joão carlos espada - direitos sociais de cidadania - uma crítica a hayek e plant

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Direitos sociais e cidadania. Tese de doutorado de João Carlos Espada

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  • Joo Carlos Espada* Anlise Social, vol. xxx (131-132), 1995 (2.-3.), 205-287

    Direitos sociais de cidadania uma crticaa F. A. Hayek e R. Plant**

    O texto que se segue visa apresentar resumidamente os principais passosde uma crtica a duas concepes rivais sobre os direitos sociais de cidadania,tal como elas so apresentadas por dois autores que so aqui tomados comorepresentativos de duas correntes de pensamento mais vastas: Friedrich A.Hayek e o neoliberalismo, e Raymond Plant (agora Lord Plant) e o socialis-mo. A crtica a desenvolver aqui conduzira formulao de um ponto devista alternativo que poderia ser simplesmente designado de liberal , oqual, embora incorpore contribuies quer de Hayek, quer de Plant, , apesardisso diferente das suas abordagens globais.

    O ponto principal do argumento a ser desenvolvido adiante consiste emdizer que, apesar de Hayek e Plant terem vises opostas sobre os direitossociais, eles comungam, ainda assim, de uma importante premissa comum:ambos vem os direitos socias como dando origem a ( o caso de Hayek),ou sendo expresso de ( o caso de Plant), um princpio geral e positivo dedistribuio ou justia social1.

    * Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa.** O argumento apresentado neste artigo resume os passos principais de um estudo mais

    extenso que serviu de base tese de doutoramento do autor na Universidade de Oxford, emJulho de 1994, sob orientao do professor Ralf Dahrendorf. Uma verso adaptada dessetrabalho ser publicada em Londres, pela Macmillan, e em Nova Iorque, pela St. Martin'sPress, previsivelmente na Primavera de 1996. A publicao de uma verso em lngua portu-guesa est igualmente prevista pela coleco que o Instituto de Cincias Sociais promove coma Imprensa Nacional. As trs edies contaro com um prefcio de Ralf Dahrendorf.

    Dado que o presente artigo resume os passos principais de um estudo significativamentemais amplo, ele inclui vrias notas que remetem para um desenvolvimento do raciocnio aquiapresentado em linhas gerais. No entanto, o artigo est concebido de forma a permitir ao leitorseguir o raciocnio sem precisar de recorrer s notas, as quais se incluem para aqueles quetiverem maior interesse no tema em discusso.

    1 O conceito de direitos sociais de cidadania aqui usado no sentido formulado em T. H.

    Marshall (1950-1992). A referncia clssica para a classificao dos direitos W. Hohfeld(1919). Duas excelentes introdues a este trabalho podem ser encontradas em A. L. Corbin(1923) e J. Feinberg (1973), caps. 4-6, pp. 55-97. Para uma discusso da problemtica dosdireitos de cidadania em relao com as obras de F. A. Hayek e R. Plant, v. J. C. Espada (1996).Basicamente, e de acordo com a classificao de T. H. Marshall, os direitos de cidadania com- 265

  • Joo Carlos Espada

    Esta premissa comum leva cada um deles a concluses diferentes. ComHayek, porque no podem nem devem existir princpios gerais de distribui-o ou justia social numa sociedade livre, o conceito de direitos sociais excludo. Com Plant, porque o critrio de necessidades bsicas sustenta umprincpio geral de distribuio, e ainda porque a concepo do direitos sociais derivada do conceito de necessidades bsicas, o conceito de direitos sociaisdeve ser aceite como parte integrante de um princpio geral de distribuioou justia social, a que o autor chama de igualdade democrtica.

    O argumento a desenvolver aqui sustentara que Hayek e Plant esto equi-vocados na sua premissa comum de que existe um lao necessrio entre oconceito de direitos sociais e um princpio geral de distribuio ou justiasocial. Uma vez desafiada essa premissa comum, torna-se possvel uma in-terpretao completamente diferente dos direitos sociais.

    De acordo com esta interpretao, os direitos sociais garantem apenas queningum ser privado do acesso quele nvel de bens bsicos que for consi-derado indispensvel para agir como agente moral; estes direitos, por conse-guinte, geram o dever correspondente, por parte da sociedade, de fornecerbens bsicos queles, e s queles, que no os tm2. Isto equivale a dizer que,para alm da satisfao das necessidades bsicas daqueles que as no tmsatisfeitas, nada mais enunciado acerca das posies relativas, ou das re-

    preendem direitos civis, polticos e sociais. Os direitos civis incluem os direitos necessrios liberdade individual liberdade da pessoa, liberdade de expresso, pensamento e f, o direitode possuir propriedade e estabelecer contratos vlidos e o direito a justia imparcial. Os direitospolticos incluem o direito de participar no exerccio do poder poltico e, finalmente, osdireitos sociais envolvem todo um conjunto de direitos, desde o direito a um mnimo debem-estare segurana econmica at ao direito a partilhar em pleno na herana social e a viver a vida deum ser civilizado de acordo com os padres prevalecentes na sociedade. Ainda segundo T. H.Marshall, a emergncia dos direitos civis, polticos e sociais em Inglaterra coincidiu, grossomodo, com os sculos xviii, xix e xx. As instituies que lhes corresponderam foram os tribunais(direitos civis), o parlamento e os rgos de governo local (direitos polticos) e o sistema deeducao pblica, bem como os servios sociais (direitos sociais).

    2 De acordo com a classificao de Feinberg, os direitos sociais aqui defendidos pertencero

    ao tipo dos direitos-reivindicao (por oposio a meras liberdades ou privilgios), dos direitosin rem (por oposio a direitos in personam) e dos direitos positivos (por oposio a negativos).Um direito-reivindicao (claim-right) distigue-se de uma liberdade ou privilgio na medidaem que implica um dever por parte de outros relativamente ao detentor do direito, enquantoa liberdade de A fazer x apenas implica que A no tem o dever de no fazer x. Um direitoin rem implica um dever correspondente por parte de todos os outros membros da sociedade,e no apenas, como o caso dos direitos in personam, de indivduos especficos. Finalmente,direitos positivos so aqueles que implicam deveres correspondentes de aco, e no apenasde conteno ou no interveno, como acontece com os direitos negativos. Quando, maisadiante, se referir uma viso negativa dos direitos sociais, esta no deve ser confundida comdireitos negativos. Os direitos sociais so sempre positivos, dado que envolvem um devercorrespondente de fornecer certos bens e servios que positivo. A viso negativa refere--se apenas forma de entender o alcance e aplicao de um dever positivo. Para uma explicao

    266 mais detalhada, v. J. C. Espada (1996).

  • Direitos sociais de cidadania

    compensas relativas, dos indivduos, nem sequer acerca das suas necessidadesrelativas acima do nvel de satisfao das suas necessidades bsicas. Porqueesta interpretao dos direitos sociais define apenas um critrio residual ounegativo acerca daquelas situaes que no podem ser aceites, ou aquele chocomum abaixo do qual ningum deve recear cair, esse critrio residual nopode nem deve ser confundido com um princpio geral e positivo de distribui-o ou justia social. Para sublinhar esta viso negativa dos direitos sociais,eles sero aqui tambm designados por direitos sociais bsicos 3.

    Por outras palavras, enquanto Hayek e Plant estiveram ambos a combater,quer contra, no caso de Hayek, quer a favor, no caso de Plant, uma teoriaglobal da justia social, a verdade que os direitos sociais no involvemnenhuma teoria geral ou positiva da justia social4. Uma vez introduzida estadistino, vrias contribuies de Hayek e Plant podem e devem ser incor-poradas numa viso negativa dos direitos sociais bsicos. Sero explicitadasem seguida as contribuies dos dois autores que devem ser aceites, bemcomo as que devem ser rejeitadas.

    A ARGUMENTAO DE HAYEK REVISITADAO ponto principal da argumentao de F. A. Hayek contra um princpio

    geral de distribuio ou justia social deve certamente ser retido. A sua facetamais conhecida consiste na afirmao, inspirada em David Hume, de que umprincpio desse tipo teria de se basear num critrio de distribuio susceptvelde medio e que numa sociedade livre no seria possvel alcanar e manterum acordo pacfico acerca de tal critrio5.

    Um aspecto menos conhecido, mas talvez mais crucial, da argumentaode Hayek consiste em dizer que, mesmo que um acordo sobre um critrio de

    3 Esta concepo de direitos sociais bsicos semelhante defendida por Ralf Dahrendorf

    em vrias das suas obras, designadamente em Liberty and Equality, in R. Dahrendorf (1968),pp. 179-214. Tambm est prxima dos pontos de vista apresentados por John Gray em MoralFoundations of Market Institutions, in J. Gray (1993), pp. 66-123, e por Joseph Raz em TheMorality of Freedom (1986), especialmente no captulo 9, sob o titulo Equality. A inspira-o global do argumento aqui apresentado sobretudo emprestada das obras de Karl Poppere Ralf Dahrendorf.

    4 A expresso teoria geral ou positiva da justia social aqui empregue no sentido de

    overall theory of justice, uma expresso que emprestada da conferncia proferida por JohnGray no Nuffield College, Oxford, em 3 de Marco de 1993, intitulada Why there cannot bean overall theory of justice.

    5 V. David Hume (1777-1975), seco iii, parte ii: Most obvious thought would be to

    assign the largest possessions to the most extensive virtue, and give every one the power ofdoing good to his inclination [...] But were mankind to execute such a law; so great is theuncertainty of merit, both from its natural obscurity, and from the self-conceit of each indi-vidual, that no determinate rule of conduct would ever follow from it; and the total dissolutionof society must be the immediate consequence. 267

  • Joo Carlos Espada

    distribuio fosse alcanvel, esse critrio no seria susceptvel de aplicaoapenas atravs de regras gerais de boa conduta. Cidados agindo de acordocom regras gerais de boa conduta produziriam sempre resultados que norespeitariam os critrios ou padres de distribuio acordados. Por este moti-vo, a nica forma de atingir os critrios ou padres acordados consistirianecessariamente na atribuio a uma autoridade central uma pessoa, umaorganizao, ou todos reunidos em colectivo do poder de desfazer oucorrigir os resultados produzidos pelas aces de cidados respeitadores da lei.Na prtica, isto equivaleria a atribuir a essa autoridade o poder de decidir o quecada um deve possuir e, por consequncia, o que cada um deve fazer. Se istose verificasse, uma caracterstica crucial de uma sociedade livre desejvelsimultaneamente em termos morais e de eficincia seria inescapavelmenteperdida: os indivduos deixariam de ser autorizados a utilizar, no mbito dasleis, o melhor dos seus conhecimentos para atingir os seus prprios fins, umavez que eles passariam a ter de cumprir as tarefas julgadas indispensveis paraatingir o padro geral de distribuio com o qual tinham concordado. Mais doque isso, estas tarefas nunca poderiam ser descritas atravs de regras gerais deboa conduta, mas apenas por ordens especficas visando resultados espec-ficos6.

    Estes dois pontos constituem um poderoso argumento contra uma teoriageral e positiva de justia social. No entanto, e contrariamente ao ponto devista de Hayek, eles devem ser entendidos como parte integrante de umapropriada teoria dos direitos sociais bsicos, em vez de serem entendidoscomo argumentos contra qualquer tentativa de construir uma teoria dessesdireitos. A razo crucial para que assim seja reside no facto de que uma teoriageral da justia ou um padro comum de distribuio no so necessrios see quando uma sociedade pretende apenas aliviar situaes de sofrimentohumano evitvel; eles tambm no so necessrios se e quando uma socie-dade pretende apenas fornecer bens bsicos para aqueles que no os tm eque, por esse motivo, podem ser considerados como necessitados. Em ambosos casos, um padro comum de distribuio ou justia social no necessrioporque o objectivo evitar certas situaes (de deprivao e excluso), e noatingir um estado de coisas global e predeterminado.

    Evitar certas situaes no envolve qualquer determinao das posiesrelativas dos indivduos numa dada sociedade. Essa determinao podeinclusivamente ser excluda intencionalmente, devido s suas consequncias

    6 Uma verso levemente modificada deste argumento foi apresentada por Robert Nozick no

    seu famoso exemplo de Wilt Chamberlain [cf. R. Nozick (1974), em particular Ch. 7:Distributive justice, pp. 149-231]. Para um discusso detalhada dos problemas envolvidos noexemplo de Wilt Chamberlain, v., nomeadamente, J. C. Espada (1996), parte n, captulo 6,seco 72. Quanto ao argumento de Hayek contra critrios ou padres comuns de distribuio

    268 ou justia social, v. sobretudo F. A. Hayek (1976 e 1978).

  • Direitos sociais de cidadania

    indesejveis, as quais foram brilhantemente apresentadas por Hayek. Evitarcertas situaes equivale simplesmente a dizer que indivduos livres, obede-cendo apenas a regras gerais de boa conduta inscritas nas leis, concordam emerigir um sistema de seguros com vista a assitir qualquer deles a quem acon-tea cair numa situao que todos concordaram que devia ser evitada. Paraalm desta rede de segurana, que define apenas situaes a serem evitadas,e no estados de coisas a serem atingidos, nada dito acerca das outrasposies na sociedade as quais sero entendidas como justas, desde queresultem e sejam mantidas de acordo com regras gerais de boa conduta.Neste sentido, poderia ser dito que o argumento central de Hayek contra abusca da justia social no se aplica atitude que poderia ser designada porevitar a injustia social7.

    Uma observao semelhante pode ser produzida relativamente crticaglobal de Robert Nozick contra os chamados princpios-padres de justiasocial, ou princpios sobre resultados finais. Para ser aceitvel, essa cr-tica deveria ser reformulada. Em vez de condenar todos os princpios-padresou princpios sobre resultados finais, essa crtica deveria ser entendida comoafirmando que a liberdade requer que seja autorizado o mais extenso lequede resultados finais; no entanto, a preservao da liberdade pode igualmenterequerer que certos resultados finais sejam excludos mesmo que elespossam ser produzidos por aces livres de indivduos actuando de acordocom princpios-processo de boa conduta. O caso da proibio de trustes emonoplios um exemplo do argumento em apreo, e ele apenas ilustra um

    7 Para uma discusso sobre a distino entre promover a justia social e evitar a injustia

    social, v. J. C. Espada (1996), parte i, captulo 2, em especial seco 25. Deve ser recordado,no entanto, que o prprio Hayek previu a possibilidade de introduzir esta distino e tentourefut-la com o seguinte argumento em F. A. Hayek (1976), p. 78: It might be objected that[...] we might not know what is 'socially just' yet know quite well what is 'socially unjust';and by persistently eliminating 'social injustice' whenever we encounter it, gradually approach'social justice'. This, however, does not provide a way out of the basic difficulty [...] Therecan be no test by which we can discover what is'socially unjust' because (1) there is no subjectby which such an injustice can be committed, and (2) there are no rules of individual conductthe observance of which in the market order would secure to the individuais and groups theposition which as such (as distinguished from the procedure by which it is determined) wouldappear as just to us. Em J. C. Espada (1996), o argumento (1) foi refutado atravs da distinoentre situaes de deprivao e reaces a essas situaes, sendo observado que, embora certassituaes de deprivao possam no ter sido causadas por qualquer agente ( o caso de desastresnaturais), a inaco perante essas situaes, quando alguma aco possvel, deve ser vistacomo injusta. Relativamente ao ponto (2), foi observado que para combater situaes dedeprivao no necessrio determinar situaes justas, mas apenas situaes injustas. E oprprio Hayek forneceu um critrio para determinar situaes injustas, quando reconheceu quesevere deprivation ou extreme misfortune podem conduzir a que it may be felt to be aclear moral duty of all to assist, within the organized community, those who cannot helpthemselves, in F. A. Hayek (1976), p. 87. Isto prova que possvel combater situaes deinjustia social sem possuir um critrio positivo de justia social. 269

  • Joo Carlos Espada

    princpio banal para o liberalismo clssico, mas menos banal para algumliberalismo contemporneo: o de que no existe liberdade irrestrita8.

    A concepo de direitos sociais bsicos a ser desenvolvida aqui com-patvel com esta reformulao do argumento de Nozick: os direitos sociaisbsicos no visam atingir um particular estado de coisas, mas apenas evitarcertos estados de coisas residuais, aqueles em que os indivduos so privadosdo acesso a um conjunto mnimo de bens bsicos. Por este motivo, a melhorformulao dos direitos sociais bsicos negativa, como se tornara claromais adiante: eles involvem o direito igual, no sentido de universal, de oscidados no serem privados de um certo mnimo de bens bsicos.

    A ARGUMENTAO DE R. PLANT REVISITADA

    No que respeita a Raymond Plant, duas contribuies principais devemser integradas numa teoria negativa dos direitos sociais bsicos: (1) a afirma-o de que o tema da justia social no em si mesmo destitudo de sentidonuma economia de mercado; (2) a afirmao de que as necessidades bsicaspodem ser determinadas e podem servir de base a um direito satisfaodessas mesmas necessidades bsicas. Tal como no caso de Hayek, estespontos de vista de Plant devem ser dissociados da sua concepo geral sobreos direitos sociais.

    A principal contribuio de Plant para mostrar o significado do tema dajustia social reside na sua observao de que o facto de os resultados domercado serem no-intencionais e, em certo sentido, no-previsveis noimplica que esses resultados tenham simplesmente de ser aceites como factosnaturais. A justia no depende de como as situaes foram produzidas, masda nossa percepo moral dessas situaes e da nossa correspondente respos-ta. Por este motivo, situaes que apelem nossa preocupao moral, taiscomo a pobreza, a deprivao ou, em termos gerais, situaes de sofrimentohumano evitvel, devem ser consideradas como temas de justia social, in-dependentemente do facto de essas situaes poderem no ter sido produtode aces intencionais de nenhum agente. Por consequncia, se for possvelprever que o mercado no ser capaz, por si s, de evitar situaes deste tipo,ento ser possvel argumentar que temos o dever de tomar medidas sriase permanentes para fazer face a essas situaes9.

    Assim, contrariamente ao que Hayek argumentou, o conceito de justiasocial numa economia de mercado no to sem sentido como o conceito de

    8 V. nota 7, supra. Sobre a impossibilidade da liberdade irrestrita, ou o chamado paradoxo

    da liberdade, v. K. Popper (1945-1971) vol. i, pp. 123-124 e 265-266, bem como A. Gewirth(1982), pp. 16-17.

    270 9 V. sobretudo R. Plant et al. (1980), K. Hoover e R. Plant (1989) e R. Plant (1991).

  • Direitos sociais de cidadania

    pedra moral10. Uma discusso acerca da justia social pode e deve fazersentido numa sociedade livre baseada numa economia de mercado. Mas asfronteiras precisas do significado desta assero devem ser imediatamentetraadas. Ela quer dizer que os resultados do mercado so susceptveis de seremdiscutidos e avaliados. O argumento deste artigo consiste em sustentar que estadiscusso e avaliao deve conduzir cidados livres de sociedades livres aconcluir que do seu melhor interesse o melhor interesse da liberdade e dajustia no submeter os resultados do mercado a nenhum padro comum oupositivo de justia social, mas apenas a um padro negativo ou residual, fundadona satisfao de necessidades bsicas. Isto assim, no entanto, no porquepadres comuns de distribuio no faam sentido, nem porque a prpriadiscusso sobre o tema da justia social no faa sentido. Padres comuns epositivos de distribuio ou justia social devem ser excludos porque, nombito de uma discusso racional sobre o tema da justia social, ou sobre osresultados produzidos pelo mercado, existem boas razes para evitar a introdu-o de padres desse tipo. Algumas dessas boas razes foram produzidas porHayek, como foi sublinhado atrs. Mas elas s fazem sentido integral quandoobservadas no mbito de uma discusso sobre o tema da justia social numasociedade livre, ou seja, quando se aceita o argumento de Plant segundo o qualo tema da justia social no destitudo de sentido numa sociedade livre11.

    A segunda contribuio de Raymond Plant para uma teoria dos direitossociais , naturalmente, a sua prolongada investigao acerca do conceito denecessidades bsicas. Plant mostrou de forma persuasiva que um acordosocial sobre a definio de necessidades bsicas no exige qualquer tipo deuniformizao dos fins ltimos dos indivduos. Todo e qualquer cdigo moraltem de reconhecer que as pessoas necessitam de algumas capacidades mni-mas para poder perseguir os objectivos morais consagrados nesse cdigomoral. A capacidade de agir como agente moral, concluiu Plant, torna-seassim o fim humano bsico que desejado por todas as pessoas, qualquer queseja o seu cdigo moral. E as condies ou meios indispensveis a essa aco as quais Plant, seguindo Alan Gewirth, define como sobrevivncia fsicae autonomia tornam-se necessidades humanas bsicas12.

    Alm disso, Plant argumentou que a satisfao das necessidades humanasbsicas, entendidas como aquelas condies que so indispensveis para agir

    10 Social justice does not belong to the category of error but to that of nonsense, like the

    term 'amoral stone', in F. A. Hayek (1976), p. 69.11

    Que o prprio Hayek reconheceu o sentido de uma discusso acerca dos resultados domercado pode ser mostrado pelo facto de que ele prprio discutiu a estrutura geral destesresultados, tendo argumentado correctamente que eles tendem a maximizar o bem-estar dequalquer indivduo tirado sorte. Sobre como Hayek refutou o seu prprio argumento contrao significado do tema da justia social, v. J. C. Espada (1996), parte i, captulo 2, seco 21.

    12 Sobre o conceito de necessidades bsicas, v. sobretudo R. Plant et al. (1980) e

    A. Gewirth (1978 e 1982). 271

  • Joo Carlos Espada

    como agente moral, pode ser percepcionada como um dever da sociedade,mesmo como um dever de estrita obrigao, dando origem a um direito cor-respondente13. Se for aceite que as necessidades bsicas consistem naquelesbens bsicos que so indispensveis para perseguir qualquer fim ou cumprirqualquer dever, ento o dever de fornecer estes bens queles que os no tmtem de ser aceite, simplesmente porque, sem esses bens bsicos, essas pes-soas no seriam capazes de cumprir qualquer dever ou obrigao. Comodever de estrita obrigao, este dever d origem ao correspondente direito deacesso a bens bsicos. Neste aspecto, Plant mostrou tambm que a tradicionalcrtica aos direitos sociais baseada na alegao de que eles so de naturezadiferente dos direitos civis e polticos no se aplica14.

    Estes dois pontos relativos ao significado da justia social e satisfaodas necessidades bsicas como dever de estrita obrigao constituem umargumento muito poderoso a favor do conceito de direitos sociais. No entanto,e contrariamente ao que Raymond Plant sustentou, estes mesmos pontos devemser claramente dissociados de qualquer argumento a favor de um critrio geralde distribuio ou a favor de qualquer padro positivo de justia social15. Asatisfao das necessidades bsicas no pode ser confundida com distribuiode acordo com as necessidades: a primeira implica um critrio residual ounegativo segundo o qual bens bsicos devem ser fornecidos queles que os notm, apenas a esses, e apenas enquanto eles no os tm; distribuio de acordocom as necessidades implica um critrio geral segundo o qual no apenas bensbsicos, mas todos os bens, devem ser fornecidos, no apenas queles queprecisam, mas a todos os membros da sociedade, de acordo com as suasnecessidades respectivas. Satisfazer necessidades bsicas equivale a estabeleceruma rede de segurana para cuja definio s preciso definir um nvel mnimode bens bsicos a serem fornecidos, bem como um mtodo para identificar eatingir as pessoas que se encontrem abaixo desse nvel. Distribuir de acordocom as necessidades, pelo contrrio, exige um acordo geral acerca do que soas necessidades de todos e cada um, e exige uma autoridade central encarreguede distribuir todos os bens de acordo com a necessidades definidas16.

    13 Sobre a distino entre deveres de estrita obrigao e deveres imperfeitos ou super-

    -rogatrios, v. designadamente J. S. Mill (1871-1987), p. 323: Justice implies something whichit is not only right to do, and wrong not to do, but which some individual may claim from usas his moral right. No one has a moral right to our charity or beneficience because we are notmorally bound to practise these virtues towards any given individual.

    14 Esta crtica aos direitos sociais particularmente interessante em D. D. Raphael (1968)

    e M. Cranston (1973). A resposta de Plant pode ser encontrada em R. Plant et al. (1980).15

    Que Plant confundiu satisfao das necessidades bsicas com um princpio geral dedistribuio de acordo com as necessidades pode ser irrefutavelmente provado pela seguintepassagem, entre outras, em R. Plant et al. (1980), p. 62: It is clear that Hayek would seemto mean by destitution absolutely basic need, in which case the duty to meet absolutely basicneed could be seen as a principie of distributive justice to each according to his basic

    272 need despite Hayek's rejection of the terminology of 'justice'.

  • Direitos sociais de cidadania

    Que a distribuio de acordo com as necessidades, ou de acordo comoutro qualquer critrio positivo, deve ser excluda foi persuasivamente argu-mentado por F. A. Hayek. Mas o prprio Raymond Plant forneceu os argu-mentos suficientes para mostrar que o dever de fornecer bens bsicos nopode servir de base a um critrio geral de distribuio de acordo com asnecessidades. Com efeito, se a base de uma obrigao moral de satisfazernecessidades bsicas a privao de bens bsicos, e a assuno de que estaprivao impede as pessoas de cumprirem qualquer obrigao, ento segue--se da que a obrigao s se aplica quando discernvel uma privao debens bsicos, e que essa obrigao cessa quando as necessidades bsicasesto satisfeitas.

    Por este motivo, Raymond Plant no produziu o mais pequeno argumentoque pudesse conduzir a um critrio geral de distribuio de acordo com asnecessidades; na verdade, isto implicaria um julgamento comparativo acercadas necessidades das pessoas, mesmo quando as suas necessidades bsicasesto satisfeitas, julgamento para o qual Plant no apresentou qualquer cri-trio, com excepo da igualdade democrtica (que ser refutada adiante) eque, em qualquer caso, no um critrio de distribuio de acordo com asnecessidades, uma vez que as necessidades das pessoas so desiguais. Maisdo que isso, a verdade que um critrio de distribuio de acordo com asnecessidades implicaria a existncia de um dever de satisfazer as necessida-des dos outros, mesmo quando as suas necessidades bsicas estivessem ga-rantidas dever que vai, obviamente, muito para alm do dever justificadopor Raymond Plant. Deve ser recordado mais uma vez que ele apenas apre-sentou justificao para o dever de satisfazer aquelas capacidades mnimasindispensveis para agir como agente moral, e apenas para esse dever teraplicao quando essas capacidades esto ausentes17.

    16 Uma ilustrao desta distino poderia ser a seguinte: enquanto um princpio de satis-

    fao de necessidades bsicas acarretaria que a condio dos sem abrigo fosse consideradacomo uma condio de necessidade bsica, um princpio de distribuio de acordo com asnecessidades acarretaria uma discusso sobre se algum que possui um palcio tem realmentenecessidade dele, por comparao com algum que possui apenas um apartamento. O mesmopode ser aplicado educao ou sade. Um princpio de satisfao das necessidades bsicasno se preocupa com o facto de que alguns podem ter acesso a escolas e hospitais privados,enquanto outros no desde que todos tenham acesso a um nvel mnimo adequado deeducao e sade. Pelo contrrio, um princpio de distribuio de acordo com as necessidadesteria necessariamente de pr em dvida que alguns realmente precisem de educao e sadeprivada, enquanto outros no podem alcan-la, embora precisem tanto dela como os primeiros.

    17 Deve ser recordado que a justificao de Plant, seguindo A. Gewirth, consistiu em

    afirmar que the obligation to satisfy these particular needs has to be a strict obligation becauseit is impossible to make sense of there being other obligations that could outweigh theobligation to meet these needs just because those whose needs in this sphere are not met arenot able ex hypothesi to pursue any other obligations, whatever they may be, or any otherends, in R. Plant et al. (1980), p. 93. 273

  • Joo Carlos Espada

    Por outras palavras, o tema da justia social deve ser distinguido de cri-trios gerais de distribuio ou justia social. O primeiro designa o domniodas discusses normativas sobre resultados, por contraposio a procedimen-tos apenas, numa ordem mercantil. A defesa de um padro de distribuio oujustia social , neste sentido, um ponto de vista particular, no mbito daqueladiscusso, um ponto de vista que pretende ordenar os resultados do mercadode acordo com um critrio ou padro comum. O ponto de vista defendido aquino esse. Ele equivale a dizer que, contariamente a Hayek e de acordo comPlant, o tema da justia social no destitudo de sentido numa ordem demercado. Mas, contrariamente a Plant e de acordo com Hayek, este ponto devista sustenta que os resultados mercantis no devem ser ordenados de acordocom nenhum padro comum. A concepo de direitos sociais bsicos defen-dida aqui no pressupe padres comuns desse tipo, mas apenas um princpioresidual ou negativo de satisfao das necessidades bsicas.

    O CONCEITO DE NECESSIDADES BSICAS

    Um tentao comum entre os estudiosos da problemtica dos direitossociais consiste em ensaiar uma descrio definitiva daquilo que deve e nodeve ser includo sob a designao de necessidades bsicas. De acordo comestes autores, isto seria importante com vista a evitar quer a expanso semlimites, quer a reduo excessiva do conjunto de bens que devem ser enten-didos como preenchendo as necessidades bsicas. Por mais plausvel que esteponto de vista possa parecer, o argumento aqui apresentado conduz a umaperspectiva diferente, de acordo com a qual o reconhecimento da existnciade determinadas situaes de privao que no devem ser aceites suficientepara os propsitos de uma teoria dos direitos sociais. Neste argumento, aprivao entendida como privao de bens bsicos apenas, e estes soentendidos como aquelas condies que so indispensveis a agir como agentemoral. Tambm se assume que estas condies compreendem a sobrevivnciafsica e a autonomia, na linha do que foi apresentado por Raymond Plant eAlan Gewirth, sendo plausvel que estas incluam os cuidados de sade eeducao. Mas a definio de um critrio preciso e definitivo para estassituaes aqui considerada no s desnecessria, mas tambm indesejvel.

    O ponto consiste aqui em sublinhar que existe um dever de fornecer bensbsicos queles que carecem deles, que este dever cessa quando as necessi-dades bsicas esto satisfeitas e que no existe nenhum critrio comparativoenvolvido neste raciocnio. Por outras palavras, a questo reside em admitiro dever da sociedade de garantir um rede de segurana para todos. A discus-so acerca do nvel preciso desta rede de segurana no matria de uma

    274 teoria geral dos direitos sociais, mas de uma controvrsia permanente que

  • Direitos sociais de cidadania

    pertence ao domnio da poltica normal18. E compreensvel que assim sejauma vez que uma definio precisa desse tipo no pode ser alcanada de umavez por todas, dado que vrias consideraes contingentes devem ser toma-das em linha de conta. O nvel de riqueza de uma dada sociedade e,portanto, a sua capacidade para definir o nvel de bens bsicos certa-meite uma destas consideraes. Mas outras menos fceis de identificar nodevem ser desprezadas: o impacto da ajuda social naqueles que so ajudados,nomeadamente na sua vontade de voltarem a adquirir independncia e auto--suficincia; os efeitos no intencionais de polticas sociais que podem acabarpor produzir incentivos para condutas anti-sociais, etc.

    muito provvel, por consequncia, que a definio precisa dos bensbsicos constitua sempre matria de controvrsia numa sociedade livre. Istodeve ser entendido como uma vantagem, no como um defeito: a controvrsiaalertara as pessoas para a necessidade de escrutinar permanentemente o impac-to e os custos das polticas sociais, bem como para a necessidade de aberturaa novas ideias. Estas so tarefas que devem ser deixadas controvrsia poltica,no a uma teoria geral dos direitos sociais ou a definies constitucionais19.

    MTODOS DE SATISFAO DAS NECESSIDADES BSICAS

    Uma observao semelhante pode ser feita relativamente aos mtodos autilizar para satisfao das necessidades bsicas. No existe resposta mgica

    18 O conceito de poltica normal, por contraste com poltica constitucional, aqui utili-

    zado no sentido apresentado em R. Dahrendorf (1990), especialmente pp. 30-37.19

    Por este motivo, o argumento aqui apresentado evitou propositadamente a abordagemde discusses empricas sobre polticas sociais, tais como as que surgiram na sequncia doagora famoso livro de Charles Murray, Losing Ground (1984). O argumento de Murray podeperfeitamente ser entendido como fazendo parte desta permanente controvrsia acerca domelhor nvel e do melhor mtodo de fornecimento de bens bsicos queles que precisam.Neste sentido, ele cabe no mbito da teoria de direitos sociais bsicos defendido aqui. O que,no entanto, iria para alm deste mbito, tornando-se por isso inaceitvel para o ponto de vistaaqui desenvolvido, seria a exigncia de desmantelamento do fornecimento de bens bsicospara os que precisam sob o argumento de que este fornecimento estaria a produzir efeitosindesejveis. Isto seria inaceitvel pela mesma razo que a hipottica descoberta emprica deque o direito a um julgamento leal est a permitir que alguns criminosos escapem no podeconduzir anulao do direito a um julgamento leal. Este direito baseado na assumpo deque prefervel deixar escapar um criminoso por falta de provas a condenar um inocente comfalta de provas. Um argumento semelhante pode ser aplicado ao dever de fornecer bensbsicos queles que precisam. Este argumento de princpio, no entanto, no deve ser abusadocom vista a excluir dogmaticamente muitos dados empricos recentemente vindos a lumeacerca dos efeitos no intencionais do chamado welfare state: esses dados devem ser inter-pretados e discutidos enquanto desafios para melhorar a aplicao dos princpios do welfare,no como convites para prescindir simplesmente desses princpios, nem como pretextos pararecusar a discusso de novos mtodos. 275

  • Joo Carlos Espada

    nem receita definitiva para definir estes mtodos. A nica receita, se estetermo tem aqui cabimento, de novo o ensaio e o erro; numa sociedade livre,o ensaio e o erro so, obviamente, o resultado do esforo comum de opiniesrivais, incluindo partidos rivais.

    Para alm disto, a considerao geral a reter que o fornecimento inten-cional de bens bsicos queles que precisam inerente concepo dosdireitos sociais apresentada aqui. Se certos indivduos no tm acesso aosbens bsicos atravs do mercado, e se se aceita que o acesso a bens bsicosdeve ser garantido a todos, segue-se que esse acesso tem de ser intencional-mente estabelecido.

    Mas isto no significa, contrariamente ao que Raymond Plant sugeriu,que os bens bsicos devam em geral ser fornecidos pelos servios sociais,enquanto ao mercado deve ser deixada apenas a satisfao de desejos epreferncias20. J foi aqui mostrado que os bens bsicos no devem sercentralmente alocados a todos e cada um dos cidados, mas apenas quelesque precisam, queles que no puderam obt-los no mercado. Mas deveagora ser observado que fornecimento intencional no quer sequer dizer for-necimento margem do mercado. Pode simplesmente querer dizer forneci-mento s pessoas dos meios que lhes permitam aceder ao mercado. Comefeito, uma vez que no pode ser provado que os servios sociais produziromelhores servios do que aqueles j existentes no mercado, esta deveria sera melhor forma de implementar os direitos sociais. Em vez de substituir ofornecimento do mercado pelo fornecimento do Estado, as polticas sociaisdeviam dirigir-se directamente queles que precisam, habilitando-as a entrarno mercado como consumidores de bens bsicos normalmente produzidospor empresas privadas competindo entre si. O sistema de vouchers usual-mente apresentado como um mtodo possvel de atingir este objectivo, espe-cialmente no campo da educao e da sade.

    Mesmo quando o fornecimento de servios pelo Estado for consideradosem alternativa, isto deve sempre ser feito de forma que a concorrncia possaoperar e produzir os seus efeitos benficos. Os monoplios, pblicos ouprivados, devem ser sempre evitados, dado que impedem a concorrncia depressionar os preos para baixo, encorajar a inovao e aumentar a produti-vidade. Por razes semelhantes, toda e qualquer interveno directa do Es-tado no deve interferir com o sistema de sinais em que assenta o funciona-mento do mercado. Tem sido persuasivamente argumentado que a excessivaregulamentao laborai, designadamente atravs do estabelecimento de sal-rios mnimos, produz uma perda lquida de empregos que, na ausncia de taisregulamentaes, poderiam ser oferecidos e aceites por aqueles que procuram

    20 Needs and their satisfaction characterize the social services on the general welfare aspect

    276 of society: the market exists to satisfy preferences and wants. [R. Plant et al. (1980), p. 22.]

  • Direitos sociais de cidadania

    trabalho. Um rendimento mnimo garantido, ou imposto negativo sobre orendimento, tm sido propostos como formas mais efectivas de fornecer umcho comum sem interferir com os sinais do mercado21.

    Em termos gerais, a interveno do Estado e as polticas sociais deveriamvisar a criao de um quadro permanente de regras, em vez da multiplicao decomandos arbitrrios. E deveriam sempre actuar como complementos e estmu-los aco do mercado, em vez de como substitutos. Mas no faria sentidoensaiar aqui uma definio dos mtodos atravs dos quais isto deve ser alcan-ado. Alm deste tipo de linhas gerais, os mtodos a adoptar dependero semprede consideraes contingentes que no podem ser estabelecidos de antemo22.

    COMPROMISSO PRTICO, SEPARAO TERICA

    Se, para quase todos os tpicos at aqui discutidos, algumas contribuiesde Hayek e outras de Plant tm sido subscritas, poder talvez ser dito agoraque o argumento deste trabalho se limita a um compromisso entre os pontosde vista de Hayek e Plant. No esse o caso, todavia.

    Ainda que o ponto de vista aqui apresentado possa abrir caminho para umcompromisso desse tipo em termos polticos e prticos, esse compromissono est na base do ponto de vista aqui defendido. Nem esse compromissofunda o conceito de direitos sociais aqui proposto, nem ele constitui o cami-nho intelectual pelo qual o conceito foi alcanado. Acima de tudo, as premis-sas gerais que suportam o ponto de vista aqui defendido so substancialmentediversas das premissas que suportam os pontos de vista de Hayek e Plant.

    No caso de Hayek, a principal distino reside na recusa das conse-quncias normativas (passivas) que ele retira do seu evolucionismo naturalis-ta. No caso de Plant, a principal distino reside na recusa das consequnciasnormativas (igualitrias) que ele retira do seu conceito de necessidades b-sicas. Como foi propositadamente apresentado at aqui, o conceito de direitossociais bsicos defendido neste trabalho pode ser justificado sem meno aosdesacordos de fundo mencionados acima. Apesar disso, para que o argumen-to deste trabalho possa ser correctamente entendido, e as suas consequnciasdevidamente exploradas, indispensvel referir que ele de facto envolvedesacordos mais profundos com as premissas gerais de Hayek e de Plant.

    21 Uma proposta interessante neste domnio foi recentemente apresentada por James E.

    Meade sob a designao de rendimento do cidado, em J. E. Meade (1993). Uma propostasemelhante tinha sido anteriormente apresentada por Milton Friedman em M. Friedman(1965), especialmente pp. 190-195.

    22 Sobre um conjunto de regras para a interveno do Estado, v. J. C. Espada (1996), parte

    ii, cap. 6, seco 67. 277

  • Joo Carlos Espada

    Esses desacordos e algumas das suas implicaes sero sumariamente passa-dos em revista a seguir.

    O EVOLUCIONISMO DE F. A. HAYEK

    A principal dificuldade do evolucionismo de Hayek pode ser ilustradapelo facto de que, embora Hayek defenda que os indivduos no so livresde escolher a sua moral, ele simultaneamente baseia a sua doutrina numaforte componente moral. Dado que a obra inicial de Hayek foi essencialmen-te normativa, e dado que ele foi gradualmente evoluindo para uma posturaevolucionista, o resultado que ele conduzido posio singular de algumque sabe que a moral que escolheu em bases normativas tambm aquelaque ser necessariamente seleccionada pela evoluo natural23. Esta posioparadoxal, cuja semelhana com a de Marx foi recordada aqui em artigoanterior24, d lugar a duas dificuldades essenciais, uma de ordem moral, outrade ordem espistemolgica.

    O problema moral reside nas devastadoras consequncias relativistas deuma teoria moral desse gnero. Segundo ela, os prprios requisitos hayekia-nos para a definio de uma ordem liberal, designadamente o governo dasleis por contraposio ao governo dos homens, s poderiam ser entendidoscomo atributos morais derivados de um antropomorfismo ingnuo25. Almdisso, e ainda de acordo com o evolucionismo de Hayek, no haveria moti-vos para acreditar que um processo natural, espontneo e auto-ordenado deadaptao devesse conformar-se com exigncias morais tais como a de queos indivduos devem ser tratados igualmente pela lei, exigncia que joga umpapel decisivo na crtica inicial de Hayek ao socialismo. Neste sentido, nemmesmo os direitos civis e polticos, que Hayek defende sem compromisso,poderiam ser justificados, muito menos defendidos, se e quando um proces-so espontneo de adaptao os contrariasse.

    O problema epistemolgico no menos importante. Tal como muitasteorias de alcance muito geral, a teoria hayekiana da evoluo no suscept-vel de teste: mesmo se todas as sociedades liberais deixassem um dia de oser, isto no refutaria a tese de Hayek segundo a qual a ordem liberal simultaneamente o produto e o destino da evoluo, uma vez que poderiasempre ser dito que o desaparecimento das sociedades liberais era apenas um

    23 A fase normativa de Hayek corresponde sobretudo s obras The Road to Serfdom

    (1944) e The Constitution of Liberty (1960). Os trs volumes de Law, Legislation and Liberty(1973, 1976 e 1979) evidenciam um perodo de transio, sobretudo patente no lt imo volu-me . The Fatal Conceit: the Errors of Socialism (1988) consagra o evolucionismo a que o autorentretanto se convertera.

    24 J. C. Espada (1994).

    278 25 F. A. Hayek (1988), p . 73 .

  • Direitos sociais de cidadania

    episdio passageiro da evoluo e que o necessrio colapso futuro de socie-dades iliberais daria em breve origem a um renascimento liberal. Mas, pre-cisamente porque no existe teste definitivo para a teoria, tambm poderia serdito que o processo evolutivo tinha definitivamente posto de lado os princ-pios liberais. Isto mostra que a tentativa hayekiana de assentar a moral liberalem bases cientficas ou naturais fracassou, precisamente porque ao mesmofacto natural podem ser dadas duas respostas morais diferentes26.

    Por este motivo, a f de Hayek na futura vitria inevitvel do capitalismoliberal revela ser simplesmente uma f. A evoluo no pode ser o teste damoralidade poltica, e o liberalismo no pode ser visto como o produto ne-cessrio da evoluo. apenas um dos vrios possveis, e o seu progressorequer a interveno activa da vontade humana. Este ponto de vista podeinclusivamente ser reforado atravs de uma das contribuies de Hayek: ade que uma ordem espontnea ou descentralizada tem uma capacidade paralidar com informao, e por isso de se adaptar a circunstncias em permanen-te mudana, que no igualada por uma organizao, ou por uma ordemconstruda por desgnio. Esta capacidade de adaptao sugere uma perspec-tiva diferente sobre a evoluo, na qual a reaco criativa dos indivduos pelo menos to importante como a presso exterior do ambiente27. De acordocom esta perspectiva, as tradies liberais, designadamente as de aberturaintelectual e de governo limitado pela lei, permanecem de crucial importn-cia, no meramente porque elas so parte da tradio, mas porque elas favo-recem a mudana gradual e a adaptao.

    Esta diferente perspectiva acerca da evoluo implica duas outras correc-es crtica que Hayek desenvolveu contra o chamado construtivismo. Emprimeiro lugar, em vez de uma reverncia cega pelas tradies, o liberalismodeve favorecer uma presuno crtica da tradio, isto , uma atitude quecoloca o nus da prova na proposta de mudana, mas que no fecha a porta mudana28. Em segundo lugar, uma ordem espontnea, por contraste com uma

    26 Sobre a impossibilidade de estabelecer uma moral cientfica, v. K. Popper (1945), vol. i,

    sobretudo pp. 237-239. Deve ser recordado que, na importante adenda a esse volume, inseridana edio de 1961, Popper afirmou mesmo que liberalism is based upon the dualism of factsand standards in the sense that it believes in searching for ever better standards, especially inthe field of politics and legislation, in K. Popper (1945/1971) vol. ii.

    27 Sobre esta perspectiva da evoluo, v. K. Popper (1989). No primeiro ensaio desta

    colectnea, que d o ttulo ao livro, Popper apresenta aquilo que designa por viso optimistae activa da evoluo, cuja principal caracterstica reside no papel crucial que atribui aosindivduos no processo de adaptao ao meio envolvente. Popper argumenta que os indivduosno so apenas influenciados pelo meio envolvente, mas que eles prprios alteram esse meio,designadamente atravs da busca permanente de um mundo melhor.

    28 A expresso presuno crtica da tradio aqui utilizada em sentido semelhante ao

    exposto em J. Raz (1986/1988), p . 8: A presumption of liberty is sometimes used to indicatethat the burden of adducing evidence and marshalling arguments is in those who favour therestriction of liberty. 279

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    ordem construda por desgnio, deve continuar a ser entendida como um idealliberal, mas no como um produto natural da evoluo espontnea. Emboraas ordens espontneas subjacentes s sociedades liberais possam ter surgidohistoricamente como produtos no intencionais e no planeados da aco huma-na, a sua manuteno requer um constante proteco por desgnio, nomeada-mente atravs da criao e manuteno de um quadro estvel de leis e institui-es29.

    Finalmente, e se as asseres anteriores forem aceites, segue-se que oliberalismo no pode ser identificado com uma doutrina de laissez-faire edeve, por contraste, ser entendido como uma forma especial de constru-tivismo uma forma de construtivismo que autolimitado precisamenteporque, como sugeriu Karl Popper, o seu principal objectivo a proteco deuma sociedade livre. Este entendimento activo do liberalismo no pode sertraduzido num programa poltico definitivo. A agenda do liberalismo devevariar de acordo com as circunstncias, e s a sua atitude de fundo pode serdefinida: o liberalismo visa, antes de mais, a preservao de uma sociedadelivre, governada pelas leis, e no pelo capricho dos homens. Mas este umempreendimento sem fim, que requer uma interveno activa no domnio dapoltica e das instituies sociais30.

    O IGUALITARISMO DE RAYMOND PLANT

    Os direitos de cidadania, incluindo os direitos sociais de cidadania, devemassim ser entendidos como parte desse quadro estvel de leis que protegemas sociedades liberais. Eles so construdos por desgnio, embora atravs deum processo especfico, designado acima por presuno crtica da tradio.Este desgnio, no entanto, no arbitrrio. O propsito dos direitos de cida-dania a proteco de uma ordem de liberdade. Eles devem, por isso, sercuidadosamente concebidos e corrigidos, quando necessrio com vistaa no minar, mas a robustecer, este propsito.

    O argumento aqui defendido inclui a afirmao de que a tentativa deRaymond Plant de associar o conceito de direitos sociais com o conceito de

    29 Argumentos semelhantes podem ser encontrados em J. Buchanan (1977), S. Brittan

    (1983), J. Gray (1984, 1989 e 1989a), R. Dahrendorf (1990), R. Kley (1990) e C. Kukathas(1990). A ttulo de exemplo, cita-se aqui apenas J. Buchanan (1977), p . 38 : In a positive,empirical sense many of our social and legal institutions have grown independently of designand intent. But man must look on all institutions as potentially improvable. Man must adoptthe attitude that he can control his fate. He must accept the necessity of choosing. He mustlook on himself as man, not another animal, and upon civilization as if it is of his ownmaking.

    30 Para uma discusso do liberalismo como construtivismo, v., designadamente, J. C.

    280 Espada (1994 e 1994a).

  • Direitos sociais de cidadania

    igualdade democrtica31 constitui, se for tomada letra, uma sria ameaa auma ordem liberal. Esta afirmao no resulta apenas do argumento expostoanteriormente, que consistiu em mostrar que essa associao de baseava numaconfuso entre o princpio negativo de satisfao das necessidades bsicas eum padro ou critrio positivo de distribuio. Esta afirmao decorre sobre-tudo de uma alegao mais geral que consiste em dizer que a busca da igual-dade social intrinsecamente incompatvel com a manuteno da liberdade.

    Esta incompatibilidade pode ser ilustrada por recurso a uma experinciaintelectual32. Imaginemos que, num dado momento T1, todos os indivduos deuma dada sociedade se encontram em condies materiais iguais. De acordocom o argumento de Raymond Plant, assumiremos ainda que esta igualdadede condies tinha sido promovida com o objectivo de garantir igual liberdadeefectiva para todos (por contraste com igual liberdade formal, ou seja, comoargumentou Plant, por constraste com a simples igualdade perante a lei). Poreste motivo, uma vez atingida a igualdade de condies em T1, os cidadossero autorizados a agir livremente na verdade, eles sero finalmentecapazes de agir com igual liberdade efectiva, uma vez que, de acordo comPlant, eles tero igualdade perante a lei e igualdade de condies materiais.

    Agindo com igual liberdade efectiva, eles sero igualmente capazes deadoptar diferentes cursos de aco. Agora, se admitirmos que diferentescursos de aco produzem resultados diferentes, teremos de admitir que, emT2, os cidados estaro em diferentes condies materiais as quais terosido resultado de diferentes aces produzidas em T1 isto , em condiesmateriais iguais. Isto significa que a consequncia natural da igual liberdadede aco a desigualdade de condies.

    Mas deve ser observado que no impossvel voltar a criar a igualdadede condies existente em T1. Isto pode ser, obviamente, atingido em T3, seentretanto forem anulados os resultados diferentes obtidos em T2 (o que podeser conseguido, por exemplo, atravs de uma forte carga fiscal progressivaem associao com a estatizao da oferta dos principais bens bsicos, comoeducao, habitao e sade). O nico problema que, do ponto de vista doobjectivo da igual liberdade para todos, anular os resultados diferentes deaces diferentes paradoxal: estas aces tinham sido produzidas numasituao de igualdade de condies materiais em T1 e esta igualdade

    31 De acordo com Plant, o conceito de igualdade democrtica envolve uma presuno da

    igualdade na qual algumas desigualdades sero aceites se, e s se, elas permitirem a produo demais recursos para os que ficam pior: Excepes igualdade sero justificadas, no por recursoao mrito ou merecimento, mas na base de uma renda de competncias (rent of ability) aquantidade de dinheiro (ou de incentivos no materiais) que ser necessria para que os indiv-duos desempenhem tarefas sem as quais a comunidade no seu conjunto ficaria pior. [Plant(1981), p. 142.]

    32 Sobre o conceito de experincia intelectual, v. o conceito de John Rawls de thought

    experiment, em J. Rawls (1972), pp. 11-21. 281

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    de condies tinha sido criada com o objectivo de garantir a igualdade deliberdade efectiva. Tem de ser reconhecido que absurdo dar igualdade deliberdade efectiva aos indivduos se cada um dos resultados diferentes queser livremente produzido por eles tiver de ser anulado com vista a voltar acriar a inicial igualdade de liberdade efectiva. Neste caso, para que serve aigual liberdade efectiva se tudo o que ela permite fazer tem de ser desfeito?Por outras palavras, s se pode igualizar duradouramente as condies se seacabar por proibir os indivduos de fazerem tudo aquilo que inicialmente sepretendia que eles fossem igualmente livres e capazes de fazer.

    Por esta razo, um princpio de liberdade implica necessariamente umapresuno de desigualdade social, e no uma presuno de igualdade comoPlant, na linha de John Rawls, props33.

    O segundo argumento de Plant a favor da igualdade consiste em afirmar quea viso da liberdade como autorizao para agir meramente formal, namedida em que ela encobre profundas desigualdades de liberdade efectiva, isto, de capacidade para agir. A liberdade, argumentou Plant, no apenas aausncia de coero por terceiros, mas tambm a capacidade para desenvolveras aces que esto abertas ou autorizadas pela ausncia de coero por tercei-ros. A liberdade, para ter algum signifcado, inseparvel do valor da liberda-de, e este definido por aquelas condies que nos capacitam a usar a liber-dade. Por isso, concluiu Plant, para que a liberdade seja igual para todos, ovalor da liberdade tambm deve ser igual, ou to igual quanto possvel.

    Este raciocnio pode parecer plausvel, primeira vista. Mas deve agoraser observado que o nico objectivo que compatvel com o objectivo de umvalor igual da liberdade uma absoluta igualdade de capacidades ou con-dies, uma vez que o valor da liberdade determinado pelo conjunto decapacidades que nos permitem usar a liberdade. No entanto, Plant reconhe-ceu que algumas desigualdades de condies podem ser legtimas, quandoelas funcionam como incentivos para aumentar a produo global de umaeconomia e, por isso, para melhorar a situao dos que esto pior. S que,de acordo com a definio de liberdade efectiva proposta por Plant, estaadmisso de algumas desigualdades de condio equivale a reconhecer algu-mas desigualdades de liberdade efectiva.

    Deve agora ser recordado que o ponto de partida da crtica de Plant liberdade negativa, bem como o ponto de partida da sua defesa da igualdade

    33 Com efeito, de acordo com o argumento aqui apresentado, o segundo princpio da

    justia de Rawls, para ser compatvel com o primeiro, teria de ser reformulado. Em vez depresumir a igualdade, a menos que a desigualdade favorea os que esto pior, o segundoprincpio deveria presumir a desigualdade que o produto natural da liberdade, consagradano primeiro princpio , a menos que esta implique que alguns indivduos sero privados do

    282 acesso a bens bsicos.

  • Direitos sociais de cidadania

    do valor da liberdade, tinha sido a alegao de que a viso negativa daliberdade encobria profundas desigualdades de liberdade efectiva. No entan-to, ele chegou exactamente ao mesmo resultado, ao admitir algumas desi-gualdades legtimas como incentivos para aumentar a produo global e,assim, a situao dos que esto pior.

    Por outras palavras, para aqueles que interpretam a igualdade do valor daliberdade como um pr-requisito da igual liberdade, todos os desvios estritaigualdade de condies tm de ser entendidos como desvios igualdade daliberdade. Mas, uma vez que hoje amplamente aceite que uma estrita igual-dade de condies no aplicvel, como o prprio Raymond Plant reconhe-ceu ao introduzir o conceito de renda de competncias, isto conduz-nos aum beco sem sada: para aqueles que vem a igualdade do valor da liberdadecomo uma pr-condio da liberdade igual, a impossibilidade de atingir aestrita igualdade de condies tem de ser entendida como impossibilidade deatingir a liberdade igual para todos.

    Esta inconsistncia s pode ser superada no mbito de uma teoria queentenda a liberdade negativamente, isto , como ausncia de coero inten-cional por terceiros. Enquanto tal, a igual liberdade pode ser garantida pelalei, isto , pela igualdade perante a lei. Como foi argumentado acima, umapresuno da desigualdade material, ou da desigualdade do valor da liberdade,segue-se necessariamente deste entendimento da liberdade. S que isto noenvolve nenhuma inconsistncia, uma vez que, de acordo com o entendimentonegativo da liberdade, um desigual valor da liberdade no equivale a umadesigualdade da liberdade. Pelo contrrio, este entendimento sustenta que aliberdade igual implica necessariamente um desigual valor da liberdade.

    DIREITOS SOCIAIS DE CIDADANIA:UM CHO COMUM PARA TODOS

    Do raciocnio anterior no deve, no entanto, ser inferido que o valor daliberdade irrelevante, ou que ele deve ser considerado irrelevante logo quea igual liberdade esteja garantida pela lei. Aquele raciocnio apenas mostrouque a igualdade do valor da liberdade irrelevante, no necessariamente queo valor da liberdade irrelevante em si mesmo. Deve agora ser recordado quea crtica a Hayek aqui produzida consistiu precisamente em argumentar que ovalor da liberdade relevante e que a garantia da liberdade perante a lei no suficiente. Tambm preciso garantir que todos tenham acesso queles bensbsicos que so entendidos como condies mnimas para agir como agentemoral por outras palavras, para agir livremente, ou para fazer uso daliberdade. Isto equivale a dizer que, embora a igualdade do valor da liberdadedeva ser posta de parte, o acesso aos meios atravs dos quais, a liberdadeganha valor parte do objectivo de tornar a liberdade real para todos. 283

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    Este o domnio dos direitos sociais de cidadania: o domnio do valor daliberdade, daquelas condies materiais que habilitam as pessoas a usar dasua liberdade. Consequentemente, o argumento aqui defendido consiste emdizer que os direitos sociais de cidadania no visam atingir um igual valorda liberdade, mas apenas garantir o acesso universal ao valor da liberdade.

    Pode ser agora ripostado que esta concepo do direitos sociais tambmenvolve um princpio de igualdade: todos os cidados tm um direito igualde acesso ao valor da liberdade, ou tm um direito igual satisfao das suasnecessidades bsicas. Isto , em certo sentido, verdade. Mas deve ser subli-nhado o contrataste entre esta viso liberal da igualdade e a viso socialistadefendida por Raymond Plant. Segundo Plant, todos os cidados devem terum direito igual a um valor igual da liberdade (ou to igual quanto possvel),isto , a uma fatia igual de bens bsicos. Segundo o argumento aqui defendido,este direito igual diz apenas respeito ao acesso, no aos resultados. Por isso,ele mais apropriadamente designado por universalidade, em vez de igual-dade: a igualdade dos direitos sociais significa universalidade dos direitossociais, um conjunto comum de direitos que fornecem um cho comum paratodos. Acima deste cho comum, as desigualdades podem e devem florescer.

    Neste sentido, as questes colocadas por T. H. Marshall acerca do conflitoentre a igualdade de cidadania e as desigualdades das classes sociais podemagora ser observadas a uma nova luz34. verdade, como ele observou, quea igualdade de cidadania limitou as reas nas quais os mercados podemfuncionar: ao fornecerem um cho comum abaixo do qual ningum tem derecear cair, a cidadania social fornece um estatuto comum para todos, o qualno depende das oscilaes do mercado. Mas este estatuto comum no visasubstituir os mercados por padres comuns de distribuio que definiriam asrecompensas a atribuir a cada um e a todos os cidados. Este estatuto comumvisa apenas propiciar a todos bilhetes de entrada no mercado, ou seja, visaevitar a excluso do mercado. Uma vez garantida a incluso, a troca livre entreos indivduos permanece o criteiro bsico de distribuio, isto , no exitenenhum critrio nico de distribuio. Assim, se verdade, como T. H.Marshall afirmou, que a desigualdade do sistema de classes sociais pode seraceitvel, desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida, no menosverdade que, para que a liberdade seja preservada, a igualdade de cidadania desejvel desde que a desigualdade social seja aceite.

    Como foi argumentado por Ralf Dahrendord, os direitos de cidadania sobilhetes de entrada, oportunidades de acesso, demolidores de barreiras, ga-rantias de incluso num mundo de liberdade e, portanto, de condies desi-guais. O objectivo dos direitos de cidadania no promover a igualdade, mas

    284 34 Cf. T. H. Marshall (1950/1992).

  • Direitos sociais de cidadania

    promover a oportunidade, no evitar a desigualdade, mas evitar a exclusode um mundo de oportunidades. Porque as pessoas so iguais como cidados,elas podem ser desiguais como indivduos.

    No incio deste trabalho foi dito que ele visava criticar duas perspectivasrivais sobre os direitos sociais de cidadania, a do neoliberaismo, representadapor F. A. Hayek, e a do socialismo, representada por R. Plant. Foi entoacrescentado que a perpsectiva aqui apresentada poderia ser simplesmentedesignada de liberal. Embora este artigo se tenha centrado na questo dosdireitos sociais de cidadania, talvez ele tenha tambm conseguido sugerir apossibilidade de uma viso alternativa do liberalismo um liberalismo que,ao contrrio do neoliberalismo de Friedrich A. Hayek, no passivo nodomnio poltico e institucional, e que, ao contrrio do socialismo de RaymondPlant no igualitrio e no menospreza o papel do mercado. A discussoaprofundada dessa viso activa do liberalismo ultrapassa, no entanto, o mbitodo presente trabalho e justifica, s por si, uma nova explorao intelectual.

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