 1639, era Vieira pessoa do primeiro plano da comunidade portuguesa de Pernambuco, pois em Junho o seu nome aparece, pela primeira vez, entre os indicados para o cargo de escabino de Olinda4s Ainda no mesmo ano, com a transferncia para o Recife da sede da Cmara de Escabinos, at ento fixada na antiga capital de Pernambuco, aumentado de 5 para 9 o nmero deles, o nome de Vieira surge pela segunda vez entre os propostos, no estando, porm, entre os escolhidos pelo conde de Nassau para exerccio do carg046. Era ento Gaspar Dias Ferreira o portugus que maior confiana merecia aos holandeses, e foi escabino de 1637 a 1 640, com pequena interrupo em 1 639 . Talvez a averso manifestada por Frei Manuel Calado a Gaspar Dias Ferreira indique, alm de ressentimentos pessoais, desavena entre este e Joo Fernandes Vieira. Nada mais natu-

Nota do Editor: O Autor refere-se a um conjunto de pequenas biografias, que publicou a partir de 1954, sobre os chamados restauradores pernambucanos. O presente estudo sobre Joo Fernandes Vieira a mais volumosa delas.

4' Dag. NO/II/e/I, de 2 de Agosto de 1 638, 5 de Maro e 24 de Maio de 1639, e carta do advogado Fiscal Willem van der Hoorn Cmara da Zeelndia, Recife, 5 de Maro de 1639, lAP, Coleo Jos Higino, cito Duarte Gomes, com 85 ou 86 anos, foi mandado para o Castelo Ceulen, no Rio Grande, no por culpas apuradas, mas apenas por presuno e por ser pessoa de grande considerao e ter muitos seguidores.

45 Dag. NO/II/e, de 22 de Julho de 1639, lAP, coleo cito 46 Dag. NO/II/e, de 24 de Novembro de 1 639, idelll.

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ral que existisse esta rivalidade entre os dois, que se esforavam ambos em captar a confiana do governo holands . Gaspar Dias, pelo que se conclui do depoimento de Calado, parece ter conseguido a do conde de Nassau e Vieira a dos altos conselheiros, sobretudo a de Dirk Codde van der Burgh, elogiado pelo frade cronista. Ferreira viria a ser sobretudo o advogado administrativo, a quem se recorria para resolver qualquer assunto difcil j unto ao conde e ao Conselho. Embora senhor de engenho, era atravs da confiana que desfrutava j unto a Nassau - e talvez abusando dela - que procurava satisfazer os seus propsitos de riqueza. Vieira acamaradou-se com os do governo para servir aos seus interesses de senhor de engenho e de homem de negcios. Na tal ou qual rivalidade entre e les, foi Vieira quem conseguiu maior fortuna. Gaspar Dias Ferreira e ra um tipo de aventureiro intelectual, com boa instruo latina e autor de escritos muito interessantes; baseou na sua amizade com Nassau a sua ambio de riqueza. Vieira, de maior sagacidade poltica e comercial, mas de poucas letras, serviu-se da amizade com os holandeses para facilitar e alargar os seus negcios. Por remir minha vexao ou pelos trazer contentes foi como pretendeu justificar no seu testamento a aproximao que tivera com os flamengos.

Ter sido 1 640 o ano em que Joo Fernandes Vieira se considerou plenamente vitorioso, na sua longa ascenso, de menino de aougue a senhor de amplos haveres. Como teria reunido a fortuna que neste ano comeou a ostentar?

Indicamos atrs que em 1635 j devia possuir alguns bens, pois tinha dois moos a seu servio e adiantara dinheiro Fazenda Real. Fez-se depois empregado de Stachouwer e, mais tarde, passou a administrar os trs engenhos que este adquirira a crdito; serviu de intermedirio na compra de acar para a Companhia e contratou a captura de escravos pertencentes aos emigrados de Pernambuco; arrematou o contrato da penso dos engenhos e ao mesmo tempo negociava no Recife com logea, de que tambm o encarregara Stachouwer, segundo o Capelo e ele prprio o confirma no testamento, ao afirmar que teve largas contas com os Governadores da Capitania, que foram do Supremo Conselho, aos quais comprei quantidade de fazendas, de roupas e de escravos47.

47 Denncia do "Capelo, cito na nota 1 9, supra, e "Testamento cit., p. 29.

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Com audcia, continuou a contrair novos compromissos: em 1640, arrematou a cobrana dos trs principais contratos das rendas da colnia. para lamentar que no se conservem as atas das sesses dirias do Alto Conselho holands do Recife, do perodo de 4 de Fevereiro a 14 de Setembro, entre as quais, as do ms de Julho em que foram levados praa aqueles contratos, decerto com pormenores a respeito. Mas h documento por onde se v que neste ano Vieira arrematou os contratos dos dzimos dos acares das capitanias de Pernambuco e de Itamarac e das penses dos engenhos da primeira, tudo por 1 84.500 florins . Alis, em 1640 verificaram-se fortes ataques de campanhistas luso-brasileiros ao territrio ocupado pelos flamengos, em seguida ao fracassado ataque da armada do Conde da Torre, com o incndio de mais de 800 tarefas de cana, segundo declarao do prprio Vieira, por cujo motivo solicitou ele, em Maro de 1641 , o abatimento de 80.000 florins do montante daquela arrematao, alegando a devastao dos canaviais e conseqente reduo das safras. Depois de longos entendimentos, foi-lhe concedido o desconto de 28.640 florins nos dzimos de Pernambuco, 5.200 nas penses dos engenhos da mesma Capitania e 4 . 160 nos dzimos de ltamarac, no total de 38.000 florins4B

O ano de 1 640 trouxe-lhe ainda a distino de rep resentar os moradores portugueses da Vrzea do Capibaribe na assemblia que o conde de Nassau convocou, de 27 de Agosto a 4 de Setembro, para tratar de cousas que so necessrias ao bem pblico e direo do governo . Representavam-nos, alm de Vieira, Bernardim de Carvalho, lavrador do Engenho So Sebastio, Antnio de Oliveira, proprietrio de um partido livre e fornecedor de canas do mesmo engenho, e Antnio Cavalcanti, lavrador do Engenho So Brs;, mais tarde governador, juntamente com Vieira, da insurreio pernambucana. Nessa assemblia tomaram parte os mais categorizados elementos da chamada aristocracia rural de Pernambuco e a altivez com que se portaram com os dominadores, nessa ocasio, indicava que do meio deles sairiam os futuros restauradores49.

Em 1 64 1 Vieira encarregou-se, por contrato com o Alto Conselho, de estabelecer dois passos ou trapiches s margens dos rios

48 Dag. NO/II/e, de 18 de Maro de 1 641 , IAP, coleo cit . 49 Atas da Assemblia Geral, in RIAP, n.O 31, Recife, 1 886, pp. 1 73238.

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Capibaribe e Beberibe, para recolher caixas de acar, evitando o seu armazenamento no prprio Recife, onde os carros de boi, ao entrarem carregados, estragavam o empedrado das ruas. Recolhidas aos novos trapiches, seriam depois, facilmente, conduzidos pelos rios at os navios no porto. O passo do Beberibe determinou-se que seria instalado na cidade de Olinda e o do Capibaribe prximo aldeia Nassau, isto , no atual bairro da Capunga, como se fez. O contrato de arrendamento - que inclua tambm o Passo dos Afogados j exis