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  • 1

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

    HOMENS, MQUINAS E HOMENS-MQUINA: O SURGIMENTO DA MSICA ELETRNICA

    JULIN JARAMILLO ARANGO

    CAMPINAS-2005

  • 3

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE ARTES Mestrado em Multimeios

    HOMENS, MQUINAS E HOMENS-MQUINA: O SURGIMENTO DA MSICA ELETRNICA

    JULIN JARAMILLO ARANGO

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Multimeios sob a orientao do Prof. Dr Jos Eduardo Ribeiro de Paiva.

    CAMPINAS-2005

  • 4

    Dedico este trabalho a meus pais, Silvia Arango e Samuel Jaramillo, pelo apio irrestrito e a confiana depositada em mim.

  • 5

    AGRADECIMENTOS Esta pesquisa foi financiada pelo programa de crditos reembolsveis em espcie Carolina Oramas do ICETEX (Reg. Bogot/Colmbia), a partir de Agosto do 2004 e durante um ano. A meu orientador, o Prof. Dr Jos Eduardo Ribeiro de Paiva, por indicar novos caminhos na minha profisso. Aos professores, Drs, Denise Garcia por me introduzir no pensamento schafferiano e Fernando Iazzetta pelas providncias. Aos amigos brasileiros, Llian, Giuliano, Valrio, Ana Rosa, Cynthia e Alexandre por me acolher como um irmo e acreditar em nossa gerao. Aos colegas, Nicolau e Debbora pelas discusses e colaboraes. Aos amigos colmbianos, Ananay, Toms e Maurcio pela pacincia, companhia e complicidade.

  • 6

    RESUMO

    A msica eletrnica de pista apresenta-se, no comeo da dcada de 2000, como um

    fenmeno portador de novos paradigmas para a msica, no que respeita criao, difuso

    e apreciao. Esta pesquisa examina o surgimento deste fenmeno, no comeo da dcada

    de 1980, a partir do pensamento de Pierre Schaeffer, que fornece uma metodologia

    apropriada para tal empreendimento. No primeiro e segundo captulos, estudam-se o

    entorno tecnolgico da msica no sculo XX, o arsenal de ferramentas fabricadas de forma

    industrializada e o processo social de incorporao destas tecnologias. No terceiro captulo,

    disserta-se sobre os desafios estticos da msica eletrnica e as dinmicas de trabalho que

    se desenvolvem. Promulga-se, aqui, a emergncia de uma nova experincia musical, a que

    se denomina discurso da reproduo. Por ltimo, aprofunda-se no trabalho do grupo de

    msica pop alemo Kraftwerk, como antecessor e elaborador da msica eletrnica, assim

    como exemplo da incorporao da tecnologia ao trabalho em msica realizado no sculo

    XX.

  • 7

    SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................

    9

    Procedimentos da msica instrumental........................................................ 14 O instrumento de msica ......................................................................... 14 A partitura ................................................................................................. 16 O criador diante dos recursos ..................................................................... 18 I INVENES, INOVAES E ESPECULAES NAS PRIMEIRAS DCADAS DE INCORPORAO DOS RECURSOS ELETRNICOS ................................................

    21

    Sobre a abordagem .................................................................................... 22 Os recursos de difuso .............................................................................. 24

    A transduo .................................................................................... 26 A transmisso .................................................................................... 26

    O telefone .......................................................................................... 26 O rdio .............................................................................................. 27

    O registro .......................................................................................... 31 O fongrafo ....................................................................................... 31 A fita magntica e a gravao multipista .......................................... 34

    Os recursos de gerao .............................................................................. 38 O construtor de instrumentos eletrnicos e o meio musical ............. 38 Metodologias de anlise dos instrumentos eletrnicos .................. 39 O audion ......................................................................................... 41 O Thelarmonium ............................................................................... 42 O Theremin ....................................................................................... 43 Outros instrumentos geradores ......................................................... 46

    A repercusso indireta dos primeiros recursos .......................................... 50 II A INDSTRIA DE INSTRUMENTOS ELETRNICOS ..........................................

    53

    O novo lugar de concepo: o estdio ...................................................... 54 Os estdios de msica eletroacstica ................................................ 55 O estdio da RTF .............................................................................. 58 Do estdio de gravao ao estdio de produo ................................ 60

    Tecnologia versus indstria ..................................................................... 67 Os sintetizadores de controle de voltagem ....................................... 70 As limitaes dos sintetizadores ....................................................... 74 Os microprocessadores ..................................................................... 75

  • 8

    Equipamentos digitais ....................................................................... 77 Fabricantes de sons ........................................................................... 81 Musical Instrument Digital Interface ................................................ 84 O computador ................................................................................... 87

    O processo ................................................................................................ 92

    III ESTTICA E DINMICA DA MSICA ELETRNICA ........................................

    96

    Escutar .......................................................................................................... 96 A desconcentrao do indivduo ...................................................... 96 O culto reproduo e a msica Disco ....................................... 102 Da dana dana! ......................................................................... 109

    Escutar/Fazer ............................................................................................ 110 A dualidade da reproduo, o dj e a msica do ready-made ............. 112 Hip-Hop ............................................................................................. 115

    Fazer ......................................................................................................... 121 Outros espaos para o autor ............................................................. 122 House ................................................................................................ 126 Techno .............................................................................................. 130

    IV KRAFTWERK E A INCORPORAO DOS RECURSOS ELETRNICOS NA MSICA POP .........................................................................................................

    134

    O rock dos anos 1970 e o circuito anglo-americano ................................. 134 Krautrock e os primeiros lbuns de Kraftwerk ......................................... 136 O advento da sonoridade eletrnica na msica pop, mimese ................... 142 Uma msica universal ............................................................................... 147 Kraftwerk e o discurso da reproduo ...................................................... 151 Nostalgia ................................................................................................... 156 Simbiose de tradies .............................................................................. 157

    CONCLUSES ......................................................................................................

    162

    BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................

    175

  • 9

    INTRODUO

    Entre o final dos anos 1970 e comeo dos 1980 emerge, nos Estados Unidos, um

    fenmeno musical que prescinde dos instrumentos tradicionais e incorpora recursos

    eletrnicos como ferramentas de trabalho. Este fenmeno apresenta-se em nossos dias

    como uma das maiores expresses musicais contemporneas e rene pblicos que antes se

    aproximavam de outros repertrios. Nos centros urbanos, uma grande poro do pblico

    jovem desenvolve uma nova relao com esta msica, uma nova forma de escuta: encontra-

    se, a cada final de semana, para danar durante a noite inteira, ao som de um repertrio que

    desconhece, rendendo culto reproduo eletrnica. Ao mesmo tempo, as produes

    apresentam caractersticas musicais qualitativamente inditas em termos de concepo,

    construo e execuo. Esta dissertao pretende aprofundar-se nas determinantes tcnicas

    e musicais desse fenmeno, doravante aqui denominado msica eletrnica.

    O termo msica eletrnica foi utilizado pelos compositores alemes Werner Meyer-

    Eppler e Herbert Eimert, durante os anos 1950, para definir os experimentos realizados por

    ele e alguns de seus colegas, no estdio da NWDR (Nordwestdeutscher Rundfunk). Porm o

    termo vem sendo utilizado, a partir dos anos 1980, por crticos, produtores, disc jockeys

    (DJs) e, mais recentemente, por pesquisadores acadmicos, para referir-se ao fenmeno

    mencionado no pargrafo anterior. O consenso da sociedade convida-nos a reafirmar este

    novo significado, sem que isto represente ilegitimibilidade, desaprovao ou provocao

    aos ideais estticos de Mayer-Eppler e Eimert. O trabalho desses compositores ser

    aprofundado no segundo captulo.

    Este trabalho apia-se em duas intuies, uma de carter musical e outra de carter

    sociocultural. A primeira dessas intuies revela-se com base no pensamento de Pierre

    Schaeffer, quem nos fornece um modelo de estruturao para pensar atividade musical com

    os recursos eletrnicos. No primeiro captulo do Trait des objets musicaux (1988),

    publicado pela primeira vez em 1966, em O prolegmeno instrumental, Schaeffer

    assinala que a msica surge na interao com os recursos disponveis. Esta afirmao

    parece ingnua diante do enorme repertrio de msica instrumental j analisado e

    compreendido a partir de consideraes que repousam na teoria musical (tonalidade,

  • 10

    morfologia, estilo). Apesar de tais consideraes permitirem um rigoroso exame das obras,

    torna-se necessrio conhecer os cdigos musicais (o solfejo) para aceder a estas anlises.

    As aproximaes tericas msica esto mediadas por um conhecimento prvio,

    preservado em seus ofcios por compositores, intrpretes e analistas ao longo de sculos

    de atividade instrumental. A apario dos recursos eletrnicos instaurou, do ponto de vista

    de Schaeffer, novas circunstncias para a msica. A diferena constitutiva entre

    instrumentos e recursos eletrnicos reformula as determinantes da atividade musical. A

    teoria tradicional apresenta-se como uma ferramenta inadequada para explorar a msica

    que se elabora com os recursos eletrnicos, pois esta teoria est fortemente ligada s

    condies prprias do instrumento acstico. Por isso, faz-se necessrio refletir, de novo, na

    gnese do fenmeno musical. Schaeffer prope que, na interao com os recursos

    disponveis crie-se um repertrio (obras musicais); a anlise desse repertrio nos permitir

    tirar concluses sobre a linguagem:

    Afirmaramos inclusive que a obra precede ao que postula: uma

    linguagem, e quilo do que est feita: objetos. Se existirem as regras do jogo

    instrumental, os registros e as noes, ser tarefa dos milnios e da longa

    aprendizagem das civilizaes elaborar e formular (Schaeffer,1988: 35).

    Esta reflexo no est relacionada exclusivamente msica que estudamos, mas a

    todas as msicas, e prope um modelo de anlise para diversas culturas. Nesta dissertao,

    utilizamos este raciocnio para empreender um estudo sobre a msica eletrnica.

    A segunda intuio que perseguimos funda-se numa preocupao especfica do

    criador musical de nossos dias. A partir de certo momento, na segunda metade do sculo

    XX, as diferenas entre arte e entretenimento, entre msica erudita e popular, tornaram-se

    difceis de traar. A msica popular participou do processo de incorporao dos recursos

    eletrnicos de uma maneira qualitativamente diferente da msica erudita. As experincias

    musicais da chamada msica pop, com os equipamentos eletrnicos, distanciam-se, em

    muitos sentidos, dos empreendimentos acadmicos. Na segunda metade do sculo XX,

    abre-se um campo para outros atores na criao musical, no enorme espao entre a msica

    pop e a msica erudita. A msica eletrnica no se vincula diretamente a nenhum destes

    dois processos, mas a uma srie de circunstncias sociais, culturais e tecnolgicas. O acesso

  • 11

    a ferramentas de produo e difuso, por parte de msicos amadores e outros, que criam,

    alheios aos contextos de composio musical, a verdadeira causa do fenmeno que

    estudamos. Deste ponto de vista, encaramos, como pesquisadores, um certo vcuo

    bibliogrfico. Os textos que abordam diretamente o tema da msica eletrnica provm do

    domnio das cincias humanas. Os questionamentos propriamente musicais dissolvem-se,

    ento, na discusso a respeito dos processos culturais. No presente texto, pretendemos

    esboar algumas contribuies que a msica eletrnica apresenta dentro de um projeto

    esttico de maior abrangncia: a arte musical. Para isso, recorremos a textos de outras

    reas, os quais analisam a dialtica entre a msica e a tecnologia do ponto de vista artstico:

    msica pop e msica eletroacstica. Assim, estabelecemos um vnculo entre a msica

    eletrnica e estas outras duas expresses que incorporaram os recursos eletrnicos no

    sculo XX. Assumimos, no entanto, que nosso objeto de estudo coloca-se de forma

    independente.

    A partir destas duas intuies, elaboramos, nos dois primeiros captulos, um estudo

    dos recursos eletrnicos surgidos durante o sculo XX, assinalando sua repercusso na

    atividade musical. Verificamos que, ao longo do processo de incorporao dos recursos

    eletrnicos, aparece uma srie de fatores, prprios de nossa civilizao, que intervm

    diretamente na economia, na cincia, na indstria, na organizao social e nos hbitos de

    produo. Na convergncia destes fatores, formulam-se os recursos, e a tecnologia

    encontra-se com algo a que podemos chamar de significado musical. A anlise que

    empreendemos, ento, no s pretende encontrar o contexto em que atuam os msicos

    eletrnicos, mas tambm compreender a natureza e a procedncia dos artefatos sonoros

    utilizados. O exame da interao entre o homem e os recursos desvela aquilo a que

    Schaeffer denomina jogo instrumental, conceito este necessrio para que se

    compreendam as questes estticas aqui colocadas.

    No terceiro captulo, abordamos diretamente os desafios da msica eletrnica como

    manifestao artstica. O mtodo de Pierre Schaeffer fundamental para esse propsito. A

    reflexo sobre o registro sonoro, realizada por este autor, permite-nos estabelecer uma

    dualidade (entre fazer e escutar) que nos leva a dividi-lo em trs partes: o escutar, em que

    nos concentramos nas estratgias de apreciao da msica eletrnica; o fazer/escutar, em

    que analisamos o trabalho hbrido do DJ; e o fazer, em que nos aproximamos do produtor

  • 12

    desta msica. `A medida que discutimos as caractersticas prprias da atividade musical,

    neste contexto, identificaremos um novo tipo de criatividade, chamada, neste trabalho, de

    discurso da reproduo. Nossa pesquisa centrou-se nos movimentos que deram origem

    msica eletrnica em Nova York, Chicago e Detroit.

    No quarto captulo, realizamos uma breve anlise do grupo Kraftwerk, como o

    grande vnculo entre a msica pop e as expresses estudadas no terceiro captulo.

    Detivemo-nos neste grupo porque, ao longo de suas produes, o instrumento musical

    gradualmente subvertido como meio de expresso. O Kraftwerk um dos casos mais

    interessantes no processo de incorporao da tecnologia no sculo XX e participa das

    discusses empreendidas nos contextos acadmicos. Alm disso, a enorme influncia que o

    grupo teve nos prprios gestores dos movimentos de msica eletrnica solicita uma

    especial ateno. A trajetria do Kraftwerk ajuda a compreender o jogo instrumental e as

    circunstncias em que se debateram a msica e a tecnologia, na segunda metade do sculo

    XX.

    Finalmente, reunimos e organizamos as idias elaboradas ao longo da dissertao.

    Esboamos uma breve concluso a respeito do processo de incorporao dos recursos

    eletrnicos e as contribuies estticas reveladas pelo discurso da reproduo.

    No primeiro captulo do Trait, Schaeffer transporta-nos era pr-histrica e analisa

    o processo por meio do qual o som foi, pela primeira vez, identificado como entidade

    isolada. A imagem evocada a de um homem primitivo que, levado por seus instintos,

    combate o estrondo do trovo, bate em objetos, sem descanso, e se diverte gritando sem

    motivo. Observando tudo a sua volta, ele descobre uma realidade ligada aos objetos

    materiais que envolve um novo vnculo com sua percepo: o som.

    Imaginemos aquele homem selvagem, batendo nos objetos, repetidamente. Num

    primeiro momento, o primitivo observar a relao de causa-efeito que acompanha sua

    ao e descobrir uma das faculdades da matria: soar. Aps algumas batidas, aparecer um

    outro ponto de concentrao; o som solicitar sua ateno. O sujeito poder, assim,

    reorganizar estes efeitos e at criar uma seqncia com o repertrio das diversas variveis

    que resultam de sua ao de bater nos objetos.

    Segundo Schaeffer, na repetio ou na variao que o sinal que remetia ao

    utenslio, em forma de pleonasmo, se anula [...]. O homem exposto aos sons, separados

  • 13

    de sua causa material, que, embora presente, j no predomina em sua relao com o

    mundo: [...] s ficam os objetos sonoros, percebidos desinteressadamente, que saltam a

    seu ouvido, como algo totalmente intil, cuja existncia, no entanto, se impe [...].

    Schaeffer atribui grande importncia a este exerccio, pois no se trata seno da

    descoberta da msica:

    Acaba de descobrir duas coisas ligadas a sua prpria atividade e ao

    corpo sonoro, mas, paradoxalmente, independentes deles: a msica (pois j

    se trata dela) e a possibilidade de tocar o que mais tarde ser chamado de

    instrumento. (1988: 34)

    O jogo instrumental nosso ponto de partida para explorar a incorporao dos

    recursos eletrnicos no sculo XX. A metodologia que estabelecemos possibilita uma

    aproximao que prescinde da teoria tradicional; por outro lado, permite uma anlise que d

    conta das diferenas culturais. Isto se torna necessrio diante do enorme e diverso

    repertrio elaborado com base nos recursos eletrnicos.

    No texto de Schaeffer (1988: 33-45), identificamos uma direo na cadeia de

    acontecimentos alis um ciclo entre os diferentes estgios do processo musical.

    1. Atividade musical: interao com os recursos disponveis e criao de obras

    musicais.

    2. Teoria: depois de criadas as obras, tiram-se concluses a respeito da linguagem; j

    estas se acumulam como convenes.

    3. Recursos: a partir das convenes, elaboram-se novos recursos de interao.

    Esta ordem, na cadeia do processo logstico, assegura uma estabilidade disciplinar e

    delimita as fronteiras dos procedimentos musicais. Como veremos ao final desta

    dissertao, a incorporao dos recursos eletrnicos enquadra-se neste modelo. Os critrios

    de fabricao dos artefatos sonoros esto diretamente associados ao repertrio existente.

    Com isto, estabelece-se uma tradio de trabalho, que, embora esteja em constante

    evoluo, acumula os frutos do passado para usufru-los no presente. A msica eletrnica

    apresenta-se, no final do sculo XX, como a concluso desse processo de incorporao dos

  • 14

    recursos eletrnicos, estabelecendo repertrios e hbitos de produo que repercutem

    diretamente na fabricao de novos equipamentos.

    Porm a msica eletrnica rompe com uma srie de paradigmas do ofcio

    instrumental. Os recursos eletrnicos, ao mesmo tempo em que substituem o espectro de

    materiais, ampliam os procedimentos do criador. Certas entidades fundamentais da

    atividade instrumental. como o artefato sonoro, a partitura e a execuo, so totalmente

    reformulados. Discutamos, brevemente, o processo de trabalho com base em instrumentos

    tradicionais em relao quele empreendido com recursos eletrnicos.

    Procedimentos da msica instrumental

    No contexto instrumental, o processo musical percorre esta trajetria: um

    compositor elabora uma partitura cuja interpretao repousa no instrumentista. J este se

    ocupa da realizao musical, executando a pea numa performance. Desta maneira, uma

    idia musical, concebida e adaptada s condies de um determinado instrumento,

    transmitida ao executante por meio da partitura. O ciclo comunicativo compositor-

    intrprete-ouvinte elabora um fluxo linear da mensagem musical.

    Nesse ciclo, identificamos a presena manifesta e efetiva de um conhecimento a

    priori, em duas entidades fundamentais: o artefato sonoro (instrumento de msica) e a

    escrita (a partitura). Esse conhecimento, que chamaremos de teoria, uma instncia

    implcita do processo de produo musical. Como conseqncia, as idias do criador

    restringem-se teoria.

    O instrumento de msica

    Primeiramente, estabeleamos o que seja um instrumento musical. Schaeffer

    prope uma definio cannica: [...] qualquer dispositivo que permita uma coleo variada

    de objetos sonoros ou de objetos sonoros variados, mantendo em esprito a presena de uma

    causa (1988: 40). Embora o instrumento musical esteja em condies de produzir

    diferentes sons, todos eles so relacionados a uma fonte sonora comum. Trata-se do caso ,

    por exemplo, do piano que possui 88 teclas correspondentes a 88 notas diferentes. Cada

  • 15

    uma dessas notas tem suas prprias variveis de articulao e so atribudas a uma nica

    fonte sonora.

    As alturas produzidas no piano correspondem quelas da escala temperada. As

    variveis dinmicas destas alturas so associadas a parmetros de articulao configurados

    ao longo de sculos de pensamento musical (sfz, staccato, marcatto etc.). O repertrio de

    alturas e valores dinmicos que qualquer instrumento exibe elabora-se a partir de noes

    anteriormente estabelecidas. O dispositivo sobre o qual descansa todo o processo musical, o

    instrumento, portador de um conhecimento prvio, de algumas noes musicais

    compartilhadas pelos atores do processo. Assim, o executante recebe um dispositivo j

    adaptado ao contexto musical. Alm de conhecer a geografia do instrumento, o intrprete

    precisa dominar a teoria para interagir com o dispositivo.

    Da mesma forma, o fabricante de instrumentos musicais (luthier) tambm utiliza a

    teoria musical para a fabricao e o desenho dos instrumentos. O estudo da ressonncia dos

    materiais, do comportamento das componentes harmnicas parciais, do espectro e das

    propriedades acsticas dos eventos que intervm na gerao do sinal sonoro, conformam,

    com a teoria, os grandes pontos de apoio deste profissional. O luthier adapta os resultados

    de sua pesquisa acstica s convenes da linguagem musical. Os dispositivos fabricados,

    os instrumentos musicais, aparecem como produtos de duas disciplinas: teoria musical e

    fsica (acstica).

    A presencia implcita da teoria musical na construo e na operao dos dispositivos

    sonoros uma circunstncia prpria do processo instrumental e contrasta com os

    procedimentos atuais de produo e fabricao dos dispositivos eletrnicos. A grande

    maioria de sons produzidos por estes artefatos no estudada pela teoria tradicional, que

    foi configurada e estabelecida no contexto instrumental. A ausncia de um solfejo

    especfico para o repertrio de sons produzidos pelos equipamentos eletrnicos1 tem dado

    lugar implementao da teoria tradicional, no desenho das interfaces e na construo dos

    1 O trabalho de Pierre Schaeffer, neste sentido, estabelece um ponto de partida para um projeto de solfejo

    universal.

  • 16

    dispositivos eletrnicos. Recursos tradicionais, como o teclado, tm sido adotados para

    controlar a emisso de objetos sonoros que no possuem critrios musicais de uso.

    A partitura

    Esclareamos o que uma partitura: consiste numa codificao grfica de idias

    musicais, de uma srie de ordens descontnuas sobre um instrumento. O som, fenmeno

    posterior, aparecer na interpretao deste cdigo.

    Para Emmerson (1986: 49), os smbolos da partitura possuem duas funes. Por um

    lado, so portadores das determinantes necessrias para produzir uma pea musical; por

    outro, significam as descries fundamentais para se explicar essa pea.

    Para o autor, a partitura um organograma de operao do instrumento e, tambm,

    um documento de anlise da msica. Observemos que, entre as idias musicais surgidas na

    mente criativa e a sua notao numa folha de papel, encontramos algumas noes tericas

    necessrias. Da mesma forma, entre as representaes grficas e sua decodificao na

    realizao instrumental, deve haver um conhecimento prvio. A teoria musical necessria

    para decifrar as partituras e para imprimir as idias num registro grfico. A partitura e a

    teoria esto relacionadas estreitamente e estruturam o pensamento musical no contexto

    instrumental.

    J Boulez afirma que a partitura uma entidade unificadora: [...] a notao

    representa um mnimo fator para que, ao menos, uma sociedade, por mais restrita que seja,

    possa falar a mesma linguagem (apud Menezes, 1989: 74). No contexto instrumental, a

    partitura passo obrigatrio entre as idias do compositor e a realizao musical.

    O compositor no s imprime suas idias nos diversos smbolos da escrita, mas

    tambm estrutura seu pensamento criativo na partitura. Ante a condio efmera do som, a

    partitura serve de laboratrio de ensaio das idias, passvel de cristalizar-se num

    documento. Menezes salienta a diferena entre idias musicais e sons no contexto da escrita

    musical: A escritura [...] revela-se muito mais como representao do pensamento

    composicional do que propriamente dos sons, que, uma vez decodificada pela interpretao,

    ocasionar (Menezes, 1989: 55).

  • 17

    No processo de trabalho com os instrumentos musicais, a partitura o veculo do

    pensamento musical: um recurso portador de um conhecimento prvio e comum que

    permite o trnsito das idias.

    Com o advento dos recursos eletrnicos, a partitura tem sido utilizada com

    propsitos diferentes. A tecnologia do registro sonoro foi substituindo gradualmente a

    partitura como forma de escrita. O criador teve acesso impresso de suas intenes

    diretamente sobre o suporte de registro. Com isso, a criao musical liberou-se da condio

    efmera da matria sonora. A incorporao dos recursos eletrnicos retirou da partitura seu

    lugar privilegiado no processo musical e passou a ser utilizada como um esboo da

    realizao, sempre verificvel atravs do registro.

    Por outro lado, os smbolos de notao foram constitudos a partir das leis do

    instrumento musical e no abrangem o imenso espectro de sonoridades produzidas pelos

    dispositivos eletrnicos. A ausncia de um solfejo especfico para estas sonoridades elimina

    a possibilidade de uma notao simblica.

    No entanto, em algumas ocasies o intrprete de instrumentos eletrnicos estabelece

    o desenho de um organograma de ordens para realizar a execuo o caso de Kraftwerk.

    A inexistncia de um embasamento terico compartilhado pelos atores do processo, de uma

    linguagem comum que normatize os critrios de operao dos dispositivos, impede a

    elaborao de uma notao universal. A constante reformulao no desenho das interfaces

    alimenta esta dificuldade, pois cada equipamento apresenta funes diferentes e parmetros

    particulares de operao.

    Os recursos eletrnicos deram lugar a outro tipo de representaes grficas,

    promovidas principalmente pelos softwares de msica. Essas representaes, que

    correspondem s interfaces grficas dos programas, so esquemas de operao que

    visualizam os parmetros particulares de cada ferramenta. Como forma de notao musical,

    estes grficos revelam os vestgios do processo adotado, mas so decifrveis s por quem

    conhece as propriedades de cada software, ou equipamento.

    Existem alguns poucos exemplos de representaes grficas compartilhadas pela

    maioria dos recursos eletrnicos, os quais, portanto, prefiguram um novo solfejo.

  • 18

    Porm a msica eletrnica prescinde, sistematicamente, da partitura e da notao

    tradicional. Os materiais so organizados diretamente no suporte de reproduo, como a fita

    magntica ou a memria do computador.

    No contexto instrumental, a teoria est embutida no cdigo escrito que, por sua vez,

    permite a transmisso do conhecimento. Por outro lado, o cdigo determina os modos de

    interao com os dispositivos e estrutura o pensamento do criador. A teoria permite

    esclarecer os procedimentos e os resultados artsticos. J na msica que se vale dos

    recursos eletrnicos, os modos de interao com os dispositivos revelam um alto grau de

    indeterminao. O esclarecimento dos procedimentos e a anlise dos resultados apresentam

    desafios complexos e passam, necessariamente, por reflexo terica sobre a msica.

    O criador diante dos recursos

    No contexto instrumental, o pensamento criativo restringe-se s condies da

    partitura e dos instrumentos; em outras palavras, as idias de um criador so concebidas no

    mbito de um vocabulrio instrumental. Para iluminar o deslocamento causado pela

    apario de dispositivos eletrnicos no trabalho criativo em msica, necessrio esclarecer

    o conceito de campo sonoro.

    O campo sonoro o repertrio de sons que um compositor pode utilizar como

    materiais dentro de uma pea de msica. Podemos acrescentar que, no contexto

    instrumental, este campo sonoro constitudo fundamentalmente por notas. Outras

    construes, entendidas como materiais (acordes, melodias, motivos, temas), podem ser,

    em qualquer caso, reduzidas a notas.

    Uma obra musical pode ser entendida como uma disposio particular do campo

    sonoro. Levando-se em conta os limites do campo sonoro no contexto instrumental, esta

    obra configura-se como uma organizao de notas. A funo da teoria consiste em estudar

    o campo sonoro e suas nuanas.

    preciso observar que a nota musical uma conquista do pensamento musical, um

    produto cultural. A nota resume, numa entidade nica, os traos de altura perceptveis de

    um evento sonoro. Segundo Denis Smalley, no artigo Spectro-morphology and

  • 19

    structuring processes: A prpria nota abrange as percepes tradicionais da altura: alturas

    absolutas, combinaes de intervalos e acordes (1986: 66).

    A nota, a partitura e os instrumentos constituem um arsenal de recursos tecnolgicos

    por meio dos quais o msico se relaciona com seu meio expressivo. Com estes dispositivos,

    o msico instrumental compreende o som. A teoria, designadora do material e rbitra da

    logstica instrumental, encontra-se implcita em cada um dos nveis do processo musical.

    A mediao da teoria no processo instrumental est diretamente relacionada ao

    exerccio da criao. Embora as idias de um compositor sejam abstratas ou surjam fora da

    msica, elas devem ser necessariamente materializadas em notas, escritas numa partitura e

    adaptadas s caractersticas prprias dos instrumentos. O compositor estrutura seu

    pensamento (na partitura), expresso na disposio do material (as notas), encontrando sua

    realizao sonora na interpretao (instrumento). No queremos empreender uma descrio

    do ato criativo, apenas nos permitimos assinalar que a inspirao ou insight (Laurentiz,

    1991: 31) elabora-se em determinadas circunstncias, condicionadas pela tecnologia

    disponvel.

    Com o surgimento de recursos eletrnicos como o microfone e a fita magntica, o

    campo sonoro estendeu enormemente seu volume. Os materiais disponveis para utilizao

    por parte de quem cria alcanaram um espectro imenso de sons, alm das notas. O campo

    sonoro passou a ser constitudo pelo conjunto de sons que podem ser captados por um

    microfone. Com uma paleta extraordinariamente ampla de materiais sonoros, a criao

    musical encontrou novos atores.

    Desta maneira, a incorporao dos recursos eletrnicos deu lugar a outros tipos de

    preocupao, que solicitam estudos qualitativamente diferentes. O interesse pela natureza

    dos equipamentos, pelos procedimentos adotados e pelas propriedades do material substitui

    definitivamente a abordagem tradicional no exerccio de anlise musical, focalizado na

    disposio do campo sonoro.

    Esta pesquisa pretende colaborar com a compreenso do movimento de msica

    eletrnica. Para isso, elaboramos um recorte no comeo dos anos 1980. Neste exame, a

    teoria musical, cujas regras e noes foram estabelecidas a partir do instrumento musical,

    ocupa um lugar acessrio. Esta pesquisa pretende contribuir tambm com ferramentas

    metodolgicas para uma teoria musical das expresses eletrnicas. Identificamo-nos, a

  • 20

    exemplo de Schaeffer, com o percurso dos indeterministas, ou, segundo este autor, com os

    realistas. Pretendemos desenvolver algumas idias esboadas no Trait e invocar essa

    hiptese sobre a msica, procurando, como pesquisadores, seguir seu exemplo: avanar

    com prudncia.

  • 21

    I

    INVENES, INOVAES E ESPECULAES NAS PRIMEIRAS DCADAS DE INCORPORAO DOS

    RECURSOS ELETRNICOS

    O marco referencial dos recursos musicais no contexto instrumental proporciona um

    ponto de partida para examinar o cenrio tecnolgico da msica no sculo XX. A anlise

    dos recursos disponveis nos permitir compreender o processo de interao, o chamado

    jogo instrumental (Schaeffer, 1988: 41). Tais ferramentas deram lugar a um extenso

    repertrio, esta pesquisa concentrar-se- naquele surgido em meados da dcada de 1970.

    Destacando os fatos relevantes nestas produes, empreendemos uma leitura do longo

    processo de incorporao dos recursos eletrnicos ao trabalho musical.

    No processo mais amplo, identificamos um momento culminante em que

    convergem fatos substancialmente diferentes. Durante os anos 1960, adota-se a tecnologia

    dos transistores na fabricao de aparelhos eletrnicos, lanado o LP estreo como

    formato unificado de reproduo, a msica eletroacstica consolida-se como corpus para

    doutrinas a respeito de composio erudita, nasce uma indstria de instrumentos eletrnicos

    cujo consumidor no necessariamente msico. Todos esses fatos provocam

    transformaes na natureza dos recursos, nos procedimentos de trabalho e nas expresses

    musicais.

    Este captulo trata do cenrio tecnolgico da primeira metade do sculo XX. Neste

    perodo, incorporaram-se abruptamente as conquistas da cincia da eletricidade e da

    acstica fabricao de recursos musicais. O primeiro estgio dessa incorporao

    caracterizou-se pela natureza experimental e especulativa. Identificamos dois tipos de

    preocupaes agenciadas pelos novos recursos: uma de carter miditico, chamada aqui de

    difuso; outra de carter musical, aqui denominada gerao. Na segunda metade do

    sculo, com a definio musical e social dos recursos, esta rgida diviso seria diluda.

  • 22

    Esta pesquisa funda-se na idia de que a msica aparece na interao com os

    recursos disponveis. Aps a apario de uma nova tecnologia, o que est por vir, a

    experincia, em funo dos diversos comportamentos possveis [...] com o dispositivo.

    (Schaeffer, 1988: 35). Na primeira metade do sculo, preparam-se as bases para uma nova

    experincia musical. O comportamento que domine determinar uma classe de msica

    [...], pois nosso primitivo [genericamente o homem], fora de tocar as abboras [os

    artefatos sonoros], chega a uma forma de virtuosismo particular que condicionar sua

    msica (idem, op. cit.: 35). Nosso intuito final, a msica eletrnica, desvenda-se ao

    examinar-se o arsenal de recursos musicais que vem ao encontro do homem de nossa era.

    Sobre a abordagem

    O controle e a operao das novas ferramentas de trabalho configuraram, no incio

    do sculo XX, um deslocamento disciplinar no trabalho sonoro. Os profissionais da msica

    que empreenderam o uso dos novos recursos tiveram que reformular seu ofcio,

    encontrando desafios nunca antes encarados e limitaes prprias de uma cincia jovem. O

    compromisso com os equipamentos eletrnicos levou criadores e intrpretes a ingressar em

    reas como a acstica e a eletrnica. A msica que estudamos est sujeita a uma condio

    interdisciplinar. A compreenso dos resultados artsticos e dos processos criativos solicita

    uma correspondncia entre conhecimentos de caractersticas diversas. A apropriao da

    tecnologia est sujeita compreenso de fatos cientficos. A presente anlise recupera

    alguns desses fatos, porque sobre eles desenvolvem-se tcnicas de trabalho em msica.

    Por outro lado, durante as primeiras dcadas do sculo XX, a atividade musical foi

    atingida por um processo de industrializao. Devemos esclarecer que existem dois tipos de

    indstria musical. Por um lado, um enorme fluxo comercial agenciado pelo mercado de

    discos, fenmeno que ser examinado neste captulo. Por outro, uma institucionalizao do

    mercado de instrumentos musicais e aparelhos eletrnicos, a qual constituir objeto do

    captulo 2. Os imperativos destes dois plos e as estratgias econmicas das grandes

    companhias neles engajadas configuraram um cenrio de industrializao indito na

    histria da msica. Aps a instituio deste novo sistema para os produtos artsticos e para

    as ferramentas de trabalho, o ofcio musical passou a exigir uma dimenso comercial que

  • 23

    condiciona sua essncia e atinge as buscas estticas. A convergncia entre inovaes

    tecnolgicas e eventualidades, no sistema comercial, traa um importante critrio para esta

    pesquisa. O estudo das determinantes do mercado revela as circunstncias sociais

    vivenciadas pelos msicos eletrnicos e ajuda a compreender o posicionamento esttico dos

    artistas diante da sociedade.

    Ao mesmo tempo, os aparelhos eletrnicos causaram alteraes na relao

    individual com o som. O processo gradual de adaptao s operaes possibilitadas

    repercutiu em modificaes qualitativas nos modos de escuta. A violenta transformao do

    entorno sonoro, a convivncia cotidiana com a transmisso e a reproduo eletrnica

    propiciaram enormes mudanas na relao do indivduo com as entidades sonoras,

    inaugurando as caractersticas de um novo regime perceptivo e de novos hbitos de

    apreciao musical. A msica eletrnica uma conseqncia direta da reformulao do

    lugar do som na vida humana; seu desafio esttico reside na adoo musical das

    sonoridades provenientes dos equipamentos. Demos especial nfase a este tema porque, de

    nosso ponto de vista, na msica eletrnica desenvolvem-se novos modos de escuta musical.

    Por esses motivos, a anlise que elaboramos segue um curso interdisciplinar, pois o

    estudo dos equipamentos exige aproximaes de diversa ordem: tcnica, social, cultural e

    musical. Os questionamentos do presente estudo pretendem coincidir com as prprias

    preocupaes dos msicos eletrnicos. Vemo-nos diante de uma atividade que rene

    conhecimentos de diferentes reas. Acreditamos numa musicologia interdisciplinar, que

    considera o fato musical (Molino, s.d.: 114) uma entidade multipolar compreensvel a

    partir de diversos ngulos. No pretendemos traar um veredicto final sobre a tecnologia de

    udio no sculo XX, valemo-nos de aproximaes dessemelhantes com essa tecnologia, a

    fim de esboar as possveis contribuies de uma experincia musical contempornea.

    Identificamos uma srie de circunstncias diversas: uma seqncia de fatos tcnicos

    sujeitos obsolescncia (transduo, tubo trodo, transistor), um empreendimento esttico

    por parte de compositores eruditos na busca de novos meios de expresso, um enorme

    mercado de produtos culturais e, por ltimo, uma transformao dos hbitos de escuta.

    Todas essas circunstncias, prprias da tecnologia musical da primeira metade do sculo

    XX, ajudam-nos a elucidar a forma como, hoje, os msicos eletrnicos relacionam-se com

    seus recursos.

  • 24

    Apesar de nosso objeto de estudo constituir um conjunto de fenmenos

    interligados, eles sero discutidos como uma seqncia de fatos, devido a questes de

    natureza metodolgica. Na medida em que avanamos cronologicamente e nos

    aproximamos das tecnologias atuais, encontramos menor unanimidade a respeito dos temas

    abordados. As fontes consultadas desviam-se levemente da discusso a que nos referimos

    aqui. Nosso foco a msica eletrnica. Na falta de uma bibliografia especfica a seu

    respeito, valemo-nos de uma bibliografia concernente a temas que lhe so relacionados:

    msica eletroacstica, msica popular, tecnologia, cultura eletrnica, mercado de discos,

    mercado de instrumentos musicais. Em relao a estes textos, alguns apresentam temas

    analisados sob pontos de vista que coincidem com os deste estudo; outros se explicam de

    maneira diferente; outros, ainda, revelam-se irrelevantes.

    Os recursos de difuso

    No sculo XIX, foram encontradas diversas propriedades da eletricidade; a mais

    importante para o trabalho em msica foi a transduo de ondas sonoras para energia

    eltrica. Isto permitiu uma srie de operaes inditas com a matria sonora, captura,

    registro e reproduo. A implementao da transduo sonora fundou, desde o incio, um

    promissrio mercado de aparelhos e estimulou, da por diante, a fabricao de novos

    recursos.

    Os recursos de difuso no foram construdos com fins musicais, mas com

    propsitos de controle sonoro; sua fabricao foi tarefa de inventores e cientistas. As

    primeiras aplicaes foram totalmente especulativas, porm encaminharam-se para um

    projeto miditico. Com o intuito de comunicar, o principal propsito foi veicular

    informao atravs do som, cujo estudo subverteu as fronteiras da arte musical. O som

    passou a ser abordado tambm como um veculo de informao essencialmente semntico.

    Identificamos duas aplicaes especficas: de um lado, a transmisso do som distncia; de

    outro, o registro, que, alis, implica dois procedimentos: gravao e reproduo.

    O surgimento de aparelhos como o microfone, o fongrafo e a fita magntica, em

    poucos anos, fundou novas perspectivas de trabalho com a matria sonora, voltadas

    principalmente para o trabalho de gravao. A possibilidade de registro configurou uma

  • 25

    nova realidade semntica para o som: a documentao. O trabalho de manipulao sonora

    ocupou-se tambm da inteligibilidade da mensagem, no to-somente das caractersticas

    formais. Apareceram novas reas de trabalho, cujo propsito consiste em transmitir

    adequadamente o sinal sonoro atravs dos equipamentos. O documento sonoro adotou,

    rapidamente, formas sociais e tornou-se um produto do mercado, fazendo da msica um

    objeto de consumo.

    A consolidao das aplicaes com intuito de comunicao (difuso) contrasta com

    a etapa embrionria das funes propriamente musicais (gerao de sons). A apropriao

    dos recursos eletrnicos como meios de expresso musical, em que os sons produzidos

    pelos aparelhos so utilizados como materiais de uma obra, seria objeto de reflexo

    posterior. A primeira tentativa sistemtica de elaborar leis musicais para os sons produzidos

    com os novos recursos surgiu apenas em 1966.2

    A reflexo sobre os recursos sonoros foi elaborada ,inicialmente, por intelectuais de

    outras reas (filosofia, semitica, esttica, literatura, psicologia) que no a msica e

    constituem um corpus que se enquadra nos estudos sobre a cultura. No entanto, muitas

    destas idias desvelam os critrios e as circunstncias vividas pelos msicos diante dos

    novos recursos. A anlise que elaboramos recorre a autores que no abordam diretamente o

    tema da linguagem musical, mas as conseqncias sociais e culturais que propiciaram os

    equipamentos de difuso sonora (Walter Benjamin e Marshall Mcluhan).

    Aps um amadurecimento intelectual no que se refere reproduo eletrnica,

    possvel esboar novas idias sobre tecnologias que nasceram no comeo do sculo, mas

    que permanecem em nosso cotidiano sonoro. A reproduo eletrnica mudou o lugar do

    som na vida humana e modificou as estratgias de apreciao musical.

    Analisaremos os recursos de difuso musical como entidades tecnolgicas que

    repercutem no trabalho musical.

    2 Ver : Schaeffer, Pierre. Tratado de los objetos musicales, traduo ao espanhol, Araceli Cabezn de Diego, Madri (Alianza Msica), 1988.

  • 26

    A transduo

    A grande descoberta na pesquisa de controle sonoro, que permitiu a construo dos

    dispositivos dos quais trataremos, foi a aplicao do princpio de transduo. Esta consiste

    em transformar um tipo de energia em outro. No caso do som, o transdutor converte ondas

    sonoras em impulsos eltricos. Lembremos que o som acusticamente entendido como

    movimento ou presso de ar sob forma de vibraes. Por meio de um diafragma de ao,

    Alexander Graham Bell conseguiu codificar as vibraes sonoras em impulsos de energia

    eltrica. A informao sonora convertida em eletricidade torna-se, assim, passvel de ser

    manipulada com grande liberdade. Pode ser, por exemplo, transmitida por meio de um cabo

    a grandes distncias e de forma instantnea. Na outra direo, os impulsos eltricos, ao se

    transformarem novamente em mudanas de presso de ar, produzem som.

    O desenvolvimento do princpio de transduo, utilizado por Bell na construo do

    telefone, permitiu, mais tarde, que se chegasse a um dispositivo especfico de captao: o

    microfone.3 Todavia o dispositivo encarregado de interpretar o fluxo eltrico e produzir

    som, o alto-falante,4 faz-se necessrio na construo de equipamentos eletrnicos.

    O microfone e o alto-falante, cujas funes consistem em transformar o som em

    eletricidade e a eletricidade em som, configuram a tecnologia da transduo. A

    implementao dessa tecnologia permitiu a proliferao comercial de aparelhos sonoros

    com diversas funes.

    A transmisso

    3 O primeiro modelo de microfone foi patenteado por Simmens em 1840, um prematuro desenho trabalhado a carvo. O desenvolvimento da tecnologia eltrica daria lugar a outros mecanismos na construo de microfones, como o microfone de condensador, que aparece em 1917, ou o dinmico, surgido em 1935. 4 Ernst Simens inventou o primeiro alto-falante no eletrificado em 1874. Com a apario do tubo trodo ou amplificador, em 1906, surgem diversos tipos de alto-falantes. J o desenho do alto-falante moderno data de 1925, e sua patente pertence a dois engenheiros da General Electric, Chester W. Rice e Edward Washburn Kellogg.

  • 27

    O telefone

    O telefone foi o primeiro equipamento sonoro a causar transformaes nos vnculos

    que o homem mantm com o som. Alm das possibilidades de comunicao, o dispositivo

    inaugura uma forma de escuta at o momento inexplorada: a presena de um som cuja fonte

    emissora no visvel. Esta situao, que recebe os nomes de acusmtica (Schaeffer),

    esquizofonia (Shafer), extenso do ouvido (Mcluhan), extrapola a noo de causa e

    efeito no ato da escuta. A fonte emissora do som ausenta-se de sob a vista, deixando

    imaginao o trabalho de completar a informao sobre esta causa. Esta relao prpria

    da tecnologia que se abastece da eletricidade. Todos os equipamentos feitos para

    comunicar, posteriores ao telefone, carregam, implicitamente, uma situao acusmtica.

    O prprio telefone causou transformaes na fala e na vida cotidiana. O

    pesquisador canadense Murray Schafer reflete sobre o impacto propiciada pelo aparelho,

    neste sentido:

    O telefone estendeu a audio ntima a grandes distncias; como no

    basicamente natural ser ntimo a distncia, levou algum tempo para que os

    humanos se acostumassem a esta idia [...] A capacidade do telefone de

    interromper pensamentos mais importante porque ele, indubitavelmente,

    contribuiu em grande parte para abreviar a prosa escrita na fala entrecortada

    dos tempos atuais (Schafer, 2001: 132).

    O rdio

    No final do sculo XIX, apareceu um recurso que provocou a democratizao desta

    situao acusmtica: o rdio. A descoberta da transmisso de ondas de rdio, ou

    hertzianas,5configurou um importante cenrio de comunicao nas primeiras dcadas do

    5 Por Gugliemo Marconi em 1895.

  • 28

    sculo passado. A transmisso sonora sem fio s foi conseguida aps a inveno da

    vlvula amplificadora6, tubo trodo ou audion, que amplifica e estabiliza o sinal no aparelho

    receptor. A implementao dessa descoberta foi utilizada, primeiramente, como um

    caminho de mo dupla, nas comunicaes radiotelegrfica e radiofnica, primordiais nas

    estratgias blicas da Primeira Guerra Mundial.

    Em 1916, um funcionrio da Marconi Telegraph and Signal Company7 (primeira

    companhia a comercializar a radiotelegrafia), o russo David Sarnoff, intuiu as aplicaes de

    entretenimento do rdio como meio de comunicao massiva dotado de uma via. No

    comeo, as idias de Sarnoff foram rejeitadas e tiveram que esperar alguns anos para ser

    tomadas a srio. As primeiras prticas de radiodifuso foram realizadas pelo americano

    Frank Conrad, quem, de forma pioneira, transmitiu os primeiros programas de rdio, da

    prpria casa. As transmisses de Conrad combinavam msica e narrao, o que lhe

    angariou uma certa popularidade, embora os radioamadores tivessem que construir o

    aparelho receptor. O americano foi contratado na primeira emissora comercial de rdio,

    fundada em 1920, a KDKA.

    Nos primeiros anos da dcada de 1920, apareceram emissoras comerciais e

    sociedades de amadores de rdio no mundo inteiro. Durante esta poca, implantaram-se as

    legislaes sobre o espao eletromagntico e investiram-se grandes capitais, que

    impulsionaram, da em diante, as companhias e as redes nacionais de transmisso radial: a

    NBC, em 1926, nos Estados Unidos; a BBC, em 1926, na Inglaterra; a RRG, em 1926, na

    Alemanha; a RAI, em 1924, na Itlia; a Rdio Verde-Amarela, em 1932, e a Rdio

    Nacional, em 1936, no Brasil; etc.

    Com o intuito de utilizar adequadamente um recurso que no tinha precedentes,

    vrios propsitos foram inicialmente adotados: polticos, educativos, jornalsticos,

    publicitrios e de entretenimento. O rdio foi, por exemplo, o principal veculo de

    6 Atribudo ao americano Lee de Forest em 1906. No entanto existem documentos que afirmam que, alguns anos antes, um brasileiro, o padre gacho Roberto Lendell de Moura, teria conseguido transmitir sons atravs de ondas radiais. Ver Almeida, B. Hamilton, O outro lado das telecomunicaes: a saga do padre Landell. Porto Alegre: Sulina, 1983. 7 Transformada depois na Radio Corporation of Amrica (RCA).

  • 29

    propaganda do nacional-socialismo, na Alemanha de entreguerras,tendo exercido papel

    indispensvel na ascenso de Hitler. Numa primeira etapa, interesses polticos e educativos

    foram divulgados pelo rdio; no entanto, os vnculos com a indstria fonogrfica

    estabeleceram um recurso indito de difuso musical e a linguagem radiofnica voltou-se

    para o entretenimento.

    Durante a primeira metade do sculo, o rdio foi alvo de diversas anlises crticas

    por parte de intelectuais dos mais diversas pontos de vista (Walter Benjamin, Kurt Weil,

    Bertold Brecht), pois revolucionou o pensamento miditico do momento. Concentremo-nos

    nas idias que repercutem no mbito musical: [...] Antes do surgimento do rdio, quase

    no se conheciam meios de divulgao que fossem propriamente populares ou que

    correspondessem a finalidades educacionais (Benjamin, 1989: 85).

    Segundo Benjamin, os novos meios de divulgao reformularam o conceito de

    popularidade. A abrangncia universal e indita da difuso proporcionou as bases para o

    surgimento de novas produes culturais, voltadas para um pblico massivo e divulgadas

    por intermdio do rdio:

    Em virtude da possibilidade tcnica inaugurada por ele, de dirigir-se na

    mesma hora a massas ilimitadas de pessoas, a popularizao ultrapassou o

    carter da inteno filantrpica e tornou-se uma tarefa com leis prprias de

    essncia e de forma (Benjamin, op. cit.: 85).

    A intuio de Benjamin tem uma profunda relevncia no processo de difuso

    musical do perodo. A produo popular, que era entendida como a expresso sonora de

    uma cultura especfica, passou a constituir uma entidade dotada de outros atributos. A

    popularidade da msica dependeu mais de sua divulgao por meio do rdio e do disco, do

    que de sua constituio social ou cultural, e as produes passaram a responder a leis

    prprias de essncia e de forma, institudas pelos veculos miditicos.

    Entende-se, assim, que, a partir da emergncia do rdio e do fongrafo, comeam a

    aparecer produes musicais chamadas populares, as quais rompem os vnculos com as

    tradies passadas e se acomodam-se aos veculos de divulgao (rdio, disco). Os msicos

    encontraram pblicos em lugares remotos, e criaram-se grupos de radioamadorismo unidos

    pelo culto a certas produes. Os limites da produo de cada cultura foram subvertidos e

  • 30

    se diluram na densa trama da cultura de massa. Os radioamadores deram lugar a uma

    especializao da programao e categorizao da msica popular em gneros. Surge,

    desta forma, uma personagem essencial na difuso musical e na consolidao de minorias

    reunidas em torno de uma srie de produes culturais: o DJ de rdio.

    Esta tendncia natural do rdio em ligar intimamente os diferentes grupos

    de uma comunidade manifesta-se claramente no culto aos disk-jockeys e no uso

    que se faz do telefone, como forma glorificada da velha interceptao de notcias

    na linha-tronco (McLuhan, op. cit.: 345).

    Por outro lado, o rdio instituiu a universalizao da escuta acusmtica. Os meios de

    divulgao acabaram com a necessidade da presena do ouvinte durante a performance

    musical, e a programao radialstica atingiu todas as camadas da sociedade. A rpida

    ascenso de emissoras comerciais, com programao musical, fez da audio de msica

    uma experincia comum. O limite espao-temporal que envolvia a apreciao musical foi

    eliminado, e a msica adquiriu uma condio de onipresena. Tudo isto foi modificando,

    aos poucos, os paradigmas de contemplao da msica, inicialmente reservados ao ritual da

    execuo instrumental num palco e, depois, subvertidos pela paulatina comercializao do

    fongrafo. Com o rdio, tomou-se conscincia de que possvel perceber a msica de

    outras formas (cf. Iazzetta, 1998: 37).

    Para a pesquisadora mexicana do rdio, Maria Cristina Romo Gil, na comunicao

    da mensagem radiofnica deve-se levar em conta a maneira como o receptor a escuta.

    Romo Gil identifica algumas propriedades do som, enquanto fenmeno perceptivo:

    O som no tem limites quanto a sua origem, nem quanto a sua difuso;

    expande-se naturalmente e pode ser percebido tanto voluntria como

    involuntariamente, em contraposio ao que ocorre com a viso, completamente

    submissa vontade (1994: 18).

    Aquilo que Romo Gil chama de escuta involuntria coincide com o que Pierre

    Schaeffer chama de ouvir, com que Abraham Moles designa por modo de escuta

    ambiental e com a noo de profundidade de Marshal Mcluhan. Por meio do rdio,

  • 31

    possvel aceder aos mais variados repertrios sonoros sem empreender, necessariamente,

    uma contemplao concentrada, a qual d conta do sentido, mas permite apreender os

    contedos sob outras formas de percepo.

    A instituio da escuta acusmtica atingiu os procedimentos de criao sonora. A

    msica foi construda para ser realizada nos alto-falantes, encontrando novos espaos de

    difuso. Desde o incio do sculo XX, observa-se o surgimento de produes musicais

    feitas para ser escutadas involuntariamente. A chamada msica pano de fundo,

    comercializada, nos Estados Unidos, pela companhia Muzak, um resultado direto da

    escuta acusmtica. Esse tipo de msica responde a outros tipos de relao perceptiva com

    as entidades sonoras. As modificaes no regime perceptivo, que agenciaram os recursos

    eletrnicos, sero tratadas com mais profundidade no terceiro captulo.

    Como resultado, os novos meios de divulgao sonora, conformados pelo rdio e

    pela indstria fonogrfica, resultaram em importantes transformaes culturais.

    Por um lado, redefiniu-se o conceito de popular, como forma de expresso

    prpria dos veculos miditicos em detrimento das categorias tradicionais, que o definiam

    como a expresso de uma cultura especfica. Por outro, estabeleceram-se novas formas de

    escuta musical. A condio acusmtica da radiodifuso tornou evidente que a percepo

    auditiva possui vrios aspectos. Instituem-se, assim, novos vnculos com a msica, a qual

    comea a ser elaborada exclusivamente em funo da divulgao radialstica.

    Contudo o rdio e recursos de registro como o fongrafo criaram, em conjunto, uma

    nova condio, do ponto de vista social, para a msica e para o msico.

    O registro

    O fongrafo

  • 32

    Sobre o princpio de transduo funda-se tambm o cilindro fonogrfico patenteado

    por Thomas Alba Edison em 1877.8 Este dispositivo permitia fixar o som de forma

    mecnica, cristalizando os experimentos realizados por Leon Scott de Martinville em 1856

    (Cuttler, 2000: 93). Esta foi a primeira forma datada de registro sonoro.

    Inicialmente, Edison construiu o aparelho com o propsito de captar e reproduzir a

    voz humana, chamando-o de Dictaphone. Alis, as primeiras mquinas a ser

    comercializadas foram aparelhos repetidores e brinquedos (bonecas) que escutavam e

    falavam. Estes primeiros prottipos especulativos foram construdos sem que se tivesse

    uma clara noo das possibilidades abertas pelo registro sonoro como veremos depois,

    este ser objeto de diversas reformulaes.

    Em 1887, Emil Berliner introduz um dispositivo mais bem acondicionado para a

    reproduo de msica: o gramophone. O aparelho apresentou os seguintes benefcios:

    registro em disco de zinco, coberto por uma camada de cera, velocidade padro de gravao

    a 78 rpm e maior volume. Este equipamento permitiu que a elaborao industrializada de

    discos de vinil partisse de um original feito em zinco, o que possibilitaria a emergncia do

    disco de vinil como formato universal de difuso massiva para os trabalhos musicais.

    O processo de popularizao comercial do fongrafo no foi imediato nem

    uniforme. Nos primeiros anos de sua construo, o processo de transduo efetuava-se de

    forma mecnica; no entanto, surgiram diversas patentes de mquinas similares e deram-se

    as primeiras tentativas de comercializao massiva.

    Em 1925, com a apario do alto-falante eltrico, a companhia americana Western

    Electric patenteou e comeou a produzir o fongrafo a motor (chamado de Ortophone). A

    partir daquele momento, o fongrafo tornou-se um aparelho relativamente cotidiano.

    O suporte de registro, o disco, ofereceu um terreno fecundo para a instituio de um

    mercado de gravaes musicais. Os primeiros trabalhos a ser comercializados, registrados 8 Charles Cross j tinha patenteado, no mesmo ano, um aparelho com as mesmas caractersticas, o Palophone, mas este nunca foi realizado. A disputa sobre quem teria sido o verdadeiro descobridor opta por Edison, que foi o primeiro a registrar e reproduzir sons. Em, Moraes, Amaro & Moraes e Silva, Jao Baptista. Odissia do Som. So Paulo (Musseu da imagem e som), 1987, aparece uma completa informao sobre a apario do primeiro gravador e reprodutor.

  • 33

    em disco de zinco e cilindros de cobre, eram voltados para o registro dos clssicos do

    repertrio erudito. Alguns cantores de pera da poca (como Enrico Caruso) foram

    responsveis pelos primeiros sucessos comerciais da indstria fonogrfica. Assim, o

    gramophone tornou-se o principal aparelho de comercializao massiva, depois do

    fongrafo, e o disco, o formato de suporte universal. Aps alguns anos de recesso, ao

    longo da Primeira Guerra Mundial e da apario do rdio, a poderosa indstria fonogrfica

    muniu-se de outros repertrios. A msica popular norte-americana (swing, blues, jazz) foi

    altamente favorecida e divulgada pelo mundo inteiro, influenciando a produo musical de

    outros lugares atravs do disco.

    Em 1948, a Columbia Phonograph Company9 (hoje Columbia Records) introduziu o

    disco LP (long-play), de 12 polegadas e gravao a 33 e 1/3 rpm, o que permitiu registrar

    30 minutos de som em cada lado. Com isso, a companhia conseguiu estabelecer um padro

    de formato para produo e venda. Constituiu-se, assim, um promissor mercado de discos.

    O impulso comercial que tiveram o fongrafo e o disco repercutiu na atividade

    musical da poca, pois a unificao do suporte introduziu novas dimenses sociais para a

    msica. O exerccio musical, at aquele momento restrito ao mbito artstico, foi alvo de

    interesses comerciais. As expresses musicais, individuais e coletivas passaram a ser

    tambm produtos de entretenimento. A criao musical incorporou as necessidades do

    mercado, e uma enorme quantidade de msicos empreendeu a tarefa de produzir discos de

    consumo massivo. A transformao dos procedimentos de criao musical vinculados ao

    registro sonoro manifestou-se de maneira patente nos anos 1950 e 1960, com o surgimento

    de produes elaboradas no interior dos estdios.

    Ao mesmo tempo, a documentao sonora permitiu que se tomasse conhecimento

    do repertrio musical de todas as tradies e culturas e, desta forma, o registro sonoro

    representou uma ferramenta determinante para se compreender a msica do passado e de

    outras localidades, a qual, at aquele momento, era analisada apenas por meio de partituras

    9 Nos primeiros anos do sculo, esta companhia disputou, juntamente com a American Phonograph Company (na qual trabalhou Edison) e a Victor Talking Machine Company (produtora de Vitrolas), o incipiente mercado de aparelhos de som.

  • 34

    ou audies ao vivo. A ttulo de exemplo, em 1920, a Biblioteca do Congresso, nos

    Estados Unidos, inaugurou um significativo acervo das gravaes realizadas at aquele

    momento. J a partir dos anos 1940, com a criao do laboratrio de gravaes, naquela

    mesma instituio, organizou-se a maior coleo existente de documentao sonora.

    McLuhan reconhece esta propriedade da documentao sonora:

    Onde antes havia uma limitada seleo de perodos e compositores, passou

    a haver com o gravador combinado ao LP um completo espectro musical, que

    tornou acessveis tanto o sculo XVI como o XIX, a cano popular chinesa e a

    hngara (op. cit., p. 327).

    O fongrafo, a vitrola e o rdio foram abastecidos pela indstria fonogrfica e

    retiraram a msica da sala de concerto, arrebatando ao executante instrumental a

    exclusividade da difuso. O registro substituiu a partitura como forma de documentao do

    conhecimento musical. Com isso, as produes encontraram um novo carter social e o

    papel do artista foi progressivamente subvertido, passando-se a considerar outros valores

    estticos na criao musical.

    A fita magntica e a gravao multipista

    Apesar de o gravador de fita magntica ter significado apenas uma mudana

    tecnolgica no procedimento de registro, o surgimento deste recurso inaugurou novas

    tcnicas e procedimentos no exerccio de produo sonora, os quais repercutiram nos meios

    de divulgao existentes. O pesquisador francs Michel Chion explica que a conquista, de

    fato, foi a gravao. As verdadeiras possibilidades desta descoberta seriam atingidas muitos

    anos depois, com o advento da fita magntica.

    Muitas vezes ocorre que as mquinas esperam anos, uma vez concebidas,

    para encontrar seu emprego, e, inversamente, uma demanda artstica ou

    econmica importante estimula a ecloso de novas tcnicas que, at aquele

    momento, ningum havia considerado (Chion, 1996: 41).

  • 35

    Durante as primeiras dcadas do sculo, experimentaram-se diversos procedimentos

    de gravao alm do fonogrfico (tica, arame, papel). Desde 1920, desenvolveu-se, na

    Alemanha, uma pesquisa de registro sonoro em fita magntica. Durante a Segunda Guerra

    Mundial, dois engenheiros10 da politizada rdio alem, a Reichs-Rundfunk-Gesellschaft

    (RRG), apresentaram, em 1935, um sistema de gravao em fita que superou as

    expectativas em relao tecnologia do momento. O resultado, para a definio do material

    fixado pelo primeiro novo gravador, era muito satisfatrio (a despeito dos outros

    procedimentos). Esta pesquisa teve grande apoio do governo alemo, pois o gravador de

    fita magntica colaborou enormemente na consolidao do rdio, primordial para o Reich.

    Alm disso, Hitler pretendeu utilizar esta descoberta com fins de espionagem militar, por

    isso o mundo ocidental teve que esperar o fim da guerra para conhecer essa tecnologia.

    Terminada a guerra, a fita magntica foi implementada em outros lugares, e o

    gravador comeou a ser construdo para fins comerciais.11

    No comeo dos anos 50, aparecem os primeiros gravadores multipista, que recebem,

    distintamente, 2 e 4 canais. O mtodo de registro multipista permite ao msico gravar um

    determinado trecho enquanto escuta um outro sinal, j gravado. Assim, possvel elaborar

    uma montagem sonora de trechos gravados separadamente. As primeiras tentativas de

    gravao multicanal foram realizadas pelo guitarrista americano Les Paul, quem fez os

    primeiros experimentos com gravadores fonogrficos. No entanto a gravao multipista foi

    instituda universalmente em fins dos anos 1950, quando a RCA Victor lanou o LP

    estreo. O mtodo de gravao multipista tornou-se o modelo de produo da msica

    popular a partir dos anos 1960. O procedimento consiste em gravar vrios canais

    separadamente, registrar sobre a fita e elaborar um disco, para ser reproduzido em dois

    canais diferentes.

    10 O procedimento adotado por Otto von Braurmuhl e Walter Weber consistiu em misturar um sinal de altssima freqncia durante o processo de gravao, em que a fita de plstico, na qual ficava registrado o som, era coberta por uma camada de ferro oxidado que a tornava magnetizvel 11 Inicialmente, pelas companhias alems AEG e Basf. Depois, a companhia americana 3M entraria no mercado de mquinas gravadoras e fitas magnticas. Em 1948, surge o primeiro modelo profissional, o Model 200, fabricado pela companhia americana Ampex.

  • 36

    A importncia da fita magntica deve-se tambm s possibilidades que abriu na

    manipulao do som. A versatilidade da fita, como suporte de gravao, deu lugar a que

    fossem realizadas operaes que o disco no permitia, como cortar, colar, combinar e

    reproduzir, em diferentes velocidades, um trecho especfico de som. Assim, a organizao

    temporal dos eventos sonoros tornou-se um exerccio de laboratrio similar montagem

    cinematogrfica.

    O gravador de fita magntica s se imps na Frana um pouco depois

    (1948), dando ao compositor, com a fita cassete magntica, a possibilidade de

    cortar e recombinar os sons vontade, assim como o som tico o fizera, em

    relao a Ruttman. A msica dos sons fixados adquiriu, desde ento, o conjunto

    de meios tcnicos essenciais (Chion, 1996: 46).

    Michel Chion compara o exerccio de edio sonora, possibilitado pela fita

    magntica, ao experimento realizado, em 1930, pelo diretor de cinema alemo Walter

    Ruttman. No registro tico (que no foi comercializado), o diretor rodou um filme sem

    imagens, chamado Week-end, que relata, apenas por meio de sons, os acontecimentos de

    um final de semana. Na poca, este filme, visionrio sob o ponto de vista da histria da

    fixao sonora, no teve repercusses no mbito musical; isto s aconteceu, nos anos 1950

    e 1960, com o espalhamento do gravador de fita magntica.

    Como assinala Chion, o dispositivo tico j permitia o trabalho de edio; no

    entanto, o magntico, em mos dos msicos, deu lugar a pesquisas em outros sentidos e

    instituio de um lugar de trabalho para a manipulao sonora: o estdio de produo. O

    estabelecimento do estdio como local de concepo criativa de grande importncia no

    processo de incorporao dos recursos eletrnicos. No captulo seguinte, iremos nos

    aprofundar no tema dos estdios; relacionamos, aqui, as conquistas que tiveram lugar no

    final dos anos 1940, no estdio da RTF, (Radio-Diffusion-Tlvision Franaise), em Paris,

    sob a direo de Pierre Schaeffer.

    No interior do estdio, o gravador de fita magntica permitiu formular importantes

    questionamentos musicais. Capturado e registrado na fita, o som , pela primeira vez,

    analisado em profundidade. Schaeffer encontrou a possibilidade de isolar um trecho

    (chamado de objeto) do efmero discurso sonoro:

  • 37

    O gravador de fita permite fixar a ateno no som mesmo, em sua matria

    e sua forma, devido a cortes e confrontaes muito semelhantes, tecnicamente,

    aos trabalhos sobre materiais da linguagem. Se tomarmos s a linguagem no seu

    contexto, muito difcil, se no impossvel, chegar a tal conhecimento. O fluxo

    do sentido e as funes dos elementos so muito mais determinantes para

    desvelar a estrutura (Schaeffer, 1988: 27).

    A ateno sobre o som mesmo, isolado do contexto, configurou uma nova

    perspectiva de anlise do discurso sonoro, elaborada tradicionalmente por intermdio da

    partitura. Desta maneira, Schaeffer funda uma prtica indita, que aborda o tema do sentido

    em msica sob outra perspectiva: o estudo dos objetos. Abandona-se a nota como elemento

    irredutvel e gerador da estrutura, dando lugar ao objeto (registrado) como mnima entidade

    do discurso. Redefine-se, com isto, o conceito de campo sonoro, que, entendido no contexto

    instrumental como um conjunto de notas, passa a ser o conjunto de fenmenos sonoros que

    podem ser captados pelo microfone.

    Alm disso, com o gravador de fita, Schaeffer tirou importantes concluses a

    respeito da percepo auditiva. A materializao do som na fita permitiu abandonar o

    problema do contedo e orientar a pesquisa para outro tema, a escuta.

    Ao ser gravado, o objeto se produz como idntico, atravs das distintas

    percepes que terei em cada escuta. Ser produzido como ele mesmo,

    transcendendo as experincias individuais (e tambm divergentes), que tero

    dele mesmo os distintos observadores, especialistas diversos, reunidos em torno

    de um reprodutor (Schaeffer, 1988: 164).

    Schaeffer percebe que, embora o som emitido pelo reprodutor se produza como

    idntico, aparece de formas diversas ao ser percebido por diferentes pessoas e aps vrias

    audies. Esta abordagem, que leva em conta os fatores psicolgicos da escuta e aproxima-

    se da msica como uma entidade de percepo, teria enormes repercusses no exerccio

    criativo e iria iluminar os procedimentos de produo musical do sculo XX. As

  • 38

    conquistas de Schaeffer, atingidas to-somente por meio do gravador de fita magntica,

    fornecem-nos um instrumento efetivo de anlise.

    Os recursos de gerao

    O construtor de instrumentos eletrnicos e o meio musical

    Durante a primeira metade do sculo, paralelamente ao advento dos recursos de

    difuso, empreendeu-se a tarefa de construir instrumentos musicais, fornecidos com as

    propriedades da eletricidade. O desafio consistiu em gerar o som por meio de osciladores

    eltricos, no por meios mecnicos. As primeiras tentativas de construir instrumentos

    musicais eletrnicos no tiveram o impulso comercial que sustentou a fabricao dos

    aparelhos de registro e transmisso. O processo foi mais lento e menos uniforme. As

    dificuldades financeiras que se apresentavam construo dos novos artefatos fizeram com

    que se vinculasse esta pesquisa a grandes instituies financiadoras e impediram sua

    incorporao nos processos musicais durante a primeira metade do sculo.

    Nas ltimas dcadas do sculo XIX, deram-se importantes conquistas no estudo da

    acstica. O desenvolvimento da teoria do espectro, a partir dos teoremas de Fourier, deu

    origem a importantes aplicaes na conceituao fsica do som. O texto do fsico alemo

    Herman Helmhotz, On the sensation of tone as a physiological basis for the Theory of

    Music, (1954) publicado em 1877, possibilitou a pesquisa acerca das caractersticas

    acsticas do som, em relao percepo e s categorias musicais. Os experimentos desse

    pesquisador permitiram o desenvolvimento de uma cincia fundamental na compreenso

    cientfica do som, a psicoacstica. O estudo das propriedades fsicas do som em relao s

    realidades perceptivas, proposto por Helmholtz, um critrio fundamental do construtor de

    instrumentos eletrnicos e orientou o pensamento tcnico voltado para a relao entre a

    msica e a tecnologia durante grande parte do sculo XX.

    Os fabricantes e inventores de instrumentos musicais tiveram de encarar o complexo

    desafio de aliar vrios domnios do conhecimento: a cincia da eletricidade, a acstica (que

    adota a preocupao pela percepo) e a teoria musical. Os instrumentos geradores

    (Thelarmonium, Theremin, Ondes Martenot, Sackbut, entre outros) participaram de forma

  • 39

    sumria no processo musical da primeira metade do sculo passado. Como veremos, o

    nico instrumento utilizado sistematicamente, durante este perodo, foi o rgo Hammond,

    por razes que discutiremos ao longo da anlise. No entanto, ao longo desta poca, foram

    estabelecidas as bases para a instituio de uma nova cincia interdisciplinar que floresceria

    na segunda metade do sculo, a luteria eletrnica.12

    Aps a consolidao do ofcio de luteria eletrnica, nos anos 1960, aparecem novos

    desenhos de instrumentos geradores. O caso especfico de Robert Moog, inventor do

    primeiro sintetizador modular, um exemplo da comunho entre os recursos eletrnicos e

    as necessidades musicais do momento. Esta ferramenta produz sons gerados, por meio de

    osciladores eltricos, mas o controle desses sons realizado por intermdio de um teclado.

    Apesar de o desenho se valer de conquistas tecnolgicas (osciladores eltricos, sistema

    modular, transistor), sua interface carrega noes tradicionais (temperamento, notas

    musicais) e acomoda-se ao conhecimento dos msicos instrumentais. Em detrimento da

    grande maioria de aparelhos geradores construdos na primeira metade do sculo XX, o

    moog foi utilizado com base em diferentes critrios, em produes de diversos contextos,

    devido a sua adequao ao meio musical. O moog um dos primeiros equipamentos

    eletrnicos a serem apropriados pelos msicos eletrnicos e representa a concluso de um

    processo de experimentao na construo de aparelhos, que estudaremos neste captulo.

    Metodologias de anlise dos instrumentos eletrnicos

    Existem vrios textos que realizam um estudo sistemtico da tecnologia de udio no

    sculo XX. Neles, encontramos diferentes abordagens. No artigo Instruments

    lectroniques: classification et mcanismes (Davies, 1991), Hugh Davies empreende uma

    classificao tcnica dos instrumentos segundo o funcionamento e os procedimentos de

    fabricao. A metodologia desse autor oferece uma relao de continuidade com os

    12 O termo luteria provm do francs, lutherie, ligado a luthier (ainda no transposto para a lngua portuguesa), o fabricante de instrumentos tradicionais. No tendo encontrado um termo mais apropriado, usamos a mesma expresso para referir-nos ao construtor de instrumentos eletrnicos.

  • 40

    critrios tradicionais da musicologia. A taxonomia de Davies divide os instrumentos em

    famlias e identifica os mecanismos de produo sonora. Embora o texto fornea um

    importante esclarecimento tcnico sobre a construo dos aparelhos, neste estudo tambm

    levaremos em conta abordagens que do conta de outros tipos de realidade que atingem o

    processo tecnolgico.

    Da perspectiva da msica eletroacstica, existe uma extensa bibliografia a respeito.

    importante assinalar que o exame histrico dos equipamentos, empreendido a partir da

    msica eletroacstica, busca compreender os processos criativos dos compositores deste

    gnero. Alguns equipamentos cuja importncia foi fundamental em outros contextos so

    sistematicamente ignorados; por outro lado, o tema do mercado de instrumentos no

    apresenta, sob este ponto de vista, nenhuma relevncia. Os textos Introduction to electro-

    acustic music (Schrader, 1982) e Electronic and Computer Music (Manning, 1994),

    fornecem uma interessante aproximao com o repertrio eletroacstico atravs dos

    instrumentos geradores. Apesar de as concluses elaboradas por esses autores restringirem-

    se ao contexto da msica eletroacstica, os textos auxiliam-nos na reflexo sobre a dialtica

    entre equipamentos e linguagem musical. O texto Electric sound: the past and promise of

    electronic music (Chadabe, 1997) aborda a msica eletroacstica, mas se aprofunda no

    contexto popular e oferece uma interessante perspectiva multidisciplinar da tecnologia.

    Por outro lado, h textos que estudam a tecnologia musical do sculo XX do ponto

    de vista da cultura. Aqui, leva-se em considerao outro tipo de circunstncias de ordem

    econmica e social. Temas como mercado, inovao tecnolgica e o impacto causado pela

    tecnologia conduzem a textos como Any sound you can imagine (Thberge, 1997), The

    social construction of the early electronic music sintetizer (Pinch & Trocco, 2002). Tais

    fontes alimentam a discusso sobre equipamentos geradores adotando uma perspectiva

    sociocultural. A relao entre a tecnologia de produo musical e a sociedade de consumo

    estabelece um importante critrio de discusso para esta pesquisa.

    Os textos especficos sobre msica eletrnica dedicam-se, em sua maior parte, a

    relatar o processo cultural. O tema dos equipamentos de udio objeto de textos

    informativos sobre a operao de um ou outro aparelho especfico. Em Modulations

    (Shapiro, 2000) e Electroshock (Rule, 1999), elabora-se um breve resumo a respeito do

    surgimento dos dispositivos e do desenvolvimento da tecnologia musical durante o sculo

  • 41

    XX. Porm estes textos informam, por meio de entrevistas e depoimentos, sobre a viso

    que os msicos eletrnicos tm dos equipamentos.

    A ausncia de um estudo sistemtico, que d conta das ferramentas tecnolgicas,

    sob o enfoque da msica eletrnica, permite-nos elaborar uma aproximao metodolgica.

    A abordagem que adotamos recorre aos estudos mencionados, mas se sustenta no

    pensamento de Shaeffer. Partimos, assim, da idia de que a msica aparece na interao do

    homem com o artefato sonoro, no jogo instrumental (Schaeffer, 1988:. 41). Esta idia

    permite-nos estabelecer uma relao entre os equipamentos e o discurso musical que

    emerge. Os dispositivos eletrnicos so os artefatos sonoros do homem contemporneo,

    cuja interao se cristaliza em produes musicais.

    O Audion

    O surgimento de instrumentos que produzem som por meio de geradores eltricos

    esteve sujeita chegada da amplificao. Como j assinalamos, este recurso estabeleceu-se

    em 1906, com inveno do tubo trodo, dando lugar construo de uma vlvula que

    permite a amplificao. O dispositivo, patenteado com o nome de Audion por Lee de

    Forest, foi o divisor de guas na fabricao de aparelhos que usam alto-falantes (rdio,

    equipamentos geradores, instrumentos tradicionais amplificados). O surgimento da vlvula

    amplificadora, somado implementao do processo de transduo, traa um momento

    culminante na tecnologia musical, pois marca o evoluo dos processos mecnicos para os

    eltricos.

    importante assinalar que o principal interesse que despertou o advento desse

    recurso foi adaptar circuitos de amplificao a instrumentos musicais tradicionais. Aps a

    Primeira Guerra Mundial, a maioria dos engenheiros eltricos que se aventurou no trabalho

    de luteria eletrnica dedicou-se a desenhar microfones e sistemas de amplificao para as

    caractersticas vibratrias especficas dos instrumentos da orquestra. Isto conforma, sob o

    ponto de vista de Davies, um novo arsenal de instrumentos eletroacsticos. Assim, alguns

    instrumentos tradicionais foram eletrificados e valeram-se, tambm, das conquistas de De

    Forest. Instrumentos como as guitarras eltricas tiveram um grande impulso comercial, que

    levou a seu aperfeioamento, durante a primeira metade do sculo. O processo de

  • 42

    industrializao dos instrumentos amplificados antecedeu ao dos instrumentos geradores. A

    guitarra eltrica difundiu-se rapidamente e participou, em vrios pases de Amrica, na

    constituio de uma msica nacional: o jazz, o blues nos Estados Unidos; o reggae, na

    Jamaica; o calypso, em outras ilhas do Caribe. Assim, a amplificao permitiu uma

    continuidade da atividade instrumental e a incorporao das sonoridades eletroacsticas

    (Davies, 1991: 54).

    O Thelarmonium

    Antes da inveno do tubo trodo, um inventor norte-americano, Taddeus Cahill,

    havia esboado o projeto de um sistema de gerao de sons com base em fluxos de energia

    eltrica. O Thelarmonium foi proposto a partir de um sistema mecnico de dnamos,

    motores que, ao girar, produzem ondas senoidais. Segundo este esquema de funcionamento,

    o Thelarmonium classifica-se como um instrumento eletromecnico (Davies, op. cit.: 55).

    Os geradores eram controlados por um teclado e a sada era amplificada de forma mecnica

    (similar ao fongrafo), que chegava a um receptor telefnico com uma membrana adaptada

    especialmente para uma resposta satisfatria no registro baixo (Chadabe, 1997: 4).

    Observemos que o propsito de Cahill era transmitir os sons do Thelarmonium

    atravs do telefone. Embora, em termos tcnicos, o Thelarmonium seja o primeiro desenho

    de um artefato gerador, em termos de emprego o equipamento foi destinado difuso. Este

    descompasso entre possibilidades musicais e uso efetivo do aparelho ilustra o iderio

    especulativo dos primrdios desta tecnologia. O Thelarmonium um instrumento hbrido,

    gerador de sons eletrnicos, mas empregado na difuso.

    O intuito empresarial de Cahill teve posteriores conseqncias no emprego dos

    equipamentos como ferramentas de entretenimento musical, a Muzak. Durante as primeiras

    dcadas do sculo XX, o servio de transmisso musical por intermdio do telefone

    configurou um dos primeiros propsitos de emprego dos recursos eletrnicos.

    O primeiro prottipo, de 1901, que pesava 7 toneladas e utilizava 35 dnamos

    (apesar de, nos planos da patente de 1897, constar que a mquina utilizaria 408 dnamos),

    permitiu que Cahill transmitisse o Largo de Handel de Washington para um hotel em

    Baltimore. Assim, o inventor conseguiu oramento de dois investidores (Oscar T. Crosby e

  • 43

    Frederick C. Todd) para construir outros Thelarmoniums. Com a fundao da sua prpria

    companhia, a New York Electric Music Company, Cahill conseguiu os primeiros assinantes

    do seu servio de Thelarmonia, que consistia na execuo de peas de Rossini, Puccini e

    outros compositores por telefone. Seriam ainda construdos outros dois modelos, em 1906

    e em 1910. O Thelarmonium foi apresentado em vrios concertos e espectculos de

    exibio de tecnologia, como no Carnegie Hall de Nova York, em 1912.

    A companhia de Cahill teve dificuldades legais, ao ser constatado que o aparelho

    interferia nas transmisses telefnicas. Com o advento da primeira tecnologia de

    transmisso sem fio, desenvolvida em 1907 por Lee de Forest, o servio prestado pelo

    Thelarmonium foi afastado, por interferir na comunicao militar sem fio. Em 1914, a

    companhia de Cahill fechou as portas.

    Apesar das dificuldades apresentadas para a construo do equipamento, o

    Thelarmonium representa um exemplo das alteraes ocorridas no trabalho do luthier. o

    caso de um inventor que adapta recursos tradicionais da msica (notas, teclado), para

    construir um dispositivo eltrico gerador de sons que prope aplicaes inditas de

    entretenimento musical. Infelizmente no existem gravaes dos sons produzidos pelo

    Thelarmonium. No entanto, a atitude visionria de Cahill, que foi o primeiro em falar em

    sntese, incentivou a elaborao de uma dissertao, Sketch of a New Aesthetic of

    Music, elaborada pelo compositor italiano Ferrucio Busoni em 1907, sobre a necessidade

    de novos artefatos sonoros similares ao Thelarmonium.

    O Theremin

    Em 1919, o fsico