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João Felinto Neto Gota d’água Poemas – 1ª Edição – Mossoró - 2009

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João Felinto Neto

Gota d’água

Poemas – 1ª Edição – Mossoró - 2009

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2009 © Copyright by João Felinto Neto

F315g Felinto Neto, João.

Gota d’água / João Felinto Neto. – Mossoró, 2009.

120p. ( 1ª Edição)

ISBN: 978-85-60656-20-2

1. Literatura brasileira – Poesia 2. Poesia norte-rio-grandense I. Título

CDD: B867.1 CDU: 82 (813.1) - 1

João Felinto Neto Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 - Santa Delmira I

– Mossoró, RN CEP: 59 615 – 790

Fone – (0XX84) 3318 4245 E-mail: [email protected] Site: joaofelintoneto.xpg.com.br Site: joaofelintoneto.xpg.com.br Site: joaofelintoneto.xpg.com.br Site: joaofelintoneto.xpg.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do código penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei nº. 10994 de 14 de dezembro de 2004.

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Índice Dedicatória 07 Prefácio 09 Dados biográficos 11 Gota d’água 13 Palavras tortas II 14 Fatia 15 Delito 16 Eterna solidão 17 Por trás da máscara 18 Na tortura 19 Frágil esperança 20 As flores dos mísseis 21 Ano novo II 22 Mera abstração 23 É você 24 Julgamento 25 O ativista 26 O quebra-cabeça 29 Noite e espera 30 Inocente e leal 31 O experimento 32 O afogado 33 Objeto de oração 34 Dedo em riste 35

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Chuva 36 O avarento 37 Espantalho moribundo 38 Toque íntimo 39 O condutor 40 No paiol 41 A chave 42 Questão de arte 43 Por viver 44 Paradoxo 45 A herdeira 46 Maria Vitória 47 Soneto distante 48 Fruto sem casca 49 Simplesmente faço 50 Mais distante 51 Somente você 52 No borrão 53 Que diabos 54 Fajuta 55 Fraqueza 56 Lembra-se? 57 Soneto ao óbolo 58 Soneto à avó magra 59 Vagas e divagações 60 Sorria, você está sendo almejado 61 Ignora 62

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Dor e medo 63 Doe órgãos 64 Serôtino 65 O altar 66 Dilema 67 Preto no branco 68 Minha letra 69 Revoada 70 Gênio criativo 71 Cálices quebrados 72 Triste poeira 73 A lista de defuntos 74 Bucólico segredo 75 Na palma da mão 76 A escadaria 77 Questão antiga 78 Tom de voz 79 A casa fantasma 80 Desvio moral 81 Os mendigos 82 A cegonha 83 O envelope 84 O ciúme 85 Ampulheta virada 86 As caricaturas 87 A flor e o colibri 88 O jornalista 89

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O abismo 90 Canteiros 91 Matriz 92 Rio de lágrimas 93 Demência transitória 94 Cicatriz 95 Verbo indomável 96 Vice-versa 97 Carrossel de palavras 98 A dança das letras 99 Apáticos detentos 100 ½ 101 De mala cheia 102 Homens de fumaça 103 Indesejada 104 Lacônico 105 Contra ou a favor 106 Semblante 107 Princípios do soldado 108 Rostos 114 Doutora 115 A praça da estação 116 Massificação 117 Anjo solitário 118 A metáfora da mariposa 119 Silêncio e segredo 120

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Dedicatória

Aos que choram facilmente pelo que realmente sentem. Mais que gotas d’água, são lágrimas de emoção. Eles merecem toda a dedicação.

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Prefácio

Será por estilo, por insensatez ou mesmo por liberdade? O que passa na realidade, na cabeça do poeta quando azucrina de falar de forma ínfima na universalização do verso?

O poeta faz poesia, não sucesso; tem intrínseca alegria em criar; não importa se jamais vai agradar ou apenas aborrecer quem consegue perceber que ele apenas quer incomodar.

Ao abrir os braços e olhar para o céu ao receber os pingos da chuva, percebemos a grandeza do universo. O poeta resume essa grandeza de forma poética, numa singela gota d’água. Na união de cada gota, temos uma enorme boca que nos fala numa verdadeira enxurrada. O poeta é sinistro quando fala. Se você não percebeu, esse maldito poeta sou eu.

O autor

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Dados biográficos No dia 04 de outubro de 1966, nasce

João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho.

Em 1986 ingressa no serviço público. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa a escrever e catalogar poemas e crônicas. Até

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então, seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.

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Gota d’água Eis a forma encontrada Para definir meu verso: Uma simples gota d’água Na grandeza do universo. No silêncio, foi disperso Sem palavra. Convertido pelo tempo, Enxurrada em movimento, Gota d’água. Transformado em minha mão, Em tinta preta, Pelo bico da caneta Em enorme solidão. Gota d’água, Uma aguaça De emoção.

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Palavras tortas II Na espera Que você surja na porta, Minha mão morta, Não consegue escrever. Tentando registrar o que dizer, Me perco em refazer palavras tortas. Palavras nossas, Dispersadas em silêncio, Que pelo tempo, Conseguiram se apagar. Eu fico agora, A esperar Por sua volta. Palavras tortas, Sem respostas, Que tendem Para sempre, Nos calar.

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Fatia Eu deveria Ser Um pedaço, uma fatia Da mais intima poesia, Do mais ínfimo querer. Não há grandeza em saber, Se mostrar sabedoria. Quem na verdade, se avalia, Desconhece sua valia, Desperdiça Seu poder.

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Delito Meu delito Está no riso Disfarçado; Não por eu ter violado Uma lei. Já não sei Se ainda, sou culpado. Assustado Com o risco de talvez, Ser julgado Pelo erro de vocês.

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Eterna solidão O que eu tive na vida Além da data esquecida, Da dor no peito, contida, E da perdida ilusão? O que mantenho na mão, Já na forma cadavérica, Senão, A luta sem trégua Com os germes que a terra Colocou em meu caixão? Os meus feitos, Foram em vão. Meus defeitos, Exaltados. Não sou de Deus nem do Diabo. Sou um louco condenado A eterna solidão.

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Por trás da máscara Seja perdoado, o culpado, Pela indiferença do inocente. A necessidade do indigente É a penitência do que é dado. Na benevolência do presente, Sinto a intolerância do passado. Troque a salvação do condenado Pela redenção do indulgente. A lição que deixa o penitente, É que acredita no pecado. Na benevolência do presente, Sinto a intolerância do passado. Que o louco seja relevado, Pelo seu estado de demente. Aquele que vive plenamente, Deve ser no mínimo, respeitado. Na benevolência do presente, Sinto a intolerância do passado.

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Na tortura Comovente, Na tortura, o deleite De um poeta já demente. Cresce a barba, Caem os dentes. Já se perde na palavra, Já se cala, Indiferente. Entre versos de loucura, Se recusa, Entre dentes, Que não seja sua a culpa, Por não se achar inocente.

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Frágil esperança Não há tristeza que não se dissipe Ante o sorriso de uma criança. Na mais frágil esperança, Não se desiste E se resiste, E se alcança, Se comemora com dança, E se demonstra Que existe.

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As flores dos mísseis Brotam flores Em cápsulas vazias De mísseis disparados Há poucos dias, Há pouco tempo. Em silêncio, O mundo ouvia Do Afeganistão, Um só lamento, Um pedido de socorro Que se fazia, Que se perdia Nas areias Pelo vento, Nas aldeias Por constante sofrimento, Na esperança que morria.

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Ano novo II O ano novo Não parece ser tão novo Quanto parece. O ano novo Não merece Minha prece Nem tampouco, Meu esmero. É mais um ano que espero Sem fazer celebração. O ano novo Não passa de ilusão.

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Mera abstração Deus é uma assombração Presente No coração dos penitentes. É tão ausente Em sua omissão, Que nos dá a impressão Que é indiferente. Deus parece mais ser gente Do que mera abstração.

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É você Sonhe pela possibilidade Que na espontaneidade Tudo pode acontecer. Acreditar é poder Transformar em realidade, O objeto que anseia, o querer. Vá além do sonho. Esse mundo tão estranho, Na verdade, É você.

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Julgamento E na leitura do meu pensamento, Minh’alma silencia sem saber Qual rumo a se tomar. Sem se perder Na profusão confusa de lamentos, Num corpo infligido de tormentos, No inferno solitário de meu ser, Minh’alma então começa a enlouquecer; Sem perceber, Tende a fazer Seu próprio julgamento.

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O ativista I A mediocridade de minhas palavras, Deixa-me em silêncio. Não sou douto, Apenas expresso pensamentos, Na maioria das vezes, Inevitavelmente loucos. II Talvez, A minha lucidez Seja a insensatez De vocês. III Eu discordo do que pensa a maioria. Quem sabe seja vilania De minha parte Ou por arte De meu caráter, Ou por antipatia?

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IV Não meço o meu discurso por palavras, Mas por idéias concluídas. Também não meço minha vida Pelos dias de estrada, Mas pelas convicções mantidas. V Apelo sutilmente, para que o mundo ouça. Todavia, Diante da surdez e teimosia, Eu uso a força Com vigor e energia. Não sou um defensor de poesia E sim, um ativista que está à solta. VI Eu sinto um gosto amargo em minha boca E até saio do sério Quando o mínimo que espero É que reconheçam o mérito Da escolha.

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VII Apelo para cada reação Quando tenho a intenção De agredir. Minhas palavras tendem a abrir Uma fenda na razão, Um rasgo no coração De quem me ouvir. VIII Eu não pretendo Ver o mundo me seguir, Apenas resumir Tudo que penso. O mundo se acabará aqui Por jamais saber medir O valor de seu empenho.

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O quebra-cabeça São peças De um quebra-cabeça. São essas Que postas às avessas, Não nos dizem nada. É cada Uma, parte da mesma Figura dispersa na mesa, Em curvas, delineada.

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Noite e espera Eu vejo teu rosto Desfazer-se na janela Pelos pingos da chuva. As lágrimas não são tuas. As dores são daquelas, De desgosto. O mês é agosto. O dia, vinte e dois. Ainda sinto o gosto De nós dois. E depois, Só noite e espera.

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Inocente e leal Qual seria a prova Que afinal Mostraria a ciência, Já que o homem conserva sua crença Pela simples presença Do mal? Onde ficam a ética e a moral Quando a fé as condena, Se quem cumpre a pena É um mero mortal? Cada qual, Com uma parcela de culpa. Cada um que se julga Inocente e leal.

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O experimento A forma definida em pensamento Torna-se real. Eis a idéia material Em movimento. O velho camundongo passa o tempo Sendo escravo irracional Do seu silêncio, Roda o experimento, Gira a roda sem lamento, Gira a vida dentre o caos.

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O afogado Toda a independência de um homem Está na fantasia de que é livre. Na verdade, O homem é prisioneiro de seus atos. É fato, Liberdade não existe, Estamos condenados a ser tristes Pela fatalidade do acaso. Mesmo no raso, O afogado Não resiste.

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Objeto de oração Sutileza e perversão Andam de mãos dadas. Anjos de asas dobradas. Demônios num mundo cão. Medo e laxidão Devoram a inocência imaculada. Para nossas negras almas, Sexo é objeto de oração. O destino é um deus pagão Que nos aguarda Com uma vontade amarga, Sem piedade ou emoção. Deus então, Não passa de uma farsa, É apenas o demônio em solidão.

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Dedo em riste Sem você, O meu mundo não existe. Não porque me sinta triste Ou esteja em solidão. É meu velho coração Que demasiado insiste Em viver de emoção, E dedo em riste, Me acusa de egoísmo e ambição. O que faço sem você Ante tal situação: Se meu coração desiste De bater? O meu mundo não existe Sem você.

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Chuva São as lágrimas do céu De um deus arrependido Por nos infligir castigo Tão cruel. Chove mel Sobre o chão embrutecido Onde o homem sem motivo Come fel.

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O avarento Sua avareza ultrapassava a razão. Onde se viu, Gastar mais de um milhão Andando milhas Pra economizar migalhas? Eu conheci o velho de chapéu, sandálias E a bengala Apoiada em sua mão. Sua avareza ultrapassava a razão.

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Espantalho moribundo Minha alma sempre está Num silêncio tão profundo, Que eu chego a duvidar Que ainda estou no mundo. Espantalho moribundo, Onde a morte vem pousar. Talvez para lhe falar: Sinto muito! Sinto muito! Num milésimo de segundo, Volta o corpo a respirar. Espantalho vagabundo, Fecha os braços para o mar, Abre os olhos para o mundo.

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Toque íntimo Beijar as tuas mãos É mais que gratidão, É devoção A esse amor que sinto. Eu sei que ainda minto, Por não chegar ao cimo De tão grande afeição.

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O condutor Que ridículo esse bigodinho seu; Não tão esdrúxulo Quanto ao ódio por judeu. Onde andava o bom senso alemão Quando o Führer perdeu a razão? O que havia Com as minorias Que o Führer tanto perseguia? Será mesmo Que terror e medo Serviram de lição? Se alguém se impuser a perfeito, Preste muita atenção.

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No paiol Conto uma história verdadeira, Onde há sol, vento, poeira, Tradição, lição, fogueira, Uma feira, uma freira, uma esteira e um [paiol. Tudo começou em pleno dia, Quando o calor alicia E o vento assanha o chão. Era uma antiga tradição, Uma lição deixada acesa Numa soberba fogueira Numa noite de São João. Uma feira Em meio à procissão. Uma freira Em fuga da prisão. Revestindo o chão, Uma esteira. Uma linda lua cheia Que brilhava em solidão, Encobria o clarão do sol, Quando os dois em união, Amavam-se no paiol.

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A chave Minha mão se perde No silêncio da chave. A porta abre Uma fenda na escuridão. Na refração, Meus olhos ardem. Já é tão tarde Que a rua está em solidão. Adentro em casa sem vontade, A luz que invade Mostra o vão, Cada detalhe, Um desdém a liberdade Que reage a prisão.

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Questão de arte Adaptar-se ao mundo é tão difícil. Contudo, é possível, Questão de arte. Ao despencar no abismo da derrota, Sustente a corda E se arraste. Força e coragem Batem a porta. Porém, só adentram, se você abre. Nada importa, Pinte o agora, Tudo, em parte, É questão de arte.

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Por viver Vai pedir perdão a Deus? Antes deve perdoá-lo Por ter deixado você Cometer Mais um pecado. O devoto é levado A esquecer Que ao prazer Ele é forçado Pela vida, pelo amor e pelo ter. Simplesmente, por viver, É condenado.

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Paradoxo Quero permanecer vivo, Lúcido como agora. Quero enfrentar com riso, A derrota. Eis que isso, É a verdadeira glória. Não seria insanidade, Um paradoxo, Ou a ociosidade, O remorso?

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A herdeira Movo os braços com brandura Imaginando você Nascendo à luz da lua, Hoje, Ao anoitecer. Fecho os olhos pra te ver Inquieta, Livre para o amor e a luta, Herdeira de minha musa, Amado ser.

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Maria Vitória Mergulhada na solidão do útero Tem a escuridão por companhia. Mãe e filha, Uma é arvore, A outra, fruto. Filho em parte. Mãe em tudo. Sua vida é uma história. Seu nascimento uma glória. Seu irmão, de fora bate, Diz seu nome com alarde: - Maria Vitória.

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Soneto distante O estalar de galhos secos Em meio ao sol abrasador, Chama a atenção do agricultor Que já conhece tais segredos. O mesmo estalar de dedos, Os dedos cálidos de dor, Da mão de um trabalhador Que em seus ais tem seus anseios. O fogo arde sem pudor, Em chamas de intensa cor, Enquanto queimam-se os gravetos. Nos olhos, só trabalho e amor. Na terra, só o dissabor. Na solidão, vão-se os desejos.

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Fruto sem casca Espalhando letras Sobre velhas páginas, Semeei palavras Que insatisfeitas Deram-me em colheita Uma grande safra De um fruto sem casca, A minha tristeza. Uma fruta fresca, Presa pela boca Em que uma ou outra Tenta mordiscar, Murcha sem parar; Se tornando feia, Seca na areia Quando o vento dá. Versos pelo ar, lágrimas e poeira, Solidão na mesa Onde o fruto está Exposto, sem par, Sem mostrar beleza, É minha tristeza A me alimentar.

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Simplesmente faço Porque devemos viver reclusos Na solidão de nossas almas E no silêncio de nossos pensamentos, Se temos a comoção de nossas lágrimas E os mais sublimes sentimentos; Se emergimos além da mentira E respiramos a verdade, Onde há dor, onde há ferida, Por ser a realidade? Por que a quietude e não o grito? Por que o mito E não o fato? E por que não, Eu simplesmente faço?

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Mais distante Andava tal preá Pelas veredas. Fez isso a noite inteira, Ao luar. Resolve acampar, Faz a fogueira E põe alguns gravetos pra queimar. As chamas que aquecem pelo ar, Divagações sem telhas. O sono, aos poucos, chega. O sol lhe acordará.

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Somente você Só você determina a extensão do seu [problema, A grandeza ou a pequenez. Que ajuda eu daria a vocês, Se tudo não passa de visão? Um conselho Ou mesmo um sermão, Não daria vazão Ao seu medo. Auto-ajuda Não é um segredo, Pois não passa de pura ilusão. Não há força, apoio ou palavra Que levante a sua cabeça. Se não for você mesmo, esqueça; Não terá o domínio da alma. Tenha calma, Você é capaz, Só depende de si, ninguém mais Tem tamanho poder, Somente você.

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No borrão Tua sombra se mistura a escuridão, Com a pretensão De não ser percebida. Mas minha mão desinibida, Risca Em tua direção. O nanquim se espalha no borrão E deforma a figura escondida. A pintura está perdida. Todavia, Tua imagem está retida Dentro da imaginação.

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Que diabos Será Que eu preciso chorar Para se acreditar Que sinto muito? Que diabos tem o mundo? Só tenho fé se rezar; Ainda tenho que gritar Para que alguém possa me ouvir. Devo sorrir Para mostrar felicidade. Pela suposta verdade, Tenho sempre que mentir. Quando partir, Para demonstrar saudade, Tenho que tentar fingir. Que diabos faço aqui? É a pergunta que me cabe. Que não se cale Entre as grades do oprimir.

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Fajuta O que fizeram da culpa Que se abatia em mim? Não foi de grande ajuda, Inocentarem-me no fim De uma audiência fajuta. Júri composto de mulas, Juiz que come capim, Um animal como réu, Um advogado xexéu E um promotor japiim. O que fizeram da culpa Que se abatia em mim?

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Fraqueza Toda a tristeza Do meu rosto, Não é mágoa nem desgosto, É fraqueza. Talvez, a extrema magreza De meu escanifrado corpo, No fastígio do mau gosto, Me apodreça. Que eu me esqueça E com extremo esforço, Tire a mão de meu pescoço E permaneça A fitar o quimérico almoço Na imaginária mesa.

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Lembra-se? Lembra-se da velha mina; Você ainda menina E eu, uma moleca de rua? Nossa extração contínua, Continua. Na escuridão, confusa, Sua mão Buscava a minha, A minha Encontrava a sua. Lembra-se de nossa rua, Quando sob à luz da lua, Nossa avidez detinha Nossa culpa? Lembre-se de nossa jura: Que você seria minha E que eu seria sua? Lembra-se?

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Soneto ao óbolo A tua mão quase em prece, A pedir esmola No pátio da escola, Não me compadece. Mas ao contrário, aborrece Essa tua história Do que der agora Em dobro, recebe. Por que não pede pra si mesma O que a mim deseja E espera que eu negue? O que o óbolo almeja É a minha queixa A quem sempre o pede.

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Soneto à avó magra Varre o terreiro da casa Sob o mormaço da chuva. O seu magro corpo sua; Seu vestido velho esgarça. Não vê e nem sente graça. Nem um tiquinho de culpa Ao vento que lhe açula Quando ao seu lixo, espalha. Sob a palha do telhado, O chão de terra se ajusta Entre as paredes de barro. Cheirando a café coado, Uma voz fina lhe assusta, O neto se faz lembrado.

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Vagas e divagações Tenho a sensação Que não haverá mão Que possa me livrar do adeus. E sua despedida, Mesmo que florida, Não é minha escolha. Sei que vou ficar à toa, Com a lembrança boa Do que era meu. Vagas E divagações No vazio que em mim, fica, De uma triste despedida Que amarga Em emoções.

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Sorria, você está sendo alvejado Esse sorriso em meu rosto, estampado, Não é felicidade, É sarcasmo. Dessa forma, eu faço Escárnio com o mundo, Tão imundo Que me dá asco. Mesmo sentindo cansaço, Frustração e medo, Eu esboço esse sorriso Que não é felicidade, Na verdade, É desespero.

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Ignora Você é aquela que implora Por atitudes corretas, Embora, Mesmo incerta De qual seria a resposta. Você não gosta, Despreza E em sua pressa, Ignora Que aquele que mal te olha É o mesmo que te venera.

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Dor e medo Ao procurar no ócio, O silêncio passivo de minha alma, Só encontrei terror e ódio E o remorso das palavras, Por suscitar a guerra, Por imprimir à terra, Minha infâmia e desgraça. Já que morrer desejo, Que me condene a lei. Pois a prisão, talvez, Deixe-me afeito A uma luta sem fim. Eu combatendo à mim, Que minha dor vença meu medo.

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Doe órgãos Tive a tarde toda pra pensar Sobre o assunto em questão. Quer saber a minha opinião? Eu vou lhe dar, Preste muita atenção. Eis a única razão Que me faz concordar Com tão delicada situação, Eu não estou em seu lugar Nem tenho a sua compaixão, Melhor doar Do que levar para o caixão.

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Serôtino A distância Nos traz Tantas saudades e ais Quanto mais Nos traga a vaga lembrança. A enorme cobrança É de voltarmos atrás. Mas, sendo tarde demais, Só nos resta a esperança.

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O altar Meu caminho Segue passos inconstantes Numa caminhada quase sem regresso. Que será mais importante Quando se está distante: É seguir em frente Ou simplesmente, Espero? Os meus passos, A incerteza, vão pisar. E talvez, voltar Não seja o que quero. Como posso lhe encontrar Se não sei mais o lugar Onde fica o altar Em que a venero?

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Dilema Alguém se senta na extremidade oposta, Muitas vezes, concorda Com o que a gente pensa; Em sua inocência, Sai, nos dá as costas E sem respostas, Prossegue o dilema.

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Preto no branco Por onde andam as cartas No mundo dos emails? Onde ficam os seios Com tanto silicone? E qual seria seu nome, Se usam o apelido? O mundo é tão colorido Que o preto no branco, Num toque, por encanto, Está desaparecido.

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Minha letra Ciente de que a vida é passageira, Estreito minha fé no dia-a-dia. Procuro inserir a alegria Entre versos de tristeza. E é observando a natureza Que encontro um instante de euforia. No mais sutil momento, Há grandeza. Na extrema beleza, Harmonia. Tal qual o sol, a terra, irradia, A poesia Ilumina a minha letra.

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Revoada Aves que almejam o céu azul Numa revoada. Asas abertas migram norte-sul Numa previsível temporada. Madrugada cinza. Nuvens passageiras. Lentamente, o sol se aproxima Das asas ligeiras. Voo numa formação perfeita, Seguindo a instintiva direção; Muitas vezes, feita Por recordação.

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Gênio criativo Me encontro num lugar, tão pensativo, Que o gênio criativo me aborrece. Queria ter você em minha pele Para sentir o que eu digo. Às vezes, é preciso Sair do sério. Espero Que o leitor entenda isso. Não fico um só minuto mais comigo Que o gênio criativo aparece.

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Cálices quebrados Para celebrar nossa amizade, Tomei a liberdade De brindar. Cálices quebrados, Cacos pelo ar. Voltamos novamente a brigar. Tenho a sensação que há pedaços Que perfuram e causam mal-estar. Onde o tinto líquido derramado, São lágrimas em nosso triste olhar.

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Triste poeira O vento sopra a solta e fina areia E um garoto teima Em olhar; Seus olhos ainda insistem em chorar Por uma dor alheia. Aquela que partiu, não era feia E o soube cativar. Eis que a distância espelha Uma triste poeira Que se desfaz no ar.

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A lista de defuntos Diagnosticar os sintomas da vida É perceber os males e as mazelas do mundo. Na fração de um segundo, Observar a palidez contida. Onde a cura é merecida, O medicamento é único. Quando se exige muito, A nação é desprovida; E desvalida, Segue uma extensa lista Com os nomes dos defuntos.

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Bucólico segredo A televisão anuncia nosso medo, Recado da mais torpe condição, A de uma mão Que põe na boca, o dedo, Impondo o silêncio à razão. Enquanto nossa débil audição, Nos priva em bucólico segredo, O mundo inteiro Se perde em emoção.

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Na palma da mão Apontando estrelas, Se delimita o céu. São pontos dispersos, Diversos E iluminados. A grandeza se funde no cenário Da imaginação, E contando estrelas, O mundo se espelha Na palma da mão.

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Na escadaria Perder-se no caminho Solitário, em desalinho, Sem alcançar o patamar da glória, É não fazer história, Um náufrago sem memória, Perdido em uma ilha. Diante dos degraus da escadaria, Jamais se arriscaria. Debate-se e chora Por bucólica Fantasia.

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Questão antiga Quando o acaso Levar o teu ser A um desabitado beco sem saída, Será de uma mão amiga Estendida, Que vai tentar se valer. A quem devo recorrer? Eis uma questão antiga. Quando a gente mais precisa, Ninguém vem nos socorrer.

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Tom de voz Cada um de nós Tem um tom de voz Que identifica uma emoção. Seja de paixão, De aflição que dói, De ambição que rói Ou de comoção Que é tristeza e dó. Se de solidão É saudade e só.

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A casa fantasma Estou preso em casa, De portas cerradas E chaves perdidas. Estou sem saída. Noite, madrugada, Novamente dia. Já não tem bebida E comida, nada. Roupas espalhadas, Não há companhia, A cama vazia. A TV ligada Mostra uma casa Onde um fantasma Acha que vivia.

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Desvio moral Não há consternação E nem repúdio. A dor que eu oculto É natural, Um mal Do qual eu me descuido E até abuso Desse desvio moral.

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Os mendigos Entre! A porta está aberta. A casa está deserta, São anos de espera. (E de repente A solidão presente Se dispersa.) O mendigo da frente Tinha pressa. O outro, às avessas, Vai cautelosamente.

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A cegonha O que eu faço de pé Ante esta fila Numa espera contida E enfadonha. Uma impaciência medonha. Uma dor física. Enquanto alguém me avisa: - Uma menina bonita, Trouxe a cegonha.

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O envelope Moro na periferia Da cidade Mossoró, No bairro Santa Delmira. O número, já sei de cor. Mil e um, Eis o mesmo aqui grafado. Abaixo, cito o Estado Onde o sol brilha mais forte, É o Rio Grande do Norte No nordeste brasileiro. Completo meu endereço. Fecho, enfim, o envelope.

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O ciúme O amor invoca A dor que provoca O ciúme intenso. Depois do silêncio, Nada mais importa. Ao bater a porta, O arrependimento. Ao pedir a volta, Ajoelha e chora, Pois está sofrendo. O perdão aflora, A emoção a dobra, E acaba cedendo.

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Ampulheta virada Corre a mão esquecida Pela folha dobrada. Era a última carta Que seria emitida. Um sinal de que o dia Pela noite ansiava. Ampulheta virada, Não há tempo pra nada Nessa vida.

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As caricaturas Os rostos dispostos Em caricaturas, Por finas ranhuras Se desalinhavam. Ainda encantavam, Modestas figuras, Ainda encantavam. Estavam pintadas Até certa altura. O vento e a chuva As desfiguravam. Mesmo as que estavam Nas partes mais sujas, Se eternizaram.

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A flor e o colibri A flor Morre oprimida no edifício, Em meio ao desperdício. Sente falta De lágrimas, de sorrisos E de água. Um colibri a beija, indeciso. A ponta de seu bico Toca a sua alma. O seu bater de asas É motivo Para sorrisos e lágrimas. A flor perdidamente apaixonada. O colibri disfarça O amor sentido.

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O jornalista Faço parte Dessa classe desprovida De moderação e medo. Ponho o dedo Bem no meio da ferida. Minha voz soa maldita. Minha escrita Causa anseio.

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O abismo Os pés descalços na sarjeta Não me humilham. Porém, a tristeza E a dor alheias, Me precipitam Nas profundezas De um abismo, O do fracasso. Não aquilo que não posso. Mas pelo que posso, E não faço.

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Canteiros Meus anseios São rosas espalhadas nos canteiros Em pétalas vistosas Que em tardes invernosas Exalam um raro cheiro. Os meus feitos São meramente bostas.

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Matriz Qual é a raiz De meu problema? Em que teorema Me desfiz? Sou um aprendiz Que sempre tenta Na razão de seu dilema, Encontrar sua matriz.

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Rio de lágrimas Na superfície, bóiam nossas lástimas. As profundezas ocultam nossa dor. Na areia, apagam-se nossas marcas. Ao leito, seca nosso amor. E nesse rio de lágrimas, O mundo naufragou.

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Demência transitória Entre paredes tortas, Renego a existência. Sinais de uma demência Transitória. Enquanto a alma chora, Não há benevolência, Meu corpo em violência, Se enforca.

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Cicatriz Cada um é feliz À sua maneira. A vida alheia, Nada nos diz. Corte o mal pela raiz, Que coisa feia. A inveja traz tristeza E cicatriz.

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Verbo indomável Às vezes, eu esqueço Que estou preso A esse corpo miserável. Mas sem ele, sou escravo Da fatal inexistência. Metamorfoseando minha crença De não ser hereditário De uma lenda, Não sou apenas Carne habitável, Sou verbo indomável Em dilema.

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Vice-versa Tenho que delimitar meu pensamento E focalizar a minha ação. Entre fazer ou não, Está o tempo A perder-se, A interpor-se, A integrar-se Ao inevitável momento Da decisão De delimitar a minha ação, De focalizar meu pensamento.

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Carrossel de palavras Riscos no céu, Clarões que ofuscam a alvorada. Um escarcéu, Como em resposta, a trovoada. Forma-se um véu, A chuva em plena madrugada. Lágrimas, papel, Um coração infiel E um carrossel de palavras.

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A dança das letras Enquanto avança Com a caneta, A mão ajeita Letra por letra, Em uma dança. A festa alcança A forma perfeita Na pauta estreita, Enquanto é feita A palavra dança.

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Apáticos detentos Este que aprisiona em pensamento E tortura lentamente nosso ser, Tem capacidade e poder De nos manter Em patético silêncio. Este sentimento Nos faz crer Que desejo e querer Não passam de fingimento. Nos faz prometer Em juramento Que mesmo através do tempo, Jamais vamos esquecer. Este infame, nunca vai ceder. Faz de mim e de você Dois apáticos detentos.

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½ Quero fracionar a existência Em ½. Vida e morte. Numa parte, me possui a sorte. Noutra, a inevitável desistência. Na razão inversa, a insistência De manter-me por inteiro, Faz da matemática de mim mesmo, Uma enésima potência.

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De mala cheia Não meço esforços Nem almejo lucro. Apenas procuro Ajudar aos pobres. Não por ser esnobe Ou mero discurso. Mas por fazer uso De meu lado nobre. Nunca me eleja, Ouça o que eu digo. Pois como político, Pode ter certeza, Haverá vileza, Faltará abrigo, Sobrará martírio E aflição alheia. Não terá cadeia Pra me por detido. O pior bandido É o bem vestido E de mala cheia.

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Homens de fumaça No arrastar de minhas sandálias Pela casa, Tenho as lembranças arranhadas E esquecidas. Por onde andam as conversas conduzidas Pelos homens de fumaça? Se desfizeram com o tempo, Nas costas de um tênue vento, Pela janela escancarada. O velho barco na distância, ainda aguarda Pela tripulação dispersa, Numa espera Que parece eternizada. Em meio a tralhas, Depuseram suas velas. Em meio a elas, O seu capitão se apaga.

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Indesejada Ela se aproxima de repente, Toca a minha mão, Prova a sopa quente E um pouco do pão. Cruza as pernas delicadamente, Me deixando ver sua intenção. Minha reação De nojo crescente, Ante a indecente situação, Leva a outra ação: Levantar o braço lentamente Para evitar o que pretende, Quando vem em minha direção. A maldita mosca tenta em vão, Evitar a morte iminente.

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Lacônico Tem alguém aos gritos. Apesar do ruído, Dá para ouvi-lo. Não tema amigo. É música ao vivo. Mas não faz sentido. Doem nossos ouvidos. É um novo ritmo. Para o jovem, tido Como o som da moda. Que coisa horrorosa. Qual língua é usada? Aliás, não importa. Não se entende nada Desse som de bosta. E agora? Vamos dar o fora. Por o pé na estrada.

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Contra ou a favor Quão interessante é o amor. Tem a seu favor, A saudade, pela distância. E pelo contra, A rotina, Lida contínua do dissabor. Tirar ou por, Não determina Em que mais domina; Se é o contra ou o a favor.

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Semblante Em que lugar do mundo, Nesse instante, Alguém tem o semblante Pensativo, A procura do mais banal motivo Pra levá-lo a misturar-se aos passantes? Que acha plenamente fascinante Perder-se nos recônditos delírios De seu intrigado e vago espírito Que vagueia bem distante? Quem, Além de mim e de você, Consegue ver Tão adiante?

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Princípios do soldado Não vá, meu filho, não vá. Peço encarecidamente. No céu vai alta, a lua. Quer cavar tua sepultura Nesta escuridão crescente? Minha mãe, não há desculpa Para que eu não siga em frente. Desta vez é diferente, Prometo, até faço jura De que volto brevemente, Desta incessante luta. Filho meu, em nada muda, Não se justifica a guerra. Não há pedaço de terra Que mereça a vida tua. Vá se aquietar criatura, Deixa-a pra gente perversa.

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Pondo a arma na cintura, Parte o jovem enaltecido, Bravamente decidido A buscar a liberdade. Seu país, bem na verdade, É por demais merecido. A mãe aceita o ocorrido, Abençoa sua jornada. Não há mais tempo pra nada, Reza pelo filho ido. Coração entristecido E um peso em sua alma. Na garganta, uma palavra Deixa o jovem comovido: Coragem. Vai ser preciso. Cantarola uma canção descompassada; Vai seguindo a estrada, Vagamente esquecido.

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De repente, um estampido Chama sua atenção. Já com a arma na mão, Corre no mesmo sentido. Há um grupo reunido; No chão, um homem ferido, Desprovido de ação. Aproxime-se irmão. Pelo grupo é recebido. Este é um inimigo Abatido em ação. O jovem vê sedução Nas nuances do perigo. Aproxima-se arisco, Dos que já ali estão E estendendo a mão, Cumprimenta seus amigos. O que se faz com o bandido. Executa-se o maldito. É cumprida a decisão. Apesar de implorar, O sangue põe-se a jorrar Com o tiro sem perdão.

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Uma jovem guarnição. Um pelotão sem comando. Dentro deles, o espanto. Fora deles, perversão. Em suas mãos, o sangue. Em suas fardas, o nome. Em suas vidas, lição. Quem realmente são Esses jovens destemidos, Senão, futuros senhores despidos De equilíbrio e razão? O que dirão a seus filhos? Seus crimes nunca esquecidos, Numa eterna assombração. De volta à guerra em questão, O narrador se entristece Quando vê um jovem prestes A perder o coração. Um clamor na escuridão. Alguém testemunha o fato. Um corre-corre no mato. Uma caçada em vão.

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Dentro da mesma nação Morrem por opinião, Por convicção, se matam. Os jovens que dizem não, Vão parar numa prisão Ou acabam assassinados. Mas do homem é esperado Estes atos imorais. Por que nós, pobres mortais, Não ouvimos o recado Deixado por ancestrais. Quantas guerras, tantos ais. Matamo-nos pela terra, Por quimeras, ideais. Quantos mais cairão por terra, Desobedecendo as regras Ensinadas pelos pais? Em meio à densa floresta, Da tropa, enfim, se dispersa, Se tornando fácil presa. Numa captura surpresa, O nosso jovem é levado. Há um rapaz revoltado. Acusa-o de um assassinato. Matou meu pai por vileza.

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O jovem é arrastado Para um justo julgamento, Se é que nesse momento, Isso possa ser firmado. De um lado,o filho da vítima. Do outro, o jovem carrasco. Porém, antes do resultado Do aviltado momento, O jovem em julgamento, É finalmente encontrado. Contudo, ao ser libertado, É ferido mortalmente E levado urgentemente, Muito sangue é derramado. Quando vê o filho amado, A mãe cai em desespero, Sem saber o pesadelo De seu destino macabro: Um assassino cruel, Que morreu sendo fiel Aos princípios do soldado.

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Rostos O que fazem esses rostos Espalhados pelo mundo? Confundem-nos com seus olhos Que são por demais profundos. O que querem nos dizer Com seus delineados traços Numa expressão de faço Acontecer? O que esperam encontrar Em nossas almas Ante eles desarmadas E em silêncio? Esses rostos ciumentos Dizem não Numa expressão De quase fingimento. O que fazem? O que querem? O que esperam? O que são Esses rostos que parecem Ilusão?

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Doutora Chamei-a pelo nome, Como a qualquer pessoa. - Respeite-me, atrevido, sou Doutora. Em um país em que se morre à toa, Doutora é sinal de negligência, De desrespeito à vida e à ciência, De pura incompetência E frustração. Mas já que insiste na definição Dos próprios atributos, me perdoa. Apesar de minha desaprovação, Chamar-te-ei, de coração, Doutora.

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A praça da estação Um banco em solidão, Sempre a espera de alguém. A velha praça também, Enfrenta a desolação. Qual seria a razão Para não sentar ninguém Na praça da estação? Quantas viagens de trem. Desengates de vagão. Num incrível vai-e-vem, Bolsas e malas na mão. O tempo pôs em silêncio, A praça da estação.

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Massificação A Cidade à noite, surpreende Com a intensa movimentação. Luzes que se apagam e se acendem Em um ritmo insistente, Implorando atenção. Nossos olhos, mesmo conscientes, Rendem-se à massificação E acreditam piamente Que o mundo facilmente, Cabe na palma da mão.

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Anjo solitário Sendo filho do pecado De um pai sem compaixão, Fruto da concepção De um mundo alucinado, Sou um anjo rejeitado Pela dor da traição, Por não conseguir perdão De um deus mitificado. A cada dia eu desço As paredes do inferno E quanto mais chego perto, Mais pareço Solitário.

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A metáfora da mariposa O que procura a mariposa Em seu voo noturno? Da segurança do escuro A claridade exposta, Se sujeita a ser morta Por cansaço e por descuido. Dessa forma, faço uso De metáfora. Uma chama que se apaga Entre as trevas do futuro.

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Silêncio e segredo Eu preciso de silêncio e de segredo Para resistir ao medo De um dia ser traído. Tão comovido Com o outro, o do espelho, Não reparo que é a mim mesmo Que ingenuamente, fito. Assim, evito Acreditar que houve erro E que causa e efeito Faz sentido.