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Jesus Cristo nunca existiuAutor Emílio Bossi

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INTRODUO Uma nova primavera agita a vida humana: a primavera da idade positiva, que se inaugura sob um duplo aspecto. De um lado, ou seja, no campo moral, este jaz ainda sob uma forte camada de gelo e trevas invernais. As novas ideias, fecundadas pelo saber positivo, encontram obstculo fatal ao seu desenvolvimento no conjunto das falsas ideias formadas pela educao religiosa, que sobrevive em virtude da forma da inrcia, como muito bem diz Haeckel, o est em contraste com tudo quanto cincia vem descobrindocontraste que se manifesta nas Mentiras convencionais da nossa civilizao, descritas por Max Nordau, e no Sculo Hipcrita, desenhado por Mantegazza. Por outro lado, isto , no campo da cincia positiva, esta demoliu para sempre e desfez a bagagem da superstio, do dogma e do apriorismo escolstico, para fecundar com a potente energia do progresso material as veias do corpo social, o pensamento libertado, a autonomia da razo humana, a cincia positiva armada do mtodo experimental. O que verdade aqui um erro ali; bem aqui, o que mal ainda ali; o que relativo e progressivo aqui continua absoluto, necessrio e imvel ali; o que constitui aqui a base do progresso, o conhecimento, ali est excludo, porque a f que reina, soberana; o que, aqui, infunde alento aos nimos para todo o progresso, a liberdade, est ali ainda esmagado, porque reina, soberana, a autoridade. J tempo de restabelecer a unidade do mundo moral e do mundo material, do pensamento e da ao, do ideal e, da realidade, porque a vida una, e idnticas so as leis que governam o mundo fsico e o mundo moral. Basta, para isso, aplicar cincia moral, ainda na infncia, os mtodos que fizeram triunfar a cincia positiva, isto , a liberdade na investigao, o experimentalismo como instrumento e o racionalismo como sistema. preciso fazer tbua rasa de todas as crenas tradicionais, para conservar somente os materiais que resistam crtica, e abandonar o resto ao seu destino, fazendo entrar aqueles unicamente, com os que a experincia e o exame forem elaborando, na construo do novo edifcio moral, que deve coroar o soberbo, esplndido o imortal edifcio das descobertas positivas e de til aplicao, que a cincia Vem levantando, com atividade cada voz mais intensa e febril, para que, da unio desses dois monumentos, nasa um novo templo: o Templo da Humanidade.

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CRISTO NUNCA EXISTIU Animados com ideias desta ordem, aplicamos a nossa modestssima obra ao exame das duas vezes milenar crena em Jesus Cristo, partindo do ponto aonde chegavam j a crtica histrica, a exegese bblica, a cincia mitolgica e a teoria da evoluo aplicada investigao das origens naturais do Cristianismo. Este exame, empreendido desde logo sem conceito algum teolgico ou antiteolgico, unicamente por amor Verdade, encaminha-se concluso de que Cristo nunca existiu. J a crtica histrica tinha notado o silncio da Histria acerca de Cristo, e assinalava como suspeitas as passagens dos poucos historiadores profanos daquele tempo a que era quase foroso inclinarmo-nos, em favor da existncia histrica do pretendido fundador do Cristianismo, enquanto a exegese bblica tinha reduzido o Antigo Testamento a uma obra em grande parte apcrifa e sugerida pela casta sacerdotal para edificao dos fieis. Outro tanto vinha fazendo a respeito do Novo Testamento, deixando em p bem pouco do que se quer fazer passar por histrico. Por outro lado, a cincia mitolgica, ajudada pela filosofia, pela arqueologia e pelas descobertas dos viajantes, tinha afirmado que as lendas, os mitos, as narraes e os preceitos do Antigo e do Novo Testamento no so mais do que variaes feitas sobre as lendas, mitos, narraes e preceitos da mesma natureza, anteriores ao Cristianismo, sobretudo na China, na Judia, na Prsia, na Mesopotmia e no Egito. Estas investigaes e esta crtica, para no citar as primeiras seitas herticas nem os protestos da filosofia pag, especialmente de Celso, que, em parte, abalaram a Igreja Triunfante, comearam com a Renascena italiana, continuaram com a Reforma e chegaram ao seu apogeu na Frana com Os filsofos do sculo XVII e na Alemanha com os crticos e com os sbios do sculo XIX. O estudo acerca do Cristianismo tinha chegado a este ponto, quando a Inglaterra aperfeioou e estabeleceu cientificamente, com Darwin e Spencer, a verdade da teoria da Evoluo, que, levando at a evidncia as leis da Natureza, do pensamento e da histria, se apresentava como argumento supremo, como lanterna mgica, que, com seus raios deslumbrantes, nos faz compreender, nos explica e interpreta o curso das relaes humanas e o progressivo desenvolvimento das instituies e da sociedade. E mesmo quando no tinha ainda sido reduzida a sistema cientfico, a teoria da Evoluo pde ser aplicada j, com muita antecedncia, por Vico, Leibnitz e Condorcet, historia em geral, e, especialmente por Tindall, ao prprio Cristianismo.

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INTRODUO Tindall, no seu Cristianismo antigo como o mundo, tinha precedido j os mais avanados entre os modernos, demonstrando, ha dois sculos, que o Cristianismo no era produto de revelao alguma, sendo, pelo contrrio, apenas o resultado necessrio dum conjunto indecifrvel de fatores diversos, que deviam influir na determinao da essncia, extenso e eficcia do sistema religioso cristo; que este era a consequncia necessria dos fatos que o precederam e do ambiente em que nasceu, quando a humanidade estava ainda subjugada em suas dores, juzos, aspiraes e esperanas mais ou menos quimricas; que ele, enfim, tinha de desaparecer, quando todas as circunstncias, a que devera a existncia, fossem totalmente transformadas. Porm, a teoria da evoluo, s quando dominou soberanamente no campo da natureza, que conseguiu vencer a tradicional e fetichista venerao ao Sagrado entre os Sagrados, ao Cristianismo, em suma. Foi, ento, que os espritos positivos, no podendo admitir por mais tempo nada de sobrenatural na cincia moral, como tampouco se admitiu nas cincias fsicas, se dedicaram a explicar naturalmente a origem e desenvolvimento do Cristianismo. Esta foi a obra primordial de Ernesto Havel. O resultado da crtica histrica, bblica e mitolgica, por um lado, e o da aplicao da teoria da evoluo ao Cristianismo, por outro, foi reduzir-se ou inutilizar-se a pessoa de Cristo, enquanto, pelos fins do sculo XVIII, Dupuis e Volney, fundando-se na teologia comparada e na explicao solar do mito dos Deuses Redentores, negavam com poderosas razes, reveladoras de uma grande cultura, a existncia humana de Cristo. Essas razes, porm, no foram aceitas pela crtica, no porque no fossem justas, mas porque esta no estava ainda suficientemente amadurecida. O mesmo sucede com os mitlogos que vieram, depois, com todas as provas, acumuladas, da identidade mitolgica de Cristo com Cristna, Buda, Mitra, Oro, etc., ou seja, com os Deuses Redentores, da antiguidade. Esses mitlogos no ousaram negar em absoluto a pessoa de um Jesus, hebreu, contentando-se uns com rode-lo- de um engrandecimento lendrio e outros de uma divinizao mitolgica, e outros ainda, enfim, com ambas as coisas, ao mesmo tempo. E, como nesse exame todos partiam do objeto de suas investigaes, de um ou de vrios pontos de vista parciais e unilaterais, em vez de se apoiarem e completarem reciprocamente destrua a obra comum, lanando em rosto, uns aos outros, o ponto controverso, e acabando por se eliminarem, todos juntos.

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CRISTO NUNCA EXISTIU No pode, pois, negar-se que, enquanto a interpretao evolucionista basta para explicar a origem e a formao do Cristianismo, com o aditamento de preciosos materiais, postos sua disposio pela mitologia comparada, se bem que excluindo a presena de Cristo, e que, enquanto a crtica bblica e histrica tem reduzido sua mais nfima expresso as prprias fontes da crena em Jesus, a presena deste permanece, como ltimo obstculo completa explicao do cristianismo, segundo o mtodo cientfico. Posto isto, os ltimos mistrios ou antes os nicos pontos obscuros, que permanecem ainda sem explicao no cristianismo e no so poucosso os que derivam da pretendida existncia do Cristo. Como conciliar, por exemplo, dada a sua existncia, a misso de conservar o mosasmo, que ele se atribui ainda que o mosasmo fosse apcrifo, bastava que Jesus acreditasse nele para que se arrogasse tal misso com a oposta, de destruir o que, por outro lado, se lhe atribui ? Como explicar o fato de Jesus, nascido e criado entre hebreus, filho de um obscuro artista, ignorando a literatura grega, segundo atestam mesmo os seus pretendidos discpulos, conhecer os livros de Plato, conforme o pretende Celso, em resposta a igual pergunta de Orgenes, que, por outro lado, no pensa sequer em conciliar o fato da ignorncia helnica de Cristo com o fato de ele, no quarto Evangelho especialmente, falar como um discpulo de Plato, como se fosse por exempla um Flon? Ernesto Renan, o romancista incomparvel, mas injustificado de Cristo, perante a observao de Celso, no responde melhor do que Origenes: Reconhecemos no cristianismo diz ele uma obra excessivamente completa para que possa ser trabalho de um s homem. Acreditamos, pelo contrrio, que nela tenha colaborado a humanidade inteira... Jesus ignorava at o nome de Buda, de Zoroastro, de Plato : no lera nenhum livro grego, nenhum sutra bdico, e, no obstante, reunia em si mais de um elemento, que, sem que ele prprio o suspeitasse, procedia do budismo, do parsismo e da sabedoria grega intervenes que se realizavam por canais secretos, por essas simpatias existentes entre as diversas partes da humanidade. Quando homens do valor e com a poderosa inteligncia de Renan, se veem obrigados, ante a incompatibilidade de Jesus com a explicao do Cristianismo, a recorrer aos citados argumentos, s prprios de um faquir indiano, de um astrlogo medieval ou de um mdium do espiritismo ilusionista, e quando se pensa no amor infinito que Renan pe no seu personagem, permitido duvidar-se de que seja histrica a pessoa de Cristo.

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INTRODUO Esta dvida, que em ns surge, em virtude da absoluta impossibilidade de se explicar satisfatoriamente o Cristianismo e os prprios Evangelhos, sem lhes tirar para fora a pessoa de Cristo partindo do ponto, claro, de que se no cr na sua divindade, pois, em tal caso, nada pode parecer estranho e impossvel f robusta esta dvida, que nos levou a examinar de perto a questo da existncia histrica do Cristo, nos conduz tambm concluso negativa. Tal o fruto da presente obra, que merecemos a pblico, sem pretenso alguma literria, com o nico fim de contribuir para a propaganda racionalista entre o povo, em lugar de fazer uma obra de grande erudio, para a qual nos faltaria o tempo e a doutrina. Alm disso, este livro no vem dizer nada de novo. apenas um trabalho de sntese, de integrao e de lgica, no qual pusemos organicamente em relao os resultados obtidos pela crtica e pela erudio. E, assim, como os resultados de uma cincia ou ,de uma determinada ordem do investigaes completam os resultados obtidos por outra cincia ou por outra ordem de investigaes, assim tambm, aqui, da compenetrao dos diversos elementos da verdade, surge a concluso lgica de que Cristo nunca existiu. Esta concluso , por outro lado, o ponto de partida necessrio para os futuros progressos da cincia, neste campo. Seja qual for o juzo emitido sobre o presente trabalho, tenha-se sempre em conta que obra de um profano, que se props aplicar o bom senso natural crtica do Cristianismo. Emlio Bossi Milesbo

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CRISTO NA HISTRIACAPTULO I

O silncio da Histria acerca da existncia de Cristo De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a histria no nos conservou documento algum, prova alguma, demonstrao alguma. Cristo nada escreveu. (1) certo que tambm Scrates no escreveu coisa alguma, limitandose ao ensino oral. Mas, entre o Cristo e Scrates, ha trs diferenas capitais: a primeira consiste no fato de Scrates no ensinar coisa alguma que no fosse racional, ou antes, humana, ao passo que Cristo tem bem pouco de humano, e esse pouco ainda misturado com muita coisa milagrosa; a segunda diferena deduz-se da circunstncia de Scrates ter passado histria s como personagem natural, enquanto Cristo nasceu e foi conhecido apenas como pessoa sobrenatural; a terceira, enfim, baseia-se em Scrates ter por discpulos pessoas histricas, cuja existncia bem evidente, como Xenofonte, Aristipo, Euclides, Fdon,squilo e o divino

(1) A pretendida carta ao rei Abgaro demonstrou-se que foi uma piedosa fraude. Orgenes e Santo Agostinho, para no irmos mais longe, excluem-na, declarando, por um modo formal, que Cristo nunca escrevera coisa alguma. Alm disso, a prpria Igreja, em tal ponto, concorda, pois no a inclui entre os documentos cannicos, como teria feito, se, porventura, ela oferecesse alguma aparncia de autenticidade. O mesmo pode dizer-se da carta de Pilatos a Tibrio.

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CRISTO NUNCA EXISTIU

Plato, ao passo que, dos discpulos de Cristo nenhum conhecido, a no ser que vamos dar crdito a documentos de pura f, totalmente suspeitosos. De sorte que, pelo fato de Scrates nada escrever, no pode concluir-se que no existiu, ao passo que permitido admitir legitimamente, pelo menos a ttulo de probabilidade, que Cristo, que viveu cinco sculos mais tarde, nada deixou escrito. Mas, ha mais: Cristo no s no escreveu nada, mas nem sequer uma linha se escreveu a seu respeito. parte a Bblia, que, segundo veremos, alm de nenhuma prova nos ministrar sobre a personalidade real do Cristo, ainda as fornece em contrrio, nenhum autor profano, dos muitos que foram contemporneos de Cristo, nos deixou o menor vestgio acerca dele. Os nicos autores profanos, que lhe mencionaram o nomeFlvio Josefo,Tcito, Suetnio e Plnio ou foram emendados ou falsificados, como aconteceu aos dois primeiros, ou, como os dois restantes, falaram de Cristo apenas etimologicamente, para designarem a superstio que tomou o seu nome ou para designarem os seus sequazes. Fosse como fosse, o certo que escreveram, sem o terem conhecido e sem darem provas da existncia dele, muito tempo depois, e em tais termos, que, como demonstraremos, s servem para provar que nunca existiu. Ernesto Renan, o mais clebre dos cristlogos, que cometeu o erro de fazer da sua Vida de Jesus uma biografia, quando no passa de uma hbil novela, v-se obrigado a reconhecer o silncio da histria em volta do seu heri. 0s pases gregos e romanos , escreve Renan ,no ouviram falar dele; o seu nome no aparece nos autores profanos durante o primeiro sculo depois da sua morte, nem mesmo indiretamente, a propsito dos movimentos sediciosos provocados pela sua doutrina ou das perseguies de que foram alvo os seus discpulos. No seio mesmo do judasmo, Jesus no deixou impresso duradoura. Flon, que morreu no ano 50, nada sabe acerca dele. Josefo, nascido no ano 37 e que escreveu at fins do primeiro sculo, narra a sua condenao, em algumas linhas (1), como se fosse um sucesso vulgar, e, ao enumerar as seitas do seu tempo, omite a dos cristos. A Mishn,diz ainda Renan,no encerra rastro algum da nova escola;(1) Que o prprio Renan anota para advertir que a passagem de Josefo foi alterada por mo crist. Porque, s alterada ? Como veremos, foi emendada.

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EMLIO BOSSI os personagens dos dois Gemaros, como se qualifica o fundador do Cristianismo, no nos levam alm do quarto ou quinto sculo. Um escritor hebreu, Justo de Tiberades, que escrevera uma histria dos hebreus, desde Moiss at fins do ano 50 da era crist, no cita sequer o nome de Cristo, segundo atesta Fcio. Juvenal, que fustigou com a stira as supersties do seu tempo, fala extensamente dos hebreus, mas sem dedicar uma nica palavra aos cristos, como se eles no existissem. Plutarco, nascido 50 anos depois de Cristo, historiador eminente e consciencioso, que decerto no poderia ignorar a existncia de Cristo e dos seus prodgios, nem uma s vez alude, em suas numerosas obras, quer ao chefe da nova f, quer a seus discpulos. Cesare Cant, a quem a crena mais cega, indigna de um historiador, lana sobre os olhos um espesso vu, a ponto de o levar a misturar os fatos histricos com as invenes mais absurdas do cristianismo, desiludido da sua f pelo silncio de Plutarco, consola-se, dizendo que Plutarco sincero na crena dos suas divindades...e em todas as obras que escreveu, de moral, em nenhuma delas se refere aos cristos. Sneca, que por seus escritos, to cheios de mximas, perfeitamente crists, faz duvidar se foi cristo ou teve relaes com os discpulos de Cristo, no seu livro sobre as supersties, extraviado ou destrudo, dado, porm, a conhecer por Santo Agostinho, no diz uma palavra nica acerca de Cristo, e, falando dos cristos, aparecidos j, em muitos pontos da terra, no os distingue dos hebreus, a quem chama um povo abominvel. Assim o cita Havet, na obra O cristianismo e suas origens. Sobre todos, porm, significativo e decisivo o silencio de Flon acerca de Cristo. Flon, que contaria de 25 a 30 anos, quando apareceu Cristo, e que morreu alguns anos depois deste, nada sabe e nada diz acerca dele. Como escritor distintssimo que foi, ocupou-se especialmente de estudos sobre filosofia e religio, e, por certo, no esqueceria Cristo, seu compatriota de origem, se Cristo realmente tivesse aparecido sobre a face da terra e levado a cabo uma to grande revoluo do esprito humano. Uma circunstncia de grande relevo torna ainda eloquente o silncio de Flon, em torno de Cristo: que todos os ensinamentos de Flon podem passar por cristos, de tal sorte que Havet no hesitou em chamar a Flon um verdadeiro Padre da Igreja. Por outro lado, Flon preocupou-se especialmente em conjugar o judasmo com o helenismo, tomando do Antigo Testamento as partes mais elevadas, depois de distinguir o sentido alegrico do literal, enxertando na

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CRISTO NUNCA EXISTIU rvore da religio hebraica o misticismo dos neoplatnicos alexandrinos. E, deste modo, chegou a formar uma doutrina platnica do Verbo, ou Logos, que tem muita afinidade com a do IV Evangelho, na qual o Logos precisamente o Cristo. Pois bem: no isto uma grande revelao? Flon, que vive no tempo de Cristo, que j clebre antes do nascimento dele, e que morre ainda alguns anos depois; Flon, que, realiza com o Judasmo a mesma idntica transformao, helenizao ou platonizao que os Evangelhos, especialmente a do IV; Flon, que fala do Logos ou do Verbo, do mesmo modo que o IV Evangelho, como que, em todas as suas numerosas obras, no cita Cristo, uma nica vez ? Porventura, no prova, este fato eloquentssimo, que Cristo no foi nunca pessoa histrica e real, mas sim pura inveno ou criao mitolgica e metafsica, para o que contribuiu mais do que ningum o prprio Flon, que escreve, como se fosse um cristo, sem saber nada de tal nome, que fala do Verbo sem conhecer o Cristo, e que, como noutro lugar se demonstrar, ensina a mesma doutrina atribuda Cristo ? Se Flon pde falar do Verbo e escrever como se fosse um cristo, antes de Cristo, sem saber nada e nada dizer acerca dele, no indica isto, porventura, que o Cristianismo se elaborou sem Jesus e por obra precisamente ou principalmente do mesmo Flon, que no diz uma nica palavra acerca da pessoa humana, da existncia material e histrica de Cristo? Em suma : Cristo nunca existiu. Porque, de outra sorte, como explicar a incompreensvel anomalia de que Flon no fale dele ? Por outro lado, Flon, o Plato hebreu, alexandrino, contemporneo de Cristo, fala de todos os acontecimentos e de todos os personagens principais do seu tempo e do seu pas, sem esquecer Pilatos; conhece e descreve ss essnios estabelecidos junto de Jerusalm nas ribeiras do Jordo; foi em concluso, como delegado, a Roma, para defender os hebreus, no reinado de Calgula, o que faz supor nele um exato conhecimento das coisas e nomes da sua nao; de modo que, se Cristo tivesse existido, ele ver-se-ia obrigado, absolutamente, pelo menos, a aludir a ele. O silncio de todos os escritores contemporneos acerca de Cristo tem sido, nestes ltimos tempos, objeto da mais atenta considerao por parte da verdade histrica, embora escritores liberais hajam passado por ele com muita frieza e leviandade. Salvador explica o fenmeno, facilmente ( o seu termo), apoiandose no fato do dbil vestgio deixado em Jerusalm pelo filho de Maria.

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EMLIO BOSSI O prprio Stefanoni no pode explicar o fenmeno sem reduzir o nascimento de Cristo e toda a sua vida a propores demasiadamente mesquinhas, circunscritas aos limites de um vulgarssimo sucesso. Esta explicao inadmissvel. Ns no conhecemos mais do que um nico Jesus, o dos Evangelhos e dos Atos dos Apstolos. E este personagem no s no veio a deixar um dbil vestgio em Jerusalm, contra o que pretende Salvador; no s a sua vida no veio a ter propores mesquinhas, em oposio ao que supe Stefanoni, seno que, pelo contrrio, a vida de Cristo veio a decorrer, segundo a Bblia, do modo mais ruidoso e extraordinrio, tanto que, em nenhuma outra pessoa humana, se deu semelhante fenmeno. Assim, que veio a dar lugar a tumultos pblicos, a priso, a um processo, a um drama judicial seguido de morte trgica; e veio a realizar tais e tantos prodgios e to extraordinrios ,desde a visita dos anjos at as estrelas que marchavam para indicar o lugar do seu nascimento aos soberanos vindos da sia expressamente para o visitar ; desde a degolao dos inocentes s discusses que sustentou, aos doze anos, com os doutores; desde a multiplicao do nmero e a transformao da natureza dos elementos cura dos enfermos e ressurreio dos mortos; desde. a dominao dos elementos s trevas e terremotos, que assinalaram a sua morte, e sua prpria ressurreio; que atrara a ateno das pessoas mais indiferentes e excitara a curiosidade dos cronistas, dos analistas e dos historigrafos. Ora, perante um personagem to extraordinrio e perante acontecimentos tais, o silncio da histria absolutamente inexplicvel; inverossmil e singularssimo, como acertadamente notou Dide no seu livro O Fim das religies. E este silncio constitui, por irrespondvel, uma grande presuno contra a existncia histrica e real de Cristo. Outros elementos crticos nos provaram como s a no existncia de Cristo pode explicar o silncio da histria em volta dele , e como, por sua vez, este silncio demonstra aquela no existncia. O mesmo silncio da Histria acerca de Jesus revela-se tambm a respeito dos apstolos, sobre os quais no existem mais documentos que os eclesisticos, destitudos de todo o valor provativo, pois que nos apresentam, no como homens naturais, mas como personagens sobrenaturais, ou pelo menos, taumaturgos, o que vem a dar a mesma coisa. (1)(1) Emilio Ferrire, no seu excelente livro Os apstolos demonstra a impossibilidade de S. Pedro ter estado em Roma, ato desmentido, por outro lado, pelo

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CRISTO NUNCA EXISTIU Os nicos fatos histricos, que se atribuem aos apstolos, tais como a viagem de S. Pedro a Roma e as suas disputas com Simo Mago, o encontro de S. Pedro com Jesus e o famoso Quo vadis, Domine? a morte de S. Pedro e outros fatos, so narrados exclusivamente em livros declarados apcrifos pela prpria Igreja. Outro tanto pode afirmar-se de Jos e de Maria, progenitores de Cristo, e bem assim de seus irmos e de toda a sua famlia. Todas estas circunstncias aumentam a significao do silncio da histria, em volta de Cristo,circunstncias que adquiriro todo o seu valor, quando se veja que Cristo, Maria e os Apstolos so puras criaes msticas.

silncio dos mais antigos escritores da Igreja, at segunda metade do sculo IV. Porm, o autor comete o equvoco de tomar como fonte histrica os Atos dos Apstolos, escolhendo as poucas notcias que estes nos subministram, como se fossem certas. A simples considerao de que nada do que narram os Atos est conforme com qualquer dos autores profanos, deveria bastar para nos pr em guarda, a respeito desta fonte, que no pertence de modo algum Bblia, porque de notar, uma vez por todas, que at na compilao dos livros cannicos da Bblia, a Igreja teve o astucioso cuidado de se descartar de quantos documentos pudessem, falando de Cristo, de Maria ou dos Apstolos, ser facilmente impugnados pela crtica histrica, evitando, assim, o perigo de se pr a descoberto desde o seu princpio.

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CAPTULO II

As pretendidas provas histricas da existncia de Cristo Como j dissemos, os nicos autores profanos, que falaram de Cristo e que se querem apresentar como testemunhas da sua existncia, foram o historiador hebreu Josefo, Tcito, Suetnio. Vamos, pois, examinar, um a um, estes testemunhos, para vermos que, no s no constituem prova da existncia de Cristo, mas, tambm, que so novas demonstraes do contrrio. De todos os historiadores citados, o nico que poderia ter valor de prova, Josefo, pela sua qualidade de historiador hebreu, se bem que vivesse e escrevesse muitos anos depois do perodo que se assinala como sendo o da vida de Cristo. Pois bem: Josefo fala de Cristo, apenas acidentalmente, nestas poucas linhas: Naquele mesmo tempo, nasceu Jesus, homem sbio, se que pode chamar-se homem, pois realizou obras admirveis, ensinando aqueles que queriam inspirar-se na Verdade. No s foi seguido por muitos hebreus, como tambm por alguns gregos: Era o Cristo. E, tendo sido denunciado a Pilatos pelos principais da nossa nao, este f-lo crucificar. Os seus partidrios no o abandonaram, nem mesmo depois de morto. Vivo e ressuscitado, reapareceu no terceiro dia da sua morte, como o haviam predito os santos profetas, e realizou muitas outras coisas milagrosas. A sociedade crist que ainda hoje subsiste, tomou dele o seu nome. Salvador, Renan, Stefanoni, e, em geral, vrios outros escritores, nada dizem acerca da possibilidade de terem sido um tanto alteradas as palavras de Josefo, que sublinhamos, o que se compreende em autores que embora no creiam na divindade de Jesus, abrigam a crena nesse Cristo Homem mais ou menos extraordinrio, em que teve sua origem o Cristianismo. Porm, uma anlise severa levar todos os nimos convico de que a passagem de Josefo, relativa a Jesus, foi completamente desfigurada. Esta passagem est como que perdida em meio de um captulo sem conexo alguma com tudo o que o precede e o segue, intercalado nos relatos de um castigo militar infligido ao populacho de Jerusalm e dos amores de uma certa matrona romana e de um cavaleiro, que obtm os seus favores, fazendo-se passar, graas aos sacerdotes de Isis, por uma per-

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CRISTO NUNCA EXISTIU sonificao do Deus Anbis. Ambos estes acontecimentos esto ligados pelo mesmo historiador um com o outro, porque, ao relatar o segundo, chama-lhe outro acidente deplorvel, donde se depreende que esse outro acidente s pode relacionar-se com o primeiro, isto , com a sedio popular e represso consequente. A passagem intercalada entre esses dois acontecimentos no pode atribuir-se de modo algum a Josefo, porque quebra bruscamente o fio da narrao, e o autor revela-se, em toda a sua obra, mestre na arte de colocar cada coisa em seu lugar (1). Alm disso, na debatida passagem, Josefo fala de Cristo como o faria um bom cristo, pois considera-o um ser sobrenatural e relaciona-o com as predies dos profetas. Como pde, pois, Josefo empregar semelhante linguagem, isto , acreditar na divindade de Cristo, sem ser cristo, e continuando hebreu? Isto de tal modo evidente que at o erudito padre Gillet se v obrigado a reconhecer que Josefo no pde falar daquele modo, tal como se fosse um cristo, e que, por conseguinte, deve ter-se como apcrifo e intercalado o personagem de referncia (2). Alm disso, subministra-nos uma prova direta e definitiva desta intercalao, o fato de S. Justino,Tertuliano, Orgenes e S. Cypriano, em suas numerosas e ardentes polmicas contra os hebreus e pagos, no citarem este personagem de Josefo. Orgenes declara que Josefo no reconhecia Cristo na pessoa de Jesus, o que no poderia ter dito se o personagem citado por Josefo fosse conhecido no seu tempo. Em suma : por unnime juzo de todos os crticos sensatos e competentes, este personagem de Josefo deve julgar-se intercalado, ali, por uma piedosa fraude dos cristos primitivos. Cita-se, ainda, outra passagem de Josefo (Lib. XX, c. 9), na qual, falando na condenao de Thiago, acrescenta : Irmo de Jesus, chamado o Cristo. Aqui Josefo contradiz-se, porque fala de Cristo como de um homem qualquer, demonstrando que no cr na sua divindade, ao passo que, noutro lugar mostra acreditar nela. Esta contradio foi resolvida no sentido de que o personagem pre(1) A. Peyrat, Histria elementar e crtica de Jesus. Concluso. (2) "Veja-se Larroque, Exame crtico das doutrinas da religio crist. Prim. Part. cap. IV.

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EMLIO BOSSI

cedentemente analisado fora intermetido ou desfigurado. Na realidade, no h critrio fixo que faa aceitar uma ou outra das duas passagens contraditrias, de maneira que no s uma exclui a outra, mas at as duas se excluem, ao mesmo tempo. Apenas na ltima, a interpolao se fez com maior habilidade do que na primeira, pois nela fala Josefo como hebreu que era, o que se explica por ser anterior referida em primeiro lugar, pois j existia no tempo de Orgenes. A primeira falsificao no podia ainda urdir-se, como a segunda, e daqui o ter sido mais prudente. Esta ltima passagem no , no pode ser considerada autntica, pela simples, bvia e indeclinvel razo de que se Josefo houvesse tido efetivamente notcias de Jesus, chamado o Cristo, no teria deixado de se explanar muito mais sobre a sua vida, tratando-se de um homem que tomara uma parte to grande, to saliente, to extraordinria, to original e culminante na histria do seu pas. Enfim, se alguma dvida houvesse ainda sobre a prova definitiva de que a passagem de Josefo acerca de Jesus foi interpolada, nada mais nos resta do que ler Fcio, que declara formalmente que nenhum hebreu jamais falou de Cristo. Vejamos, agora, Tcito. A passagem deste historiador, que pode apresentar-se como testemunho a favor da existncia de Jesus, a seguinte: Nero, sem fazer de isso grande rudo, submeteu a processo e a penas extraordinrias aqueles que o vulgo chamava cristos, por causa do dio que lhes votava, por suas feitiarias. Quem lhes deu o nome foi Cristo, a quem Pncio Pilatos; no reinado de Tibrio, condenou ao suplcio. Apenas reprimida esta perniciosa superstio, fez novamente das suas, no j na Judia, de onde provinha todo o mal, mas na prpria Roma, para onde afluam de toda a parte os sectrios, cometendo as aes mais audaciosas e vergonhosas. Por confisso dos que corrigiam e pelo universal juzo do pblico, eram incendirios e professavam dio extremo ao gnero humano. Nunca se cometeu uma falsificao mais evidente em detrimento do grande historiador romano, falsificao esta que se estende a todo o fragmento. Enquanto Tcito afirma que o vulgo chamava assim aos cristos, porque eram odiados por suas feitiarias, o falsificador f-lo

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CRISTO NUNCA EXISTIU contradizer-se nas linhas que logo se seguem, e nas quais pretende que os cristos procediam de Cristo. Tal contradio, impossvel num escritor da envergadura de Tcito, resulta da interpolao, das palavras que se referem a Cristo, porque a etimologia dada por Tcito ao nome dos cristos, na linha que precede imediatamente a sua etimologia, somente a que corresponde opinio em tudo favorvel, que Tcito tinha dos cristos, manifestamente posta e mantida em todo o fragmento, onde Tcito fala deles. (1)

(1) Os nossos anticrticos caram sobre a traduo desta passagem de Tcito com tanta maior vontade quanto certo terem a insnia de crer que, enfraquecido assim o nosso argumento, ficava comprometida a seriedade do livro. falta de melhor coisa, pensaram que, atacando este argumento, feriam o prprio calcanhar de Aquiles. Pois bem: queremos deixar na dvida a questo de saber se Tcito quis dar ao nome dos cristos a origem da averso que inspiravam com suas feitiarias. Queremos admitir que no haja relao alguma etimolgica, pelo menos aparente, entre o homem e o assunto. Mas, nesse caso, deparamos sempre com o motivo pelo qual Tcito colocou naquela passagem o per flagitia invisos, que no teria, em tal caso, relao alguma com o resto da Passagem, ao passo que estaria em seu lugar na filpica que dedica, mais acima, aos cristos. Pelo contrrio, este trecho estaria perfeitamente no seu lugar, mesmo como est porque tem relao com o fragmento seguinte, onde Tcito fala dos cristos, admitindo ns a interpolao do perodo intermdio, em que se faz dizer a Tcito que o nome de Cristos vem de Cristo. Mas, deixemos na dvida essa questo etimolgica: resultaria da que Tcito deu testemunho histrico de Cristo? De modo algum. Ainda nesta hiptese, no teria feito mais que referir o que os cristos contavam, especialmente nos tribunais, para dar a conhecer a pretendida origem histrica da sua superstio.

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EMLIO BOSSI

Outra circunstncia, que prova a interpolao, encontra-se na passagem do mesmo Tcito, oportunamente revelada por Ganeval (1) e onde o eminente historiador romano (Lib. u par. 85) diz que foram expulsos de Roma os hebreus e os egpcios, que formavam uma nica superstio. Neste ponto, evidente que Tcito no faz proceder da Judia os cristos, mas do Egito, destruindo assim a pretendida origem etimolgica dos cristos de Cristo, origem essa que o obriga a defender na passagem que vimos de examinar. De maneira que, os que falsificaram esta passagem, esqueceram-se de falsificar aquela onde Tcito ignora Cristo, absolutamente, e onde afirma, como em seu lugar demonstraremos, que o Cristianismo no procede de Cristo, mas sim da fuso do hebrasmo, do orientalismo e do helenismo, realizada no Egito. Mesmo que no se quisesse admitir esta fraude, o testemunho de Tcito no provaria de nenhum modo existncia de Cristo, visto que o cita unicamente para dar a etimologia do nome dos cristos. No pode admitir-se que Tcito tenha escrito acerca de Cristo, da forma enganosa em que o fizeram escrever, pois se Cristo tivesse realmente existido, sabendo o ou conhecendo-o o historiador, teria escrito dito certamente muito mais a respeito dele, e nunca limitando-se a falar de um homem extraordinrio, em poucas palavras, ditas a correr e entre incidentes ocasionais (2). A passagem de Suetnio e ainda mais breve e mais contraditria. Roma diz ele, falando do reinado de Cludioexpulsou os judeus, que instigados por Cresto, promoviam contnuos tumultos. Ponhamos de lado a diferena entre Cresto e Cristo (3) para analisarmos a dificuldade a que d origem a pessoa aludida por Suetnio.(1) Ganeval Luiz, Jesus, perante a histria, nunca existiu Cap. IV: Genebra, 1874. (2) Alfredo Taglialatela, no Rinnovamento, de Roma. de 23 de julho de 1904, diz-nos que Hochart sustentou a interpolao de Tcito com muito mais fora do que ns o fizemos. Ignormos a crtica de Hochart. Agradecemos, porm, a revelao, que vem dizer-nos que outros, mais competentes do que ns, tern sustentado essa interpolaco. (3) Ganeval pretende que o nome de Cristo, empregado nos sculos I e II, em Roma e no Egito, nos livros sybillinos, pelos cristos, seja uma derivao do nome de Cresto, aplicado a Serpis, Bom e Agathos. Ainda, segundo ele, Cristo uma pura e simples transformao do Deus morto e ressuscitado do Egito.

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CRISTO NUNCA EXISTIU

Era Cristo? Mas, ento, como se compreende que fosse expulso de Roma, onde nunca esteve ? E, se esteve em Roma, como podia ele viver ainda no tempo de Cludio, se Tcito nos diz que foi crucificado no reinado de Tibrio, que precedera o de Calgula e este o de Cludio? Em vista disto, foroso reconhecer que os dois testemunhos de Tcito e Suetnio, a respeito de Cristo, se excluem e eliminam mutuamente. O testemunho de Plnio, o Moo, esse ento quase estranho ao debate. Numa carta que dirige a Trajano, fala em Cristo (1), no como pessoa de quem se pretende demonstrar existncia histria, mas como divindade simbolizadora da adorao dos cristos. Pela mesma razo, teria aludido a Brahma, falando dos brahmanes, para indicar o objeto do seu culto, sem com isto querer demonstrar a existncia de Brahma. Por outras palavras : Plnio falou de Cristo, s etimologicamente, sem emitir opinio alguma sobre a sua existncia. Portanto, e resumindo : no se referindo questo os testemunhos de Suetnio e de Plnio, e demonstrada a falsificao dos que se atribuem a Josefo e a Tcito, que fica das pretendidas provas histricas da existncia de Cristo? Nada, absolutamente: apenas a prova do contrrio. Teriam sido necessrias as falsificaes para provar a existncia de Cristo, se esta fosse real? As falsificaes s podem cometer-se para ocultar verdade. E como as falsificaes de referncia deviam ter sido praticadas para fazer crer na existncia de Cristo, temos de deduzir, logicamente, que ele nunca existiu. Alis, no falsificariam a histria, para nos provarem.

(1) Todos comigo invocaram os Deuses e ofereceram incenso e vinho tua imagem, maldizendo o Cristo. (Plinio Epist. 97, liv. X)

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CAPTULO III

Provas histricas contra a existncia de Cristo A histria no s ignora Cristo, no s est provado que os autores profanos, que dele falaram, foram neste ponto falsificados, mas at, existem outras provas histricas, que demonstram a sua no existncia. Chamamos histricas a estas provas, porque entram em absoluto na categoria de fatos certos, positivos e adquiridos, ou, em outros termos, porque so testemunhos concretos e vlidos de escritores e de determinadas escolas, ao passo que outras provas, que apresentaremos, no tm o mesmo valor direto e histrico, como deduziremos da exegese bblica e da mitologia comparada, ainda que sejam de molde a terem-se em muita conta, por emanarem dos prprios documentos da f crist e da histria das crenas humanas. Ganeval reuniu j grande nmero dessas provas, na obra citada, excelente pela sua convico e sria pelo seu propsito, obra que merecia melhor sorte, apesar das suas repeties, provenientes da falta de sistematizao e da unilateralidade da tese, que v em Cristo uma transformao pura e simples de Serpis ,tese que poder ser justa, mas que, por falta de documentos suficientes, no pode ser certa, e apenas, quando muito, provvel, muito provvel mesmo, se quiser-se, porque, no final das contas, Serpis certamente o deus que tem mais analogias com Cristo. No nosso entender, Ganeval no desenvolveu suficientemente a sua tese, introduzindo-lhe elementos anlogos aos da mitologia dos outros povos orientais, em cujo caso devia ter visto que, apesar de certas expresses simblicas, referentes ao ato gerativo, Cristo, como Serpis, no tanto a encarnao alegrica do Phallus como o do Sol. Entretanto, faamos-lhe a devida justia, reconhecendo que descobriu a verdade atravs da fbula de Cristo e dos relatos da histria, quando certo que, antes dele, s Dupuis e Volney abordaram a tese da mitologia comparada. Entretanto, dizemos, as provas acumulam-se, e os recentes trabalhos convergem todos para a demonstrao definitiva desta verdade. As provas histricas contra a existncia de Cristo, provm dos hebreus, dos pagos e at mesmo de alguns cristos primitivos e padres da Igreja. Parecer estranho, mas assim, como veremos. O hebreu alexandrino, Flon, de quem j nos ocupamos, no seu livro sobre os terapeutas, relata que estes faziam vida de verdadeiros cristos,

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CRISTO NUNCA EXISTIU que abandonaram bens e famlia para se dedicarem ao ascetismo, que tinham livros religiosos e que seguiam as mximas de seus pais. Eusbio, na sua Histria, confirma isso mesmo, afirmando que os livros, de que fala Flon, eram os Evangelhos e os escritos dos Apstolos, e declara que os terapeutas citados por Flon so os cristos solitrios. A concluso que destes documentos se tira, da maior importncia, porque nos demonstra que o cristianismo muito anterior a Flon. Portanto, se os Evangelhos e os escritos dos Apstolos, j existiam antes de Flon, e se Flon vivia j 25 ou 30 anos antes do nascimento de Cristo, quem no v logo que a existncia dos cristos anterior a Cristo? E isto, por outro lado, est confirmado pela circunstncia de terem sido expulsos de Roma Os judeus e os egpcios, que formavam uma nica superstio os cristos, como diz Tcito expulso que teve lugar duas vezes no tempo de Augusto e a terceira no tempo de Tibrio, no ano 19 da nossa era. Estas expulses desmentem implicitamente a existncia de Jesus, pois tiveram lugar antes de se falar do nome cristo, referindo-se evidentemente superstio judaico-egpcia, que como veremos, se confunde com o cristianismo, nascido da fuso do judasmo com o orientalismo egpcio, com vestgios muito prximos do neoplatonismo alexandrino. (1) Outro padre da Igreja, S. Epifnio, confirma as palavras de Flon e de Eusbio. Segundo ele, os terapeutas do Egito, que habitavam junto do lago Maretides, citado por Flon, so os cristos, que tinham o seu Evangelho e os seus Apstolos. De modo que, Flon falou dos cristos, como muito anteriores a ele, atribuindo-lhes um Evangelho e vrios Apstolos. Isto exclui absolutamente a existncia de Cristo, pois este deve ter nascido quando Flon contava j 25 a 30 anos, e porque Flon no o poderia esquecer, desde que se ocupava dos cristos. Alm disso, sabe-se que os Evangelhos atuais no apareceram seno

(1) No exagero dizer-se que no existia ainda a palavra cristo quando j existia a superstio judaico-crist. O fato cristianismo existiu algum tempo antes do seu nome. Este s foi elaborado e criado muito depois, pelo processo de diferenciao como veremos mais adiante.

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EMLIO BOSSI muito tempo depois de Cristo, de modo que no pode ser ele que alude Flon, falando dos livros (os Evangelhos, segundo Eusbio) dos terapeutas (os cristos, segundo Epifnio). O testemunho de Flon contra a existncia de Cristo, tanto mais formidvel quanto o mesmo Flon contribuiu poderosamente para a formao do cristianismo (1). Fcio opina que dele que procede a linguagem histrica da Escritura. Ainda mais: Flon escrevera um tratado, um verdadeiro Evangelho acerca do Deus Bom (Serpis) livro que foi destrudo e cujas alegorias deviam ser to semelhantes s dos Evangelhos que logo se atriburam a Cristo. No faltou tambm um falsificador cristo que se atrevesse a fazer dizer a Orgenes que, no seu Evangelho sobre o Deus Bom, Flon falara de Jesus sem escrever o seu nome. (2)

(1) Parece haver aqui uma contradio, visto termos afirmado que o Cristianismo anterior a Flon, e afirmarmos mais adiante que foi ele, com efeito o seu verdadeiro fundador. Essa objeo, porm, desaparece, se atendermos a que uma complexidade de crenas, que formam uma doutrina, um sistema complexo de dogmas, de mximas e de ritos, uma f no se funda com um simples aceno de vara mgica. produto da colaborao de varias geraes, de varies sculos e de muitos sbios, at que encontra o seu principal expositor, que tem por isso direito a ser considerado o seu principal fundador. Assim, pode dizer-se que Marx o fundador do socialismo, embora. este j existisse sculos antes, em vias de formao . (2) O nome de Jesus foi escrito por falsificao, na obra de Orgenes. Ganeval assim o demonstra a evidencia. De fato, se Flon tivesse escrito acerca de Jesus, nomelo-ia a ele, em vez de nomear gatos, que era o deus Serpis. A falsificao tanto mais clara quanto certo que Flon, como j vimos, e Orgenes, como ainda veremos, nem conheceram nem nunca nomearam Jesus.

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CRISTO NUNCA EXISTIU E se este Evangelho de Flon acerca do Deus Serpis, Evangelho anterior, pelo menos um sculo, ao dos cristos, era essencialmente semelhante aos que depois foram Evangelhos cristos, ficamos na dvida sobre se ele quis fazer crer, falando de Serpis, o Deus morto e ressuscitado do Egito, que se referira a Cristo (ainda que o falsificador diga: sem o nomear!) Logo, temos de reconhecer que Flon foi um dos fundadores disso que depois se converteu em cristianismo, que escreveu um Evangelho que mais tarde pde atribuir-se a Jesus, e que, no obstante estes fatos, no conhece nem cita esse nome. Posto isto, o silncio de Flon acerca de Jesus no s prova que este no existiu nunca, mas at autoriza e legitima a hipteseque mais adiante provaremos de que Flon fora o principal fundador do cristianismo. Os seus copiadores no fizeram mais do que introduzir o nome de Jesus em lugar do de Serpis, substituindo o Deus Bom dos egpcios por outro Deus morto e ressuscitado, como o Cristo(1). Em qualquer dos casos, evidente que Flon escreveu um Evangelho sobre Serpis, o qual logo pde adaptar-se a Jesus, donde, segundo Fcio, se derivaram os Evangelhos posteriores. igualmente certo que Flon descreveu os Terapeutas como muito anteriores a Cristo, tendo j os seus Evangelhos e os seus Apstolos; que estes Terapeutas eram, segundo Eusbio e Epifnio, os cristos primitivos, existiram muito antes de Cristo,

(1) Um testemunho bastante eloquente, citado por Ganeval, para denunciar a origem egpcia dos Evangelhos, est nas alegorias do jumento e dos porcos. Especialmente deve notar-se a parbola do filho prdigo, que se faz guardador de porcos, e o milagre dos demnios arrojados dos possessos para os porcos. Tanto um como o outro destes episdios esto deslocados na Judia e no no Egito, onde o porco era a imagem da dissoluo e smbolo do demnio.

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EMLIO BOSSI e, enfim, que o mesmo Cristo nunca existiu. Pondo de parte as muitas provas que Flon nos fornece (1) vejamos as que nos fornecem os cristos autnticos e de valor perante a IgrejaS. Clemente Alexandrino e Orgenescujos testemunhos so tanto mais concludentes, quanto certo terem contribudo poderosamente para a difuso do cristianismo. Pois bem! S. Clemente Alexandrino e Orgenes, morto este ltimo no ano 254, negam a encarnao, e, por conseguinte, a existncia de Cristo. Assim se depreende da anlise feita pelo patriarca Fcio, que, falando do livro das Disputas, de S. Clemente, afirma que, nele, o seu autor declarara que Lgos, o Verbo nunca encarnara, e, analisando os quatro livros dos Princpios, de Orgenes, mostra-nos que este falava de Cristo, segundo a fbula, e que, a respeito da encarnao do Salvador, opinava que o mesmo Esprito e encontrava em Moiss, nos profetas e nos apstolos, o que, tudo junto, leva Fcio a declarar, escandalizado, que, neste livro, Orgenes escreveu muitas blasfmias. Pelo que nos diz respeito, importa s fazer constar que a forma por que se exprimem S. Clemente e Orgenes, falando do Verbo, do Cresto e do Salvador, exclui absolutamente a existncia de Cristo, pois nenhum deles

(1) Dide, na obra j citada, pe em destaque um dilogo com Trifon, de Justino mrtir, no qual o hebreu Trifon nega a existncia e a apario de Cristo sobre a terra, dizendo que se Jesus nasceu, em algum ponto da terra, esse ponto completamente desconhecido. Faz notar que Celso, cuja obra foi destruda, no nega a existncia de Cristo. Celso, porm, que vivia no sculo II no cuidou de tal assunto, visto que a sua tese era outra, e que esta se limitou a refutar o cristianismo, valendo-se para isso dos prprios livros da nova religio.

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CRISTO NUNCA EXISTIU assim falaria, se Cristo tivesse sido um homem real e verdadeiro. Nem ns poderamos pormenorizar mais, visto que esses livros, a que nos referimos, foram todos destrudos. Ganeval cita ainda o testemunho de S. Irineu, de Papias e de S. Justino, o primeiro dos quais afirma que o Deus cristo no homem nem mulher ; o segundo cita fragmentos do antigo Evangelho, que o egpcio, e o ltimo, falando do Logos, Cristo, afirma que uma emanao de Deus, produzido corno as projees do raio do Sol. Como se v, as trs opinies concordam em negar a existncia de Cristo. E trata-se de santos e de_telogos clebres, insuspeitos de averso contra o cristianismo, do qual foram os principais e mais autorizados propagadores. Cita mais Ganeval, apoiando-se em Fcio, as opinies de Eudosino, Agpio, Carmim, Eulogio e outros cristos primitivos, que todos eles formaram do Cresto um conceito que exclui a sua existncia material e corprea. Lembra, finalmente, o juzo do S. Epifnio acerca das mais antigas seitas herticas dos Marcinitas, Valentinianos, Gnsticos, Simonianos, Saturnilianos, Basilidianos, Nicolasianos, e outros, dos quais deduz que o Deus Redentor dos cristos Oro, filho da Trindade egpcia, convertido mais tarde em Serpis. A estas seitas, mencionadas por Ganeval, e que negavam a existncia do Verbo, deve juntar-se especialmente a dos Docetistas, impugnadores da realidade de Cristo, e para cuja refutao, segundo diz Salvador no livro Jesus Cristo e a sua doutrina, o quarto Evangelho pe em relevo a lanada que fez manar sangue e gua do corpo de Cristo, o que provaria a sua realidade. A existncia desta seita particularmente importante, porque no dizer de S. Jernimo, foi contempornea dos Apstolos. E, caso no fosse bastante o que j fica dito, tnhamos os Ebionitas, Cerinto, Cerdon, Taciano, todos eles impugnadores da existncia de Cristo, e, sobre todos, Saturnino, que segundo o abade Pluquet, viveu nos tempos e nas paragens onde Cristo levou a cabo os seus milagres, apesar de ter-lhe negado, ele tambm, um corpo natural. A negao da existncia de Cristo, por parte dos primeiros herticos, alguns dos quais viveram no tempo e no lugar onde teriam residido Cristo e os Apstolos, uma prova histrica evidente de que Cristo nunca existiu.

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EMLIO BOSSI Em suma, um testemunho de enormssimo valor, aduzido tambm por Ganeval, e o do imperador Adriano, que tendo feito uma viagem a Alexandria no ano 131, declara que o Deus dos cristos era Serpis e que os devotos de Serpis eram aqueles a quem chamavam bispos dos cristos. E no se diga que Adriano se equivocara, porquanto a sua opinio est de acordo com todos os documentos que daquela poca se conhecem. poca em que no existiam ainda os atuais Evangelhos, em que Tcito nos revela que os hebreus e os egpcios formavam uma nica superstio, em que Flon tinha j escrito sobre o Deus Serpis, de tal frma que facilitava a qualquer falsificador cristo o ensejo de fazer crer que se referia a Cristo, e em que havia j falado acerca dos cristos primitivosos Terapeutas segundo a confisso de Eusbio e Epifnio, apresentando-os como muito anteriores a ele, que por sua vez, era anterior a Cristo... poca em que, segundo S. Epifnio e Fcio, muitas seitas crists continuavam adorando a Oro, Serpis como Deus Redentor, Deus Filho da Trindade egpcia. poca em que finalmente S. Clemente d'Alexandria e Orgenes escreveram, negando Jesus e falando de Cristonesse tempo Cresto, segundo a fbulatudo isto por confisso do prprio Fcio! (1)

(1) Ganeval cita, entre as provas Histricas contra a existncia de Cristo, a linguagem de S. Paulo e daquele apstolo Apolo chamado tambm Cresto,que nos Atos dos Apstolos prega o cristianismo sem ser cristo. Provas graves, sem dvida, por emanarem dos prprios documentos da f, e de que falaremos, quando tratarmos da Bblia.

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CAPTULO IV Jesus Cristo no pessoa histrica No s a histria permanece muda a respeito da pessoa de Cristo ; no s se demonstrou que os autores histricos, que dele falam, foram nesse ponto falsificados; no s existem provas histricas contra a existncia de Cristo, mas at se prova que a Histria no o conheceu nunca, no podendo sequer conservar-nos a sua fisionomia humana. Cristo no pessoa histrica Deus, somente Deus, mais ou menos antropomorfizado. A prpria etimologia nos indica. Jesus significa Salvador, Cristo significa Ungido. Na prpria Bblia e no Antigo Testamento, mesmo, o nome de Messias ou de Cristo, aplica-se a certos reis pagos : a Cyro, segundo baias (XLV, 1) e ao rei de Tyro, segundo Ezequiel (XXVIII, 14). Aplica-se, enfim, a todo o povo e a todos os seus membros, como se v nos Salmos. Jesus Cristo quer dizer, pois: O que foi ungido Salvador. A prpria etimologia, portanto, nos demonstra que se no trata de uma pessoa histrica. Em que ano, nasceu Cristo? Difcil e tenebrosa questo! Quase todos os que dela se tm ocupado, concordam em que o seu nascimento no coincide com a era vulgar. Durante os primeiros seis sculos, depois da sua pretendida existncia, um monge, Dionsio o Pequeno, no alude era crist, fixando o seu princpio, ou seja o nascimento de Cristo, no ano 753 da fundao de Roma, fato que se julgou errneo, pelo menos em 6 anos. O mesmo erro, porm, no podia demonstrar-se sem vencer srias objees e dificuldades de outra natureza. Calvisio e Moestlin contam at 132 variantes e Fabrcio cerca de 200. Nada h que demonstre de um modo positivo, qual o dia do seu nascimento. Uns querem que seja a 6 ou a 10 de janeiro ; outros a 19 ou 20 de abril ; estes a 20 de abril, este a 20 de maro, aquele a 25, e outros, finalmente, optam por dias e meses inteiramente diversos. No Oriente celebrou-se o nascimento, de 1 a 8 de janeiro e no Ocidente, em 6 do mesmo ms. S. Joo Crisstomo, no ano 375, falava de 25 de dezembro como de um uso introduzido no Oriente. Em Roma, fixou-se o nascimento de Cristo em 25 de dezembro. Isto, antes do ano 354, segundo se v num calendrio de Bucer, daquela poca. Estas mudanas de datas foram interpretadas no sentido de querer a Igreja por o nascimento do novo Deus em relao com os dos Deuses

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EMLIO BOSSI Salvadores e especialmente com o do Deus Invicto, ou seja Mitras, que em Roma se solenizava com grande pompa, espetculos e luminrias, no dia 25 de dezembro, tendo os cristos conferido ao seu Cristo os atributos msticos daquele novo sol, cuja ressurreio os pagos celebravam. Esta hiptese no excluiria a existncia de Cristo, mas deporia muito em favor da sua divinizao. No obstante, fica destruda pelo fato de estar em relao com outras tantas datas mitolgicas : por exemplo, a festa do achado de Osris, que tinha lugar a 6 de janeiro. Por aqui se v que a formao do mito foi laboriosa e longa, pois a Igreja primitiva fez todo o possvel para colocar o nascimento de Cristo alm do solstcio do inverno, a fim de afastar toda a suspeita de um novo mito, em nada diferente do dos Deuses Redentores, que nasciam em 25 de dezembro, como depois veremos. E no s se ignora o dia e ano em que Cristo nasceu, como tambm o ponto onde nasceu. Segundo algumas profecias, deviam ser em Nazar, e, segundo outras, em Belm, visto que devia descender de Davi. O segundo e o quarto evangelistas nada dizem a tal respeito. O primeiro e o terceiro, se bem que falem dele, todavia contradizem-se, visto que um faz de Belm a sua residncia habitual, ao passo que o ltimo, s por casualidade, numa narrao de viagem inverossmil e impossvel, o faz passar por Belm. Alm disso, falam do assunto, relacionando-o com as profecias, o que lhes tira todo o interesse e seriedade histrica, convertendo-se em fontes suspeitas pela sua preocupao apologtica, que os desqualifica perante a crtica. A Histria, que no conhece o nascimento de Cristo, nem o ano, nem o ms, nem o dia, fiem o lugar, tambm desconhece em absoluto a sua vida, a sua morte e todas as demais circunstncias, que segundo os Evangelhos, acompanharam uma e outra. A famosa degolao dos inocentes, a no menos famosa Estrela dos Magos, e os prprios Magos, a morte trgica do Cristo e os terremotos e trevas que a acompanharam, apesar de serem acontecimentos de excepcional importncia, nem sequer foram notados pelos contemporneos, nem ainda por aqueles que deviam ter sido testemunhas oculares dos mesmos fatos. O silncio da histria sobre tais acontecimentos, supe algum motivo mais grave e significativo que um simples desconhecimento histrico: supe a invalidao da veracidade dos nicos livros que narram tais coisas, isto , dos Evangelhos.

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CRISTO NUNCA EXISTIU Mas, h mais: Cristo, ainda que revelado pelos Evangelhos, no realizou, nunca, nenhum daqueles atos, pequenos ou grandes, que costumam realizar na vida todos os mortais. Por exemplo: no tomou parte na Poltica do seu pas e do seu tempo; nem uma nica vez foi importunado pela justia, apesar da sua vida de vagabundo; no levou a cabo ato ou sacrifcio algum do culto. Nenhum dos homens histricos, como Pilatos, Hannaz, Caifaz e outros, que deviam ter tido relaes com Jesus, deixou vestgio algum dessas pretendidas relaes. (1) Enfim, acerca da sua personalidade histrica, no ha uma nica notcia. Cristo foi alto ou baixo? Barbado ou imberbe? Moreno ou loiro? Feio ou formoso? Ningum o disse, jamais, de um modo fixo e positivo, porque ningum jamais o viu. Tertuliano descreve-o feio, em harmonia com uma profecia de Isaas, estando nesse ponto de acordo com a Igreja do Oriente. Santo Agostinho, porm, e com ele a Igreja Latina, querem que Jesus tenha sido formoso. Estas duas opinies foram a origem dos diversos tipos do retrato de Cristo: tipo barbado e tipo imberbe. As disputas duraram ate ao sculo XVII, depois do que terminaram por prevalecer o tipo atual de Cristo, isto , cabeleira espessa e barba farta. O sudrio, que deveria ser uma fotografia de Cristo, pois foi impressionado por contato direto com o seu corpo, representa-o de barba abundante. O sudrio, porm, no documento fidedigno, j porque existem outros igualmente autnticos, j porque os evangelistas no esto de acordo sobre este ponto e mesmo porque ha esttuas e frescos de risto, em que ele aparece, at fins do ano 326, completamente imberbe. Por isso, o escritor Moy, que tratou este assunto com muito interesse e conscincia, conclui, e com razo : Desde que se quer tocar em alguma coisa real, na vida de Jesus, no se encontra mais do que contradio e in(1) Anatole France, no seu recente e formoso trabalhoO Procurador da judiadescreve, em tempos de Vitlio, encontro de Llio Lama, patrcio romano desterrado, com Pncio Pilotos na ribeira do golfo de Baa. Lama pergunta a Pilatos, que conhecia, Jerusalm, do tempo em que foi procurador da Judia, se se recorda de certo taumaturgo da Galileia, chamado Jesus. Pncio Pilatos carregou o sobrecenho e levou a mo fronte, como quem, procura na memria. Em seguida, depois de alguns instantes de silncio, disse: Jesus? Jesus de Nazar? No me recordo....

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EMLIO BOSSI coerncia. Se porm, coisa alguma h que deve ser indiscutvel, essa do aspecto fsico de Jesus... Para ns, a ausncia total de informaes precisas sobre o aspecto fsico do Cristo, uma prova certa de que ningum jamais o viu. E, se ningum o viu, claro est que ele nunca existiu. Tudo o que se pretende saber de Cristo e no pouco! provm das fontes crists, isto , dos Evangelhos, que no s nos no nos fornecem prova alguma da existncia histrica de Cristo, mas at nos confirmam a sua no existncia, como demonstraremos. Do que fica dito se depreende que nada, absolutamente nada se sabe de Cristo-Homem, atendendo nica fonte em que devemos crer, que a Histria, apoiada nos monumentos arqueolgicos. Neste ponto, os que trataram de escrever a Vida de Jesus, fracassaram inteiramente. Apenas um ou dois, como Strauss e Renan, conseguiram salvar o seu nome, graas ao seu talento e engenho. Os cristlogos, ou no fizeram mais do que escrever romances, como Renan, ou se fizeram trabalhos srios, como Strauss, foi isso apenas na parte crtica. Estes puderam salvar um fragmento, um trao da pessoa histrica de Cristo, sem que, todavia, critrio algum de demarcao os autorizasse a separar o real do fantstico, e sem verem que essa pretendida realidade tinha o mesmo aspecto evanglico de tudo quanto eles reconheceram antes como fantstico. Por conseguinte, ns no perderemos mais tempo com os cristlogos, nem com os crticos, que embora eliminando uma ou outra parte do Novo Testamento, pretendem conservar a pessoa histrica de Cristo. O nosso trabalho consistir, pois, cingindo-nos lgica, em refutar o sistema ilgico dos citados cristlogos. Antes, porm, de prosseguir, recolhamos algumas das concluses a que chegaram os crticos mais autorizados, que tentaram a impossvel tarefa de escrever a vida de Jesus. Strauss, depois de ter dito que tudo pode admitir-se como provvel na vida de Cristo coisa impossvel, como veremos conclui dizendo, na sua obra colossal sobre a Vida de Jesus: Mas esta verossimilhana, vizinha da certeza (to pouco deixou de subsistente, da histria de Jesus, e mesmo esse pouco se reduz a uma verossimilhana vizinha da certeza) no vai at muito longe...Poucas coisas so devidamente averiguadas e mesmo aquelas a que de preferncia se aferra a ortodoxia as milagrosas e sobrehumanasno sucederam nunca. A pretenso de que a salvao dos homens depende da f em coisas, das quais uma parte absolutamente fic-

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CRISTO NUNCA EXISTIU tcia, outra incerta e somente uma parte mnima verdadeira (e veremos at como essa parte mnima no existe) essa pretenso, dizia, to absurda que nos nossos dias, j nem sequer merece a pena refut-la. Poucas pginas antes, o mesmo Strauss dissera H quem no o queira ouvir nem acreditar, mas todo aquele que se ocupar seriamente deste assunto e queira ser sincero, h de saber to bem como ns sabemos que na Histria, poucos grandes homens h acerca dos quais estejamos to mal informados como acerca de Jesus. Ernesto Havet, confrontando a certeza que se tem da existncia de Scrates com a incerteza em que vivemos acerca da existncia de Cristo, diz: Scrates uma pessoa real, Cristo uma personagem ideal. Conhecemos Scrates por Xenofonte e Plato, que o conheceram e que escreveram acerca dele, na prpria Atenas, entre os atenienses com os quais vivera, e logo aps a sua morte. Ver-se- pelo contrrio, que todos os que falaram de Jesus no o conheceram (Havet podia ter acrescentado que nem mesmo estes foram conhecidos), dirigindo-se a homens que ainda o conheciam menos; que escreveram meio sculo depois (esta verso a ortodoxa, porm, nada garante que os Evangelhos no sejam muito posteriores data fixada pela tradio) em pases que no eram o seu e em lngua que no era a sua. Esses no escreveram mais que uma lenda: Jesus uma personagem histrica, que no tem histria... Jesus no tem biografia. No se fala da sua figura nem sequer se indica a sua idade. Sem dvida que no era enamorado, porquanto pertena queles que se faziam eunucos para reino dos cus, o que no tiveram o cuidado de nos fazer saber em termos bem explcitos. Nada se diz acerca dos seus costumes nem dos detalhes da sua vida. Dele s se contam as suas aparies, em sua boca s se pem orculos. Tudo o mais fica envolto em trevastrevas que so precisamente a substncia das coisas divinas...Numa palavra, os que os falam de Scrates, so testemunhas; os que nos falam de Jesus no o conhecem, imaginam-no. Nos, diz Miron, nada conhecemos da vida de Jesus. Os redatores dos Evangelhos e os primeiros autores eclesisticos, recolhendo as tradies correntes na comunidade crist, poderiam adquirir algum fragmento da verdade; porm, como assegur-lo, entre tantos elementos mitolgicos e legendrios? Uma vida de Jesus , por conseguinte, impossvel . Enfim, Renan, o prprio autor da Vida de Jesus, mesmo sob a impresso de fantasia do seu romance, depois de reconhecer que bem pouco h a dizer da vida de Jesus, acrescenta:Jesus foi realmente um homem celestial e original, ou um sectrio hebreu parecido com Joo Batis-

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EMLIO BOSSI ta? Queremos acreditar que o personagem real oferece em si algum trao do personagem ideal. A nossa admirao no desapareceria, ainda mesmo quando a cincia nada pudesse dizer de certo e chegasse forosamente s negaes. Quem sabe se Jesus aparece nossa vista, disfarado com humanas fraquezas, somente porque o vemos de muito longe, atravs da nvoa da lenda? Quem sabe se aparece na histria como o nico homem irrepreensvel, s porque faltam os meios para o criticar? Ai de mim! Creio, com sinceridade, que se o tocssemos, como no caso de Scrates, encontraramos tambm a seus ps um pouco do lodo terrestre.Quem sabe se, neste caso, como nas demais criaes do esprito humano, o admirvel, o divino, o celestial, no seriam reivindicados com iguais e legtimos direitos pela humanidade? Em geral, a boa crtica deve desconfiar dos indivduos, evitando entregar-se a eles. Quem cria a massa, porque a massa possui, num grau de espontaneidade eminentemente superior, os instintos morais da natureza humana. A beleza de Beatriz pertence a Dante e no a Beatriz; a beleza de Cristna corresponde ao gnio indiano e no a Cristna, assim como a beleza de Jesus e de Maria obra do cristianismo e no de Jesus e de Maria. Desse Renan um passo mais e ter-se-ia explicado a sua dvida. De Cristo s se disse bem, porque como afirma Havet, no foi pessoa histrica, mas sim ideal. Mais adiante veremos que Renan se colocou em bom terreno, demonstrando uma intuio realmente genial, porque atribui o tipo do homem ideal, personificado em Cristo, humanidade e no a Cristo, visto ser criao e personificao do mesmo ideal humano. Este ideal, porm, no se encontra na Bblia, onde devia estar, se Cristo tivesse existido. Pelo contrrio, se Cristo aparece no nosso sistema desculpado e limpo de toda a mancha, no por obra da Bblia nem de Cristo, criao humana, impessoal, coletiva, mas pela fantasia da coletividade e do esprito dogmtico dos que o criaram . (1) Das palavras de Renan deduz-se, alm disso, outra consequncia, que ningum ainda notou. Queremos dizer que, se a beleza de Cristo criao do esprito humano, como claramente ele o deixa compreender, tambm a sua prpria pessoa, pela mesma lgica e pelo mesmo critrio, poderia ser, como efetivamente , uma criao do esprito humano.(1)Aqueles que, tirando a Cristo a qualidade sobrenaturalque em Cristo tudo!o pretendem conservar ainda, ao menos, como pessoa humana, absolutamente incompreensvel, de resto, no s o expem a um amesquinhamento histrico, mas o levam a sofrer estigmas que o tornariam indigno. Ns, se lhe fazemos os funerais, salvamo-lo ao menos da crtica humanisticamente.

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CRISTO NUNCA EXISTIU Dide, no seu recomendvel livro acerca do fim das religies, atendose s tentativas de Channing e dos unitrios, que negam absolutamente todo o carter sobrenatural a Cristo, mas que se obstinam em o considerar como homem, exclama: Mas quem este Cristo? De que Cristo se trata? Aonde se encontra? Sucede com ele o mesmo que com todos os entes legendrios: quanto mais se procuram, menos se encontram. A tentativa de lanar historia e arrancar as trevas da teologia uma personalidade que, at a idade de trinta anos, absolutamente desconhecida, e que depois dessa idade s nos aparece em milagres, ora absurdos, ora ridculos, uma tentativa to difcil que, priori, pode chamar-se impossvel. E, mais adiante, o mesmo autor, falando da Vida de Jesus, do padre Didon, faz ver que este autor ortodoxo, para escrever a biografia de Jesus, se v constrangido a preencher com hipteses a enorme lacuna da vida do seu Deus, provocando, desse modo aos seus leitores esta reflexo: Resulta, pois, que pouco ou nada se sabe da vida de Jesus? reflexo que no deixou de fazer um dos mais notveis leitores do livro do padre Didon, o lder socialista francs, Jean Jaurs. E assim, poderamos continuar aduzindo citaes da mesma natureza, at encher pelo menos todo um volume; porm, melhor repetir com Virglio: ab uno disce onmespor umas coisas tiramos as outras. No podemos,contudo, esquecer Labanca, cuja obraJesus Cristo tem o mrito de reunir todos os resultados at agora obtidos pela crtica acerca deste assunto. Labanca impugna a possibilidade de uma biografia cientfica de Jesus, quer pelas mltiplas questes contra a autenticidade de todos os pontos dos Evangelhos, quer pela evidncia que se observa na falta de um fim qualquer biogrfico, mas simplesmente de propaganda. Acerca, pois, da vida de Jesus, Labanca, omitindo o sobrenatural, observa que nada mais fica do que um resduo pequenssimo, quase reduzido a zero. Breve demonstraremos que nem mesmo esse resduo pequenssimo fica, e que, se alguma coisa resta de Cristo, mesmo na prpria Bblia, a prova de que jamais existiu um homem que se chamasse Jesus Cristo. Entretanto, fechemos esta primeira parte, com a confisso dos prprios cristlogos: Cristo no pessoa histrica.

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CRISTO NA BBLIACAPTULO I A Bblia no oferece valor de prova Demonstramos que Cristo no pessoa histrica, porque a Histria, a verdadeira, no o conhece nem dele fala. Vamos demonstrar, agora, que a prpria Bblia, nica fonte que dele nos fala, nada prova a seu favor, antes confirma a nossa tese. Cristo nunca existiu! Para o nosso propsito, no preciso refazer a crtica bblica nem repetir os profundos e invencveis argumentos de um Strauss e de toda a rica constelao de telogos e de sbios, verdadeiros especialistas na matria! Bastar-nos- fazer coisa diversa de uma intil repetio, isto , bastanos demonstrar que o exame, mesmo superficial, da Bblia ou s do Novo Testamento, que se ocupa de Jesus, no descobre a fisionomia de um homem, mas sim de um Deus. No nos ocuparemos do Deus: esse abandonamos aos piedosos cuidados dos seus ministros catlicos, que o crucificaram e nele martelam a toda a hora. Abandonamo-lo aos cuidados dos seus ministros protestantes, que, para o salvarem das runas que transtornaram o Olimpo, o despojam dos atributos divinos, para o conservarem ao menos como homemum homem quase divino, que justifique o culto que lhe tributa a Humanidade. Iremos mais alm do que os crticos, que nos precederam, no porque tenhamos mais talentos, mas porque a lgica tem, primeiro que a crtica, as suas justas consequncias e concluses, a fim de que a verdade triunfe e brilhe. E, se bem que seja pequenssima a parte do Cristo histrico que quiseram salvar, depois de terem destrudo a exuberante vegetao mitolgica e legendria, demonstraremos que Cristo no podia ter existido, porque a sua existncia seria a negao da prpria humanidade . (1)(1)Para uns, Cristo foi pessoa histrica, mas enaltecida at as propores da lenda. Para outros, em lugar de se ter colocado a lenda sobre a pessoa histrica, substituram-na por uma pessoa mitolgica. E, a propsito: precisamos distinguir entre lenda e mito. A lenda tem sempre um fundamento verdadeiro e humano, mas exagerado at ao inverossmil ao sobrenatural. O mito, pelo contrrio, no tem origem em fatos verdadeiros: apenas criado da imaginao humana.

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CRISTO NUNCA EXISTIU Por conseguinte, dos Evangelhos, dos Atos e das Epstolas dos Apstolos, escolheremos apenas o que nos for preciso para demonstrar a inconsistncia histrica de Cristo. Deveramos talvez comear por pesar a autoridade do Novo Testamento, para ver qual o valor de prova que tem, a respeito das coisas que narra. Veremos porm, que a Bblia, antes de provar o que nos conta, a si prpria se h de provar. Por outro lado, o nosso fim no recompilar, desde o princpio ao fim, tudo quanto a crtica histrica tem estabelecido acerca da autenticidade dos referidos livros sagrados do cristianismo. Quanto ao Antigo Testamento, basta observar que to pouco verdico e autorizado, que tornou legtima a hiptese de ter sido anterior, alguns sculos apenas, poca assinalada ao aparecimento do cristianismo. Maurice Verns estabeleceu, com muito critrio, que os livros do Antigo Testamento so, em geral, de fatura sacerdotal e proftica, e que, no que narram, no tm carter algum histrico, mas apenas simblico e teolgico. Se tal o resultado da exegese bblica, pelo que respeita ao Antigo Testamento, lgico que tal consequncia se aplique tambm ao Novo Testamento, pois este, desde o princpio ao fim, se apoia naquele. Estamos convencidos de que a crtica chegar um dia a confirmar esta hiptese, porque de todas a mais racional. Por agora, basta que a hiptese, tenha todos os caracteres da probabilidade, para se ver que todo o edifcio bblico se baseia em terreno duvidoso, incerto e vago. De qualquer dos modos, a crtica j demonstrou o Novo Testamento no apresenta os requisitos necessrios para estabelecer, com autenticidade, a verdade do que diz. Em primeiro lugar, todos os livros do Novo Testamento so annimos. Cingindo-nos aos Evangelhos, as palavras precedidas pelas frases consagradas, segundo S. Matheus, segundo S. Marcos, etc., no s no provam que foram realmente dos Apstolos ali citados, mas at indicam que foram redigidos por outros. Em segundo lugar, ignora-se, em absoluto, a poca precisa em que foram escritos os Evangelhos. A referncia mais antiga, que temos sobre este ponto, a de Papias, bispo de Yerpolis, que se supunha martirizado em tempo de Marco Aurelio. O seu livro, porm, no chegou at ns (1) e(1) Seria casualidade ou estratagema? Ganeval afirma que se trata de uma das muitas fraudes dos cristos para destruir a hiptese de Papias segundo a qual a origem do cristianismo egpcia.

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EMLIO BOSSI o seu testemunho relativo a Marcos e a Mateus, conserva-se apenas em Irineu e Eusbio, em certos fragmentos que demonstram que no se referiu aos atuais Evangelhos. Os testemunhos dos Evangelhos, que datam do III e IV sculo, que f podem eles merecer? O que indiscutvel, que nenhum dos Evangelhos foi escrito no tempo em que Jesus Cristo viveu; e que nunca se tiveram mo os pretendidos originais, mas sim e apenas, cpias dos mesmos e cpias das cpias. Quem nos garante, pois, que tais originais tenham existido? Tudo so trevas nos dois primeiros sculos do cristianismo. Mauri, em presena de uma to grave circunstncia, emite duas opinies: a primeira diz que os cristos primitivos escreveram muito pouco; a segunda, que os documentos escritos naquele tempo se perderam, por uma deplorvel fatalidade. E encontra muito verossmil esta segunda hiptese. A ns, porm, no nos acontece o mesmo. E como sabemos que as seitas nasceram com o cristianismo, que todas elas se esforavam para que prevalecessem os seus respectivos pontos de vista, e que, desde o sculo II, as obras abundam e com elas as falsificaes mais audaciosas (1), lgico supor-se que todas aquelas que andaram errantes at se perderem, representaram opinies contrrias s que mais tarde triunfaram no conclio de Nicia (325) e que, convertida em soberanas e despticas, fizeram desaparecer os documentos contrrios. De sorte que os documentos cristos, que prevaleceram em Nicia, tm autoridade desde o IV e quando muito desde o III sculo. evidente que, se eles no a prejudicassem, a Igreja no teria destrudo os livros onde se consignavam as controvrsias das seitas primitivas e que to bom servio podiam prestar crtica, quando j Celso no II sculo se vangloriava de haver refutado o cristianismo, servindo-se unicamente dos prprios livros cristos. Em tudo vemos, neste ponto, o anonimato e a falta de certeza, principais caractersticas dos livros do Novo Testamento, que bastariam para lhes tirar toda a autoridade. Mas, h mais ainda.(1) No injria que se faz, confisso do prprio S. Jernimo. Veja-se Peyrat na sua Histria elementar e crtica de Jesus.

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CRISTO NUNCA EXISTIU Os Evangelhos atuais no foram escolhidos pela Igreja com critrio que revelasse maior autoridade nesses que em outros muitos Evangelhos que ento andavam em voga: destes foram escolhidos quatro, ao acaso, diz Santo Irineu, porque quatro eram as regies do mundo e quatro os ventos! Mas, no tudo. Antes do conclio, de Nicia, a Igreja e os prprios Santos Padres, serviam-se indiferentemente dos Evangelhos, que mais tarde foram declarados apcrifos, porque era igual a autoridade de todos. E mais ainda. A Igreja conservou muitas lendas, que apenas se encontram nos Evangelhos apcrifos. No Novo Testamento encontram-se mesmo passagens que se referem a lendas contidas unicamente nos referidos Evangelhos apcrifos. Resumindo: anonimato, incerteza nos originais, seleo ao acaso e falta de critrio na pretendida autenticidade conferida pela Igreja aos Evangelhos atuaiseis a ao que se reduz a autoridade do Novo Testamento! Como se tudo isto fosse pouco, outras circunstncias a diminuem ainda. Entre elas, as numerosas alteraes a que estiveram sujeitos os Evangelhos atuais, devido inpcia dos copistas, e especialmente falsificao das diversas seitas. Isto nos explica, como diz Baur, a manifesta contradio das doutrinas englobadas no Novo Testamento, em luta contnua entre si. Temos, por outro lado, a diversidade dos exemplares, sobre os quais se fez a traduo do Novo Testamento em lngua latinadiversidade to grande e to grave, que S. Jernimo temia passar por falsrio, ao constituirse em rbitro para selecionar entre tanta multido de exemplares dispersos por todo o mundo e to diversos. E declarava ter-se visto obrigado a acrescentar, trocar e corrigir. Juntemos ainda a demonstrao feita j pela crtica, relativa falta especfica de autenticidade em no poucas partes do Novo Testamento. O ltimo argumento contra a validade dos livros do Novo Testamento, est no fato das irreparveis contradies e das discordncias numerosssimas que ainda hoje contm, para no falar nos seus erros, na sua imoralidade e absurda puerilidade, apesar de a Igreja ter declarado que foram inspirados, palavra por palavra, pelo Esprito Santo! Isto posto, pode, acaso, uma pessoa sria, no obcecada pela f, admitir, no j a autenticidade, mas ao menos a verossimilhana e seriedade do Novo Testamento, considerado como argumento de prova acerca do que ele narra?

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EMLIO BOSSI Stefanoni, contudo opina que a crtica os deve ter em conta, ao menos porque representam tradies dos tempos em que foram produzidos. Enquanto, porm, concede que sobre a base de tais livros no pode reconstituir-se a vida, nem a doutrina de Jesus, sem se escrever um romance enquanto declara que os escritos revelados no podem fazer f na histria, nem esta pode, em nossos dias, explicar com verdadeiro critrio os primeiros rudimentos da origem da nossa idadeobservamos, pelo que a ns se refere, que em primeiro lugar, este no mais que um dos muitos argumentos que concorrem em favor da nossa tese e, em segundo lugar, que nos achamos em face de uma matria to excepcional que, assim como na crtica normal poderia optar-se pelo partido mais sensato, isto , pela dvidana questo, que debatemos, preciso ir at ao fundo, at a negao de tudo quanto afirmam e impem, como divino livros que, tais como os Evangelhos, so destitudos do todo o fundamento. Alm disso, os Evangelhos so um milagre contnuo, tanto na ordem fsica, como na ordem moral, e, tratando-se de coisa sobrenatural, parece lgico que concorram provas pelo menos to certas autnticas como as que acompanham os fatos comuns. Porm, nada disso acontece: em parte alguma surge a menor prova. E, ao passo que estes livros do Novo Testamento nada demonstram do que afirmam, na histria profana no ha um nico sinal, um nico documento que apoie ou venha em auxlio dessas narraes evanglicas. Em tais circunstncias, quem no ver que tudo quanto ali se conta filho da imaginao, para no dizer da impostura sacerdotal, e que nada, absolutamente nada, pode salvar-se do que, por tantos sculos, nos impuseram por modo extraordinrio e sem autoridade alguma? No censuremos os crticos positivos e os autores que nos precederam e nos desbravaram o terreno, por no terem chegado concluso a que ns chegamos : o preconceito duas vezes milenar, que tem torturado os nossos crebros, arrastando-os para esse erro, tem sido de tal fora, que nem os mais destemidos puderam libertar-se dele, de um s golpe. Aqui, mais do que em nenhum outro campo, se tem comprovado que natura non facit saltus ( a natureza no d saltos). No devemos, porm, negar critica o direito de chegar a concluses que no so mais do que consequncias necessrias das prprias premissas. Portanto, se o fato de serem clandestinos os livros do Novo Testamento, no pode bastar, por si s o que ns no negamos para legitimar a concluso da no existncia de Cristo, a crtica deve, dada a natureza teolgica e sobrenatural dos referidos livros, ter muita cautela ao aceitar qualquer parte, por mnima que seja, do que neles se conta.

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CRISTO NUNCA EXISTIU Em todo o caso, o certo e indiscutvel que a Bblia, em lugar de servir de prova do que relata, tem necessidade de comprovar-se a si prpria. Esta afirmao est, de resto, reforada com a autoridade de Santo Agostinho, que, discutindo com Os Maniqeus, faz esta confisso capital : No acreditaria nos Evangelhos se a isso no me visse obrigado pela autoridade da Igreja.

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CAPTULO II

Jesus Cristo pessoa absolutamente sobrenatural Os milagres de Cristoeis aqui a pedra de toque de todos os telogos. Se Cristo existiu, realmente, se foi pessoa humana, como se explicam esses milagres? Ainda que hoje os milagres contanto que no sejam fenmenos nervosos e a maior parte dos de Cristo no o so nem podem s-lo se negam facilmente... Ora, na vida de Jesus, tudo so milagres, a ponto de o no conhecermos seno atravs do milagre. A este respeito, os telogos e crticos, especialmente os da sbia Alemanha, comearam a fazer distino entre os trs primeiros Evangelhos, chamados sinpticos, e o quarto, ou seja o de S. Joo. Dizem que este ltimo fala de Cristo, como Plato falou do Lgos, deduzindo-se da que a concepo de Cristo, segundo o quarto Evangelho, puramente metafsica. De modo que se chegou a supor tal Evangelho como uma tentativa feita, muito tempo depois dos trs primeiros, a fim de salvar a divindade de Cristo, da crtica dos pagos divindade comprometida com as incongruncias dos Evangelhos Sinpticos, em certas passagens aonde o elemento humano sobrepuja o divino. Assim, abandonaram crtica o quarto Evangelho, agarrando-se aos trs primeiros para salvarem pelo menos o homem. Esta tentativa no mais do que uma concesso que, desde logo se viu ser de mau gosto, pois que se encaminha a um fim mais teolgico do que primeira vista parecia. O protestantismo liberal e o racionalisrno espiritualista, viram a tempo, o perigo da crtica naturalista, isto , viram que, cados os milagres, cada estava toda a concepo divina de Cristo, visto serem os milagres a nica prova da existncia de Cristo... Eis como se explica a tentativa de despojar Cristo da divindade, isto , dos milagres, para o poder salvar como homem. Salvar a Cristo como homem o mesmo que salvar o cristianismo, como disse Hartman, pois que, admitindo que Cristo haja realmente existido, o cristianismo deve proceder dele. E esta seria a prova do cristianismo, como cristianismo seria a prova de Cristo. Um salvaria o outro. Na verdade, que homem poderia criar toda uma nova civilizao, a no ser que fosse, a todos os respeitos, um homem extraordinrio?

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CRISTO NUNCA EXISTIU Lanado o divino pela porta fora, ei-lo que entraria renovado pela janela, a fim de circundar, com a sua aurola, a loira cabea tradicional do Nazareno. Assim o compreendeu Renan que, no seu sentimentalismo mstico e transcendental, ps a Bblia prova, para dela arrancar uma biografia fantstica de Jesus, que um verdadeiro romance. E ainda que ele tenha fugido da teologia, restituindo Cristo humanidade, no fundo no faz mais do que prolongar a vida do cristianismo. De sorte que, em vez da excomunho e do vituprio dos crentes, merecia ser colocado entre os Padres da Igreja. O sobrenatural e divino, que na Bblia rodeia Jesus, em meio dos milagres, que atualmente se reduzem a nada, assim como Cristo e o Cristianismo, foram restitudos a Cristo pelo grande professor da Sourbonne, fazendo dele um personagem real e histrico, de uma grandeza sobre-humana. Para Renan, Cristo no j o Deus que desce terra para se fazer homem, mas simplesmente um homem que da terra sobe ao cu para se endeusar. Em cada passagem do seu romance, aparece esta metamorfose do homem em Deus. As suas prprias palavraschamado por Deus--indicam claramente. Se Cristo, pois, segundo Renan, alcana o ideal da humanidade, que importa que seja a consequncia direta de Deus, maneira de uma encarnao, ou que seja um enviado extraordinrio de Deus, um homem to elevado que at do cu abre as suas portas humanidade ? Com as concepes dos telogos, Cristo-Deus no podia viver nem reinar nesta idade positiva, mas Renan fez mais e melhor que todos eles: tentou salvar Cristo corno homem. Mas salvar o homem, e um homem de tal natureza, era salvar cristianismo, era personalizar a adorao da Humanidade por um homem ideal, era manter, numa palavra, o culto da humanidade pelo Cristo, quer descendo do cu terra, quer subindo da terra ao cu . (1)

(1) Fazer do Cristo um sbio, fora de todas as propores que a histria fornece, no ser isso, de algum modo, substituir um milagre por outro? Vacherot, A Religio, pag. 100. Camilie Mauclair, em uma correspondncia de Paris para o jornal italiano Avanti, em 7 de setembro de 1903, escrevia o seguinte, que confirma a nossa tese: Renan intentou prestar Igreja um servio capital. Creio que o teria pensado de antemo, e s pela estupidez crassa da mesma Igreja, esse servio no agradecido

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EMLIO BOSSI O protestantismo liberal, que pretendeu seguir o mesmo caminho, no faz obra de destruio, mas sim de conservao religiosa. Faz o mesmo que o aeronauta, quando arroja o lastro da barquinha, para que esta no caia, arrastando-o tambm na sua queda. Apenas no esto de acordo com a lgica, nem com a verdade histrica, esses salvadores do Cristo Homem. No esto com a lgica porque, como justamente observa Vacherot, a ultima frmula qual se agarrou o protestantismo liberal e ns acrescentaremos o racionalismo espiritualista a supresso da personalidade histrica de Cristo e de tudo quanto dele se conhece, porque a nica que no pode ser demonstrada nem pela filosofia, nem pela crtica moderna. No esto de acordo com a verdade histrica, porque o Cristo da B-

ao escritor. No considero a Vida de Jesus, de Renan, uma obra perfeita. Creio mesmo que no grande coisa. Mas, seja corno for, impossvel concluir pela no revelao, , portanto, pela no divindade de um homem sublime. Qual foi, de resto, o intento do escritor? Destruir o dogma, certo, mas conservar a moral evanglica, que ele considerava a melhor e a mais conforme com: a evoluo social de um sculo em que a cincia, segundo a expresso do seu amigo Berthelot, aspira direo material e moral da sociedade. Qual era o servio que Renan pretendia prestar Igreja Catlica? Convenc-la de que devia abandonar o dogma divino, considerando-o um simples simbolismo, e separar os Testamentos, conservando s a moral crist, para no andar mais em metas constantes com o esprito cientfico, apresentando-se, no mundo, como sendo a depositria de uma moral de justia. No se tratava de um suicdio da Igreja, nem de urna negao pblica da revelao, que equivalesse a uma bancarrota. Tratava-se apenas de uma transformao hbil, que permitiria a Igreja o esquivar-se a um conflito direto com, a cincia.

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CRISTO NUNCA EXISTIU

blia, de toda a Bblia, uma pessoa inteiramente sobrenatural. O prprio Strauss, o maior dos crticos desta escola, v-se obrigado a reconhecer que a intruso do princpio sobrenatural e a concepo dogmtica do Cristo, tornam impossvel uma biografia de Jesus. Procurou eliminar todo o sobrenatural da vida de Jesus, sacrificando o Cristo dogmtico para salvar o Cristo histrico, partindo do conceito de que, se os antigos encontraram digno do homem no considerar como estranho humanidade tudo quanto humano, a divisa dos modernos deve ser eliminar como estranho tudo o que no humano e natural.

Para esta inteligente transformao, Renan apresentava a frmula conveniente, com a sua fina inteligncia, astuta e insinuante. Estava embebido no catolicismo e era um conciliador, infinitamente diplomtico, entre o dogma e a crtica. Certamente, Renan esperava que a Igreja aceitasse esta soluo elegante do problema de antinomia entre a cincia e a F. Toda a vida deplorou que no o quisessem compreender. Se a Igreja a tivesse aceitado, teria adquirido uma fora enorme. Teria podido conservar as suas cerimnias, com um sorriso significativo, como quem lhes no desse seno o mero valor histrico e alegrico. Teria podido aceitar a cincia e ficar com a moral publica... E, assim, que grandeza para a moral de Cristo, de quem os modernos anarquistas se dizem continuadores, se se tivesse admitido realmente o seu martrio de homem, desembaraando o catolicismo de toda a impedimenta judaica do Antigo Testamento e de toda a insustentvel metafsica dos livros sagrados! A Igreja inimiga de Cristo, a Igreja politicastra, no compreendeu a ocasio que Renan lhe oferecia. No seu destino de repelir todos os escritores que podiam servi-la, com a sua f e o seu engenho, a Igreja repeliu tambm Renan. Preferiu as banais fantasmagorias polcromas s obras primas da arte religiosa. A Vida de Jesus colocava-a em um dilema difcil, em urna escabrosa encruzilhada : a Igreja negou-se a caminhar pela senda do futuro, encerrando-se no dogmatismo. Perdeu, assim, o ltimo ensejo que teve, para se modernizar.

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EMLIO BOSSI No repetiu o erro de torturar o crebro e o bom senso para explicar racionalmente os milagres de Cristo, irremediavelmente condenados pela cincia, limitando-se simplesmente a elimin-los da parte histrica, considerando-os como mitos justapostos, no contrrios, porm, pessoa histrica de Cristo, para conservar, este humanidade e histria. Isto, porm, era faltar abertamente logica e verdade histrica, como o prprio Strauss confessa, sem disso dar conta, ao deixar escapar da sua escrita estas palavras, que dizem mais do que um livro inteiro:Sob este ponto de vista, pode dizer-se que a idia de uma Vida ou de uma Biografia, de Jesus foi a fatalidade de toda a teologia moderna, esta continha em grmen todo o destino, e a contradio que implica, pressagiava-lhe o resultado negativo. Ela era a ratoeira em que devia necessariamente cair e perder-se a teologia do nosso tempo. Esta fatalidade da teologiadevida, como vimos, preocupao de salvar o cristianismo qual ele mesmo se mostrou obediente, no o salvou da contradio e do resultado negativo que implica. Ainda que a nica base para falar de Cristo est nos Evangelhos, e estes, alm de serem uma base suspeita, porque emanam da f, quando no das imposturas sacerdotais, nos representam Cristo apenas como pessoa sobrenatural. Alm disso, se vo a despojar uma parte do Evangelho do seu carter histrico para o converter em puro mito, para que no aplicar e estender ento o mesmo critrio interpretao de todo o livro? Como distinguir o que deve tomar-se ao p da letra, do que h de tomar-se em sentido figurado? O real, nesse caso, torna-se insustentvel, e o livro perde todo o seu valor histrico (1), porque, quem quer raciocinar sem preconceitos e de boa f, est obrigado a reconhecer que os Evangelhos s nos do a conhecer Cristo atravs do sobrenatural. E, em Cristo, tudo sobrenatural: milagres e potncia milagrosa, a sua prpria pessoa, a sua misso e ain