jeanne marie gagnebin - walter benjamin na era da reprodutibilidade técnica

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07/10/2012 - 07h00 Walter Benjamin na era da reprodutibilidade técnica JEANNE MARIE GAGNEBIN ESPECIAL PARA A FOLHA Quando Walter Benjamin se matou, aos 48 anos, em setembro de 1940, fugindo da polícia francesa do regime de Vichy (pró-Hitler) e barrado na fronteira com a Espanha pela polícia franquista, vivia exilado e desempregado em Paris. Sem jamais ter conseguido um posto de professor na universidade, mantinha-se como crítico literário, com um pequeno auxílio do Instituto de Pesquisa Social, embrião da escola de Frankfurt. Havia publicado poucos livros, alguns artigos, várias resenhas, mas as portas se fechavam cada vez mais para ele em r azão de sua origem judaica alemã. Era conhecido num pequeno círculo de amigos, em sua ma ioria escritores que fugiram do nazismo: Brecht, Adorno, Scholem, e, em Paris, também Bataille e Klossovski. Quando, em compensação, Benjamin caiu em domínio público, 70 anos mais tarde, sua fama não cessava de crescer. Por mais justificado que seja, tal fenômeno deve nos deixar desconfiados. Teria Benjamin se transformado em mais um "bem cultural", um "Kulturgut", isto é, uma mercadoria cultural, cujo valor de fetiche ele não se cansou de denunciar? ONDA Muitíssimo citado, em geral de maneira fragmentária, Benjamin é agora objeto de uma onda de traduções que arrisca se transformar, no Brasil, em epidemia. Cabe, portanto, perguntar se essa onda de fato leva a um conhecimento mais preciso do autor, em particular em relação a suas reflexões sobre as transformações da percepção e das práticas estéticas na modernidade, ou se não assinalaria uma tendência mercadológica de "glamour" com a qual se confunde, tantas vezes, a ideia de cultura viva. Seu primeiro texto traduzido no Brasil foi "A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica". O ensaio introduz hipóteses essenciais para uma teoria da arte contemporâne a, marcada, segundo Benjamin, pela "reprodutibilidade técnica", central na fotografia e no cinema, que abole progressivamente a 'aura' de unicidade e de autenticidade da obra de arte. Existem hoje quatro versões diferentes desse texto nas "Gesammelte Werke" (obras reunidas, editora Suhrkamp): três em alemão, uma em francês. A única publicada em vida de Benjamin foi a francesa, traduzida por ele e por Klossovski a partir de duas versões em alemão, escritas em fins de 1935 e inícios de 1936. A primeira delas foi traduzida por Sérgio Paulo Rouanet para a editora Brasiliense, nos anos 1980; a segunda ficou desaparecida por décadas. A versão francesa saiu em 1936, na "Zeitschri ft für Sozialforschung", revista para pesquisa social, publicada

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07/10/2012 - 07h00

Walter Benjamin na era dareprodutibilidade técnicaJEANNE MARIE GAGNEBIN ESPECIAL PARA A FOLHA 

Quando Walter Benjamin se matou, aos 48 anos, em setembro de 1940, fugindo dapolícia francesa do regime de Vichy (pró-Hitler) e barrado na fronteira com aEspanha pela polícia franquista, vivia exilado e desempregado em Paris. Sem jamaister conseguido um posto de professor na universidade, mantinha-se como críticoliterário, com um pequeno auxílio do Instituto de Pesquisa Social, embrião da escolade Frankfurt.

Havia publicado poucos livros, alguns artigos, várias resenhas, mas as portas sefechavam cada vez mais para ele em razão de sua origem judaica alemã. Eraconhecido num pequeno círculo de amigos, em sua maioria escritores que fugiram donazismo: Brecht, Adorno, Scholem, e, em Paris, também Bataille e Klossovski.

Quando, em compensação, Benjamin caiu em domínio público, 70 anos mais tarde,sua fama não cessava de crescer. Por mais justificado que seja, tal fenômeno devenos deixar desconfiados. Teria Benjamin se transformado em mais um "bemcultural", um "Kulturgut", isto é, uma mercadoria cultural, cujo valor de fetiche elenão se cansou de denunciar?

ONDA 

Muitíssimo citado, em geral de maneira fragmentária, Benjamin é agora objeto deuma onda de traduções que arrisca se transformar, no Brasil, em epidemia.

Cabe, portanto, perguntar se essa onda de fato leva a um conhecimento maispreciso do autor, em particular em relação a suas reflexões sobre as transformaçõesda percepção e das práticas estéticas na modernidade, ou se não assinalaria umatendência mercadológica de "glamour" com a qual se confunde, tantas vezes, a ideiade cultura viva.

Seu primeiro texto traduzido no Brasil foi "A Obra de Arte na Era de suaReprodutibilidade Técnica". O ensaio introduz hipóteses essenciais para uma teoriada arte contemporânea, marcada, segundo Benjamin, pela "reprodutibilidadetécnica", central na fotografia e no cinema, que abole progressivamente a 'aura' deunicidade e de autenticidade da obra de arte.

Existem hoje quatro versões diferentes desse texto nas "Gesammelte Werke" (obrasreunidas, editora Suhrkamp): três em alemão, uma em francês. A única publicadaem vida de Benjamin foi a francesa, traduzida por ele e por Klossovski a partir deduas versões em alemão, escritas em fins de 1935 e inícios de 1936.

A primeira delas foi traduzida por Sérgio Paulo Rouanet para a editora Brasiliense,nos anos 1980; a segunda ficou desaparecida por décadas. A versão francesa saiuem 1936, na "Zeitschrift für Sozialforschung", revista para pesquisa social, publicada

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em Paris, já que tinha sido proibida na Alemanha, pelo instituto de mesmo nome,dirigido nos EUA por Max Horkheimer e Theodor Adorno.

Ora, a versão francesa sofreu inúmeros cortes, sem a concordância de Benjamin,

pelo editor em Paris, Max Brill, e com a anuência de Horkheimer. Benjamin só tinhaconcordado com algumas modificações em razão da prudência política do instituto,mas queria marcar uma posição materialista e progressista que foi diluída com acensura.

Ao reler a carta de Benjamin a Horkheimer de 14 de março de 1936, na qualmanifesta sua indignação com a "deslealdade" de Brill, e as cartas de Horkheimer ede Adorno, de 18 de março de 1936 --disponíveis no recém-editado "Benjamin e aObra de Arte" [trad. Vera Ribeiro e Marijane Lisboa, Contraponto, 256 págs., R$ 48]--, torna-se manifesto o conflito entre Benjamin e seus interlocutores.

Ademais, quando se lê a longa carta a Benjamin que Adorno assina com um "seuvelho amigo" e, em seguida, a carta a Horkheimer, de 21 de março, na qual Adornoelogia concepções de Benjamin, mas também afirma sua falta de dialética, seu"masoquismo", sua "concepção romântica e professoral sobre a técnica", fica patenteo quanto Adorno --que se preparava para emigrar aos EUA-- está preso num jogo depoder entre o "patrão" (Horkheimer) e o "bolsista" (Benjamin) do instituto ao qualpretendia integrar-se.

ÚLTIMA VERSÃO 

Essa situação difícil levou Benjamin a escrever, entre 1938 e 39, uma última versão

do ensaio, que seria traduzida em 1968, por Carlos Nelson Coutinho, e em 1969, porJosé L. Grünewald (texto que consta até hoje do volume "Os Pensadores", da editoraAbril).

Retraduzida com cuidado por Marijane Lisboa para a Contraponto, esta é a versãoque ele achava mais congruente com seus propósitos: explorar as possibilidadestécnicas e artísticas do filme e da montagem fotográfica em favor de uma política deesquerda, em vez de lamentar sua integração à indústria do cinema como meroentretenimento.

Benjamin tentou, em vão, publicar essa última versão de seu texto em alemão ou

em inglês --impossibilidade que foi fruto da recusa de Horkheimer, documentada nomesmo volume, de pôr Benjamin em contato com o pesquisador em cinema JayLeyda, de Nova York.A segunda versão em alemão, de 1936, que estava desaparecida, foi localizada noArquivo Horkheimer em Frankfurt e publicada em 1989 num volume de"Suplementos". Essa versão acaba de ser traduzida pela primeira vez no Brasil, porFrancisco de Ambrosis Pinheiro Machado [Zouk, 128 págs., R$ 38] num trabalhopreciso, com excelentes notas do tradutor. Anuncia-se ainda outra tradução domesmo texto (!), por Gabriel Valladão Silva, para a editora L&PM.

A história da redação e da recepção do texto foi reconstruída com cautela por Detlev

Schöttker em livro de 2007, no qual publica a versão "definitiva" de Benjamin, de1938-9, com vasta documentação, notas, fortuna crítica, excelente bibliografia efilmografia. Ele foi incluído no volume da Contraponto, organizado por Tadeu

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Capistrano, mas sem a bibliografia (embora citada no corpo dos comentários!) e afilmografia, e sem justificativa nem menção a essa falta.

Em compensação, o organizador publica dois artigos de Susan Buck-Morss e Miriam

Hansen, de 1992 e 1987. Sem dúvida interessantes, os textos, no entanto, nãocombinam com o trabalho de Schöttker, cuja reconstrução aponta muito mais para adiscussão entre Benjamin e o Instituto de Pesquisa social.

Ademais, nenhum desses artigos cita a segunda versão, encontrada em 1989 (queHansen nem poderia conhecer, portanto). Pergunta-se por que o organizador incluiuno mesmo livro textos tão diversos e retirou, sem advertir o leitor, informaçõespreciosas fornecidas pelo autor.

Por fim, gostaria de insistir na importância da segunda versão. Ela aponta para umanova teoria da "mimesis", isto é, da "representação artística", e do jogo ou da

brincadeira" ("Spiel") nas artes. Trata-se de tentar pensar as possibilidades,liberadas pela perda da aura e pelas novas técnicas, de novas práticas estéticas:"ordenações experimentais", ou "Versuchsanordnungen" (a revisão do volume daBrasiliense continua traduzindo o termo por "experiências", o que se presta aconfusão).

Essas novas práticas artísticas e interativas --por exemplo, no Brasil, Oiticica ouLygia Clark-- deveriam permitir a invenção de um "espaço de jogo" ("Spielraum")que Benjamin esperava ser possível, não só no domínio da estética, mas também noda política.

É dessa relação entre estética e política que se trata, para quem quiser ler Benjaminsem transformá-lo em mais um fetiche cultural.

JEANNE MARIE GAGNEBIN é professora titular de filosofia na PUC-SP e autora de "História e Narração em WalterBenjamin" (Perspectiv