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JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78p. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78p. [5] I A história da literatura vem, em nossa época, se fazendo cada vez mais mal-afamada — e, aliás, não de forma imerecida[1]. Nos últimos 150 anos, a história dessa venerável disciplina tem inequivocamente trilhado o caminho da decadência constante. Todos os seus feitos culminantes datam do século XIX. À época de Gervinus e Scherer, de De Sanctis e Lanson, escrever a história de uma literatura nacional era considerado o apogeu da carreira de um filólogo. Os patriarcas da história da literatura tinham como meta suprema apresentar, por intermédio da história das obras literárias, a idéia da individualidade nacional a caminho de si mesma. Hoje, essa aspiração suprema constitui já uma lembrança distante. Em nossa vida intelectual contemporânea, a história da literatura, em sua forma tradicional, vive tão-somente uma existência nada mais que miserável, tendo se preservado apenas na qualidade de uma exigência caduca do regulamento dos exames oficiais. Como matéria obrigatória do currículo do ensino secundário, ela já quase desapareceu na Alemanha. No mais, histórias da literatura podem ainda ser encontradas, quando muito, nas estantes de livros da burguesia instruída, burguesia esta que, na falta de um dicionário de literatura mais apropriado, as consulta principalmente para solucionar charadas literárias[2]. [6] Nos cursos oferecidos nas universidades, a história da literatura está visivelmente desaparecendo. Há tempos já não constitui segredo algum afirmar que os filólogos de minha geração orgulham-se de ter substituído os tradicionais painéis globais ou de época de sua literatura nacional por cursos voltados para um enfoque sistemático ou centrados em problemas históricos específicos. A produção científica oferece um quadro semelhante: as empreitadas coletivas, na forma de manuais, enciclopédias e volumes interpretativos — estes constituindo o ramo mais recente das assim chamadas slnteses de livraria —, desalojaram as histórias da literatura, tidas por pretensiosas e pouco sérias. Significativamente, tais coletâneas pseudo- históricas raramente resultam da iniciativa de estudiosos, mas devem-se, em geral, à idéia de algum editor empreendedor. Já a pesquisa levada a sério, por sua vez, encontra registro em monografias de revistas especializadas, pautando-se pelo critério mais rigoroso dos métodos científico-literários da estilística, da retórica, da filologia textual, da semântica, da poética e da história das palavras, dos motivos e dos gêneros. Por certo, também as revistas atuais especializadas em filologia encontram-se ainda, em grande medida, repletas de ensaios que se contentam com uma abordagem histórico-literária. Seus autores, porém, vêem- se expostos a uma dupla crítica. Da ótica das disciplinas vizinhas, os problemas que levantam são, aberta ou veladamente, qualificados de pseudoproblemas, e seus resultados, desdenhados como um saber pura- mente antigo. Tampouco a crítica oriunda da teoria literária revela-se mais complacente em seu juízo. Tal crítica tem a objetar à história clássica da literatura que ela apenas se pretende uma forma da escrita da história, mas, na verdade, move-se numa esfera exterior à dimensão histórica e, ao fazê-lo, falha igualmente na fundamentação do juízo estético que seu objeto — a literatura, enquanto uma forma de arte — demanda[3]. Primeiramente, cumpre esclarecer essa crítica. A história da literatura, em sua forma mais habitual, costuma esquivar-se do perigo de uma enumeração meramente cronológica dos fatos ordenando seu

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JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78p.JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. SãoPaulo: Ática, 1994. 78p.

[5]I

A história da literatura vem, em nossa época, se fazendo cada vez mais mal-afamada — e, aliás, não

de forma imerecida[1]. Nos últimos 150 anos, a história dessa venerável disciplina tem inequivocamente

trilhado o caminho da decadência constante. Todos os seus feitos culminantes datam do século XIX. Àépoca de Gervinus e Scherer, de De Sanctis e Lanson, escrever a história de uma literatura nacional eraconsiderado o apogeu da carreira de um filólogo. Os patriarcas da história da literatura tinham como metasuprema apresentar, por intermédio da história das obras literárias, a idéia da individualidade nacional acaminho de si mesma. Hoje, essa aspiração suprema constitui já uma lembrança distante. Em nossa vidaintelectual contemporânea, a história da literatura, em sua forma tradicional, vive tão-somente umaexistência nada mais que miserável, tendo se preservado apenas na qualidade de uma exigência caduca doregulamento dos exames oficiais. Como matéria obrigatória do currículo do ensino secundário, ela já quasedesapareceu na Alemanha. No mais, histórias da literatura podem ainda ser encontradas, quando muito,nas estantes de livros da burguesia instruída, burguesia esta que, na falta de um dicionário de literatura

mais apropriado, as consulta principalmente para solucionar charadas literárias[2].[6] Nos cursos oferecidos nas universidades, a história da literatura está visivelmente desaparecendo.

Há tempos já não constitui segredo algum afirmar que os filólogos de minha geração orgulham-se de tersubstituído os tradicionais painéis globais ou de época de sua literatura nacional por cursos voltados paraum enfoque sistemático ou centrados em problemas históricos específicos. A produção científica oferece umquadro semelhante: as empreitadas coletivas, na forma de manuais, enciclopédias e volumes interpretativos— estes constituindo o ramo mais recente das assim chamadas slnteses de livraria —, desalojaram ashistórias da literatura, tidas por pretensiosas e pouco sérias. Significativamente, tais coletâneas pseudo-históricas raramente resultam da iniciativa de estudiosos, mas devem-se, em geral, à idéia de algum editorempreendedor. Já a pesquisa levada a sério, por sua vez, encontra registro em monografias de revistasespecializadas, pautando-se pelo critério mais rigoroso dos métodos científico-literários da estilística, daretórica, da filologia textual, da semântica, da poética e da história das palavras, dos motivos e dos gêneros.Por certo, também as revistas atuais especializadas em filologia encontram-se ainda, em grande medida,repletas de ensaios que se contentam com uma abordagem histórico-literária. Seus autores, porém, vêem-se expostos a uma dupla crítica. Da ótica das disciplinas vizinhas, os problemas que levantam são, abertaou veladamente, qualificados de pseudoproblemas, e seus resultados, desdenhados como um saber pura-mente antigo. Tampouco a crítica oriunda da teoria literária revela-se mais complacente em seu juízo. Talcrítica tem a objetar à história clássica da literatura que ela apenas se pretende uma forma da escrita dahistória, mas, na verdade, move-se numa esfera exterior à dimensão histórica e, ao fazê-lo, falhaigualmente na fundamentação do juízo estético que seu objeto — a literatura, enquanto uma forma de arte

— demanda[3].Primeiramente, cumpre esclarecer essa crítica. A história da literatura, em sua forma mais habitual,

costuma esquivar-se do perigo de uma enumeração meramente cronológica dos fatos ordenando seu

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material segundo tendências gerais, gêneros e “outras categorias”, para então, sob tais rubricas, abordar asobras individualmente, em seqüência cronológica. A biografia dos autores e a apreciação do conjunto desua obra surgem aí em passagens [7] alea|tórias e digressivas, à maneira de um elefante branco. Ou,então, o historiador da literatura ordena seu material de forma unilinear, seguindo a cronologia dos grandesautores e apreciando-os conforme o esquema de “vida e obra” — os autores menores ficam aí a ver navios(são inseridos nos intervalos entre os grandes), e o próprio desenvolvimento dos gêneros vê-se, assim,inevitavelmente fracionado. Esta última modalidade de história da literatura corresponde sobretudo aocânone dos autores da Antigüidade clássica; já a primeira encontra-se com maior freqüência nas literaturasmodernas, que se defrontam com a dificuldade — crescente à medida que se aproximam do presente — deter de fazer uma seleção dentre uma série de autores e obras cujo conjunto mal se consegue divisar.Contudo, uma descrição da literatura que segue um cânone em geral preestabelecido e simplesmenteenfileira vida e obra dos escritores em seqüência cronológica não constitui — como já observou Gervinus

— história alguma; mal chega a ser o esqueleto de uma história[4]. Do mesmo modo, nenhum historiador

tomaria por histórica uma apresentação da literatura segundo seus gêneros que, registrando mudanças deuma obra para a outra, persiga as formas autônomas do desenvolvimento da lírica, do drama e do romancee emoldure o todo inexplicado com uma observação de caráter geral — amiúde tomada emprestada àhistória — sobre oZeitgeist e as tendências políticas do período. Por outro lado, não é apenas raro, masfrancamente malvisto, que um historiador da literatura profira vereditos qualitativos acerca de obras deépocas passadas. Muito pelo contrário, o historiador costuma, antes, apoiar-se no ideal de objetividade dahistoriografia, à qual cabe apenas descrever como as coisas efetivamente aconteceram. Sua abstinênciaestética funda-se em boas razões. Afinal, a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nemdas condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento nocontexto sucessório [Folgerverhältnis] do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios darecepção, do efeito [Wirkung] [8] re|duzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes demais difícil apreensão. Ademais, se, comprometido com o ideal da objetividade, o historiador da literaturalimita-se à apresentação de um passado acabado, deixando ao crítico competente o juízo acerca daliteratura do presente inacabado e apegando-se ao cânone seguro das “obras-primas”, permanecerá ele omais das vezes, em sua distância histórica, uma ou duas gerações atrasado em relação ao estágio maisrecente do desenvolvimento da literatura. Na melhor das hipóteses, participará, pois, como leitor passivo dadiscussão presente sobre os fenômenos literários contemporâneos, tornando-se, assim, na construção deseu juízo, um parasita de uma crítica que, em segredo, ele desdenha como “nãocientífica”. Que papel restahoje, portanto, a um estudo histórico da literatura que, para recorrer a uma definição clássica do interessena história — a de Friedrich Schiller —, tem tão pouco a ensinar ao observador pensante que não ofereceao homem prático nenhum modelo a ser imitado, nem nenhum esclarecimento ao filósofo, e que, ademais,

não logra prometer ao leitor nada que se assemelhe a uma fonte do mais nobre entretenimento[5]?

[9]II

As citações não constituem apenas um apelo a uma autoridade com o propósito único de sancionardeterminado passo no curso da reflexão científica. Elas podem também retomar uma questão antigavisando demonstrar que uma resposta já tornada clássica não mais se revela satisfatória, que essa própriaresposta fez-se novamente histórica, demandando de nós uma renovação da pergunta e de sua solução. Aresposta de Schiller à pergunta colocada em sua aula inaugural na universidade de Jena, de 26 de maio de

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1789 — Was heißt und zu welchem Ende studiert man Universalgeschichte? [O que significa e com que pro-pósito estuda-se história universal?] —, não é apenas representativa do modo de compreender a história doidealismo alemão, mas igualmente elucidativa no que se refere a um olhar retrospectivo e crítico voltadopara a história de nossa disciplina. E isso porque aquela resposta nos mostra com que expectativa a históriada literatura do século XIX, competindo com a hístoriografia geral, buscou desincumbir-se da tarefa legadapela filosofia idealista da história. Ao mesmo tempo, ela nos permite perceber por que razão o ideal doconhecimento da escola histórica tinha, necessariamente, de conduzir a uma crise, trazendo consigo odeclínio da história da literatura.

Gervinus pode nos servir aqui de testemunha principal. Dele é não somente a primeira exposiçãocientífica de uma Geschichte der poetischen Nationalliteratur der Deutschen [História [10] da literaturanacional poética dos alemães] (1835-1842), como também o primeiro (e único) tratado de teoria da história

de autoria de um filólogo[6]. Partindo da idéia central do Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers [Sobre

a tarefa do historiador] (1821) de Wilhelm von Humboldt, seu Grundzüge der Historik[Fundamentos da teoriada história] constrói uma teoria na qual Gervinus, em outra parte, embasou também a grande tarefa daescritura de uma história da beletrística. Para ele, o historiador da literatura somente se torna um historiadorde fato quando, investigando seu objeto, encontra aquela idéia fundamental que atravessa a própria sériede acontecimentos que ele tomou por assunto, neles manifestando-se e conectando-os aos acontecimentos

do mundo[7]. Essa idéia fundamental, que, para Schiller, traduz-se ainda no princípio teleológico geral que

nos permite compreender o desenvolvimento da história universal da humanidade, figura já em Humboldt

em manifestações isoladas da idéia da individualidade nacional[8]. Quando, então, Gervinus se apropria

dessa maneira ideal de explicar a história, ele, imperceptivelmente, coloca a idéia histórica de

Humboldt[9] a serviço da ideologia nacional. Assim, uma história da literatura nacional alemã teria de

mostrar de que forma a direção sensata na qual os gregos haviam colocado a humanidade — direção estapara a qual, em função de sua peculiaridade, os alemães sempre tenderam — foi conscientemente retoma-

da por estes[10]. A idéia universal da filosofia esclarecida da história desagrega-se na multiplicidade da

história das individualidades nacionais, afunilando-se, por fim, no mito literário segundo o qual precisamenteos alemães estariam qualificados para ser os verdadeiros sucessores dos gregos — e isso em função

daquela idéia que somente os alemães revelavam-se aptos a concretizar em toda a sua pureza[11].Esse processo, tornado visível a partir do exemplo de Gervinus, não constitui um fenômeno típico

apenas da história do espírito [Geistesgeschichte] no século XIX. Uma vez tendo a escola históricadesacreditado o modelo teleológico da filosofia idealista da história, daí resultou também uma implicaçãometodológica, tanto para a história da literatura quanto para toda a historiografia. Censurando-se como a-histórica a solução da [11] filo|sofia da história de se compreender a marcha dos acontecimentos a partir de

uma meta, de um apogeu ideal da história mundial[12], como se podia, então, entender e apresentar o

nexo da história, que jamais se revela em sua totalidade? Conforme demonstrou H. G. Gadamer, o ideal da

historia universal transformou-se, assim, num embaraço para a investigação histórica[13]. O historiador —

escreveu Gervinus — pode somente pretender apresentar séries acabadas de acontecimentos, uma vez

que, desconhecendo as cenas finais, não lhe é possível julgar[14]. Histórias nacionais somente podiam ser

consideradas séries acabadas de acontecimentos na medida em que culminam politicamente naconcretização da unificação nacional ou, literariamente, no apogeu de um modelo clássico nacional.Contudo, seu desenvolvimento posterior a essa “cena final” tinha, inegavelmente, de trazer de volta o velhodilema. Assim, em última instância, Gervinus só fez da necessidade uma virtude ao — em notávelconcordância com o famoso diagnóstico de Hegel acerca do fim da arte — desprezar a literatura de seu

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próprio período pós-clássico, como se se tratasse de mera manifestação decadente, e aconselhar os

talentos, agora desprovidos de uma meta, a, de preferência, ocuparem-se do mundo real e do Estado[15].Livre, porém, do dilema envolvendo a conclusão e o avanço da história, o historiador do historicismo

parecia estar quando se limitava à abordagem de épocas as quais podia abarcar com os olhos até a “cenafinal” e descrever em sua ‘plenitude própria, sem considerar o que delas resultou. Assim, a história comopainel de época prometia atender plenamente até ao ideal metodológico da escola histórica. Desde então,quando o desenvolvimento da individualidade nacional não mais lhe basta como fio condutor, a história daliteratura alinhava umas às outras principalmente épocas acabadas. A regra fundamental da escritura his-tórica, segundo a qual o historiador deve anular-se ante seu objeto, permitindo que ele se apresente com

total objetividade[16], deixava-se aplicar melhor através desse enfoque por épocas, como todos sig-

nificativos apartados e isolados uns dos outros. Se a “total objetividade” demanda que o historiador abstraiado ponto de vista de seu presente, então o valor e o significado de uma época [12] pas|sada hão também deser cognoscíveis independentemente do curso posterior da história. As célebres palavras de Ranke, de1854, conferem a esse postulado uma fundamentação teológica: Eu, porém, afirmo: todas as épocasapresentam-se imediatas a Deus, e seu valor não repousa naquilo que delas resulta, mas em sua exis-

tência, nelas próprias[17]. Essa nova resposta à pergunta acerca de como compreender o conceito de

“progresso” na história destina ao historiador a tarefa de uma nova teodicéia: na medida em que contemplae apresenta cada época como algo válido em si, ele está justificando Deus perante a filosofia progressistada história, que vê as épocas como meros estágios para a geração seguinte, pressupondo, assim, uma

primazia da última e, portanto, uma injustiça divina[18]. Entretanto, a solução de Ranke para o problema

legado pela filosofia da história foi obtida à custa de um corte no fio que liga o passado ao presente — istoé, a época, “como ela efetivamente foi”, àquilo que “dela resultou”. Afastando-se da filosofia da história doIluminismo, o historicismo abandonou não apenas o modelo teleológico da história universal, como tambémo princípio metodológico que, acima de tudo, segundo Schiller, marca o historiador universal e seu pro-

ceder: vincular o passado ao presente[19] — um conhecimento imprescindível, apenas supostamente

especulativo, o qual a escola histórica não podia impunemente desconsiderar[20], como o demonstra, aliás,

o ulterior desenvolvimento no campo da historiografia literária.A obra da história literária do século XIX apoiou-se na convicção de que a idéia da individualidade

nacional seria a parte invisível de todo fato[21], e de que essa idéia tornaria representável a forma da

história[22] também a partir de uma seqüência de obras literárias. Havendo desaparecido tal convicção,

tinha de perder-se também o fio dos acontecimentos, fazendo-se inevitável que a literatura passada e a

presente se apartassem uma da outra em esferas separadas do juízo[23], bem como que a escolha,

determinação e valoração dos fatos literários se tornassem problemáticas. A guinada rumo ao positivismo foideterminada primordialmente por essa crise. A historiografia literária positivista acreditava estar fazendo danecessidade uma virtude ao tomar emprestados os métodos [13] das ciências exatas. O resultado ébastante conhecido: a aplicação do princípio da explicação puramente causal à história da literatura trouxe àluz fatores apenas aparentemente determinantes, fez crescer em escala hipertrófica a pesquisa das fontes ediluiu a peculiaridade específica da obra literária num feixe de “influências” multiplicáveis a gosto. O protestonão tardou a chegar. A história do espírito apoderou-se da literatura, contrapôs à explicação histórica causaluma estética da criação irracional e buscou o nexo da poesia na recorrência de idéias e motivos

supratemporais[24]. Na Alemanha, ela se deixou envolver na preparação e fundamentação da ciência

literária nacionalista do nacional-socialismo. Depois da guerra, substituíram-na novos métodos, os quaislevaram a cabo o processo de desideologização, sem, no entanto, reassumir a tarefa clássica da história

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literária. A apresentação da literatura em sua história e em sua relação com a história geral estava fora daárea de interesse da nova história das idéias e dos conceitos, bem como da investigação da tradição quefloresceu na esteira da Escola de Warburg. A primeira almeja secretamente uma renovação da história da

filosofia, conforme esta se reflete na literatura[25] a última neutraliza a práxis vital da história, na medida

em que busca o ponto crucial do saber na origem ou na continuidade supratemporal da tradição, e não na

atualidade e singularidade de um fenômeno literário[26]. O conhecimento daquilo que persiste em meio à

mudança constante desobriga-nos do esforço da compreensão histórica. Na obra monumental de ErnstRobert Curtius — que propiciou trabalho a uma legião de epígonos pesquisadores da tópica —, acontinuidade da herança da Antigüidade, alçada à condição de idéia suprema, figura sob a forma da tensãohistoricamente não mediada, imanente à tradição literária, entre criação e imitação, poesia elevada e meraliteratura. Um classicismo atemporal das obras-primas eleva-se acima daquilo que Curtius chama “a

irrompível cadeia tradicional da mediocridade” [27], deixando a história atrás de si como terra incognita.

[14] Vence-se aí em tão pouca medida o abismo entre a contemplação histórica e a contemplaçãoestética da literatura quanto na teoria literária de Benedetto Croce, com sua separação ad absurdum entrepoesia e não-poesia. O antagonismo entre a poesia pura e a literatura vinculada especificamente a umaépoca somente pôde ser superado quando a estética na qual se assenta foi colocada em questão, e sereconheceu que a oposição entre criação e imitação caracteriza apenas a literatura do período humanistada arte, não mais sendo capaz de abranger os fenômenos da literatura moderna, ou mesmo da medieval.Da orientação definida pela escola positivista e pela idealista destacaram-se a sociologia da literatura e ométodo imanentista, aprofundando ainda mais o abismo entre poesia e história. Tal se revela com a máximanitidez nas teorias literárias antagônicas da escola marxista e da formalista, escolas estas que constituirão oponto central de meu panorama crítico da pré-história da ciência literária atual.

[15]III

Comum a essas duas escolas é a renúncia ao empirismo cego do positivismo, bem como à metafísicaestética da história do espírito. Por caminhos opostos, ambas tentaram resolver o problema de comocompreender a sucessão histórica das obras literárias como o nexo da literatura, e ambas mergulharam, porfim, numa aporia cuja solução teria exigido que se estabelecesse uma nova relação entre a contemplaçãohistórica e a contemplação estética. A teoria literária marxista entendeu ser sua tarefa demonstrar o nexo daliteratura em seu espelhamento da realidade social. Desnecessário seria determo-nos aqui nos resultadosingênuos obtidos pela historiografia literária praticada pelo marxismo vulgar, que jamais se cansou de fazerderivar diretamente de alguns fatores econômicos e constelações de classes da “infra-estrutura” amultiplicidade dos fenômenos literários. Um nível mais elevado a teoria literária marxista alcançou nosmomentos em que tentou definir a função da literatura enquanto elemento constitutivo da sociedade: “Se adeterminação social do homem é sua natureza, então há de resultar também dos atos passados deautotestemunho literário um quadro completo das contradições que a humanidade viveu ao longo dahistória. [...] A poesia move-se em direção a um ouvir. É por essa razão que nela se gesta a sociedade àqual ela se dirige: o estilo é sua lei — e, pelo conhecimento do estilo, pode-se decifrar também odestinatário da poesia”. Werner Krauss, de cuja obraLiteraturgeschichte als [16] geschichtlicher

Auftrag cito[28], discutiu essa ampla tese em monografias sobre a literatura do Iluminismo[29], mas não a

desenvolveu, transformando-a numa história da literatura que, baseada em premissas tão pouco ortodoxas,

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teria podido dar uma nova direção à história literária marxista. Uma vez que esta última — decerto, tambémpor razões políticas — apega-se a uma delimitação nacional da história da literatura, ela segue sempretrilhando velhos caminhos, sem se colocar de maneira nova o problema da relação entre literatura esociedade, relação esta que constitui um processo. Trata-se, entretanto, de um problema que, ainda que osubstrato antiquado da unificação político-nacional fosse substituído pelo modelo histórico mais geral docaminho rumo à sociedade sem classes, não estaria mais bem solucionado.

Em toda a gama das formas que assume, apenas muito precariamente a literatura admite serremontada a fatores do processo econômico, pois a mudança estrutural dá-se com muito maior lentidão na“infra-estrutura” do que na “superestrutura”, e o número de determinantes verificáveis é muito menor naprimeira do que na última. Somente uma porção reduzida da produção literária é permeável aosacontecimentos da realidade histórica, e nem todos os gêneros possuem força testemunhal no tocante a“lembrança dos motivos constitutivos da sociedade”. Ademais, quando uma obra importante parece conferiruma nova direção ao processo literário, ela permanece circundada por uma produção que, amiúde, a vista éincapaz de abranger, produção esta composta de obras que correspondem a uma tendência já ultrapassadado gosto, mas cujo efeito sobre a sociedade não se deve ter em menor conta do que a novidadefreqüentemente incompreendida contida naquela obra importante, a qual, no entanto, é a única que pesa nasucessão homogênea da progressão histórica. Contudo, a heterogeneidade do simultâneo não constitui aúnica dificuldade não superada pela historiografia literária marxista. Esta, vendo-se constrangida a medir ograu de importância de uma obra literária em função de sua força testemunhal relativamente ao processosocial, e sendo incapaz de extrair daí quaisquer categorias estéticas próprias, permaneceu, de um modo ge-

ral — e sem o admitir —, presa a uma estética classicista[30]. Isso [17] se revela não apenas nos

apriorismos da crítica Literária de Georg Lukács, mas, ainda em maior grau, na construção de cânones,comum a todas as escolas marxistas e obrigatória até pouco tempo atrás. O conceito de arte clássica,tomado emprestado a Hegel e absolutizado, resultou em que toda a literatura moderna que não se deixavaapreender segundo o princípio da identidade entre forma e conteúdo teve de ser desqualificada como artedegenerada da burguesia decadente. Apenas mais recentemente parece ter começado a gestar-se umatendência contrária. De início, seus defensores não puderam apoiar-se em outra autoridade que não a dopróprio Stálin, ao, analogamente à afirmação deste último acerca da lingüística, postular também para a lite-ratura a independência entre a superestrutura e a base econômica. O debate com o realismo socialistaconduziu, durante o período do degelo, a uma crítica à teoria do reflexo, abrindo a perspectiva da fundaçãode uma teoria da arte apropriada às formas da arte moderna, uma teoria que teria obrigatoriamente de tra-zer consigo a ruptura com a estética clássica da representação. Há que se aguardar o resultado de taisiniciativas, as quais buscam solucionar a questão acerca da função social da literatura tendo em vista,

agora, também a contribuição específica de suas formas e meios artísticos[31].Contudo, o problema da história literária assim formulado não constitui uma descoberta da ciência

literária marxista. Já há quarenta anos, ele se colocou também para a escola formalista por ela combatida, àépoca em que essa escola viu-se condenada ao silêncio e banida para a diáspora pelos outrora detentoresdo poder.

[18]

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IV

Os primeiros passos dos formalistas, que, na condição de membros da Sociedade para o Estudo daLinguagem Poética (Opoiaz), começaram a evidenciar-se com publicações programáticas a partir de 1916,deram-se sob o signo de uma rigorosa ênfase no caráter artístico da literatura. A teoria do método for-

malista[32]alçou novamente a literatura à condição de um objeto autônomo de investigação, na medida em

que desvinculou a obra literária de todas as condicionantes históricas e, à maneira da nova lingüísticaestrutural, definiu em termos puramente funcionais a sua realização específica, como a soma de todos os

procedimentos artísticos nela empregados[33]. A tradicional separação entre poesia e literatura torna-se,

assim, sem efeito. O caráter artístico da literatura deve ser verificado única e exclusivamente a partir daoposição entre linguagem poética e linguagem prática. A língua, em sua função prática, passa então arepresentar, na qualidade de série não-literária, todas as demais condicionantes históricas e sociais da obraliterária; esta é descrita e definida como obra de arte precisamente em sua singularidade própria (écartpoétique), e não, portanto, em sua relação funcional com a série não-literária. A diferenciação entrelinguagem poética e linguagem prática conduziu ao conceito de percepção artística, conceito este querompe completamente o vínculo entre [19] litera|tura e vida. A arte torna-se, pois, o meio para a destruição,pelo “estranhamento”, do automatismo da percepção cotidiana. Decorre daí que a recepção da arte nãopode mais consistir na fruição ingênua do belo, mas demanda que se lhe distinga a forma e se lhe conheçao procedimento. Assim, o processo de percepção da arte surge como um fim em si mesmo, tendo apercep-tibilidade da forma como seu marco distintivo e o desvelamento do procedimento como o princípio para umateoria que, renunciando conscientemente ao conhecimento histórico, transformou a crítica de arte nummétodo racional e, ao fazê-lo, produziu feitos de qualidade científica duradoura.

Entretanto, não se pode ignorar um outro feito da escola formalista. A historicidade da literatura,inicialmente negada, reapareceu ao longo da construção do método formalista, colocando-o diante de umproblema que o obrigou a repensar os princípios da diacronia. O literário na literatura não é determinadoapenas sincronicamente — pela oposição entre as linguagens poética e prática —, mas o é tambémdiacronicamente, por sua oposição àquilo que lhe é predeterminado pelo gênero e à forma que o precedena série literária. Na formulação de Vítor Chklovski, se a obra de arte é percebida em contraposição ao

pano de fundo oferecido por outras obras de arte e mediante associação com estas[34], a interpretação

deve levar em conta também a sua relação com outras formas existentes anteriormente a ela. Com isso, aescola formalista começou a buscar seu próprio caminho de volta rumo à história. Essa sua nova propostadistinguia-se da velha história da literatura pelo fato de abandonar a concepção básica desta última de umprocesso linear e continuado, e por contrapor, assim, ao conceito clássico da tradição um princípio dinâmicode evolução literária. O prisma da continuidade perdia, pois, sua velha primazia no conhecimento histórico.A análise da evolução literária desnuda, na história da literatura, a autogeração dialética de novas

formas[35]; ela descreve o fluxo supostamente pacífico e gradual da tradição como um processo que

encerra rupturas, revoltas de novas escolas e conflitos entre gêneros concorrentes. O “espírito objetivo” dasépocas [20] homogê|neas é repudiado como especulação metafísica. Segundo Vítor Chklovski e JúriTynianov, em toda época existem simultaneamente várias escolas literárias, e uma delas representa o ápicecanonizado da literatura; a canonização de uma forma literária conduz à sua automatização, provocando, nacamada inferior, a construção de novas formas, as quais conquistam o lugar das antigas, adquirem a

dimensão de um fenômeno de massa e, por fim, são elas próprias compelidas de volta à periferia[36].Com essa proposta — que, paradoxalmente, volta o princípio da evolução literária contra o sentido

orgânico-teleológico do conceito clássico de evolução —, a escola formalista aproximou-se bastante de uma

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nova compreensão histórica da literatura, no domínio do surgimento, da canonização e da decadência dosgéneros. Ela nos ensinou a ver de uma maneira nova a obra de arte em sua história — isto é, natransformação dos sistemas de gêneros e formas literárias —, abrindo caminho, assim, para umadescoberta da qual também a lingüística se apropriou: a descoberta de que a pura sincronia é ilusória,porque — nas palavras de Roman Jakobson e Júri Tynianov — todo sistema apresenta-se necessariamente

como uma evolução, e esta, por sua vez, carrega forçosamente um caráter sistemático[37]. Contudo,

compreender a obra de arte em sua história — ou seja, no interior da história da literatura definida como

uma sucessão de sistemas[38] — ainda não é o mesmo que contemplá-la na história — isto é, no horizonte

histórico de seu nascimento, função social e efeito histórico. O histórico na literatura não se esgota nasucessão de sistemas estético-formais; assim como o da língua, o desenvolvimento da literatura não podeser determinado apenas de forma imanente, através de sua relação própria entre diacronia e sincronia, mas

há de ser definido também em função de sua relação com o processo geral da história[39].Se, dessa perspectiva, voltarmos novamente o nosso olhar para o dilema comum à teoria literária

formalista e à marxista, resultará daí uma conclusão que nenhuma delas tirou. Se, por um lado, se podecompreender a evolução literária a partir da sucessão histórica de sistemas e, por outro, a história geral a[21] partir do encadeamento dinâmico de situações sociais, não haverá de ser possível também colocar-sea “série literária e a “não-literária” numa conexão que abranja a relação entre Literatura e história, sem comisso obrigar-se a primeira a, abandonando seu caráter artístico, encaixar-se numa função meramentemimética ou ilustrativa?

[22]V

No âmbito da questão aí colocada, eu vejo o desafio da ciência literária na retomada do problema dahistória da literatura deixado em aberto pela disputa entre o método marxista e o formalista. Minha tentativade superar o abismo entre literatura e história, entre o conhecimento histórico e o estético, pode, pois,principiar do ponto em que ambas aquelas escolas pararam. Seus métodos compreendem o fatoliterárioencerrado no círculo fechado de uma estética da produção e da representação. Com isso, ambasprivam a literatura de uma dimensão que é componente imprescindível tanto de seu caráter estético quantode sua função social: a dimensão de sua recepção e de seu efeito. Leitores, ouvintes, espectadores — ofator público, em suma, desempenha naquelas duas teorias literárias um papel extremamente limitado. Aescola marxista não trata o leitor — quando dele se ocupa — diferentemente do modo com que ela trata oautor: busca-lhe a posição social ou procura reconhecê-lo na estratificação de uma dada sociedade. Aescola formalista precisa dele apenas como o sujeito da percepção, como alguém que, seguindo asindicações do texto, tem a seu cargo distinguir a forma ou desvendar o procedimento. Pretende, pois, ver oleitor dotado da compreensão teórica do filólogo, o qual, conhecedor dos meios artísticos, é capaz de refletirsobre eles — do mesmo modo como, inversamente, a escola marxista iguala a experiência espontânea doleitor ao interesse científico do materialismo histórico, que deseja [23] desven|dar na obra literária asrelações entre a superestrutura e a base. Contudo — e como afirmou Walther Bulst —, texto algum jamais

foi escrito para ser lido e interpretado filologicamente por filólogos[40], ou — acrescento eu —

historicamente por historiadores. Ambos os métodos, o formalista e o marxista, ignoram o leitor em seupapel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o histórico: o papel dodestinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa. Considerando-se que, tanto em seu caráter

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artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógicaentre literatura e leitor — relação esta que pode ser entendida tanto como aquela da comunicação

(informação) com o receptor quanto como uma relação de pergunta e resposta[41] —, há de ser possível,

no âmbito de uma história da literatura, embasar nessa mesma relação o nexo entre as obras literárias. Eisso porque a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto históricas. Aimplicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação

de seu valor estético, pela comparação com outras obras já lidas[42]. A implicação histórica manifesta-se

na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade eenriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra etornando visível sua qualidade estética. Se, pois, se contempla a literatura na dimensão de sua recepção ede seu efeito, então a oposição entre seu aspecto estético e seu aspecto histórico vê-se constantementemediada, e reatado o fio que liga o fenômeno passado à experiência presente da poesia, fio este que ohistoricismo rompera.

Com base nessa premissa, cumpre agora responder à pergunta acerca de como se poderia hojefundamentar metodologicamente e reescrever a história da literatura. O esboço que se segue foi dividido emsete teses (VI-XII), cada uma das quais será por mim discutida separadamente.

[24]VI

Uma renovação da história da literatura demanda que se ponham abaixo os preconceitos doobjetivismo histórico e que se fundamentem as estéticas tradicionais da produção e da representação numaestética da recepção e do efeito. A historicidade da literatura não repousa numa conexão de “fatos literários”estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores. Essamesma relação dialógica constitui o pressuposto também da história da literatura. E isso porque, antes deser capaz de compreender e classificar uma obra, o historiador da literatura tem sempre de novamentefazer-se, ele próprio, leitor. Em outras palavras: ele tem de ser capaz de fundamentar seu próprio juízotomando em conta sua posição presente na série histórica dos leitores.

O postulado que, em sua crítica à ideologia dominante da objetividade, R. G. Collingwoodestabeleceu para a historiografia — “history is nothing but the re-enactment of past thought in the historian’s

mind”[43] — aplica-se em ainda maior medida à história da literatura. A concepção positivista da história

como descrição “objetiva” de uma seqüência de acontecimentos num passado já morto falha tanto no quese refere ao caráter artístico da literatura, quanto no que respeita à sua historicidade [25] especí|fica. A obraliterária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo

aspecto[44]. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes,

como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matériadas palavras e conferindo-lhe existência atual: “parole qui doit, en même temps qu’elle lui parle, créer un

interlocuteur capable de l’entendre”[45]. É esse caráter dialógico da obra literária que explica por que razão

o saber filológico pode apenas consistir na continuada confrontação com o texto, não devendo congelar-se

num saber acerca de fatos[46]. O saber filológico permanece sempre vinculado à interpretação, e esta

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precisa ter por meta, paralelamente ao conhecimento de seu objeto, refletir e descrever a consumaçãodesse conhecimento como momento de uma nova compreensão.

A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualizaçãodos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e docrítico, que sobre eles reflete. A soma — crescente a perder de vista — de “fatos” literários conforme osregistram as histórias da literatura convencionais é um mero resíduo desse processo, nada mais quepassado coletado e classificado, por isso mesmo não constituindo história alguma, mas pseudo-história.Aquele que toma já por uma parcela da história da literatura uma tal série de fatos literários estáconfundindo o caráter de acontecimento de uma obra de arte com o de um fato histórico. Comoacontecimento literário, o Perceval de Chrétien de Troyes não é “histórico” no sentido em que o é, por

exemplo, a Terceira Cruzada, contemporânea à obra[47]. Não se trata de uma action que, em função de

uma série de premissas e motivações imperiosas, da intenção reconstruível de um ato histórico e de suasconseqüências inevitáveis e incidentais, se possa explicar como evento decisivo, O contexto histórico noqual uma obra literária aparece não constitui uma seqüência factual de acontecimentos forçosamenteexistentes independentemente de um observador. O Perceval torna-se acontecimento literário unicamentepara seu leitor, que lê essa obra derradeira de Chrétien tendo na lembrança [26] as obras anteriores doautor, percebe-lhe a singularidade em comparação com essas e outras obras já conhecidas e adquire,assim, um novo parâmetro para a avaliação de obras futuras. Diferentemente do acontecimento político, oliterário não possui conseqüências imperiosas, que seguem existindo por si sós e das quais nenhumageração posterior poderá mais escapar. Ele só logra seguir produzindo seu efeito na medida em que suarecepção se estenda pelas gerações futuras ou seja por elas retomada — na medida, pois, em que hajaleitores que novamente se apropriem da obra passada, ou autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ourefutá-la. A literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativa dosleitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra. Da objetivação ou nãodesse horizonte de expectativa dependerá, pois, a possibilidade de compreender e apresentar a história daliteratura em sua historicidade própria.

[27]VII

A análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça quando descreve arecepção e o efeito de uma obra a partir do sistema de referências que se pode construir em função dasexpectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento préviodo gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a linguagempoética e a linguagem prática.

Essa tese volta-se contra o ceticismo disseminado — firmado sobretudo pela crítica de René Wellek àteoria literária de I. A. Richards — quanto à possibilidade de uma análise do efeito estético chegar aalcançar a esfera de significação de uma obra literária, em vez de, em suas tentativas, resultar, na melhordas hipóteses, simplesmente numa sociologia do gosto. Wellek argumenta não ser possível, por meiosempíricos, determinar um estado da consciência, quer seja o individual — uma vez que este encerra em sialgo de momentâneo e exclusivamente pessoal quer seja o coletivo — que J. Mukarovsky supõe ser o efeito

da obra de arte[48]. Roman Jakobson pretendeu substituir o “estado coletivo da consciência” por uma

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“ideologia coletiva”, esta sob a [28] forma de um sistema de normas que existiria, para cada obra literária,na qualidade de langue, e que seria atualizado pelo receptor como parole — embora de maneira imperfeita

e jamais em sua totalidade[49]. De fato, essa teoria limita o subjetivismo do efeito, mas deixa em aberto a

questão de a partir de que dados se pode apreender e alojar num sistema de normas o efeito de uma obraparticular sobre determinado público. Há, entretanto, meios empíricos nos quais até hoje não se pensou —dados literários a partir dos quais, para cada obra, uma disposição específica do público se deixa averiguar,disposição esta que antecede tanto a reação psíquica quanto a compreensão subjetiva do leitor. Assimcomo em toda experiência real, também na experiência literária que dá a conhecer pela primeira vez umaobra até então desconhecida há um “saber prévio, ele próprio um momento dessa experiência, com base noqual o novo de que tomamos conhecimento faz-se experienciável, ou seja, legível, por assim dizer, num

contexto experiencial”[50]. Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num

espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicaçõesimplícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembran-ça do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada posturaemocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então— e não antes disso —, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversosleitores ou camadas de leitores.

O caso ideal para a objetivação de tais sistemas histórico-literários de referência é o daquelas obrasque, primeiramente, graças a uma convenção do gênero, do estilo ou da forma, evocam propositadamenteum marcado horizonte de expectativas em seus leitores para, depois, destruí-lo passo a passo — proce-dimento que pode não servir apenas a um propósito crítico, mas produzir ele próprio efeitos poéticos. Assimé que Cervantes faz com que, da leitura do Dom Quixote, resulte o horizonte de expectativa dos antigos etão populares romances de cavalaria, romances estes que a aventura desse seu último cavaleiro parodia,

então, profundamente[51]. Assim é também que Diderot, com as perguntas fictícias do leitor ao narrador no

princípio de seu Jacques le fataliste, evoca o horizonte de expectativa do então em voga romance de“viagem”, bem como as convenções (aristotelizantes) da fábula romanesca e da providência que lhe éprópria, fazendo-o apenas para, a seguir, contrapor provocativamente ao prometido romance de viagem ede amor uma vérité de l’histoireinteiramente não-romanesca: a realidade bizarra e a casuística moral dashistórias que insere, nas quais a verdade da vida contesta seguidamente o caráter mentiroso da ficção

poética[52]. Também Nerval, em suas Chimères, cita, combina e mistura toda uma gama de conhecidos

motivos românticos e ocultistas, produzindo a partir daí o horizonte de expectativa da transformação míticado mundo, mas apenas para afirmar seu repúdio à poesia romântica: as identificações e relações dacondição mítica familiares ou acessíveis ao leitor dissolvem-se em algo desconhecido na medida em quefracassa o intentado mito privado do Eu lírico, e na medida também em que se rompe a lei da informação

suficiente, de modo que a própria obscuridade tornada expressiva adquire uma função poética[53].Mas a possibilidade da objetivação do horizonte de expectativa verifica-se também em obras

historicamente menos delineadas. E isso porque, na ausência de sinais explícitos, a predisposiçãoespecífica do público com a qual um autor conta para determinada obra pode ser igualmente obtida a partirde três fatores que, de um modo geral, se podem pressupor: em primeiro lugar, a partir de normasconhecidas ou da poética imanente ao gênero; em segundo, da relação implícita com obras conhecidas docontexto histórico-literário; e, em terceiro lugar, da oposição entre ficção e realidade, entre a função poéticae a função prática da linguagem, oposição esta que, para o leitor que reflete, faz-se sempre presentedurante a leitura, como possibilidade de comparação. Esse terceiro fator inclui ainda a possibilidade de oleitor perceber uma nova obra tanto a partir do horizonte mais restrito de sua expectativa literária, quanto

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[30] do horizonte mais amplo de sua experiência de vida. Voltarei a essa estruturação dos horizontes e àsua possível objetivação mediante o esquema de pergunta e resposta quando abordar a questão da relaçãoentre literatura e vida (ver tese XII).

[31]VIII

O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível determinarseu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um supostopúblico. Denominando-se distância estética aquela que medeia entre o horizonte de expectativapreexistente e a aparição de uma obra nova — cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação deexperiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por conseqüênciauma “mudança de horizonte” —, tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro dasreações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados deaprovação, compreensão gradual ou tardia).

A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende, supera,decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos claramente um critério para adeterminação de seu valor estético. A distância entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já

conhecido da experiência estética anterior e a “mudança de horizonte”[54] exigida pela acolhida à nova

obra, determina, do ponto de vista da estética da recepção, o caráter artístico de uma obra literária.Àmedida que essa distância se reduz, que não se demanda da consciência receptora nenhuma guinadarumo ao horizonte da 32] expe|riência ainda desconhecida, a obra se aproxima da esfera da arte “culinária”ou ligeira. Esta última deixa-se caracterizar, segundo a estética da recepção, pelo fato de não exigirnenhuma mudança de horizonte, mas sim de simplesmente atender a expectativas que delineiam umatendência dominante do gosto, na medida em que satisfaz a demanda pela reprodução do belo usual,confirma sentimentos familiares, sanciona as fantasias do desejo, torna palatáveis — na condição de“sensação” — as experiências não corriqueiras ou mesmo lança problemas morais, mas apenas para

“solucioná-los” no sentido edificante, qual questões já previamente decididas[55]. Se, inversamente, trata-

se de avaliar o caráter artístico de uma obra pela distância estética que a opõe à expectativa de seu públicoinicial, segue-se daí que tal distância — experimentada de início com prazer ou estranhamento, naqualidade de uma tiova forma de percepção — poderá desaparecer para leitores posteriores, quando anegatividade original da obra houver se transformado em obviedade e, daí em diante, adentrado ela própria,na qualidade de uma expectativa familiar, o horizonte da experiência estética futura. É nessa segundamudança de horizonte que se situa particularmente a classicidade das assim chamadas obras-primas; suaforma bela, tornada uma obviedade, e seu “sentido eterno”, aparentemente indiscutível, aproximam-naperigosamente, do ponto de vista estético-recepcional, da pacificamente convincente e palatável arte“culinária”, de forma que um esforço particular faz-se necessário para que se possa lê-la “a contrapelo” daexperiência que se fez hábito e, assim, divisar-lhe novamente o caráter artístico (cf. X).

A relação entre literatura e público não se resolve no fato de cada obra possuir seu público específico,

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histórica e sociologicamente definível; de cada escritor depender do meio, das concepções e da ideologiade seu público; ou no fato de o sucesso literário pressupor um livro “que exprima aquilo que o grupo espera-

va, um livro que revela ao grupo sua própria imagem”[56]. A sociologia da literatura não está contemplando

seu objeto de forma suficientemente dialética ao definir com tamanha estreiteza de visão o círculo formado

por escritor, obra e público[57]. Tal definição pode ser invertida: há obras que, no momento de sua [33]

publi|cação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão completamente ohorizonte conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a formar-se aos

poucos[58]. Quando, então, o novo horizonte de expectativas logrou já adquirir para si validade mais geral,

o poder do novo cânone estético pode vir a revelar-se no fato de o público passar a sentir comoenvelhecidas as obras até então de sucesso, recusando-lhes suas graças. É somente tendo em vista essamudança de horizonte que a análise do efeito literário adentra a dimensão de uma história da literatura

escrita pelo leitor[59], e as curvas estatísticas dos best sellers proporcionam conhecimento histórico.

Como exemplo disso, pode servir-nos uma sensação literária do ano de 1857. Juntamente como Madame Bovary de Flaubert — romance que, de lá para cá, tornou-se mundialmente famoso — foipublicado o hoje esquecido Fanny, de seu amigo Feydeau. Embora o romance de Flaubert tenha acarretadoum processo por violação da moral pública, Madame Bovary foi, a princípio, eclipsado pelo romance deFeydeau: em um ano, Fanny alcançou treze edições e, assim, um sucesso que Paris não via desdeo Atala de Chateaubriand. Do ponto de vista temático, ambos os romances atendiam à expectativa de umnovo público que, na análise de Baudelaire, abjurara todo e qualquer romantismo e desdenhava em igual

medida tanto o grandioso quanto o ingênuo nas paixões[60]. Os dois tratavam de um tema trivial — o

adultério em um ambiente burguês ou provinciano. Contudo, para além dos previsíveis detalhes das cenaseróticas, ambos os autores souberam dar uma guinada sensacional no triângulo amoroso entorpecido pelaconvenção. Lançaram uma nova luz sobre o desgastado tema do ciúme, invertendo a já esperada relaçãodos três papéis clássicos: Feydeau faz o jovem amante da femme de trente ans, embora tendo satisfeitosos seus desejos, ter ciúme do marido de sua amada e sucumbir ante essa tormentosa situação; Flaubert dáaos adultérios da esposa do médico de província — adultérios estes que Baudelaire interpreta como umaforma sublime do dandysme — desfecho surpreendente, na medida em que é precisamente a figura ridículado marido enganado, Charles Bovary, que, ao final do romance, assume traços [34] subli|mes. Na críticaoficial da época, encontram-se vozes a condenar tanto Fanny quanto Madame Bovary como produtos danova escola do réalisme, à qual acusam de negar tudo quanto é ideal e de atacar as idéias sobre as quais

se assenta a ordem social no Segundo Império[61]. Contudo, esboçado aqui apenas em umas poucas

pinceladas, o horizonte de expectativa do público de 1857 — que, após a morte de Balzac, nada mais

esperava de grandioso do romance[62] — somente explica o êxito distinto de ambos os romances quando

se coloca também a questão do efeito produzido por sua forma narrativa. A inovação formal de Flaubert, seuprincípio do “narrar impessoal” (a impassibilité que Barbey d’Aurevilly atacou afirmando que, se se pudesse

forjar uma máquina de narrar de aço inglês, esta não funcionaria diferentemente de Monsieur Flaubert[63]),tinha de chocar aquele mesmo público que recebeu o conteúdo provocante de Fanny apresentado no tomfacilmente digerível de um romance confessional. Ademais, incorporados às descrições de Feydeau, tal

público pôde identificar ideais da moda e desejos fracassados de uma camada social dominante[64],podendo deleitar-se livremente com a lasciva cena culminante na qual Fanny (sem desconfiar de que seuamante a observa da sacada) seduz o marido — afinal, já a reação da desafortunada testemunhadesobrigava o público da indignação moral. Quando, porém, Madame Bovary, compreendido de iníciosomente por um pequeno círculo de conhecedores e considerado um marco na história do romance, tornou-

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se um sucesso mundial, o público leitor de romances por ele formado sancionou o novo cânone deexpectativas, tornando insuportáveis as debilidades de Feydeau — seu estilo floreado, seus efeitos da mo-da, seus clichês lírico-confessionais — e fazendo amarelecer qual um best seller do passado as páginasde Fanny.

[35]IX

A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no passadopossibilita, por outro lado, que se apresentem as questões para as quais o texto constituiu uma resposta eque se descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá encarado e compreendido a obra. Talabordagem corrige as normas de uma compreensão clássica ou modernizante da arte — em geralaplicadas inconscientemente — e evita o círculo vicioso do recurso a um genérico espírito da época. Alémdisso, traz à luz a diferença hermenêutica entre a compreensão passada e apresente de uma obra, dá aconhecer a história de sua recepção — que intermedeia ambas as posições — e coloca em questão, comoum dogma platonizante da metafísica filológica, a aparente obviedade segundo a qual a poesia encontra-seatemporalmente presente no texto literário, e seu significado objetivo, cunhado deforma definitiva, eterna eimediatamente acessível ao intérprete.

O método da estética da recepção[65] é imprescindível à compreensão da literatura pertencente ao

passado remoto. Quando não se conhece o autor de uma obra, quando sua intenção não se encontraatestada e sua relação com suas fontes e modelos só pode ser investigada indiretamente, a questão filoló-gica acerca de como, “verdadeiramente”, se deve entender o texto — ou seja, de como entendê-lo “daperspectiva de sua época” [36] — encontra resposta sobretudo destacando-o do pano de fundo daquelasobras que ele, explícita ou implicitamente, pressupunha serem do conhecimento do público seucontemporâneo. O poeta das branches mais antigas do Roman de Renart — conforme atesta o prólogo daobra — confia, por exemplo, em que seus ouvintes conheçam romances como a história de Tróia e oTristan, bem como poemas épicos (chansons de geste) e anedotas em verso (fabliaux), interessando-se,portanto, pela “inaudita guerra dos barões Renart e Ysengrin”, que há de eclipsar tudo quanto se conhece.As obras e gêneros evocados são então, a seguir, todos mencionados ironicamente no curso da narrativa, eé, aliás, precisamente em função disso que se explica não em pouca medida o sucesso de público,ultrapassando em muito as fronteiras da França, dessa obra que se fez rapidamente famosa e foi a primeira

a assumir posição contrária a toda a literatura heróica e cortês até então dominante[66].A investigação filológica ignorou longamente a intenção originalmente satírica da obra medieval

Reineke Fuchs, e, com isso, também o sentido irônico-didático da analogia entre o ser animal e a naturezahumana; fê-lo porque, desde Jacob Grimm, permanecera cativa da concepção romântica da pura poesianatural e da fábula ingênua. Da mesma forma — para citar um segundo exemplo de normas modernizantes—, poder-se-ia também, com razão, repreender a pesquisa épica francesa desde Bédier pelo fato de ela —sem o perceber — viver de critérios tomados da poética de Boileau e julgar uma literatura não-clássicasegundo as normas da simplicidade, da harmonia entre a parte e o todo, da verossimilhança e de outros

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critérios afins[67]. Seu objetivismo histórico evidentemente não coloca o método filológico-crítico a salvo do

intérprete que, julgando-se isento, eleva seu próprio pré-entendimento estético à condição de normainconfessa, modernizando irrefletidamente o sentido do texto antigo. Quem acredita que, em conseqüênciaunicamente de seu mergulho no texto, o sentido “atemporalmente verdadeiro” de uma poesia teria dedescortinar-se de forma imediata e plena ao intérprete — postado, por assim dizer, exteriormente à históriae acima de todos os “equívocos” de seus predecessores e da recepção [37] histó|rica — “escamoteia oemaranhado da história do efeito [Wirkungsgeschichte] no qual se encontra enredada a própria consciênciahistórica”. Aquele que assim pensa estará, pois, negando “as premissas involuntárias e não arbitrárias, masdeterminantes, que balizam a sua própria compreensão”, logrando com isso tão-somente aparentar uma

objetividade que, na verdade, depende da legitimidade de seus questionamentos”[68].Em Wahrheit und Methode [Verdade e método], Hans Georg Gadamer, cuja crítica ao objetivismo

histórico aqui retomo, descreveu o princípio da história do efeito — que busca evidenciar a realidade da

história no próprio ato da compreensão[69] — como uma aplicação da lógica de pergunta e resposta à

tradição histórica. Levando adiante a tese de Collingwood, segundo a qual “só se pode entender um texto

quando se compreendeu a pergunta para a qual ele constitui uma resposta”[70], Gadamer explica que a

pergunta reconstruída não pode mais inserir-se em seu horizonte original, pois esse horizonte histórico ésempre abarcado por aquele de nosso presente: “O entendimento [é] sempre o processo de fusão de tais

horizontes supostamente existentes por si mesmos”[71]. A pergunta histórica não pode existir por si, mas

tem de transformar-se na pergunta “que a tradição constitui para nós”[72]. Resolvem-se assim as questões

de que se valeu René Wellek para descrever a aporia do juízo literário. Deve o filólogo avaliar uma obra

literária a partir da perspectiva do passado, do ponto de vista do presente ou do “juízo dos séculos”[73]? Os

critérios efetivos de um passado qualquer poderiam ser tão estreitos pondera Wellek que sua utilizaçãoapenas tornaria mais pobre uma obra que, na história de seu efeito, desenvolveu um rico potencial designificados. O juízo estético do presente, por sua vez, privilegiaria um cânone de obras que atendem aogosto moderno, mas avaliaria injustamente todas as demais obras, e unicamente porque a função destas àsua época já não se mostra visível. E a própria história do efeito, por mais instrutiva que seja, estaria, “em

sua autoridade, exposta às mesmas objeções que a autoridade dos contemporâneos do poeta”[74]. A

conclusão de Wellek — de que não há possibilidade de nos esquivarmos de nosso próprio juízo e de que sedeve apenas torná-lo o mais [38] obje|tivo possível, procedendo como fazem os cientistas, isto é, “isolando

o objeto”[75] — não constitui solução alguma da aporia, mas uma recaída no objetivismo, O “juízo dos

séculos” acerca de uma obra literária é mais do que apenas “o juízo acumula do de outros leitores, críticos,

espectadores e até mesmo professores”[76]; ele é o desdobramento de um potencial de sentido

virtualmente presente na obra, historicamente atualizado em sua recepção e concretizado na história doefeito, potencial este que se descortina ao juízo que compreende na medida em que, no encontro com atradição, ele realize a “fusão dos horizontes” de forma controlada.

A concordância entre minha tentativa de, com base na estética da recepcão, fundar uma possívelhistória da literatura e o princípio da história do efeito de H. G. Gadamer encontra, porém, seu limite nointento de Gadamer de elevar o conceito do clássico à condição de protótipo de toda mediação históricaentre passado e presente. Sua definição segundo a qual “o que é ‘clássico’ não necessita primeiramente da

superação da distância histórica, pois, em mediação constante, realiza por si só essa superação”[77],escapa à relação de pergunta e resposta constitutiva de toda tradição histórica. Se clássico é “o que diz

algo ao presente como se o dissesse especialmente a ele”?[78], então não se teria de buscar

primeiramente no texto clássico a pergunta para a qual ele constitui uma resposta. O clássico que de tal

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forma “significa e interpreta a si mesmo”[79] não se traduz pura e simplesmente no resultado daquilo a que

chamei a “segunda mudança de horizonte”? Não constitui ele a obviedade inquestionável da assim cha-mada “obra-prima”, que oculta sua negatividade original no horizonte retrospectivo de uma tradição modelare nos obriga a, investindo contra sua atestada classicidade, primeiramente recuperar o “correto horizonte depergunta”? Mesmo ante a obra clássica a consciência que opera com base na história do efeito não se

encontra desobrigada da tarefa de identificar “a relação de tensão entre texto e presente”[80]. O conceito

hegeliano do clássico que interpreta a si mesmo só pode conduzir à inversão da relação histórica de

pergunta e resposta[81] e contradizer o princípio da história do efeito segundo o qual o entendimento “não

é um processo apenas reprodutivo, mas produtivo também” [82].[39] Evidentemente, determina tal contradição o fato de Gadamer ter se apegado a um conceito de

arte clássica que, fora de sua época de origem — a do Humanismo —, não se sustenta como fundamentogeral de uma estética da recepção. Trata-se do conceito de mimesis, entendido aqui como“reconhecimento”, conforme expõe Gadamer em sua explicação ontológica da experiência da arte: “O queefetivamente experimentamos numa obra de arte, aquilo para o qual nos voltamos, é antes quão verdadeira

ela é, ou seja, em que medida conhecemos e reconhecemos nela as coisas e a nós mesmos”[83]. Esse

conceito de arte pode ser aplicado à arte humanista, mas não à medieval que a precedeu, e de formaalguma à época moderna que a sucedeu, na qual a estética da mimesis, tanto quanto a metafísicasubstancialista que a fundamenta (“o conhecimento do ser”), perdeu seu caráter obrigatório. Contudo, a

importância cognitiva da arte não teve fim com essa mudança de época[84], evidenciando assim que ela

absolutamente não estava vinculada à função clássica do reconhecimento. A obra de arte pode tambémtransmitir um conhecimento que não se encaixa no esquema platônico; ela o faz quando antecipa caminhosda experiência futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não experimentados ou

contém uma resposta a novas perguntas[85]. É precisamente desse significado virtual e dessa função

produtiva no processo da experiência que a história do efeito de literatura se vê subtraída quando se desejacolocar a mediação entre a arte passada e o presente sob o signo de tal conceito do clássico. Na condiçãode uma perspectiva da tradição hipostatizada (uma vez que, segundo Gadamer, o clássico, em mediaçãoconstante, realiza ele próprio a superação da distância histórica), o clássico há de voltar nosso olhar para ofato de que, à época de sua produção, a arte clássica ainda não se afigurava “clássica”, mas, antes, teráoutrora ela própria aberto novas perspectivas e pré-formado novas experiências, as quais somente emfunção da distância histórica — no reconhecimento do já conhecido — causam a impressão de que umaverdade atemporal se expressa na obra de arte.

Mesmo o efeito das grandes obras literárias do passado não é um acontecer que se mediava a sipróprio, nem pode ser [40] com|parado a uma emanação: também a tradição da arte pressupõe umarelação dialógica do presente com o passado, relação esta em decorrência da qual a obra do passadosomente nos pode responder e “dizer alguma coisa” se aquele que hoje a contempla houver colocado apergunta que a traz de volta de seu isolamento. Onde, em Wahrheit und Methode, a compreensão — analo-gamente ao “acontecer do ser” [Seinsgeschehen] de Heidegger — é entendida como “penetração num

acontecer da tradição no qual passado e presente mediavam-se continuadamente”[86], aí tem de padecer

o “momento produtivo que a compreensão encerra”[87]. Essa função produtiva da compreensão

progressiva — que, necessariamente, encerra também uma crítica da tradição e o esquecimento —fundamentará, nas páginas que seguem, o projeto estético-recepcional de uma história da literatura. Talprojeto tem de considerar a historicidade da literatura sob três aspectos: diacronicamente, no contextorecepcional das obras literárias (ver tese X); sincronicamente, no sistema de referências da literatura

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pertencente a uma mesma época, bem como na seqüência de tais sistemas (ver tese XI); e, finalmente, sobo aspecto da relação do desenvolvimento literário imanente com o processo histórico mais amplo (ver teseXII).

[41]X

A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária nodesdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra isolada em sua“série literária”, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência daliteratura. No passo que conduz de uma história da recepção das obras à história da literatura, comoacontecimento, esta última revela-se um processo no qual a recepção passiva de leitor e crítico transforma-se na recepção ativa e na nova produção do autor — ou, visto de outra perspectiva, um processo no qual anova obra pode resolver problemas formais e morais legados pela anterior, podendo ainda propor novosproblemas.

De que maneira pode a obra isolada, fixada numa série cronológica pela história positivista daliteratura e, desse modo, reduzida exteriormente a um “factum”, ser trazida de volta para o interior de seucontexto sucessório histórico e, assim, novamente compreendida como um “acontecimento”? A teoria daescola formalista pretende solucionar esse problema — como já se disse aqui — por intermédio de seuprincípio da “evolução literária”. Segundo tal princípio, a obra nova brota do pano de fundo das obrasanteriores ou contemporâneas a ela, atinge, na qualidade de forma bem-sucedida, o “ápice” de uma épocaliterária, é reproduzida e, assim, progressivamente automatizada, para então, finalmente, tendo já seimposto a forma seguinte, prosseguir [42] vegetan|do no cotidiano da literatura como gênero desgastado.Caso se intentasse analisar e descrever uma época literária de acordo com esse programa — que, ao que

eu saiba, até hoje jamais foi aplicados[88] —, poder-se-ia esperar de tal empreitada um quadro que, em

muitos aspectos, resultaria superior ao oferecido pela história convencional da literatura. Tal exposiçãoestabeleceria relações entre as séries fechadas em si mesmas — as quais coexistem na históriaconvencional sem nenhuma conexão a vinculá-las, emolduradas, quando muito, por um esboço de históriageral (ou seja, séries de obras de um mesmo autor, de uma escola ou de um estilo) —, bem como relações

entre as séries de diferentes gêneros, revelando assim a interação evolutiva das funções e das formas[89].As obras que aí se destacariam, se corresponderiam e se substituiriam figurariam, então, como momentosde um processo que não precisaria mais ser construído tendo em vista um ponto de chegada, pois,enquanto autogeração dialética de novas formas, ele não necessita de nenhuma teleologia. Vista dessamaneira, a dinâmica própria da evolução literária ver-se-ia, ademais, isenta do dilema dos critérios deseleção: o que importa aqui é a obra na qualidade de forma nova na série literária, e não a auto-reproduçãode formas, expedientes artísticos e gêneros naufragados, os quais se deslocam para o segundo plano, atéque um novo momento da evolução volte a torná-los “perceptíveis”. Por fim, no projeto formalista de umahistória da literatura que se vê como “evolução” e, paradoxalmente, exclui todo desenvolvimento orientado,o caráter histórico de uma obra seria sinônimo de seu caráter artístico: tal e qual o princípio que afirma ser aobra de arte percebida contra o pano de fundo de outras obras, o significado e o caráter evolutivo de um

fenômeno literário pressupõem como marco decisivo a inovação[90].A teoria formalista da “evolução literária” é decerto a tentativa mais importante no sentido de uma

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renovação da história da literatura. A descoberta de que também no domínio da literatura as mudançashistóricas se processam no interior de um sistema, a intentada funcionalização do desenvolvimento literárioe, não em menor grau, a teoria da automatização são conquistas das quais não devemos abrir mão, aindaque a canonização [43] uniface|tada da mudança necessite de correção. A crítica já apontou suficientementeas fraquezas da teoria formalista da evolução: o mero contraste ou variação estética não bastaria paraexplicar o desenvolvimento da literatura; a questão acerca do sentido tomado pela mudança das formasliterárias teria permanecido irrespondida; a inovação, por si só, não constituiria ainda o caráter artístico; e,finalmente, não se teria, por sua simples negação, abolido a relação entre evolução literária e mudança

social[91]. A resposta a esta última questão encontra-se em minha tese XII; a solução das demais exige

que, pela via da estética da recepção, se abra a teoria literária descritiva dos formalistas para a dimensãoda experiência histórica.

A descrição da evolução literária como uma luta incessante do novo contra o velho, ou comoalternância entre canonização e automatização das formas, reduz o caráter histórico da literatura àatualidade unidimensional de suas mudanças e limita a compreensão histórica à percepção destas últimas.Contudo, as mudanças da série literária somente perfazem uma seqüência histórica quando a oposiçãoentre a forma velha e a nova dá a conhecer também a especificidade de sua mediação. Tal mediação podeser definida como o problema “que cada obra de arte coloca e lega, enquanto horizonte das ‘soluções’

possíveis posteriormente a ela”[92]. Entretanto, a descrição da estrutura modificada e dos novos

procedimentos artísticos de uma obra não remete necessariamente de volta a esse problema e, portanto, àsua função na série histórica. A fim de determinar esta última — isto é, a fim de conhecer o problema legadopara o qual a obra nova na série literária constitui uma resposta —, o intérprete tem de lançar mão de suaprópria experiência, pois o horizonte passado da forma nova e da forma velha, do problema e da solução,somente se faz reconhecível na continuidade de sua mediação, no horizonte presente da obra recebida.Como “evolução literária”, a história da literatura pressupõe o processo histórico de recepção e produção

estética como condição da mediação de todas as oposições formais ou “qualidades diferenciais”[93].O fundamento estético-recepcional devolve à “evolução literária” não apenas a direção perdida, na

medida em que o [45] pon|to de vista do historiador da literatura torna-se o ponto de fuga — mas não dechegada! — do processo; ele abre também o olhar para a profundidade temporal da experiência literária,dando a conhecer a distância variável entre o significado atual e o significado virtual de uma obra. O que sequer dizer com isso é que o caráter artístico de uma obra — cujo potencial de significado o formalismoreduz à inovação, enquanto critério único de valor — não tem de ser sempre e necessariamente perceptívelde imediato, já no horizonte primeiro de sua publicação, que dirá então esgotado na oposição pura esimples entre a forma velha e a nova. A distância que separa a percepção atual, primeira, do significadovirtual — ou, em outras palavras: a resistência que a obra nova opõe à expectativa de seu público inicialpode ser tão grande que um longo processo de recepção faz-se necessário para que se alcance aquilo que,no horizonte inicial, revelou-se inesperado e inacessível. Pode ocorrer aí de o significado virtual de umaobra permanecer longamente desconhecido, até que a “evolução literária” tenha atingido o horizonte no quala atualização de uma forma mais recente permita, então, encontrar o acesso à compreensão da mais antigae incompreendida. Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que preparou oterreno para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia barroca e, em particular, para areinterpretação filológica e o renascimento” de Góngora. Exemplos de como uma nova forma literária podereabrir o acesso a obras já esquecidas podem ser dados em profusão; encaixam-se aí os assim chamados“renascimentos” — “assim chama dos” porque o significado do termo pode dar a impressão de um retornopor força própria, freqüentemente encobrindo o fato de que a tradição literária não é capaz de transmitir-se

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por si mesma e de que, portanto, um passado literário só logra retornar quando uma nova recepção o trazde volta ao presente, seja porque, num retorno intencional, uma postura estética modificada se reapropriade coisas passadas, seja porque o novo momento da evolução literária lança uma luz inesperada sobreuma literatura esquecida, luz esta que lhe permite encontrar nela o que anteriormente não era possível

buscar ali|[94].[45] O novo, portanto, não é apenas uma categoria estética. Ele não se resolve nos fatores inovação,

surpresa, superação, reagrupamento, estranhamento, fatores estes aos quais — e exclusiva-mente aosquais — a teoria formalista atribui importância. O novo torna-se também categoria histórica quando seconduz a análise diacrônica da Literatura até a questão acerca de quais são, efetivamente, os momentoshistóricos que fazem do novo em uma obra literária o novo; de em que medida esse novo é já perceptível nomomento histórico de seu aparecimento; de que distância, caminho ou atalho a compreensão teve depercorrer para alcançar-lhe o conteúdo e, por fim, a questão de se o momento de sua atualização plena foitão poderoso em seu efeito que logrou modificar a maneira de ver o velho e, assim, a canonização do

passado literário[95]. Já se discutiu, em outro contexto, que aspecto assume sob essa luz a relação entre

teoria poética e práxis esteticamente produtiva[96]. E certo, ademais, que tais considerações estão longe

de esgotar as possibilidades de interação entre produção e recepção que decorrem da mudança históricada postura estética. Elas bastam, entretanto, para clarificar aqui a qual dimensão conduz uma contemplaçãodiacrônica da literatura que não mais se contente em tomar já pelo aspecto histórico da literatura a expo-sição de uma seqüência cronológica de “fatos” literários.

[46]XI

Os resultados obtidos pela lingüística com a diferenciação e vinculação metodológica da análisediacrônica e da sincrônica ensejam, também no âmbito da história da literatura, a superação dacontemplação diacrônica, até hoje a única habitualmente empregada. Seja a perspectiva histórico-recepcional depara constantemente com relações interdependentes a pressupor um nexo funcional(“posições bloqueadas ou ocupadas diferentemente”) nas modificações da produção literária, então há deser igualmente possível efetuar um corte sincrônico atravessando um momento do desenvolvimento,classificar a multiplicidade heterogênea de obras contemporâneas segundo estruturas equivalentes,opostas e hierárquicas e, assim, revelar um amplo sistema de relações na literatura de um determinadomomento histórico. Poder-se-ia, então, desenvolver o princípio expositivo de uma nova história da literaturadispondo-se mais cortes no antes e no depois da diacronia, de tal forma que esses cortes articulemhistoricamente, em seus momentos constitutivos de épocas, a mudança estrutural na literatura.

Siegfried Kracauer foi, decerto, quem mais decididamente questionou o primado da contemplação

diacrônica na historio-grafia. Seu tratado Time and history[97]contesta a pretensão da história geral

(General History) de, no interior da cronologia, tornar compreensíveis acontecimentos de todas as esferasda vida como um processo uno, consistente em cada momento histórico. Essa [47] compreensão dahistória, ainda e sempre na esteira do conceito hegeliano do “espírito objetivo”, pressuporia que tudo o queacontece simultaneamente se encontraria também marcado pelo momento, ocultando assim a factual não-

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simultaneidade do simultâneo[98]. E isso porque, segundo Kracauer, a multiplicidade dos acontecimentos

de um momento histórico — acontecimentos estes que o historiador universal crê compreender como ex-poentes de um conteúdo uno — traduzir-se-ia, na verdade, em momentos de curvas temporais bastante

diversas, condicionados pelas leis de sua história particular (Special History)[99], conforme evidenciam de

forma imediata as interferências umas nas outras das diversas “histórias” das artes, bem como da históriado direito, da economia, da política e assim por diante: “The shaped times of the diverse areas overshadowthe uniform flow of time. Any historical period must therefore be imagined as a mixture of events which

emerge at different moments of their own time”[100].Não está em discussão aqui se tal diagnóstico implica uma incoerência intrínseca da história,

significando, portanto, que a coerência da história geral resulta sempre, e apenas retrospectivamente, davisão e da exposição homogeneizadora do historiador; nem tampouco se o radical duvidar da “razãohistórica” — que Kracauer, partindo do pluralismo de lapsos cronológicos e morfológicos de tempo, estendeaté a antinomia básica do geral e do particular na história — demonstra ser hoje de fato filosoficamenteilegítima a história universal. No que concerne, porém, à esfera da literatura, pode-se dizer que a percepção

de Kracauer da “coexistência do simultâneo e do não-simultâneo”[101], longe de conduzir o conhecimento

histórico a uma aporia, torna visível a necessidade e a possibilidade de descortinar o caráter histórico daliteratura por meio de cortes sincrônicos. Decorre, afinal, dessa percepção que a ficção cronológica domomento que marca todos os fenômenos simultâneos corresponde em tão pouca medida ao conceito dohistórico quanto a ficção morfológica de uma série literária homogênea, na qual todos os fenômenos, emsua sucessão, obedecem apenas a leis imanentes. A contemplação puramente diacrônica — por maisconclusivamente que ela, nas histórias dos gêneros, logre explicar modificações segundo a lógica [48] ima|nente de inovação e automatização, problema e solução — somente alcança a dimensão verdadeiramentehistórica quando rompe o cânone morfológico, quando confronta a obra importante do ponto de vista dahistória das formas com os exemplos historicamente falidos, convencionais, do gênero e, além disso, nãodeixa de considerar a relação dessa obra com o contexto literário no qual ela, ao lado de outras obras deoutros gêneros, teve de se impor. A historicidade da literatura revela-se justamente nos pontos de interseçãoentre diacronia e sincronia. Deve, portanto, ser igualmente possível tornar apreensível o horizonte literáriode determinado momento histórico sob a forma daquele sistema sincrônico com referência ao qual aliteratura que emergiu simultaneamente pôde ser diacronicamente recebida segundo relações de não-simultaneidade, e a obra percebida como atual ou inatual, como em consonância com a moda, comoultrapassada ou perene, como avançada ou atrasada em relação a seu tempo. Se, afinal, a literatura quesurge simultaneamente decompõe-se — da perspectiva da estética da produção — numa heterogêneamultiplicidade do não-simultâneo, isto é, das obras marcadas por momentos distintos do “shaped time” deseu gênero (como o céu estrelado aparentemente atual desintegra-se astronomicamente em pontosseparados pelas mais diversas distâncias temporais), para o público, que a percebe como obras da suaatualidade e as relaciona umas com as outras, tal multiplicidade recompõe-se —do ponto de vista daestética recepcional — na unidade de um horizonte comum e significativo de expectativas, lembranças eantecipações literárias.

Considerando-se que cada sistema sincrônico tem de conter também seu passado e seu futuro, na

condição de elementos estruturais inseparáveis[102], o corte sincrônico que passa pela produção literária

de determinado momento histórico implica necessariamente outros cortes no antes e no depois dadiacronia. Resultarão daí, analogamente ao que ocorre na história da língua, fatores constantes e variáveis,os quais se deixam localizar como funções do sistema. E isso porque também a literatura constitui umaespécie de gramática ou sintaxe, apresentando relações mais ou menos fixas: o conjunto dos gêneros,

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estilos e [49] fi|guras retóricas tradicionais e dos não-canonizados, ao qual se contrapõe uma esferasemântica mais variável — a dos temas, motivos e imagens literárias. Por isso, seguindo-se o exemplo dado

por Hans Blumenberg para a história da filosofia[103], pode-se tentar apreender também a mudança

estrutural na “evolução literária” não de forma substancialista, como “transformação” de formas e conteúdosliterários, mas de maneira funcional, como “reocupação” de posições no horizonte de perguntas e res-postas, “reocupação” esta que pode ser condicionada e provocada a partir tanto do interior — isto é, da leiimanente de um desenvolvimento do gênero —, quanto do exterior — ou seja, por estímulos e pressõesadvindas da situação histórico-social. A partir dessas premissas, poder-se-ia desenvolver um princípio expo-sitivo para uma história da literatura, que teria a vantagem de não mais precisar fugir à tarefa impraticávelde uma completa descrição e articulação histórica de todos os textos mediante uma seleção problemática,segundo um cânone convencional das obras. A mudança histórica da produção literária é apreensívelmesmo sem a compilação e apresentação exaustiva de todos os fatos e filiações diacrônicas, bastandopara tanto que se leia a mudança diacrônica na continuidade dos acontecimentos a partir do resultadohistórico, isto é, que seja descortinada no corte transversal plenamente analisável do sistema literário

sincrônico e seja perseguida em novos cortes[104]. Em princípio, tal apresentação da literatura na

sucessão histórica de seus sistemas seria possível a partir de uma série qualquer de pontos de interseção.Contudo, ela somente cumprirá a verdadeira tarefa de toda historiografia se encontrar e trouxer à luz pontosde interseção que articulem historicamente o caráter processual da “evolução literária”, em suas cesurasentre uma época e outra — pontos estes, aliás, cuja escolha não é decidida nem pela estatística nem pelavontade subjetiva do historiador da literatura, mas pela história do efeito: por “aquilo que resultou doacontecimento”.

[50]XII

A tarefa da história da literatura somente se cumpre quando a produção literária é não apenasapresentada sincrônica e diacronicamente na sucessão de seus sistemas, mas vista também como históriaparticular, em sua relação própria com a história geral. Tal relação não se esgota no fato de podermosencontrar na literatura de todas as épocas um quadro tipificado, idealizado, satírico ou utópico da vidasocial. A função social somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiêncialiterária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento domundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social.

Em geral, o nexo funcional entre literatura e sociedade é demonstrado pela sociologia tradicional daliteratura com base nos estreitos limites de um método que, de um modo apenas superficial, substituiu oprincípio clássico da imitatio naturae pela definição segundo a qual a literatura seria representação de umarealidade predeterminada que, por isso mesmo, tinha de elevar um conceito estilístico vinculado a umaépoca específica — o “realismo” do século XIX — à condição de categoria literária por excelência. Noentanto, também o “estruturalismo” das tendências iniciadas por Northop Frye e Claude Lévi-Strauss, hojeem moda, permanece ainda totalmente cativo dessa estética [51] fundamental|mente classicista da

representação e de seus esquematismos do “espelhamento” e da “tipificação”[105]. Na medida em que

explica as descobertas da lingüística e da ciência literária estruturalista como constantes antropológicasarcaicas, revestidas do mito literário — o que, não raro, somente logra fazer com o auxílio de uma evidentealegorização dos textos —, o estruturalismo reduz a existência histórica, por um lado, a estruturas de uma

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natureza social primitiva, e a poesia, por outro, a expressão mítica ou simbólica dessas formas sociaisconstantes. Ignora, assim, precisamente a função eminentemente social, isto é, socialmente constitutiva, daliteratura. O estruturalismo literário — tanto quanto, antes dele, a ciência literária formalista e a marxista —não se pergunta de que forma a literatura “marca, ela própria, a concepção de sociedade que constitui o seupressuposto”, nem como ela marcou essa concepção ao longo do processo histórico. Assim formulouGerhard Hess, em sua palestra sobre Das Bild der Gesellschaft in der französischen Literatur [A imagem dasociedade na literatura francesa] (1954), o problema ainda em aberto do estabelecimento de um vínculoentre a história da literatura e a sociologia, mostrando que a literatura francesa, no curso de seudesenvolvimento recente, pode reivindicar para si a primazia na descoberta de certas leis da vida

social[106]. Minha tentativa de, do ponto de vista estético-recepcional, responder à pergunta acerca da

função socialmente constitutiva da literatura pode partir do fato de que, desde Karl Mannheim[107], o

conceito de horizonte de expectativa — já empregado anteriormente por mim na interpretação histórico-

literária[108] e agora desenvolvido metodologicamente — encontra-se presente também na axiomática da

sociologia. Tal conceito encontra-se igualmente no centro de um ensaio metodológico de Karl R. Poppersobre Leis naturais e sistemas teóricos, ensaio este que pretende ancorar a construção da teoria científicana experiência pré-científica da práxis existencial, desenvolvendo a partir da premissa de um “horizonte deexpectativas” o problema da observação e oferecendo, assim, uma base de comparação para meu intentode definir a contribuição específica da literatura no processo geral da construção da experiência e de

delimitar essa contribuição com relação a outras formas de comportamento social[109].[52] Segundo Popper, o progresso da ciência tem em comum com a experiência pré-científica o fato

de cada hipótese, assim como cada observação, sempre pressupor expectativas, “quais sejam, aquelas quecompõem o horizonte de expectativa que dá, então, significado às observações e lhes confere, assim,

o status de observações”[110]. Tanto para o progresso da ciência quanto para o avanço da experiência de

vida, o momento mais importante é o da “frustração de expectativas”: “Elas se assemelham à experiência deum cego que se choca com um obstáculo, descobrindo assim a sua existência. Graças ao defraudamentode nossas suposições, nós tomamos contato efetivo com a ‘realidade’. A refutação de nossos equívocos

constitui a experiência positiva que extraímos da realidade”[111]. Esse modelo — que, é certo, ainda não

explica suficientemente o processo de construção das teorias científicas[112], mas nos dá conta do

“sentido produtivo da experiência negativa” na práxis da vida[113] — pode, ao mesmo tempo, lançar uma

luz mais nítida sobre a função específica da literatura na vida social. E isso porque, ante o (hipotético) não-leitor, o leitor tem a vantagem de — para permanecermos na imagem utilizada por Popper —não precisarprimeiramente topar com um novo obstáculo para, então, adquirir uma nova experiência da realidade. Aexperiência da leitura logra libertá-lo das opressões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em queo obriga a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele dapráxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também anteciparpossibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novosdesejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.

A pré-orientação de nossa experiência por intermédio do poder criativo da literatura repousa nãoapenas em seu caráter artístico, que, através de uma forma nova, auxilia-nos a romper o automatismo dapercepção cotidiana. A forma nova da arte não é apenas “percebida em contraposição ao pano de fundooferecido por outras obras de arte e mediante associação com estas”. Vítor Chklovski só tem razão nessa

sua famosa afirmação, pertencente ao cerne do credo formalista[114], quando se insurge contra o [53] pre|

conceito da estética classicista, que definia o belo como harmonia entre forma e conteúdo e,

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conseqüentemente, reduzia a forma nova à sua função secundária de conformar um conteúdo predeter-minado. A nova forma surge, porém, não apenas para “substituir a antiga, que já não é mais artistica . Ela écapaz também de possibilitar uma nova percepção das coisas pré-formando o conteúdo de uma experiênciarevelado primeiramente sob forma literária. A relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto na es-fera sensorial, como pressão para a percepção estética, quanto também na esfera ética, como desafio à

reflexão moral[115]. A nova obra literária é recebida e julgada tanto em seu contraste com o pano de fundo

oferecido por outras formas artísticas, quanto contra o pano de fundo da experiência cotidiana de vida. Naesfera ética, sua função social deve ser apreendida, do ponto de vista estético-recepcional, tambémsegundo as modalidades de pergunta e resposta, problema e solução, modalidades sob cujo signo a obraadentra o horizonte de seu efeito histórico.

De que maneira uma nova forma estética pode possuir também conseqüências morais — ou, emoutras palavras, de que forma pode ela conferir a uma questão moral o maior efeito social concebível —, talé o que nos demonstra da maneira mais impressiva o caso de Madame Bovary e do processo movido con-tra seu autor, Flaubert, após a publicação da obra na Revue de Paris, em 1857. A nova forma literária queobrigou o público de Flaubert a uma percepção inabitual da “fábula desgastada” foi o princípio do narrarimpessoal (ou desinteressado), vinculado ao artifício do assim chamado “discurso indireto livre”, manejadopor Flaubert com virtuosidade e coerência no tratamento do foco narrativo. Pode-se esclarecer o que issosignifica a partir de uma descrição considerada extremamente imoral pelo procurador Pinard em suaacusação. A passagem segue-se, no romance, ao primeiro “passo em falso” de Emma e a apresentaolhando-se no espelho:

En s’apercevant dans la glace, elle s’étonna de son visage. Jamais elle n’avait eu les yeux sigrands, si noirs, ni d’une telle [54] pro|fondeur. Quelque chose de subtil épandu sur sapersonne la transfigurait.Elle se répétait: J’ai un amant! un amant! se délectant à cette idée comme à celle d’une autrepuberté qui lui serait survenue. Elle allait donc enfin posséder ces plaisirs de l’amour, cettefièvre de bonheur dont elle avait désespéré. Elle entrait dans quelque chose de merveilieux, oùtout serait passion, extase, délire...

O procurador toma essas últimas frases por uma descrição objetiva, contendo em si o julgamento donarrador, e se irrita com tal glorification de l’adultère, que seria ainda mais perigosa e imoral do que o

próprio adultério[116]. No entanto, o acusador de Flaubert comete aí um equívoco que lhe é prontamente

apontado pelo defensor: as frases por ele incriminadas não constituem uma constatação objetiva donarrador à qual o leitor possa dar crédito, mas sim uma opinião subjetiva da personagem à qual cumpre,desse modo, caracterizar em seus sentimentos construídos a partir da leitura de romances. O procedimentoartístico consiste aí em se apresentar um discurso em grande parte interior da personagem descrita semprovê-lo de nenhum sinal indicativo do discurso direto (Je vais donc enfim posséder ...) ou do discursoindireto (Elle se disait qu’elle allait donc enfin posséder...), o que resulta em que o leitor é quem tem dedecidir ele próprio se toma a frase por uma asserção verdadeira ou se deve entendê-la como uma opiniãocaracterística dessa personagem. Emma Bovary é, de fato, “[julgada] a partir da mera e nítida

caracterização de sua existência subjetiva, a partir das suas próprias sensações”[117]. Tal conclusão,

extraída de uma análise estilística moderna, coincide inteiramente com a contra-argumentação do defensorSénard, o qual acentua que Emma começa a desiludir-se já a partir do segundo dia: Le dénouementpour la

moralité se trouve à chaque ligne du livre[118]. Sénard, entretanto, não podia dar nome ao procedimento

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artísticos ainda desconhecido à época! O efeito consternador das inovações formais do estilo narrativoflaubertiano faz-se evidente no processo: a narrativa impessoal obriga seus leitores não apenas a perceberas coisas de modo diferente — com “exatidão fotográfica”, segundo o juízo da época —, mas os [55] com|pele também a uma estranha insegurança do juízo. Uma vez que o novo procedimento artístico rompeucom uma velha convenção do romance — a presença constante na descrição das personagens do juízomoral inequívoco e avalizado a seu respeito —, Madame Bovary pôde radicalizar ou reformular perguntasconcernentes à práxis da vida que, ao longo do julgamento, deslocaram inteiramente para o segundo planoo pretexto inicial da acusação: o elemento supostamente lascivo. A questão por intermédio da qual odefensor passou ao contra-ataque volta contra a sociedade a acusação de que o romance nada maisapresenta do que a Histoire des adultères d’une femme de province: trata-se da pergunta sobre se não seriajusto que Madame Bovary ostentasse o subtítulo Histoire de l’éducation trop souvent donnée en

province[119]. Com isso, entretanto, ainda não está respondida a pergunta na qual o promotor fez culminar

seu réquisitoire:

Qui peut condamner cette femme dans le livre? Personne. Telle est a conclusion. Il n’y a pasdans le livre un personnage qui puisse la condamner. Si vous y trouvez un personnoge sage, si

vous y trouvez un seul principe en vertu duquel l’adultère sait stigmatisé, j’ai tor[120].

Se, no romance, nenhuma das personagens apresentadas poderia condenar Emma Bovary, e senenhum princípio moral se impõe em nome do qual se poderia condená-la, não se está, então, juntamentecom o “princípio da fidelidade matrimonial”, questionando também a “opinião pública” dominante e o “senti-mento religioso” no qual ela se assenta? A que instância se há de levar o caso Madame Bovary, se asnormas sociais até então vigentes — opinion publique, sentiment religieux, morale publique, bonnes

mœurs — não mais bastam para julgá-lo[121]? Tais perguntas, explícitas e implícitas, não exprimem de

modo algum uma incompreensão estética ou uma tacanhez moralizadora da parte do promotor. Nelas semanifesta, antes, o inesperado efeito produzido por uma nova forma artística que foi capaz de, medianteuma novamanière de voir les choses, arrancar o leitor de Madame Bovary da certeza de seu juízo moral, eque transformou [56] nova|mente num problema em aberto uma questão já previamente decidida pela moralpública. Assim, diante do desgosto de, graças à arte de seu estilo impessoal, não haver Flaubert oferecidonenhum pretexto para a proibição de seu romance em razão da imoralidade do autor, o tribunal agiucoerentemente absolvendo Flaubert como escritor, mas condenando a escola literária por ele supostamenterepresentada — ou, na verdade, o procedimento artístico de que ainda não se tinha registro:

Attendu qu’il n’est pas permis, sous prétexte de peinture de caractère ou de couleur locale, dereproduire dans leurs écarts les faits, dits et gestes des personnages qu’un écrivain s’estdonnée mission de peindre; qu’un pareil système, appliqué aux œuvres de l’esprit aussi bienqu’aux productions des beaux-arts, conduit à un réalisme qui serait la négation du beau et dubon et qui, enfantant des œuvres également offensantes pour les regards et pour l’esprit,

commettrait de continuels outrages à la morale publique et aux bonnes mœurs[122].

Uma obra literária pode, pois, mediante uma forma estética inabitual, romper as expectativas de seusleitores e, ao mesmo tempo, colocá-los diante de uma questão cuja solução a moral sancionada pelareligião ou pelo Estado ficou lhes devendo. Em lugar de outros exemplos, melhor é lembrar aqui que não foi

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somente Brecht, mas já o Iluminismo, o primeiro a proclamar a relação de concorrência entre a literatura e amoral canonizada. Atesta-o, entre outros, Friedrich Schiller, que postulou expressamente para o teatro

burguês que as leis do palco começam onde termina a esfera das leis mundanas[123]. Contudo, a obra

literária pode também — e, na história da literatura, tal possibilidade caracteriza a nossa modernidade maisrecente — inverter a relação entre pergunta e resposta e, através da arte, confrontar o leitor com umarealidade nova, “opaca”, a qual não mais se deixa compreender a partir de um horizonte de expectativapredeterminado. Assim, o mais recente gênero romanesco, por exemplo, o muito discutido nouveau roman,surge como uma forma de arte moderna que — na formulação de Edgar Wind — apresenta o caso pa-radoxal em que “a solução está dada, mas abre-se mão do [57] proble|ma, a fim de que a solução possa ser

compreendida como tal”[124]. O leitor é aí excluído da condição de destinatário primordial e colocado na

posição de um terceiro, de um não-iniciado que, diante de uma realidade de significado estranho, tem elepróprio de encontrar as questões que lhe revelam para qual percepção do mundo e para qual problemahumano a resposta da literatura encontra-se voltada.

De tudo isso, conclui-se que se deve buscar a contribuição específica da literatura para a vida socialprecisamente onde a literatura não se esgota na função de uma arte da representação. Focalizando-seaqueles momentos de sua história nos quais obras literárias provocaram a derrocada de tabus da moraldominante ou ofereceram ao leitor novas soluções para a casuística moral de sua práxis de vida —soluções estas que, posteriormente, puderam ser sancionadas pela sociedade graças ao voto da totalidadedos leitores —, estar-se-á abrindo ao historiador da literatura um campo de pesquisa ainda poucoexplorado. O abismo entre literatura e história, entre o conhecimento estético e o histórico, faz-se superávelquando a história da literatura não se limita simplesmente a, mais uma vez, descrever o processo da históriageral conforme esse processo se delineia em suas obras, mas quando, no curso da “evolução literária”, elarevela aquela função verdadeiramente constitutiva da sociedade que coube à literatura, concorrendo com asoutras artes e forças sociais, na emancipação do homem de seus laços naturais, religiosos e sociais.

Se, em função dessa tarefa, vale a pena ao estudioso da literatura superar sua postura a-histórica, aíse encontrará também uma resposta à questão acerca de com que finalidade e com que direito pode-seainda hoje — ou novamente hoje — estudar a história da literatura.

[1] Aula inaugural pública, ministrada a 13 de abril de 1967 em comemoração ao sexagésimo aniversário de

Gerhard Hess, reitor da Universidade de Constança. A versão original tinha por título Was heißt und zu welchem Enaestudiert man Literaturgeschichte? [O que é e com que fim se estuda história da literatura?]. A presente versão foiconsideravelmente ampliada em função do desenvolvimento de minhas teses. Devo à discussão e à crítica dessas tesesum estímulo e aprendizado maiores do que poderia evidenciar com menções e referências particulares. Agradeçoespecialmente aos participantes do Primeiro Seminário Metodológico do Departamento de Ciência Literária da

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Universidade de Constança, ao colóquio dos docentes dessa mesma universidade e ao grupo de discussão do Semináriode Ciência Literária Geral e Comparada da Universidade Livre de Berlim.

[2] Sigo, nessa minha crítica, M. Wehrli, que escreveu recentemente sobre “Sinn und Unsinn derLiteraturgeschichte” [Sentido e ausência de sentido da história da literatura] (publicado no suplementoliterário do Neue Zürcher Zeitung de 26 de fevereiro de 1967) e que, de outra perspectiva, prognosticouigualmente o retorno da ciência da literatura à história da literatura. Dos trabalhos mais recentes que versamsobre o problema da história da literatura, conheço os seguintes (citados daqui por diante apenas com aindicação do ano): R. Wellek, “The theory of literary history”, in: Etudes dédiées au Quadrième Congrès deLinguistes. Travaux du Cercle linguistique de Prague, 1936, p. 173-91; id., “Der Begriffder Evolution in derLiteraturgeschichte”, in: Grundbegriffe der Literaturkritik, Stuttgart/ Berlim/Colônia/Mainz, 1965; U. Leo, “DasProblem der Literaturgeschichte” (1939), in: Sehen und Wirklichkeit bei Dante, Frankfisrt, 1957; W. Krauss,“Literaturgeschichte als geschichrlicher Auftrag” (1950), in: Studien und Aufätze, Berlim, 1959, p. 19-72; J.Storost, “Das Problem der Literaturgeschichte”, in: Dante-Jahrbuch, 38 (1960), p. 1-17; E. Trunz,“Literaturwissenschaft als Auslegung und als Geschichte der Dichtung”, in: Festschrift J. Trier, Meisenheim,1954; H. E. Hass, “Literatur und Geschichte”, in: Neue Deutsche Hefte, 5 (1958), p. 307-18; F. Sengle,“Aufgaben der heutigen Literaturgeschichtsschreibung”, in: Archiv für das Studium der neuerenSprachen, 200 (1964), p. 241-64. Outras obras sobre o assunto encontram-se indicadas nas notas.

[3] Assim pensa sobretudo R. Wellek, 1936, p. 173-5, e id., in: R. Wellek e A. Warren,Theorie derLiteratur, Berlim, 1966 (Ullstein Buch Nr. 420-1, p. 229): “A maioria das histórias da literatura de maiorimportância são ou histórias da cultura ou coletâneas de ensaios críticos. A primeira modalidade não éhistória da arte, a última, não é história da arte”.

[4] Georg Gottfried Gervinus, Schriften zur Literatur, Berlim, 1962, p. 4 (numa resenha de 1833 sobrehistórias da literatura então de publicação recente): “Tais livros podem ter todos os méritos, mas, do pontode vista histórico, não têm quase nenhum. Eles seguem cronologicamente as diversas formas poéticas,dispõem os autores um após o outro em seqüência cronológica — da mesma forma como outros enumeramtítulos de obras — e caracterizam, então, poetas e poesia de uma maneira qualquer. Isso, porém, não éhistória alguma; mal chega a ser o esqueleto de uma história”.

[5] “Was heißt und zu weichem Ende studiert man Universalgeschichte?” [O que significa e com quepropósito estuda-se história universal?], in: Schillers sämtliche Werke, Säkularausgabe, v. XIII, p. 3.

[6] Publicado pela primeira vez em 1837, sob o título “Grundsätze der Historik” [Fundamentos dateoria da história], in: Schriften..., op. cit., p. 49-103.

[7] Schrfien..., op. cit., p. 47.[8] “Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers”, in: Werke in fünf Banden, A. Flinter e K. Giel (eds.),

Darmstadt, 1960, v. 1, p. 602: “A Grécia apresenta uma idéia da individualidade nacional que jamais existiraanteriormente nem veio a existir depois, e, assim como é na individualidade que se encontra o segredo detoda existência, assim também todo o progresso dos homens na história universal assenta-se no grau, naliberdade e na peculiaridade de sua ação recíproca”.

[9] “Grundzüge der Historik”, parágrafos 27-8. [10] Schriften..., op. cit., p. 48.[11] Ibid.[12] “Grundzüge der Historik”, parágrafo 26.[13] Wahrheit und Methode — Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, Tübingen, 1960, p.

185-205, principalmente p. 187: “A própria ‘escola histórica’ sabia que, no fundo, não pode haver outrahistória senão a universal, porque só a partir do todo é que o particular se define em seu significadoespecífico. Como há de arranjar-se aí o investigador empírico, ao qual o todo jamais se oferece, sem ceder

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terreno ao filósofo e a seu arbítrio apriorístico?”[14] “Grundzüge der Historik”, parágrafo 32.[15] Geschichte der poetischen Nationalliteratur der Deutschen, v. IV, p. VII: “Nossa literatura já teve o

seu tempo, e, se não se deseja a paralisação da vida alemã, temos de atrair os talentos agora desprovidosde uma meta para o mundo real e para o Estado, onde se há de derramar um novo espírito sobre uma novamatéria”.

[16] Na apresentação de sua Geschichte der poetischen Nationalliteratur der Deutschen(Schriften...,op. cit., p. 123), em que Gervinus — nisso, defensor ainda do historicismo do Iluminismo contra o doromantismo — contradiz essa regra básica, afastando-se decididamente da “conduta rigorosa-menteobjetiva da maioria dos historiadores atuais”.

[17] “Über die Epochen der neueren Geschichte”, in: Geschichte und Politik —Ausgewählte Aufsätzeund Meisterschrften, H. Hofmann (ed.), , 1940, p. 141.

[18] “Se se quisesse, porém, [...] supor que tal progresso consiste no fato de que, em cada época, avida da humanidade se faz mais elevada, de que, portanto, cada geração sobrepuja completamente aprecedente — e a última seria, assim, a privilegiada, ao passo que as precedentes seriam apenas asportadoras das seguintes —, isso significaria, então, uma injustiça divina” (ibid.). Há que se falar aqui numanova teodicéia porque — como o demonstrou O. Marquard — já a filosofia idealista da história, rejeitada porRanke, lograra expressar a demanda recôndita por uma teodicéia, na medida em que, para aliviar Deusdessa carga, fizera do homem o sujeito responsável pela história e compreendera o progresso históricocomo um processo jurídico, ou como o progresso nas relações jurídicas humanas (cf. “Idealismus undTheodizee”, in: Philosophisches Jahrbuch, 73, 1965, p. 33-47).

[19] Op. cit., p. 528. Cf. p. 526 et seqs., em que Schiller define a tarefa do historiador universal comoum processo no qual se pode suspender o principio teleológico — isto é, o propósito de encontrar e resolverno curso da história universal o problema da ordem mundial —, “porque somente se há de esperar obteruma história universal segundo tal princípio no final dos tempos”. O próprio processo descreve ahistoriografia como uma espécie de “história do efeito”: o historiador universal “move-se partindo da mais re-cente situação do mundo rumo à origem das coisas”, destacando dentre os acontecimentos aqueles quetiveram uma influencia fundamental na conformação do mundo atual; em seguida, ele retorna pelo caminhoque encontrou e pode, então, “a partir do fio condutor dos fatos registrados”, apresentar como históriauniversal a relação entre a situação passada e a presente do mundo.

[20] A conseqüência do princípio segundo o qual o historiador, se deseja apresentar uma épocapassada, deve primeiramente desvencilhar-se de tudo o que sabe acerca do curso mais recente da história(Foustel de Coulanges) é o irracionalismo de uma “empatia” incapaz de prestar contas a si própria acercade suas premissas e preconceitos. Ver a respeito W. Benjamin, “Geschichtsphilosophische Thesen”, VII,in: Schriften I, , 1955, p. 497.

[21] W. von Humboldt, op. cit., p. 586. [22] Ibid., p. 590: “O historiador digno desse nome deve apresentar cada acontecimento como parte

de um todo, ou — o que significa a mesma coisa — evidenciar em cada um deles a forma da história”. [23] Característica dessa separação entre história da literatura e crítica literária é a definição de

filologia no Grundriß der romanischen Philologie de G. Gröber, v. I, Estrasburgo, 1906, 2. ed., p. 194: “Amanifestação na língua (compreensível apenas de forma mediata) do espírito humano e os feitos dessemesmo espírito no discurso artístico do passado constituem, portanto, o verdadeiro objeto da filologia”.

[24] Ver a respeito W. Krauss, 1950, p. 19 et seqs. [25] Cf. a respeito R. Wellek, 1965, p. 193. [26] W. Krauss, 1950, p. 57 et seqs., mostra, a partir do exemplo de E. R. Curtius, em que grande

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medida esse ideal científico permaneceu cativo do pensamento do círculo de [Stefan] George. [27] Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter, Berna, 1948, p. 404.[28] Op. cit., p. 66.[29] Uma bibliografia dos escritos de W. Krauss pode ser encontrada no volume

comemorativo Literaturgeschichte als geschichtlicher Auftrag, organizado por W. Bahner, Berlim, 1961. Asinvestigações que versam sobre o Iluminismo europeu figuram na série Neue Beiträge zurLiteraturwissenschaft, organizada por W. Krauss e H. Mayer.

[30] Cf. a respeito W. Krauss, 1950, p. 59; P. Demetz, “Zwischen Klassik und Bolschewismus. GeorgLukács als Theoretiker der Dichtung”, in: Merkur, 12 (1958), p. 501-15, e id.; Marx, Engels und die Dichter, ,1959.

[31] Inexiste ainda uma exposição completa da teoria literária e da estética, bem como de suasconseqüências, no período do degelo; cf. G. Struve, “Die sowjetische Literaturwissenschaft in jüngster Zeit”,in: Sowjetstudien (1959), p. 47-71, e W. Oelmüller, “Neue Tendenzen und Diskussionen der marxistischenÄsthetik”, in: Philosophische Rundschau, 9 (1961), p. 18 1-203.

[32] São as seguintes as edições disponíveis em tradução alemã: Boris Eikhenbaum,Aufsätze zurTheorie und Geschichte der Literatur, Frankfurt, 1965 (Ed. Suhrkamp, 119); Juri Tynianov, Die literarischenKunstmittel und die Evolution in der Literatur, Frankfurt, 1967 (Ed. Suhrkamp, 197); Vítor Chklovski, Theorieder Prosa, Frankfurt, 1966 (Ed. S. Fischer). Em tradução francesa, tem-se: Théorie de la littérature. Textesdesformalistes russes réunis, présentés et traduits par T. Todorov, Paris, 1965 (Ed. du Seuil). Há ainda umaedição bilíngüe, russo-alemão, dos principais escritos, publicada em 1969 pela editora W. Fink, Munique,organizada por J. Striedter, a quem devo muitos agradecimentos pela orientação e pelo estímulo quando daredação do capítulo que se segue. [No Brasil, ver Teoria da literatura. Formalistas russos, organizada porDionísio de Oliveira Toledo, Porto Alegre, Globo, 1973, com prefácio de Boris Schnaiderman e textos de B.Eikhenbaum, V. Chklovski, J. Tynianov e R. Jakobson, entre outros. Ver sobretudo J. Tynianov e R.Jakobson, “O problema dos estudos literários e lingüísticos”, p. 95-7, e J. Tynianov, “Da evolução literária”,p. 105-18.]

[33] Essa famosa fórmula, cunhada em 1921 por V. Chklovski, foi logo em seguida aperfeiçoadagraças ao conceito de um “sistema” estético no qual cada procedimento artístico tem uma funçãodeterminada a cumprir. Cf. V. Erlich, Russischer Formalismus, Munique, 1964, p. 99.

[34] Der Zusammenhang der Mittel des Sujetbaus mit den allgemeinen Stilmitteln (Poetik, 1919),citado a partir de B. Eikhenbaum, op. cit., p. 27. De outro ponto de vista, o da “evolution des genres”, já F.Brunetière considerava a “influência das obras sobre a obra” a relação mais importante da história daliteratura, cf. Wellek, 1965, p. 39.

[35] B. Eikhenbaum, op. cit., p, 47.[36] Id., p. 46; ver também J. Tynianov, Das literarische Faktum e Über literarische Evolution [“Da

evolução literária”, ver acima, nota 32]. [37] J. Tynianov e R. Jakobson, “Probleme der Literatur- und Sprachforschung”, in:Kursbuch, 5, 1966,

p. 75. [“Os problemas dos estudos literários e lingüísticos”; ver acima, nota 32] [38] J. Tynianov, em Die literarischen Kunstmittel..., op. cit., p. 40, opõe a “sucessão de sistemas”, na

condição de conceito principal da evolução literária, à “tradição”, como conceito básico da velha história daliteratura.

[39] No âmbito da lingüistica, esse princípio foi defendido sobretudo por E. Coseriu, cf.Sincronía,diacronía e historia, Montevidéu, 1958.

[40] “Bedenken eines Philologen”, in: Studium Generale, 7, p. 321-3. O novo acesso à tradiçãoliterária que R. Guiette, com seu método próprio de vincular crítica estética e conhecimento histórico,

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buscou numa série de instrutivos ensaios (parte deles in: Questions de littérature, Genebra, 1960)corresponde quase inteiramente a este seu princípio (ainda inédito):“Le plus grand tort des philologues,c’est de croire que la littérature a été faite pour des philologues”. Ver também a esse respeito seu “Eloge dela lecture”, in: Revue Générale Belge, janeiro de 1966, p. 3-14.

[41] Pode-se ignorar aqui o autor como terceiro fator, conforme argumenta M. Riffaterre numadiscussão com R. Jakobson e C. Lévi-Strauss: “[...] the poetic phenomenon, being linguistic, is not simplythe message, the poem. but the whole act of communication. This is a very special act, however, for thespeaker — the poet — is not present; any attempt to bring him back only produces interference, becausewhat we know of him we know from history, it is knowledge external to the message, or else we have found itout by rationalizing and distorting the message”(“Describing poetic structures: two approaches toBaudelaire’s ‘Les chats”’, in: Structuralism, Yale French studies, v. 36-7, p. 214).

[42] Essa tese é parte essencial da Introduction à une esthétique de la littérature de G. Picon, Paris,1953, cf. p. 90 et seqs.

[43] The idea o fhistory, Nova York/Oxford, 1956, p. 228. [44] Sigo aqui a critica de A. Nisin ao platonismo latente dos métodos filológicos, ou seja, à sua

crença numa substância atemporal da obra literária e num ponto de vista igualmente atemporal daquele quea contempla: “Car l’œuvre d’art, si elle nepeut incarner l’essence de l’art, n’es tpas non plus un jet que nouspuissions regarder, selon la règle cartésienne, sans y rien mettre de nous-mêmes que ce qui se peutappliquer indistinctement à tous les objets’ ”; La littérature et le lecteur, Paris, 1959, p. 57 (ver a respeitominha resenha in: Archiv für das Studium der neueren Sprachen, 197, 1960, p. 223-5).

[45] G. Picon, Introduction..., op. cit., p. 34. Essa concepção do modo de ser dialógico da obra literáriaencontra-se tanto em Malraux (Les voix du silence) quanto em Picon, Nisin e Guiette, tratando-se de umatradição viva na estética literária francesa, à qual devo muito; em última instância, ela remonta a umafamosa afirmação da poética de Valéry: “C’est l’exécution du poème qui est le poème”.

[46] Com razão, P. Szondi, em “Über philologische Erkenntnis”, in: Hölderlin-Studien, Frankfurt, 1967,identifica aí a diferença fundamental entre a ciência da literatura e a da história, cf. p. 11: “Não é lícito anenhum comentário, a nenhuma análise crítico-estilística de um poema propor-se como meta produzir umadescrição desse poema que se pretenda compreensível por si só. Mesmo o menos crítico de seus leitoresdesejará confrontar tal análise com o poema e entendê-la somente depois de haver reintegrado seusresultados nos conhecimentos que lhes deram origem”. Com isso concorda R. Guiette, Eloge de la lecture,op. cit.

[47] Uma observação que se aplica também a J. Storost, 1960, p. 15, que, apressadamente, equiparao acontecimento histórico ao literário (“A obra de arte é, primeiramente, [...] um ato artístico e, portanto,histórico como a batalha de Isso”).

[48] R. Wellek, 1936, p. 179. [49] In: Slovo a slovenost, I, p. 192, citado por Wellek, 1936, p. 179 et seqs. [50] G. Buck, Lernen und Erfahrung, , 1967, p. 56. Nessa obra, o autor retoma Husserl (Erfahrung und

Urteil, especialmente o parágrafo 8), mas, posteriormente, chega a uma definição da negatividade noprocesso da experiência que ultrapassa Husserl e é importante para a estruturação do horizonte daexperiência estética (cf. nota 111).

[51] Segundo a interpretação de H. J. Neuschäfer, “Der Sinn der Parodie im Don Quijote”, Heidelberg,1963 (Studia Romanica, 5).

[52] Segundo a interpretação de R. Warning, “Tristram Shandy und Jacques le fataliste”, Munique,1965 (Theorie und Geschichte der Literatur und der schönen Künste, 4), especialmente p. 80 et seqs.

[53] Segundo a interpretação de K. H. Stierle, “Dunkelheit und Form in Gérard de NervaisChimères”,

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Munique, 1967 ( Theorie und Geschichte der Literatur und der schönen Künste, 5), especialmente. p. 55 e91.

[54] Acerca desse conceito de Husserl, ver G. Buck, Lernen und Erfahrung, op. cit., p. 64 et segs. [55] Acolho aqui as conclusões da discussão sobre o kitsch como fenômeno-limite do estético,

discussão esta que se deu no terceiro colóquio do grupo de pesquisa Poetik und Hermeneutik e foipublicada em 1968 no volume Die nicht mehr schönen Künste —Grenzphanomene des Ästhetischen, W.Fink, Munique. Com relação à atitude “culinária”, que pressupõe uma arte do mero entretenimento, pode-sedizer, como do kitsch, que “as exigências dos consumidores são satisfeitas de antemão” (P. Beylin), que “aexpectativa atendida transforma-se em norma do produto” (W. Iser), ou que, “sem conter nem solucionarproblema algum, a obra reveste-se do aspecto da solução de um problema” (M. Imdahl), op. cit., p. 651-67.

[56] R. Escarpit, Das Buch und der Leser: Entwurfeiner Literatursoziologie, Colônia/Opladen, 1961(primeira edição alemã ampliada de Sociologie de la littérature, Paris, 1958), p. 116. A fixação objetivista dosucesso literário na congruência entre a intenção do autor e a expectativa de um grupo social sempre trazproblemas para Escarpit, quando se trata de explicar um efeito tardio ou constante de uma obra. Daípressupor ele a existência de um “fundamento coletivo no espaço ou no tempo” a embasar a “ilusão dedurabilidade” de um escritor, o que, no caso de Molière, conduz a um prognóstico surpreendente: “Molièrecontinua jovem para o francês do século XX porque seu mundo ainda vive e porque, ademais, um círculo decultura, pensamento e língua vincula-nos a ele. [...] Esse círculo, porém, diminui cada vez mais, e Molièreacabará por envelhecer e morrer, quando morrer aquilo que nosso tipo de cultura ainda tem em comum coma França de Molière” (p. 117). Como se Molière houvesse refletido apenas os “costumes de seu tempo”,tendo conservado seu sucesso apenas em função desse seu suposto propósito... Onde a congruência entreobra e grupo social inexiste ou não mais existe — como, por exemplo, no caso da recepção de uma obranum universo lingüístico distinto daquele em que ela foi escrita —, Escarpit arranja-se interpondo aí um mitomitos que foram inventados por uma posteridade para a qual se tornou estranha a realidade cujo lugar elesassumiram” (p. 111). Como se toda recepção que ultrapassa seu público inicial, socialmente determinado,fosse apenas um “eco desfigurado”, tão-somente uma conseqüência de “mitos subjetivos” (p. 111), e nãotivesse ela própria, na obra recebida, seu a priori objetivo, na condição de Limite e possibilidade dacompreensão posterior!

[57] [56a] Que passo faz-se necessário a fim de que se ultrapasse essa estreita definição, tal é o quenos mostra K. H. Bender, “König und Vasall: Untersuchungen zur Chanson de Geste des XII. Jahrhunderts”,Heidelberg, 1967 (Studia Romanica, 13). Nessa história dos primórdios da épica francesa, a aparentecongruência entre sociedade feudal e idealidade épica apresenta-se como um processo que se mantém emcurso graças a uma discrepância sempre cambiante entre “realidade” e “ideologia” — isto e, entre asconstelações históricas dos conflitos feudais e as respostas poéticas contidas nos poemas épicos.

[58] A sociologia literária incomparavelmente mais rigorosa de Erich Auerbach trouxe à luz esseaspecto, a partir da multiplicidade de rupturas na relação entre autor e público em diversas épocas. Ver arespeito a apreciação de F. Schalk (org.) in: E. Auerbach, Gesammelte Aufsätze zur romanischen Philologie,Berna/Munique, 1967, p. 11 et seqs.

[59] Ver a respeito H. Weinrich, Für eine Literaturgeschichte des Lesers (Merkur, novembro de 1967)— uma tentativa que nasceu da mesma intenção e que, analogamente à substituição da outrora habituallingüística do falante por uma lingüística do ouvinte, defende agora uma consideração metodológica daperspectiva do leitor na história da literatura e, assim, vem inteiramente ao encontro de meu propósito. H.Weinrich mostra também, sobretudo, como se devem complementar os métodos empíricos da sociologia daLiteratura através da interpretação lingüística e literária do papel do leitor, implicitamente contido na obra.

[60] In: Madame Bovary par Gustave Flaubert, Oeuvres complètes, Ed. de la Pléiade, Paris, 1951, p.

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998: “Les dernières années de Louis-Philippe avaient vu les dernières explosions d’un esprit encoreexcitable par les jeux de l’imagination; mais le nouveau romancier se trouvait en face d’une sociétéabsolument usée, — pire qu’usée, — abrutie et goulue, n’ayant horreur que de la fiction, et d’amour quepour la possession”.

[61] Cf. ibid., p. 999, bem como acusação, defesa e veredicto do processo Bovary, in:Flaubert, Oeuvres, Ed. de la Pléiade, Paris, 1951, v. 1, p. 649-717, especialmente p. 717. SobreFanny, E.Montégut, “Le roman intime de la littérature réaliste”, in: Revue des Deux Mondes, 18 (1858), p. 196-213,especialmente p. 201 e 209 et seqs.

[62] Como atesta Baudelaire, cf. op. cit., p. 996: “[...] car depuis la disparition de Balzac [...] toutecuriosité relativement au roman, s’était apaisée et endormie”.

[63] A respeito deste e de outros juízos da época, ver H. R. Jauss, “Die beiden Fassungen vonFlauberts Education sentimentale”, in: Heidelberger Jahrbücher, 2 (1958), p. 96-116, especialmente p. 97.

[64] Ver a respeito a primorosa análise do crítico E. Montégut, contemporâneo de Feydeau, queexplica pormenorizadamente por que o mundo do desejo e as figuras do romance deFeydeau são típicos deuma camada do público localizada nos bairros “entre la Bourse et le boulevard Montmartre” (op. cit., p. 209),uma camada que necessita de um “alcool poétique”, que se deleita em “voir poétiser ses vulgairesaventures de la veille et ses vulgaires projets du lendemain” (p. 210) e que reverencia uma “idolátrie de lamatière” — elementos sob cujo signo Montégut vê os ingredientes da “fábrica de sonhos” de 1858: “unesorte d’admiration béate, presque dévotionneuse, pour les meubles, les tapisseries, les toilettes, s’échappe,comme un parfum de patchouli, de chacune de ces pages” (p. 201).

[65] São raros ainda os exemplos de aplicação desse método que não se limitam a perseguir apenasa reputação e a “imagem” de um poeta através da história, mas examinam também as condições históricase as conseqüências de sua sobrevivência. Dentre tais exemplos cabe mencionar: G. F. Ford, Dickens andhis readers, , 1955; A. Nisin, Les oeuvres et les siècles, , 1960 (enfocando Virgile, Dante et nous, Ronsard,Corneille, Racine); E. Lämmert, “Zur Wirkungsgeschichte Eichendorffs in Deutschland”, in: Festschrift fürRichard Alewyn, organizado por H. Singer e B. v. Wiese, Colônia/Graz, 1967.

[66] [64a] 64a Ver a respeito H. R. Jauss, Untersuchungen zur mittelalterlichen Tierdichtung,Tübingen, 1959, especialmente cap. IV A e D.

[67] A. Vinaver, “A la recherche d’une poétique médiévale”, in: Cahiers de CivilisationMédiévale, 2 (1959), p. 1-16.

[68] H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen, 1960, p. 284-5. [69] Ibid., p. 283. [70] Ibid., p. 352. [71] Ibid., p. 289. [72] Ibid., p. 356. [73] Wellek, 1936, p. 184; id., 1965, p. 20-2. [74] Wellek, 1965, p. 20. [75] Ibid. [76] Ibid. [77] Wahrheit und Methode, p. 274. [78] Ibid. [79] Ibid. [80] Ibid., p. 290. [81] Tal inversão torna-se evidente no capítulo “Die Logik von Frage und Antwort” (p. 351-60), no qual

Gadamer primeiramente demanda do texto per se que nos foi transmitido (e, portanto, também do texto

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não-clássico ou do mero testemunho histórico!) “que ele dirija uma pergunta ao intérprete. Assim, ainterpretação guarda sempre relação essencial com a pergunta que nos foi colocada. Entender um textosignifica entender essa pergunta”. O restante da argumentação mostra, contudo, que o texto do passadonão é ele próprio capaz de nos dirigir uma pergunta que não tenha primeiramente de ser revelada ereconquistada para nós a partir da resposta que o texto transmitido contém.

[82] Ibid., p. 280. [83] Ibid., p. 109. [84] Cf.p. 110. [85] Isso é o que se depreende também da estética formalista e, em particular, da teoria da

“desautomatização” de Chklovski, cf. citação de V. Erlich, op. cit., p. 84: “Como a ‘forma tortuosa,deliberadamente entravada’, erige obstáculos artificiais entre o sujeito e o objeto da percepção, rompe-se acadeia de associações habituais e reações automáticas: dessa maneira, tornamo-nos capazes de realmentever as coisas, em vez de apenas reconhecê-las”.

[86] Op. cit., p. 275. [87] Ibid., p. 280. [88] No artigo de 1927, Über literarische Evolution [“Da evolução literária”, ver nota 32], de J. Tynianov

(op. cit., p. 37-60), tal programa é apresentado com a máxima precisão. Conforme me comunica J. Striedter,ele só foi parcialmente cumprido na abordagem de problemas de mudança de estrutura na história dosgêneros literários, como, por exemplo, na coletâneaRusskaja proza, Leningrado, 1926 (Voprosy poètiki,VIII).

[89] Ibid., p. 59 [p. 118 da edição brasileira]. [90] “Uma obra de arte figurará como um valor positivo quando transformar a estrutura do período

precedente, e figurará como valor negativo quando assumir aquela estrutura sem modificá-la” (J.Mukarovsky, citado por R. Wellek, 1965, p. 42).

[91] Ver a respeito V. Erlich, Russischer Forrnalismus, op. cit., p. 284-7, e R. Wellek, 1965, p. 42 etseqs.

[92] H. Blumenberg, in: Poetik und Hermeneutik III (ver nota 55), p. 692. [93] Segundo V. Erlich, op. cit., p. 281, tal conceito possuía para os formalistas um tríplice significado:

“no plano da representação da realidade, a ‘qualidade diferencial’ significava um ‘afastar-se’ do real e,portanto, a deformação criativa. No plano da língua, a expressão indicava o afastar-se da linguagemhabitual. No plano da dinâmica literária, por fim, [...] uma transformação da norma artística predominante”.

[94] Como exemplo da primeira possibilidade, pode-se mencionar a revalorização (anti-romântica) deBoileau e da poética clássica da contrainte, operada por Gide e Valéry; como exemplo da segunda, adescoberta tardia dos hinos de Hölderlin ou do conceito de Novalis da poesia do futuro (a respeito desteúltimo, ver H. R. Jauss in: Romanische Forschungen, 77, 1965, p. 174-83).

[95] Desse modo, os “grandes românticos” canonizados — Lamartine, Vigny, Musset e boa parte dalírica “retórica” de Victor Hugo — foram mais e mais deslocados para o fundo do palco a partir da recepçãodo “romântico menor” Nerval, cuja obra Chimères somente passou a causar sensação a partir do efeitoproduzido por Mallarmé.

[96] Poetik und Hermeneutik II (Immanente Ästhetik — Ästhetische Reflexion, organizado por W. Iser,Munique, 1966, especialmente p. 395-418).

[97] In: Zeugnisse — Theodor W Adorno zum 60. Geburtstag, , 1963, p. 50-64; ver também o artigo“General history and aesthetic approach”, para Poetik und Hermeneutik III (v. nota 55).

[98] “First, in identifying history as a process in chronological time, we tacitly assume that ourknowledge of the moment at which an event emerges from the flow of time will help us to account for its

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appearance. The date of the event is a value-laden fact. Accordingly, all events in the history of a people, anation, or a civilization which take place at a given moment are supposed to occur then and there forreasons bound up, somehow, with that moment” (op. cit., p. 51).

[99] Esse conceito remonta a G. Kubler, The shape of time: remarks on the history of things, NewHaven/Londres, 1962.

[100] Op. cit., p. 53. [101] Poetik und Hermeneutik III (ver nota 55), p. 569. A fórmula da “simultaneidade do heterogêneo”,

com a qual F. Sengle (1964, p. 247 et seqs.) descreve esse mesmo fenômeno, reduz o problema em umade suas dimensões, como se depreende também do fato de ele acreditar que essa dificuldade da história daliteratura pode ser resolvida simplesmente mediante uma união do método comparatista com ainterpretação moderna (“o que significa, portanto, efetuar interpretações comparatistas numa base maisampla”, p. 249).

[102] J. Tynianov e R. Jakobson, Probleme der Literatur- und Sprachforschung (1928),in:Kursbuch, 5 (1966), p. 75 [“Os problemas dos estudos literários e lingüísticos”, p. 96; ver nota 32]: “Ahistória do sistema apresenta, por sua vez, um novo sistema. A pura sincronia revela-se, então, ilusória:toda sincronia tem seu passado e seu futuro, como elementos estruturais inseparáveis desse sistema”.

[103] Primeiramente, em “Epochenschwelle und Rezeption”, in: Philosophische Rundschau, 6 (1958),p. 101 et seqs., e, por fim, em Die Legitimität der Neuzeit, Frankfurt, 1966. Cf. especialmente p. 41 et seqs.,em que, a partir do caso da “secularização”, o contexto sucessório da relação entre teologia cristã e filosofiaé explicado e fundado na lógica histórica de pergunta e resposta: “Há problemas, portanto, que somentegraças à oferta de suas supostas soluções — ou daquilo que, posteriormente, figura como solução de umproblema dado — se colocam e se fixam com obstinada insistência. A totalidade destes constitui o que sepoderia chamar o sistema formal da explicação do mundo, em cuja estrutura deixam-se localizar asreocupações que compõem desde o caráter processual da história até a radicalidade das mudanças deépoca” (p. 43).

[104] No âmbito limitado da história de um problema, intentei fazer tal análise histórica com base numcorte transversal em meu artigo “Fr. Schlegels und Fr. Schillers Replik auf die ‘Querelle des Anciens et desModernes”’, para Europäische Aufklärung — Herbert Dieckmann zum 60. Geburtstag, organizado por H.Friedrich e F. Schalk, Munique, 1967, p. 117-40.

[105] A presente situação da discussão em torno das novas tendências estruturalistas é apresentadano v. 36-7 dos Yale French studies: structuralism, organizado por J. Ehrmann, 1966; sobre sua história, verG. Hartman, “Structuralism: the Anglo-American adventure”, ibid., p. 148-68.

[106] Agora in: Gesellschaft — Literatur — Wissenschaft: Gesammelte Schriften 1938-1966,organizado por H. R. Jauss e C. Müller-Daehn, Munique, 1967, p. 1-13, especialmente p. 2 e 4.

[107] K. Mannheim, Mensch und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus, Darmstadt, 1958, p. 212 etseqs.

[108] Untersuchungen zur mittelalterlichen Tierdichtung, Tübingen, 1959, cf. p. 153, 180, 225 e 271;ver ainda Archiv für das Studium der Neueren Sprachen, 197 (1961), p. 223-5.

[109] In: Theorie und Realität, H. Albert (org.), Tübingen, 1964, p. 87-102.[110] Ibid., p.91.[111] Ibid., p. 102. [112] O exemplo do cego proposto por Popper não faz nenhuma diferenciação entre duas

possibilidades distintas: a de um comportamento apenas reativo e a de um agir experimental, dando-se sobcertas condições. Se a segunda possibilidade caracteriza o comportamento científico refletido, por oposiçãoao comportamento irrefletido da vida prática, então o pesquisador seria “criativo” — superior, portanto, aos

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“cegos” e comparável, antes, ao poeta, como criador de novas expectativas. [113] G. Buck, Lernen und Erfahrung, op. cit., p. 70: “[A experiência negativa] não é apenas instrutiva

porque nos leva a reviver o contexto de nossa experiência passada de tal maneira que o novo se integra naunidade corrigida de um sentido objetivo. [...] Não é apenas o objeto da experiência que se apresentadiverso, mas a própria consciência daquele que experimenta se inverte. A obra da experiência negativa éum fazer-se consciente de si. Aquilo de que nos tornamos conscientes são os motivos que norteavam aexperiência e que, como tais, não foram questionados. A experiência negativa tem, pois, primordialmente, ocaráter da auto-experienciação que nos liberta para uma modalidade qualitativamente nova daexperiência.

[114] Ver acima, nota 34. [115] J. Striedter chamou a atenção para o fato de que, nas passagens do diário e nos exemplos

extraídos da prosa de Tolstói aos quais Chklovski se refere em sua primeira explanação do procedimento doestranhamento, o aspecto puramente estético encontrava-se ainda vinculado a uma teoria do conhecimentoe a uma ética: “A Chklovski, porém — ao contrário de Tolstói —, interessa primordialmente o ‘procedimento’artístico, e não a questão acerca de suas premissas e efeitos éticos” (Poetik und Hermeneutik II, ver nota94, p. 288 et seqs.).

[116] Flaubert, Oeuvres, Ed. de la Pléiade, Paris, 1951, vol. 1, p. 657: “[...] ainsi, dès cette premièrefaute, dès cette première chute, elle fait la glorification de l’adultère, sa poésie, ses voluptés. Voilà,messieurs, qui pour moi est bien plus dangereux, bien plus immoral que la chute elle-même!”

[117] E. Auerbach, Mimesis: Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur, Berna, 1946, p.430 [No Brasil, Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental, São Paulo, Perspectiva, p.434].

[118] Op. cit., p. 673. [119] Ibid., p. 670. [120] Ibid., p.666. [121] Cf. ibid., p. 666-7. [122] Ibid., p. 717 (citado a partir do Jugement). [123] Die Schaubühne als eine moralische Anstalt betrachtet, Säkular-Ausgabe, v. XI, p. 99. Ver a

respeito R. Koselleck, Kritik und Krise, Freiburg/Munique, 1959, p. 82 et seqs. [124] “Zur Systematik der künstlerischen Probleme”, in: Jahrbuch für Ästhetik, 1925, p. 440; sobre a

aplicação dessa fórmula a fenômenos da arte contemporânea, ver M. Imdahl, Poetik und HerpneneutikIII (ver nota 53), p. 493-505 e 663-4.