jeremy scahill. guerras sujas

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Jeremy SCAHILL. Guerras sujas. O mundo é um campo de batalha. São Paulo: Cia das Letras,2014, pp. 25-59.

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(Ttulo do Texto) 1. Havia a preocupao [] de no criar uma lista negra americana

WASHINGTON, DC, 2001 -2 Eram dez horas da manh de 11 de junho de 2002,1 nove meses depois dos ataques do Onze de Setembro. Senadores e representantes entravam em fila na sala S -407 do Capitlio dos Estados Unidos. Todos eram membros de um pequeno grupo de elite de Washington e, por lei, guardies dos mais reservados segredos do governo americano. Proponho por meio desta que a reunio da comisso seja fechada ao pblico, disse o republicano Richard Shelby, um dos senadores pelo Alabama, com sua fala arrastada de sulista, com a justificativa de que a segurana nacional dos Estados Unidos poderia ficar comprometida se os trabalhos se tornarem pblicos. A moo foi apoiada sem demora e a sesso secreta comeou. Enquanto os membros da Comisso Especial de Inteligncia do Senado e a Comisso Especial Permanente de Inteligncia da Cmara dos Representantes se reuniam em Washington, DC, do outro lado do mundo, no Afeganisto, lderes polticos e tribais participavam de uma loya jirga, 2 ou grande conselho, incumbida de decidir quem governaria o pas depois da pronta derrubada do governo talib pelas Foras Armadas dos Estados Unidos. Depois do Onze de Setembro, o Congresso americano concedeu ao governo Bush amplos poderes para perseguir os responsveis pelos ataques. O governo talib, que dirigia o Afeganisto desde 1996, tinha sido esmagado, privando a Al -Qaeda de seu santurio no pas. Osama26bin Laden e outros lderes da organizao estavam foragidos. Mas para o governo Bush, a longa guerra estava apenas comeando. Na Casa Branca, o vice -presidente Dick Cheney e o secretrio de Defesa Donald Rumsfeld se concentravam no planejamento da invaso seguinte: a do Iraque. Tinham chegado ao poder com o plano de derrubar Saddam Hussein e, apesar de no haver ligao do Iraque com o Onze de Setembro, esses ataques foram usados como pretexto para pr tal projeto em prtica. Mas as decises tomadas no primeiro ano do governo Bush iam muito alm do Iraque, do Afeganisto e at mesmo da Al -Qaeda. Os homens do poder naquele tempo estavam determinados a mudar a forma como os Estados Unidos travavam suas guerras e, no processo, atribuir um poder sem precedentes Casa Branca. Os dias de combate contra inimigos fardados e exrcitos nacionais, segundo as regras das Convenes de Genebra, tinham terminado. O mundo um campo de batalha era o mantra repetido pelos neoconservadores dos aparatos de segurana dos Estados Unidos e mostrado em slides de PowerPoint para destacar os planos de uma guerra global, avassaladora e sem fronteiras. Mas os terroristas no seriam o nico alvo. Os mecanismos de controle prprios do sistema democrtico em vigor havia duzentos anos estavam no centro de interesse daqueles homens. A sala S -407 fi cava no sto do edifcio do Capitlio. No tinha janelas, e o acesso a ela se dava por um nico elevador ou uma escada estreita. Considerada uma dependncia de segurana, estava equipada com sofisticados dispositivos de contraespionagem3 para impedir qualquer tentativa de escuta ou monitoramento externo. Durante dcadas, tinha sido usada para os mais delicados briefings feitos aos membros do Congresso pela CIA, pelas Foras Armadas americanas e por dezenas de outras figuras e entidades que povoam as sombras da poltica americana. Nessa sala, que estava entre as poucas em que os segredos mais bem guardados da nao eram discutidos, aes secretas eram explicadas e avaliadas. Quando se instalaram para a reunio a portas fechadas na Colina do Capitlio naquela manh de junho de 2002, senadores e representantes ouviram uma histria de como os Estados Unidos tinham ultrapassado um limiar. O propsito declarado da sesso era rever o trabalho e a estrutura das organizaes contra terroristas americanas de antes do Onze de Setembro. Na poca, muitos dedos apontaram as falhas da Inteligncia americana que levaram queles acontecimentos. Depois daquele que foi o mais devastador ataque terrorista da histria praticado em solo americano, Cheney e Rumsfeld acusaram o governo Clinton de no ter27reconhecido a iminncia da ameaa da Al -Qaeda, deixando o territrio americano vulnervel na poca em que Bush assumiu o poder. Os democratas contra- -atacaram e invocaram sua prpria histria de combate Al -Qaeda na dcada de 1990. A apresentao de Richard Clarke aos legisladores americanos nesse dia em especial pretendia, em parte, mandar uma mensagem elite do Congresso. Clarke tinha sido o tzar do contraterrorismo do presidente Bill Clinton e liderou o Grupo de Segurana Contra terrorista do Conselho de Segurana Nacional (CSN) durante a dcada que precedeu o Onze de Setembro. Tambm trabalhou no CNS do primeiro presidente Bush e foi secretrio assistente de Estado no governo do presidente Ronald Reagan. Era um dos funcionrios mais experientes4 em contraterrorismo dos Estados Unidos e, na poca da sesso, estava saindo do governo, embora ainda mantivesse o cargo de conselheiro especial do segundo presidente Bush para segurana ciberespacial. Clarke, personagem da linha -dura que ganhou destaque num governo democrata, era conhecido por ter batalhado em favor de mais aes secretas5 quando Clinton estava no poder. Assim, era compreensvel que o governo Bush o aproveitasse para defender um regime cujas tticas militares e de Inteligncia tinham sido anteriormente classificadas de ilegais, antidemocrticas ou simplesmente arriscadas. Clarke disse que na era Clinton o dilogo dentro da comunidade de segurana nacional era marcado por grande preocupao com a possibilidade de violar uma antiga proibio presidencial de assassinato e por muito medo de repetir escndalos do passado. Disse ainda que, em sua opinio, criara -se na CIA uma cultura segundo a qual quando se fazem operaes secretas em grande escala, elas se embaralham, fogem de controle e acabam respingando na Agncia.6 A histria das operaes secretas nas dcadas de 1950 a 1970 no foi feliz, disse Clarke aos legisladores. A CIA orquestrou a deposio de governos populistas na Amrica Latina e no Oriente Mdio, apoiou esquadres da morte em toda a Amrica Central, instrumentalizou o assassinato do lder rebelde Patrice Lumumba no Congo e fomentou a ao de juntas militares e ditaduras. O dilvio de assassinatos ficou to fora de controle que em 1976 um presidente republicano, Gerald Ford, precisou editar a Ordem Executiva 11905 que proibia explicitamente os Estados Unidos de levar a termo assassinatos polticos.7 Os funcionrios da CIA que tinham atingido a maturidade naquela era de sombras e chegaram a posies de comando durante a dcada de 1990, segundo Clarke, tinham institucionalizado [a ideia de que] a ao secreta arriscada e costuma sair pela culatra. E os28sabiches da Casa Branca que esto pressionando em favor de aes secretas vo desaparecer quando [a Comisso de Inteligncia do Senado] exigir prestao de contas sobre a baguna que aquela ao secreta se tornou. O presidente Jimmy Carter emendou a proibio do assassinato implementada por Ford para torn-la mais abrangente. Alterou os termos que limitavam a proibio a assassinatos polticos e estendeu -a a assassinatos praticados por terceiros, contratados pelos Estados Unidos. Nenhuma pessoa empregada pelo governo dos Estados Unidos ou agindo em seu nome poder se mobilizar ou conspirar a favor da mobilizao para assassinato,8 dizia a ordem executiva do presidente Carter. Embora o presidente Reagan e o primeiro Bush tenham mantido esses termos, nenhuma resoluo presidencial definou o que constituiria um assassinato. Tanto Reagan quanto o primeiro Bush e Clinton contornaram a proibio. Reagan, por exemplo, autorizou um ataque casa do ditador lbio Muammar Kadafi 9 em 1986, como retaliao por sua suposta participao num ataque a bomba contra uma boate em Berlim. O primeiro presidente Bush autorizou ataques contra os palcios de Saddam Hussein durante10 a Guerra do Golfo de 1991. Clinton fez o mesmo durante a operao Raposa no Deserto11 em 1998. Clarke relatou para os legisladores que, no governo Clinton, fizeram -se planos para matar e capturar lderes da Al -Qaeda e de outras organizaes terroristas, inclusive Osama bin Laden. O presidente Clinton declarou que a proibio no se aplicava a terroristas estrangeiros envolvidos em conspiraes para atacar os Estados Unidos. Depois das exploses a bomba das embaixadas americanas no Qunia e na Tanznia no fim de 1998, Clinton autorizou o uso de msseis de cruzeiro12 contra supostos acampamentos da Al -Qaeda no Afeganisto e tambm um ataque contra uma fbrica no Sudo que, segundo o governo americano, produzia armas qumicas. No fim, descobriu -se que a fbrica era na verdade um laboratrio farmacutico.13 Embora a autorizao para aes letais tivesse sido concedida por Clinton, era considerada uma opo apenas para situaes extraordinrias e somente por ordem do presidente, a depender de cada caso.14 Em vez de dar carta branca para essas operaes, a Casa Branca na era Clinton exigia que cada ao proposta fosse minuciosamente verificada. Instituram -se as estruturas legais e autorizaes para aes letais foram rubricadas pelo presidente, permitindo o uso de fora mortfera na perseguio a terroristas no mundo todo. Mesmo assim, disse Clarke, o gatilho raramente era acionado.15 Clarke admitiu que as autorizaes da era Clinton para assassinatos especficos29parecem uma srie de documentos talmdicos e um tanto bizarros, acrescentando que eram cuidadosamente elaborados para reduzir o alcance dessas operaes. O governo, particularmente o Departamento de Justia, no queria abandonar a proibio do assassinato de modo a jogar fora o beb junto com a gua do banho. Queriam que os desdobramentos das autorizaes fossem limitados. Acrescentou que as autorizaes da era Clinton eram como uma seleo bem reduzida. Mas isso, penso, foi por causa desse desejo de no abandonar totalmente a proibio de assassinatos e criar uma lista negra americana. A portas fechadas, a representante Nancy Pelosi, que estava entre os mais poderosos democratas do Congresso, orientou seus colegas a no discutir publicamente nenhum dos memorandos confidenciais que autorizassem o uso de fora letal. Os memorandos, disse ela, se enquadram na forma mais restrita de notificao,16 no mais alto nvel do Congresso. extraordinrio [] que essa informao nos seja passada aqui hoje. Ela preveniu contra qualquer vazamento para a imprensa e acrescentou: De jeito nenhum podemos confirmar, negar, garantir ou admitir ter conhecimento dos memorandos. Perguntaram a Clarke se ele achava que os Estados Unidos deveriam revogar a poltica de proibio de assassinatos. Acho que preciso ter muito cuidado com a abrangncia das autorizaes para uso de fora letal, ele respondeu. No acredito que a experincia israelense de ter uma vasta lista negra tenha sido um grande sucesso. No foi com certeza no deteve o terrorismo nem as organizaes cujos membros foram assassinados. Clarke disse que quando ele e seus colegas do governo Clinton deram autorizao para operaes de assassinato dirigido, tencionavam que houvesse casos raros e precisos.No queramos criar um amplo precedente que permitisse aos funcionrios da Inteligncia ter listas negras no futuro e se envolver habitualmente em coisas prximas ao assassinato []. Tanto no Departamento de Justia quanto entre elementos da Casa Branca e da CIA havia a preocupao de no criar uma lista negra americana que se tornasse uma instituio em funcionamento qual pudssemos apenas acrescentar nomes, tendo grupos de assalto para matar pessoas. Com tudo isso, Clarke fazia parte de um pequeno grupo de funcionrios da comunidade contra terrorista do governo Clinton que se mobilizava para tornar a CIA mais agressiva no uso da autorizao para aes letais e lutava para dilatar os30limites da proibio de assassinato. Na esteira do Onze de Setembro, declarou Clarke, quase tudo o que propusemos antes dos atentados est sendo feito. Em breve, quase tudo seria tudo e mais um pouco. Donald Rumsfeld e Dick Cheney rechearam o governo de destacados neoconservadores que tinham passado a era Clinton operando um verdadeiro governo na sombra, trabalhando com organizaes de direita e para importantes grupos privados, preparando seu retorno ao poder. Entre eles estavam Paul Wolfowitz, Douglas Feith, David Addington, Stephen Cambone, Lewis Scoot er Libby, John Bolton e Elliott Abrams. Muitos tinham dado os primeiros passos na Casa Branca das eras Reagan e Bush. Alguns, como Cheney e Rumsfeld, j vinham da era Nixon. Muitos tinham sido atores essenciais17 na construo de uma viso poltica amparada pelo ultranacionalista Projeto para um Novo Sculo Americano (Project for the New American Century, PNAC). Apesar da deciso presidencial de usar a fora na Iugoslvia e no Iraque e promover uma srie de ataques areos a outras naes, eles viam o governo Clinton como uma posio praticamente pacifista que tinha debilitado a dominao americana e deixado o pas vulnervel. Acreditavam que os anos 1990 tinham sido uma dcada de negligncia defensiva.18 Os neoconservadores havia muito defendiam a posio de que os Estados Unidos, com o fi m da Guerra Fria, tinham se tornado a nica superpotncia e deviam exercer sua fora com agressividade sobre o globo, redefinindo mapas e expandindo seu imprio. No centro dessa viso estava um aumento radical dos gastos militares, segundo planos traados por Cheney e seus assessores quando ele foi secretrio de Defesa, em 1992. O esboo de Cheney para o Guia de Planejamento da Defesa, como afirmavam os neoconservadores no documento de fundao do PNAC, propunha um esquema19 para manter a preeminncia americana, impedindo a ascenso de outra potncia rival, moldando a ordem internacional no que se refere segurana de acordo com os princpios e interesses americanos. Wolfowitz e Libby foram os principais autores20 do manifesto de Cheney sobre a defesa, que afirmava que os Estados Unidos deviam ser a nica superpotncia e empreender todas as aes necessrias para impedir potenciais concorrentes21 de sequer aspirar a um maior papel regional ou global. O plano deles, no entanto, foi descartado por foras mais poderosas22 do go-31verno do primeiro Bush, em especial o chefe do Estado -Maior Conjunto, general Colin Powell; o secretrio de Estado, James Baker; e o conselheiro de Segurana Nacional, Brent Scowcroft. A verso final, para frustrao de Cheney e dos neoconservadores, amenizou em boa medida o tom imperialista.Uma dcada depois, antes mesmo do Onze de Setembro, os neoconservadores de volta ao poder com o governo do segundo Bush recolheram aqueles planos da lata de lixo da histria e se empenharam em implement-los. Expandir a projeo das foras americanas era essencial, assim como a constituio de unidades operacionais de elite geis. Nossas foras, no prximo sculo, devem ser geis, letais, prontamente mobilizveis e exigir um mnimo de apoio logstico,23 declarou Bush filho num discurso da campanha de 1999 redigido por Wolfowitz e outros neoconservadores. Precisamos ter condies de projetar nosso poderio a grandes distncias, em dias ou semanas, e no em meses. Em terra, nosso armamento pesado deve ser mais leve. Nosso armamento leve deve ser mais letal. Todo ele deve ser mais fcil de mobilizar. Os neoconservadores tambm vislumbravam um domnio mais eficaz dos Estados Unidos sobre os recursos naturais do planeta e o confronto direto com os Estados -naes que se interpusessem no caminho. A mudana de regime em numerosos pases seria considerada com seriedade, principalmente no Iraque, rico em petrleo. Fervorosos defensores24 da interveno militar americana, poucos neoconservadores serviram nas Foras Armadas e menos ainda foram eleitos para cargos pblicos, observou Jim Lobe, jornalista que acompanhou a ascenso do movimento neoconservador durante a dcada que precedeu o Onze de Setembro. Eles tinham um objetivo incansvel de domnio militar global e desprezavam as Naes Unidas e o multilateralismo em geral. Lobe acrescentou quena concepo neoconservadora, os Estados Unidos so no mundo uma fora do bem; tm a responsabilidade moral de exercer essa fora; seu poderio militar deve ser dominante; devem ser globalmente comprometidos mas jamais impedidos, por compromissos multilaterais, de tomar atitudes unilaterais em prol de seus interesses e valores; e devem ter uma aliana estratgica com Israel. Saddam deve sair, afirmam eles, porque uma ameaa a Israel e tambm Arbia Saudita, e porque acumulou e usou armas de destruio em massa.32O grupo do PNAC concluiu que os Estados Unidos procuraram durante dcadas desempenhar um papel mais permanente na segurana regional do Golfo. Embora o confl ito no resolvido com o Iraque proporcione a justifi cativa imediata, a necessidade de uma substancial fora americana no Golfo transcende o regime de Saddam Hussein.25 Semanas depois de assumir o governo, Rumsfeld e Cheney passaram a pressionar em favor da retirada da chancela americana ao Estatuto de Roma, que reconhecia a legitimidade de um tribunal internacional de justia, assinado pelo presidente Clinton no apagar de luzes de seu mandato. Eles no queriam que as foras americanas fi cassem sujeitas a um eventual julgamento por seus atos em todo o mundo. Assim que se tornou secretrio de Defesa, Rumsfeld determinou que sua equipe jurdica e as de outras instncias do governo americano descobrissem de imediato como podemos cair fora e anular a assinatura de Clinton.26 Mesmo na comunidade de veteranos da poltica externa do Partido Republicano, esses personagens eram vistos como extremistas. Quando vimos essa gente voltando, todos os que estavam por ali disseram: Meu Deus, os malucos esto de volta27 os malucos era assim que falvamos daquela gente, lembra Ray McGovern, que trabalhou na CIA durante 27 anos, foi informante da Segurana Nacional do primeiro Bush quando este era vice -presidente e trabalhou com ele quando foi diretor da CIA, no fim da dcada de 1970. McGovern disse que, uma vez no poder, os neoconservadores ressuscitaram ideias que lderes experientes em poltica externa tinham descartado em governos republicanos anteriores, acrescentando que essas ideias extremistas em pouco tempo seriam resgatadas das cinzas e implementadas. Na opinio desses homens, se temos muito peso para distribuir, devemos distribu -lo. Devemos nos afirmar em reas crticas, como o Oriente Mdio, relatou McGovern. Por dcadas, Cheney e Rumsfeld foram lderes de um movimento militante que atuava fora do governo e, durante as gestes republicanas, agia dentro da prpria Casa Branca. Sua misso era dar ao brao executivo do governo dos Estados Unidos poderes sem precedentes para travar guerras ocultas, praticar operaes secretas sem fiscalizao e espionar cidados americanos. Em sua opinio, o Congresso no tinha nada a ver com a fiscalizao dessas operaes, devendo apenas financiar os rgos que as poriam em prtica. Para eles, a presidncia deve-33ria ser uma ditadura de segurana nacional que responderia apenas a suas prprias convices sobre o que era melhor para o pas. Os dois homens trabalharam juntos pela primeira vez na Casa Branca de Nixon em 1969, quando Rumsfeld contratou Cheney,28 ento universitrio, como seu assessor no Gabinete de Oportunidade Econmica. Foi o pontap inicial da carreira de Cheney nos centros de comando da elite republicana e do projeto de uma vida dedicada a reforar os poderes do Executivo. Quando o escndalo se abateu sobre a Casa Branca de Nixon na dcada de 1970 com os bombardeios clandestinos do Laos e do Camboja, revelados por uma lista de inimigos internos e a deplorvel invaso do quartel -general do Comit Democrtico Nacional no hotel Watergate , o Congresso comeou a atacar29 as prerrogativas do Executivo e o sigilo extremo que permeava o governo. O Congresso condenou30 o bombardeio do Laos e do Camboja e cancelou a tentativa de Nixon de vetar a Lei dos Poderes de Guerra de 1973, que limitava os poderes do presidente para autorizar aes militares. A lei determinava que o presidente consultasse o Congresso31 antes de lanar as Foras Armadas americanas em hostilidades ou em situaes nas quais o iminente envolvimento em hostilidades esteja claramente indicado pelas circunstncias. Na ausncia de uma declarao formal de guerra, o presidente deveria informar o Congresso, por escrito e dentro de 48 horas, sobre qualquer ao militar, as circunstncias que determinavam a interveno das Foras Armadas; a autoridade constitucional e legislativa sob a qual essa interveno ocorreria e a abrangncia e durao estimadas das hostilidades ou do envolvimento. Cheney considerava a Lei dos Poderes de Guerra inconstitucional e uma intromisso nos direitos do presidente como comandante em chefe das Foras Armadas. Ele chamou essa poca de pior momento32 da autoridade presidencial americana. Depois que o escndalo de Watergate forou a renncia de Nixon, Cheney passou a chefe de gabinete do presidente Ford, e Rumsfeld tornou -se o mais jovem secretrio de Defesa da histria americana. Em 1975, o Congresso intensificou sua investigao do submundo das operaes secretas da Casa Branca, sob os auspcios da Comisso Church, assim chamada por ter como presidente o senador democrata Frank Church, de Idaho. A comisso investigou uma ampla gama de abusos cometidos pelo Poder Executivo, entre eles operaes de espionagem contra cidados americanos.33 A investigao da Comisso Church pintou um quadro das atividades secretas ilegais praticadas sem fiscalizao do Judicirio ou do Congresso. Investigou tambm o envolvimento dos Estados Unidos na depo-34sio e morte do presidente socialista do Chile, Salvador Allende,34 democraticamente eleito, em 1973, mas Ford alegou imunidade do Executivo e evitou a devassa.35 Em certo ponto das investigaes da comisso, Cheney tentou induzir a Agncia Federal de Investigao (Federal Bureau of Investigation, FBI) 36 a investigar o famoso jornalista Seymour Hersh e a conseguir um processo por espionagem contra ele e contra o New York Times em retaliao s denncias sobre espionagem interna ilegal praticada pela CIA. O objetivo era intimidar outros jornalistas e evitar que tornassem pblicas aes secretas polmicas da Casa Branca. O FBI recusou o pedido de Cheney de perseguir Hersh. O resultado final da investigao da Comisso Church foi um pesadelo para Cheney e seu movimento de fortalecimento do Executivo: a criao de comisses parlamentares37 legalmente incumbidas de inspecionar as operaes americanas de Inteligncia, inclusive aes secretas. Em 1980, o Congresso aprovou uma lei38 que exigia que a Casa Branca transmitisse s novas comisses de inteligncia informaes sobre todos os programas de espionagem. Cheney e Rumsfeld passariam a maior parte do resto de suas carreiras tentando cercear a autoridade dessas comisses. Ao trmino do governo liberal de Carter, Cheney concluiu que os poderes da presidncia tinham sido gravemente enfraquecidos.39 Durante os anos do governo Reagan, ele foi representante de Wyoming no Congresso, tendo apoiado com firmeza uma virada radical no sentido de dar mais poderes Casa Branca. Charlie Savage, ganhador do prmio Pulitzer, observa em seu livro Takeover: The Return of the Imperial Presidency and the Subversion of American Democracy [A tomada do poder: A volta da presidncia imperial e a subverso da democracia americana] que o Departamento de Justia de Reagan tentou pr fi m ao ressurgimento do Congresso40 [ocorrido] na dcada de 1970, emitindo um relatrio no qual se propunha que a Casa Branca pudesse desconsiderar leis que se imiscuam inconstitucionalmente no Poder Executivo. A Casa Branca de Reagan lanou mo de um instrumento que lhe permitia reinterpretar leis e emitir decretos presidenciais que burlassem a fiscalizao do Congresso. No incio da dcada de 1980, o governo Reagan estava profundamente empenhado em incentivar uma insurgncia direitista contra o governo sandinista de esquerda na Nicargua, na Amrica Central. A pedra de toque dessa campanha era o apoio secreto dos Estados Unidos aos esquadres da morte dos contras. Reagan autorizou tambm que fossem minados os portos em torno da Nicargua, o que levou ao julgamento dos Estados Unidos na Corte Mundial por uso ilegal de fora.4135Em 1984, quando finalmente o Congresso americano proibiu toda a ajuda americana aos contras, aprovando a Emenda Boland,42 alguns funcionrios da Casa Branca, liderados pelo coronel Oliver North, que trabalhava no CSN, deram incio a um plano clandestino de arrecadao de recursos para os rebeldes direitistas, em flagrante violao da lei americana. Esses recursos foram gerados pela venda ilcita de armas ao governo iraniano, violando o embargo de armas vigente. Catorze membros43 do governo Reagan, entre eles o secretrio de Defesa, seriam processados por envolvimento nessas operaes. Quando o escndalo Ir -contras se tornou pblico e o Congresso investigou com rigor suas origens, Cheney destacou -se como o principal defensor da Casa Branca na Colina do Capitlio, manifestando sua opinio minoritria44 em defesa do programa secreto que a maior parte de seus colegas tinha considerado ilegal. O relatrio minoritrio de Cheney defendendo a Casa Branca qualificava como histrica a investigao do caso Ir -contras. Ele afirma que a histria deixa pouca ou nenhuma dvida de que o presidente deve desempenhar o papel principal na conduo da poltica externa dos Estados Unidos e conclui que, portanto, as aes do Congresso no sentido de limitar o presidente nessa rea deveriam ser revistas com um grau considervel de ceticismo. Se prejudicarem o cerne das funes presidenciais em poltica externa, devem ser abolidas. O primeiro presidente Bush indultou os aliados de Cheney condenados por ligao com o caso Ir -contras, e Cheney permaneceu como secretrio de Defesa durante a Guerra de Golfo de 1991. Nessa posio, continuou dando forma a sua ideia de um Poder Executivo como poder supremo. Enquanto foi secretrio de Defesa, comeou a plantar as sementes de outro programa que ajudaria a consolidao da supremacia do Executivo: encomendou Halliburton, gigante do setor de infraestrutura para campos de petrleo, um plano de privatizao45 da burocracia das Foras Armadas na maior medida possvel. Cheney compreendeu bem cedo que o uso de empresas privadas para travar as guerras dos Estados Unidos criaria outra barreira para a fiscalizao e proporcionaria mais sigilo em torno do planejamento e da execuo dessas guerras, declaradas ou no. Ele passaria a comandar a Halliburton durante a maior parte da dcada de 1990, atuando como ponta de lana na criao de um exrcito corporativo secreto que finalmente se tornaria o fulcro de suas guerras abertas ou secretas quando ele voltasse Casa Branca, em 2001. Durante a era Clinton, Cheney tambm se dedicou ao Instituto Americano de Empreendedorismo,4636

de orientao neoconservadora, aperfeioando uma agenda poltica e militar que poderia ser implementada a partir do momento em que seu partido voltasse ao poder. Quando o segundo presidente Bush tomou posse, Cheney se tornou o mais poderoso vice -presidente da histria. E sem perda de tempo comeou a trabalhar para aumentar esse poder. Em 10 de setembro de 2001, um dia antes que o Boeing 757 que fazia o voo 77 da American Airlines se estatelasse contra a parede oeste do Pentgono, Donald Rumsfeld esteve naquele mesmo edifcio para fazer um de seus principais discursos como secretrio de Defesa. Havia dois retratos dele na parede47 um deles mostrava -o como o mais jovem secretrio de Defesa da histria americana, o outro como o mais velho. O Onze de Setembro ainda no tinha ocorrido, mas mesmo assim Rumsfeld ocupava a tribuna naquele dia para uma declarao de guerra. O assunto de hoje um adversrio que representa uma ameaa, uma grave ameaa,48 segurana dos Estados Unidos da Amrica, urrou Rumsfeld. Esse adversrio um dos ltimos basties do planejamento centralizado do mundo. Governa impondo planos quinquenais. A partir de uma nica capital, ele tenta impor suas exigncias a outros fusos horrios, continentes, oceanos e alm. Com coerncia brutal, reprime o pensamento livre e esmaga novas ideias. Atrapalha a defesa dos Estados Unidos e pe a vida de homens e mulheres fardados em risco. Rumsfeld veterano paladino da Guerra Fria disse a sua nova equipe que talvez esse adversrio se parea com a antiga Unio Sovitica, mas esse inimigo no existe mais: nossos antagonistas so hoje mais sutis e implacveis. Vocs poderiam pensar que estou falando de um dos ltimos dspotas decrpitos do mundo. Mas os tempos deles tambm esto quase no passado, e eles no podem se equiparar fora e ao tamanho deste adversrio. O adversrio est mais perto de casa. a burocracia do Pentgono. O que estava em jogo, afirmou, era grave uma questo de vida ou morte, ao fi m e ao cabo, de todos os americanos. Rumsfeld disse a sua plateia, composta de37antigos executivos da indstria da Defesa transformados em burocratas do Pentgono, que pretendia racionalizar as guerras americanas. Algum perguntaria: como possvel que o secretrio de Defesa ataque o Pentgono diante de sua prpria gente?, disse Rumsfeld plateia. Eu responderia que no tenho vontade de atacar o Pentgono, quero libert-lo. Precisamos salv-lo de si mesmo. A isso, Rumsfeld e sua equipe chamaram de revoluo nos assuntos militares.49 A equipe estrelada de poltica externa de Bush subiu ao poder com uma agenda de reorganizao radical das Foras Armadas americanas, para pr fim ao que eles chamavam de enfraquecimento das defesas nacionais da era Clinton e reativar as iniciativas de implantao de poderosos sistemas de msseis defensivos50 favorecidos por Reagan e outros paladinos da Guerra Fria. Como lembrou Douglas Feith, vice de Rumsfeld, a ameaa do terrorismo jihadista51 estava na lista de preocupaes do governo de Bush desde que este assumiu, no incio de 2001, mas chamava menos ateno do que a Rssia. O foco no terrorismo nos primeiros dias do governo se centrava nas ameaas representadas por Estados- -naes Ir, Sria, Coreia do Norte e Iraque e levou a uma mudana de regime. Cheney e Rumsfeld tinham passado a maior parte da dcada de 1990 traando um caminho que lhes permitisse redesenhar o mapa do Oriente Mdio, mas no consideraram a ameaa assimtrica representada pela Al -Qaeda e por outros grupos terroristas. O Iraque, e no a Al -Qaeda, era sua obsesso. Desde o incio,52 estvamos reunindo provas contra Hussein e buscando uma forma de derrub-lo e transformar o Iraque num novo pas, disse Paul ONeill, ex-secretrio do Tesouro. E se fizssemos isso, tudo estaria resolvido. Era s encontrar o modo de faz-lo. Essa era a questo. Que o presidente dissesse: Tudo bem. Encontrem uma maneira de fazer isso. Na segunda reunio do CSN, em 1o de fevereiro de 2001, Rumsfeld disse abertamente: O que queremos mesmo pensar em como ir atrs de Saddam. Ironicamente apesar de todo o bl -bl -bl de Rumsfeld sobre a debilidade da era Clinton e das acusaes dos neoconservadores contra os democratas, que teriam cochilado em relao vigilncia da Al -Qaeda , o prprio Rumsfeld, de incio, estava reticente sobre a iminncia da ameaa representada pelo grupo antes do Onze de Setembro. O jornalista Bob Woodward detalhou uma reunio que teria sido realizada em 10 de julho de 2001, dois meses antes dos ataques. O diretor da CIA, George J. Tenet, reuniu -se com Cofer Black, chefe do Centro de Contraterrorismo (Counterterrorism Center, CTC) da CIA em Langley, na Virgnia.38Os dois homens revisaram as informaes da Inteligncia americana sobre Bin Laden e a Al-Qaeda. Segundo Woodward, Black exps a situao, 53 que consistia em interceptao de comunicaes e outros recursos de Inteligncia altamente confidenciais que mostravam a crescente probabilidade de que em breve a Al-Qaeda atacaria os Estados Unidos. Tratava-se de uma massa de fragmentos e detalhes que, no entanto, conformavam um panorama convincente, to convincente que Tenet decidiu que ele e Black iriam imediatamente Casa Branca. Na poca, Tenet estava tendo dificuldade para pr em marcha um plano de ao imediato contra Bin Laden, em parte porque o secretrio de Defesa, Donald H. Rumsfeld, questionara todas as interceptaes e demais recursos de Inteligncia da Agncia de Segurana Nacional. possvel que tudo isso no passe de um grande engano?, Rumsfeld perguntara. Talvez fosse um plano para dimensionar as reaes e a defesa dos Estados Unidos. Depois de analisar os dados da Inteligncia com Black, Tenet ligou para a conselheira de Segurana Nacional, Condoleezza Rice, de seu carro, a caminho da Casa Branca. Quando Black e Tenet se encontraram com ela, naquele mesmo dia, segundo Woodward, sentiram que no estavam convencendo a conselheira. Ela foi corts, mas eles sentiram a rejeio. Mais tarde, Black diria que a nica coisa que no fizemos foi puxar o gatilho da arma que tnhamos apontada para a cabea dela. Foi ento que os avies pilotados pelos sequestradores do Onze de Setembro se chocaram contra as Torres Gmeas e o Pentgono. Na mesma hora, Rumsfeld e sua equipe vislumbraram que a luta contra o terrorismo no s no prejudicaria seus planos para o Iraque, mas poderia at mesmo proporcionar o argumento para coloc-los em prtica. E talvez mais importante: o momento que se seguiu ao ataque permitiu que Rumsfeld, Cheney e seu squito concretizassem as ambies que acalentavam havia muito tempo a respeito de um Executivo todo-poderoso, com o direito praticamente ilimitado de travar guerras passando por cima de todas as fronteiras, justificados, em sua opinio, por uma ameaa global segurana39 nacional. Os objetivos e planos de que eles falaram, a meia-voz, em reunies extraoficiais em pouco se tornariam a poltica oficial dos Estados Unidos.Quando a equipe de guerra do presidente Bush comeou a planejar uma resposta aos ataques do Onze de Setembro, Rumsfeld saiu na frente para pr o Iraque imediatamente na lista de alvos. Na preparao das reunies que Bush faria no fim de semana de 15-6 de setembro em Camp David, Feith dirigiu a Rumsfeld um memorando com a lista dos alvos prioritrios imediatos 54 para uma ao inicial: a Al-Qaeda, o Talib e o Iraque. A agenda estava clara55 desde a noite de 11 de setembro, contou-me o general Hugh Shelton, na poca chefe do EstadoMaior Conjunto e o mais antigo conselheiro militar do presidente Bush. Ele disse que Rumsfeld e Wolfowitz comearam a pressionar imediatamente em favor de um ataque ao Iraque. Precisamos entrar no Iraque. Precisamos fazer isso imediatamente, diziam eles. Isso apesar de no haver nenhum indcio56 que relacionasse [o Onze de Setembro] ao Iraque, disse Shelton. Mesmo assim, o rufar de tambores comeou naquela noite. Eles no ficaram nada satisfeitos quando cheguei ao gabinete com os planos que tinha [para responder aos ataques do Onze de Setembro] e viram que nenhum deles inclua o Iraque. Segundo Richard Clarke, em 12 de setembro o presidente Bush lhe disse trs vezes que procurasse uma partcula de indcio que ligasse o Iraque aos ataques. Wolfowitz enviou um memorando a Rumsfeld no qual dizia que mesmo uma probabilidade de 10%57 de Saddam Hussein estar por trs dos ataques significaria que a prioridade mxima deve ser voltada para eliminar a ameaa. Junto com Shelton do lado dos que se opunham invaso do Iraque estava um de seus antecessores, Colin Powell, secretrio de Estado. Uma dcada antes, durante a Guerra do Golfo, Powell tinha batido de frente com Wolfowitz58 na poca, subsecretrio de Defesa e com os lderes ideolgicos civis do Pentgono que pretendiam enviar tropas e tudo o mais a Bagd para depor Saddam. Mas Powell e outros conservadores tradicionais, como o ex-secretrio de Estado James Baker e Brent Scowcroft, ganharam a queda de brao. Agora, com os ataques do Onze de Setembro ainda frescos na memria, Wolfowitz e os idelogos tinham certeza de atingir seus objetivos. Em Camp David, disse Shelton, Wolfowitz continuou pressionando a favor de uma investida contra o Iraque, mesmo depois que Shelton, Powell e altos funcionrios da Inteligncia afirmaram que no havia indcios do envolvimento do pas nos ataques. Como a discusso estava centrada no Afeganisto e no ataque ao santurio da Al-Qaeda, exatamente como se esperava, Wolfowitz trouxe40a questo baila: Precisamos usar isso como motivo para atacar o Iraque, relembra Shelton. O dr. Emile Nakhleh, experiente analista da CIA na poca, tambm estava assessorando o presidente durante o perodo imediatamente posterior ao Onze de Setembro. Nakhleh estava na Agncia havia uma dcada e passara a maior parte desse tempo viajando por pases muulmanos com propsitos supostamente acadmicos. Tendo dado incio ao Programa de Anlise Poltica da Estratgia Islmica da CIA e na condio de professor residente especializado em grupos militantes islmicos e em governos do Oriente Mdio, ele era para a Agncia o equivalente a um general de trs estrelas. Em resposta s presses de Rumsfeld e Wolfowitz a favor de uma invaso do Iraque naquelas primeiras reunies, contou-me Nakhleh, em dado momento ele se levantou e disse a eles: Se vocs querem ir atrs daquele filho da puta [Saddam] para acertar contas com ele, sintam-se vontade, mas no temos informao de que Saddam esteja ligado Al-Qaeda ou ao terrorismo, e no temos informaes claras59 sobre armas de destruio em massa (Weapons of Mass Destruction, WMD). Nakhleh revelou que depois das primeiras reunies sobre o Onze de Setembro, minha concluso e a de outros analistas era de que eles estavam se encaminhando para a guerra. O trem tinha dado a partida, sem se importar com os dados apresentados pela Inteligncia. O presidente Bush engavetou as discusses sobre o Iraque durante algum tempo, tendo prometido em campanha no se envolver em questes de construo nacional. Disse que queria uma poltica externa modesta.60 Mas suas opinies mudavam rapidamente. Foi preciso algum tempo e mais de uma dzia de visitas 61 de Cheney e seu chefe de gabinete, Scooter Libby, CIA para que se fabricassem os indcios de um programa de produo de WMD e assim se pusessem em prtica os planos de invaso do Iraque. Nesse nterim, porm, eles tiveram de travar uma guerra contra a fiscalizao externa do Executivo e seu dever de prestar contas. A campanha da CIA e das Foras Especiais no Afeganisto foi, no incio, um estardalhao. Enquanto a guerra do Afeganisto gerava manchetes espetaculares que trombeteavam a agilidade e a deciso da campanha militar americana contra o dbil governo talib, Cheney, Rumsfeld e seus parlamentares neoconservadores estavam atarefados conspirando em favor de uma guerra global. Essa guerra se estenderia frente interna, com escuta telefnica no autorizada, priso em massa62 de rabes, paquistaneses e outros imigrantes muulmanos, e uma prodigiosa reverso das liberdades civis dos cidados americanos. Para travar essa guerra, eles deveriam41desmantelar e manipular uma burocracia de fiscalizao e exame legal que tinha sido construda ao longo de sucessivos governos. Tudo isso abriria as portas para uma bateria de tticas que j tinham sido empregadas mas agora poderiam ser mobilizadas numa escala sem precedentes: aes secretas, operaes ilegais, prises secretas, sequestros e o que passou a ser uma nova designao de assassinato: a caa de Alvos de Grande Valor. Saindo da era Reagan-Bush, na qual a instituio da ao secreta foi prejudicada pelo escndalo Ir-contras, o presidente Clinton instaurou novos mecanismos de fiscalizao e criou um rigoroso sistema legal63 para a aprovao de aes secretas letais. Quando Clinton, ou seu conselheiro de Segurana Nacional, propunha uma ao secreta, a proposta tinha de passar por um sistema de fiscalizao interna: primeiro pela CIA, onde a advocacia geral da Agncia analisava sua legalidade antes de pass-la para novos exames (e, possivelmente, para a proposio de mudanas em decorrncia da apreciao legal) por parte de duas distintas comisses da CIA o Grupo de Planejamento de Aes Secretas e o Grupo de Anlise de Aes Secretas. Depois que a ao proposta era analisada e modificada por essas comisses, voltava rea jurdica da CIA para uma anlise legal final e depois era devolvida Casa Branca, onde seria submetida ao Grupo de Trabalho Interagncias para Aes Secretas, integrado por representantes de diversos rgos do Poder Executivo. Esse grupo analisava as possveis consequncias da ao secreta e mais uma vez apreciava sua legalidade. Depois de um exame final pelos chefes e seus suplentes de rgos relevantes, a ao era apresentada ao presidente para autorizao. Aes desse tipo raramente eram aprovadas. Quando o presidente Bush tomou posse, no incio de 2001, seu governo indicou que pretendia manter muitos desses mecanismos de controle. A Diretriz Presidencial de Segurana Nacional-I (NSPD-I), assinada por Bush em 13 de fevereiro de 2001, refletia em boa medida64 o sistema da era Clinton para a aprovao de aes secretas. Contudo, em maro Bush pediu conselheira de Segurana Nacional, Condoleezza Rice, que solicitasse CIA a preparao de uma nova srie de autorizaes 65 para a ao secreta no Afeganisto. Clarke e seus congneres da CIA que comandavam a Unidade Bin Laden comearam a projetar aes secretas que tinham como alvo a Al-Qaeda, enquanto o governo propunha reforos nas verbas da CIA para o combate ao terrorismo. Clarke insistiu muito num golpe42contra a Al-Qaeda em retaliao66 ao ataque a bomba contra o navio USS Cole na costa do Imen em outubro de 2000. Como acontecera na era Clinton, muitos dos planos tinham como alvo lderes da Al-Qaeda no Afeganisto. No fim de maio, Rice e Tenet se reuniram com Clarke, Cofer Black e com o chefe da Unidade Bin Laden para discutir a ofensiva contra a Al-Qaeda. Na poca, a CIA praticava aes para obstaculizar Bin Laden, mas entre aqueles altos funcionrios do governo havia o consenso de que era preciso quebrar a espinha67 da Al-Qaeda. Eles endossaram tambm a ajuda secreta ao Uzbequisto,68 mas se abstiveram de oferecer ajuda significativa Aliana do Norte e a outros grupos que combatiam o Talib no Afeganisto. Em outras palavras, deram continuidade poltica da era Clinton para a Al-Qaeda e o Afeganisto, ainda que com mais dinheiro e mais foco. Um esboo da NSPD de combate ao terrorismo comeou a circular em junho. Stephen Hadley, vice-conselheiro de Segurana Nacional, qualificou o programa da Comisso do Onze de Setembro como assumidamente ambicioso,69 destacando uma iniciativa plurianual que envolvia todos os instrumentos do poder nacional, inclusive um programa de aes secretas de longo alcance. Mas este ltimo ainda passaria por cinco reunies 70 de adjuntos antes de ser apresentado aos lderes. Numa dessas reunies, em agosto de 2001, a Comisso de Adjuntos do CSN concluiu71 que no era ilegal para a CIA matar Bin Laden ou um de seus imediatos com um ataque do drone Predator. Embora o uso de drones fosse se tornar uma das preferncias do esquema americano de assassinatos dirigidos, antes do Onze de Setembro havia muitas divergncias sobre o tema entre o pessoal de Bush envolvido no combate ao terrorismo. No ltimo ano do governo Clinton, os Estados Unidos comearam a operar drones 72 no Afeganisto a partir de uma base americana secreta no Uzbequisto chamada K2.73 J havia um projeto de criao do drone armado, mas o artefato ainda no estava em operao.74 Cofer Black afirmava75 que os drones no deviam ser usados nem mesmo para reconhecimento, sugerindo que o governo esperasse at que ele pudesse ser armado. Lembrou que um Predator tinha sido localizado sobre territrio afego em 2000, levando o governo talib a mobilizar caas MiG. No acredito que a importncia do reconhecimento seja maior que o risco de encerrarmos o programa por culpa dos nimos exaltados pela imagem de talibs desfilando com um Predator carbonizado diante das cmeras d a CNN,76 afirmou Black. Afinal, o governo decidiu engavetar 77 o uso de drones de reconhecimento43no Afeganisto at que eles pudessem ser armados para atacar. Mas enquanto Black, Clarke e outros membros da equipe de contraterrorismo pressionavam a favor do uso do Predator para operaes de assassinato dirigido, as principais lideranas da CIA manifestavam srias preocupaes com a possibilidade de pr em prtica esse programa, fazendo eco a muitas das preocupaes do pessoal de contraterrorismo da era Clinton com a criao de listas negras. Segundo a Comisso do Onze de Setembro, Tenetem especial punha em questo se ele, como diretor da Agncia Central de Inteligncia, devia operar um Predator armado. Esse um campo novo, 78 nos disse ele. Tenet formulava perguntas-chave: Qual a cadeia de comando? Quem efetua o disparo? Os lderes dos Estados Unidos se sentem bem tendo a CIA fazendo isso, escapando ao comando e ao controle militares normais? Charles Allen, diretor assistente da CIA para coleta de informaes 79 entre 1998 e 2005, disse que tanto ele quanto o nmero trs da agncia, A. B. Buzzy Krongard, ficariam felizes em puxar o gatilho,80 mas Tenet estava apavorado e acrescentou que nenhum funcionrio da CIA tinha autoridade para usar drones na eliminao sumria de pessoas, mesmo tratando-se de terroristas. Enquanto se desenrolavam esses debates no interior da Agncia, faltava apenas uma semana para o Onze de Setembro quando o governo Bush marcou uma reunio de primeiro escalo para discutir a ameaa da Al-Qaeda. Na reunio de 4 setembro,81 um anteprojeto da NSPD foi oficialmente apresentado e aprovado depois de breve discusso para ser levado assinatura de Bush. A conselheira de Segurana Nacional Condoleezza Rice teria dito ao presidente que em sua opinio eles levariam trs anos para pr em prtica82 o ambicioso programa. Em 10 de setembro, Hadley continuava pressionando o diretor Tenet e a CIA a preparar esboos de autorizaes legais para o amplo programa de aes secretas83 previsto no anteprojeto da diretriz presidencial. Hadley instou Tenet a preparar tambm documentos que autorizassem uma ampla variedade de outras atividades secretas, inclusive capturar ou usar fora letal contra elementos de comando e controle da Al-Qaeda. De acordo com o relatrio da Comisso do Onze de Setembro, esse captulo devia detalhar documentos da era Clinton e ser amplo o bastante para abranger quaisquer aes secretas relacionadas [a Osama bin Laden] que sejam consideradas. Embora o governo Bush estivesse trabalhando44para ampliar o alcance do uso de fora letal contra Bin Laden e seus principais subordinados, o processo foi marcado pelas mesmas preocupaes manifestadas durante a era Clinton sobre a concesso de autorizao generalizada para matar. A Casa Branca de Bush estava enveredando por um caminho semelhante ao do governo Clinton, tentando burlar a proibio de assassinar e, ao mesmo tempo, exigindo anlise minuciosa de cada proposta de operao letal. No Onze de Setembro, tudo isso ia mudar. Quando as Torres Gmeas desmoronaram, a mesma coisa aconteceu com o sistema de fiscalizao e anlise das operaes secretas letais cuidadosamente construdo no transcurso da dcada anterior. S uma crise84 real ou percebida como tal produz uma mudana verdadeira. Assim escreveu o cone conservador Milton Friedman em seu livro Capitalismo e liberdade. Friedman foi um importante assessor de sucessivos governos republicanos e exerceu forte influncia sobre muitos funcionrios da Casa Branca de Bush. Orientou Rumsfeld85 no comeo de carreira, assim como Cheney, e destacados neoconservadores no governo pediam-lhe conselho86 com regularidade. Friedman apregoava: Quando essa crise ocorre, 87 as aes empreendidas dependem das ideias vigentes. Esta , acredito, nossa funo bsica: desenvolver alternativas para as polticas existentes, mant-las vivas e disponveis at que o politicamente impossvel se torne politicamente inevitvel. Para os altos funcionrios das reas de Segurana Nacional e Defesa de Bush, que passaram os oito anos de governo Clinton ou mais desenvolvendo essas alternativas, os ataques do Onze de Setembro e o apoio quase unnime do Congresso controlado pelos democratas ofereceram uma oportunidade imperdvel de tornar suas ideias inevitveis. Numa misteriosa premonio, os neoconservadores do PNAC tinham afirmado em seu relatrio Reconstruo das defesas americanas, pouco mais de um ano antes do Onze de Setembro, que o processo de transformao, mesmo que traga mudanas revolucionrias, provavelmente ser longo, a menos que ocorra alguma catstrofe ou evento catalisador como um novo Pearl Harbor.88 Cheney e Rumsfeld podem no ter sido capazes de ver o45Onze de Setembro chegando, mas mostraram-se mestres em explorar os ataques. O ataque de Onze de Setembro foi um desses acontecimentos histricos to poderosos que incentiva novos modos de pensar e perturba os complacentes, lembrou Feith. Ele criou a oportunidade de dar a muitas pessoas amigos e inimigos, nos Estados Unidos e fora deles uma nova perspectiva. Rumsfeld, Wolfowitz e eu achamos que o presidente tem o dever de usar sua tribuna89 privilegiada. De acordo com a Constituio americana, o Congresso, no o presidente, que tem o direito de declarar guerra. Mas 72 horas depois do Onze de Setembro, o Congresso deu um passo radical na direo oposta. Em 14 de setembro de 2001, a Cmara e o Senado deram ao presidente Bush plenos poderes para travar uma guerra global, aprovando a Autorizao para Uso de Fora Militar (Authorization for Use of Military Force, AUMF). O documento estabelecia que o presidente fica autorizado a usar toda a fora necessria e adequada90 contra naes, organizaes e pessoas que em juzo tenham planejado, autorizado, cometido ou ajudado os ataques terroristas cometidos em Onze de Setembro de 2001, ou dado abrigo a essas organizaes ou pessoas, para evitar qualquer ato futuro de terrorismo internacional contra os Estados Unidos por parte dessas naes, organizaes e pessoas. O uso do termo pessoas foi interpretado pelo governo como um sinal verde para o assassinato. A autorizao foi aprovada pela Cmara com um nico voto contra e pelo Senado por unanimidade.91 O nico voto contra a AUMF foi da representante democrata liberal Barbara Lee, da Califrnia. Por mais difcil que possa ser esse voto, algum de ns deve alertar sobre a necessidade de moderao,92 disse ela, com a voz embargada, quando falou no plenrio da Cmara naquele dia. Deve haver alguns de ns 93 que digam: vamos dar um passo atrs por um momento e pensar nas implicaes de nossos atos de hoje vamos compreender melhor suas consequncias, disse ela em sua justificativa de voto. Precisamos ter o cuidado de no embarcar numa guerra cujo fim no se v sem ter uma estratgia de sada nem um alvo definido. O discurso de dois minutos de Barbara Lee foi toda a resistncia oposta pelo Congresso ao pedido de plenos poderes e autorizao para a guerra que a Casa Branca pedia. Fortalecido pelo esmagador aval bipartidrio a uma guerra global e sem fronteiras contra um inimigo sem pas, o governo Bush declarou o mundo um campo de batalha. Temos de trabalhar, porm, como uma espcie de lado negro,94 por assim dizer, proclamou Dick Cheney no programa Meet the Press da NBC em 16 de setembro de 2001, antecipando o que estava por vir. Temos de trabalhar46nas sombras, no mundo da Inteligncia. Muito do que temos a fazer deve ser feito em sigilo, sem nenhuma discusso, usando recursos e mtodos acessveis a nossos rgos de Inteligncia, se quisermos ter xito. O presidente assinou publicamente a AUMF, tornando-a lei em 18 de setembro de 2001, mas a resoluo que assinara secretamente na vspera foi ainda mais relevante. A diretriz presidencial secreta,95 que permanece sigilosa at hoje, concedia CIA autorizao para capturar e manter em custdia militantes suspeitos no mundo inteiro, o que levaria criao de uma rede daquilo que os funcionrios do governo chamavam internamente de lugares negros, prises secretas que podiam ser usadas para encarcerar e interrogar pessoas. Acabava tambm com os empecilhos representados pela fiscalizao e pelo exame interagncias do processo de autorizao de assassinatos dirigidos. Talvez ainda mais importante, acabava com a exigncia da assinatura do presidente para cada operao secreta letal. Os advogados do governo concluram que a proibio de assassinato no se aplicava a pessoas classificadas como terroristas, o que dava grande liberdade CIA para autorizar operaes de morte. O presidente Bush queria que a CIA tomasse a frente. Tinha o homem certo para a funo. Cofer Black passou grande parte de sua carreira na frica, atuando nas sombras. Seu batismo de fogo foi em Zmbia, durante a guerra da Rodsia; passou depois Somlia e esteve na frica do Sul96 durante a guerra brutal do regime de apartheid contra a maioria negra. Durante sua permanncia no Zaire,97 Black trabalhou no programa de armas secretas do governo Reagan que pretendia armar foras anticomunistas em Angola. No incio da dcada de 1990, muito antes da maior parte dos integrantes da comunidade de contraterrorismo, Black tornou-se obcecado por Bin Laden e declarou-o a grande ameaa a ser neutralizada. De 1993 a 1995, trabalhou disfarado de diplomata na embaixada dos Estados Unidos em Cartum, Sudo, onde servia na verdade como chefe da estao da CIA.98 Bin Laden estava tambm no Sudo, construindo a rede internacional que, ao trmino do perodo de Black, a CIA chamaria de Fundao Ford do terrorismo islmico sunita.99 Os agentes de Black que perseguiam Bin Laden trabalhavam nas condies da diretriz operacional100 da era Clinton, que restringia seu trabalho coleta de informaes sobre Bin Laden e sua rede. Black queria autorizao para matar o saudita bilionrio, mas a Casa Branca de Clinton ainda no tinha assinado10147a autorizao, como viria a fazer depois do ataque a bomba contra embaixadas americanas na frica. Infelizmente, naquele tempo a licena para matar chamada oficialmente de Documento Letal era tabu na organizao,102 disse Billy Waugh, agente da CIA que trabalhou com Black no Sudo. No comeo da dcada de 1990, fomos forados a aderir ao parecer legal hipcrita e aos bons samaritanos. Entre as ideias rejeitadas de Waugh estava um suposto compl para assassinar Bin Laden em Cartum e jogar o corpo na embaixada iraniana,103 numa tentativa de culpar Teer, ideia que, segundo Cofer Black, Waugh adorava. Nos primeiros dias do governo Bush, Black comeou a pressionar novamente na tentativa de conseguir autorizao para pegar Bin Laden. Ele costumava vir a meu gabinete104 e me divertia contando sobre todas as vezes que tinha tentado fazer alguma coisa com Bin Laden antes do Onze de Setembro, lembra Lawrence Wilkerson, chefe de gabinete do secretrio de Estado Colin Powell na poca. Segundo Wilkerson, Black dizia que por causa da falta de coragem da [Fora] Delta e por falta de competncia burocrtica da CIA, ele nunca pde fazer nada. Black teria dito a Wilkerson que todas as vezes que apresentam uma oportunidade Delta, por exemplo, eles chegam com essa lista de perguntas que precisam ser respondidas, como: Que tipo de prego existe na porta?. Que tipo de tranca tem a porta? Qual o nmero de srie da tranca?, e toda essa patacoada, que no passa das besteiras de sempre das Foras de Operaes Especiais porque no querem fazer nada. Para grande alegria de Black, todos esses cuidados em breve seriam descartados, como tudo o mais. Em 6 de agosto de 2001,105 o presidente Bush estava em sua fazenda de criao de cavalos, em Crawford, Texas, onde recebeu o briefing dirio intitulado Bin Laden decidido a atacar os Estados Unidos.106 Mencionava duas vezes a possibilidade de que ativistas da Al-Qaeda tentassem sequestrar avies, dizendo que as informaes do FBI indicam um modelo de atividade suspeita nos [Estados Unidos] compatvel com a preparao de sequestro ou outros tipos de ataque, inclusive levantamentos recentes em edifcios do governo federal em Nova York. Nove dias depois, Black falou numa conferncia secreta do Pentgono sobre contraterrorismo. Seremos atingidos em breve,107 disse ele. Muitos americanos morrero, e pode acontecer nos Estados Unidos.48Depois do Onze de Setembro, Bush e Cheney reescreveram as regras do jogo. Black j no precisaria apontar uma arma para a cabea de algum a fim de conseguir licena para operaes letais. Minha emoo pessoal foi porque agora a coisa comeou oficialmente, recordou Black. A analogia seria a do cachorro acorrentado que agora solto. Eu simplesmente no aguentava esperar.108 Na primeira reunio que teve com o presidente Bush depois dos ataques de Onze de Setembro, Black detalhou o modo como os paramilitares da CIA se mobilizariam no Afeganisto para caar Bin Laden e seus escudeiros. Quando acabarmos, eles vo ficar com a boca cheia de formigas,109 prometeu Black, numa tirada que no crculo mais restrito do governo valeu-lhe o apelido de O Cara da Boca Cheia de Formigas. Dizia-se que o presidente adorava o jeito de Black. Quando ele disse a Bush que a operao no seria incruenta, o presidente declarou: Vamos em frente.110 Guerra guerra. Estamos aqui para ganhar. Philip Giraldi, funcionrio de carreira da CIA especializado em recrutamento e treinamento de agentes que frequentou The Farmer [A Fazenda] unidade de treinamento na rea rural da Virgnia junto com Black, lembra-se de t-lo encontrado por acaso no Afeganisto, pouco depois que as primeiras equipes americanas l pousaram, aps o Onze de Setembro. Fazia muitos anos que eu no o via, disse Giraldi. Fiquei surpreso111 ao constatar como ele tinha se tornado tacanho. Falava o tempo todo em trazer a cabea de Bin Laden numa bandeja e com isso queria dizer exatamente a cabea de Bin Laden numa bandeja. Giraldi disse que Black tinha uma viso limitada das coisas e detestava os aliados europeus mais prximos dos Estados Unidos, inclusive os britnicos: Ele no confia nem um pouco neles. Quando se tratava da emergente guerra americana global, contou Giraldi, Black era um verdadeiro entusiasta, o que pouco comum na Agncia. L em geral as pessoas so meio cticas. Se voc um funcionrio da Inteligncia em campo, logo fica ctico em relao a uma poro de coisas. Mas Cofer era um desses entusiastas. Em 19 de setembro, a equipe da CIA de codinome Quebra-Queixo foi mobilizada. Black deu a seus homens instrues diretas e macabras. Cavalheiros, quero lhes dar suas instrues 112 e quero que fiquem bem claras. Discuti o assunto com o presidente e ele est de pleno acordo, disse Black ao agente secreto da CIA Gary Schroen e sua equipe. No quero capturar Bin Laden e seus bandidos, quero-os mortos, esclareceu. Eles devem ser mortos. Quero ver fotos da cabea deles espetadas em lanas. Quero despachar a cabea de Bin Laden numa caixa de gelo seco. Quero poder mostrar a cabea de Bin Laden49ao presidente. Prometi a ele que faria isso. Schroen disse que foi a primeira vez em seus trinta anos de carreira que lhe ordenaram assassinar um adversrio em vez de tentar captur-lo. Black perguntou se tinha sido claro. Perfeitamente claro, Cofer, respondeu Schroen. No sei onde vamos encontrar gelo seco aqui no Afeganisto, mas com certeza conseguiremos fabricar lanas no campo. Depois Black explicou por que aquilo seria necessrio. Precisamos de algum DNA,113 disse ele. Essa uma boa maneira de obt-lo. Pegue um faco, decepe a cabea dele e pronto, voc ter um bom punhado de DNA, e assim vai poder examin-lo e fazer testes. melhor do que arrastar o corpo inteiro! Quando diplomatas russos que se reuniram com Black em Moscou antes da invaso total do Afeganisto lhe lembraram a derrota dos soviticos para os mujahedin apoiados pelos Estados Unidos, Black revidou: Vamos mat-los, disse. Vamos espetar a cabea deles em lanas. Vamos abalar o mundo deles.114 Num prenncio das coisas que estavam por vir, as operaes secretas organizadas por Black de imediato depois do Onze de Setembro se apoiavam firmemente em funcionrios terceirizados. A equipe inicial da CIA era composta de cerca de sessenta membros antigos da Fora Delta, ex-SEALs e outros operadores das Foras Especiais que trabalhavam para Black como terceirizados independentes e constituam a maior parte do primeiro grupo de americanos 115 que foram ao Afeganisto depois do Onze de Setembro. No incio, a lista de pessoas pr-selecionadas como alvos de assassinato dirigido era pequena: as estimativas oscilam entre sete e vinte e poucas pessoas,116 includos Bin Laden e seu segundo homem, Ayman al Zawahiri. E as operaes estavam dirigidas basicamente para o Afeganisto. Em 7 de outubro, o presidente Bush lanou oficialmente117 a operao Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom, OEF) e as Foras Armadas americanas comearam uma srie de ataques areos, seguidos de invaso por terra. Nos primeiros dias da campanha do Afeganisto, o pessoal da CIA e as Foras Especiais trabalharam em conjunto. Estamos lutando pelos objetivos do contraterrorismo no palco afego, escreveu o chefe de Operaes Especiais Contra terroristas num memorando dirigido ao pessoal da CIA em outubro de 2001. E embora visando a grandes objetivos num terreno incerto e esquivo, lutamos tambm pelo futuro das operaes blicas integradas da CIA/DoD contra o terrorismo no mundo todo. Vamos cometer erros enquanto mapeamos novo territrio50e testamos novas metodologias, mas nossos objetivos so claros e nosso conceito de parceria slido. 118 Na poca, a CIA tinha uma capacidade paramilitar muito reduzida,119 mas como principal rgo encarregado da caa aos culpados dos ataques do Onze de Setembro, podia requisitar foras das Operaes Especiais para desempenhar suas misses.Rumsfeld no tinha interesse em servir de equipe de apoio CIA, e a crescente projeo que a Agncia vinha ganhando na guerra que se desenrolava no caiu bem para o secretrio de Defesa, que no podia fazer nada alm de zombar do governo Clinton. Ele, Cheney e seus aliados neoconservadores achavam que a CIA tinha se tornado um plido reflexo liberal do que fora no passado. A ao secreta, pensavam, tinha sido interrompida por advogados e por uma intromisso desnecessria da fiscalizao por parte do Congresso, o que atrapalharia aquilo que eles viam como operaes de vida ou morte que deviam ser executadas em sigilo. Embora Cofer Black tivesse o mesmo ardor de Rumsfeld no que diz respeito a matar terroristas, isso no bastava. Rumsfeld no queria nada com os burocratas fiscalizadores da CIA e no queria ter suas foras sob o controle da Agncia. Cheney deixou claro que naquele governo os advogados da CIA e as comisses parlamentares no seriam vistos como defensores da lei ou parte de um sistema necessrio de controles. Como Rumsfeld gostava de dizer, tais instituies eram um estorvo para a iniciativa de luta contra os terroristas. Os advogados seriam consultados para dar sua chancela a polticas secretas, e somente alguns membros selecionados do Congresso seriam ouvidos. Os briefings ao Congresso, inclusive aqueles de pleno acesso obrigatrio Gangue dos Oito a elite dos membros da Cmara e do Senado que era historicamente informada das operaes da Inteligncia relacionadas a aes secretas seriam censurados e redigidos internamente na Casa Branca, o que significa que os legisladores receberiam uma verso assptica dos fatos. Nos meses que se seguiram ao Onze de Setembro, Cheney, Rumsfeld e suas equipes empreenderam diversas iniciativas importantes que visavam garantir que nenhuma burocracia atravessaria seu caminho quanto aos planos de usar as foras americanas mais sinistras sem controle externo. Cheney queria dissuadir a CIA da ideia de que ela tinha algum tipo de independncia. Em vez de ser o principal verificador de dados e mecanismo de Inteligncia do presidente, a CIA, em seu novo51papel, poria em prtica polticas predeterminadas. Cheney queria eliminar os exames interagncias das aes letais propostas, como tinha sido praxe na era Clinton. Logo depois do Onze de Setembro, a Casa Branca reuniu um grupo de advogados dos altos escales do governo cuja misso seria justificar legalmente a tortura, o sequestro e o assassinato. O grupo, que se autodenominou Conselho de Guerra,120 era liderado por David Addington, assessor jurdico e conselheiro de longa data de Cheney e seu colaborador no relatrio minoritrio121 defendendo a operao Ir-contras. Tambm faziam parte do grupo122 o assessor jurdico da Casa Branca Alberto Gonzlez e seu adjunto, Tim Flanigan; o chefe da rea jurdica do Pentgono, William Haynes; e o vice-procurador-geral adjunto John Yoo. O Conselho de Guerra excluiu deliberadamente123 o chefe da rea jurdica do Departamento de Estado e outros advogados das Foras Armadas e do Departamento de Justia que historicamente eram includos no exame legal das estruturas de combate ao terrorismo. Esse ponto estava claro: o grupo fora criado para produzir a justificativa legal de tticas empregadas numa guerra suja e secreta, e no para avaliar independentemente a legalidade dessas tticas. Para travar sua guerra global, a Casa Branca fez amplo uso das tticas que Cheney vinha defendendo havia muito. Seria fundamental para sua campanha do lado negro o uso de autorizaes presidenciais que, por sua natureza, limitariam muito qualquer fiscalizao pelo Congresso. Segundo a Lei de Segurana Nacional de 1947, exige-se que o presidente emita uma autorizao antes de qualquer ao secreta. A lei determina que a ao deve estar de acordo com a lei e a Constituio do pas.124 A autorizao presidencial assinada por Bush em 17 de setembro de 2001 foi usada para criar um programa secreto altamente confidencial cujo nome em cdigo era Greystone125 ou GST, como se mencionava nos documentos internos, para servir de guarda-chuva126 sob o qual muitas das atividades mais clandestinas e legalmente discutveis seriam autorizadas e postas em prtica nos primeiros dias da Guerra Global contra o Terror (Global War on Terrorism, GWOT). Baseava-se na interpretao do governo sobre a AUMF aprovada pelo Congresso, que declarava alvo legtimo qualquer suspeito de ligao com a AlQaeda, em qualquer parte do mundo. Com efeito, a autorizao presidencial declarava legais e previamente autorizadas todas as aes secretas, o que, segundo os crticos, violava o esprito da Lei de Segurana Nacional. Com o GST, foi criada uma srie de programas compartimentalizados 127 que, juntos, constituam efetivamente uma operao global de assassinato e sequestro. A autorizao para52assassinatos dirigidos foi radicalmente simplificada. Essas operaes j no precisavam da aprovao direta do presidente caso a caso. Black, chefe do CTC, agora podia ordenar diretamente os ataques.128 O dia em que Bush assinou o memorando de notificao que autorizava, entre outras iniciativas, o programa de Alvos de Grande Valor, o corpo de funcionrios do CTC e congneres estrangeiros selecionados foram informados sobre isso em Washington, DC. Cofer [Black] apresentou uma nova autorizao presidencial que amplia nossas opes 129 para tratar dos alvos terroristas uma das poucas vezes que uma coisa assim aconteceu desde que a CIA foi proibida oficialmente de praticar assassinatos, em 1976, lembra Tyler Drumheller, antigo chefe das operaes clandestinas da CIA na Europa. Estava claro que o governo via aquilo como uma guerra que seria travada, em grande parte, por efetivos da Inteligncia. Isso exigia uma nova forma de operar. John Rizzo, advogado veterano da CIA que colaborou na redao da autorizao, diria mais tarde que nunca em minha experincia participei ou tive notcia de uma autorizao presidencial de tamanha abrangncia e to agressiva. Foi simplesmente extraordinrio.130 O GST era tambm veculo das operaes de captura conhecidas como transferncias internacionais de presos. Com amparo do GST, a CIA comeou a se relacionar com rgos de Inteligncia de diversos pases para estabelecer acordos 131 que lhe permitisse atuar em seus territrios e criar prises clandestinas em lugares onde as pessoas pudessem ficar detidas, ser submetidas a interrogatrio e mantidas distncia da Cruz Vermelha, do Congresso americano e de qualquer coisa vagamente assemelhada a um sistema judicirio. Esses acordos davam imunidade no s aos funcionrios do governo americano como tambm a terceirizados privados.132 O governo no queria levar suspeitos de terrorismo a julgamento porque eles recorreriam a advogados,133 disse Jose Rodriguez, que na poca comandava o Diretrio de Operaes, responsvel por toda a ao posta em prtica pela agncia. Nosso trabalho, antes de mais nada, obter informao. Para isso, os interrogadores eram autorizados a usar tcnicas hediondas, s vezes medievais, muitas das quais foram aperfeioadas pelo estudo das tticas de tortura dos inimigos dos Estados Unidos. Os advogados do Conselho de Guerra emitiram uma srie de documentos legais,134 mais tarde apelidados de Memorandos da Tortura pelas organizaes defensoras dos direitos humanos e das liberdades civis, que procuravam racionalizar essas tticas como sendo necessrias e diferentes da tortura. Precisamos levar todos os integrantes do governo a agir como homens 13553 e nos dar as autorizaes necessrias, lembrou Rodriguez, que, com Black, se tornaria um dos principais arquitetos da poltica da tortura. Eu j tinha tido, na Agncia, uma poro de experincias em que tivemos de assumir a culpa. E no estava disposto a permitir que isso acontecesse com as pessoas que trabalham para mim. A CIA comeou a manter prisioneiros em segredo no Afeganisto em dependncias do campo de pouso de Bagram, que tinha sido confiscado pelas foras americanas. No incio, tratava-se de uma operao localizada, com prisioneiros amontoados em contineres de navio. Com o tempo, ela se expandiu para um punhado de outros lugares discretos, entre eles uma priso subterrnea perto do aeroporto de Cabul e uma velha olaria136 ao norte da cidade. Funcionando como uma subestao da CIA, a olaria, que se tornou conhecida como Salt Pit137 [salina], seria usada para manter prisioneiros, inclusive aqueles que tinham sido capturados em outros pases e levados para o Afeganisto. Os funcionrios da CIA que trabalharam em contraterrorismo desde os primeiros dias depois do Onze de Setembro dizem que a ideia de uma rede de prises secretas no mundo todo no era inicialmente um plano de grandes propores, formando-se138 medida que as operaes se tornavam mais abrangentes. A princpio, a CIA cogitou em usar navios e ilhas remotas como as ilhotas desabitadas que salpicam o lago Kariba139 em Zmbia como possveis locais de deteno nos quais pudessem interrogar suspeitos de ligao com a Al-Qaeda. No fim das contas, a CIA construiu sua prpria rede de prises clandestinas em pelo menos oito pases, entre eles Tailndia, Polnia, Romnia, Mauritnia, Litunia e na ilha de Diego Garcia, no oceano ndico. No incio, porm, por carecer de prises secretas prprias, a Agncia comeou a enviar os suspeitos 140 para o Egito, Marrocos e Jordnia para interrogatrio. Usando os servios de Inteligncia de outros pases, podiam torturar livremente141 os prisioneiros sem as incmodas averiguaes do Congresso.Nos primeiros momentos do programa GST, o governo Bush enfrentou pouca resistncia do Senado e da Cmara. Democratas e republicanos davam imenso espao ao governo para travar sua guerra secreta. Por sua parte, a Casa Branca s vezes se negava a informar detalhes 142 de suas operaes secretas s comisses parlamentares de fiscalizao, mas pouco se protestava contra essa reserva. O governo tomou tambm a deciso unilateral de reduzir a Gangue dos Oito143 a apenas quatro membros: os presidentes de ambas as cmaras legislativas e os54presidentes das comisses de Inteligncia da Cmara e do Senado. Esses congressistas ficaram proibidos de discutir as informaes recebidas com quem quer que fosse. Na prtica, isso queria dizer que o Congresso no tinha controle algum sobre o programa GST. Era exatamente o que Cheney queria. O governo Bush no foi o criador do programa de transferncia internacional de presos da CIA. Ele teve incio no governo Clinton, em meados da dcada de 1990, quando foi assinada uma resoluo presidencial144 que autorizava a CIA e as Foras de Operaes Especiais, juntamente com o FBI, a capturar suspeitos de terrorismo no mundo inteiro sem respeitar tratados bilaterais de extradio ou convenes internacionais. A resoluo de Clinton tambm permitia que funcionrios do governo americano enviassem suspeitos de terrorismo para o Egito,145 onde, bem longe das leis americanas e dos direitos dos presos, eles podiam ser interrogados por agentes da mukhabarat (polcia secreta) que no estavam sujeitos s restries americanas sobre a tortura. O programa exigia autorizao direta146 para cada operao de captura. No governo Clinton, foram efetuadas mais de setenta transferncias.147 Em alguns casos, avies americanos pousavam nos pases e levavam os presos de volta aos Estados Unidos para julgamento. Entre as transferncias internacionais de presos de maior destaque estavam a de Mir Aimal Kasi,148 paquistans que baleou e matou dois funcionrios da CIA diante do quartel-general da Agncia em 1993 e foi recambiado do Paquisto em 1997; a de Ramzi Yousef,149 o crebro do atentado a bomba contra o World Trade Center em 1993; a de Wali Khan Amin Shah,150 que planejou explodir numerosos avies americanos ao mesmo tempo em 1995; e a de Tsutomu Shirosaki,151 membro do Exrcito Vermelho japons, que praticou um atentado a bomba contra a embaixada americana em Jacarta e acabou capturado em 1996. Todas essas transferncias se fizeram sob o amparo de mandados de juzes americanos e terminaram com julgamentos civis. No entanto, em casos em que os Estados Unidos preferiram a Inteligncia justia, os presos foram levados a terceiros pases onde no teriam direitos legais. Em 1998, o Congresso aprovou uma lei pela qual se institua que a poltica dos Estados Unidos no contempla expulso, extradio 152 ou qualquer outra forma de retorno involuntrio de uma pessoa a um pas em que haja indcios55 consistentes de que essa pessoa correr risco de ser submetida a tortura, independentemente de sua presena fsica nos Estados Unidos. As diretrizes presidenciais de Bush depois do Onze de Setembro jogaram essas preocupaes pela janela, e a CIA intensificou o uso daquilo que os defensores dos direitos humanos passaram a chamar de txis de tortura. No fim de 2001, quando o novo programa de morte/captura comeava a funcionar a pleno vapor, o nmero trs da CIA na poca, Buzzy Krongard, declarou que a guerra contra o terror seria vencida em grande parte153 por foras que no so conhecidas, em aes que no sero vistas e com mtodos sobre os quais melhor no querer saber. Um funcionrio americano diretamente envolvido no translado de presos declarou ao Washington Post: No metemos o cacete154 neles. Mandamos eles para outros pases para que metam o cacete neles l. Outro funcionrio que supervisionou a captura e a transferncia de prisioneiros disse ao jornal que se voc no violar os direitos humanos de algum em algum momento, provavelmente no conseguir cumprir sua tarefa155 e acrescentou: No acho conveniente promover a ideia de tolerncia zero nesse assunto. Esse foi o grande problema da CIA durante muito tempo. Cofer Black ps um ponto final nisso quando falou ao Congresso sobre a nova flexibilidade operacional empregada na guerra contra o terror. Essa uma rea muito confidencial, mas tenho de dizer que tudo o que vocs precisam saber que houve um antes do Onze de Setembro e um depois do Onze de Setembro, disse Black. Depois do Onze de Setembro, a coisa desandou.156As primeiras fases do programa de transferncia internacional de presos no ps-Onze de Setembro deram incio a algo que tornaria uma disputa de muitos anos entre o FBI e a CIA sobre quem assumiria a liderana das investigaes no caso dos ataques terroristas. Tambm trouxeram tona o pouco apreo da Casa Branca de Bush por qualquer coisa que lembrasse uma abordagem dentro da lei acerca da questo dos responsveis pelos ataques. Quando o regime talib se esfacelou e os soldados americanos comearam a ser despejados no Afeganisto, dezenas de quadros operacionais da Al-Qaeda passaram a recuar para a fronteira com o Paquisto. Em novembro, foras paquistanesas 157 prenderam Ibn al-Shaykh al-Libi, instrutor da Al-Qaeda que supostamente comandava o campo de treinamento de Khalden no Afeganisto, onde foram treinados Richard Reid, o futuro homem da bomba no sapato,158 e Zacarias Moussaoui, chamado de Vigsimo Sequestrador56Os paquistaneses entregaram Libi a agentes do FBI estacionados na Base Area de Bagram para interrogatrio. O FBI considerava o prisioneiro uma provvel fonte valiosa sobre a Inteligncia da Al-Qaeda e uma possvel testemunha contra Moussaoui. Jack Cloonan, agente do FBI com base em Nova York, disse a seu pessoal no Afeganisto: Tratem disso159 como se estivesse acontecendo exatamente aqui, em meu escritrio de Nova York. E acrescentou: Lembro-me de ter falado com eles por uma linha telefnica segura. Disse a eles: Faam um favor a si mesmos, informem o cara sobre seus direitos. Pode estar fora de moda, mas se no o fizermos, isso vai aparecer. Pode levar dez anos, porm se no o fizerem, isso vai atingir vocs e a reputao do Bureau. Faam disso um exemplo brilhante do que achamos certo. Os interrogadores de Libi disseram que ele foi um colaborador, sinceramente gentil160 e que concordou em dar informaes sobre Reid em troca da promessa de proteo para sua famlia. No entanto, enquanto o FBI achava que estava fazendo progressos com Libi, quadros operacionais da CIA, por ordem de Cofer Black,161 irromperam em Bagram e exigiram a custdia do prisioneiro. Os agentes do FBI se opuseram,162 mas a Casa Branca passou por cima deles. Voc sabe para onde est indo,163 disse um dos homens da CIA a Libi ao tir-lo do FBI. Antes de voc chegar l, vou achar sua me e foder com ela. A CIA levou Libi para o USS Bataan,164 no mar da Arbia, onde estava tambm o chamado talib-americano John Walker Lindh, que tinha sido preso no Afeganisto, e combatentes de outras nacionalidades. Do navio, Libi foi transferido para o Egito, onde foi torturado por agentes egpcios. Seu interrogatrio foi focado num objetivo que se tornaria ponto central do programa de transferncia e tortura: dar prova de uma relao entre o Iraque165 e os acontecimentos do Onze de Setembro. Uma vez sob custdia da CIA, Libi foi bombardeado com perguntas que tentavam ligar os ataques e a Al-Qaeda ao Iraque. Mesmo depois que seus interrogadores declararam que tinham quebrado sua resistncia e que ele estava obediente, o gabinete de Cheney interveio diretamente166 e ordenou que ele continuasse submetido a tcnicas aperfeioadas de interrogatrio. Depois de um interrogatrio realmente pesado167 isto , tcnicas aperfeioadas e extremadas de interrogatrio , ele admitiu que a Al-Qaeda e Saddam estavam trabalhando em conjunto. Admitiu que eles trabalhavam juntos na produo de WMDs, disse o antigo interrogador do FBI Ali Soufan ao programa Frontline da PBS. Mas a Agncia de Inteligncia de Defesa (Defense Intelligence Agency, DIA) lanou srias dvidas57 sobre as afirmaes de Libi, observando, num relatrio confidencial, que ele no dava detalhes168 sobre o suposto envolvimento do Iraque e afirmando que provavelmente esse indivduo estava enganando deliberadamente seus interrogadores. Observando ainda que ele tinha estado sob interrogatrio ao longo de vrias semanas, a anlise da DIA concluiu que Libi poderia estar descrevendo a seus interrogadores cenrios que ele sabia que chamariam a ateno deles. Apesar dessas dvidas, a confisso de Libi foi entregue ao secretrio de Estado Colin Powell169 para que a usasse na apresentao fraudulenta sobre a Guerra do Iraque feita pelo governo americano ante as Naes Unidas. Em seu discurso, Powell diria que posso trazer-lhes o caso170 de um ativo e experiente terrorista que diz que o Iraque dava treinamento Al-Qaeda para o uso dessas armas. Mais tarde, depois que essas afirmaes se comprovaram falsas, Libi reconheceu, segundo Soufan, que tinha mentido. Eu disse o que vocs queriam ouvir,171 contou. Queria parar com a tortura. Disse alguma coisa que vocs queriam ouvir. O modelo que desde o incio comeou a se firmar com o programa de transferncia e interrogatrio centrava-se em dois objetivos principais: desmantelar a rede da Al-Qaeda para evitar novos ataques e servir de apoio para uma invaso do Iraque. Na busca desses objetivos, nenhuma opo ou ttica seriam deixadas de fora. Enquanto o Departamento de Estado advertia para o perigo de uma declarao de guerra global mal planejada e pressionava a favor de uma resposta restrita e dentro da lei ao Onze de Setembro, Cheney comeou a traar planos para ambiciosas operaes globais de sequestros e assassinatos em que inicialmente certos elementos da CIA desempenhariam papis de liderana. Cheney, segundo antigos altos funcionrios da CIA e do Departamento de Estado, comeou de fato a dirigir uma caada humana global172 usando uma mistura de Foras de Operaes Especiais e quadros operacionais da Diviso de Atividades Especiais (Special Activities Division, SAD) da CIA, o brao paramilitar da Agncia. Esses ex-funcionrios comentaram que tais operaes ocorriam numa cultura em que embaixadores, comandantes das Foras Armadas americanas convencionais e at mesmo chefes de postos da CIA no estrangeiro eram mantidos na ignorncia a respeito de operaes secretas ou clandestinas. Para executar o programa, Cheney se valeu da brecha obscura na lei americana e nas prerrogativas de comando que se interpe entre a jurisdio da CIA e a das Foras Armadas. Em novembro de 2001, Cheney convocou uma reunio173 na Casa Branca para dar os retoques finais numa resoluo presidencial, redigida por Addington58e outros juristas, que determinava de que forma os prisioneiros capturados no exterior seriam julgados. Como de hbito, os advogados do Conselho de Guerra foram convidados para a reunio, que, no entanto, excluiu altos funcionrios do Departamento de Estado e do Conselho de Segurana Nacional (National Security Council, NSC). Powell e a assessoria jurdica do Departamento de Estado tinham dito ao presidente Bush174 que em sua opinio, pelas Convenes de Genebra, os presos do Talib e da Al-Qaeda tinham direito a proteo legal e tratamento humano sob custdia do inimigo. Advertiram ainda que se no oferecessem essa proteo aos inimigos, poriam em perigo a vida175 de soldados americanos que cassem prisioneiros nessa guerra. Em 7 de fevereiro de 2002, o presidente Bush tomou uma deciso. Assinou outra resoluo presidencial, baseada na suposio de que as Convenes de Genebra eram singulares e no se aplicavam a militantes do Talib e da Al-Qaeda aprisionados pelos Estados Unidos. A resoluo foi assinada logo depois que o governo Bush comeou a mandar prisioneiros capturados no Afeganisto e em outros pases para a priso militar de Guantnamo, em Cuba. Embora o Congresso estivesse desatento quanto a suas responsabilidades de fiscalizao desde o comeo da guerra contra o terror, o governo sabia que isso no ia durar. No incio de 2002, j se levantavam algumas vozes na Colina do Capitlio exigindo informaes da CIA e do governo sobre as tticas empregadas pela Agncia na perseguio a suspeitos. provvel que os detalhes sobre como funcionavam essas operaes do Programa Cheney no perodo imediatamente seguinte176 ao Onze de Setembro e sobre quem de fato as executava nunca venham a ser revelados. Deliberadamente, mantivemos o crculo de pessoas informadas sobre a localizao das prises clandestinas restrito a poucas pessoas. No dissemos nada ao FBI,177 lembra Rodriguez, o funcionrio da CIA que coordenou a construo e o uso das prises clandestinas. Muita gente, mesmo que ocupasse os mais altos postos de segurana, deixou de ser informada. At onde sei, a localizao das prises clandestinas no era conhecida nem mesmo pelo presidente. Rodriguez disse ainda que no se tratava de desconfiana em relao queles altos funcionrios mantidos de fora do crculo de informados, mas eles simplesmente no precisavam saber. As estratgias que alimentaram a escalada dessa fora se tornariam modelo para um programa secreto que Rumsfeld criaria no Pentgono. Rumsfeld notava que a CIA se tornava o macho alfa do GWOT sob o comando de Cheney. Decidiu59 ento levar o Pentgono a romper com o que ele chamava dependncia quase total da CIA178 e erguer uma cortina de ferro em torno das atividades mais delicadas dos principais combatentes de elite dos Estados Unidos. Esse projeto foi idealizado como uma operao de Inteligncia paralela CIA, mas tambm como a mais eficiente mquina de morte e captura que o mundo j vira que, por sua prpria natureza, no se reportaria a ningum alm do presidente e de seu crculo mais chegado.