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ARTIGO TEOLÓGICO
Jesus Usou Tatuagem?
por
Carlos Augusto Vailatti
RESUMO
Este breve artigo visa contribuir quanto ao esclarecimento do significado de
Apocalipse 19.16, texto este que, muitas vezes, é interpretado equivocadamente como
sendo uma referência à “tatuagem” que Jesus possuía em sua “coxa”. Através de uma
abordagem tríplice, a saber, lingüística, teológica e cultural, buscar-se-á fornecer uma
explicação adequada à compreensão desse texto.
Palavras-Chave: Tatuagem, Apocalipse, Jesus.
ABSTRACT
This short article aims to contribute to clarifying the meaning of Revelation
19:16, text that is often misunderstood as being a reference to "tattoo" that Jesus had in
his "thigh". Through a three-pronged approach, namely, linguistic, theological and
cultural, it is hoped will provide an adequate explanation for the understanding of this
text.
Keywords: Tattoo, Revelation, Jesus.
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INTRODUÇÃO
Há muitas pessoas que interpretam o texto de Apocalipse 19.16, “Tem no seu
manto e na sua coxa um nome inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS
SENHORES”,1 como se o texto bíblico descrevesse um “Jesus tatuado”. Já ouvi,
inclusive, alguém dizer certa vez: “Galera, Jesus era um dos nossos! Ele também tinha
uma ‘tatoo’ na sua coxa!”. Tal equívoco interpretativo se deve a três causas principais:
a) ao desconhecimento do texto grego original do Novo Testamento, bem como,
de suas regras gramaticais;
b) às traduções existentes em português que, com uma rara exceção, dão
margem para que esse tipo de interpretação equivocada seja feita;
c) à conveniência, pois algumas pessoas interpretam convenientemente um Jesus
tatuado em Ap 19.16, porque, ao fazerem isso, estão encontrando um apoio “bíblico”
que legitima o uso de tatuagens por parte destas mesmas pessoas.
Particularmente, creio que o problema todo esteja principalmente nos dois
primeiros itens. De qualquer forma, depois de receber vários emails de pessoas
questionando sobre a hipótese de Apocalipse 19.16 descrever Jesus “tatuado”, resolvi
escrever esse artigo a fim de tentar esclarecer o significado deste verso tão mal
compreendido nos dias de hoje, principalmente pelos jovens. Vejamos, então, Ap 19.16
do ponto de vista lingüístico, teológico e cultural.
1 ALMEIDA, João Ferreira de. (trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
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I – O PONTO DE VISTA LINGÜÍSTICO
O texto grego original de Ap 19.16 diz o seguinte: kai. e;cei evpi. to. i`ma,tion kai.
evpi. to.n mhro.n auvtou/ o;noma gegramme,non\ Basileu.j basile,wn kai. ku,rioj kuri,wnÅ2 A
transliteração desse texto fica assim: kaì échei epì tò himátion kaì epì tòn mēròn autou
ónoma gegramménon. Basileùs basiléōn kaí kýrios kyríōn.3 Se traduzirmos este verso
ao pé da letra, ele ficará dessa forma: “e tem sobre a veste e sobre a coxa dele um nome
escrito: Rei dos reis e Senhor dos senhores”.4
No que diz respeito ao aspecto lingüístico, observa-se no texto grego que a
primeira e a sexta palavras do versículo (sublinhadas) são as mesmas. Trata-se da
conjunção “kaì” que normalmente é traduzida como “e” ou “também”, de acordo com o
contexto em que ela aparece. Todavia, embora o primeiro “kaì” de Ap 19.16 possa ser
traduzido como “e”, ou seja, “e tem sobre a veste (...)”, o segundo “kaì”, por outro lado,
pode ser entendido como um “kaì” epexegético ou explicativo.5 Em outras palavras, o
segundo “e” do versículo, “(...) e sobre a coxa dele” deveria ser traduzido de forma
explicativa, como, por exemplo, “ou seja”, “isto é”, “a saber”, “quer dizer” etc. Sendo
assim, a tradução mais apropriada para Ap 19.16 seria: “e tem sobre a veste, isto é, [que
está] sobre a sua coxa um nome escrito: Rei dos reis e Senhor dos senhores”.
George Ladd, que concorda com a interpretação que estamos dando, oferece
uma tradução ligeiramente diferente: “no seu manto, isto é, onde ele cobre sua coxa”.
Ladd ainda acrescenta que “não é mencionada nenhuma razão por que o nome estaria
escrito na coxa”.6 Além de Ladd, Henry Alford também concorda com a nossa
interpretação e faz o seguinte comentário:
2 Baseio-me em: ALAND, Barbara et al. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005. 3 Esta é a transliteração (representação das letras do texto grego pelas letras correspondentes em português) do texto original. Os sublinhados são meus. 4 Novamente os sublinhados são meus. 5 Na gramática do grego, “epexegético” é o nome dado às conjunções, genitivos e infinitivos que explicam ou concluem o significado de algo. É também conhecido como explanatório ou explicativo. (Cf. DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento. São Paulo, Editora Vida, 2004, p.71). Veja também: BLASS, F. & DEBRUNNER, A. Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature. [Trad. Robert W. Funk]. Grand Rapids, Zondervan, 1976, p.442. 6 LADD, George Eldon. Apocalipse: introdução e comentário. São Paulo, Vida Nova / Mundo Cristão,1992, p.190.
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A maneira usual de tomar as palavras é supor o kaí epexegético ou definitivo das
palavras anteriores, “sobre Sua veste”, e que parte dela [da veste] está cobrindo Sua
coxa.7
Some-se a estes autores ainda a opinião de Champlin, segundo quem, entre
outros significados, o texto também pode ser traduzido como “...sobre vestes, a saber,
sobre sua coxa...”8, o que se harmoniza com o significado que entendemos ser o mais
correto para esse texto.
Infelizmente, de todas as versões bíblicas em português que consultei, apenas
uma traduz Ap 19.16 refletindo o seu significado de forma mais correta. Trata-se da
Edição Contemporânea de João Ferreira de Almeida. Ela traduz Ap 19.16 assim: “No
manto, sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei dos reis, e Senhor dos senhores”.9
Portanto, a partir da perspectiva lingüística podemos assegurar que a frase “Rei
dos reis e Senhor dos senhores” de Apocalipse 19.16 não está “tatuada” na “coxa” de
Jesus. Muito pelo contrário, estes dizeres estão escritos na “veste” (ou “manto”) de
Jesus, a qual, por sua vez, cobre a sua coxa.
7 ALFORD, Henry. The Greek Testament. Vol. IV. [Hebrews-Revelation]. Chicago, Moody Press, 1968, p.728.Os acréscimos entre colchetes são meus. 8 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol. VI. São Paulo, Editora e Distribuidora Candeia, 1995, p.628. 9 THOMPSON, Frank Charles. Bíblia de Referência Thompson. [Edição Contemporânea, baseada na Tradução de João Ferreira de Almeida]. Deerfield, Editora Vida, 1994.
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II – O PONTO DE VISTA TEOLÓGICO
Antes de entrarmos no ponto de vista teológico em si, devemos dizer aqui que o
livro de Apocalipse foi escrito aproximadamente na metade da década do ano 90 d.C.10
Isto quer dizer que ele foi escrito por João cerca de 50 a 60 anos depois da morte e
ressurreição de Jesus. Portanto, Jesus já possuía (havia mais de meio século) um “corpo
glorificado”, imaterial, quando João escreve as linhas de Ap 19.16.
Já no que se refere ao aspecto teológico, Ap 19.16 está inserido dentro do
contexto de uma visão que João teve (cf. Ap 19.11), devendo ser entendido, portanto, de
forma “simbólica”, isto é, “não-literal”. Apesar de alguns comentaristas compreenderem
Ap 19 à luz da queda da Babilônia – símbolo de Roma – conforme Ap 18, contudo, Ap
19 aponta para algo bem maior, a saber, a vitória escatológica completa de Deus e do
Seu povo sobre o mal em geral, vista sob a perspectiva contextual mais ampla de Ap
19.11-21.8.
Assim, o título “Rei dos reis e Senhor dos senhores” escrito na “veste” de Jesus,
se entendido corretamente de forma “simbólica”, era aplicado, segundo a tradição
judaica, ao próprio Deus, o qual era visto como Rei suserano que governava acima de
todos os reis da Terra.11 Isto quer dizer que, Jesus, ao receber em Ap 19.16 o mesmo
título majestoso que Deus recebia no judaísmo, estava se igualando a Ele em Sua glória
e divindade.
Além do mais, se entendermos Ap 19.16 como uma referência literal à “coxa
tatuada” de Jesus (se este fosse realmente o caso, o que não é), teríamos que entender
literalmente também outra visão de João na qual Jesus é descrito como tendo: “cabelos
brancos como a lã branca, olhos como chama de fogo, pés como latão reluzente, voz
como a voz de muitas águas, boca da qual saía uma espada afiada e rosto como o sol”
(cf. Ap 1.12-17), o que seria bastante complicado.
Enfim, sob a perspectiva teológica também podemos afirmar que Jesus não tinha
uma “tatuagem” feita em sua “coxa”.
10 HÖRSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento. Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1991, p.185. 11 KEENER, Craig S. Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte, Editora Atos, 2005, p.836.
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III – O PONTO DE VISTA CULTURAL
Por fim, sob o ponto de vista cultural, creio que sejam bastante apropriadas as
palavras de Champlin sobre Ap 19.16. Este autor nos fornece as seguintes informações:
(...) havia um antigo costume de gravar o nome do artista sobre a coxa de uma estátua.
(...) A arqueologia tem encontrado figuras assírias com inscrições gravadas sobre ela,
bem como nas vestes que encobrem seus corpos. Também é verdade que os cavalos,
entre os gregos, traziam sinais identificadores sobre suas pernas traseiras.12
Porém, Keener explica que “na antigüidade romana, os cavalos e as estátuas
eram às vezes marcados com ferro na coxa, mas as pessoas não”.13 Aliás, esses
exemplos fornecidos por Champlin e Keener, note-se, são extraídos de um contexto
“pagão” (assírio e greco-romano), e não “judaico” ou “judaico-cristão”! Vale citar aqui
as palavras de Alfred J. Kolatch, segundo quem,
Foi proibido aos judeus fazerem isto [isto é, tatuagens ou incisões no corpo] não só
porque era sinal de idolatria, mas também porque vai contra as proibições bíblicas de
derramar sangue e maltratar o corpo que Deus deu ao ser humano.14
Tendo esses dados em mente, seria, então, simplesmente impensável imaginar
um judeu dos tempos bíblicos tatuado (e Jesus era judeu!). Tal fato seria o cúmulo do
sacrilégio!
Portanto, do ponto de vista cultural também não é correto afirmar que Jesus
possuía uma “tatuagem” em sua “coxa”. Tal prática seria totalmente estranha à cultura
(judaica) da qual ele, Jesus, fazia parte.
12 CHAMPLIN, R. N. Op. Cit., p.627. 13 KEENER, Craig S. Op.Cit., p.836. 14 KOLATCH, Alfred J. 2º Livro Judaico dos Porquês. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 1998, p.183. Os acréscimos entre colchetes são meus.
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CONCLUSÃO
Concluindo, um dos grandes problemas que ocorre na interpretação da Bíblia é
que nós, muitas vezes, a fazemos partindo do nosso próprio contexto vivencial. Dito de
outra maneira, muitas vezes nós projetamos para dentro da Bíblia nossas experiências
pessoais, vivências, pressuposições e ideologias – o que é chamado no campo da
interpretação bíblica de “eisegese”, em vez de buscarmos extrair do texto bíblico aquilo
que ele próprio quer nos dizer – o que é conhecido como “exegese”.
Bem, de qualquer forma, cada um é livre para fazer o que quiser do “seu” corpo
(o qual, na verdade, não é “seu”, mas de Deus, quem o criou e, portanto, detém direitos
sobre ele). Porém, se alguém for fazer qualquer tatuagem no corpo, fique à vontade. Só
não vá, entretanto, sair dizendo por aí que você está fazendo isso porque a “tatuagem”
que Jesus tinha em sua “coxa” te autoriza a proceder dessa forma!
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BIBLIOGRAFIA
ALAND, Barbara et al. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,
2005.
ALFORD, Henry. The Greek Testament. Vol. IV. [Hebrews-Revelation]. Chicago, Moody
Press, 1968.
ALMEIDA, João Ferreira de. (trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Atualizada). São
Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BLASS, F. & DEBRUNNER, A. Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature. [Trad. Robert W. Funk]. Grand Rapids, Zondervan, 1976.
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol. VI. São
Paulo, Editora e Distribuidora Candeia, 1995.
DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo Testamento. São Paulo,
Editora Vida, 2004.
HÖRSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento. Curitiba, Editora
Evangélica Esperança, 1991.
KEENER, Craig S. Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte, Editora
Atos, 2005.
KOLATCH, Alfred J. 2º Livro Judaico dos Porquês. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer
Ltda, 1998.
LADD, George Eldon. Apocalipse: introdução e comentário. São Paulo, Vida Nova /
Mundo Cristão,1992.
THOMPSON, Frank Charles. Bíblia de Referência Thompson. [Edição Contemporânea,
baseada na Tradução de João Ferreira de Almeida]. Deerfield, Editora Vida, 1994.
© É permitida a reprodução parcial deste artigo desde que citada a sua fonte.
Citação Bibliográfica: VAILATTI, Carlos Augusto. Jesus Usou Tatuagem?
[Artigo]. São Paulo, Publicação do Autor, 2011.
Carlos Augusto Vailatti possui Graduação em Teologia pela Faculdade Betel /
Instituto Betel de Ensino Superior (IBES, 1999), Mestrado em Teologia (Master of Arts
in Biblical Theology), com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário
Teológico Servo de Cristo (STSC, 2009) e Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e
Cultura Judaica (em andamento) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) - Departamento de Letras Orientais (DLO) - da Universidade de São
Paulo (USP). Atualmente leciona diversas disciplinas bíblico-teológicas na Faculdade
Betel / Instituto Betel de Ensino Superior (IBES) e também no Seminário Teológico
Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB). Contato: [email protected].
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