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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – S.P JANETE DA SILVA LOPES Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2014

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – S.P

JANETE DA SILVA LOPES

Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo

2014

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – S.P

JANETE DA SILVA LOPES

Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo

2014

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciência Sociais sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Helena Villas Boas Concone.

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Dedico   este   trabalho   à   vida,   que  refaz   teu   ciclo   em   meu   ventre  irradiando  amor  e  energia.  

Banca Examinadora –

______________________________________________________

______________________________________________________

______________________________________________________

 

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus familiares, pais, irmãos e cunhados que, mesmo sem entender minhas escolhas,

me apoiaram e partilharam meus desejos me encorajando a realizá-los. De maneira muito especial

agradeço meu marido Márcio, por todo o amor, paciência e solidariedade que a mim dispensou neste

momento.

À minha grande paixão, o pequeno Arthur, um pedido de desculpas pelos momentos não vividos em

detrimento da escassez de tempo para estarmos juntos.

Sou grata à Professora Maria Helena Villas Boas Concone pela atenção e paixão com que orientou

este estudo e pela paciência e lucidez com que sempre acolheu minhas angústias e inseguranças.

Encontrá-la foi o acontecimento mais importante desta trajetória. Outros bons encontros tive com

professores e colegas da PUC – S.P a quem registro minha gratidão.

Partilhar a vida de cada um dos colaboradores desta pesquisa e poder publicizar histórias de luta e de

resistência foi o maior presente da pesquisa. Seu Adelino (em memória); Seu Abel; Seu Antonio; Seu

Cipriano, Seu Irine e Dona Tereza, às Marias da Vila Dignidade – Maria Aparecida, Maria Rosa e

Maria Carvalho; à Dona Zélia, Dona Geni e aos demais moradores meu Muito Obrigada pela acolhida

e pela sinceridade com que compartilharam suas intimidades abrindo suas vidas e possibilitando essa

troca tão valiosa para a construção de novos saberes. Devo um agradecimento especial a Elisabeth do

Rocio Minaif Santos, coordenadora da Proteção Especial do Município de Itapeva, pela atenção e

confiança com que nos recebeu facilitando nossa inserção em campo.

Agradeço à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, lugar que primeiro me propiciou o contato

com o tema do envelhecimento. À Áurea Soares Barroso que sempre instigou meu desejo de

investigação e aprofundamento sobre as questões que envolvem o envelhecer. Não posso deixar de

agradecer aos colegas da equipe de Proteção Social Especial: Ângela, Angélica, Luciana, Nazira, Ana

Paula, pela compreensão sempre que precisei sobrecarregá-las com minhas ausências, em especial ao

meu coordenador Edson Pelagallo, e às colegas Fátima Nassif e Juliana Santos que me ajudaram na

transcrição das entrevista.

Aos Programas de Pós Graduação em Ciências Sociais e Gerontologia da PUC-SP pelos momentos de

conscientização e reflexão e às professoras Elisabeth Mercadante e Flamínia Manzano Ludovici pelas

valiosas contribuições na qualificação deste trabalho.

Aos amigos de todas as horas: Luciana Ramin e Gabriel Netto pelo amor com que sempre me

receberam todas as vezes que precisei ficar em São Paulo, pelas valiosas conversas e contribuições

para esta pesquisa.

A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) registro minha gratidão

por financiar esta pesquisa tornando possível um sonho.

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Havia, na minha rua, uma casa pequena e branca. Durante dias, lá não vivia ninguém. Mas se a lua era cheia, a janela se abria como um livro. Um homem, com rosto de anjo, vestido de luar, debruçava na janela e pensava, em sossego sobre a cidade. Mais calado que o silêncio, o homem olhava e mais nos olhava. Todos da cidade tinham cuidado para não quebrar o seu silêncio. Ninguém soprava uma palavra.

Cochichavam que ele esperava os habitantes dormirem. Na noite alta, ele saía para visitar o sono de cada um. Entrava mansinho, mais leve que o gato, doce como o sereno, suave como o perfume, e virava um sonho diferente para cada uma das pessoas. Naquela noite, todos dormiriam com um breve sorriso na boca.

O prefeito sonhava em ser governador; o padre, em ser bispo; a professora, em ser diretora; o deputado, em ser senador; o soldado em ser tenente; a solteira, em ser casada; o padeiro, em ser engenheiro; a criança, em ser grande; o sem-teto, em ter casa. Todos queriam outra coisa. E para tudo precisava tempo. No dia seguinte, todos acordavam como eram antes e com vontade de continuar sonhando.

Bartolomeu Campos Queirós: 2011.

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LOPES, Janete da Silva. Lugar de envelhecer: Narrativas de idosos

RESUMO

A Casa carrega diversos signos e significados que permeiam nosso imaginário e sobre os

quais temos pouca consciência. Reproduzida e naturalizada em nossa cultura toda a riqueza

simbólica deste lugar é destituída dos sujeitos institucionalizados. As indagações deste

trabalho referem-se a como inventamos socialmente este espaço denominado Casa e qual a

sua importância para os sujeitos que envelhecem. A partir da política de assistência social

levantamos as questões: o que essa política pública pode ofertar às pessoas idosas como

formas de acolhimento? e, Como superar a histórica e excludente institucionalização da

velhice possibilitando formas alternativas de moradia/acolhimento para idosos? Nossa

hipótese é a de que as instituições podem ofertar melhores condições de vida se cultivarem as

características deste lugar ancestral que é a Casa. Assim, o exercício antropológico proposto

neste trabalho utilizou a História Oral como método de pesquisa. Mergulhando no conceito de

colaboração, propusemos um trabalho participante onde sujeitos ativos – entrevistados e

entrevistador – se uniram com o propósito de produzir um resultado que demanda conivência

(Meihy & Ribeiro: 2011). Nossos colaboradores são pessoas, entre 61 e 86 anos de idade, que

vivem no Programa Vila Dignidade implantado no município de Itapeva, interior de São

Paulo. Elas narraram suas histórias tendo como tema central a Casa. A pesquisa evidenciou a

necessidade de ampliarmos os conceitos e as caracterizações para a concepção de novos

modelos de acolhimento institucional considerando-os o local privilegiado das relações, do

convívio e da transmissão dos valores socioculturais, a Casa por excelência. Olhando mais

atentamente para o Programa Vila Dignidade alguns obstáculos se apresentaram à sua

consolidação como politica pública. O primeiro deles se refere à confusão e estranhamento

gerado e perpetuado pelos profissionais da assistência social que, por vezes, o reduz apenas à

política de habitação, negando as interfaces que possa ter com a política de assistência social.

O segundo refere-se às amarrações entre estas politicas: foram mal tecidas, não criaram

consensos entre seus operadores, não fomentaram a consolidação de um serviço

socioassistencial para ser ofertado neste Programa, e tão pouco, previram a destinação de

recursos estaduais para o custeio das ações a serem desenvolvidas, onerando financeiramente

os municípios contemplados. Apesar das limitações apresentadas, o trabalho realizado revelou

a importância de propostas como esta na construção de novas possibilidades de morar na

velhice.

Palavras chave: Casa, Velhice, História Oral, Memória e Politicas Públicas.

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LOPES, Janete da Silva. Place of getting older. Elder Narratives

ABSTRACT

The House (Casa) has several signs and meanings that pervade our imaginary upon which we

have little conscience.

Naturalized and reproduced in our culture, all the symbolic richness from this place is devoid

of institutionalized persons. This work’s inquiries refer to how we socially devise this place

denominated House (Casa) and which is its importance for the elderly people.

Starting from social care policies we raise the following issues: what this public policies can

offer to elder people in terms of reception? And how to overcome the historic and excluding

institutionalization of old-aging, enabling alternative ways of housing and reception for elder

people? Our hypothesis is that institutions can offer better life conditions cultivating the

characteristics of this ancient place which is the House. This way, the anthropologic exercise

proposed by this work used Oral History as its main research method. Diving into the

collaboration method, we proposed an involving concept where active subjects -interviewees

and interviewer- join together aiming to produce a result that demands connivance (Meihy &

Ribeiro: 2011). Our collaborators are people between 61 and 86 years old living on the

“Programa Vila Dignidade” (Dignity Village Program) implemented on the Itapeva

municipality, interior of São Paulo state. They reported their stories being the House the key

issue. The research highlighted the necessity of extending the concepts and characterizations

for the conception of new models of institutional reception, being these considerated as a

privileged place for relationship, companionship and transmission of sociocultural values; the

House par excellence. Looking closer to the Programa Vila Dignidade some obstacles

appeared on its consolidation as a public policy. The first one of them refers to the confusion

and strangeness generated and perpetuated by the social care professionals that sometimes

reduce it to housing policy refusing possible interfaces with social care policies. The second

one refers to closed connections made between this policies: they were badly joint without

consensus between its operators, without any foster of a consolidation for a socio-assistencial

service to be offered in this Program, neither was previewed the destination of state resources

for the financing costs of the actions to be developed, financially burdening the related

municipalities. Despite the mentioned limitations, the work carried out revealed the

importance of proposals as this one for the construction of new possibilities of old-age living.

Key words: House, old-age, oral history, memory and public policies

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Sumário    Introdução  ........................................................................................................................  11  

Capitulo  I:  A  estrada  que  leva  à  Casa:  caminhos  metodológicos  ........................................  16  1.1  Nas  trilhas  do  conhecimento:  o  pesquisador  na  História  dos  outros  .....................................  17  

1.1.1  A  História  Oral  na  Pesquisa  Antropológica  ..........................................................................  19  1.2  O  Programa  Vila  Dignidade  ..................................................................................................  30  1.3  O  Trabalho  de  Campo  ...........................................................................................................  34  

1.3.1  Antecedentes  do  Trabalho  de  Campo  ..................................................................................  34  1.3.2  Apresentando  nosso  campo:  a  Vila  Dignidade  de  Itapeva  ...................................................  36  1.3.3  Conhecendo  nossos  Colaboradores  .....................................................................................  39  

Capitulo  II:  Tempo  de  Rememorar:  o  lugar  de  estar  nas  narrativas  de  idosos  ....................  46  Dona  Maria  Aparecida  Duffet  ....................................................................................................  47  Seu  Adelino  Rocha  .....................................................................................................................  63  Seu  Antonio  de  Paula  Galvão  .....................................................................................................  80  Dona  Geni  de  Oliveira  Lima  ........................................................................................................  89  Seu  Irineu  Fonseca  .....................................................................................................................  96  Seu  Abel  Paulino  dos  Santos  ....................................................................................................  105  Dona  Zélia  Aires  dos  Santos  .....................................................................................................  112  Dona  Maria  Teresa  da  Rosa  .....................................................................................................  116  

Capitulo  III:  A  Casa  é  onde  quero  estar:  Lugar,  Memória  e  Velhice  ..................................  130  3.1  Saberes  que  se  entrelaçam  arquitetando  as  percepções  da  Casa  ........................................  130  3.2  Tecendo  narrativas  de  idosos  .............................................................................................  136  

3.2.1 Possibilidades  de  morar  edificadas  pelo  Trabalho  .............................................................  136  3.2.2  As  seguranças  do  morar:  a  vida  após  a  inclusão  no  Programa  Vila  Dignidade  ..................  145  3.2.3  A  Casa  é  onde  quero  estar  .................................................................................................  155  

3.3  Estado  e  Proteção  Social:  Breves  considerações  .................................................................  161  3.3.1  A  proteção  à  velhice  na  politica  de  assistência  social  ........................................................  168  

Considerações  Finais  .......................................................................................................  175  

Referências  Bibliográficas  ...............................................................................................  180    

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LISTA DE SIGLAS

ABA: Associação Brasileira de Antropologia

AVDs: Atividades de Vida Diária;

BPC: Beneficio de Prestação Continuada

CCI: Centro de Convivência para Idosos

CDHU: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano;

CRAS: Centro de Referência da Assistência Social;

CREAS: Centro de Referência Especializado da Assistência Social;

DRADS: Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social;

FEBEM: Fundação para o bem estar do menor;

FUNDAÇÃO CASA: Centro de Atendimento Socioeducativo ao adolescente;

ILPI: Instituição de Longa Permanência para Idosos;

IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada;

MDS: Ministério do Desenvolvimento Social;

NOB: Norma Operacional Básica

OAB: Ordem dos Advogados do Brasil;

PNAS: Política Nacional de Assistência Social;

PNI: Politica Nacional do Idoso;

PSB: Proteção Social Básica;

PSE: Proteção Social Especial;

SEDS: Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social;

SH: Secretaria de Habitação;

SUAS: Sistema Único de Assistência Social;

SUS: Sistema Único de Saúde;

UBS: Unidade Básica de Saúde;

UPA: Unidade de Pronto Atendimento  

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Condomínio Vila Dignidade Itapeva...................................................... 37

Figura 2: Projeto Arquitetônico - Vila Dignidade – Itapeva – S.P ........................ 38

Figura 3: Entrada das Residências.......................................................................... 39

Figura 4: Moradores da Vila Dignidade – Itapeva – S.P . .................................... 40

Figura 5: Alguns de nossos colaboradores.............................................................. 46

Figura 6: Rede Socioassistencial – Proteção ao Idoso........................................... 171

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Identificação de nossos colaboradores ................................................. 41

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Introdução

Esta dissertação surge do desejo, forte e involuntário, que corre na veia e se apodera

das pessoas que não concebem teoria sem pratica e vice-versa. Sua gestação foi intensamente

marcada por esse desejo que em mim germinava inconsciente, desde a inclusão no mercado

de trabalho (2006).

O primeiro emprego foi na pratica, ou seja, na atenção direta ao usuário da política

pública. A chamada “atuação na ponta” teve como foco os adolescentes que cumpriam

medida socioeducativa na FEBEM, hoje Fundação CASA. Na “linha de frente” sentia na pele

todas as tensões e discrepâncias entre a formulação e a efetivação da política pública, pois

atuava no penhasco que separa as idéias do fazer.

Da “ponta” migrei, no final de 2008, para o “gabinete” da Secretaria Estadual de

Desenvolvimento Social– SEDS. Essa mudança de lugar representava sair da pratica para a

teoria ou, simbolicamente, da periferia para o centro – na gestão da política pública.

Este novo lugar me possibilitaria viver a coisa pública por outros ângulos e

representava não só a mudança de lado, mas a possibilidade de teorizar com os pés no chão, e

problematizar a histórica separação entre teoria e pratica. A consciência de que “na ponta”

estão profissionais ansiosos por apoio e respaldo teórico seria o mote para pensar e propor

processos mais colaborativos de construção das políticas públicas.

Chegando à nova Secretaria fui alocada no Plano Estadual para a Pessoa Idosa –

Futuridade, recém-lançado pelo governador do Estado. Seu propósito era articular as diversas

secretarias para a construção de políticas públicas direcionadas à população idosa. O

fomentador desta rede seria a SEDS onde o Plano foi constituído.

Desde o primeiro contato com o tema do envelhecimento me interessaram as questões

que se referem ao morar na velhice. Interesse que tem sua origem nas semelhanças, que

enxergo com tanta nitidez, entre uma unidade de internação (para adolescentes que praticaram

atos infracionais), hoje denominada Centro de Atendimento Socioeducativo, e uma Instituição

de Longa Permanência para Idoso, os antigos asilos de velhos que após longa reestruturação

de suas práticas são rebatizados como ILPI’s – equipamentos públicos que ofertam serviço de

Proteção Especial de Alta Complexidade1 a idosos com ruptura ou fragilidade nos vínculos

afetivos e/ou com vivência de abandono ou maus tratos. Semelhanças que atormentam, me

afetando profundamente.

                                                                                                                         1 A Proteção Social Especial de Alta Complexidade garante proteção integral – moradia, alimentação,

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Estas inquietações me levaram a estudar, no curso de especialização (2009-2011), a

institucionalização da velhice que, em sua essência, se move pelos mesmos preceitos que o

encarceramento da juventude pobre: surgimento de novas praticas de controle social após a

instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro.

Com o breve Trabalho de Conclusão de Curso encontrei algumas respostas para as

semelhanças que tanto me atormentam: é no contexto de urbanização das cidades brasileiras

que emerge a medicina social e se desenham as primeiras instituições totais2, lugar de

abrigamento dos diversos grupos de mendigos que perambulavam pelas ruas: doentes

psiquiátricos, crianças órfãs, inválidos, vadios e idosos (Groisman: In: Lopes: 2011).

Paralelo à especialização passei a acompanhar a implantação do Programa Vila

Dignidade em alguns municípios do Estado. Trata-se de uma das ações previstas no Plano

Futuridade, formulada pela Secretaria de Habitação e Companhia de Desenvolvimento

Habitacional e Urbano – CDHU em parceria com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento

Social - SEDS.

A proposta deste Programa é oferecer aos municípios uma alternativa à

institucionalização de seus idosos. Assim, ao menos na teoria, não se reduz à oferta de

moradia, pois não se encerra na política habitacional, pretende, através da parceria com a

SEDS, garantir proteção aos idosos em suas diversas vulnerabilidades3.

Para viabilizar a acessibilidade, nos espaços internos e externos, a proposta

arquitetônica foi concebida a partir do Desenho Universal4. Já o suporte social, que deve

assegurar a proteção integral dos idosos atendidos, se dá pela articulação da política de

assistência social junto às demais políticas públicas no âmbito do município.

Este conjunto de ações, quando bem operadas, possibilitaria, às pessoas idosas, outra

possibilidade de morar além das instituições de longa permanência.

                                                                                                                          2 Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos, com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla, por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo. Perspectiva. 1974; p.p 11. 3 As vulnerabilidades que devem ser consideradas não se referem apenas às sociais - decorrentes de riscos que expõem as pessoas à insegurança seja pela escassez de renda, incapacidade de prover o mínimo das necessidades humanas (alimentação, vestuário e abrigo) ou ruptura dos vínculos familiares – mas também no campo da saúde, às suscetibilidades das pessoas a problemas e danos de saúde. 4 A expressão Universal Design foi usada pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1985, pelo arquiteto Ron Mace, que influenciou a mudança de paradigma no desenvolvimento de projetos urbanos, de arquitetura e design, inclusive de produtos. Para Mace (1991), o Desenho Universal aplicado a um projeto consiste na criação de um ambientes e produtos que possam ser usados por todas as pessoas, na sua máxima extensão possível. O Desenho Universal se baseia em sete princípios, adotados mundialmente: uso equitativo; flexível; simples e intuitivo; informação de fácil percepção; tolerância ao erro (segurança); esforço físico mínimo e dimensionamento de espaços para acesso e uso abrangente (SDH: 2010).

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Aparentemente inovador, desde o inicio, o Programa se depara com diversos

obstáculos que o impedem de consolidar-se como Política de Estado - emancipada dos vícios

de nossa cultura política que, intencionalmente, confunde Política Pública com Política

Partidária.

Um destes obstáculos se refere à confusão e estranhamento gerado e perpetuado pelos

profissionais da assistência social que, por vezes, entendem-no como política de habitação,

negando as interfaces que possa ter com a política de assistência social. Um pensar

fragmentado que, observado de perto, mostra-se fruto da pouca experiência dos profissionais

em pensar intersetorialmente e em promover articulações entre as políticas sociais.

Com tal argumento, esvaziado em sua fundamentação, justifica-se o não

responsabilizar-se sobre a operacionalização do Programa. Olhado mais atentamente deflagra

a carência por formação e atualização profissional - baseada nas novas perspectivas de

construção de políticas públicas - por parte de todo o corpo funcional das repartições,

incluindo aqueles que ocupam cargos de confiança e que normalmente são os que tomam

decisões.

Diante deste posicionamento de gestores da esfera estadual, tal responsabilidade recai

inteiramente sobre os gestores municipais que, no fazer, identificam as demandas dos idosos e

buscam as articulações necessárias.

Acompanhando a implantação do Programa Vila Dignidade percebi que, do lado de

cá, na atuação junto aos formuladores das políticas públicas, os desafios são de outra

dimensão e, qual a surpresa e falta de habilidade para lidar com os inúmeros interesses que

envolvem a sua elaboração (individuais, político-partidários e, raras vezes, coletivos).

São interesses que antecedem e, muitas vezes, prevalecem sobre as necessidades

daqueles a quem se destinam as ações do poder público, resultando em práticas não menos

confusas e imprecisas que, no extremo, colocam em xeque o empenho do Estado em dar

resposta às demandas sociais e inviabilizam as alternativas que só se consolidam pela

intersetorialidade.

Estas dificuldades, ainda longe de serem superadas nos processos de planejamento e

execução das políticas públicas, me inquietam e, diante da ausência de fóruns de discussão no

ambiente de trabalho, fermentaram a elaboração desta pesquisa me inserindo nos espaços da

universidade.

Constantemente questiono a dificuldade dos administradores e gestores públicos

entenderem a habitação humana, a Casa, equipamento mais antigo de proteção do homem,

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como conceito norteador para as políticas de Proteção Especial5, e oferta do acolhimento em

suas diversas formas.

A Casa carrega diversos signos e significados que permeiam nosso imaginário e sobre

os quais temos pouca consciência. Reproduzidos e naturalizados em nossa cultura, toda essa

riqueza simbólica é destituída dos sujeitos institucionalizados: suas vidas são regulamentas

por formas de operacionalização do cotidiano, instituídas pelos gestores das instituições, sob

as quais pouco influem seus desejos e anseios.

Tais questões, somadas à subjetividade da pesquisadora, delimitaram nosso interesse

de pesquisa: investigar o que representa para os velhos ter/não ter Casa e quais seguranças6

são garantidas pela propriedade desse lugar/espaço.

Posto em outros termos: há quais inseguranças estão sujeitos os trabalhadores que,

após uma longa vida às margens do sistema produtivo, não desfrutaram da possibilidade de

ter seu próprio imóvel?

Falamos de pessoas que experimentam uma velhice assombrada pela faltada de

moradia e que, conseqüentemente, habitam locais em péssimas condições: quartinhos no

fundo do quintal de algum parente; porões mofados; casas insalubres escondidas nas áreas

mais periféricas das cidades; barracos em áreas de risco; etc.

Pessoas que, para disporem destes lugares, se sujeitam à especulação imobiliária, que

se apossa da maior parte de seus proventos, ou experimentam a humilhação de “viver de

favor” e, ou, de ter sua aposentadoria subtraída por parentes.

Pessoas para quem às fragilidades características da velhice 7 se associam as

vulnerabilidades sociais decorrentes de toda uma vida de exclusão e, quando se torna

impossível administrar esse conjunto de inseguranças, terminam suas vidas abrigadas em

Instituições de Longa Permanência.

Pensando a partir da política de assistência social ecoa a questão: o que esta política

pode ofertar às pessoas idosas quando é chegado o momento da institucionalização? Ou;                                                                                                                          5 A Proteção Social Especial é a modalidade de atendimento destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social e divide-se entre serviços de Média Complexidade (oferecem atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos - familiar e comunitário - não foram rompidos) e de Alta Complexidade (garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência, e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou, comunitário) PNAS: MDS: 2004. 6 Embasados no sociólogo francês, Robert Castel (2005), nos referimos às seguranças civis e sociais que, no estado moderno, são garantidas pela propriedade. 7 Envelhecimento é o processo natural a todo ser vivo que normalmente é confundido com doenças associadas ou decorrentes dessa faixa etária. Existem mudanças e perdas visíveis, e inevitáveis, internas e externas, o organismo fica mais vulnerável, mas esses são eventos considerados naturais ao processo, e não são nem se transformam, necessariamente, em doenças. (Mercadante, E. F &Brandão, V.M.A.T; Envelhecimento ou longevidade? 1. ed. São Paulo: Editora Paulus, 2009. v. 1. 114 p; pp: 25).

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como superar a histórica e excludente institucionalização da velhice possibilitando formas

alternativas de moradia para as pessoas idosas que não dispõem de cuidados no âmbito de

suas famílias?

Viver num equipamento de acolhimento deve representar muito mais que o ato de

depositar um corpo velho num determinado espaço físico. O lugar de acolher deve ser um

lugar que promova a vida enquanto houver vida, que favoreça diariamente a construção de

laços afetivos e a descoberta de novas formas de se relacionar.

Então, nossa hipótese é a de que as instituições podem ofertar melhores condições de

vida às pessoas idosas se cultivarem as características deste lugar ancestral que é a Casa; se

tomarem-na como microcosmo das relações sociais, lugar real, com cenários idealizados onde

parte dos nossos sonhos são encenados e reproduzidos.

Assim, a questão que colore as indagações deste trabalho refere-se a como inventamos

socialmente este espaço denominado Casa e qual a importância dele para os sujeitos que

envelhecem.

O objetivo não é apontar a melhor forma de moradia pra idosos, longe disso, nossa

intenção é pensar sobre a importância da Casa na constituição dos sujeitos, como esse espaço

real e imaginado reproduz a sociedade e é representado na velhice.

Para tanto, nos utilizamos da História Oral, defendida pelo professor Sebe e praticada

no Núcleo de Estudos de História Oral da USP, como método desta pesquisa e, mergulhando

no conceito de colaboração, propusemos um trabalho participante onde sujeitos ativos –

entrevistados e entrevistador – se unem com o propósito de produzir um resultado que

demanda conivência (Meihy & Ribeiro: 2011).

Nossos colaboradores são pessoas entre 61 e 86 anos de idade – homens e mulheres

que vivem no Programa Vila Dignidade implantado no município de Itapeva, interior de São

Paulo - que nos narraram suas histórias tendo como tema central a Casa.

A escolha deste grupo se justifica pela própria configuração do programa que, ao criar

um lugar – físico e social – para pessoas com trajetórias de vida, por vezes, semelhantes,

dispõe de um conjunto de sujeitos que em razão de sua condição humana e de sua interação,

possui unidade argumentativa diante de uma problemática comum (ATAIDE: 2002), há uma

comunidade de destino.

Nas entrevistas realizadas utilizamos o gravador para serem arquivadas e trabalhadas

posteriormente num processo de cooperação entre o pesquisador e os sujeitos de sua pesquisa.

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Assim, a gravação foi “apenas um momento do processo de elaboração da história oral”

(Meihy & Ribeiro: 2011).

A metodologia adotada é detalhada no primeiro capítulo do trabalho – A estrada que

leva a Casa: caminhos metodológicos. Aqui apresentamos ao leitor o local escolhido para a

realização do trabalho de campo, os números e características dos entrevistados, o processo de

aproximação junto aos nossos colaboradores, o questionário semi-estruturado utilizado para

nortear a pesquisadora e algumas indagações que surgiram em todos os momentos de

realização do trabalho.

No segundo capitulo, Tempo de Rememorar: o lugar de estar nas narrativas de

idosos, apresentamos oito das dez entrevistas realizadas em campo. Neste capitulo, seguindo

rigorosamente o protocolo do fazer da História Oral, os textos foram decantados do estado

oral para a linguagem escrita e devidamente legitimados pelos entrevistados.

As histórias narradas por nossos colaboradores são postas no centro da pesquisa e

fundamentam a reflexão proposta no terceiro e último capítulo, A Casa é onde quero estar:

Lugar, memória e velhice.

Em conjunto e tecidas, a partir da antropologia praticada por Geertz, estas narrativas

nos possibilitaram discorrer: sobre os imaginários do ser velho numa sociedade de consumo e

de ‘coisificação’ das relações humanas; sobre o trato dispensado pelo poder público aos

velhos mais empobrecidos; sobre os cuidados disponíveis e os desejados; sobre as percepções

acerca das velhas formas de institucionalização do curso de vida e, finalmente, sobre as

possibilidades de viver a velhice e de habitar o mundo.

Neste capítulo dedicamos espaço para o escrever do antropólogo que interpreta o

material - construído a partir do trabalho de campo - pensando o que é proteção, tema tão

recorrente em minha área de atuação profissional, a política de assistência social. Por fim,

propomos uma reflexão sobre como o Estado brasileiro, ao longo de seu processo de

formação, contempla os direitos sociais e a proteção – civil e social - de seus cidadãos.

Longe de encerrarmos qualquer discussão fica aberto o canal de debate para novas

proposições a partir de nossa incipiente reflexão.

Capitulo I: A estrada que leva à Casa: caminhos metodológicos

Pedro não sabe, mas talvez no fundo

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Espere alguma coisa mais linda que o mundo Maior do que o mar, mas pra que pensar se dá

O desespero de esperar demais Pedro Pedreiro: Chico Buarque: 1966

Neste primeiro capitulo discutimos a metodologia que norteou a construção deste

trabalho, mas, fugindo de textos muito descritivos, buscamos um caminho alternativo para o

debate. Escolhemos abrir esta seção expondo ao leitor breve texto confeccionado a partir da

narrativa de um idoso.

Este texto foi produzido no curso A Comunidade e os Velhos, ofertado pelo Programa

de Pós Graduação em Gerontologia da PUC - S. P. Para encerrar a disciplina a professora, Drª

Elisabeth Mercadante, propôs um trabalho coletivo onde cada aluno deveria entrevistar um

idoso de sua rede de relacionamentos questionando-o sobre o lugar em que ele se sentia bem.

O painel de Integração intitulado Desafios da longevidade: moradia, comunidade e

lugar de pertencimento expôs as histórias de onze pessoas idosas, do circulo de

relacionamento dos alunos, entre elas: conhecidos, parentes próximos, vizinho de condomínio

e até pessoa em situação de rua. Uma destas histórias é a Pedro Pedreiro.

* * *

1.1  Nas  trilhas  do  conhecimento:  o  pesquisador  na  História  dos  outros  

Pedro - na vida real Antônio – é um dos muitos pernambucanos que sentiu na pele os

efeitos da seca do semiárido nordestino, de grandes proporções sociais e econômicas nos anos

50. A falta de perspectivas fez com que sua terra natal o abandonasse forçando-o a migrar

para o sul.

Pedro buscava “terra pra plantar, casa pra morar, mato verde pra olhar...”. Passou

pelo Mato Grosso, São Paulo e Paraná para, enfim, fincar suas raízes na metrópole paulistana.

Do campo para a cidade grande, a mudança o assustava. Na periferia da metrópole

Pedro e sua família se instalam. Ali encontra seu primeiro trabalho, muito diferente de todos

que já realizara: batia estacas para a construção de arranha-céus na cidade que crescia

desenfreada. Estático:

Pedro pedreiro fica assim pensando

Assim pensando, o tempo passa e a gente vai ficando pra trás Esperando, esperando, esperando

Esperando o sol, esperando o trem

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E a mulher de Pedro, esperando um filho pra esperar também

Pedro Pedreiro: Chico Buarque: 1966

Numa casa pequena duas famílias – a de Pedro-Antônio e a de Pedro-cunhado -

juntavam forças pra suportar as dificuldades de viver na cidade grande; “foi um tempo difícil,

de muitas mudanças, casas improvisadas, impróprias, sem conforto e segurança para as

crianças, mas era o que a gente podia pagar”.

No movimento das cidades, de impelir os moradores mais pobres para as regiões mais

afastadas do centro, Pedro se juntou a outros trabalhadores sem teto, e ocupou terras, às

margens de um córrego, na zona norte da capital8.

Com a ajuda dos vizinhos, Pedro conseguiu erguer sua casa própria - um barraco, que

em tempos de arrocho salarial o livrou dos pesados aluguéis. Só assim foi possível “fazer um

pé de meia” pra comprar um terreno com escritura.

Do loteamento irregular Pedro partiu para mais longe, indo morar em um dos bairros

fronteiriços, destinado aos trabalhadores pobres. No extremo da cidade foi possível comprar

seu canto - neste bairro as terras valiam pouco, por conta de uma fábrica de cimento instalada

nos arredores.

Num lugar marcado pela ausência de políticas públicas coube ao movimento religioso

organizar e gerenciar as demandas sociais. Nos anos 80 a paróquia do bairro organizava os

trabalhadores em mutirão para a construção de casas, poços artesianos - que minimizavam a

ausência da Sabesp -, creche, e outros equipamentos públicos.

Militante nos movimentos religiosos, os domingos de Pedro eram especialmente

dedicados às obras e se transformavam em grande festa onde “as mulheres, desde a véspera,

preparavam os alimentos; os homens enchiam lajes e as crianças corriam por todo lado,

numa alegria só”.

Pedro sentia-se realizado. Conseguiu erguer sua casinha! A alegria aumentou quando

conquistou um emprego fixo e com carteira assinada - a oportunidade de trabalho veio em boa

hora, pois o terceiro filho de Pedro já estava a caminho...

Neste ritmo viveram os anos 80 “esperando o aumente; desde o ano passado para o

mês que vem...” (Chico Buarque) e quando chegam os 90 outra mudança radical... A

                                                                                                                         8 Cabe lembrarmos que, no final dos anos 70, o número de favelas era pequeno e a principal forma de irregularidade eram os loteamentos clandestinos, além de cortiços e ocupações em áreas ambientalmente frágeis ou de risco (Nelson Baltrusis: 2007).

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metalúrgica de Pedro será transferida para o interior. Neste momento, Pedro se vê diante de

duas alternativas: mudar com a família para o desconhecido ou perder o emprego, à beira da

aposentadoria.

Sem escolha é obrigado a seguir a empresa. A família, habituada e enraizada no bairro,

resiste, mas não há outra possibilidade. Os meninos de Pedro cresceram - o mais velho já é

pai; eles decidem ficar e manter seus empregos.

Pedro, a mulher e as duas filhas menores mudam-se num domingo quente e triste. O

processo de adaptação não foi fácil: em São Paulo, mesmo na periferia, vivia-se uma

efervescência e turbilhões de acontecimentos impossíveis de se imaginar no interior, além de

que, doía deixar pra trás os vínculos afetivos construídos ao longo dos anos...

No interior Pedro relembra as dificuldades de moradia vividas no passado, quando o

alto custo dos aluguéis lhe impunha mudanças constantes e, sempre para casas menos

confortáveis.

Ao se aposentar todos já estavam familiarizados com a nova cidade e já não pensavam

em retornar para a periferia da metrópole. Depois de algum tempo aposentado Pedro consegue

comprar sua casa, num bom bairro da cidade - conquista enfim a tão sonhada tranqüilidade.

A sensação que define o velho Pedro hoje é de “sossego e paz”. Relembra o passado

com garra, para ele “a vida é assim mesmo”. Sente-se vitorioso por ter tido uma vida honesta

e por dar aos filhos coisas que não teve - como educação.

Diz não ter mais sonhos, mas, afirma ainda desejar uma casa melhor: um terreno maior

com uma casa que planeje e acompanhe a construção, do inicio ao fim; onde possa plantar e

receber a grande família com mais conforto.

A vida de Pedro, hoje, pode ser resumida às idas, quase cotidianas, ao supermercado;

às tardes na praça e às constantes reformas em sua casa - que nunca se concluem. Pedro esta

sempre inventando algo para se (re)fazer.

No manuseio da pedra, areia, cimento, cal e outros artefatos, Pedro Pedreiro segue

inventando sua velhice... Quando questionado sobre o seu lugar no mundo é enfático: “gosto

da churrasqueira, pois é aqui que reúno os filhos, netos, genros, noras e amigos”.

1.1.1  A  História  Oral  na  Pesquisa  Antropológica  

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Nossa intenção, desde a formulação do projeto de pesquisa era falar com velhos acerca

do envelhecer e das formas de viver a velhice e, a partir de seus relatos, refletir, de forma

sistemática - auxiliados por teóricos das áreas de gerontologia, antropologia e sociologia-,

sobre a velhice9 vivida sem os recursos garantidores de proteção e redes de segurança.

Neste ínterim, percebemos que as armadilhas impostas aos estudos sobre o

envelhecimento são muitas. No que nos compete, duas preocupações se fizeram latentes: o

endeusamento da velhice e seu extremo o “idadeismo depreciativo” (Hillman: 2001a).

O primeiro deriva das limitações de um pesquisador ainda distante deste momento da

vida: é possível a um jovem falar do desconhecido sem cair em idealizações? O segundo

deriva do vicio que herdamos das analises fisiológicas – nos impelem a olhar o

envelhecimento exclusivamente pela perspectiva biológica, focando apenas o colapso e

esgotamento das reservas do organismo (Hillman: 2001a).

Depararmos-nos com tais armadilhas seria algo natural já que nos propomos ao

dialogo com pessoas que enfrentaram diversas limitações ao longo do curso de vida;

sobreviveram na ausência do estado, muitas vezes sem acesso à educação, saúde, alimentação

adequada, trabalho digno, moradia, previdência social (C.F: 1988); e chegaram à velhice

desprovidas de capacidades que lhes assegurem, por seus próprios recursos, proteção contra

os riscos pessoais e sociais: doença, escassez de renda, ausência de familiares, fragilidades,

circunstâncias imprevisíveis, entre tantas outras.

Nossos colaboradores são pessoas com mais de 60 anos de idade que, pelas razões

elencadas foram incluídos no Programa Vila Dignidade, um Programa Estadual que se propõe

a ofertar moradia e proteção social a idosos em situação de vulnerabilidade.

Diante de contextos tão adversos o desafio foi encontrar a linha tênue que equilibrasse

estes extremos – cremos que ela se desenrola pela busca dos significados não aparentes da

velhice e pelo questionamento freqüente, do poder da manipulação biológica da vida.

Na tentativa de alcançá-la, os processos que envolveram este trabalho nasceram

compartilhados, afinal foi preciso nos aproximar para tocar as particularidades - olhar e ouvir

de perto -, e depois, nos afastarmos para pensar e teorizar a realidade apresentada.

Assim, as três etapas de apreensão do fenômeno social - Olhar, Ouvir e Escrever –

foram tematizadas e questionadas à luz das proposições do antropólogo Roberto Cardoso de

Oliveira (2000), pois, como bem nos apresenta:

                                                                                                                         9 Velhice é a fase da vida que, pela literatura oficial, se inicia aos sessenta anos Embora alguns autores utilizem os sessenta e cinco anos para definir o velho, optamos pelo consenso impresso no Estatuto do Idoso que em seu 1º artigo define como idosa a pessoa com sessenta anos ou mais.

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[...] os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar – isto é, peculiar à antropologia -, por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, de sua verdadeira interioridade.

Cardoso: 2000: 34

Parte vital deste Projeto de Pesquisa, o trabalho de campo, se faz no olhar e ouvir, e

para realizá-lo refletimos sobre as entrevista em pesquisas qualitativas na área da

antropologia.

Éramos conscientes de que o uso de entrevistas pelas diversas áreas - história,

jornalismo, sociologia, antropologia e tantas outras – sem o devido rigor metodológico

reproduzia generalizações, bem como, a banalização dessa técnica, colocando-a, por vezes,

em descrédito diante das demais técnicas de pesquisa.

Por outro lado, sabíamos que, quando conduzidas com o necessário rigor, poderiam

criar o cenário ideal onde uma verdadeira relação de co-labor-ação- ação de trabalhar junto10

- entre pesquisador e os sujeitos que irão narrar suas histórias, se desenrola.

Considerando tais questões sabíamos, desde o inicio, que alguns conceitos clássicos

das pesquisas em ciências humanas, como: objeto de estudo; informantes, depoimento,

neutralidade, racionalidade e objetividade seriam descartados deste trabalho.

Assim, em vez do pesquisador analista, que com rigor irá questionar os depoentes

(orientando-os na reconstrução de suas histórias) e controlar a veracidade das informações por

eles apresentadas, optamos por uma relação bem menos hierarquizante - a relação de

colaboração - e vimos na história oral praticada por Sebe, a liberdade e o rigor necessários

para o ver e ouvir da antropologia:

No caso da história oral, por acatar eticamente o interlocutor e colocá-lo como centro gerador de visões, por levá-lo em conta além de seu papel de “fornecedor de dados”, de “transmissor de informações. ou “testemunho”, valoriza-se o conceito de colaboração.

Sebe: 2011: 23

Assim, as entrevistas foram o meio criteriosamente escolhido para explorarmos os

temas desta pesquisa já que elas promovem o contato e a troca direta entre os sujeitos

envolvidos pois, como bem pontuou o professor, “é na entrevista que o pesquisador encontra

                                                                                                                         10 Conceito apresentado pelo professor Sebe em disciplina ofertada no Programa de Pós Graduação em História da Universidade de São Paulo, no ano de 2006.

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o “outro”, sujeito dono de sua história retraçada com lógica própria e submetida às

circunstâncias do tempo em que é realizada” (Sebe: 2011: 22).

As narrativas produzidas por nossos colaboradores são parte desse processo

colaborativo que se inicia no trabalho de campo. Foram captadas com o uso do gravador para,

posteriormente, serem transcriadas pelo pesquisador e, finalmente, retornar aos colaboradores

que legitimaram e autorizaram seu uso. O produto final dessa interação pesquisador-

colaborador resultou no próximo capitulo deste trabalho: Tempo de Rememorar: o lugar de

estar nas narrativas de idosos.

Pensando o processo de entrevistar e ser entrevistado, a fim de amadurecer nossa

escolha por este método de pesquisa, resolvemos exercitá-lo antes de irmos a campo.

Experiência que se mostrou muito mais difícil do que imaginávamos. Tornar público a nossa

vida, ainda que indiretamente, através da história de nossos pais, e as peripécias do destino,

não acontece com naturalidade; por vezes nos constrange e provoca uma intensa reflexão

sobre o vivido, capaz de tirar o sono...

A narrativa escolhida para abrir esta seção é o resultado desse exercício. Foi

confeccionada no curso A Comunidade e os Velhos e apesar de não ter sido realizada nos

moldes propostos pela História Oral, é utilizada aqui, não como ilustração da metodologia

mas apenas para apontarmos os desconfortos que afloram no momento de sua realização.

Um exercício extraordinário, pois, ao mesmo tempo em que a exposição da narrativa

ilustra o processo de entrevistar, e a própria formatação do tema pesquisado; ao exibir a

intimidade do pesquisador coloca-o em xeque com o método que tão cuidadosamente adotou

para consolidar seu trabalho. Viver este ciclo lhe antecipou algumas das sutilezas que

irromperiam no momento em que as entrevistas da pesquisa fossem realizadas.

Assim, entrevistar Pedro Pedreiro, que é Antônio Lopes das Chagas e é também o pai

da Janete foi imprescindível para que a pesquisadora, antes mesmo de se aproximar de seus

colaboradores, conhecesse-os previamente.

Certamente entrevistaria outros Pedros Pedreiro, pessoas que enfrentaram as mais

variadas infortunas em suas trajetórias individuais e que, ao contrário de seu pai Antônio, não

viram o suor do trabalho se transformar no sonho e na segurança da Casa própria. Pessoas a

quem o suor “não vira nada/Vale Nada/Vira Vento” (Karina Buhr: 2010: Vira Pó).

Por ser tão próxima do narrador foi possível perceber o constrangimento e receio em

falar de determinados assuntos, a inquietação e a vontade de por fim à entrevista que, por

vezes, tomava conta do entrevistado.

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Ter consciência dos incômodos causados nos fez pensar sobre o lugar, a situação e a

exposição a que iríamos submeter os sujeitos colaboradores desta pesquisa: as pessoas que

disponibilizaram suas narrativas de vida e percepções de moradia, para produzirmos o corpus

documental desta pesquisa, seriam desnudadas pelas inquietações do pesquisador.

Assim pudemos dimensionar e ter consciência da responsabilidade do pesquisador ao

pôr no centro de sua pesquisa a vida do Outro; e com isso, pensamos sobre o Respeito, pois

nos “parece tão fundamental para a nossa experiência das relações sociais e do self que

devemos definir com mais clareza o que ele é” (Sennett: 2004: 68), afinal, na vida social

“existe um enorme abismo entre esperar agir bem em relação aos outros e agir bem de fato”

(Sennett: 2004:78).

Tratar com respeito as necessidades do outro foi a preocupação central do primeiro

contato. Principalmente porque o tempo disponível para estar junto era reduzido, o que

impossibilitava a emergência de empatia e afetividade entre pesquisador e narrador.

Chamou nossa atenção o respeito dos idosos pelas nossas necessidades. Ainda que

individualmente não tivessem a dimensão do que seria o conjunto das narrativas, e como

serviriam à pesquisa, cada pessoa teve, com mais ou menos disponibilidade, paciência,

cuidado e preocupação em atender aos anseios da pesquisadora, dispondo-se integralmente ao

encontro.

Devolvemos o respeito recebido tentando uma aproximação que não fosse tão

invasiva. A privacidade de nossos colaboradores foi se expondo, ou não, de acordo com seus

desejos e vontade11. Da interação e respeito entre narrador/pesquisador emergiram as

histórias de vida - ao nos contar essas histórias, percepções e performances da realidade

nossos colaboradores nos autorizam a expor sentimentos acumulados no tempo, sofrimentos e

formas de dominação que jamais seriam expressas publicamente.

Cabe ao pesquisador a difícil tarefa de transpor para a linguagem escrita o que lhe foi

narrado, sem abrir mão da riqueza e singularidades do oral.Aqui e no momento posterior –

analise das narrativas - se encerra a terceira etapa de apreensão do fenômeno social –

Escrever. Para ilustrá-la, novamente nos reportamos à Oliveira:

Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizadas na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso

                                                                                                                         11 Assim, nossa sede por imagens - novas ou de álbuns de fotografias da família – e por qualquer objeto que pudesse desencadear a lembrança, logo sucumbiu e abrimos mão do uso de máquina fotográfica e qualquer equipamento de captura de imagens. Parte das imagens que foram utilizadas por nós foram extraídas de redes sociais – facebook – de nossos colaboradores, ou retiradas em outros momentos que não o da realização das entrevistas.

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pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar. Quero chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar claro que – pelo menos no meu modo de ver – é no processo de redação de um texto que o nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática.

Oliveira: 2000: 32

Transpor para o texto escrito toda a riqueza da narrativa oral é tarefa complexa e cabe

ao pesquisador realizá-la. Acreditamos que na interpretação dessa polifonia de visões de

mundo reside forte potencial para a superação dos saberes compartimentados - quer da

biologia médica, da psicologia, da sociologia, da economia, da demografia e das outras áreas

que, em seus guetos, se dedicam ao estudo do envelhecimento.

Dai, colocarmos as histórias narradas no centro desta pesquisa: elas fundamentarão a

reflexão proposta e, em conjunto, nos possibilitarão discorrer sobre: os imaginários do ser

velho numa sociedade de consumo e ‘coisificação’ das relações humanas; o trato dispensado

pelo poder público aos velhos mais empobrecidos; os cuidados disponíveis e os desejados; as

percepções acerca das velhas formas de institucionalização do curso de vida; novas

possibilidades de viver a velhice e de habitar o mundo.

Nossas indagações mergulhavam na idéia de Casa e na importância deste lugar para as

pessoas velhas. A hipótese levantada neste trabalho é a de que ter a Casa, necessidade humana

fundamental, como primeiro espaço de acolhimento e proteção social, pode possibilitar novas

formas de atenção aos idosos fragilizados, quer por questões de saúde; renda precária ou

abandono.

Partindo desta hipótese, as narrativas tiveram na Casa o foco e o lugar desencadeador

das recordações. Assim, optamos pela história oral temática e o produto das entrevistas nos

esclareceu sobre o tema estudado. Nossos objetivos eram:

• Pensar sobre as percepções simbólicas dos idosos acerca dos lugares onde viveram/

vivem e a complexidade das relações estabelecidas com estes lugares;

• Analisar as formas como os entrevistados criam, recriam e mantêm vínculos

identitários com o lugar de moradia refletindo sobre a importância da Casa na

constituição destes sujeitos;

• Explorar as diversas percepções sobre envelhecer e onde viver na velhice;

Neste gênero de história oral, a atuação do entrevistador é evidente e a utilização de

um questionário indispensável, pois “se torna peça fundamental para a aquisição dos detalhes

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procurados” (Sebe: 2011: 89). Então, pensamos num questionário semi estruturado que

serviria primeiro, à pesquisadora, que o utilizou como roteiro.

Nele, as questões não poderiam ser indutivas, muito diretas ou que fechassem o

assunto. Nosso propósito era estimular o narrador, possibilitando-lhe alçar vôos a partir das

questões apresentadas.

Este questionário teve como tema central a Casa e as relações estabelecidas a partir

deste lugar: com a família, o bairro, a cidade, o trabalho, as diversas fases da vida e, em

particular, com o momento presente e com a velhice12.

Assim, num primeiro momento foram exploradas questões que se relacionavam ao

passado mais distante cronologicamente: as diversas moradias onde o narrador viveu ao longo

de sua vida13.

Em seguida exploramos a relação Trabalho - Casa, no intuito de reconhecer como as

vicissitudes do destino se impuseram, impossibilitando a esse grupo de trabalhadores ter

garantido, pelo trabalho, o acesso à moradia própria e às proteções que ela garante.

Nosso questionário teve um bloco que se referia exclusivamente à nossa hipótese, aqui

ela pode ser “testada com insistência” (Sebe: 2011: 88), diluindo-se nas questões formuladas.

Exploramos exclusivamente o presente: onde e como as pessoas viviam até serem incluídas

no Programa; as mudanças vividas depois disso; a importância do morar e a vida neste novo

lugar.

Por fim, partindo do momento presente, questionamos sobre as percepções da velhice

e as perspectivas para o futuro. Desta forma nosso roteiro teve a seguinte estruturação:

Bloco I: A casa e as histórias de vida

1 – O que o srº/srª pode dizer sobre as casas onde viveu? Pode narrar sua trajetória por

esses lugares?

2- Qual delas é a mais importante na sua história e porque?

Bloco II: Relações de trabalho

1 - Pode nos falar sobre os trabalhos que executou ao longo da vida?

2 - De qual deles sente mais saudade?

3 - Realiza algum tipo de trabalho hoje?                                                                                                                          12 Distinguimos o tempo presente da velhice, porque, nas narrativas em análise, aparecem como distintos. A velhice quase sempre é um devir, que todos esperam que esteja distante do momento presente. 13 Comumente nossos colaboradores optaram pela descrição cronológica, iniciando sua narrativa pela infância.

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Bloco III: Moradia e velhice: a vida depois da inclusão no Programa

1 - Depois de fazer sessenta anos onde e com quem viveu?

2 - Com eram essa casas?

3 - Como foi o processo de mudança para essa vila?

4 - O que ficou pra trás (amigos, parentes, animais de estimação, etc)

5 - Sua vida mudou muito depois de vir morar aqui?

6 - Como é viver aqui? Encontrou alguma dificuldade de adaptação?

7 - O que gostaria de ter aqui?

8 - Acha que ter vindo pra cá lhe trouxe algum beneficio? (saúde, sociabilidade,

segurança, tranqüilidade, etc)

9 - Como é o seu relacionamento com os vizinhos?

10 - Quem são seus familiares? Com quais deles se relaciona?

11 - Como era esse relacionamento antes de vir pra cá? Algo mudou?

12 - Sente falta de alguma coisa ou alguém?

Bloco IV: Percepções sobre envelhecer

1 – O srº/srª se considera velho?

2 – Como imagina(va) que vai (iria) envelhecer?

3 – Onde imagina (va) que vai (iria) morar na velhice? Como é este lugar?

4 – O que espera para o futuro?

5 – Alguma coisa lhe causa medo?

6 – Se pudesse voltar no tempo mudaria algo em sua história?

7 – O srº/ srª segue alguma religião? Sempre foi essa?

Neste roteiro o trabalho a ser realizado estava focado em três eixos centrais onde a Casa

assumia papel determinante: Casa e família; Casa e trabalho e Casa e velhice. A partir daí

exploraríamos as demais questões que permeiam a pesquisa.

Em campo percebemos que estes eixos não apresentam relações tão imbricadas como

supomos anteriormente. Com sua idealização nossa intenção era explorar as relações

familiares e os espaços de moradia, bem como, o trabalho e as casas que ele possibilitava ter.

No entanto essas analogias não apareceram de forma tão clara e relacional nas narrativas,

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propondo que a estruturação mais adequada deva ser por eixos independentes: Trabalho,

Casa, Família e Velhice.

A história oral foi utilizada como técnica investigativa das problemáticas que envolvem o

morar na velhice e as entrevistas compõem o núcleo documental da pesquisa apresentado no

próximo capítulo.

As entrevistas realizadas foram únicas e tiveram como suporte o roteiro apresentado

acima; estimulo que propiciou às pessoas narrar e ressaltar detalhes da sua história pessoal

tendo a Casa como eixo central de sua narrativa.

Realizadas as entrevistas iniciamos o processo de transposição da linguagem oral para

o documento escrito, processo de materialização das narrativas que são traduzidas da

linguagem oral para o texto escrito - que consiste em três etapas: transcrever, textualizar e

transcriar. Meihy e Ribeiro (2011) descrevem com rigor estas três fases.

Segundo estes autores a transcrição é trabalho longo e exaustivo, de grande

importância à construção e analise da documentação escrita, “é outro momento de interação

das subjetividades dos sujeitos envolvidos na pesquisa” (Meihy&Ribeiro: 2011: 107) e deve

ser valorizada.

Ao realizarmos essa etapa nos demos conta de nossa ignorância; das gafes cometidas;

da falta de jeito no trato com o outro, mas também, da riqueza que foi o contato com cada um

de nossos colaboradores.

Este é o momento em que o pesquisador, sozinho, pode ouvir quantas vezes sentir

necessidade, a entrevista. Os sentimentos que se fizeram presentes no momento da realização

emergem com a mesma força e, agora, distante do colaborador, é possível avaliá-los

calmamente e desfazer, refazer muitas das sensações vividas.

A segunda etapa, textualização, é o momento em que as perguntas são retiradas e

fundidas às narrativas. Aqui, “o exercício é o de aproximar os temas que foram abordados e

retomados em diferentes momentos” (Idem: 109), tendo por objetivo facilitar a leitura do

texto e possibilitar uma melhor compreensão do que o narrador expôs.

Por fim, a transcriação é a elaboração de um texto recriado em sua plenitude,

momento em que os elementos extra texto são incorporados (anotações do caderno de campo

e dos aspectos da vivência junto ao grupo). Como descrevem os autores: “trata-se da

transformação final do oral em escrita, recriando-se a performance da entrevista, procurando

trazer ao leitor as sensações provocadas pelo contato (Meihy&Ribeiro: 2011: 110).

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O documento final obedeceu a acertos combinados com cada colaborador e foi

validado após conferência e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A razão de ser desta pesquisa é o conjunto das narrativas, corpus documental do

trabalho. Após exaustivo e instigante trabalho de produção destes textos – que resultaram no

próximo capítulo, cabe ao antropólogo no fazer especifico de sua área de atuação, interpretar

este material, construindo conexões e formas de cruzamentos entre si.

Este exercício materializou-se na confecção do último capitulo deste trabalho: A casa

é onde quero estar: Lugar, memória e velhice. Na idealização do Projeto de Pesquisa

pensávamos nos seguintes cruzamentos:

1. - o cruzamento entre si: as narrativas seriam alocadas, inicialmente, em três grupos:

Homens – Mulheres; Campo – Cidade; e Alfabetizados – Analfabetos onde seriam

analisados os pontos de semelhança e divergência em seu interior.

2. - relacionamento das narrativas com textos, inicialmente, da antropologia, sociologia e

gerontologia a fim de construir uma interpretação, com análises e reflexões

características de um trabalho acadêmico.

Na analise do conjunto das entrevistas nos demos conta de que não fazia sentido os três

blocos construídos à priore: Homens – Mulheres; Campo – Cidade; Alfabetizados –

Analfabetos, pois o grupo de idosos por nós pesquisado apresenta, nestes quesitos, muito mais

semelhanças que diferenças: independente de gênero a maior parte deles nasceram no campo

e, na vida adulta foram expulsos para a cidade e, com exceção de Seu Abel, todos possuem

baixa escolaridade (quando muito concluíram a 4ª série primária).

O cruzamento de gênero nos mostrou que entre os homens foi comum os deslocamentos

territoriais em busca de trabalho e a conexão com o mundo externo da rua. Enquanto que as

mulheres estiveram dedicadas aos cuidados com a família e conectadas com o mundo interno

da casa. Mesmo Dona Maria Rosa, única mulher que não se casou, e que esteve inserida no

mercado de trabalho formal – dedicou sua vida para cuidar da família de seus patrões. Este

cruzamento nos evidenciou ainda a ocorrência de divórcio entre os homens enquanto que,

entre as mulheres, o fenômeno mais marcante foi a viuvez.

Para além deste foi preciso encontrar outros pontos de intercepção das narrativas. A

identificação destes pontos se deu num processo lento e cuidadoso de analise individual de

cada uma das entrevistas.

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Neste processo percebemos que os discursos convergiam para pontos comuns e então,

começou-se a desenhar uma teia que, como num jogo de quebra cabeça, as peças vão se

encaixando pela complementaridade. Estes pontos de encontro foram se evidenciando aos

poucos e, ao final da analise individual das entrevistas, foram elencados.

O grande tema, ou ponto de conexão do conjunto das entrevistas individuais foi o

Trabalho – é através dele que nossos colaboradores se inserem e se reconhecem no mundo.

Sua importância é tamanha que, involuntariamente, ocupou o lugar que nós, pesquisadores,

havíamos designado para a Casa – que acabou se revelando como segundo ponto de

convergência.

Ela deriva do Trabalho, embora a relação direta entre Trabalho e Casa não seja percebida

de forma tão consciente por nossos colaboradores. No conjunto, as narrativas mostraram que

os idosos não reconhecem a moradia como direito social. A impossibilidade de adquirir um

imóvel é não é associada às péssimas condições de trabalho, com baixos salários, agregada à

escassez de políticas de acesso à moradia de interesse social; individualmente estes idosos

acreditam que não conseguiram adquirir um imóvel por falta de sorte, por acaso da vida ou

por não ser a hora certa.

Outros três pontos de convergência se evidenciaram: Passado; Presente; Percepções da

velhice. Assim, ao todo identificamos cinco zonas de convergência das narrativas dos idosos:

Trabalho, Casa, Passado, Presente e Percepções da velhice.

A interpretação por nós proposta tentou conectar estes grandes temas cruzando-os com

outras fontes documentais, utilizando-se das teorias antropológica e sociológica, bem como da

musica e da literatura.

Em todo o processo do fazer desta pesquisa o computador foi intensamente utilizado e

a internet totalmente incorporada: além do uso freqüente para organização, análise estatística

dos dados e construção de diário de campo, o computador foi, para nós, valiosa fonte de

pesquisa.

Conectados todo o tempo na internet mantivemos contato virtual com nossos

colaboradores e, através da rede online, os mesmos puderam acompanhar e participar do

processo de consolidação das narrativas até a chegada ao texto final.

O acesso à rede virtual de computadores nos possibilitou navegar pelas páginas dos

idosos que utilizam o Facebook complementando e enriquecendo os textos finais com dados

que não foram expostos, ou satisfatoriamente abordados no momento das entrevistas, bem

como, com imagens das mais diversas situações cotidianas.

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Muitas informações sobre o Programa Vila Dignidade: textos, entrevistas, eventos

realizados no condomínio, fotografias, comunicação institucional dos governos do estado e

prefeitura municipal de Itapeva, foram postadas na rede mundial de computadores e

capturadas pela pesquisadora em pesquisas rápidas nas ferramentas de busca disponíveis.

Pela internet soubemos da repercussão do Programa à época de seu lançamento, bem

como, da intensa exposição das imagens e histórias de vida dos seus moradores.

Além dessa relação direta com os colaboradores, a internet também facilitou o

desenvolvimento da pesquisa ao possibilitar o contato quase instantâneo com diversas bases

de dados que armazenam artigos e teses acadêmicas e o acesso, em poucos clicks, a uma

variedade incrível de abordagens sobre os temas que se entrelaçam em nossa pesquisa.

Com todos esses recursos fomos traçando os caminhos que nos levaram à Casa, ou

seja, a metodologia que fez nascer nossa pesquisa. Adiante podemos avançar na descrição das

demais etapas de construção deste trabalho: apresentação do local de pesquisa; aproximação

junto aos colaboradores e o trabalho de campo. Cada um desses momentos é descrito adiante.

1.2  O  Programa  Vila  Dignidade  

A necessidade de proporcionar outras formas de acolhimento, alternativas às

Instituições de Longa Permanência, ao idoso vulnerável é uma das justificativas que

fundamentam o Programa Vila Dignidade14. Ele foi pensado para atender as demandas de

municípios que acabam institucionalizando idosos independentes para a realização das

Atividades de Vida Diária - AVD.

Elaborado em 2009, pelo governo do estado de São Paulo, através de parceria

intersecretarial que envolvia principalmente as Secretarias de Habitação e de Assistência

Social, este Programa compunha as ações do Plano Estadual para a pessoa idosa, denominado

Futuridade15.

                                                                                                                         14 Este texto foi construído a partir de informações extraídas de material institucional das Secretarias de Habitação e Desenvolvimento Social e matérias disponíveis nos sites de ambas: www.habitacao.sp.gov.br e www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br. Registro meu agradecimento à Mariana de Sylos Rudge, funcionária da CDHU com quem mantive contato constante durante a produção desta pesquisa, pela disponibilidade com que sempre atendeu nossas demandas por esclarecimentos, bem como, por suas valiosas reflexões. 15 O Futuridade abarca uma das muitas tentativas do governo de emplacar uma politica para idosos no estado de São Paulo. Em 2007 é promulgada a Lei nº 12.548 que consolida as 31 legislações estaduais relativas ao idoso e instituí a Politica Estadual do Idoso – tem por objetivo garantir ao cidadão com mais de 60 anos as condições necessárias para continuar no pleno exercício da cidadania. Em 2008 foi lançado, pelo então Governador do Estado, José Serra, o Plano Futuridade – que visava promover o bem estar e a qualidade de vida das pessoas

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Consiste na construção de equipamento público de moradia assistida projetada

especificamente para a população idosa. Agrega, à tipologia habitacional do Desenho

Universal, soluções de gestão social garantindo aos beneficiários a preservação de sua

autonomia, além de cuidados específicos, como proteção social16, saúde17 e outros.

Assim, seu público alvo são pessoas com mais de 60 anos e independentes para a

realização das atividades de vida diária. Além desta, outras condicionalidades foram

desenhadas para definir esse idoso: ter rendimento mensal de até um salário mínimo,

vivenciar situações de risco pessoal e/ou social, residir no município há pelo menos dois anos

e não possuir imóvel próprio18.

O Programa compreende a construção de uma pequena vila, no estilo de condomínio

habitacional com até 28 casas térreas, áreas de lazer, praça de exercícios e Salão de

Convivência.

O projeto arquitetônico contempla itens de segurança e acessibilidade como: barras de

apoio, pias e louças sanitárias em altura adequada, portas e corredores mais largos,

interruptores em quantidade e altura ideais, rampas e pisos antiderrapantes, entre outros.

Recursos que se estendem às áreas comuns facilitando a locomoção e garantindo segurança ao

idoso nos espaços internos e externos.

Sua execução se dá pela articulação intersetorial de diversas políticas sociais com a

finalidade de promover a independência, a autonomia e o desenvolvimento social e humano

dos idosos mais vulneráveis: seja pela falta de renda, pelo isolamento social, abandono, maus

tratos ou outras situações de risco pessoal e/ou social.

Envolve parceiros no âmbito estadual: Secretaria de Habitação - SH, Companhia de

Desenvolvimento Habitacional e Urbano - CDHU e Secretaria de Desenvolvimento Social -

SEDS; municipal: órgãos gestores da assistência social que são os articuladores das demais

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           idosas, especialmente das que estão em situação de vulnerabilidade social, por meio da articulação e integração entre as secretarias e órgãos públicos estaduais e municipais e a sociedade civil, sensibilizando e instrumentalizando os gestores para o fortalecimento e a expansão de ações voltadas à promoção do envelhecimento ativo no Estado de São Paulo (Barroso: 2009). Em 2011, sob o comando do atual governador, Geraldo Alckmin, esse Plano foi remodelado e rebatizado de São Paulo Amigo do Idoso. 16 A proteção social deve garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; de convívio ou vivência familiar. A segurança de rendimento é a garantia de que todos tenham uma forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suas limitações para o trabalho ou o desemprego. A segurança de acolhida opera a provisão das necessidades humanas que começa com os direitos à alimentação, ao vestuário e ao abrigo, próprio à vida humana em sociedade. A segurança da vivência familiar é uma das necessidades a ser preenchidas pela politica de assistência social. Supõe a não aceitação de situações de reclusão, e de perda das relações (PNAS: 2005: 31-32) 17 Ofertada exclusivamente pela rede de saúde articulada no municipio. 18 Decreto Estadual nº 56.448 de 29 de novembro de 2010 que altera, dá nova ao Decreto Estadual nº 54.285 de 29 de abril de 2009 – que institui o Programa Vila Dignidade no âmbito do estado - e define os beneficiários do Programa.

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políticas públicas no âmbito do município; e da sociedade civil: conselhos de direito e

organizações não governamentais, além dos atores do Sistema de Garantia de Direitos dos

Idosos: Conselhos de Idoso, Promotoria Pública Ministério Público, OAB, etc.

O município que deseja aderir ao programa se cadastra no Sistema de Gestão de

Pleitos, sistema virtual disponível na página da CDHU. Ali os gestores das políticas de

habitação e de assistência social apresentam a população idosa do município e suas demandas

especificas; os serviços disponíveis e a rede que pretendem otimizar para favorecer a

execução do Programa.

O Programa defende que a promoção da rede social de proteção ao idoso na esfera

local é fundamental, pois é ela quem garantirá que não recaia nas Instituições de Longa

Permanência a responsabilidade exclusiva pelo cuidado de idosos que são independentes e

sós. Neste sentido, o papel do governo municipal é estratégico e central, pois é ele o principal

provedor e articulador dos serviços de assistência social, saúde, educação, esporte, cultura,

etc.

Na esfera estadual Secretaria de Habitação, Companhia de Desenvolvimento

Habitacional Urbano e Secretaria de Desenvolvimento Social avaliam os pleitos, de acordo

com os critérios e condicionalidades estabelecidas em Decreto 19 e Resolução 20 que

regulamentam o Programa, considerando ainda o nível de gestão do município no Sistema

Único de Assistência Social - SUAS21, a existência de Plano Municipal de Assistência Social

aprovado pelos Conselhos Municipais de Assistência Social e a presença de Conselho

Municipal do Idoso ativo.

Após essa analise os municípios habilitados são incitados, através de seus órgãos

gestores da assistência social, a construírem um Projeto Social22, sob orientações da SEDS e

acompanhamento das Diretorias Regionais de Desenvolvimento Social - DRADS. Nele,

indicam um Gestor Social que será o responsável pela execução do Programa.

                                                                                                                         19 Decreto nº 56.448, de 29 de novembro de 2010. 20 Resolução Conjunta SH-SEADS, de 15.05.2009. 21 O Sistema Único de Assistência Social – SUAS, com o objetivo de organizar a oferta de serviços socioassistenciais, classifica os Municípios para fins de gestão municipal em categorias, de acordo com seu porte populacional e rede socioassistencial disponível. Os níveis de gestão existentes são: Inicial, Básica e Plena. 22Após a implementação do Programa o Projeto Social deve integrar o Plano Municipal de Assistência Social - PMAS constituindo-se como serviço de ação continuada, devendo ser submetido anualmente ao Conselho Municipal do Idoso e de Assistência Social.

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Além de custear o Projeto Social, os municípios devem garantir também recursos

humanos e tecnológicos para sua execução dentro do escopo, da qualidade e do prazo

estabelecidos23.

A construção da vila é responsabilidade da CDHU que a executa em terreno próprio

ou doado pelo município: elabora os projetos arquitetônicos; contrata a execução das obras e

dos serviços e doa o equipamento construído para as prefeituras municipais. No município a

vila deve compor a rede de proteção social para idosos24.

Dentre outras, são competências do município: identificar e selecionar potenciais

beneficiários dando publicidade aos critérios de elegibilidade25; assegurar a gratuidade da

moradia; articular com outros órgãos públicos e entidades da sociedade civil para a promoção

de ações integradas, dentre eles, o Programa de Saúde da Família ou rede de saúde local que

compõe o Sistema Único de Saúde – SUS - fortalecendo e ampliando a rede de proteção e

defesa dos direitos das pessoas idosas; gerenciar, monitorar e avaliar o projeto implementado;

estabelecer parceria com instituições especializadas para onde serão encaminhadas as pessoas

que vierem a se tornar dependentes e fragilizadas, de forma temporária ou permanente.

À Secretaria de Desenvolvimento Social – SEDS compete: aprovar o Projeto Social

das prefeituras prestando assessoria técnica para sua execução; articular-se com outros órgãos

públicos e entidades da sociedade civil para promoção de ações integradas; monitorar e

avaliar o Projeto Social implantado; realizar capacitação de técnicos municipais por meio de

oficinas, seminários, e/ou atividades equivalentes, com vistas à orientação quanto às normas,

funcionamento, implantação, execução e avaliação do Programa, entre outras.

                                                                                                                         23 Aqui se apresenta, no nosso entendimento, uma das fragilidades do programa, pois recai sobre o município o custeio total tanto da manutenção da infraestrutura do Programa, quanto da garantia de gratuidade de moradia e das ações socioassistenciais indispensáveis à operacionalização do Projeto Social. 24 Aqui identificamos a segunda fragilidade do Programa: apesar do potencial para se tornar uma inovação na modalidade de Serviço de Proteção Especial de Alta Complexidade, as amarrações junto à Política de Assistência Social, no âmbito do estado, foram mal tecidas: não criaram consensos entre os operadores desta política e não fomentaram a consolidação de um serviço socioassistencial para ser ofertado no equipamento. Apesar das boas intenções previstas em Decreto e Resolução, na prática o não financiamento do Projeto Social afirma o seu não reconhecimento como equipamento da rede de proteção social. Estas dificuldades não podem ser compreendidas de forma isolada, pois estão atreladas à uma situação mais ampla, fomentada e criticada, em fóruns de discussão, pela professora Aldaíza Sposati: a resistência do governo estadual em reconhecer e implantar o Sistema Único de Assistência Social no estado de São Paulo - vide a conceituação de promoção social que ainda vigora na Constituição do Estado (Arts.232 a 236) em detrimento da assistência social entendida como direito do cidadão, e dever do Estado. Todas essas questões serão abordadas e aprofundadas no terceiro capítulo deste trabalho. 25 Além da procura voluntária para seleção pública a demanda pode advir do Sistema de Garantia de Direito, em decorrência de denúncias de maus tratos e/ou abandono, dos programas de saúde, como o Saúde da Família que pode identificar situações de violação de direito nos domicílios onde presta atendimento ou de outros programas e políticas que atendem e identificam situações de irregularidade envolvendo idosos.

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Até o momento em que este texto foi submetido ao Exame de Qualificação (setembro

de 2013) o Programa Vila Dignidade estava implantado nos municípios de Avaré, Itapeva,

Presidente Prudente, Ribeirão Preto e Caraguatatuba com um total de 102 unidades entregues.

Nesta primeira fase do Programa outros municípios estão com obras em andamento ou em

processo de licitação totalizando mais 368 unidades a serem construídas e atendendo cerca de

20 cidades paulistas.

1.3  O  Trabalho  de  Campo  

1.3.1  Antecedentes  do  Trabalho  de  Campo  

O primeiro contato com o Programa Vila Dignidade, implantado no município de

Itapeva, se deu em 2 de fevereiro de 2011, data em que realizamos visita técnica –

profissionais da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, em companhia de técnicos da

Secretaria de Habitação e CDHU – ao município a fim de verificarmos as condições para a

inauguração, que aconteceria em poucos dias.

Neste momento não havia moradores no condomínio, pois o processo de seleção dos

idosos estava em fase de conclusão. A coordenadora do Programa que há época era também

coordenadora do CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência, Social

Elizabeth do Rocio Minaif Santos, nos falou de como estava conduzindo essa seleção, das

expectativas do município com a incorporação deste equipamento à rede de proteção social,

etc. Nosso primeiro contato foi estritamente técnico, naquele momento não poderíamos

imaginar retornar ao local para desenvolver pesquisa de mestrado.

Neste tempo, acabara de ser aceita no Programa de Estudos Pós Graduados em

Ciências Sociais da PUC – S.P onde apresentei pré-projeto de pesquisa que pretendia estudar

a institucionalização da velhice através da história oral de idosos, residentes em vários

modelos de moradia – pública e privada -, dentre elas o Programa Vila Dignidade.

No momento de construção do pré-projeto, o único município que já tinha inaugurado

sua Vila era Avaré. Então, a proposta era entrevistar os idosos residentes na Vila Dignidade

desta cidade – já que tínhamos participado mais ativamente do processo de concepção e

estruturação do Programa e, tínhamos mais proximidade tanto com a Diretoria Regional de

Assistência Social – DRADS, que é sediada neste município, quanto com os próprios idosos

residentes, pois já havíamos realizado algumas visitas de acompanhamento.

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Aconteceu que, no desenrolar, naturalmente a pesquisa foi tomando outros rumos.

Primeiro porque encaminhamos o projeto à FAPESP e o relatório, que negava o

financiamento, alegava, entre outros argumentos, que o projeto era muito extenso e que não

seria praticável num programa de mestrado. A sugestão do avaliador era limitar a pesquisa a

apenas um modelo de moradia.

Depois da grande frustração, avaliamos que seria exaustivo entrevistar tantas pessoas

em lugares tão distintos e distantes - entre São Paulo e Avaré. Neste momento, a pesquisa

passou por um intenso processo de reestruturação, onde os objetivos foram revistos e um

novo foco surgiu: a questão da Casa, e do morar na velhice, permaneceu latente, mas agora

nossa hipótese seria testada num único lugar.

Entendíamos que este recorte nos possibilitaria um aprofundamento maior e mais

assertivo na questão do morar na velhice. Então, o projeto seria materializado exclusivamente

pela interação da pesquisadora com os moradores do Programa Vila Dignidade de Avaré.

Tudo estava caminhando bem, até que, nas férias de julho de 2012, período destinado

para a realização do trabalho de campo, a pesquisa sofreu outra guinada, fruto das forças

imponderáveis que nos pegam de surpresa resignificando as coisas à nossa volta.

A visita estava acertada com os profissionais de Avaré, o contato foi feito via DRADS.

No entanto, por razões diversas, havia sempre uma situação – excesso de trabalho, férias, etc-

que impedia a gestora do Programa de nos receber e freqüentemente nosso encontro era

adiado.

Com o passar dos dias, ficava claro que não seria possível realizar a pesquisa naquele

momento e, talvez, em nenhum outro, então, o que faríamos? O tempo corria acelerado, as

férias, único momento no ano disponível para a realização do trabalho de campo, poderiam

ser desperdiçadas sem que conseguíssemos realizar parte essencial da pesquisa, donde

emergiria a própria pesquisa.

Não havia mais tempo para uma nova reformulação, nem forças para isso. O projeto

adquirira vida e idéia de ter que abortá-lo prematuramente gerava muita frustração. Mil

temores assombraram nossa imaginação, até que, num momento de luz, nos atentamos para a

existência de outro Programa, semelhante em toda a sua idealização, e já inaugurado na

cidade de Itapeva.

Então, sem nenhuma cerimônia, entramos em contato com a gestora do Programa,

com algum receio, mas sem nada a perder! Tudo que poderíamos ouvir era “não será

possível” e isto não nos surpreenderia, pois já há algum tempo ouvíamos tal justificativa.

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Na primeira tentativa conseguimos falar com a gestora que, surpreendentemente, nos

abriu todas as portas e autorizou que fizéssemos o que precisávamos fazer: nosso trabalho de

campo.

Totalmente prestativa e solidária ela me recebeu na semana seguinte, e nos dedicou

todo tempo e atenção: acompanhou-me até a vila, reuniu os moradores no Salão de

Convivência, me apresentou a cada um deles, disse o que eu pretendia fazer ali, falou da

importância da colaboração de cada um, colocou os funcionários à disposição para o que fosse

necessário, enfim, fez muito mais do que precisa e nos deixou totalmente à vontade naquele

lugar ainda desconhecido.

A consideração que os moradores dispensam a ela é algo impossível de ser descrito em

palavras, pois, muito provavelmente reduziríamos a afetividade e respeito mútuo que permeia

essa relação. Graças à ela nossa entrada em campo foi tranqüila e permeada de descobertas e

prazerosas trocas.

1.3.2  Apresentando  nosso  campo:  a  Vila  Dignidade  de  Itapeva  

A Vila Dignidade de Itapeva dista aproximadamente 9 Km do centro da cidade26, na

Rua Higino Marques s/nº - Bairro do Taquari. Partindo do Terminal Central, o ônibus que nos

leva ao condomínio é o São Camilo. Ele atravessa toda a cidade, num trajeto com duração

aproximada de 18 minutos - em horários que não são de maior trafego de veículos.

O bairro onde o condomínio esta localizado é uma região periférica da cidade, mas a

infraestrutura parece diminuir a distância do centro: há ônibus o tempo todo (cerca de 20min

de intervalo) e as avenidas de acesso se estendem até bem perto do condomínio, na entrada do

bairro.

Na avenida principal é possível encontrarmos variado comercio e prestadores de

serviços: casas lotéricas, supermercados, casa de ração, hortifrúti, escolas, postos de gasolina,

hotéis, etc. Portanto, não é necessário ir ao centro da cidade pra resolver as questões do dia a

dia.

Num bairro composto essencialmente por Núcleos Residências, destinados a

população de baixa renda, o condomínio dispõe de 18 residências distribuídas em um grande

terreno (conforme Figura 2).

                                                                                                                         26 Como os terrenos para construção são doados pelas prefeituras ou próprios da CDHU trata-se, comumente, de espaços com menor valor imobiliário e localizados em regiões mais afastadas dos centros das cidades.

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A entrada tem portaria fechada e cercada por caminhos floridos que nos levam ao

centro do terreno onde há um Salão de Convivência. Em volta dele dois blocos: um com 12

casas e outro com 6. Em frente ao Salão de Convivência há uma área de lazer e uma pracinha

onde é comum encontrarmos os idosos em prosa. No fundo do terreno, com vista para um

verde vale, há a academia ao ar livre - onde os idosos podem se exercitar.

Cada casa possui sala e cozinha conjugada, lavanderia, uma suíte e pequeno quintal,

projetados segundo o Desenho Universal que garante a acessibilidade (interruptores em altura

ideal, pias e louças sanitárias em altura adequada, portas e corredores mais largos, pisos

antiderrapantes). Na parte externa a proposta se mantém com rampas de acesso e barras de

apoio que conduzem a todos os espaços.

Figura  1:  Condomínio  Vila  Dignidade  -­‐  Itapeva  -­‐  S.P  

Fonte: Arquivo Pessoal

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Figura  2:  Projeto  Arquitetônico  -­‐  Vila  Dignidade  -­‐  Itapeva  -­‐  S.P  

Fonte: CDHU27

                                                                                                                         27 Acompanhando a numeração em azul é possível entendermos melhor a composição dos espaços na vila: 1 – Portão de Entrada; 2 – Rampa de Acesso; 3 – Pracinha; 4 – Salão de Convivência; 5 – Praça de Jogos; 6 – Praça de Exercícios; 7 – Bloco com 12 casas; 8 – Bloco com 6 casas.

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Figura  3:  Entrada  das  Residências  

Fonte: Arquivo Pessoal

Os idosos que moram no condomínio foram selecionados pela equipe técnica do

Centro de Referência Especializado da Assistência Social – CREAS, do município de Itapeva.

Formada, prioritariamente, por profissionais das áreas de assistência social e psicologia

realizaram exaustivo trabalho considerando os critérios estabelecidos pelo Programa: cadastro

dos interessados, seleção, visitas domiciliares, entrevistas, acompanhamento e preparação dos

idosos para a inclusão no Programa, entre outras ações.

1.3.3  Conhecendo  nossos  Colaboradores  

Numa sociedade de indivíduos, o homem moderno, “através do livre desenvolvimento

de suas atividades, constrói sua independência com seu trabalho e se torna simultaneamente

proprietário de si e de seus bens” (John Locke; In: Castel: 2005:17). Castel nos mostra que é

justamente a propriedade que garante segurança; é o suporte imprescindível no qual o

individuo pode ser reconhecido em sua independência.

Neste contexto, o individuo não proprietário - aquele que só tem seu trabalho para

viver ou sobreviver -, fica desprotegido e vulnerável aos riscos sociais e pessoais – eventos

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que comprometem sua capacidade de assegurar, por si mesmo, sua independência social,

como: doença, acidente, desemprego, cessação da atividade em razão da idade, etc (Castel:

2005).

Nossos colaboradores sentiram na pele, ao longo da vida, os feitos de estar em

vulnerabilidade e, por esta razão foram incluídos no Programa Vila Dignidade. São pessoas

que pela própria condição (escassez de recursos financeiros, fragilidades em decorrência de

problemas de saúde, ruptura de vínculos familiares, etc) seriam potenciais usuárias das

Instituições de Longa Permanência uma vez que os municípios raramente dispõem de outras

políticas garantidoras de segurança e proteção ao idoso em situação de risco social e pessoal.

No condomínio Vila Dignidade do município de Itapeva viviam, quando realizamos o

trabalho de campo, 20 pessoas com idades entre 61 e 86 anos, sendo dois casais e dezesseis

idosos sós.  

Figura4:  Moradores  da  Vila  Dignidade  -­‐  Itapeva  -­‐  S.P  

Fonte: Site da Prefeitura de Itapeva28

A escolha deste grupo se justifica pela própria configuração do Programa que ao criar

um lugar – físico e social – para sujeitos com trajetórias de vida, por vezes, semelhantes,

                                                                                                                         28 Imagem extraída de matéria intitulada: Vila Dignidade realiza festa do dia do Idoso, publica no dia 08 de outubro de 2012 em: http://www.itapeva.sp.gov.br/secretaria/acao-social/noticia/vila-dignidade-tem-festa-no-dia-idoso-3264/ - último acesso 09/09/2013. Da esquerda para a direita: Dona Delci, 2ª pessoa não conhecemos; Dona Maria Aparecida Rosa; atrás dela Seu Antonio, ao lado Dona Maria Carvalho; Dona Zélia; atrás dela Beth (coordenadora do Programa); ao lado as duas pessoas seguintes não conhecemos; Dona Maria Duffet; Seu Abel; Seu Irineu e Dona Tereza.

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dispõe de um conjunto de sujeitos que em razão de sua condição humana e de sua interação,

possui unidade argumentativa diante de uma problemática comum (Ataíde: 2002), formam

uma comunidade de destino.

Essa comunidade de destino não representa os idosos, esse conceito genérico e

pasteurizado, tão exaustivamente reproduzido, mas, apenas, uma pequena parcela de pessoas

com mais de sessenta anos que tiveram suas trajetórias individuais marcadas por fenômenos

comuns: subemprego, viuvez, abandono, doenças, acidentes, e outros imponderáveis que as

expuseram a situações de vulnerabilidade.

Não houve um número certo de entrevistados estabelecido a priori, participaram da

pesquisa aqueles que tiveram vontade e disponibilidade. Dos vinte moradores entrevistamos

dez, conforme tabela abaixo, sendo: cinco mulheres e cinco homens. Realizamos dez

encontros: nove entrevistas foram individuais e uma, em que o entrevistado seria o marido,

contou com a participação da mulher, em vários momentos.

Do total das entrevistas utilizamos oito. Duas foram descartadas após criteriosa

avaliação: uma por apresentar detalhes da intimidade da entrevistada que entendemos poder

colocá-la em risco de violência doméstica e a outra pela dificuldade do entrevistado em

construir sua narrativa – no conjunto, muito fragmentada e dispersa das questões que norteiam

a pesquisa.

Abaixo, tabela identificando os colaboradores deste trabalho:

Tabela  1:  Identificação  de  nossos  colaboradores  

Nome Idade Escolaridade Profissão Cidade Natal

Geni de Oliveira Lima 73 Analfabeta Lavadeira Itapeva

Maria Aparecida Duffet 86 4ª série Costureira Itaberá

Abel Paulino dos Santos 64 2º Grau Caminhoneiro Itaberá

Adelino Rocha 84 _ Agricultor Itaberá

Zélia Aires dos Santos 64 - Bóia fria Jaguariaivá/PR

Cipriano Divino Gomes 61 4ª série Ajudante Geral Apiaí

Maria Carvalho de Lara 66 1º ano Dona de Casa Itapeva

Irineu Fonseca 64 4ª série Caminhoneiro Itapeva

Antonio de Paula Galvão 75 4ª série Pedreiro Serro Azul - PR

Maria Aparecida da Rosa 63 4ª série Doméstica Presidente

Prudente

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Um grupo aparentemente reduzido e em nada homogêneo. Compreende 50% dos

moradores da vila e concentra pessoas em diferentes momentos da vida: algumas que

acabaram de entrar na chamada “Terceira Idade” e outras que vivem nela há quase trinta anos;

algumas totalmente independentes e outras que convivem com determinadas limitações físicas

ou cognitivas leves, pessoas de bem com a vida e outras nem tanto; otimistas e pessimistas;

algumas velhas outras “jovens de espírito”; algumas cansadas, outras com disposição para

viver mais 50 anos.

Nesta breve apresentação ficam evidentes as inúmeras singularidades e a

impossibilidade em falarmos da velhice, ou dos idosos, de forma generalista. São infinitas as

possibilidades de viver a velhice e a categorização pura e simples, “os idosos”, que considera

apenas a quantidade de anos somados com a passagem do tempo, se mostra de partida, irreal.

Ela propaga a velhice e o envelhecimento como coisas ruins, que devem ser afastadas

de nós - a qualquer preço - em prol do prolongamento de uma vida que nem sempre esta

pautada em viver bem a vida. Conduz-nos a uma viagem inevitável às fragilidades,

incapacidade, desamparo e à morte.

Essa concepção apregoa o rejuvenescimento constante e a reversão do processo de

envelhecimento através do uso de produtos cosméticos, medicina plástica (para reparar os

defeitos provocados pelos anos), alimentação adequada, viagens, atividades físicas e uma

série infinita de indicações que aquecem o mercado, nos obrigando consumir a fantasia da

juventude eterna.

Fugindo destes estereótipos buscamos as particularidades e encontramos diversas

visões sobre o envelhecer que foram construídas ao longo da vida, pela maneira com que cada

pessoa viveu e encarou a força dos acontecimentos imponderáveis deflagrados em suas

trajetórias.

As entrevistas foram pensadas para acontecer individualmente e assim foram

operacionalizadas, exceto pela vontade de um casal – Seu Irineu e Dona Tereza - que optaram

por realizá-la juntos. Na realidade, D. Tereza, inicialmente, disse que o entrevistado seria seu

Irineu – ele falaria pelo casal, mas em alguns momentos ela, que esteve presente toda a

entrevista, se manifestou e acabou que ambos participaram do processo.

Por esta razão, a narrativa de Seu Irineu foi a que demandou maior esforço no

processo de transcriação. Era preciso manter a proposta do trabalho – cada idoso ter a sua

narrativa – sem silenciar Dona Tereza. A solução encontrada foi colocar as contribuições de

Dona Tereza na fala de Seu Irineu como no trecho a seguir: “A Tereza sempre ficou em

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Itapeva. De vez em quando ela viajava comigo quando eu trabalhava no caminhão que era do

meu pai. Quando eu trabalhava nas outras firmas, de vez em quando ela ia comigo. Foi pra

São Paulo, pra Campinas, pro Rio, pra Porto Alegre e pra Santa Catarina”.

O tempo estimado para cada entrevista foi de 1hora podendo, é claro, se prolongar, ou

não, a depender da disponibilidade de nossos colaboradores em nos expor suas vidas.

Tivemos entrevistas que se concluíram em menos de 30 minutos e outras que chegaram a

1h30 de duração.

Nossos colaboradores escolheram o local onde gostariam de ser entrevistados e, na

hora marcada, estavam a minha espera. Visitei sete residências, dois entrevistados realizaram

a entrevista no Salão de Convivência e um numa das pracinhas do condomínio.

O momento da entrevista é único e acontece regado de emoções e impressões que vão

ganhando forma ou vão se diluindo no desenvolver da conversa. O inicio é sempre tenso,

imagino que para ambos. Para o pesquisador fica a sensação de invadir a vida do Outro, um

desconhecido que, por razões pouco explicáveis, aceita abrir a sua vida e se submeter à

curiosidade alheia. Para o entrevistado uma chateação, às vezes, mas quase sempre, o

reconhecimento de que sua história tem algum valor e sua experiência é digna de ser

partilhada com os mais jovens29.

Cada entrevista se desenrola num clima de imprevisibilidade. Acontece à seu modo e

muitas vezes nos pega de surpresa com situações inusitadas - como uma piada com

conotações sexuais que é solta pelo entrevistado após emergência de empatia entre

entrevistado e entrevistador, ou alguma lembrança dolorosa, que o entrevistado não quer

mexer e o entrevistador, no entusiasmo, insiste sem se dar conta da invasão.

Dona Geni nos recebeu com desprendimento. Quando chegamos à vila – no primeiro

dia de entrevistas – foi ela que nos abriu o portão e já foi nos convidando para entrar em sua

casa e tomar um café – que acabara de coar. Como eu cheguei cedo ela, mesmo sem estar

agendada, já se dispôs a nos contar sua história.

Havia entrado no Programa há apenas 14 dias e estava extasiada com a experiência de

viver ali. Passava por uma situação muito difícil: foi despejada de sua casa, pois estava com o

aluguel atrasado - quando foi contemplada não tinha endereço.

Nossa conversa foi breve e bem objetiva. Como ela não estava agendada, eu temia

atrapalhar sua manhã e atrasá-la para as vendas de sonhos.

                                                                                                                         29 Tivemos noção da importância que representava, para a maior parte dos idosos, ser entrevistado pelo clima cerimonial que era dado a este momento. No horário marcado eles estavam à nossa espera, todos preparados para a solenidade – bem vestido, de posse de seus documentos e integralmente dedicados ao encontro.

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Com D. Maria Aparecida Duffet o encontro se deu em ritmo de cerimônia. Antes do

horário marcado ela já estava à minha espera no Salão de Convivência - é uma mulher muito

bonita e estava linda, toda preparada para este momento.

Fomos à sua casa, que estava impecável, tudo muito limpo e organizado – parecia

uma casa de boneca. Quando falou de sua infância e juventude se emocionou muito com as

lembranças represadas e que vieram à tona. Nossa conversa foi longa e cheia de emoções, ao

final percebi que ela estava cansada e desgastada emocionalmente.

A conversa com Seu Abel foi marcada por silêncios que eu não soube como penetrar...

Sua ansiedade era tanta que me tocou e me deixou sem jeito para conduzir a entrevista.

Percebi que ele tinha selecionado o que diria – não sei se com receio do que pudesse lhe ser

questionado.

Na transcrição desta entrevista tomei consciência da importância do uso do gravador.

Ele permite ao pesquisador ouvir a conversa em outro contexto, quantas vezes desejar, recriar

o cenário e rever sua performance.

Graças a ele, parte de nossas impressões se diluíram quando ouvíamos nosso dialogo

com seu Abel – por exemplo, ficou mais claro que os silêncios tiveram sim à ver com suas

escolhas pelo que falar, mas não somente; eles também decorrem de sua fala baixa e pausada,

conseqüência do AVC. O nervosismo que tomou conta de nós no momento da entrevista não

nos permitiu perceber esse detalhe, que na escuta, se mostrou tão evidente.

Seu Adelino é um contador de histórias, com ele realizamos a entrevista mais

fantástica... Ao narrar se parece com um poeta recitando epopéias.... Várias intensidades e

tons marcam sua fala que é ritmada, típica de nossa cultura rural – marcada pelo sotaque e

pela linguagem característica da roça.

Foi difícil o processo de transcriar, transpor a linguagem oral, e seu rico vocabulário

de homem do campo, para a linguagem escrita, que não reconhece palavras com a conjugação

fora da norma culta ou que não constem em dicionários. Neste processo privamos pela

mínima intervenção possível, vez ou outra um “tá” foi substituído por um “esta” – no intuito

de não deixar o texto cansativo para o leitor.

No geral, o desafio foi não perder o ritmo e a sonoridade do texto falado quando o

transpusemos para a linguagem escrita, por isso preservamos erros gramaticais e palavras que

só existem na língua falada como: barataida (para definir o plural de baratas); maleita (doença

de Chagas), encaixador (nome dado à peça onde a cana de açúcar se encaixa para ser

triturada, nas engenhocas improvisadas por quem não dispõe de recursos para a aquisição de

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um engenho), tremimento (tremedeira nas pernas); andada (caminhada), aluminar (iluminar

com lampeão), fumegar (borrifar veneno com bomba).

Dona Delci, que estava ótima no dia em que chegamos à vila, falante e disposta a

colaborar, foi acometida por um súbito mal estar no dia em que estava agendada a sua

entrevista. Todo o tempo que passamos na vila ela se mostrou debilitada e pouco à vontade

para recusar ser entrevistada, por isso, achamos melhor não realizar a entrevista evitando a

sua exposição – o que nos pareceu ser o seu grande temor.

Dona Zélia preferiu conversar conosco no Salão de Convivência. Nossa conversa foi

breve e bastante objetiva. Para ela nosso questionário não serviu de disparador, respondia

apenas o que lhe perguntava sem aprofundamento e sem se deixar levar por emoções. É uma

mulher muito independente e prática, nos parecia que ela queria acabar logo com aquilo, não

porque fosse difícil realizar, mas pra poder fazer outras coisas.

Seu Antonio estava à minha espera. Me recebeu em sua casa e tivemos uma conversa

longa e muito agradável. Na entrada percebi que na mesa da cozinha havia bíblias e revistas

religiosas. Ele estava de corpo e alma em nosso encontro. Cuidou para que eu compreendesse

o que ele falava e, por fim, conduziu o processo – como se estivesse me entrevistando, sua

intenção era saber de minha vida religiosa e me apresentar a sua Igreja, quem sabe me

convenceria a conhecê-la melhor. Ele é um pregador e é agradável ouvi-lo falar de Deus, sua

fé impressiona!

Por fim, Dona Maria Rosa, que nos recebeu em sua casa, nos deu uma lição de vida ao

narrar histórias de superação. Mergulhou em nosso encontro, reviu e coloriu o seu passado

com as luzes do presente. Nos encontramos em sua casa e a satisfação em poder contar sua

história me fez ter certeza de que valeu à pena desenvolver essa pesquisa.

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Capitulo II: Tempo de Rememorar: o lugar de estar nas narrativas de idosos

 Figura 5: Alguns de nossos colaboradores30

                                                                                                                         30 O casal - Dona Tereza e Seu Irineu; Seu Abel (canto superior); Seu Adelino (abaixo); Dona Zélia (canto inferior direito); Dona Maria Duffet (centro); Dona Maria Rosa (canto inferior esquerdo).

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Dona  Maria  Aparecida  Duffet31

Foi difícil desfazer das minhas coisas, a gente fala “nossa, tantos anos”. Mas também a gente não pode se apegar às coisas toda a vida. Porque às vezes você é muito apegada a alguma pessoa da família, de repente, você perde essa pessoa e o sofrimento é muito maior não é mesmo? Agora, coisas materiais não, porque é coisa que, se a gente tiver dinheiro, compra outra, não é mesmo? Eu era muito agarrada a certas coisas, agarrada com aqueles presentes que eu ganhava.

Maria Aparecida Duffet: 86 anos: 2012

Eu nasci em 22 de maio de 1926, meu pai tinha 24 anos quando eu nasci. A gente era de uma

família pobre. Meu pai tinha os pais dele bem de vida lá em Monte Sião, Socorro, lá perto de

Bragança Paulista, Ibitinga, já é divisa. Os pais dele eram bem de vida, mas ai meu pai

resolveu vir com um tio dele pra cá, pra essa região.

Naquele tempo nem tinha estrada, era “caminhinho” assim, feito aquele “risquinho” no meio

das matas. Então, esse tio do meu pai trabalhava com tropa. Eram 200-300 que traziam as

cargas que vinham de outros países ou de outros estados pra Santos e, de lá, transportava em

lombo de burros. Os burros de carga que carregavam; coitadinhos dos burros!

Com 12 anos de idade ele saiu da casa do pai dele pra acompanhar o tio e depois não voltou

mais pra lá. Porque daí veio pra essas regiões, era muito difícil, imagina um moleque de 12

anos! E ele dizia que era uma fila muito grande de animais transportando por meio daqueles

“caminhinhos” no meio do mato.

O tio dele se estabeleceu, acho que casou ou já era casado, não tenho muita certeza. Meu pai

não era assim, de ficar contando pra gente os assuntos dele. Acho que minha mãe sabia, mas

minha mãe também trabalhava muito, coitada, aquele tempo era serviço tudo rústico.

Nós morávamos em Itaberá, numa Vila que, hoje, é pertinho da estação rodoviária. Tinha o

sitio onde a gente trabalhava, fazia coisas pra consumo da casa mesmo. Meu pai arrendava o

sitio, aquele tempo tinha o tal de arrendar. Hoje nós alugamos as casas, mas, naquele tempo o

sitio era arrendado. Minha mãe ia cedo lá pra esse lugar e eu ficava em casa com os filhos

menores.

                                                                                                                         1 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 10h30min, com Maria Aparecida Duffet; 86 anos de idade; Escolaridade: primário (até 4ª série). Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h33min24seg; Local da entrevista: casa da colaboradora.

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Eu era a mais velha de 10 irmãos, dez irmãos na seqüência! Depois de eu casada nasceram

dois. Depois minha mãe faleceu, com 46 anos de idade, por ai, e ficou a menina de três anos –

que trabalha hoje no presídio lá em Votorantim, que pertencia a Sorocaba, agora parece que já

é independente; já faz trinta anos que ela trabalha nesse presídio. Ela ficou com três anos de

idade, ficou um irmão com cinco anos de idade e os outros... Eu era a única casada, eu casei e

nem conhecia meu marido. Foi um casamento arranjado. Coitado, ele era feio pra caramba!

Quando eu o conheci eu morava em Itaberá. Ah, esse casamento foi assim, dá pra montar uma

novela! Eu tinha completado 18 anos e ele era 24 anos mais velho que eu. Fazia poucos meses

que nos conhecemos, por intermédio de um parente do meu pai, e, logo em seguida, ele

conversou com meu pai e com minha mãe. Daí, não sei lá como é que fizeram, arrumaram um

casamento pra mim...

Naquele tempo não havia separação e até que ele era legal. Não tinha vicio, era um homem

muito bom, de família boa. Meu sogro era um italiano já de idade, ele morreu com mais de

cem anos, morreu na minha casa. Ele não acostumava com os outros filhos e ficou com a

gente depois que eu casei.

Quando me casei fui morar num sitio, 18 quilometros adiante de Itaberá, na estrada que vai

pra Avaré. Um bairro que tem o nome da nossa família até hoje, Bairro do Quarentei, às vezes

passa nas noticias. Quando falece uma pessoa conhecida do povo por aqui – depois veio muita

gente morar pra cá, em Itapeva - eles falam “fulano de tal faleceu lá, não sei o que, não sei o

que, lá do Quarentei, fulano é Quarentei”. O sobrenome daquela pessoa que faleceu como se

fosse da família da gente, é assim até hoje.

E daí é uma vida muito complicada, a minha vida foi uma vida sem infância. A gente não

tinha tempo de brincar com outros colegas. Era tudo ajudando a fazer “servicinho”.

Os meus irmãos, graças à Deus, todos deram boa pessoa, bons pais de família. Não tinha

nenhum separado, agora já tem. Tem alguns bisnetos dos meus irmãos falecidos que já

entraram nessas coisinhas por aí. Não chegaram a fazer coisas terríveis, mas eram usuários

dessas coisas. Agora já são tudo homens, casaram outros já separaram, é um balaio de gato!

Tem alguns que já são casados duas vezes!

Eu me casei em 1948 e minha mãe faleceu em 1950, dai ficou as crianças pequenas tudo pra

cuidar. Depois foi meu sogro que faleceu.

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Quando eu casei fui morar nesse sitio que pertencia, uma parte já pertencia pro meu falecido

esposo, parte dos 50% que divide pros filhos quando falece um dos pais. A outra parte era do

meu sogro. Meu marido nunca tinha sido casado, era solteirão. Parece que eles eram também

em dez irmãos - entre homem e mulher.

Então, me casei e daí a minha mãe foi morar com a gente. Meu pai, eu não sei o que deu lá na

cabeça dele – aquele tempo eles falavam negra, mas não era negra, era uma morena, bonita,

cabelo cacheado. Ela tinha um marido que bebia demais e não sei lá o que deu que meu pai

pegou e foi embora pra Jacarezinho, lá no Paraná, com essa mulher.

Daí minha mãe ficou doente. Durou acho que uns oito meses doente. Vai pra lá, vem pra cá,

não tinha nem médico lá por perto. Era tudo estradinha de terra ainda pra vim pra cá ou pra ir

pra Itararé, que eram as cidades mais próximas. Fez tratamento, ficou internada em Avaré,

mas não adiantou. Depois de uns oito meses que ela ficou doente ela perdeu a voz. Quando

ela faleceu meu pai já estava separado dela, morava lá pra Ourinhos e Jacarezinho –

Jacarezinho é pertinho de Ourinhos.

Ficaram nove irmãos, inclusive tinha três que eram bem pequenos ainda. Você vê: a menina

com três anos o outro com cinco e depois, cada dois anos era um, seguido. Então, foi muito

difícil a vida pra gente!

Meus irmãos acabaram sendo meus filhos. Depois acabou que uns casaram, depois tiveram os

sobrinhos que eram muito apegados com a gente. E depois, passado muito tempo, meu marido

- a gente não sabia, ele tinha um pulmão só - foi indo, foi indo, ele começou a ficar com

problema. Dizem os médicos que ele estava tuberculoso. Mas ficou misturado com a gente

toda vida, e nunca, ninguém na família teve essa doença. Nem vacina não existia naquele

tempo. Então foi assim, difícil. Paro por aqui, porque, senão... Eu não gosto de ficar

lembrando, é passado, já passou. A gente tem que viver o presente, porque o futuro pertence a

Deus.

Não tivemos nenhum filho, mas era problema dele. Aquele tempo os homens nossa! Não

podia nem falar nada pra ir em médico. E depois, os dois sobrinhos dele, do lado do sangue

dele mesmo, tem o mesmo problema, até hoje. Tem um que mora em Pouso Alegre, se

formou advogado tudo. Mora em Pouso Alegre e adotou uma menina. Mas já tem neto

também, dois ou três netos.

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Os trabalhos que eu realizei na minha vida sempre foram doméstico, esses “domesticão

grosso” que teve antes, as casas eram tudo difícil de limpar. Cuidar de criança, depois a gente

tinha que ir na escola também. Às vezes eu ia um dia e faltava dois, pra ficar cuidando da casa

e dos irmãos pequenos.

Assim foi a vida da gente! Eu estudei só até o primeiro grau, aquele tempo chamava Primário.

Depois tinha normal, tinha ginásio, tinha isso, tinha aquilo outro, pra depois se formar. Mas

como não tinha na cidade da gente tudo isso ai perto, eu só fiz o primário completo.

Antes eu bordava, mas agora não faço nada mais. As minhas irmãs sabem bordar muito bem.

Tenho duas irmãs e uma “sobrinhada” que faz tricô, faz crochê, faz um monte de coisa. Mas

eu não, como eu não tive tempo de aprender antes...

O meu hobby era costura, eu costurava, depois que os meus irmãos cresceram tudo. Eu fazia

vestido de noiva, costurava calça, camisa pra homem. Naquela época não tinha esses figurinos

que agora a gente vê na vitrine, então, eu saia, quando podia, ia nas cidades que tinham

aquelas vitrines com alguma coisa pra ver os modelos tudo. Ia pra Avaré, Sorocaba,

Itapetininga. Eu viajei bastante. Conheci esses lugares depois que casei e que fiquei livre dos

meus irmãos. Então, costurei muito, muito, muito, muito.

Não tenho mais vontade de costurar porque agora eu fiquei com uns problemas, de uns

tempos pra cá. Até vendi minha máquina pra vim pra cá. Dispus de um montão de coisa sabe,

agora só tenho o necessário. Tanta coisa que eu tinha: cristaleira, aquelas coisa de cristal, ah,

tanta coisa!

Em 1983 me casei pela segunda vez. Morava lá em São Bernardo do Campo. Antes morava

num apartamento e mudei, quando casei a segunda vez. Me casei na igreja do Pari, de Santo

Antonio do Pari. Casei na Igreja e no civil, depois a festa foi em São Bernardo do Campo num

restaurante internacional que era do meu falecido cunhado, na verdade era meu cu-cunhado,

ele era cunhado do Duffet, meu segundo marido – Matia Duffet era o seu nome. Então daí a

festa foi lá, eles deram festa pra nós no restaurante internacional! Foi muito legal.

É que está difícil, numa mala trancada, senão ia mostrar a foto dele. Quando ele tinha os seus

trinta e cinco anos de idade, ah! Era um gatão! Mas quando eu o conheci ele já era de idade.

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Ele era treze anos mais velho que eu. Mas era iugoslavo e tinha uma pele de bebe. Tem a foto

da gente aqui, essa está mais fácil32. Mas isso foi tirada assim com maquininha dessas

simples, no jardim da nossa casa, lá na frente.

Essa aqui é a única que a gente tirou, do jeito que estava em casa, na Rua João Cavinato.

Fomos vizinhos do Lula por lá, sabe. Então, tinha um “vitrozão” que era do tamanho desta

parede aqui, mais ou menos, talvez um pouco maior, tudo de vidro e com grade. Tinha

garagem, tinha um cachorrinho. Tudo era muito bem cuidado, bem arrumado.

Ai ele já estava de idade, e, depois da sua morte, foi um tal de mudança. A gente que não tem

casa muda pra cá, muda pra lá, encaixota as coisas, depois larga lá e vai ficando. A gente

também vai perdendo o gosto. É complicado! Ah, agora esta tudo “simplesinho” mas, antes,

nossa! A gente pagava faxineira pra fazer faxina na casa, limpar aqueles vidros, aquelas

“coisaradas” tudo.

Nossa casa não era tão grande: na frente tinha o jardim, tinha garagem que saia do lado, a

porta saia na garagem assim, depois saia na rua, tudo com grade também. E depois saia pela

porta da garagem, lá no fundo, saia atrás, na lavanderia, tinha um quintal bem grande Tudo

com aqueles caquinhos - antes usava muito, de três ou quatro cores. Muito legal, só que não

era a nossa casa, era do sobrinho do falecido.

Eles eram donos do Restaurante Internacional e do Motel Le Mond, que foi muito famoso uns

tempos atrás. Aqueles atores que vinham de fora, como diz o Chaves, “aquela gentalha que

vinha de fora” iam tudo se hospedar lá. Lá tinha a suíte Presidencial, tinha a Real, tinha não

sei o que mais, tudo muito bonito, maravilhoso. Até a nossa primeira noite nós passamos

numa dessas suítes.

Meu segundo casamento foi um conto de fadas, foi muito legal! Só que não foi filmado.

Naquela época nem tinha muito recurso pra fazer filmagem. Não tinha, 1983, veja bem. E no

primeiro casamento então, que não tinha nem fotógrafo nessas regiões. Era tudo difícil.

A casa que eu morava era deles. Quando eles tinham o restaurante compraram muitos

imóveis, compraram apartamento lá no centro. Lá onde eu morava também era centro, só que

eram casas baixas. Ele comprou, lá no centro da cidade, um pouquinho mais pra frente, num

apartamento de onze andares. Mas é cada apartamento, que dá uma mansão lá dentro, tanta

coisa que tem e tanto cômodo. Esse é o Toninho – o nome dele é Antonio Singer. O pai dele

                                                                                                                         32 Me mostra uma fotografia..

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também era iugoslavo. Só que a mãe era Duffet e o pai era Singer – não tinha nada á ver com

aquela fábrica de máquina de costura.

Quando começo a construir esse prédio dois dos filhos compraram, um apartamento cada um.

E o Toninho, que era dono dessa casa onde a gente morava, ele comprou no décimo primeiro

andar – que era o último andar. Muito grande e muito bonito os apartamentos, só que Deus

me livre e guarde aquilo lá pra limpar.

Isso aconteceu quando a gente casou, aí ele falou assim: “olha tio, eu não quero alugar

aquela casa. Eu não quero vender e nem alugar aquela casa que eu morava. Vocês casando,

vão morar nela. Leva primeiro a Maria pra ver se ela vai gostar da casa, do bairro e tudo e

daí vocês vão morar lá e vocês não vão pagar nada. Vocês vão pagar só água e luz”.

Telefone, aquele tempo não tinha ainda, demorou pra conseguir uma linha de telefone. Não

tinha nem celular nem nada. E ele dizia “Daí vocês vão pagar só isso. Nem imposto predial

vocês vão pagar. Eu vou pagar tudo e as reformas, o que tiver lá pra fazer”. Naquele tempo

eles tinham setenta e dois empregados – entre o restaurante e o motel. O motel era enorme,

uma vila maravilhosa! Toda florida parecia um condomínio fechado. Muito bonito.

Depois, construíram mais dois prédios e fizeram outros motéis mais simples. Eh, tanta coisa!

Depois foi indo, acho que uns dez anos depois, meu cunhado ficou doente, deu um negócio

nele, AVC. Tava jogando carta lá no salão do restaurante com os amigos dele. Ele tinha

muitos amigos aposentados, estrangeiros também. Deu um negócio nele lá, que ele ficou

falando pouco e ficou todo deformado: as pernas, o braço, foi preciso depois, quando ele

melhorou mais, comprar um carro adaptado.

Eles também têm casa em Juqueí, lá na praia, uma mansão maravilhosa! Eu tenho foto dela ai,

um albunzinho, tirado assim... Mas era muito legal viu! Para aqueles lados vai pela Rio–

Santos. Agora está tudo desenvolvido, aquelas praias por lá, nossa... Muito bonito, eu gostava

muito. A gente ia e ficava o mês todo lá. Meu marido já era aposentado.

Então, foi isso que o sobrinho dele falou: “oh tio, olha, o dinheiro que vocês vão investir em

comprar casa vocês vão pegar e vão passear”. Mas ai, eu já conhecia muitas partes do Brasil,

do outro casamento, eu já não queria mais estar passeando, mas na praia a gente ia sempre.

Meu marido faleceu no dia 02 do mês sete de 2001. Eu ainda fiquei morando lá em São

Bernardo por dois anos e pouco, não chegou três. A minha família, que era daqui de Itapeva -

Itapeva 4, Itapeva 2, Jd. Virginia, Geraldo Alckmin, Vila Nova e por aí afora - são muita

“sobrinhada” e tinha meus irmãos, eles não queriam que eu ficasse morando lá. Lá, só tinha a

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minha cunhada, esposa do meu cunhado que era o dono do Motel e daquelas coisas lá. Ele já

tinha falecido, fazia uns sete anos, só tinha a minha cunhada e a “sobrinhada”, e tinha uma

outra cu-cunhada também. E a “sobrinhada” do lado dele, não tinha ninguém da minha

família.

Então, eles achavam que estava ficando difícil, porque estava acontecendo coisas por lá. Essa

malandragem do povo, que aprende tão rápido. A gente morava na casa sozinha, e eles

queriam que viesse embora pra cá, porque eles tinham dificuldade de atravessar São Paulo pra

ir pra São Bernardo. Às vezes chovia, dava enchente naqueles rios, muito engavetamento -

quando dá uma batida e ficam aqueles carros tudo junto. Eles morriam de medo daquilo.

Tinham carro e sabiam dirigir até chegar lá em São Paulo, agora, pra atravessar aqueles meio

lá é que eles tinham dificuldade. Daí, nossa mãe do céu! Todo dia telefonava um ou outro, de

dia ou de noite.

Então eu fiquei pensando; “ai meu Deus sabe que eu acho que é mesmo”. E eles lá, não

queriam que eu viesse. Os sobrinhos do meu marido e a minha cunhada e a outra cu-cunhada

não queriam que eu viesse embora. Essa cu-cunhada - não sei se ela está viva agora, até esses

dias atrás estava - é espanhola, filha de espanhóis. E o meu cunhado também veio de lá da

Iugoslávia, vieram tudo criança, pequeninhos.

Aí, foi indo foi indo, até que eles me convenceram de vir embora pra cá. Eu vim pra morar

junto com uma irmã que mora em Sorocaba, no parque São Bento. Ela é mãe de doze filhos,

tem dez vivos e dois falecidos, morreram quando crianças pequenas ainda, idade de dois, três

anos. Quando fez quarenta e três dias que eu tinha ficado viúva, o marido dela estava fazendo

caminhada na rua, lá em Sorocaba, e diz que, de repente, deu um negócio nele e ele caiu, a

sorte é que caiu na calçada, antes de chegar em casa, que ficava umas três quadras dali. O

vizinho correu e chamou o resgate, levaram ele, deram entrada no hospital, mas não deu

tempo de socorrer.

Na entrada, já “puft”, teve um infarto fulminante. Ele era novo ainda! Daí essa irmã ficava

falando: “vamos embora, vamos embora lá pra Itapeva”. Eles alugavam casa em Sorocaba.

“Vamos embora pra Itapeva, agora já casaram, os meus filhos já casaram quase todos, é só

eu e mais dois rapazes solteiros. Nós vamos morar junto lá, por essa, por aquela, mas um

monte de coisa”.

Eu ficava pensando; “mas meu Deus será que vai dar certo?” Ai, até que no fim eles me

convenceram. E o pessoal lá de São Bernardo chorava, não sei se eram lagrimas de verdade

ou eram falsas, mas choravam todos eles. Eles eram muito bons.

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E a minha cunhada falava: “ai Maria você não vai embora”. Quando ela veio da Iugoslávia

pro Brasil ela tinha 10 meses de idade. Eu sei que olha... faz tanto tempo. Irmãos são assim,

quando é tudo menor de idade brigam, daqui a pouco fazem as pazes, tudo legal. Mas, depois

que casam, já entra outras famílias no meio. Eu sei que você sabe, ela tinha três filhos homens

e uma mulher. Depois que começaram a entrar as famílias de fora na nossa família eu já sei

que não é mais aquilo. Já é outra coisa. Ela falava, “veja bem, se eu fosse você não ia, ficava

aqui”.

Então, depois disso tudo, a gente combinou e veio morar em Itapeva. De Sorocaba, veio um

caminhão bem grande, um baú, trouxe os móveis dela e trouxe os meus de lá de São

Bernardo. Lá eu dei um caminhão cheio de móveis, “coisarada” pra uma casa beneficente,

Casa de idoso, eram padres que tomavam conta.

Então, daí, a gente combinou e veio morar no Itapeva 4, que fica lá em cima, perto da torre de

transmissão, daqui dá pra ver. Eu fui morar lá com ela. Foi em 2005 que a gente veio pra cá,

dia 25 de maio, próximo do meu aniversário. Chegamos tudo junto, até chovia pra “caramba”

quando chegamos aqui. Passados oito meses ela, um dia, falou pra mim que ia voltar pra

Sorocaba, depois de oito meses!

Os filhos trabalhavam no hospital lá em Sorocaba, um trabalhava num hospital outro no outro.

Chegaram aqui e não arrumavam serviço e o pessoal de lá ligando pra eles voltarem que o

serviço estava à disposição ainda, pois não tinha ninguém ocupando a vaga.

Cheguei um dia da Igreja, a minha irmã falou: “ah Maria sabe, eu resolvi, vou voltar pra

Sorocaba de novo”. Só que lá ela alugava a casa então, teria que alugar a dela aqui pra pagar

aluguel lá. Ela interava um pouco mais e morava numa casa boa em Sorocaba, no Parque São

Bento. E ela falou: “você volta com a gente, não é?”

Eu falei, “olha, você vai me desculpar pela expressão, mas...” Quando eu era criança eu via

aquele pessoal, coitados também era todo mundo analfabeto, não sabia nem o que falavam,

mas diziam que quem se muda e volta pra trás é cachorro. Diz que os cachorros iam e não

acostumavam, voltavam pra trás, na morada velha. Ah menina, você que coisa!

Eu falei pra ela assim, “eu não vou voltar, eu já dispus de muita coisa, você sabe disso, e

agora vou voltar pra trás de novo. Eu não, eu vou ver se arrumo aqui, nem que seja um

cômodo desocupado pra colocar tudo que eu tenho e fico. Nem que eu vá dormir na pensão,

em algum lugar”. Tinha a casa dos parentes que moravam perto, é claro que eu não ia dormir

em pensão nenhuma. Mas se precisasse, pensão agora é só pra dormir, porque pra comer,

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agora tem coisa pra comer em tudo quanto é lugar: restaurante, comida caseira, marmitex,

essas coisaradas...

Ai eu falei: “eu não vou voltar não. Vou ficar aqui mais uns dias, se tivesse tido tempo eu ia

ver se arrumava uma casa pra me mudar, mas se não dá tempo, deixo as coisas aqui mesmo,

na sua casa até eu arrumar um lugar ai, depois me mudo”. Porque a casa ainda não estava

comprometida com ninguém. Pra eu ficar na casa dela, era muito grande, eu não queria

também. Ai foi assim!

Depois de lá eu fui morar com meu irmão que morava pertinho assim, uma distancia como ali

no ponto do ônibus, pois saiu a inquilina da casa dele. Ele morava na frente e tinha a casa do

fundo com três cômodos grandes, banheiro e um quintal. Era tudo junto, as pessoas que

morassem no fundo não podiam ter criança. Mas como eu era sozinha... Naquele dia de tarde

a inquilina dele saiu, disse que o filho arrumou uma casa e levou ela pra morar junto, pra

cuidar dele. Aqui mesmo em Itapeva, lá do lado da Santa Izabel, por ai, não sei aonde.

Ai a minha cunhada ligou: “oh Maria você disse que não quer ir pra Sorocaba, então, nossa

casa aqui do fundo, a mulher vai desocupar, até uma hora da tarde ela vai sair com a

mudança. Só não vai dar tempo de pintar a casa, mas, quanto à limpeza mais baixa que

puder fazer, a gente manda limpar tudo”. Fazia pouco tempo que tinham limpado, estava tudo

limpinho. Daí eu fui pra lá. Mas, foi assim, bem pertinho, dava até pra levar as coisas nas

costas. Morei lá, acho que sete meses.

A minha sobrinha queria reformar a casa e o meu irmão concordou de fazer do jeito dela – ela

morava em São Paulo há muito tempo, casou lá e tudo, depois separou do marido e veio

embora pra cá, trabalhava com o médico aqui, um médico famoso aqui, Drº Jorge, que faz

cirurgias, ele é oftalmologista. Então, ela trabalhava lá e estava separada do marido, mas

separado assim, o casal, mas tinham amizade de conversar, eles têm uma filha única, que é

nutricionista e mora lá em São Paulo. Ela nasceu em São Paulo, eles moravam bem pertinho

do Liceu Coração de Jesus, que também tinha uma faculdade, não sei se tem ainda. Ela

freqüentou a escolinha de criança, depois estudou até fazer faculdade. É raro ela vir aqui no

interior. Ela é nutricionista.

Agora o pai dela morreu. Ela estava na faculdade, a mãe dela, que é a minha sobrinha, já

morava aqui, no Jardim Ferrari. Ela achou um espanhol, um baixinho, viúvo e cheio da grana.

Foi trabalhar de motorista com ele, mas dai ficou convivendo junto, mas ele tem oitenta e

sete, oitenta e oito anos! Vai fazer noventa anos agora, não sei que mês que é. Então, ele é

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baixinho, feinho também pra caramba, mas é rico, rico. Tem três filhos homens, mas tudo

casado, outros separados, cada um já está estabelecido. O homem é muito rico sabe e ela foi

morar lá na casa, cuidar dele, só que outro dia ela falou pra mim que ele está tão rabugento.

Sabe como é, ele com essa idade e ela está com cinqüenta e quatro. É muito grande a

diferença de idade entre eles. Veja é só pra dormir junto, só pra esquentar o outro, porque o

resto não dá nada mais. Já aposentou...

Com a reforma eu aluguei uma casa na Geraldo Alckmin. Logo pra cima da rodoviária tem

uma igreja, Assembléia de Deus, que é filial dessa aqui, e na mesma calçada, de frente, era o

sobrado do meu sobrinho que estava nos Estados Unidos – ele estava na Flórida há seis anos e

retornou depois de um ano e pouco que eu fui morar lá.

A mulher dele com a filha moravam neste sobrado. A parte térrea, em baixo, era uma sala

grande, maior que essa aqui, mas tudo sem construir, só tinha um inquilino que tinha morado

uns três meses lá. Daí ela falou: “oh, tia se você quiser mudar lá, a minha inquilina vai

mudar lá pra vila Jardim Maringá, ou Jardim Califórnia, vai mudar pra lá e vai ficar

desocupada. Então, como você não tem casa e esta procurando casa pra alugar”.

De lá, eu fui morar na casa da Lourdes que eu digo que é quase como minha cunhada. Ela é

irmã da minha cunhada, que faleceu depois que eu vim de São Bernardo pra cá. Eram muito

boas as duas! Ela é até agora. Morava na Geraldo Alckmin também, só que é na Vila Santana,

lá na frente da Prever, pertinho da Toledo Dias.

Eu estava morando lá quando saiu esse projeto aqui. O ex governador José Serra foi para os

Estados Unidos, não sei em que estado ele foi, e viu esse projeto, viu as casas lá. Não sei se

ele já estava com seu engenheiro. Quando saiu na internet eu morava na casa do fundo da

Lourdes. Era uma casa também recém construída, eu fui a primeira inquilina a morar lá.

Agora é uma jornalista aqui da cidade que mora lá, solteira, magrinha, trabalha no Itanews.

O marido da Lourdes também já faleceu e quando ela casou com esse homem ele era pai de

dez filhos. Era viúvo e ela era solteirona. Então, casou com ele e daí, veio a Ana Paula.

Imagina já tinha dez irmãos, já tudo grande, alguns casados. Ela é diretora de escola,

solteirona, está com trinta e seis anos. Ela tem uma irmã que diz que é freira, trabalhava no

asilo, também é solteirona. O resto são todos casados.

Então, ela viu na internet, à noite. Ela trabalhava em duas escolas, chegou e estava mexendo

na internet quando viu que Itapeva tinha sido sorteada pra receber o programa e que iriam ser

construídas dezoito casas. Mostrou Avaré, onde seria construído primeiro e, em seguida, aqui.

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Ela viu que sairia logo naqueles dias as inscrições para as pessoas que ganhavam até dois

salários mínimos, que tinham 60 anos em diante. Ela saiu cedo pra escola e deixou escrito, lá

perto do computador, que eu fosse na Prefeitura, depois do almoço, pra me informar.

Chego lá, coitados estavam tudo neutro, ninguém sabia nada, foi aquela confusão: procura

numa sala e em outra, pergunta pra um, pergunta pra outro. Ai disseram que era pra ir na

assistência social. Eu fui andando, sem tomar taxi, sem nada, andei bastante.

Chego lá, tem um velhinho, não sei se está trabalhando lá ainda, o Seu Antonio, um

carequinha, muito legal. Ele me recebeu, eu fiz as perguntas e ele começou a rir. Ninguém

sabia nada, aquelas moças lá, tudo de bracinho cruzado dentro daquela sala. Ai me disse “está

bem Dona Maria, a srª vai nessa sala aqui e fala com uma dessas moças bonitas”. Eu falei,

“todas elas são bonitas”. Eu fui a primeira que fez inscrição, sem nada, sem ter escolhido

nem o lugar ainda. Não sabia se ia ser aqui ou outro lugar. Não estava definido ainda em que

bairro iria ser. Mas ai eu fui a primeira a fazer inscrição.

Parece que se inscreveram cinqüenta e duas pessoas, foi o que a Beth falou. E eu fui uma

delas a ser sorteada.

Até eles localizarem o bairro, construir, ter estrutura pronta, água, luz elétrica, documentação

tudo, até que não demorou muito não. Eu fiquei lá esperando, logo já saiu. Na semana

seguinte já saiu onde ia ser. Logo o pessoal que passava nesta estradinha aqui, inclusive a Ana

Paula passou algumas vezes, e viu que já estavam fazendo a terraplenagem. Daí que ela falou

que seria aqui. E todo mundo ficou aguardando. Depois começarem a fazer as pesquisas nas

casas das pessoas, pegar os documentos, fazer as perguntas. Já fazia cinco anos que eu estava

morando aqui.

Deu tudo certo. Mas eu não gostei muito no começo porque eu achei errado, da parte deles,

algumas coisas. Mas nem tudo é muito perfeito não é mesmo? Quando inaugurou aqui não

estava terminado ainda - tinha coisa pra terminar. Tinha chovido, estava aquele barro, só tinha

a casa quinze, que montaram pra exposição. Eu achei que eles deviam ter trazido alguns, nem

que não fosse todos, trazer ou dar autorização pra vim conhecer a casa, pra ver qual o tipo de

móvel que podia trazer.

Eu não precisava dispor de tanta coisa, dispus da minha máquina porque aqui é pequeno. Até

agora não comprei outra. Vou comprar, esse mês ou o mês que vem eu vou comprar uma, só

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que com capacidade menor, uns seis quilos, por ai, tá bom. Eu tinha a centrifuga, mas não

adianta nada, compra tanquinho, compra centrifuga.

Eu dispus da minha máquina, dispus de um monte de coisa, um balcão grande, que essa

fábrica só tinha em São Bernardo do Campo, sabe, muito perfeita aquelas coisas, armário de

parede, o meu tinha nove portas, que fazia conjunto com esse aqui. Até o dia que eu fui mudar

ele daqui ele caiu, eu soldei que ia cair em cima de mim. Ele rachou dai eu pus virado pra lá,

mas ele é muito legal sabe, é forrado, é tudo móvel bom.

Dispus de toda aquela “coisarada” que eu tinha, dispus de tudo pra poder vim. Esse joguinho

de sofá eu já tinha comprado quando a minha irmã voltou pra Sorocaba. Eu não sabia onde

iria morar, se era sala grande, com porta grande, como seria a entrada. Lá em São Bernardo

era tudo de couro, grande, tudo estofado, aquela “coisarada” grande. Dispus de tudo e tive que

comprar tudo. Só fiquei com uma loucinha! Eu tinha tanta coisa, aparelhos completos, tudo eu

tive que dar embora.

Foi difícil desfazer das minhas coisas, a gente fala “nossa, tantos anos”. Mas também a gente

não pode se apegar às coisas toda a vida. Porque às vezes você é muito apegada a alguma

pessoa da família, de repente, você perde essa pessoa e o sofrimento é muito maior não é

mesmo? Agora, coisas materiais não, porque é coisa que, se a gente tiver dinheiro, compra

outra, não é mesmo? Eu era muito agarrada a certas coisas, agarrada com aqueles presentes

que eu ganhava.

Lá em São Bernardo a família era muito grande e eu ganhava muitos presentes. Mas aqui em

Itapeva são tudo paupérrimo, não dão presentes. Não que eles não tenham condições, todo

mundo tem seu carro, sua casa, mas não tem o coração assim, de dar as coisas para os outros e

tal. A maioria só quer receber. Mas quanto a isso deixe pra lá que são coisas passageiras, não?

A gente estando com saúde está bom, o principal é isso. Pior é quando a gente está doente e

dependendo dos outros, ai é difícil... Mas graças a Deus até aqui, por enquanto, eu estou me

virando. Não tenho esse problema de depender dos outros.

Eu detestava fazer mudança e depois que eu vim pra Itapeva parecia formiga, aquela

formiguinha saúva. Eu falava “que coisa terrível”, eu lamentava por causa, de ter o dinheiro e

não poder ter a casa própria. Eu tenho um dinheiro, está no Fórum, na Justiça Federal, lá em

Sorocaba, é daquele tempo do Plano Bresser – Collor, aquela turma. A gente tinha um

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dinheiro bom, dava pra comprar uma casa muito boa aqui em Itapeva, mas daí o Collor pegou

nossa poupança.

Agora está no Fórum lá de Sorocaba e só poderei rever a minha parte, porque o meu marido já

tinha falecido quando entrei na Justiça contra eles. Está lá porque o Fórum daqui não tinha

Justiça Federal, olha que coisa chata não? Só porque era poupança, na Caixa Econômica

Federal, tinha que ser na Justiça Federal. Agora está lá, na primeira vara, na Justiça Federal, lá

em Sorocaba, já vai pra três anos que está lá.

Deus que me perdoe, a quantia de coisa que tem naquele lugar não está escrito. Uma hora,

Deus me perdoe, aparece um incêndio lá e queima tudo. É tanta demora, tanta demora que eu

não entendo.

Antes de surgir essa casa aqui eu queria comprar uma casa com esse dinheiro. Mas agora,

gosto muito daqui e, depois de tantas mudanças eu não penso em me mudar novamente.

Essa casa era pra ter sido comprada quando meu marido estava vivo, mas quando viemos ver

uma, aqui no Parque São Jorge, em frente à delegacia e perto da minha irmã, o pessoal dele

não quis que nós comprássemos. Eles questionavam porque que íamos comprar se lá a gente

tava bem. Começaram chorar e tudo, eles eram muito legais pra gente, eram anjos!

Eu sei que quando foi dali uns dias veio o tal plano que caçou tudo. Depois eu fiquei viúva e,

fiquei feito boba lá dormindo no ponto, não fui procurar recurso nada. Depois que a gente já

estava aqui em Itapeva é que veio aquele negócio de as pessoas poderem recorrer. Dai, peguei

uma advogada sossegada, que não fazia muito tempo que tinha se formado. Eu tava fora

quantos anos, os advogados mais velhos que a gente confiava não existiam mais, já tinham

falecido. E, pra ajudar as secretarias de lá uma hora perdiam o documento, outra hora,

atrasavam pra entrar com o processo.

Foi preciso pedir na Caixa Econômica estrato micro filmado e, como a minha poupança era

em São Bernardo do Campo, então tinha que apelar pra lá. Eu fui na Caixa, o gerente deu as

informações e fez o pedido. Passados uns trinta e cinco dias veio, e dai que pudemos arrumar

os documentos pra entrar com o processo. A advogada ficava lá do lado do litoral, do lado de

Iguape, Registro, aqueles meio por lá. Ah, Deus que me perdoe viu! Agora estamos assim,

aguardando.

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Mas como eu disse, não tenho intenção de mudar daqui. Não sei se eu vou receber ou não esse

dinheiro de volta, porque a vida da gente Deus é que sabe. Você está conversando aqui, daqui

a pouco a gente não sabe mais. O futuro da gente só Deus é que sabe.

Mas se eu chegar a pegar esse dinheiro pretendo ajudar alguma obra de caridade. Tirar o

suficiente pra viver, pagar uma faxineira boa, de confiança, pra vir toda semana fazer uma

faxina, mudar alguma coisa aqui dentro, pra conforto da gente e o resto...

Mas mudar daqui não penso não. Estou muito bem, graças à Deus. Daqui é pertinho pra ir na

cidade, são quinze minutos. Eu venho de lá de frente do Cofesa, que já é um ponto bem pra cá

do centro, dá vinte minutos, eu desço ali. Eu freqüento a Igreja Universal, depois que meu

marido faleceu eu passei a freqüentar ainda em São Bernardo. Conheci pela televisão e gostei,

tinha uns problemas de saúde fui lá e lá eu fui curada, então... Aos domingos vou à igreja,

meio dia tomo o ônibus de volta, ele passa em frente esse ponto do Cofesa, que é um mercado

grande que tem aqui. Chego aqui meio dia e vinte e cinco, meio dia e meio eu já estou dentro

de casa.

Às vezes eu fico lá, almoço com a minha sobrinha que mora bem pertinho do mercado. Me

dou bem aqui, temos assistência médica, temos enfermeiros, tem o pessoal que vem de fora e

faz amizade com a gente. Nossa já veio tanta gente. Agora mesmo teve aqui o projeto

Rondon, tinha gente de São Paulo, Santo André, Mauá, Poá, Sorocaba, Campinas.

Eles se hospedavam em escola geminiana, vinham aqui uma parte do dia, às vezes na parte da

tarde, e de manhã iam pra outros bairros, já retirados da cidade. Já vieram muitas vezes. E tem

muita gente visitante que vem. Às vezes vem turma de escola, fazer piquenique ai com a

criançada. Vem turma de caminhada, políticos, bastante gente. Então, a gente nunca tá

sozinho.

Eu cozinho todo dia. Só domingo ou feriadão, que vem meu pessoal lá de São Paulo,

Campinas. Nesse feriado de nove de julho veio o meu sobrinho de São Paulo. Ah, reuni a

turma de Sorocaba, a turma, lá de São Paulo. Eles vêm lá na cidade, porque o regulamento

aqui não pode dormir, a pessoa tem que ter sessenta anos completos e tem que ser parente ou

pode ser amiga também.

Eu tenho uma amiga de São Bernardo do Campo, ela tá com sessenta e sete anos, todo ano ela

vem e fica quatro, cinco dias aqui com a gente. Esse ano mesmo ela veio em maio. No feriado

de primeiro de maio deu um feriadão, foi quando começou aquele frio forte.

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Deus me livre e guarde, é tanta gente, tem em São José do Rio Preto, outro casal de sobrinhos,

estão todos esparramados. Então quando eles vêm é assim: reúne em três casas das irmãs, lá

no centro da cidade, perto da praça. Vai uma turma dormir numa casa, outra noutra casa e, pra

almoçar, vai todo mundo numa casa só. Aí, tem churrasco, fazem paçoca de amendoim,

aquela socada no pilão.

Eles chegam já ligam, “oh tia onde é que você tá? Você não faça nada ai, que nós vamos te

buscar pra vim participar”. Dai tem duas que fazem as coisas na cozinha. Junto todo mundo,

dessa última vez deu dezessete pessoas. Dois dias vieram me buscar aqui. Eu ia pra lá e, de

noite, eles me traziam aqui, ou, se eu quisesse dormir lá, também podia, mas é muita gente.

Então, eu tenho contato com todo mundo da minha família, que é muito grande. Oh, só do

lado dessa minha irmã que mora em Sorocaba acho que eu tenho uns vinte e poucos

sobrinhos. Em tem os outros sobrinhos também, a que tem menos é essa irmã que mora lá em

Votorantim e que trabalha no presídio, ela só tem um casal de filhos.

Mas meus familiares não vêm muito aqui, porque todo mundo trabalha, outros estudam. É

assim: quem tem os carros e vai trabalhar, conforme o lugar, usa o carro durante o dia e, às

vezes, vai pra escola à noite; então, aqui vêm quando da certo. Mas a gente tem noticia todo

dia um do outro.

Quando era mais nova não pensava que iria envelhecer, até alguns anos atrás era tudo normal

pra mim; antes de eu ir ao médico e tomar remédio pra pressão, diabetes e não sei o que.

Antes disso eu não achava que era nem nova nem velha. Eu nem pensava na velhice, achava

que eu era conservada e podia fazer tudo sem precisar dos outros. E quando precisava de

alguma coisa a gente pagava tudo numa boa. Hoje ainda não me acho velha.

Eu sempre soube que, se não morresse logo, um dia envelheceria. O meu falecido esposo, o

segundo, dizia assim: “quem achar que não tá bem de vida e tal, quem não quer morrer velho

então, morra antes de envelhecer, morra antes”. Mas não de tirar a vida, essas coisas nunca,

nunca veio na minha cabeça, nem de ficar perdendo meus familiares. Então, eu não me

considero velha, eu sei que eu não sou nova, mas, vem cá, tem bastante gente com cento e

poucos anos.

Bom, agora a gente não chega mais lá. A minha cunhada já fez cento e seis anos. Ela mora lá

na Praça Anchieta, onde tem a lanchonete Rezende, na esquina assim da praça. Aquele prédio

é tudo deles. São sobrinhos, por parte do primeiro casamento, e a minha cunhada, que é a mãe

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deles, teve oito filhos. Ela esta com cento e seis anos e agora que está na cadeira de rodas. Lá

dentro do quarto dela, que é apartamento, não tem tapete, não tem carpete, não tem nada, é

tudo liso, os quartos são bem grandes, os guarda-roupas embutidos tudo grandão. Não se sabe

como é que ela caiu lá e quebrou o fêmur, já está com dois anos e agora não quer sair da

cadeira de rodas E lá ela fica na janela da frente, vendo todo o movimento da praça, em frente

os bancos, vê tudo lá. Ela é magrinha coitada, mas é um anjo de pessoa.

Graças a Deus eu não tenho medo de nada. Morei acompanhada dos meus irmãos, todo

aquele tempo que eu contei e depois fiquei sozinha. Casei fui pra São Bernardo, morava nós

dois em casa e a gente se dava muito bem. Tanto no primeiro quanto no segundo casamento

nenhum dos maridos tinha problema de beber, de qualquer coisa mais, era só trabalhar, graças

à Deus.

Eu acho que a gente morar sozinho é muito solitário, não tem com quem conversar, discutir

qualquer uma coisa, comentar alguma coisa que a gente vê na televisão, ouve, mas, eu vivo no

meio de muita gente.

Me desculpe se falei coisas errada. Não vai precisar mexer em nada do que eu disse porque

não tem nada que possa comprometer. Pode ser meio antiquado, porque muita gente não

conhece essas coisas que não existem mais.

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Seu  Adelino  Rocha33

[...] Os anos de nossa vida chegam a setenta, ou a oitenta para os que têm mais vigor; entretanto, são anos difíceis e cheios de sofrimento, pois a vida passa depressa, e nós voamos! [...]

Salmo 90

Eu nasci e me criei no bairro Monjolinho, município de Itaberá, comarca de Itapeva. Bairro

Monjolinho é o lugar da pobreza. Que fomos tudo pobre. Em outro tempo, passado, nós

passamos escravidão, que nem o povo no Egito34. Passemos escravidão!

O pai ganhava no jornal um mil réis por dia, um mil réis antigo pra tratar do bando de família

em casa! Vinha doença pra ele, aquelas gripe muito forte, “maleite” - eu nunca tive “maleite”,

estou com oitenta e quatro e nunca tive “maleite” na minha vida, o pai teve. “Maleite” é um

frio, que nem uma gripe forte: dá tremedeira, fraqueza, tudo que não presta. “Maleita” é como

dizem, acho que é um bicho, um micróbio que dá um negócio, não sei como é. Eu nunca tive,

o pai teve. O pai sofreu gripe35.

O pai foi jornaleiro: cortou cana no canavial. Ali tinha geada e ele não tinha calçado, ia

descalço o falecido meu pai. O pé trincou! Fazia aquelas trinca no calcanhar, trinca funda, de

frio. Cortar cana pra ponha no cilindro, no engenho, pra moer.

Trabalhou de carpi cafezal. João Porrete, que era o dono da fazenda, pagava mil réis por dia.

Ele tratava bem os jornaleiros, bóia tinha pra valer, bem tratado, mas, era sofrimento. Enxada

grande, grande a enxadona pra carpir. Eu nunca carpi cafezal, eu estou nessa idade, oitenta e

quatro, e nunca carpi café. Nunca deu certo de carpi cafezal. Nunca, nunca na minha vida.

Não conheço nada.

O pai chegou a se arrebentar aqui no peito. Chegou a dar nó, ficou de cama não sei quantos

meses se tratando. Ele queria ser bom na enxada e tinha gente melhor, mais forte e ele queria

agüentar o baque.

Ele teve bastante filho, não sei quantos, não me “alembro”. Nós “tinha” bastante irmandade,

mas já morreram. Morreu bastante irmandade, bastante mulher. O pai criou o bando inteiro.

Tratou ganhando um mil réis por dia. Um mil réis por dia!

                                                                                                                         33 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 15h30min, com Adelino Rocha; 84 anos de idade; Escolaridade: não informada. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h19min23seg; Local da entrevista: casa do colaborador. 34 Na época em que a entrevista foi realizada os jornais ainda noticiavam a Revolução Egípcia, a crise política e as eleições presidências após o fim da Ditadura de Hosni Mubarak. 35 Seu Abel, que ouve a conversa do lado de fora, me esclarece que maleita é a Doença de Chagas.

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Agora, na nossa vida em casa era uma pobreza triste. Você não viu falar em pobreza. Pobreza

é piolho na cabeça. Olha, criava lêndea de ficar fervendo o cabelo. Piolho caia... Fora o piolho

tinha o bicho de pé, moranga, embaixo da unha. Morangueira, moranga!

A minha tia criou moranga de bicho do pé, forrou tudo, veio, aquele bolão inchado. Dai

ensinaram vim na farmácia do Zé Pinel, tinha uma pomada pra comprar pra passar. Eu

comprei, passava no pé da minha tia, passava tudo com a minha mão, saia tudo aquela

morangueira, limpava.

O pai pegava as cobertas dela - a tia era muda, não falava – levava no fogo. Fazia aquele baita

fogaréu, embolava, caia que nem açúcar a moranga da tia. Solta aquele mundo de ovo! O

pessoal estava sentado e quando via estava branco assim, de ovo no chão. Aquela “pulguinha”

pica, a pulga arruína, às vezes, inflama, dá até “preteira” na pessoa. Você é doido!

Então nós sofremos tudo isso ai: piolho na cabeça, bicho no pé, barata na casa. Barata é uma

coisa que vai em fruta, come as coisas, lambe a gente. “Barataiada”, “chupança”, barbeiro.

Aquilo chupa, dá chaga no coração da pessoa. Ficava na parede. Isso que eu estou contando é

a pobreza.

A nossa casa era de sapé, sapezal. Fazia a casa “barrotiada” - ponhava barro e “barriava”. A

casa era de barro e fervia de “chupança”, o tal de barbeiro, você olhava pra parede “tava”

fervendo - vinha lá do mato; a cultura muito boa cria muito “chupança”.

Meu Deus do céu eu não dormia de noite! Não sei como é que eu estou vivo até agora. Não

sei onde é que foi o meu corpo, a “chupança” crivava tudo o meu corpo, ficava tudo furado,

ficava bala vermelha, tudo pintado, o corpo inteiro. Não dava nem pra dormir – “tava”

deitado, quando via a “chupança” aparecia. Você percebe quando chupa a gente, mexe na

coberta e “timmm” - aquela ferrada na gente. Eu pegava a chupança e quebrava a nuca dela,

soltava aquela catinga que fedia na mão. Do nada, outra mordia, outra mordia, outra mordia.

Era a noite inteira matando; às vezes eu “alumiava”, eu ia lá com a bombinha, “fumegava”

pras paredes, pras trincas.

Elas botam aquela “ovaradia” branca, fica aquelas miudinha, tudo morde a gente. A

“chupança” é um tipo de percevejo. O nome dele, o povo diz, é barbeiro. Mas outros fala

chupança. Acaba com o sangue da pessoa por que chupa e pra alguns dá doença no coração -

doença de Chaga é do barbeiro.

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Cama nós não, tinha era “tarrimo” de pau - uma mesinha de pau amarradinha assim com cipó,

colchãozinho com uma palhinha só pra cobrir o inverno.

Nós não “podia” comprar o açúcar branco, o açúcar cristal, o açúcar redondo, açúcar

pernambucano pra adoçar o café - às vezes nós “comprava”, mas era muito caro. O pai

plantava canavial - cana de fazer açúcar, faz pinga, faz álcool, faz tudo.

Lá não tinha engenho, nada. O pai fazia dois “telhão” assim: partia, cortava, ponhava barriga -

um pra lá outro pra cá –, “nhoc, nhoc, nhec, nhec”- esse é o berro do “encaixador” 36 –,

“nhec, nhec, nhoc, nhoc”; pra tirar garapa e fazer o café. Fervia e fazia o café. Punha o pó,

açúcar, nós bebia o café - a garapa que era o açúcar, porque a garapa dá o açúcar, dá o açúcar

cristal, mascavo, dá rapadura, dá de tudo!

Esse é o sinal da pobreza. O “encaixador” gritava, eu não posso levantar o gripo, mas faz

“nheco, nheco”. Um puxava pra cá outro pra lá. A minha mãe virava aqui, o pai virava pra lá

e eu pegava a cana. Eu era guri, tinha uns dez anos. Punha lá, moía, passava, pegava pra cá;

“ponhava” de novo, torcia até sair o ultimo, ficava aquele bagaço seco, dai jogava lá. E vai

outra cana, e mais outra, enchia uma chaleira de garapa. Fervia e daí não carecia “ponha”

açúcar porque a garapa era o açúcar.

Ponhava o pó no coador, coava e bebia o café. Ficava bom o café, gostoso!

A rapadura é feita no forno. Tem o açúcar mascavo, tem o açúcar pernambucano, tem vários

tipos de açúcar. Tem o açúcar cristal e o filtrado, o açúcar branco refinado - ele refina daí faz

o álcool, faz a pinga, tudo da cana. Você vê quanta coisa a cana dá produção!

Tem o engenho, esse é o rico que pode usar. Ele vira com animal, com boi, faz “rhuuuuuu”,

vai roncando; ali põe a cana e mói. Esse é engenho, tem o cilindro - é um “coisão” assim de

“dentaiada” de ferro -, também é barriga com barriga, pau no meio, pra trás é caldo que dança.

Essa é uma pergunta que faz, é uma pergunta pra pessoa decifrar: “o que é, o que é?”. Aquela

pergunta: barriga com barriga, pau no meio, pra trás é caldo que dança. É a cana que vai

barriga com barriga, põe a cana aqui, pra trás caldo que dança - é a garapa que cai. Quem vê

diz que é outra coisa, mas não é. É a cana.

Essa é a vida do engenho, você vê que a vida de quem trabalha lá é bem vivida. Bem vivida!

Quem já tem dinheiro pra comprar o cilindro - aquilo é caro e o engenho também é caro -, põe

                                                                                                                         36 Encaixador era o nome popularmente dado para o cilindro onde a cana era espremida para extração da garapa.

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o boi pra puxar. Agora o “encaixador” é vida de pobre. Como nós é pobrezinho plantava o

“canavialzinho” pra moer.

Plantava algodão. Algodão de colher assim: carpia, plantava, depois plantava, repartia, carpia.

O algodão é bem branco, ele fazia roupa. Ficava bem branco. “Panhava” que enchia aqueles

fardão. Vendia o algodão, tinha o homem que fornecia pro pai trocar o algodão. O pai

plantava algodão e nós “passava” melhor.

Nós “passava” a vida muito ruim. Teve tempo que não havia feijão, acabou o feijão, não tinha

mais feijão. Existia um homem que tinha um feijão velho, “carunchado” – “caruncho” é um

bichinho que fervia no feijão que ficava preto, preto – deu pro pai e disse:“leve lá, vocês

estão passando fome de feijão”. A mãe cozinhava aquele feijão, meu Deus do céu! Nós

“comia” que se afogava de fome - aquela fome, fome mesmo que prejudicava a nossa vida,

aquela fraqueza de fome. Comia que parecia que tinha açúcar no feijão de tão gostoso - o

feijão carunchado não tem gosto de nada, é amargo, é ruim, aquele pó, e nós “comia” de se

matar.

Nós “comia” carne quando a mãe matava um frango - o pai criava galinha. Aquilo era uma

festa! O pai engordava um porco, lá no chiqueiro - tinha um chiqueirinho lá e ponhava o

porco pra engorda. Quando matava um porco, uma vez ou outra, era uma festa pra nós. Comia

carne de porco. Também tinha a verdurinha que nós “tinha” em casa: banana maçã,

“cachozão” de banana maçã, laranja, uns par de pé, tudo doce, doce. Era a fartura de lá, aquilo

era a fartura que nós “tinha”.

Tinha uma mina d´água, que é uma mina muito bonita. A minha irmã quase que morre na

mina, faltou um pouquinho. Ela era cega dos olhos, nasceu de nascença. Depois ela começou

a enxergar, fizeram cura pra ela, mas era muito ruim da vista. Ela até foi na escola, aprendeu a

ler, mas deu trabalho.

Ela foi brincar lá na mina d´água, caiu e chupou aquele monte de água. A outra irmã viu ela

caída e gritou pra outra irmã que “tava” pra cima. Vieram e tiraram ela. Ela começou soltar

aquele mundo de água, quase que morre.

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Daí, nós passemos aquela luta. Plantava algodão melhorava a nossa vida. Quando a gente

“tava” fornecendo vinha o oferecimento nós comia melhor, passava mais bem. E carpia

lavoura, o pai plantando um pouquinho de roça de arroz dava uma farturinha. É a nossa vida

pobre!

Nós “quebrava” milho com a mão, não era com aquelas máquinas. Fazia “bandeirão” pra

ganhar dinheiro. Queimava roça, cortava arroz com ferro, cortava arroz pra malhar. Era assim

a vida na lavoura!

Muitos anos fazendo lavoura, roçando mato. Derrubava mato com meu pai. O pai ensinou a

roçar. Derrubava mato, cortava no machado e queimava e fazia a lavoura e plantava cana

verde; plantava milho - plantava três, quatro sementes, eu pegava a base, já sabia a base de

“ponha”. O feijão plantava duas sementes, três - não pode planta um montão de feijão, “é”

duas sementes.

E fui caçador - inclinado a caçar com bodoque. Tinha um bodoque de arcada, puxava assim,

soltava a pelota; tinha cerda, soltava pelota e matava juruti, matava a passarinhada pra comer.

Armava a espingarda num carreiro achava um tatu, matava e comia a carne. Matava uma

capivara e comia a carne.

Eu tinha um cachorro - pro caso de correr o bicho. Também matava com tiro, matava com

qualquer coisa. Matava passarinho com cetra, com pelota, com bodoque. Fazia armadilha pra

caçar tatu. Ia pescar no rio, ia no bote - às vezes, ia com canoa. Às vezes ia com cachorro lá

no mato.

Um dia o cachorro correu a onça; achou a onça, nós fomos ver, anoiteceu e não pudemos

entrar no mato, tivemos que voltar pra trás porque era mato feio. O cachorro corria a onça,

latia, ela corria, “trepava” no pau. Daí, quando voltava encontramos um bando de capivara,

tudo miudinha. Eu tava com a espingarda e ao invés de atirar, banquei bobo, fui falar pro

Alcides: “olhe, Alcides, atira, atira, atira”, eu mandava ele atirar e eu não atirava na

capivara. Ele atirou, matou umas duas capivaras pequenas - leitão que tava chupando ainda.

Eu levei pra ele, ele não quis. Mais uma carne boa, eu gosto de carne de capivara. É boa a

carne, muito gostosa.

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Carne da onça, me deram um pedaço, é boa, gostosa, a carne não é dura. A carne de tamanduá

bandeira também é boa, é que nem carne de boi de gostosa, forte a carne. Então, que eu fui

desse tipo.

A mãe faleceu muito primeiro que meu pai; vou contar da vida dela. Minha mãe era raça de

índia, falava meio “ilhada”, tinha que ser numa altura senão você não compreendia. Ela era

muito nervosa; brava.

Minha mãe não ficou certa do juízo, tinha um tempo que ela “tava” regulando outro tempo

não. Ela sofreu, sofreu, horrível! Nós, pra comer a farinha...

O pai tinha o monjolo de socar. Tinha uma bica assim que vai água na bica e de lá cai no

monjolo. Uma aste assim; “nho-co-tó, nho-co-tó, nho-co-tó”; põe o milho pra soca, esfarela,

aventa, tira o farelo, põe de molho - pra ficar mole, “alumia”, sobe de novo pra coar e vai

coando. Sai aquele monte de fubá pra torrar no forno.

Aquilo era uma riqueza. Quanto nós tava naquele monjolo, nós tava rico. Tinha farinha de

comer pra casa. Mas antes disso não tinha o tal do monjolo, era um pilãozinho. O pai tinha

um pilão e a mãe socava o milho duro: “dibuiava”, socava, tirava o farelo, peneirava, ponhava

de molho de novo, depois socava de novo, coava, pra tirar o “fubazinho” pra torrar na panela.

Aquele fubá que nós comia.

A mãe ficou doente, sofreu de uma doença chamada hemorróida - é uma doença que dá no

intestino - é bicha, verme, essas coisa que a pessoa não trata e fica com aquela doença feia. A

mãe morreu daquilo. Ela morreu nova, não morreu velha. Sofreu aquela doença horrível,

doença feia e sofrida.

E ela ainda ia no rio “baldear” potinho d’água, trazia sofrendo aquele potinho d’agua. Ela

chegou soltar tudo as tripas pra fora e depois foi sofrendo. Depois veio o inchaço na boca

dela, não podia comer. Ficou de cama não sei quantos dias e não morria, daquela fraqueza

enorme que “tava” o corpo dela. Aquela fraqueza enorme! Sofremos, horrivelmente!

Quando minha mãe morreu eu fiquei com o pai, meu irmãozinho, Zé, e a Maria, minha irmã.

Nós ficamos na casa.

Minha irmã ficou ruim do juízo - aquela loucura pra casar, queria arrumar namorado. Aquela

loucura e a falta da mãe. Foi internada porque ficou ruim do juízo, fraqueza. No asilo lá em

São Paulo ela morreu.

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O Zé também foi internado, ficou ruim do juízo e morreu. Ele ficava falando na mãe, aquela

loucura, a idéia não ajudava. Os dois era idéia fraca, só eu tinha a idéia melhor.

Não me casei, eu sou virgem, falo a verdade, não minto. Nunca casei, sou virgem. Não quis

me casar porque eu vivia no mundo. Vivia no mundão, perdido no mundo. E então, eu achava

que se casasse ia ficar comprometido. Eu tinha que dar resposta do casamento, tinha que ser

sincero e eu não queria compromisso.

Eu tinha parente que queria casar comigo, mas não deu idéia. Teve uma fulana, família de

rico, mas não topei de jeito nenhum. O homem queria que eu casasse com ela, família de

gente rica, não deu idéia; a gente quando é pra sofrer, sofre, não quer regalo na vida. Eu tinha

que casar quando era novo, mas eu não queria, queria viver a vida.

Olha o que aconteceu pra mim: fiquei desprezado. Hoje estou aqui desprezado. Se eu tivesse

me casado, eu teria uma mulher pra me ajudar, ajudar na minha vida. Quando eu morresse ia

deixar a herança pra mulher e agora vai ficar pro governo - tem a herança da casa que Deus

me deu. Deus me deu aqui, a casa pra morar, deu o dinheiro da aposentadoria é herança.

A minha vida toda foi lá no sitio. Depois do sitio eu vim pra cidade, quando faltou meu pai.

Meu pai fez a aposentadoria dele e veio a fraqueza do derrame - derrame de soltar sangue,

enfraqueceu a mente; dá delírio na vida da pessoa - o delírio não é louco e não é certo da

cabeça, meu pai era assim.

Ele ficou ruim lá no asilo, deu câncer na boca - aquela chaga seca assim. De lá internaram pra

fora e logo morreu. Coitado do meu pai foi internado e lá ele morreu. Ele foi pra Franco da

Rocha - aquele lugar lá longe, lá onde opera câncer. Lá mesmo ele morreu. Três que foi

internado em Franco da Rocha morreram.

Eu vim do sitio tem vinte anos, mais ou menos. Fiquei sem o pai, a mãe, sem ninguém, paguei

pensão pra minha irmã. Quando eu vim morar na cidade, pagava pensão pra ela.

Eu “garrei” emprego de trabalhar de servente de pedreiro, daí passei pra aposentadoria,

quando peguei idade. Aposentei, não foi por idade, foi por invalidez, a aposentadoria não veio

pela idade certa. Foi invalidez que eu aposentei. É esse o salário que eu estou com ele.

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A riqueza maior foi a saúde, que Deus deu pra comer, e agora deu a casa aqui, porque foi feito

o papel.

Eu tava no galinheiro na casa da minha irmã, na Vila Nova. É um “predinho” em baixo, um

porão, tinha um portãozinho em baixo. Eu era assaltado naquele portão. Eu morava sozinho e

era assaltado pelos meus sobrinhos que moravam de par de mim, a família do meu sobrinho,

assaltava, roubava. O último roubo me levaram um milhão e duzentos. Perdi dinheiro, muito

dinheiro. Eu andei perdendo uns cinco milhão– um tanto roubado, um tanto perdi no bolso.

Morei muitos anos no porão e volta e meia “tavam” me roupando. A minha sobrinha achou eu

tava condenado ali. Tudo parente dela, gente dela. Não tinha como fazer nada porque a lei, a

lei não pode prejudicar uma criança de menor, quando rouba. Não pode, de jeito nenhum, não

tem lei que pode prejudicar. Não, tem. Uma pessoa rouba, mas se não tiver testemunha que

prove, não pode nem fazer parte. É uma coisa que a gente que é roubado fica no prejuízo.

Essa era a minha vida lá.

A minha sobrinha - que agora esta morando em Sorocaba, ela tem umas irmãs que falaram

que lá tinha emprego bom, ela foi e deu certo, agora esta trabalhando lá – então, ela que falo

“tio, agora lá no São Camilo, tão fazendo os predinhos se quiser eu falo com a Beth”. Ela até

levou o papel, “se quiser assinar, assina que eu levo lá. Quem sabe, se Deus ajuda, sai uma

casa lá pra você”. Eu assinei, ela já conhecia a Beth. Daí foi feito os papéis e deu certo pegar

a casinha aqui. Peguei os documentos da casa - os documentos eu tenho tudo guardado aqui.

E agora eu estou aqui contanto esses causos que passou na minha vida.

Agora eu estou nessa vida de regalo. De olhar aqui os outros que tá passando na rua, outro tá

lá na cidade, outro tá noutro lugar e prosear com os velhos murcho que nem eu mesmo. É essa

vida! Hoje não tenho necessidade de trabalha. É pescar, fiz um covo37 feio que nem eu

mesmo. Mas o feio tem direito de ir no rio pescar.

Eu pesco lá no forno Maringá, onde passa o trem de ferro - o trem de ferro é cheio de vagão e

corre por cima da linha, passa lá no Maringá. Eu pesco pra baixo, no rio que passa no

Maringá. A fábrica Maringá fazia cimento: queima, põe no forno, faz aquela “pedraiada”. O

                                                                                                                         37 Covo: armadilha rígida (não desmontável), de formato cônico. Esta armadilha consiste numa espécie de cesto comprido de verga, vime ou cana, com duas entradas e um endiche que orienta o peixe ao entrar e impede a sua saída. É fechado como uma rolha de cortiça com dois paus atravessados ou com uma tampa de vime. O peixe, atraído pela isca para o interior do covo, é incapaz de sair, sendo assim capturado. Fonte: http://www.geralforum.com/board/641/137701/artes.html (último acesso em 03/07/2013).

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forno é uma chaminé grande, ali vai não sei quanto de pedra - queima pra fazer o cimento, o

cal, tudo no Maringá.

Fala com franqueza, eu tinha amigo lá na Vila Nova, mas não era de tá chegando na casa

deles, de jeito nenhum. Não senti muita falta de lá porque, lá só alguma pessoa que eu ia

sempre visitar, gente velha que nem eu mesmo, casal velho, que sempre ia na minha igreja,

então eu visitava.

Eu vou mostrar a igreja. Olha aqui38, esse é o pessoal da igreja Triangular. Esse é o dia do

batismo da Santa Ceia. Agora vou na Assembléia porque é longe pra ir lá.

Minha irmã que mora lá em Sorocaba, é mais velha que eu, quase três anos. Tem um

retratinho dela aqui, “tá” com oitenta e sete anos - ela é mais velha que eu três anos. Essa aqui

é uma moça que limpava a minha casa - ela é faxineira e esse aqui é o amigo dela, casou com

ela.

Essa aqui é a minha irmã, ela já morreu também. Morreu mais velha do que a outra irmã. Esse

é o filho dela - que “tá” detrás. Ela é da Igreja Cristã, é filha da igreja cristã. Olha o jeitinho

dela, esta com uma banda preta nos olhos aqui. Ela ficou doente, “tava” na cama, levantou da

cama caiu, bateu a cabeça e “pretiou” os olhos. Foi na Santa Casa, fizeram tratamento, mas

em pouco tempo ela morreu. Faz anos que ela morreu.

Minha vida mudou bastante depois que eu vim viver aqui, porque eu estou na casa de Deus.

Agora eu tenho a casa, já estou mais sossegado, mais aliviado.

O povo tudo bom aqui. Não tenho “mau querência” com ninguém, não tenho desconfiança

com ninguém. Nada aqui, não tenho.

Só aconteceu o roubo aqui dentro da casa, por descuido meu. A gente quer ser sincero e tem

hora que esquece que tem que dizer:“não, eu não quero, não aceito”. Tava acabado o roubo,

mas eu concordei.

Veio três mulheres lá de Marília, vendendo colchão: “o senhor tem algum problema? Dor

nas pernas? esse colchão aqui é preparado pra curar as suas doenças tudo”. Me levaram na

conversa: “nós vende aqui, o senhor vai pagando a prestação”. Fez o preço de R$ 60,00 por

                                                                                                                         38 Me mostra algumas fotografias que carrega na carteira e outras em porta retrato.

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mês, que ia cobrar de mim. Mandaram eu assinar, eu assinei, pegaram o documento, RG,

assinei e levaram no banco.

Quando foi outro dia eu resolvi: “pô, caramba, onde é que eu tava com a cabeça, não era pra

tá cobrando isso. Eu devia no banco, o banco fez eu pagar juros três anos. E eu vou, de novo,

ficar num juros filho da puta no banco por três anos, eu não vou querer”.

Eu resolvi, daí falei pra Beth, contei pra ela: “eu resolvi, eu não vou querer aquele negócio

porque eu fiz errado, sem ordem da senhora, nem pedi ordem, chegou a mulher, quando eu

vi, me pegaram no pulo, eu fiz negócio, mas eu arrependi, eu não quero. Vai ficar muito

caro”.

A Beth disse: “Então, eu vou ligar lá, eles cancelam lá em Marília”. Cancelou, mas dai as

mulheres vieram aqui. Passou uns dias vieram aqui: “como é que é, o senhor vai ficar ou não

com o colchão?”. E eu: “ah, eu não vou ficar”. Trouxeram a amostra do colchão pra mim vê

e insistindo: “como é, nós fizemos essa viajem pra agora o senhor não querer o negócio? Pra

nós vai ficar caro. Como é que é isso então, o senhor não vai quer o colchão? Eu continuei

recusando: “Eu não vou querer”. E elas continuaram insistindo:“Diga, mas o que

aconteceu?”

Dai eu falei, “a Beth, que manda aqui, falou pra mim que eu fiz esse negócio errado, não era

pra ter comprado, vocês vieram por conta, entraram aqui por conta, fizeram negócio comigo,

e eu não prestei atenção no que ia fazer, eu fiz errado, eu errei de assinar, errei”. Então

disseram: “Então vamos lá na Beth, eu não sei onde tá essa Beth, vamos comigo lá prosear

com a Beth”.

Quando fomos lá na Beth elas disseram: “nós temos que ir lá no Banco, acertar lá no Banco

do Brasil.”. Ela falou: “você fica ai com essa mulher aqui eu vou lá falar com ele. Depois, se

ele chamar, você vai lá pra assinar que dai tá cortado, dai acabou, cancelou o negócio. O

senhor não quer o negócio, então, acabou”.

Mentiram pra mim e eu cai na mentira. Foi assim que aconteceu pra mim: assinei e quando

vou receber o pagamento “tava” descontado - estou com cinco pagamentos descontados. Cada

pagamento desconta R$ 122,00 - o salário sumiu, ganhava quinhentos. Fizeram um

empréstimo que pra eles não perde. Essa ai é a sacanagem e a gente caiu nessa “maiada”.

Então, isso ai eu falei pra Beth e ela disse: “agora o senhor tem que ir no PROCON”. Fui lá e

disseram ”já é tarde, era pra vim naquele dia, veio tarde já passou o prazo, não podemos

fazer nada mais aqui, nada, nada. Somente dá uma ordem: vai lá no advogado, lá na AOB, lá

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eles vão colocar um advogado pra você”. Fui lá acertei o negócio, nomearam um advogado e

já foi feito tudo os papel. O advogado disse “eu vou trabalhar nessa parte, vai demorar,

porque isso ai não é rápido, demora, mais vou ver se devolvem o dinheiro”. Ainda estou

pagando, do mesmo jeito, não cortaram nada. Se for três anos - o dinheiro que empresta no

banco vai mais de três anos pra pagar.

Ficou d’eles fazer o cancelamento, mas está parado. Não sei se é o advogado, o juiz - o

maioral compra, quem tem dinheiro compra. Em vez de dar dinheiro pra um pobre, vai dar

dinheiro pra um rico - se é pra dar um milhão pro pobre, vai dar três pro rico e não dá pro

pobre, é assim que eles fazem. E eu fiquei nessa mão, que situação!

Depois que vim viver aqui eu tenho mais amigos e ganhei a aposentadoria - há muito tempo

eu sou aposentado, mas pra mim não há dinheiro, com tanto roubo. Aqui eu estou segurando

mais dinheiro, dou ajuda lá na igreja, mas estou segurando dinheiro.

Tenho mais companheiros, aqui todos olham por mim. Muita gente que era estranho agora é

conhecido meu e esta me protegendo.

Está vindo uns médicos preparar a minha vida: um exame, uma coisa ou outra. Já veio uma

dentista examinar se eu queria uma dentadura - escreveram, pegaram o RG e o cartãozinho do

SUS, pra pedir uma dentadura. Tão fazendo tudo isso ai.

Não recebo visita da família é difícil. Gente que mora aqui na cidade é difícil de visitar,

porque ficaram diferentes comigo. O meu sobrinho que mora aqui no São Camilo podia, volta

e meia, vim me visitar porque mora pertinho, mas ele afastou de mim - esta na amizade, mas

afastou de mim e não vem me visita.

Ele ficou diferente comigo por que eu levei ele na autoridade - fiz queixa dele, porque ele

precisou de um dinheiro e eu emprestei. Ele tirou do banco o dinheiro emprestado, daí ele ia

pagando, o ordenado que ele ganhava ele ia pagando, todo mês dava R$ 100,00. O dinheiro

ficava lá no banco, eu recebia o pagamento com desconto de R$ 100,00 porque eles cobram

juros. Ele pagou o capital e começou pagar os juros, mas começou pagar e pagou só três

meses de juros e o resto ficou - R$ 900,00 e não pagava. Varou tempo e não ia pagar, dai

chamei a autoridade pra acertar o negócio com o juiz, pra não haver briga. Ele foi chamado e

pagou, foi pagando por mês, pagou tudo o que devia, mas não ficou com amizade comigo,

afastou de mim - não gostou.

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Ele pagou tudo certo e me falou “Eu também chamei o meu patrão lá na autoridade”. Ele

recebeu e não contou nada pra mim, ficava quietinho, queria dar um “tombo” em mim. Eu

precisava do dinheiro, porque eu paguei o banco e agora ele não queria me pagar. Ele não

ficou gostando. Então ele ficou diferente comigo. Eu vou na casa dele, vou lá passear, nas

festas, mas não tenho prazer de ir passear lá, nada...

Tem outros sobrinhos que também queria emprestar dinheiro. Eu já estava escaldado e disse

“Ah, eu não vou lhe arrumar João”, ele é irmão do Dalto: “não vou lhe arrumar porque eu

já sou escaldado com o seu irmão, deu sofrimento duro e eu vou arrumar pra cair na nota

boa?”. E ele insistindo: “mas eu vou pagar você certo. Pago certo, porque saiu um emprego

pra mim e eu tô devendo, tô rebocado de divida. E falaram que se eu pagar tudo as coisas,

limpar as contas, eu vou entrar no emprego e vou ter uma cesta básica grande”. Eu só

repetindo: “mas eu já tô escaldado disso ai, eu vou dar nota boa de novo, mais outros três

anos?”. Eu não arrumei e ele não gostou. Daí, passa uns dias, foi o roubo: um milhão e

duzentos - foi o próprio filho dele.

O filho dele usava crack - aquela droga. Arrebentou as fechaduras e pegou o dinheiro, dentro

da casa. Eu fui deitar, de dia, deite e dormi com a porta aberta. Passaram a mão na carteira,

levaram os documentos e tudo, tudo careceu tirar outro.

Esse foi um milhão e duzentos que saiu com tudo os documentos, mas, antes já tinham

roubado muitas vezes; a criança - filha do meu sobrinho - pegou e ele tolerou o roubo.

Outra vez eu tinha um milhão e duzentos - fui pagar um talão de luz. Quando sai de lá, que

paguei o talão de luz, eu estava com o bolso da calça um tanto descosturado, “ponhei” o

dinheiro e vazou. Não vi, foi bem na calçada, do lado de dentro assim. Nós “tava” proseando

com os colegas e uma mulher que vinha atrás de mim gritou “oh, não foi você que derrubou

aqui?”. Eu tava proseando, nem dei bola. Fiquei quieto e ela proseou, proseou. Veio a

mocinha, proseou com ela e sumiram. Dai o rapaz disse: “mas você não atendeu aquela

mulher, ela falou se o senhor não perdeu alguma coisa”. Eu enfiei a mão: “perdi o dinheiro,

um milhão e duzentos, uh caramba derrubei, o bolso da calça tava descosturado, eu ponhei o

dinheiro vazou tudo”.

Na hora que eu paguei ela estava lá pagando o talão dela também. Ela percebeu que eu

derrubei, mas a mocinha tirou ela e sumiu. Esse ai é um roubo.

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Mas não é roubo porque eu que derrubei, como é que eu vou processar ela? Dizer fui roubado.

Não fui roubado, eu que derrubei do bolso e ela achou. Eu ia ter jeito de processar? Chama a

autoridade pra chamar ela? Não tinha jeito. Não tem...

A única falta que eu sinto é da minha irmã que foi pra Sorocaba, eu me dou com ela. Com

tudo que ela dá de desprezo na minha vida, por causa que sou muito relaxado, sujo, não tenho

asseio - ela fala na minha cara isso tudo.

Não é que eu esteja falando mal dela, é que ela quer ser muito “asseadinha” e quer ver todo

mundo no caminho do limpo. Eu fumava, era fumeiro, bebia, tudo isso eu larguei mão, mas

ela não gosta de ver...

Não uso mais as drogas que eu usava. Não droga daqueles traficantes, não, mas de fumar e

beber. Não bebo e não fumo há muitos anos, tudo aquilo eu deixei.

Mas ela fala, d’eu pescar. A pessoa que vai no mato pescar, às vezes, soa, fica com mau

cheiro na roupa, então ela quer que eu tome banho, sabão, limpeza, capricho. Se a pessoa vai

na igreja, Deus quer limpeza, não quer que seja suja.

Ela vai na Igreja também, então ela compreende. Ela é uma pessoa excelente, me fala: “Se

limpe; limpar um pouco da sujeira, que é imundice”. E tem a imundice do pecado que é outro

tipo de sujeira.

Com tudo isso eu sinto saudade, tenho amor por ela. Eu não sinto bem se eu for pra Sorocaba

ficar junto com ela, não sinto bem, porque ela quer distância d’eu.

Ela diz que se dá comigo, quando ela vinha pra cá eu emprestava um dinheiro pra ela pagar

um talão de luz, de água. Tudo essas coisas eu fazia pra ela e faço até agora. Agora mesmo

deixou um talão pra pagar pra ela.

Ela veio só duas vezes me visita. Dá trabalho pra ela vim, por que ela foi operada dos ossos.

Às vezes ela vem pra Itapeva, se instala na casinha dela, e eu vou visitar. Ela tem casa aqui,

não puderam vender, então, tem que alugar.

Então é assim, eu me dou com ela. Com tudo ela ser ruim pra mim, mas eu me dou. Eu sinto.

A gente se dá com a pessoa, tem amizade, nem que seja maltratado, a gente quer bem.

Eu me considero velho porque já sou de idade. Como vê a palavra está no registro, no

documento e na idade da gente. A gente sente, não tendo aquela energia que eu tinha de

moço. Eu já tenho canseira no corpo, tenho cansaço na perna.

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Tenho canseira, “tremimento” na perna - passo gelo, às vezes, faço “andada” - como fiz

andada ontem, mas sinto canseira. Subir uma subida ataca o cansaço no colo. Tomo remédio

pra bronquite. Acho que prejudica, é isso que eu acho.

Não imaginava que ia viver tanto tempo. A gente não sabe o dia que morre. Porque nós não

temos o dom de saber o dia que morre. Algumas pessoas me dizem: “O que você vai fazer

com o seu dinheiro quando você morrer? Você deixa de comprar um móvel, uma coisa que

você pudia ter na casa, pudia ter mais coisa pra aparecer na casa”.

Mas eu pergunto: “o que eu vou fazer com esse móvel? Eu não sei o dia que Deus vai me

levar, eu compro hoje, amanhã pode Deus me levar, o que eu vou fazer com o móvel? Não faz

mais nada.Então tanto faz ter um móvel na casa como o seu dinheiro, a pessoa não leva, não

leva nada.

Eu não tinha esse armário, o armário de cá é usado, o outro eu comprei lá na casa que vende

roupa usada. Comprei pra ter, porque não tinha armário. O armário que eu mandei fazer é esse

armarinho velho, era pequeno pra ponha as coisas. Agora vasilha, uns deu vasilha pra mim.

Cadeira, essas cadeiras não são minhas. A minha sobrinha que deu. Não é meu, eu não

comprei ela que me deu. O sofá a mulher de baixo comprou do homem e me deu de presente.

Esse outro foi a mulher do João, minha sobrinha, que me deu, porque fizeram o roubo de

mim, se favoreceram do meu dinheiro. Eu sei que é errado, sei que está lá o roubo, mas me

deram de presente. É velho mas serve, tá bom. É presente que eu peguei.

Lá no quarto, o guarda roupa foi a minha sobrinha que me deu, agora esses dois armários eu

comprei.

Eu imaginava que ia morar no asilo, pros outros cuidar na minha vida. Porque parente, às

vezes, não tem jeito da gente se enquadrar com parente, “fugenta”, às vezes, tudo por causa

do parente. Acho melhor “ponhar” no asilo, eu não quero esse sofrimento. Ninguém quer

sofrer.

Hoje eu não estou sofrendo, eu sofro de solidão. A gente sozinho é solidão. Porque, repare

bem, se você mora sozinho você não tem com quem prosear. Não é solidão?

Se você esta acostumado num lugar, lá tem a vossa vida, e vem morar aqui, ficar sozinho,

você não vai ficar abatido? Vai ficar atacado de nervo, aborrecido, não tem quem prosear,

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nada. Não fica triste? Nem que tenha dinheiro no bolso, que tenha tudo o que comer, não fica

nervoso? Quando eu tô nervoso vou pescar.

Quando se sente só, vai pescar.

Quando sente fome tem que fazer comida e comer.

Se sentir sede vai beber água.

Se sentir frio vai dormi, pega a coberta.

É isso ai, dê o remédio!

Eu vou no rio pescar, se eu quiser pousar lá eu pouso.Se eu quiser deitar e ficar lá pescando,

eu pesco. Fico lá, já fiquei várias vezes no rio, não tenho medo!

Teve noite d’eu ir pescar sozinho, não ter um companheiro junto comigo - lugar feio lá do rio.

Deitava, mas não dormia porque é uma friagem, você pode fazer fogo na beira do rio, mas

não pegava nada. Tinha vez que eu armava a rede, o anzol, tinha um plano: “eu vou pousar

quem sabe eu pego o peixe”, mas o plano não dava certo, só sofria.

Se eu pudesse mudar, eu mudaria que dai ficava novo. Acabava o velho e ficava nova

criatura. Mas não tem esse remédio. Não existe porque tá no Salmo 90: depois dos 60 anos, só

ruga, franja, cai os dentes , “abranca” o cabelo, vem ruga, vem tudo. Vem doença, vem

cansaço, só Deus sabe!

Se eu voltasse a minha vida, a mocidade, a nova vida, podia ver uma mulher, de aparência, ai

mudava a minha vida. Já vinha alegria, prazer, tudo normal. Mas, depois de velho, já não

pode mais pensar neste ponto.

A vida mudou, não é mais aquela vida antiga. De primeiro, o causo antigo que eu vou contar,

é o causo do tempo dos antigos: Uma moça, pra namorar um rapaz, não era estar se beijando,

se abraçando, como na televisão. Tudo que passa na televisão as mocinhas de agora já esta

aprendendo, já estão com os olhinhos em cima. Nasce uma criancinha nova e já sabe tudo que

quer. Quando esta maior a moça fica grande já sabida de todas as coisas. Namora agarradinho

- de primeiro não era assim.

O rapaz chegava na casa pra namorar, aqui tava a moça, ele sentava no banco e outra mulher

olhava a moça pelo buraco, fazia um buraquinho pra olhar. Se achasse que estava bom falava

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pro pai: “aquele moço serve”, dai já arrumava o casamento. O rapaz casava sem conhecer a

mulher. Era assim, casava.

Casava e faziam vida. Mas agora já diferenciou. Agora, as mulheres maduras pegaram o

mesmo fogo das meninas novas, a mesma sabedoria.

Eu vou contar um causo você não se aborreça, eu “to” aqui na minha casa, o que vem na

minha boca eu vou falar. Então, tinha um rapaz que tava namorando uma moça e sei que

aqueles tempos usava levar presente pra moça.

Fica até feio contar, mas é verdade, é um acontecido. O rapaz levava o presente pra moça, pra

agradar, e ela pregou a boca nele, xingou, destratou. O pai da moça atropelou o rapaz,

atropelou atropelado.

Ele foi na padaria, comprou um pão, aqueles tempos usava um pão cumprido assim, grosso.

Embrulharam o pão e a calça do homem era de bolsão cumprido. Ele pegou o pão, enfiou no

bolso da calça e sentou. Aquele pão ficou levantado assim e a moça olhou nele, com aquele

pão, correu dele.

Ele disse: “vem aqui, você tá correndo de mim, porque isso? Eu vim aqui pra nós namorar,

prosear, você sai correndo de mim. Aqui tudo é vosso”. Bateu no pão perto do pai da moça.

Esse caso aconteceu, aconteceu mesmo, não foi comigo. A moça não quis nem saber, dai o

pai atropelou: “pode sumir daqui. Suma, suma, eu não quero nem saber de você”. Perdeu o

casamento por causa de um pão. Era simples o coitado, ele apanhou por ser simples. Gente

simples vai fazer qualquer coisa de beneficio, uma alegria, perdeu a moça.

E outro também aconteceu quase igual: o rapaz estava namorando a moça - mas aquela

vergonha - e foi comer na mesa. O chão era liso, que nem aqui, muito liso, e foi pisando aqui,

pisando ali. Ele foi correr da moça, foi desviar da moça porque tinha vergonha, medo, e nisso

escorrega o pé dele. Soltou na mesa, caiu tudo as coisas. Passou outra vergonha, derrubou

tudo a comida. Não casou também, atropelaram ele.

São três caso que eu vou contar.

O último foi o rapaz que o pai não deu educação pra ele. Cresceu deseducado desde novo,

desde criança. O cipó, corte enquanto é verde, se tiver seco não corta, ele quebra. O guri falou

pro pai: “pai você devia cortar eu quando eu era verde, agora quer cortar eu depois de velho,

já tô grande, tô seco”.

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O pai aconselhar o filho que fez muito mau feito na casa: ele tava almoçando pegou o osso

derrubou no chão. Não era pra derrubar o osso. Era pra “ponhar” em cima, por causa do

cachorro. Os cachorros brigaram, brigaram por causa do osso, derrubou a mesa que tava as

comidas, o pai deu um...

Mas ele não aconselhou. O pai era pra aconselhar o filho antes de acontecer isso: “Quando

vai comer na mesa, o osso você não põe no chão, põe em cima, lá numa vasilha. Cachorro

briga, faz sujeira na casa”. Então, ele não aconselhou, mas ele ficou triste com o pai,

aconselhar depois de velho. Passou vergonha. E aconteceu isso. Bom, esse ai já é o fim do

caso.

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Seu  Antonio  de  Paula  Galvão39

Eu sinto saudade do sitio, de estar no sitio, o que eu queria mesmo era estar no sitio. Aqui esta mil maravilhas para mim, mas eu queria estar num sitio plantando e criando alguma coisa.

Antonio de Paula Galvão: 75 anos: julho 2012.

A gente nasceu no sítio, mas depois quando tinha 17 anos, fomos morar no sertão, lá no

Paraná. Lá tinha tigre, anta, tudo quanto era bicho, até virei caçador, matava porco do mato. O

lugar era chamado de Sertão do Portunã, antes de chegar lá tinha uma cidadezinha, Coronel

Marquês de Abrante, onde a gente fazia compra.

Fomos fazer lavoura, meu pai tinha vontade de fazer roça, cultivar uma área. Como lá era

sertão, as terras não tinham dono, era tudo terra devoluta. Então fomos para lá com esse

interesse. Éramos tudo gurizada pequena, pra derrubar um pau, da grossura de uma geladeira,

levava quase meio dia. Não conseguimos fazer a lavoura, não pudemos cultivar, paramos.

Saímos de novo de lá para cá, eu vim pro comercio.

Somos em oito irmãos, duas já são mortas. Tem uma que morreu, mais ou menos com três /

quarto anos de idade e a mais nova deu derrame, ficou 10 anos na cadeira de roda e morreu. A

gente saiu para o comercio aqui em Puma no Paraná, na divisão de São Paulo, é uma empresa

de mineração - prata, ouro. Entrei lá em 1964.

Me casei lá no sitio, em 1963, minha ex mulher é do Paraná também. Nos casamos eu tinha

vinte e pouco anos. Temos 8 filhos: cinco homens e três mulheres. Moramos em

acampamento e, depois que sai dessa firma, viemos para cá. Morei um ano em Apiaí, depois

me mudei pra Itapeva em 1981. Meus filhos já eram grandes, já me ajudavam a fazer

construção: eu marcava obra e os dois mais velhos levantavam a casa.

Minha família é grande, na hora que junta tudo dá uma festa. Tenho umas irmãs que moram

aqui na Vila Nova e os outros irmãos também estão tudo aqui em Itapeva

Tenho dois filhos que moram em Curitiba e outro no Amazonas, eles estavam na Inglaterra e

vieram embora para o Brasil. Um deles lida com esse negócio de exótica, couro de peixe.

Abriu uma empresinha e manda o couro de tilápia, couro de peixe curtido, manda bolsa,

carteira – são a coisa mais linda – de couro de peixe, manda tudo pra Inglaterra.

                                                                                                                         39 Entrevista realizada em 25.07.2012 às 14h, com Antonio de Paula Galvão; 75 anos de idade; Escolaridade: primário (até 4ª série). Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h01min20seg; Local da entrevista: casa do colaborador.

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Os outros moram aqui - três filhas e dois filhos. O mais velho, Aildo Magrão, se candidatou a

vereador. Tem outro, coitado, que ficou doente do rim e perdeu os dois rins. Tem que fazer

hemodiálise três vezes por semana, tenho dó dele, mora na Vila Nova também. Eu sou

divorciado e a mãe deles também mora na Vila Nova. Volta e meia estamos juntos, nos

aniversários da criançada.

Eu morava no Sítio, no Pilão D’água, pertinho daqui – são 20 minutos de pé pra vir aqui no

Centro. Morava no sitio de um japonês, fiz uma casinha pra mim. Lá eu fazia plantação no

quintal: verdura, feijão, mandioca, milho, era um terreno grande de 200 metros. Todo

fechado.

O dono do terreno morava aqui na cidade. Lá só tinha o barraquinho de madeira que construí.

Agora ele vendeu, na verdade, desde que entrei lá, a intenção dele era vender. Eu não pagava

aluguel porque fui eu mesmo que fiz o quarto - o barraquinho. Ele também não pagava nada

pra eu olhar o terreno, ficava elas por elas. Lá a gente tinha água de mina, não precisava pagar

água. A energia eu puxava da casa de uma sobrinha minha que morava do outro lado. Pagava

quinze reais por mês.

Eu cuidava do terreno e tinha um rapaz que eu sempre pagava para fazer o serviço mais

difícil. Agora até o coitado morreu. E era assim, o serviço que não podia fazer pagava para ele

fazer. Lá fiquei dois anos até que o dono me falou que iria construir, e então iria fazer uma

casa pra colocar o pedreiro. Eu então pensei: “está pedindo a casa para colocar o pedreiro”.

Eu vim na cidade, na casa da minha filha, e falei “eu tenho que arrumar uma casa aqui na

cidade porque o japonês parece que vai usar a casinha”. Daí ela falou sobre esse projeto, ela

trabalha na prefeitura há 23 anos e sabia do projeto. Ela me disse: “Porque o senhor não vai

na assistência social, eles estão fazendo umas casas, a Vila Dignidade, da CDHU, não sei

como é mas estão dando casa para os idosos”.

Na mesma hora eu fui lá, era pertinho. Cheguei e uma moça chamada Milena me atendeu. Eu

falei que queria fazer inscrição para ganhar a casa que eles iam construir. Já tinha essas 18

casas, já estavam no jeito pras pessoas entrarem – eu achei que iam construir mais.

Aconteceu o seguinte: ela pego papel e caneta para fazer a minha inscrição, olhou no

computador, pensou um pouco, não me falou nada, levantou e disse: “o senhor aguarde um

pouquinho”. Saiu da sala e foi falar com a gerente, a Beth. Quando ela veio de lá, me disse:

“O senhor estará na sua casa agora de tarde?”. Eu disse que sim e ela: “Então nós vamos lá

tirar fotos da sua casa”. Neste momento ela não me contou que eu tinha ganhado a casa.

Tinha uma pessoa que tinha desistido, por causa de um gato, tinha muito amor no gato e aqui

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não pode ter animal. A pessoa desistiu e então uma casa estava vazia. Nem tinha inaugurado

ainda.

Eu fui embora e, de repente, o celular tocou, já era ela me ligando. Perguntou: “onde o senhor

está?”. Eu falei: “Eu estou aqui na esquina da rua da CCE, descendo”. Ela disse: “o senhor

espera aí que nós vamos agora na sua casa tirar foto”. Esperei ali, me pegaram e fomos tirar

foto do “barraquinho” de madeira. Ela tirou as fotos e disse: “O senhor foi contemplado”.

Nossa aquilo me arrepiou!

Em um dia, na hora, resolveu a minha vida! Ela disse: “Tem uma pessoa que desistiu da casa

porque tem gato e tem muito amor. Como lá não pode ter animal ela desistiu da casa e vou

passar por senhor”. Poxa vida eu quase desmaie. Nossa! Foi uma beleza.

Ela já marcou reunião para eu freqüentar. No dia da inauguração veio o governador e mais um

bando de autoridade, das cidades vizinhas, para ver o projeto. Daí foi se caminhando e eu dei

uma passeada, fui pra Curitiba, estava demorando um pouco para avisar para a gente vir. De

lá liguei para a Milena e ela falou, “pois é seu Antonio, nós fomos ontem buscar sua

mudança”. Eu estava em Curitiba e disse: “então vou embora amanhã”. Cheguei aqui na

quarta feira, foi na quinta ou sexta, não lembro, fizeram a mudança

Não tinha muita coisa pra trazer. Eu só tinha fogão, geladeira - uma geladeira branca, que

estragou, ai comprei essa. Eu não tinha cama, guarda roupa, sofá - o sofá eu comprei aqui -,

não tinha guarda louça, mesa, não tinha nada. Fui comprando aos poucos. Essa mesa

grandona eu comprei por causa da criançada, quando eles vêm enchem a casa.

Quando aposentei trabalhava na construção. Eu estava trabalhando em Santa Catarina,

fazendo três casas lá. Estava meio doente e vim embora pra me tratar aqui. Acabou me dando

derrame, ainda bem que eu tava na Santa Casa - já me pegaram na maca e me internaram.

Deu começo de derrame, eu até manco de uma perna, mas o problema não foi o derrame, foi

um erro médico. O médico mandou pôr uma injeção muito grande, me aplicou uma dosagem

maior. De certo, subiu o nervo e acabou me dando começo de derrame. A injeção era pra

baixar a pressão e nem precisava ter tomado porque a pressão estava 18 por 10, qualquer

comprimido já resolvia.

Cinco muitos depois que eu tomei a injeção foi amortecendo tudo. Não pude retornar

andando, tive que ir de maca, apareceu um monte de médico, foi um susto. Daí parei de

trabalhar porque me tirou a força do quadril e o braço ficou com seqüela.

Por causa disso me aposentei, mas não aposentei na construção civil porque eu “avacalhei”

um pouco na contribuição do INSS e não deu para completar, no momento da aposentadoria,

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o tempo de serviço. Pra aposentar eu fui pra Curitiba, por que o médico daqui negou quatro

vezes a assinatura da minha aposentadoria. Fui pra Curitiba porque lá é mais fácil, o médico

aprovou na hora que viu a pericia.

Na construção civil eu trabalhei uns vinte e poucos anos, mas era uma época que a construção

civil não tinha valor, pedreiro não tinha valor. Trabalhava um monte, fazia um monte de

serviço e não tinha preço, poxa vida! Andei pelo Rio Grande do Sul, por Santa Catarina,

andei para Minas Gerais. Eu trabalhava por conta, até trabalhei em muitas empresas, em

Curitiba, São Paulo, Sorocaba, trabalhei em firma também, mas por fim eu estava trabalhando

por minha conta.

É um trabalho que desgasta e a gente se machuca naquele sobe e desce de andaime, nossa!

Chegou um ponto que não agüentei, por isso vim de Santa Catarina, larguei o serviço lá

porque não pude fazer, muita dor na coluna, muita pressão alta.

Eu e minha mulher ficamos uns vinte anos separados “bocalmente” - separados sem divórcio.

O divorcio mesmo eu fiz o ano retrasado, dia 18 de março, do ano retrasado [2010]. Tinha

esperança de ela voltar atrás, mas não deu mais. Ela tinha costume diferente do jeito que eu

queria e a gente não se resolvia. Eu tinha vontade de arrumar outra. Ela não arrumou

ninguém, disse que não queria homem, não arrumou até agora. Ficamos uns 30 anos juntos,

talvez não dê bem 30 anos.

Minha mudança de lá da casa para cá foi tranqüila, senti um pouco de falta do sitio, porque eu

gosto de sítio, gosto de lidar com terra, plantar verdura. Aqui tem uns pezinhos de planta, no

jardim de trás.

Estou lutando para ver se consigo alguma coisa da herança do meu avô. Ele tinha bastante

terra, acho que são 60 alqueires. Parece que custa cento e cinqüenta mil o alqueire de terra

reflorestada, do jeito que está. Sessenta alqueires vai dar um bom dinheiro, mas não é tudo pra

gente, tem mais herdeiro. Tem bastante gente pra dividir.

Se for para vender no preço que o advogado de Curitiba falou dá muito dinheiro. Acho que

pro meu pai vai ficar uns 10 alqueires, mais ou menos. Meu avô teve seis filhos, então são 10

alqueires para cada um, vai dividir em seis pedaços - quem tem filho vai dividir entre seus

filhos. Meu pai teve oito, então, a parte dele seria dividida entre os irmãos, mas eles me

falaram que não querem.

Penso que o dinheiro vai dar pra comprar um “sitiozinho” pra ter uma plantação. É muito

bom mexer com as plantas, é uma terapia a gente ficar respirando o oxigênio da mata, nossa é

uma beleza! Semear aqueles canteiros, ver nascer e ver crescer, é uma beleza! E quando chega

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a fartura, a gente lava a cara de comer mandioca, tudo quanto é coisa. O que a gente planta é

muito mais sadio e tem mais sabor, porque a gente não coloca nada de agrotóxico.

Estou morando aqui desde o dia 22 de abril de 2011, tem pouco mais de um ano. Foi

tranqüilo me adaptar aqui, apesar de sentir muita saudade do sitio. Eu estava acostumado,

tinha um monte de galinha, cento e poucas cabeças. Nossa, tinha ovo caipira que era uma

beleza! Pra vim pra cá tive que vender, matar e algumas eu dei pro pessoal. Eu tinha um

galinheiro no cumprimento dessa casa.

Eu sinto saudade do sitio, de estar no sitio, o que eu queria mesmo era estar no sitio. Aqui está

mil maravilhas para mim, mas eu queria estar num sitio plantando e criando alguma coisa.

Eu mesmo limpo minha casa, só paguei um dia para minha filha vim limpar e lavar, mas

agora esses dias vou ter que arrumar uma pessoa. Eu gosto da coisa bem caprichada, eu gosto

mesmo. As pessoas que vem aqui falam que parece que tem uma mulher morando aqui. Fui

para Curitiba, fiquei 10 dias estava muito frio, dei graças quando cheguei aqui, abri a porta e

entrei pra dentro, quando recebi o calor da minha casa.

Me fez muito bem ter vindo pra cá, porque, tirando a saudade, aqui, no começo, eles tinham

proposta de nós não pagar água e luz, então era sem pagar nada. Depois passaram a cobrar a

luz, passaram o talão no nosso nome. Só que eu fiz baixa renda da luz que eu estou pagando e

vem zerado. Agora, esse talão que veio anteontem veio 23 reais, é de diferença que eles vão

reunindo, mas estava vindo zerada. Tenho certeza que pagando esse, vem zerada de novo.

Então, eu não pago nada aqui, vou pagar agora 23 reais que é mixaria. Mas no começo nós

estavamos pagando até caro, chegava até mais de 50 reais. Essa é uma coisa boa de morar

aqui.

Eu estou muito feliz, nossa, eu fico sozinho, mas a gente se conforma. Às vezes dá uma

olhada em alguma namorada, mais não é definitivo. Eu to querendo ver se arrumou uma, até a

Maristela, que é a nossa enfermeira padrão do postinho, ela falou assim: “o Sr precisa

arrumar uma companheira”, a Milena também fala.

Eu sempre penso em ter uma namorada. Eu vou passear sempre na casa dos parentes, tenho

bastante parente. Inclusive tem uma prima, uma sobrinha minha, que nós já tivemos um

namoro, mas agora ela está com outro. Volta e meia eu ligo para ela e ela liga para mim. Eu

tenho um papo com ela, vamos ver o que vai dar. E ela é bonita, eu nem mereço.

Meu relacionamento com os vizinhos daqui é tranqüilo, eu quase não me misturo com eles,

porque, não é que eu queira ser mais do que os outros, mas é que a gente tem um principio,

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um fundamento de religião, a gente lê a bíblia e acha escrito que não deve se misturar com

pessoal assim... mas não que eu queira ser mais que os outros, é pra se preservar.

Sigo a Igreja Adventista do Sétimo Dia e tem umas passagens, eu li umas passagens que não

pode se associar com beberrão, comedor de carne. A gente come carne, mas lá de vez em

quando, um pedacinho, mas não assim de fazer festa, churrascada. Até tem uns da família que

fazem essas festas assim. Mas minhas filhas quase não comem carne, comem muita pouca

carne. Minhas três filhas e minha ex mulher freqüentam essa igreja.

Então é isso aí, a gente tem uma vida assim, eu não quero mal de ninguém e também não faço

jeito de querer as coisas mal para mim. E eu entrei muito bem aqui. A gente ora tanto,

pedindo para Deus que controle nossa vida, a gente tem uma vida de cristão.

Eu tinha vontade de ter um cachorrinho aqui, mas não dá. Outra coisa que falaram é que a

pessoa que quiser casar vai ter que casar com uma mulher de mais de 60 anos, se casar com

pessoa nova é perigoso perder a casa.

Essa casa não é minha, mas até a gente apitar na curva, como diz o ditado do pessoal, posso

viver aqui, a gente fica tranqüilo.

Eu até admito que sou velho, mas não muito, porque eu tenho espírito de mais novo, embora

agora eu esteja mancando. Saio por ai mancando, mas eu vou para toda parte. Aqui tem um

problema: o pessoal passa lá na rua, às vezes, gente que vem visitar aqui diz: “vamos lá

visitar os velhinhos”, é muito diminuído, sendo que a gente está com um pouco de gás ainda.

Eu acho essa parte ruim. Até falei pra uma que eu estava meio de olho nela, é da igreja

também, ela vinha aqui fazer culto comigo, eu falei para ela, ela estava meio investigando eu.

Nós estavamos ali nos aparelhos, eu falei pra ela que esse ponto de vista fica ruim pra nós que

ela fala: “Ah, nós vamos lá visitar os coitadinhos dos velhinhos”.

Quando converso com as pessoas conto com muito orgulho que moro aqui, todo mundo acha

que aqui é uma maravilha. E aqui é muito adequado para os idosos.

Todo dia, a cada minuto estou envelhecendo. Aqui eles falaram que depois que a pessoa ficar

velho que não possa fazer mais nada eles levam para o asilo, se a família concordar. Esses

dias estava pensando que, de repente, é melhor ir para o asilo do que ficar perturbando a

família. Eles trabalham e tem a cabeça deles, o mundo deles é outro, então, a gente velho já é

um trem fora da linha pra eles. Se for preciso, não acho ruim morar num asilo, só se os filhos

não quiserem que eu vá e arrumem um jeito de me cuidar.

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O futuro, é difícil pensar, é o que eu falei, arrumar uma companheira. O difícil é arrumar uma

de 60, a gente está precisando de uma para cuidar da gente, uma de 60, às vezes, está pior que

gente.

Tinha uma aqui que queira casar comigo, só que essa pessoa tem dor aqui outra lá. Nós até

tinha uma amizade, ela estava aqui ou eu estava na casa dela, mas ela só fala mal dos outros.

Tudo quanto é coisa ela acha defeito nos outros e pra mim não serve pessoa assim. Eu não

quero falar mal de ninguém. E ela fala que é de outra igreja. Agora, ela não dá um

testemunho, o testemunho dela é péssimo.

Eu sempre tenho medo de fraquejar na fé, tem alto e baixo na vida e, às vezes, com uma

tentação qualquer. Então sou muito cuidadoso nisso aí. Não é que eu tenha medo, porque sei

que Deus não vai me deixar fazer isso e, se acontecer, a gente tem volta depois. A Bíblia fala

assim: “não pequeis”, mas, se pecar tem advogado do justo lá no céu, então, ele é nosso

advogado, nosso criador que vive no comando. Tenho muita fé que isso não vai acontecer.

Deve ter uns vinte e poucos anos que freqüento essa Igreja. Eu era católico, depois me

converti na Assembléia, quando morava no Paraná, mas não gostei, por causa de muitas

coisas que eles não observam nos Dez Mandamentos da lei de Deus. Por esse motivo eu saí e

fiz estudo com adventistas, creio numa verdade. Eu já li a bíblia toda, de cabo a rabo,

inteirinha. Nós fizemos o ano bíblico, passamos o ano inteiro lendo a bíblia. Comecei no livro

de João e fui até o fim. Voltei no livro de Gêneses, que é o primeiro livro, e cheguei até os

Salmos, e voltei de novo, estou começando outra vez.

Toda vez que começo aprendo coisas novas. Aprendo como Deus quer reger o povo aqui na

terra, o fundamento que a gente tem que acatar para ter a salvação. Por que existe a salvação

para cada um de nós, se crermos no sacrifício de Cristo e obedecermos aos Dez

Mandamentos, esse é um ensinamento para nós.

Os Dez Mandamentos já falam como tem que ser nossa convivência no mundo. O Primeiro

Mandamento diz: “Não terás outros Deuses diante de mim”. Não ter o dinheiro, não ter uma

imagem, não ter qualquer coisa no lugar de Deus, por isso Deus diz: “Não terás outros

Deuses diante de mim”.

O Segundo diz: “Não farás para ti imagem de escultura”. O povo vive fazendo imagem,

adorando imagem, isso é pecado. Fazem imagem de cimento, de madeira e dizem que é santo,

mas não é, e é pecado chamar aquilo de santo.

O Terceiro Mandamento diz: “Não tomaras o nome do Senhor teu Deus em vão”. As pessoas,

por qualquer coisinha dizem “Meu Deus do Céu, Deus me livre”. Estão tomando o nome de

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Deus em vão; às vezes não é preciso e a pessoa chama o nome de Deus em vão. Não pode, é

pecado.

Aí vem o Quarto Mandamento: “Lembra do dia de sobra para te santificar”. Seis dias

trabalhado, mas o dia de sobra é o teu dia. Deus diz que não é pra fazermos obra nenhuma no

sábado porque ele fez o mundo em seis dias, no sétimo dia ele não tinha canseira, mas

descansou, abençoou e santificou. O único dia santo que existe na bíblia é o dia de sábado.

Aos sábados vou na igreja. Começa às 9hs a escola sabatina, 10 e pouco começa o culto

divino - o pastor falando e explicando -, termina 15 para meio dia, é quando a gente vem

embora. Tem culto às 8 horas da noite nos domingos e quartas, mas eu não vou, antigamente

eu ia, mas agora estou meio “cansadão”. E quando acaba já é tarde pra gente vim embora.

O Quinto Mandamento diz: “Honra teu pai e tua mãe para que você prolongue os seus dias

na terra”; o Sexto: “ Não matarás”; o Sétimo: “Não adulterarás” - se você tem a sua mulher

não pode cobiçar outra. Ai vem o Oitavo Mandamento que diz “Não furtarás” - não roubar.

Nono Mandamento diz para gente “Não dirás falso testemunho contra teu próximo”, às

vezes, a gente recrimina uma pessoa por fazer uma mentira: “fulano fez isso, aquilo”, não

dirás falso testemunho contra teu próximo

E tem um mandamento que Jesus falou, “Amar o próximo com a ti mesmo”, mas amar à Deus

sobre todas as coisas. Esse não está nos Dez Mandamentos, está em outra parte, foi Jesus que

falou isso. Encerra os Dez Mandamentos dizendo: “Não cobiçarás a casa do teu próximo,

nem a mulher do teu próximo, nem teu servo, sua serva, nem coisa alguma que pertence ao

seu próximo”, esses são os Dez Mandamentos.

Agora, tem o pessoal que está com a bíblia na mão e não sabe discernir, por isso que é bom

estudar, as pessoas lêem e não compreendem. Leia a bíblia e os Dez mandamentos e pesquise,

a única igreja a guarda o sábado, como está escrito - e Deus não mandou ninguém escrever,

ele mesmo escreveu com o seu próprio dedo nas taboas de pedra, escreveu em pedra para

nunca se acabar.

O povo fala que foi abolida a lei de Deus e não foi, porque tem duas leis: a lei cerimonial e a

lei moral, que é essa dos Dez Mandamentos. A cerimonial é aquela: Jesus não tinha morrido,

e o preço da salvação do ser humano ia custar preço de sangue e era o sangue dele, então,

cada dia 10 do sétimo mês do ano, era o dia da expiação dos pecados. Cada um levava um

cordeirinho, um pombinho, um cabrito, um carneirinho, para o sacerdote imolar e espargir o

sangue na beira do altar. Essa era a expiação do pecado de cada pessoa naquele ano. Jesus não

tinha morrido ainda, e a lei era sacrificar os cordeirinhos, essa é a lei do Sacrifício. Crucificar

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Jesus, ele morreu na cruz do calvário, foi o último cordeiro a ser morto, então rasgou-se o fel

de ata acima e essa lei cessou. Ele aboliu essa lei.

O sangue de Jesus selou, e é isso que o povo não sabe discernir. Ficam pregando que Jesus

salva, e nós sabemos que Jesus salva, mas é preciso enaltecer o sacrifício dele, porque ele fez

o sacrifício por cada um de nós.

Na bíblia diz isso. Por isso o cristão não pode rejeitar as pessoas, não pode abusar das

pessoas, deve respeitar com base no ensinamento bíblico, no entendimento e na sabedoria de

Deus e é muito difícil agir assim. Geralmente o mandamento mais difícil que tem é a

aobservancia do salmo, é o que o povo vive transgredindo.

A obediência à guarda do sábado, o sétimo dia, é a memória da criação. Deus fez o mundo em

seis dias e no sétimo dia descansou, abençoou e santificou. Nos outros dias só fala assim:

“Deus fez isso, mais aquilo, mais aquilo; Deus que era bom e assim se fez”; agora, quando

chegou no sábado diz: “Fez o mundo em seis dias, descansou no sétimo dia, abençoou e

santificou”.

Nossa mãe do céu, eu adoro falar da minha religião!

Se pudesse voltar no tempo, acho que não saia do que sou agora, porque lá trás a gente vê que

as coisas mudaram muito. Eu me lembro o tempo que a gente era guri - eu com o meu irmão -

, a gente imitava o Tonico e Tinoco, nós cantava, fazia baile. Tinha um primo nosso que

tocava violão e nós cantava. Lá no Serro Azul éramos taxados como uma dupla caipira. Até

pouco tempo fui lá, tem um tal de Olivio e Favo Ravino, que era tocador de violão, nós

cantava com ele, quando me viu já perguntou: “como é que é, vocês são uma dupla ainda?”

Agora a gente pertence ao Evangelho. Essas músicas do mundo a gente não participa.

Podemos ouvir, mas não podemos idolatrar, a gente tem que se resguardar porque são coisas

do mundo e o cristão não pode se idolatrar por coisas do mundo. Não pode perder a

espiritualidade. Deus é Deus, e merece todo nosso respeito, nosso louvor, ele é nosso Pai.

Tem hora que me arrepia, até choro. A gente começa ler o salmo, vê quanta obra, tudo que

tem aqui foi Deus que fez: nós, a formiga, tudo tem a mão de Deus! Então tenho muito

respeito com Deus, oro muito para que Deus me conserve nessa fé.

Eu não prego mais, principalmente agora que eu fiquei com pouco de dificuldade na voz. O

dia que deu começo de derrame amorteceu tudo a língua, a boca ficou torta, mas eu pregava,

quando morava em Curitiba. Até convertemos uma Igreja Pentecostal. Além da bíblia, tem

muitos livros de profecia, que a gente estuda, O Conflito dos Séculos, entre outros, Nossa, o

pastor foi para nossa igreja, muito bom nosso trabalho de evangelização!

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Dona  Geni  de  Oliveira  Lima40  

Eu trabalhei muito, eu roçava, carpia, quebrava milho. Chegava na roça, limpava o lugar da bandeira, quebrava e jogava milho. Era gostoso! Eu jogava o milho, quando reunia dez bandeiras de milho grandona, “montuava” tudo ali e ia lá pegar o cargueiro, o cavalo. “Ponhava” a cangalha, “ponhava” o cesto e ia buscar.

Geni de Oliveira Lima: 73 anos: julho de 2012.

Ah, eu ainda “alembro” da minha mãe, ela morreu mocinha, deu uma febre amarela que levou

embora. Acho que ela tinha 25 anos quando morreu e eu tinha sete. Fui sua única filha. Tenho

saudades dela, mas já foi. Deus quis, está bom, deixe em paz!

Quando a minha mãe morreu fiquei com sete anos, dali três anos meu pai casou. Tenho

irmãos por parte de pai, que eu respeito como meus irmãos, mas eles nunca vieram na minha

casa. Vieram só no dia do velório do meu marido, dia 15 de janeiro fez 25 anos! Só vieram na

minha casa neste dia.

Me criei na lavoura. Serviço de lavoura eu conheço tudo. Eu roçava, carpia, quebrava milho.

Vim do sitio com 55 anos. Meu marido morreu eu tinha 45 anos. Viemos pra cidade, só que

depois que ele morreu eu voltei pro sitio. Quando retornei pra cidade eu já tava com 55 anos.

Eu gostava da lavoura, criava porco, galinha, tinha bastante fartura. Quando vim morar pra cá

eu senti muito. Mas o trabalho lá é cansativo, nossa... Mesmo que eu pudesse agora não

voltava mais pra lavoura, porque não agüento mais nada: roçar, carpir.

O nome do meu pai era Antonio Jacinto dos Santos, uma vez ele disse assim pra mim: “Geni

eu hoje vou pra cidade e quero aquele alqueire pronto”. Eu disse: “até sábado eu termino,

“apronto” aquele alqueire pro senhor”.

Alqueire é bastante, nossa, é bem maior que esse pedaço de terra aqui. Acredita que em dois

dias eu dei pronto o alqueire pro meu pai? Roçado, em dois dias! Dei roçado e limpo, já pra

ele “carcar” o arado.

Nós plantava roça de milho, feijão, arroz. Plantava pra família e pra vender também. Eu

trabalhei muito, eu roçava, carpia, quebrava milho. Chegava na roça, limpava o lugar da

bandeira, quebrava e jogava milho. Era gostoso! Eu jogava o milho, quando reunia dez                                                                                                                          40 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 09h30min, com Geni de Oliveira Lima; 73 anos de idade; Escolaridade: não informada. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 31min23seg; Local da entrevista: casa da colaboradora.

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bandeiras de milho grandona, “montuava” tudo ali e ia lá pegar o cargueiro, o cavalo.

“Ponhava” a cangalha, “ponhava” o cesto e ia buscar.

Toda vida eu trabalhei. Quando vim pra cidade eu lavei roupa pra cinco casas, cinco casas!

Tem uma casa que eu lavei roupa dois anos a fio: roupa de açougue, “roupaiada” suja, roupa

de fazenda. Lavava pra cinco casas. Meu marido ainda era vivo nessa época. Toda vida ele foi

pobre, foi pobre, mas era um homem muito trabalhador, certo pra negócio, muito honesto.

Casa de família eu nunca trabalhei. Levava a roupa e lavava na minha casa.

Agora faz uns sete anos que vendo sonhos. Eu conheço a cidade inteira, tenho muitas

amizades. Quando eu estava bem nervosa eu desabafava com as pessoas que comprava de

mim. Nossa, não deu derrame em mim porque eu desabafava. Eu desabafava com

“devogado”, com policia.

Outro dia eu tava nervosa e na rua mesmo eu desabafei com o policial daquela companhia que

tem ali na avenida. Eu chego ali e vendo pra eles. Nossa eles tratam a gente super bem.

Chamam a gente de tia, vovozinha. É legal, muito bom!

Meu marido morreu de repente, com 46 anos. Quando ele era vivo ele tinha casa, mas antes

de morrer passou a casa. Eu tentei segurar e não consegui, ele era brabo. Ele “breganhou” a

casa, fez uma “breganha”, uma troca. Ele era louco por terra e trocou a casa por um

terreninho, um sitio. Só que ele morreu e ficou sem documento nenhum. Daí tomaram tudo...

Fiquei sem nada... Como não tinha documento, quem era o dono ali tomou de novo.

Fiquei só com os filhos pra cuidar. Tenho seis filhos por tudo. Todos vivos. Meninas são duas

e homens são quatro. O caçula meu ficou com dez anos. O Gilson, que hoje é padeiro, e me dá

os sonhos pra vender, ficou com doze. O Laércio ficou com dezesseis, esse era o mais

“veinho”. Depois que o pai morreu entrou na bebida... A minha vida é uma comédia viu! Sofri

muito... Mas graças a Deus agora estou em paz.

Quando fiquei viúva foi muito difícil. Com dez anos eu coloquei o filho caçula na farmácia,

entrou em farmácia e esta até hoje, ele é casado e pai de três filhos. O outro, com doze anos,

entrou em padaria, não tem tipo de doce que peça pra ele que ele não faça. Agora ele fala

assim: “mãe, se o meu pai fosse vivo eu só ia aprender a cortar lenha” - o meu marido

cortava lenha -, “a senhora deu ensino pra nós e, por respeito à senhora, eu agora sou

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padeiro”. Quando os filhos começaram a trabalhar eles ajudavam, ai a situação foi

melhorando. O aluguel, o Gilson pagava, depois que ele casou, sobrou pra mim, continuei eu

pagando.

Depois de viúva, nunca pensei em me casar de novo. Nem pensar em casamento! Eu não sei

se eu to falando certo ou to falando errado, mais eu vou falar uma coisa: casamento é uma vez

só. Não sei se eu to certa ou se eu to errada, mas pra mim é assim. Porque não dá mais certo,

já pensou, casar com um marido porco, pôr dentro de casa um homem porco, não dá certo.

Tenho seis filhos, os netos tem que contar porque são bastante: a Naide tem dois; a Nice tem

quatro; o Cesar tem três; o Zacarias tem um; o Laércio tem quatro. São catorze netos. E tem

os bisnetos. Já tenho bisneto moço, mora em São Paulo, é filho do Fabiano. Tenho dois

bisnetos que são filhos do Carlos, tem dois da Carina e o menino da Tatiana. Seis bisnetos,

bastante! Quando junta todo mundo dá uma festa. Enche a casa. Gostoso!

Tenho contato com todos eles, vou mostrar41. Esse aqui é o João, ele fez micagem pra tirar

foto.

Esse aqui é o bisneto filho do Carlos e a bisneta. São uma graça essas crianças. Se eu

continuar nesse pique eu vou conhecer o tataraneto. E nem vou precisar esperar muito, porque

o menino do Fabiano já é moço.

Meus filhos moram aqui em Itapeva, vejo sempre todos eles. Me ajudam como podem, mas

não com dinheiro. Com dinheiro não podem ajudar a gente, são apurados e a crise esta difícil.

A gente que tem que se virar. Mas graças a Deus já me ajudaram bastante e hoje eu não

preciso mais da ajuda deles.

O Gilson não pode me ajudar com dinheiro, essas coisa, mas o serviço ele dá, pra ter os troco

da gente. Ele prepara os sonhos que eu vendo. Também tenho pensão do meu marido, já é

uma boa ajuda. Eu dei entrada na minha aposentadoria, mas por enquanto nada ainda. Nunca

trabalhei registrada, é difícil. Apesar da pensão do meu marido ando um pouco apurada por

causa do empréstimo. A gente tem que levar certo as coisas e é difícil pra pagar.

                                                                                                                         41 Me mostra várias fotos que são imãs de geladeira.

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Tem bastante tempo já que eu moro sozinha. O último que ficou comigo foi o filho do meio,

faz doze anos que ele é casado, então, já tem doze anos que moro sozinha. Já paguei muito

aluguel nessa vida. Dava pra comprar uma casa, mas Deus comprou pra mim. Aqui eu sei que

é do governo, é emprestado e quando eu morrer passa pra outra pessoa idosa, mas mesmo

assim estou no céu!

Esses dias eu questionei uma mulher, lá no CDHU, onde eu vou pegar as coisas pra vender.

Me queimo à toa, sou muito “bocuda”. A mulher disse assim pra mim: “Viu Dona Geni, a

senhora mudou? A Tereza estava falando que lá é o asilo”. Aí eu falei: “nossa, não sabia que

asilo era bom igual lá. Porque lá é um condomínio fechado, lá tem tudo. Lá até a água pra

senhora lavar o rosto na pia do banheiro é água quente. Tem água quente na pia pra lavar o

rosto, não sei se no asilo existe isso”. Ela baixou a cabeça, foi a Tereza que contou pra ela,

mas, quem contou pra Tereza? As pessoas são muito fofoqueiras, eu nem quero que venham

aqui. Essas pessoas assim eu não quero.

Falar de onde eu morei é complicado. Eu morei no CDHU, lá no apartamento 31A. De lá eu

fui morar no Itapeva 3, morei dois anos e três meses lá. Meu filho veio morar comigo, ele

bebia e a mulher largou dele. A minha vida é uma comédia! A dona da casa não aceitou ele

bêbado lá, atropelou ele. De lá aluguei um apartamento e morei 5 meses no apartamento de

cima.

Depois eu morei no Parque Longa Vida, ainda com esse filho. Do Parque Longa Vida eu vim

pro Cecap, essa vila aqui de cima. Daqui eu voltei pra lá e morei dois anos em outro

apartamento. Mudei bastante, nossa!

Nem estranhei quando vim pra cá, porque lá era muito sofrimento, eu não gostava de lá. Era

sofrido pela situação que a gente passava. Tinha muitos vizinhos e convivia bem com todos

eles, não tenho queixa de ninguém lá. São muito bom, só essa mulher que falou pra mim

aquelas coisas. Só que ela é bem velha, tem 86 anos.

Aqui é um presente que Deus me deu, nossa uma bênção. Aqui não acho falta de nada, graças

à Deus. Dá fome eu como, dá sono eu durmo, tomo banho bem certinho. Eu gosto de tudo

bem limpinho, toda vida eu gostei. Tô “desgrenhada” agora, mas é porque acabei de acordar e

ainda não me arrumei, mas já vou tomar banho e lavar a cabeça.

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Ter vindo pra cá me trouxe muitos benefícios: tenho mais saúde, tranqüilidade, trouxe paz pra

minha vida. É uma benção, nossa! Os vizinhos aqui são tudo bom, só que eu vou falar bem a

verdade, eu não conheço tudo ainda. As vizinhas aqui são muito boas: aquela Dona Maria,

tem uma mulher ali também muito boa, tem a senhorinha ali, também muito boazinha. Nossa,

são tudo bom, um amor de pessoa.

Até com a minha família ficou melhor, ficou bem melhor, porque agora eles vêm mais na

minha casa. Principalmente a filha que ficava um ano sem ir na minha casa. Pensar bem uma

coisa, o Natal e o Ano Novo eu passava sozinha. Só o que morava em cima de mim, esse

Gilson morava em cima e eu morava em baixo, que ia na minha casa, porque tava do lado. Ele

que me dá serviço hoje.

Como estou aqui há pouco tempo quem vem aqui é os filhos, outro dia veio a nora, veio os

filhos, genro, neto. Domingo veio a neta, Carina, com a menininha dela. Também já veio a

nora e a Zenaide.

Eu pensava que não ia ficar “veia”, pensava que ia morrer logo. Nunca passou pela minha

cabeça que eu ia ficar velhinha pra morrer. Por causa do sofrimento eu achava que ia morrer

logo. Eu pensava: “uma hora eu deito pra dormir e amanheço morta”, por causa do meu

sofrimento eu nunca achei que eu ia ficar nessa idade.

E agora não me considero “veia”. Tô “veia”, mas eu tenho minhas forças pra andar, tenho

aquela disposição de conversar com as pessoas, andar, fazer serviço, limpar as coisas - limpo

uma coisa, limpo outra.

Então eu não me considero “veia”, porque, “veio” mesmo, que vai se entregando, não tem

coragem de fazer serviço. Não tem coragem, se acostuma com a sujeira. Não é mesmo? Eu

não sei se eu “to” falando certo ou errado. Eu não quero ficar muito “veia” não, mais do que

eu to. Não quero chegar nos 80. Não é fácil, só Deus sabe a nossa vida!

Sabe, eu andava se batendo que nem barata no açúcar. Fiz inscrição num lugar, fiz inscrição

noutro. Fiz inscrição lá naquelas casas que estão fazendo agora. Fiz inscrição lá naquela vila

que tá construído umas casas ali do lado da estação. Fiz inscrição lá, fiz inscrição aqui.

Alguns nem ficaram prontos, não saíram da terra. Só ficou na gaveta o papel mesmo. Fiz a

inscrição ficou na gaveta...

Sempre falei “Deus vai preparar uma casa pra mim” e Deus preparou aqui.

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O que eu espero pro meu futuro? O dinheirinho que sobrar eu comer bem, andar bem

limpinha. Futuro a gente não tem mais porque já é velho, como é que a pessoa vai ter futuro?

O que tiver que fazer é pra comer, pra beber, se vestir, ir pra uma igreja, fazer uma visita. Isso

é que eu espero!

Vou bastante na Igreja, vou na Cristã do Brasil, desde 1981.

Deus protege muito a gente, nossa Senhora! Deus é muito bom na nossa vida. Não era pra eu

tá por aqui, foi Deus que preparou essa casa pra mim! Não tem palavra pra agradecer a Deus.

Eu tava deitada na cama ali e pensando, “o que que eu tenho que fazer pra agradecer à Deus

não?”, penso sozinha.

A gente agradece a Deus de dar glória, não falar mau dos outros, não brigar com ninguém.

Isso é uma benção, não é mesmo? Olha, eu morei na Lavrinha, em acampamento de firma. Ali

tem um monte de gente: tem o bom e tem ruim. Morei três anos lá, nesse tempo meu marido

era vivo, e nunca tive problemas com ninguém.

Graças a Deus eu não tenho medo de nada. Só tem vez que eu fico pensando, que não tenho

medo do morto, tenho medo do vivo. O morto não faz mal a ninguém e o vivo faz.

Valeu viver tudo que vivi. Valeu a pena! Eu não mudaria nada na minha história. Que nem o

Gilson disse pra mim: “mãe a senhora tá na glória, mãe agradeça à Deus que a senhora tá

na glória”. Ele se preocupa, se preocupa bem comigo...

Não tenho saudade de nenhuma das casas por onde passei, nenhuma delas. Nem lembro. De

casada eu sofri muito também. Trabalhava né, porque meu marido era pobre. Morava na

lavoura, na palhoça de sapé. Tinha fartura, tinha bastante porco, tinha galinha, estoque de

mantimento, mas, era sofrido. Não lembro e não tenho saudade. Graças a Deus, tô em paz!

Trabalhei muito na minha vida viu... E trabalho ainda, mas se eu parar enferruja, daí fica na

cama, Deus o livre! Eu não quero ficar na cama, quero morrer de repente porque eu não quero

dar trabalho pra ninguém.

Nem quero pensar em ter que morar em asilo, Deus o livre! Nem quero pensar nisso. Eu não

penso em ir no asilo... Acho que não dá. Lá é muito misturado e eu sou assim: gosto das

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coisas quietinho, gosto de fazer meu serviço quietinho, eu gosto de ficar quieta. Lá tem muito

“veio”, eu só “veia” também, mas lá tem muito “veio”, tem homem, tem mulher, tem tudo...

Nunca fui visitar um asilo, mas penso que é assim porque, a gente passa de ônibus lá ta

aqueles “veio” sentado pra fora. Eu penso assim comigo.

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Seu  Irineu  Fonseca42  

Meu pai era motorista, eu herdei a profissão dele. Era menino quando peguei o diploma do quarto ano, ele me chamou e perguntou: “Você quer continuar estudando? Eu pago o seu estudo, ou você prefere trabalhar pra ganhar o seu dinheiro? Ou quer ir viajar comigo”. Quando ele falou “quer ir viajar comigo”, nossa! Pulei pra cima. A minha vontade era de andar de caminhão e aprender a guiar

Irineu Fonseca: 64 anos: julho de 2012.

Toda vida morei aqui em Itapeva. Só no lugar aonde eu nasci, que é na vila do lado de lá da

cidade, eu fiquei 55 anos. Quando o meu pai construiu a nossa casa eu tinha sete anos e sai de

lá agora com 64, faz um ano e três meses que eu estou morando aqui. Nunca tinha me mudado

antes.

Meu pai era motorista, eu herdei a profissão dele. Era menino quando peguei o diploma do

quarto ano, ele me chamou e perguntou: “Você quer continuar estudando? Eu pago o seu

estudo, ou você prefere trabalhar pra ganhar o seu dinheiro? Ou quer ir viajar comigo”.

Quando ele falou “quer ir viajar comigo”, nossa! Pulei pra cima. A minha vontade era de

andar de caminhão e aprender a guiar. Trabalhei um pouco em padaria e com quinze anos

comecei a viajar com meu pai. Quando completei dezoito tirei a carta de motorista e ele já me

pôs pra viajar sozinho, em outro caminhão, ele viajava em um e eu em outro.

Eu tinha um irmão que era mais velho, ele já é falecido, quando falei pro meu pai que preferia

trabalhar com ele no caminhão, então, ele nos pegou e nos levou numa estrada, que vai pro

sitio. Falou pro meu irmão “você que vai tocar o caminhão agora” e eu estava “ansiado”,

porque era a primeira vez que ia pegar o caminhão. O meu irmão pegou o caminhão e, não sei

se ele tava com tanta vontade também, quando foi sair com o caminho, deu um “tranquinho”,

morreu o motor. Meu pai falou “pode descer que você já foi reprovado na primeira prova,

pode descer”. Na seqüência ele falou: “Agora é o Chaminé”, que era eu.

Eu via sempre como é que ele fazia quando ia sair cedo com o caminhão. Sentei, funcionei o

caminhão, regulei o espelho pro lado de fora e saí bem assim, na marcha lenta, devagarzinho e

andei lá onde o meu pai mandou. Andei um trechinho e ele mandou parar. Fiquei com dó do

                                                                                                                         42 Entrevista realizada em 26.07.2012 às 10h, com Irineu Fonseca; 64 anos de idade; 4º ano primário. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 50min23seg; Local da entrevista: casa do colaborador.

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meu irmão porque o meu pai ainda falou assim pra ele: “tá vendo, o que tem que ser nasce

feito”. Devolvi o caminhão na mão do meu pai e seguimos.

Ele repetiu esse teste outras vezes e meu irmão já firmou também e, por sinal, ele foi um

ótimo motorista. Carreteiro, trabalhou com carreta e tudo, com caminhão tanque. Nunca teve

coisa grave, acidente grave com ele. E eu também, graças a Deus, toda essa caminhada minha

de motorista, viajei por vinte e cinco anos, e nunca aconteceu nada comigo.

Eu viajei nove anos na estrada que liga São Paulo à Curitiba, Regis Bittencourt, conhecida

como rodovia da morte. Fazia o trecho de São Paulo a Porto Alegre, as viagens tinham

horário e eu viajava a noite inteira. Graças a Deus eu nunca sofri um acidente e vi tanto

acidente ali que, se não tivesse um pouco de coragem, largava mão até de trabalhar. Tinha vez

que eu pensava: “Deus o livre, eu não vou mais trabalhar com caminhão porque já pensou se

acontece comigo uma coisa dessas?”.

Mas, graças a Deus e ao São Cristovão, que sempre me acompanhou, eu nunca tive problema,

assim de bater caminhão, comigo não.

A última firma que eu trabalhei foi a Rápido Paulista, fica lá na Vila Guilherme. O meu

patrão, quando eu entrei pra trabalhar, ele só tinha um caminhão, daí depois foi comprando

mais, comprou mais um e chegou a ter onze. Um dia ele me chamou, bateu no meu ombro, e

falou assim, às vezes falava Chaminé, às vezes falava Negão: “Oh, Negão, você já tem o seu

santo protetor e tudo, continue firme com ele e rezando, sempre rezando e pedindo, porque

você sabe, nós estamos com onze caminhões, dez já bateram, só você que nunca bateu, nunca

aconteceu acidente”. Eu falei: “continuarei rezando”, e, graças a Deus, trabalhei com ele um

tempão e nunca aconteceu nada.

Eu viajava de São Paulo pra Porto Alegre, dava uma viagem e meia. Era assim: quando eu

carregava no fim da semana, por exemplo, na quinta-feira que eu estava em Porto Alegre, eu

carregava pra Ponta Grossa, chegava a Ponta Grossa no sábado, descarregava o caminhão e

dali vinha pra Itapeva. Passava na minha casa, ficava o domingo, e na segunda de madrugada

eu já ia pra São Paulo de novo.

A Tereza sempre ficou em Itapeva. De vez em quando ela viajava comigo quando eu

trabalhava no caminhão que era do meu pai. Quando eu trabalhava nas outras firmas, de vez

em quando ela ia comigo. Foi pra São Paulo, pra Campinas, pro Rio, pra Porto Alegre e pra

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Santa Catarina. Eu achava engraçado, quando eu estava dirigindo, ela sentada do meu lado, de

vez em quando ela cochilava e eu dava um “soquinho” no caminhão só pra assustá-la. Eu

falava assim: “não se assuste não”, eu gostava de fazer minhas “malvadezinhas” também.

Eu sei que foi gostosa a minha vida de caminhoneiro, pra mim foi muito bom! Faz muitos

anos que estou com noventa e dois quilos, não saio disso, mas já cheguei a pesar cento e

dezoito e sabe por quê? Quando eu passava Curitiba, e entrava em Santa Catarina, tinha os

pontos certos de parar só pra comer rodízio. Eu só comia churrasco e era bom de garfo!

Nossa Senhora! Lá em Itajaí, perto de Blumenau, tinha uma churrascaria que eu parava que, o

churrasqueiro já tinha amizade comigo, servia um cupim que não tinha jeito de por no espeto

de tão macio que ficava. Vinha numa taboa, ele “ponhava” a tábua em cima da mesa onde eu

estava sentado e mandava escolher a parte que quisesse. Eu sempre gostava da parte mais

gordinha, então eu falava: “pode por misturado aqui, um pedaço gordo e um magro”. A

minha comida na churrascaria era maionese e arroz, o resto era tudo carne. Feijão, macarrão,

essas coisa assim, lá de vez em quando eu comia, quando estava com presa. Era muito bom!

Por incrível que pareça eu trabalhei vinte e cinco anos com caminhão. Na carteira profissional

tenho quase vinte e um anos registrados como caminhoneiro, só que quando deu o problema

de saúde fiquei encostado e não aposentei. Eu fiquei encostado e parei de recolher INPS.

Motorista se aposenta com, acho que qualquer pessoa que tem problema de saúde, já tem

direito à aposentadoria tendo quinze anos de registro.

Eu estou recebendo um salário mínimo, é um salário que o governo me dá, até completar 65

anos e poder aposentar por idade e invalidez, porque sem visão não tem jeito de dirigir mais.

Estou nesta espera, vai vencer agora dia 23 de março de 2013, quando eu completo 65 anos.

Já fui me informar lá no INSS, dia 23 eu faço 65 anos, dia 24 já posso ir que estará tudo

pronto. É só chegar, pegar os papéis e ir na caixa. Ai, passo a receber o piso de motorista. Não

sei se em todo lugar é assim, mas aqui em Itapeva, é difícil pra pessoa se aposentar. Eles

esperam estar quase morta, dai vai aposentar.

Antes de trabalhar com caminhão eu fui de tudo, comecei a trabalhar quando tinha sete pra

oito anos. Eu saia da escola passava na padaria e pegava uma “cestada” de pão. Ia vender pão

e quando terminava de revender o pão guardava a cesta e já pegava a caixa de engraxar,

“ponhava” nas costas e ia pra praça engraxar sapatos. E ficava até oito, oito e pouco da noite,

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pra não ir muito tarde pra casa. Fazia tudo isso, ninguém pode dizer que eu fui vagabundo,

porque toda vida, desde os sete anos eu trabalhei. Depois que eu terminei a escola, como eu já

contei, fui trabalhar com meu pai.

Quando eu estava com meus dezenove anos conheci a Tereza. Começamos a namorar e

namoramos quase três anos. Com vinte e três nos casamos e estamos até hoje, ela esta me

agüentando! Estamos com 41 anos de casados e torcendo pra chegar nas bodas de ouro. A

Tereza também é de Itapeva, só que ela é mais da zona rural.

Quando eu namorava pegava o caminhão do meu pai e ia lá na frente da casa dela. Abria a

porta do caminhão, ligava a sonatinha dentro do caminhão, “ponhava” aquelas musicas que

ela sempre gostava. Ligava e ficava curtindo música, ela escutava e saia pra conversar

comigo. Ela ainda lembra, uma das primeiras que eu toquei pra ela, e às vezes cantava na

orelha dela, era aquela: “Tereza, quando te dei aquela rosa...”

Outra que ela gostava muito é Ciúmes de Você, do Roberto Carlos, essa diz assim: “mas é

ciúme, ciúme de você, ciúme de você. Este telefone que não para de tocar, esta sempre

ocupado quando eu quero lhe falar”. Nessa época os cantores eram Jerry Adriani, Antonio

Marcos, a turminha do Erasmo Carlos.

Nós éramos em quatro irmãos. O mais novo morreu num acidente e o mais velho morreu de

aneurisma. Agora, atualmente vivo é só eu e uma irmã, que mora lá onde eu morava. Ela

também nasceu e foi criada lá. Nosso terreno era grande e todo mundo foi construindo a sua

casa. A casa da frente é onde o meu pai morava. Fomos criados ali e quando a turma começou

querer casar, foi feito a casa pra ter onde morar; “Quem casa quer casa”, diz o ditado aqui no

interior. Foi assim que foi construído e moramos 41 anos.

Eu nunca pensei em sair de lá. A Tereza sim, sempre teve vontade, tanto que fizemos a

inscrição, uma época, no CDHU, mas nunca tivemos sorte de ser sorteado. Aqui tem um lugar

que é CDHU, que tem bastante casa e quem foi premiado tem sua casa lá. Mas muita gente já

enfiou a casa no nariz, ganha e vende baratinho.

Francamente, o dia que eu me mudei, eu não sei, parece que eu saí do ar. Falar a verdade eu

até chorei. Um amigo, um colega meu que nos trouxe, no dia em que foi carregada a

mudança, ele falou: “vamos Chaminé”, e eu falei: “vamos aonde?”. “Vamos pra sua casa

nova, porque a mudança já foi, estão descarregando a mudança lá”, daí eu falei: “então

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vamos”. Falar tchau pra um, tchau pra outro, tchau pro vizinho, foi doido. A Tereza, em

compensação só disse: “tchau, qualquer hora eu volta aqui”.

Tenho uma vizinha lá, a dona Nilda, que já completou 80 anos, mas, nossa, quando vou na

casa do meu filho passear, ela mora do ladinho, é a primeira que me vê chegar, já vem

encontrar comigo, perguntar como é que tá tudo.

A gente acostuma num lugar, eu acostumei porque, quando trabalhava com caminhão, sabia

que toda semana, pelo menos um dia na semana, passava lá. E eu com a Tereza aproveitemos

bem, passeamos bastante. Além das viagens de caminhão nós, todo sábado ou domingo, ia

passear no sitio, porque os parentes dela tudo tem sitio.

Só tivemos um filho, que fez 35 anos. Ele é mais alto que eu, pra conversar com ele tenho que

levantar a cabeça. Ele é motorista de tudo, de qualquer tipo de carro: grande, caminhão,

caminhãozinho. Ele viajou vários tempos comigo, mas, o serviço dele mesmo é na área

agrícola. A firma que ele trabalha vende máquinas agrícolas: trator, arado, tudo que é da

lavoura. Ele é, como diz, um dos mais “chegadão” na firma. Também, ele faz tudo: trabalha

tanto no balcão, vendendo peças, como, às vezes, algum cliente pede pra ele fazer uma

visitinha, quando dá problema em algum trator, alguma coisa, tudo é ele que vai. Se

chamarem o mecânico pra arrumar alguma coisa, o mecânico já fala: “Ah, o Junior vai

comigo”, e leva o Júnior atrás. É bom porque ele aprende muita coisa e não é perdido.

Ele é casado e tem um casal de filhos. Deve ter foto deles ai no quadro. A minha neta Tainá

tem 15 anos e o Tiago fez nove. Deve ter foto do filho e da nora também. Eles moram lá na

casa que nós morávamos, nós morávamos juntos. Tinha três cômodos que era nosso e quatro

que era dele. Ai, quando eu e a Tereza viemos pra cá ele deu uma reformada e emendou tudo,

agora a casa ficou grande, tem sete cômodos. A minha irmã mora lá também, na casa da

frente, a casa que era do meu pai.

Quando foi pra vim pra cá a Tereza ficou com a mudança arrumada acho que uns vinte dias.

Quando o CREAS ligou avisando que a gente tinha conseguido a casa, nossa! Ela não sabia o

que fazer, pulou de alegria. A minha nora falou assim pra ela: “Tereza você quer se livrar de

mim?”, e ela: “não, é que agora vocês vão poder ficar sozinhos, cuidar da vida de vocês e eu

vou cuidar da minha, com meu velho”.

Eu pensava que não ia sair pra nós essa casa. Eu torcia escondido pra não sair, porque a

Tereza queria muito. Sei que foi difícil pra mim no começo, mas depois eu fui pegando o

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jeito, agora acostumei. Quando eu sai de lá eu pensei uma coisa, mas não é do jeito que eu

pensei. Eu pensava: “poxa vida agora quero ver eu sair daqui, ficar longe dos meus netos,

da minha família, do filho, da nora, ficar longe deles vai ser difícil”. Eu não esperava que

seria assim, que eles viriam me visitar sempre. Toda semana, pelo menos duas vezes, ele vem.

Ele vem, minha nora vem, os netos, todos estão sempre por aqui.

Então, eu acostumei, e analisando bem, eu pensei comigo: “é uma coisa que, eu sei que tá

garantido aqui pra mim até o dia que morrer, porque depois que morrer, o caminho certo é o

cemitério”. O pessoal que mora aqui, muitos deles não tinham bem dizer nada, então, a

assistência deu fogão, geladeira, cama, todos os móveis que precisa na casa. Nós, graças a

Deus, tudo que tem dentro aqui é nosso mesmo. Nós trouxemos de lá, então, o dia que a gente

faltar, o meu filho com a minha nora, podem tirar toda a mudança, tudo o que tiver aqui

dentro, só deixar a casa vazia.

Dai entra outra pessoa que está aguardando. Nesse ponto eu estou sossegado porque eu penso

que aqui tem tudo que eu quero, a minha mulher sabe fazer tudo, ela, como cozinheira, nossa!

Tudo que eu gosto ela faz. Cama pra dormir tem, eu posso dormir o dia inteiro, se eu quiser

descansar. O que mais eu vou querer? E mesmo eu tendo o problema de visão eu vou na

cidade todo dia, ontem mesmo eu fui pra lá.

A Tereza sempre me acompanha, mas, de vez em quando, eu vou sozinho. Daqui de casa até

ali no ponto de ônibus eu vou sozinho. Pego o ônibus, desço lá no centro da cidade, vou no

mercado, na igreja, vou visitar a turma lá da Vila onde eu morava e pra mim está bom. A

única coisa é não poder enxergar, mas, Deus às vezes tira uma coisa da gente e dá duas.

Perdi a visão por causa do diabetes. Descobri que tinha diabetes em 1984, e perdi a visão há

nove anos. Eu fui percebendo porque, quando eu estava viajando, aquelas placas, que eu via

de longe, começaram a ficar embaçadas. De longe eu não via direito e a sinalização

embaralhava. Eu tinha que chegar bem perto pra ver a placa nos carros que iam na minha

frente. Com o tempo, tinha que encostar no carro pra poder enxergar de onde era e ver o nome

da cidade.

Depois que eu parei com caminhão eu viajei com vã e com carros particulares. Tem bastante

gente que só dirige aqui, se falar de ir pra São Paulo, nossa senhora. Eu fiz muitas viagens e,

até a última viagem que eu fiz foi pra Poços de Caldas, eu fui levar duas senhoras. O médico

daqui me perguntou “você tem alguma viagem programa?”. Eu disse: “tenho uma, lá pra

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Poços de Caldas”. Daí ele falou “acho que não vai dar pra você ir, é melhor você não ir”, e

eu falei, “mas nossa, eu já combinei, as pessoas já me deram até o dinheiro da viagem, já

está tudo pronto”. E ele novamente: “Então, você vai com cuidado, mas essa é sua última

viagem. Do jeito que você está não dá mais pra viajar, Deus o livre, vai acontecer um

acidente com você, aí vai ser pior”.

Quando a gente está bem não pensa nessas coisas. Um dia ele me falou “olhe, se você fizesse

um exame de vista, uma vez por ano, não estava deste jeito, descobririam o descolamento da

retina antes”.

Descolou a retina do lado direito, só que a outra ficou prejudicada. Eu sei que falei “agora eu

vou ter que parar de viajar, fazer o que?”. E assim mesmo, por aqui eu sempre andava

dirigindo. Às vezes enxergava 30 ou 40 metros e via os outros carros, o movimento de gente,

mas, agora não dá mais. Do jeito que estou não enxergo nada, estou conversando com você,

mas nem te vejo.

Foi isso que aconteceu. Tem muita gente que tem diabetes e não sabe. Por que não procura

um médico pelo menos uma vez por ano. Como o médico me falou no dia que me examinou e

descobriu que tinha descolado a retina e estourado umas veias do olho: “olha, se você tivesse

vindo aqui uns três ou quatro meses antes, dava tempo de cuidar disso daí”. Mas não deu vou

fazer o que? Bem que foi tentado, em Sorocaba fizeram três cirurgias, colaram a retina, mas

não voltei a enxergar.

Eu acho que as mudanças que tiveram depois de virmos pra cá foi tudo pra melhor, tudo coisa

boa. Falar a verdade, a única coisa que eu penso, a hora que tiver uma reunião eu vou falar, é

que era bom se pusesse um orelhão aqui na frente. O povo aqui, não são todos que tem

telefone fixo. A maior parte tem celular, mas tem muitos ai que não sabe nem ligar o celular.

A saúde minha graças a Deus está controlada: o diabetes, a pressão, o coração está tudo

controlado. Temos o posto de saúde aqui pertinho, dois ou três quarteirão, o médico é muito

bom. Ele vem aqui a cada dois meses e o que a gente precisa vai no postinho e eles atendem.

Tem a enfermeira padrão que é uma pessoa muito boa, atende muito bem a gente, dá muita

atenção. Então, aqui é bom por causa disso. E o resto é a mesma coisa se eu tivesse lá na

cidade, porque aqui perto tem padaria, tem açougue, tem farmácia, tem mercadinho, tem

ônibus pertinho. O ônibus, o dia que não para muito em todos os pontos, em quinze minutos

deixa a gente na cidade.

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Falar a verdade, eu não me considero muito velho. Porque a pessoa quando é muito, uns fala

velho outros fala idoso, quando é muito velho anda mais debilitado. Não pode fazer as

coisinhas dele sozinho. A gente aqui faz as coisas da gente sozinho.

Domingo veio um senhor fazer um visita, ele tem 90 anos, mas só tem um probleminha no

ouvido, não escuta muito bem, mais enxerga bem, anda tudo. Ele falou pra Tereza: “nossa,

mas como a senhora é bonita!”.

A Tereza deve ter ficado como um pimentão. O pior que ele repetiu umas cinqüenta vezes,

não parava de falar “vocês estão no céu, aqui é um paraíso. Que casa bonita, bem arrumada,

lugarzinho que, nossa, dá pra viver tranqüilo, só o casalzinho. Só que você não é velha”. Eu

falei: “e eu?”. Ele respondeu “o senhor também tá bem conservadão”. Dai eu falei pra ele:

“é, mas eu não chego na idade do senhor, eu tô com 64 será que vivo mais 26 anos?”

Esta por sete meses pra eu passar pra aposentado, o meu sonho é, depois que aposentar, viver

mais oito ou dez anos pra desfrutar um pouco da aposentadoria. Eu acho que chego nisso. Na

minha família o que viveu mais foi a minha mãe, que morreu com 69 anos, o meu pai não

chegou nos 60, morreu com 59. Eu tenho um irmão que morreu com 23 anos, num acidente; o

outro, o mais velho morreu com 50, ele ia fazer 51, estava com tudo programado, ele falava

pra todos os amigos: “esse ano é o ano da boa idéia, 51. Vamos fazer uma festa, um

churrasco, não sei o que”. No fim, no meio do ano ele pifou. Então, eu acredito que,

controlando o diabetes e tomando meus remédios certo, é capaz que eu dure mais um

tempinho, mas não dá pra calcular porque o corpo é que nem uma máquina. Você vai indo prá

rua e, de repente, “puf”.

Medo, no sentido de morrer, eu não tenho. O único medo que eu tenho, pra dizer a verdade, é

quando eu estou andando sozinho e tem um buraco meio grande na minha frente assim, que

eu não percebo. Às vezes a bengala também logra a gente. Então eu tenho esse medo, mas,

graças a Deus, nesses nove anos sem visão, eu nunca cai e sei de muita gente deficiente que já

caiu.

Na nossa cidade falta muita coisa pra ser adaptada pras pessoas deficientes. Eu ando, mas eu

ando bem devagar, porque às vezes acontece alguma coisa que se tivesse depressa me

machucava. Às vezes, você vai indo na calçada e daqui a pouco “pah”, aquelas lixeiras que

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eles fazem e ficam assim, no meio da calçada, parece que é pra quem não enxerga bater

mesmo.

Um dia eu ia passando numa calçada meio estreita e o poste, em invés de ser na beirada da

guia, é no meio da calçada. Eu fui e encostei no poste, não cheguei a bater. Atrás de mim

vinha um homem, depois que eu bati, parei e voltei um passo pra trás e bati a mão assim pra

desviar, ele falou “tem um poste ai”, eu falei, “ah, você me avisou tarde, se avisasse antes eu

não tinha batido”. Depois que eu bati avisa que tem um poste!

Eu não sei, acho que não tem muita coisa pra mudar na minha história, porque o que eu mais

gostava toda vida eu fiz: andar de caminhão. Eu trabalhei em padaria, em doceria. Todos

esses doces que você vê na vitrina da padaria eu fazia: bolo, cocada, fazia pudim, quindim,

queijadinha. Sonho não fazia muito porque naquele tempo tinha outras coisas, mas eu sei

preparar uma massa de sonho. Mas o meu negócio era viajar. Eu preferia caminhão e trabalhei

com quase todo tipo de caminhão. Nunca cheguei numa firma que o cara falasse “Amanhã

você já vem pra fazer uma viagem, você já vai pegar aquele caminhão que tá ali”. Eu só

olhava de longe assim, não sabia nem quantas marchas tinha o caminhão, sabia só dos os

outros contar. Eu entrava no caminhão, funcionava, saia e ia embora. Eu mesmo ia me

ensinando.

Toda vida sou católico e a Tereza também. Onde nós morávamos freqüentávamos a Igreja do

Bom Jesus, depois da mudança, eu ainda ia lá e também na Catedral, no centro. Agora, uma

semana sim uma semana não, eu vou na missa da catedral. E sempre assisto a novena do Pai

Eterno na televisão.

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Seu  Abel  Paulino  dos  Santos43

Então, se voltasse naquele tempo... Só parei de beber quando eu cai. Quando tive o AVC. E os médicos disseram que o AVC foi por conta da bebida. Então, se fosse voltar era só isso ai. E voltar no meu caminhão. Andar pro mundo de novo!

Abel Paulino dos Santos: 64 anos: julho de 2012.

Até os dezesseis anos eu morei no sitio depois eu vim pra cidade. Meu pai faleceu nessa

época, quando eu tinha dezesseis anos. Quando nós viemos pra cá ele morreu. Ai ficou só eu e

a minha mãe. Na verdade eu tinha mais quatro irmãos, mas eu era o mais velho, na época

“né”. Tinha que dar os pulos.

Eu e minha mãe, nós trabalhávamos... coitada da minha mãe, ela ficou viúva cedo. Nós

viemos pra cidade pra trabalhar. Trabalhava pro dr Latim no sitio também. Nós morava na

cidade e continuava trabalhando no sitio. Ia toda segunda feira e voltava no sábado. Passava

toda a semana no sitio e vinha pra cidade no final de semana. Trabalhei lá até os dezoito anos,

quando comecei a trabalhar empregado, numa fábrica, em Serviços Gerais, a Laminação

Nacional de Metais - LNM. Ela tem sede em Utinga, aqui perto de São Paulo, em Santo

André. O refino era feito lá... é uma siderúrgica. Ela fundia cobre. Agente fazia o bruto aqui e

ia pra Utinga pra refino.

Trabalhei nesta empresa de 69 a 74. Ela faliu! Dai que fui pra São Paulo. Já estava casado

nesta época, me casei com 23 anos44.

Fui morar no Jabaquara e trabalhar como Ajudante, a mesma coisa, lá na montagem do metro.

Acompanhei um pouco a história do metro de São Paulo. Trabalhei pouco tempo no metro;

dois anos só. Na época, inaugurou primeiro Jabaquara e Vila Mariana, depois inaugurou Praça

da Sé, ficou a Liberdade no meio. Depois que... foi inaugurada.

                                                                                                                         43 Entrevista realizada em 24.07.2012 às 14h20min, com Abel Paulino dos Santos; 64 anos de idade; Escolaridade: 2º Grau Completo. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 43min26seg; Local da entrevista: casa do colaborador. 44 Neste momento somos interrompidos por D. Maria Duffet que esta dando uma voltinha, “fazendo a caminhada”. Pergunta se encontrei o seu Cipriano, conversamos rapidamente e ela parte.

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Quando eu saí do metro eu tirei minha carta de motorista e fui trabalhar com caminhão. Eu

me aposentei como caminhoneiro. Trabalhei a maior parte da minha vida como caminhoneiro.

Trabalhei trinta e dois anos! Com insalubridade deu os trinta e cinco, pra aposentar. Só contou

o trabalho de caminhão pra me aposentar.

Por isso que eu falei que conheço tudo. Eu gostava muito de ser caminhoneiro, é bom! A

gente sofre mais é divertido. Só que a mulher cansou! Eu só vivia na estrada. Porque o

empregado... por exemplo, se eu saio, o caminhão é de São Paulo, eu carrego em São Paulo,

tenho a carga para Porto Alegre, uma hipótese, descarrego em Porto Alegre, ai já tem outra

carga esperando, vai pra outro lugar, pra Minas. Chega lá, vai pra Bahia. Assim, passava um

mês fora de casa.

Difícil ser mulher de caminhoneiro... Eu sou divorciado e minha ex mulher mora aqui em

Itapeva também. Temos um casal de filhos que moram em São Paulo, mas faz uns dez anos

que eu não vejo eles. Já devo ter netos!

Em 1997 eu voltei pra Itapeva, vim trabalhar pra cá. Morei vinte anos em São Paulo e voltei

pra Itapeva. Ai, agora em 2009 deu AVC em mim, daí que eu fui pro asilo. Tinha 60 anos

quando aconteceu. Eu morava com a minha mãe, que tem noventa e um anos - e “tá” mais

forte que eu, anda melhor que eu. Eu morava com a minha mãe e eu fiquei dependente de

tudo, tudo, tudo, tudo! Então é lógico que...

Eu estava consciente, o AVC não atingiu a mente, graças à Deus. Ai, fui pro asilo, passei um

ano e dez meses lá, daí, estava recuperado quando eu vim viver pra cá.

Lá é ótimo! No asilo, pelo menos esse daqui de Itapeva, os outros eu não sei, é muito bem

cuidado. Eu devo muito obrigação pra todo mundo lá. Os funcionários treinados te respeitam,

porque o importante é o respeito. Porque, se você me respeita eu tenho que te respeitar.

Lá tem horário pra tudo e a gente acostuma. Tem que acostumar de qualquer maneira. Por

exemplo, a gente que esta andando, tem que levantar quatro horas da manhã pra tomar banho.

Os que andam acordam as quatro e os que estão acamados - que dependem de uma cadeira de

rodas aí levanta às 5hs.

A rotina é assim porque o asilo funciona em dois turnos: das 7hs às 19hs e das 19hs às 7hs.

Então, se você esta à noite, entra às 19h e vai até às 7h da manhã, quando entrar o pessoal da

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manhã, já deve ter cuidado do banho de todos. Daí o pessoal que entra às 7h da manhã vai

cuidar dos acamados. É um negócio bem bolado.

Quando eu cheguei lá, fiquei seis meses na cadeira de rodas. O meu processo de recuperação

foi tranqüilo. Eu fazia tudo que precisa lá, tudo lá dentro do asilo mesmo. Esse asilo aqui você

é muito bem cuidado. Tem fisioterapeuta, muito bom lá. Excelente mesmo!

Nesta época eu dividia o quarto com mais três pessoas. Depois, quando eu saí da cadeira de

rodas me passaram pra um apartamento, dai. Os apartamentos eram pras pessoas que tinham

independência. As pessoas acamadas, mesmo os que andam mas não tem a consciência certa,

então divide o quarto em três, em cada quarto são três camas.

Mas, veja bem, lá não é ruim de ficar, só que o que é seu fica tudo lá. Por exemplo, eu já

estava aposentado, o cartão já ficava lá com a presidente, então, você não vê dinheiro e não

ter dinheiro é uma situação ruim, pra qualquer pessoa.

Agora, aqui já é o contrário. Saí de lá já me devolveram o cartão. Eu não gasto um salário

mínimo pra passar um mês aqui. Agora sobra um pouco. Então, pra mim “tá” ótimo!

Lá eu fiz muita amizade, tenho muita amizade com os funcionários, lógico. Interno não...

Interno é tudo... É difícil o interno que conversa direito lá. É tudo dependente, mesmo aqueles

que andam não falam coisa com coisa.

Então, eu fiz muita amizade com os funcionários e com a presidente do asilo. Inclusive eu

agradeço a ela por ter me dado força pra eu pegar essa casinha aqui. Eu agradeço à ela.

Eu estava no asilo e, a gente é comunicativo “né”. Ai saiu inscrição pra esse Programa. A

presidente falou pra mim assim - eu já estava andando, estava igual eu estou agora, eu tinha

me recuperado. Ela perguntou se interessava pra mim a casinha aqui, falei: “interessa”. Ela

falou: “só que tem que se virar por conta, tem que dar os pulos”. Eu falei: “não tem

problema”, ai ela me levou lá pra fazer a inscrição. Em todas as reuniões ela me levava, ai,

quando entregaram aqui eles me chamaram. Eu fiz a inscrição e chamaram e aqui está ótimo.

Não tem lugar melhor no mundo do que aqui viu!

Tenho contato com ela e sempre conversamos. Ela foi muito legal comigo. Então, quando eu

já estava andando; cada quinze dias eu ia na casa da minha mãe ai, eu pedia dinheiro pra ela,

lógico e ela dava um trocadinho pra eu ir.

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Eu podia sair. Eu tinha liberdade, porque eu fiz amizade e mantive... Mas era só eu também.

O resto lá, ninguém... Ninguém. Então, eles confiavam em mim né?

Aqui é muito tranqüilo, graças à Deus! Graças à Deus! Eu me relaciono bem com todos os

vizinhos, com todos eles. É muito bom demais. Foi tranqüilo me mudar pra cá.

Eu não tinha nada, porque no asilo não precisava, fui comprando tudo. Tudo fiado! O que tem

aqui é tudo fiado. E agora já está tudo pago. Agora é tudo meu.

Aqui sempre vêm estagiários. Semana passada estiveram aqui uns de Santo André, vieram

com o Projeto Rondon, uma molecada jovem e animada, vieram fazer exercícios com a gente.

Isso aqui foi tudo eles que fizeram pra mim45. Aquele ali é feito de areia. Faço todos os

exercícios recomendados. Esse aqui é embaixo da perna, pra fazer isso aqui46. Faço tudo aqui

em casa mesmo47. Esse ai é muito bom!

Acho que não existe velho. Acredito que não! Porque, uma hipótese, você tem trinta anos, eu

tenho trinta e dois. Eu sou mais velho, você já me chama de velho, mas outro que vem 29, 28,

vai te chamar de velho. E assim por diante, vamos que vamos...

Lógico que a gente pensa que vai ficar velho. A minha velhice vai ser dentro do asilo. Quando

eu não agüentar mais me cuidar aqui, volto pro asilo. Isso pra mim é sossegado. Eu já

conheço. Quem não conhece é que fica assustado.

Eu nunca tinha pensado que iria pro asilo. Nunca! Nunca! Porque a gente... só trabalhando,

trabalhando, trabalhando. Nós nunca... Você não pensa que vai ficar doente amanhã. Você

não pensa que vai ficar numa cadeira de rodas dependendo de todo mundo.

Agora, quando você cai, daí, você vê o quanto é difícil pra levantar. Porque a pessoa enquanto

não cai, ela não sabe o quanto demora pra levantar.

Eu até que me recuperei rápido, com seis meses já estava andando na rua. Agora, a mente da

pessoa também ajuda muito, porque você não pode pensar que vai ficar a vida toda numa

cadeira de rodas.

                                                                                                                         45Me mostra alguns pequenos equipamentos desenvolvidos artesanalmente para que possa trabalhar diferentes partes do corpo afetadas pelo AVC. 46 Me mostra como realiza o exercício. 47Me mostra outro equipamento.

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O que acontece? Eu, quando cheguei no asilo dependia de tudo! Aí, achei umas revistas

velhas: pegava uma cadeira encostava lá no canto e começava ler. Pra ocupar a mente porque

você não pode deixar a mente parada. Eu gosto de ler, adoro ler! Eu gosto de contos e de

literatura. Agora mesmo eu comecei um aqui48. Mas eu só iniciei.

Quando eu tava no asilo as visitas sempre me levavam livro. Lia lá no canto, encostado.

Sempre levavam livros pra eu ler. Ler é bom que ocupa a mente, você não fica pensando...

Porque a pessoa fica sozinha aqui, não faz nada, não tem o que fazer, se não ocupa a mente

em nada, daí só pensa bobagem. Eu passei esse tempo de recuperação só lendo, o que aparecia

era lucro.

Meu futuro? Só se acertar na mega sena, porque de aposentadoria não vai passar disso aqui. É

isso aqui o resto da vida, é ou não é?

De vez em quando eu saio. Eu tenho o problema das pernas, mas, eu uso bengala ainda, pra

sair na rua. Pegar ônibus é tranqüilo, vou com a bengala sem a bengala eu não faço nada.

Ando sem bengala por aqui que tem corrimão e é tudo plano.

Em casa eu não faço nada. Pago pensão pra mulher do Chaminé, d. Tereza. Daí, ela cozinha

pra mim e trás aqui. Ela também lava a minha roupa, faz tudo. Só que eu pago.

A amizade é bom por causa disso aí. A amizade e o respeito. Porque a gente tem que saber o

que fala, saber onde está. Isso é muito importante. Saber com quem conversa. Com você eu

posso conversar de um jeito e com outra pessoa muda o esquema. É como diz aquele ditado

antigo: “é conforme toque a dança”.

A gente tem que aprender a lidar com as pessoas porque... o mundo, dá muitas voltas, dá

muitas voltas, e numa dessas voltas, pra você cair é fácil, fácil. Depois que você cai, pra

levantar é difícil. E as pessoas podem te ajudar.

Não tenho medo de nada, graças à Deus. Nem de ficar sozinho. Pra mim é tranqüilo,

sossegado. Mas, se eu pudesse voltar no tempo, escreveria minha história diferente... O

mundo dá muitas voltas e o caminhoneiro, é muito raro você achar um motorista de caminhão

que não bebe uma cachaça, e eu bebia. Hoje não bebo nada, de maneira nenhuma. Nada, nada,

nada, só cigarro.

                                                                                                                         48 Me mostra o livro que começou a ler, “Os cem melhores contos brasileiros do século”.

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Aquele tempo não tinha bafômetro. Bebia e dirigia a noite toda. Agora a única coisa que

nunca fiz e eu vejo hoje é o tal de arrebite. Isso acaba com o caminhoneiro. Você dirige

dormindo. Você dorme com o olho aberto. Coloca em risco a própria vida. Então, se voltasse

naquele tempo...

Só parei de beber quando eu cai. Quando tive o AVC. E os médicos disseram que o AVC foi

por conta da bebida Então, se fosse voltar era só isso ai. E voltar no meu caminhão. Andar pro

mundo de novo!

A gente nunca deixa de ser caminhoneiro. É gostoso, você conhece... quer dizer, não conhece,

mas passa em muitos lugares bonitos: Norte, sul, leste e oeste. E também viajei pra fora do

país: Paraguai, Argentina... Então, eu andei por todo canto do mundo!

O maior contato que eu tenho é com a minha mãe, minha sobrinha e a minha irmã. Minha

mãe sempre vem aqui. Ela adora aqui. Passa o dia aqui, uh adora!

Ela faz tudo: cozinha e lava roupa. Aqui em casa não faz porque eu não deixo “né”. Quando

quero comer a comida dela eu como lá, domingo eu estive lá. Ela mora ali em cima, no Dom

Bosco, Parque São Jorge.

Aqui, eu tenho foto dela49. Meus irmãos moram aqui em Itapeva. Aqui é minha mãe e minha

irmã, que mora bem pertinho dela.

Amanhã pedi pra Maura50 mostrar fotos nossas que estão lá no computador. Tem fotos de

festa, muitas51.

Eu não tenho namorada, só umas brincadeira. Aqui a gente não pode trazer namoradas. Só pra

passear que pode, pra morar não. Esse aqui é o meu face52, pode me adicionar. Eu, às vezes

acesso pra me distrair, quem criou a minha página foi a guarda que mostrei nas fotos. Nunca

tinha mexido em computador. Aqui nos deram acesso e de vez em quando, eu acesso, só pra

passar o tempo.

                                                                                                                         49 Ele procura fotos no celular. 50 Monitora do Posto do Acessa Saúde existente na Vila. 51Me mostra as cerca de 80 fotos que estão armazenadas na memória do seu celular: festas de aniversário, baile de carnaval, mascaras de carnaval, crianças do bairro, vizinhos dançando, flores da Vila, e da casa do vizinhos do bairro, a árvore da entrada do condomínio- que quando chegaram era pequena e hoje esta enorme -, a mãe, a irmã, a guarda – que agora arrumou marido -, o pessoa de Santo André que vieram com o Projeto Rondon, o pé de mandioca braba, todos foram registrados pelos clicks de seu Abel. 52Me passa seu endereço de facebook.

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Fiz todo o meu estudo no sitio, em Itaberá, eu morava perto de Itaberá. A casa de que tenho

mais saudade é de quando eu tinha sete anos, que eu entrei no primeiro ano. Ah, era pau à

pique. Itaberá esta distante 32 Km daqui - lá é mais quente que aqui. A gente morava no sitio,

então era escola rural.

A professora descia na encruzilhada. Aquele tempo era estrada de terra, não tinha asfalto, não

tinha nada. Ela descia lá e tinha um aluno que tinha uma “éguinha” e uma charretinha. Ela

pagava pra ele levar ela até a escola. Quando ela chegava no ponto que descia do ônibus

passava na casa, pegava ele e iam de charrete.

Aquela procissão acompanhava até a escola. Era gostoso aquele tempo. Essa casa não existe

mais. Ah, não, agora é tudo eucalipto. Cinqüenta e tantos anos atrás...

Tudo era diferente, Eu nunca mais voltei lá, mas lá era gostoso.

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Dona  Zélia  Aires  dos  Santos53  

Desde que o meu menino mais novo se casou eu moro sozinha, já tem quase três anos. Já acostumei morar só, até gosto de ficar sozinha. É tranqüilo. Eu durmo a hora que eu quiser.

Zélia Aires: 64 anos: julho de 2012

Eu fui casada vinte e três anos. Tenho três filhos – dois homens e uma mulher. Estão todos já

criados. Dois moram aqui e um lá em Itararé, que fica a quarenta minutos daqui. Tenho sete

netos - três netas e quatro netos - fora os netos de enteados, ai, já tenho neto e bisneto.

Nasci em Jaguariaíva, é um município do Paraná. É município beira de linha. Meu pai era

ferroviário, trabalhou trinta e dois anos na rede ferroviária. Até os meus doze anos a gente

morou em beira de linha. Meu pai fazia permuta com outro trabalhador e a gente mudava pra

outra cidade; aquele trabalhador vinha pro nosso lugar. Crescemos assim. Daí viemos embora

pra Sengés, perto de Itararé e depois pra Itararé. Em Itararé ele se aposentou, ali moramos

mais uns tempos e foi ali que eu me casei.

Quando me casei fui morar em Sorocaba, morei um ano e meio lá. Voltei embora de novo.

Daí, fiquei em Itararé. Quando meu menino menor ia fazer cinco anos, viemos embora pra

Itapeva. Já faz dezoito anos que eu moro aqui. Viemos embora pra cá porque estava ruim de

serviço lá.

Meu marido trabalhou, a maior parte da vida, como vigia. Ele morreu com cinquenta e cinco

anos. Teve infarto fulminante. Isso já faz dezesseis anos. Meu menino menor tinha sete anos,

agora ele já está com vinte e três anos. Segurei a família sozinha, tinha dois filhos menores de

idade. O que vai fazer 31 anos tinha 15 na época

Sempre trabalhei; a vida toda! Em Itararé eu trabalhei muito de bóia fria. Ia pra roça plantar

feijão, quebrar milho, carpir, tudo isso. Quando eu vim pra cá, eu não fiz serviço de roça, fui

trabalhar nas casas e trabalhei na rodoviária. Agora eu faço bico lá de vez em quando. Quando

falta gente eu vou atender no guarda volume.

Logo que meu marido faleceu eu dei entrada nos papéis e já fiquei recebendo pensão, então,

não precisei batalhar tanto. Eu trabalho porque eu gosto de trabalhar.

                                                                                                                         53 Entrevista realizada em 25.07.2012 às 10h; com Zélia Aires dos Santos; 64 anos de idade; Escolaridade: não informada. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 22min49seg; Local da entrevista: Salão de Convivência do Condomínio.

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Desde que o meu menino mais novo se casou eu moro sozinha, já tem quase três anos. Já

acostumei morar só, até gosto de ficar sozinha. É tranqüilo. Eu durmo a hora que eu quiser.

Antes de morar aqui eu morava na Vila Nova numa casinha feinha. Essa aqui dá de cem à

zero. Mas eu gostava da Vila, porque era próxima do centro, próxima de tudo. E também já

tinha conhecimento de todos os vizinhos, tanto de frente quanto de lado. Mas a casinha era

muito, muito mal arrumada, mal feita mesmo. Eu morava a par da minha filha quando surgiu

essa daqui.

Minha ex nora pegou um jornalzinho e, por acaso, passou lá em casa e falou “olha dona

Zélia, vai fazer inscrição pra umas casinhas”, eu falei, “aonde?” e ela me disse “é lá na

assistência”. E fui lá. Eu perguntei pra mocinha que fez a inscrição “tem muita gente?” e ela

falou “não, só uns quinze”, na época só uns quinze tinham feito inscrição. Dai iam avaliaram

as pessoas.

Bem no dia que eles foram lá tirar foto a casa estava horrível. Eu morava de frente com outra

casa. Era uma entrada bem menor que aqui. De um lado uma casa do outro lado outra casa e,

no fundo tinha mais dois cômodos pegados com a minha casa.

Na frente morava a filha da mulher que era a dona da minha casa, eles são de cor. Eu sei que

um dia de noite o sobrinho brigou com o tio e daí, a mulher comprou pedra, areia, tijolo e

mandou cortar o terreno pela metade. Fizeram uma “valetona” deste tamanho, de frente da

minha casa, Iam fazer muro ali, pra um não ver a cara do outro. Dai ficou aquela coisa

horrível, tudo que era sujeira parava ali. Quando chovia enchia aquela valeta de água, estava

feio mesmo. Tudo isso na porta da minha casa.

Eu não dava nem bola pras brigas deles. Quando eles começavam a brigar eu ficava quietinha

dentro de casa. Eles foram tirar foto bem nesse dia e dai deu certo. Eles avaliaram eu e fui

sorteada. Ah, fiquei muito feliz quando soube que tinha dado certo, nossa! Ainda não sabia

onde era exatamente, porque a gente conhecia o centro do São Camilo, ali pra cima.

No começo eu não podia sair e ver ônibus pro centro que queria ir embora. Demorou pra

acostumar. A sorte é que eu ia trabalhar, dia sim, dia não, então ajudou. A gente não acostuma

assim de repente.

Minha vida mudou em todos os sentidos, principalmente no ambiente. Aqui é mais arejado,

você já não precisa estar correndo pondo pano pra não derramar água, e, a vizinhança também

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é melhor. Lá o rapaz, meu vizinho, era meio doidão. Ele tinha um” tchaco”, que é uma

corrente com dois bastões de madeira nas pontas. Esses loucos, bandidos que andam com ele.

Ele batia aquele “tchaco” o dia inteiro e à noite. Dava loucura nele, ele estava doido mesmo.

Um dia jogou uma pedra enorme, caiu bem em cima do meu quarto. Minha casa tinha dois

quartos e a cozinha, fez um “rombo” deste tamanho. Por loucura!

A minha filha morava na divisa de muro com ele. Um dia ele invocou com o meu netinho, o

menino ficou com trauma, tinha medo de sair na rua por causa dele. Ele ficava só andando de

um lado pro outro e o meu sobrinho via pela janela do quarto. Nem abria mais a janela do

quarto de medo. E daí levaram pra internar. Depois disso eu vejo sempre ele lá, mas nunca foi

de conversar com a gente.

Por essa e por outras, aqui é melhor. Aqui me sinto muito segura. Me relaciono bem com os

vizinhos, não vou na casa de ninguém, mas tenho um bom relacionamento. O tempo que eu

tenho pra ir em vizinho venho pra cá pro Centro de Convivência e fico no computador, entro

na internet, vejo meu facebook.

Também me relaciono bem com todos os meus filhos. Eles não vem me visitar, na verdade,

pra eles é muito longe. Minha filha trabalha, meus netos vão pra escola cedo, tem um que vai

de tarde, e daí, não dá pra eles virem sempre. Minha filha e meus netos vieram uma vez só

aqui. Já tem um ano que moro aqui e eles só conseguiram vir uma vez. Eu vou lá mais do que

eles vem aqui.

No fim de semana minha filha arruma a casa e ela não deixa os filhos saírem sozinhos. Pra vir

pra cá tem que usar ônibus ou usar moto ou tomar um taxi, então fica difícil, porque todo

mundo precisa de dinheiro. O pouquinho que sobra é pra investir em alguma coisa.

Eu não me considero velha. Velho não anda, ou anda caindo os pedaços. Aqui não é um

condomínio de velho é um condomínio de idoso. Idosa eu sou. Tem pessoa que fala que aqui

é a vila dos velhos, são pessoas cínicas, aqui ninguém se considera velho.

Eu nem sei dizer como é ser velho. Não sei dizer porque eu não sou velha e acho que não vou

envelhecer. A gente tem o pensamento bom e enquanto não tiver gaga mesmo, enquanto não

esquecer de tudo, eu serei jovem. Quando começar a esquecer, ai já não poderei mais andar

sozinha, não poderei mais lembrar das coisas, já estarei velha.

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Eu nunca pensei na velhice. Antes do casamento, a gente sempre andava: bailinho, praça.

Aquele tempo você podia passear numa praça que ninguém falava mal. Agora não, agora se

for na praça fica falada. Isso foi lá em mil novecentos e bolinha, quando era solteira.

Depois que fiquei viúva não saiu em lugar nenhum. Gosto de viajar, viajo sozinha mesmo. Eu

fui pra Santos, tenho uma irmã lá em São Sebastião, tenho irmã em Curitiba, tem uma enteada

minha que mora em Castro, no Paraná. Na casa dela eu vou todo mês, vendo catálogo pra ela.

Ai eu levo, fico dois, três dias lá e depois venho embora. Em fevereiro fui em São Sebastião

na casa da minha irmã, passei vinte dias lá com ela.

Meus filhos vivem me falando “mãe, a hora que nós tiver uma casa a srª vai morar

comigo”. Um deles falou assim pra mim “mãe, a hora que eu casar eu vou levar a srª pra

morar comigo”, e eu sempre dou essa frase pra eles: “olha, eu prefiro asilo a ter que morar

com um filho” . Deus me livre de morar com filhos!

Ah não, você fica ali pra ser inútil, se senti inútil. Ontem mesmo eu estava comentando com a

Maria que quando você precisa dos outros você fica assim, nem tem explicação. Parece que

está faltando um pedaço da gente. Imagina: você fazendo serviço e eu olhando. Eu fico

desesperada só de pensar. Você chacoalhando a criança que está chorando e eu do lado

olhando...

Prefiro ir pra um asilo, não tenho medo. Aliás, não tenho medo de nada. Só tenho medo de

Deus me castigar de alguma coisa. Medo de pecar, falar alguma coisa por acaso, às vezes a

gente fala besteira. Tenho medo de castigo de Deus.

Eu não mudaria nada na minha vida. Viveria tudo do mesmo jeito, porque faz parte da vida da

gente tudo isso que a gente viveu. Trabalhar todo mundo tem que trabalhar, porque se todo

mundo fosse rico não teria muita graça, se as pessoas não precisassem uns dos outros...

Eu sou católica, não sou freqüente, mas vou à igreja católica. Agora tem no radio, tem na

televisão, você assiste ali não é mesmo. Eu até vou na igreja, eu entro na igreja eu sento, eu

rezo, eu faço minha oração mas, sozinha. Entro lá na igreja, às vezes tá um calorão lá fora, lá

do lado de dentro tá fresquinho, uma paz. Então eu sento lá e rezo...

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Dona  Maria  Teresa  da  Rosa54

Eu adoro minha casa, adoro o lugar que moro... Ah, eu gosto da minha cozinha. Eu adoro cozinhar, fazer coisas diferentes, copiar receitas...

Maria Tereza Rosa: 63 anos: julho de 2012

Eu nasci em 1949 em Presidente Prudente, vim pra Itapeva muito pequenininha. Minha mãe

morava lá, meu pai nasceu lá. Daí, minha mãe já tinha minhas duas irmãs. As três irmãs que

se dão bem até agora.

A minha mãe veio embora morar no vale do Ribeira. Lá, minha mãe morou bastante tempo e

quando eu tinha uns dois anos o meu pai morreu. Eu nem conheci o meu pai! Quando ele

morreu minha mãe tinha eu e meus três irmãos, que era um homem e as três meninas.

Minha mãe tinha muita dificuldade pra criar a gente, então ela foi dando os filhos. Só ficou

com uma. Ela deu o meu irmão e me deu pra uma senhora. Eu fui morar com uma mulher

muito ruim, nossa, me criei assim... Ela me deu com dois anos de idade - quando o meu pai

morreu.

Meu pai morreu por que ele gostava muito da gente - a minha contava que ele foi pescar

porque eu queria comer peixe... Queria peixe, ele foi pescar... Daí, ele pegou febre tifóide.

Durou uma semana e morreu. Minha mãe deu a gente por causa disso, porque ela não podia

criar as crianças.

Nossa, a mulher que me pegou era muito ruim! Ela morava no Vale do Ribeira, é lá de Apiaí.

Lá eu apanhava demais, demais, demais... Me criou como filha mas, judiava mais que tudo.

Ela tinha outros filhos, nascidos dela mesmo.

Ai, eu pequenininha tinha que fazer o serviço. Com cinco anos já tinha que trabalhar na roça.

Comecei a cuidar da casa, eu não tinha nem tamanho pra ficar no fogão fazendo comida e já

fazia, com sete anos.

Com dez anos já lavava tudo a roupa, cuidava da casa.

                                                                                                                         54 Entrevista realizada em 26.07.2012 às 10h30min; com Maria Aparecida Rosa; 63 anos de idade; Escolaridade: 4ª série. Condomínio Vila Dignidade; Itapeva – S.P; Duração: 1h00min33seg; Local da entrevista: Casa da Colaboradora.

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Mas só que daí, acho que eu tinha uns dez anos...

A minha mãe... essa mulher, acho que percebeu...porque o meu pai, inclusive a minha família

nem sabe disso, e...

Meu pai, eu acho que ele queria assim... abusar de mim, por causa que ele convidava eu pra

ir... ele ia deitar cedo e chamava eu pra ir deitar com ele. Acho que ela percebeu, ai ela

chegou brava assim comigo, e falou pra mim: “você vai embora com a sua mãe que mora em

Itapeva, que eu não sou a sua mãe”. Assim. Eu não sabia que era adotiva. Pra mim aquilo,

nossa, foi uma morte!

Meu pai não chegou a abusar de mim. Eu chorava dia e noite, porque eu queria vim conhecer

a minha mãe que morava em Itapeva...

Ai ela escreveu pro meu vô e tudo. Meu vô foi me buscar e eu vim, mas, eu vim achando que

eu tinha a minha mãe só pra mim...

Minha mãe morava num sitio e meu vô levou eu pra ela.

Quando eu cheguei lá, minha mãe tinha mais cinco filhos já. Pra mim foi uma decepção né.

Meu padrasto muito bravo... Ai eu comecei a trabalhar na roça de novo. Cinco horas da

manhã ia praquele orvalho carpir roça. Nossa, a gente não descansava.

Eu sempre ouvia meu padrasto falar: “eu não sou obrigado a tratar de filho dos outros”.

Aquilo, nossa, pra mim era... - só eu voltei pra morar com ela, meus outros irmãos

trabalhavam aqui em Itapeva, na cidade. Já estavam tudo moços.

Ai foi aquela coisa. Como eu sofria muito na roça, eu falei pra minha mãe: “ah, eu quero vir

trabalhar na cidade”. Daí que eu vim morar aqui em Itapeva com o meu vô, pai da minha

mãe. Cheguei aqui meu vô era tão ruim, tão ruim... sofri tudo de novo.

Eu lembro que eu meu vô era muito ruim.

Ele não fazia nada, acho que ele já era aposentado, essas coisas.

Com o meu vô era assim: você tinha que sair de um serviço e arrumar outro já, pra ir no outro

dia. Se você ficasse na casa dele, você não podia comer. Você tinha que ficar sem comer.

Então eu era aquela menina que, eu saia de um serviço e, já arrumava outro pra trabalhar no

outro dia. Eu trabalhava de doméstica.

Então, eu trabalhei olha, sem quase descanso, o tempo todo. Nem final de semana podia ficar

na casa.

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Antigamente a gente trabalhava no domingo, então eu trabalhava a semana inteira. Eu não

tinha descanso. Eu vim descansar mesmo, agora que sou aposentada.

Quando meu vô morreu eu fui embora, eu falei: “aí, eu vou embora pra São Paulo”.

Eu já tinha dezessete anos. Trabalhei em São Paulo três anos. Trabalhei em Pinheiros.

Eu arrumava um serviço, eu não tinha juízo. Procurava o emprego aqui mesmo, eu ia na casa

de alguém e já falava: “viu, tá precisando de uma empregada pra levar pra São Paulo?”.

Eu já ia. Fui trabalhar em São Paulo, mas, lá também era sofrido. Trabalhei com gente ruim.

Trabalhei três anos, depois trabalhei dois anos em Sorocaba. De Sorocaba eu arrumei um

serviço e vim embora pra Piracicaba. Em Piracicaba eu trabalhei dezenove anos.

Um dia, eu vim passear aqui na casa da minha mãe - ela mãe não “tava” boa, “tava” doente.

Dai ela falou assim: “oh, eu só vou morrer em paz na hora que meus filhos estiverem tudo

perto de mim”. Dai, eu fui lá em Piracicaba pedi a conta e vim embora. Cheguei aqui no dia

dezenove de junho, quando foi no dia nove de setembro minha mãe morreu.

Já “tava” todo mundo aqui: três irmãos já tinham casado.

Os irmãos que foram dados sabiam, todas elas sabiam quem era sua mãe. Elas sempre

viveram aqui em Itapeva, uma ficava com o meu vô.

Eu vim embora e, quando minha mãe morreu, começou tudo de novo. Essa minha irmã, que

agora se preocupa muito comigo, que... se eu falar um A... ontem mesmo ela já ligou de noite:

“venha pra cá pra casa se você não tiver boa”.

Mas, ela era muito ruim, nossa... Na casa dela, ela fazia coisas e a gente não podia nem

mexer. Eu trabalhava fora e morava na casa dela. Acho que morei um ano na casa dessa irmã

e eu não podia comer na casa dela.

Eles comiam as coisas e a gente não comia. O tempo inteiro da minha vida foi assim. Eu

passei um tempo que eu enjoei de miojo porque eu só comia miojo.

Nossa ela não dava as coisas pra gente, meu Deus! O tempo inteiro eu chorava pra minha

sobrinha, mas eu chorava, chorava... Daí, minha sobrinha falou assim, “Ah, mais porque que a

senhora não vai morar sozinha?”

Então que eu arrumei uma casa, aluguei casa e dai fui morar sozinha.

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Quando saiu a inscrição pra essas casas aqui, nossa, eu dei graças à Deus. Eu pedia todo dia

pra Deus que eu queria ter essa casa.

Quando eu fui chamada pra pegar a casa, pra mim parecia que eu tava no céu e eu também já

estava aposentada - vai fazer três anos que estou aposentada.

Desde setenta e três, quando saiu o registro pra empregada, eu já tava registrada. Mas eu

podia ter aposentado há mais tempo. Eu trabalhava, as patroas descontava o INSS de mim e

não pagavam, por isso que eu demorei a me aposentar.

Eu não me casei. Eu não quis casar. Eu namorei uns três moços, mas até dei graça que não

casei. Todos que eu namorei até hoje só deram problema também, Tem um moço que eu

namorei até matar gente ele matou...

Agora também não vou querer arrumar ninguém. Porque agora eu tenho uma vida mais...

Nossa, a vida que eu levo agora...

Antes de vir pra cá eu morava no Jardim Maringá. Morava sozinha numa casa alugada.

Ah, a casa era assim....Muito, muito embolorada. Não batia sol. E então, eu comecei a ter

problema de muita tosse por causa da umidade.

Morei lá uns três anos. Uns três ou quatro anos. Pagava R$ 240,00 de aluguel. Caro!

Lá, tinha dia que eu passava sem comer o meu viradinho de farinha com café. Porque não

dava pra pagar o aluguel.

Minha aposentadoria é um salário mínimo, mas naquele tempo ainda não estava ganhando o

que a gente ganha agora, R$ 600. Agora dá pra gente viver. E aqui a gente não paga aluguel,

só paga a luz - eu passei a viver bemmmm mesmo depois que eu mudei aqui.

Da minha vida inteira aqui é o lugar que eu vivo melhor. Ah, nossa, não tem nem

comparação, com os outros lugares.

Ah, não tenho muita saudade de nenhum dos lugares onde vivi. Ah, só sofrimento! Só de

Piracicaba. Ah, lá em Piracicaba, se eu pudesse, nossa, eu morava lá. É o que eu falo: “eu

moro em Itapeva, mas o meu coração é piracicabano” (riso). Aí, eu adoro Piracicaba, nossa!

Foi muito bom viver lá. Morei dezenove anos.

Trabalhei em várias casas, mas, sempre com gente boa. Tinha lugar que eu morava no

trabalho e tinha lugar que não. Quando não dava pra morar eu arrumei uma senhora viúva que

precisava de gente pra morar junto, de companhia. Morei bastante tempo lá.

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Nossa, em Piracicaba eu trabalhei sempre com gente boa. E eu fui assim, muito dedicada ao

serviço. Então, todas as patroas falavam que eu tinha uma excelente qualidade. Eu cuidava

bem dos filhos delas, fazia o serviço tudo direito.

Eu trabalhei todo esse tempo, nunca cheguei um dia atrasada no serviço. Nunca faltei no

serviço, porque eu achava que eu tinha aquela responsabilidade no meu serviço, então, todo

mundo admirava isso de mim.

E tem um monte de filhos dos outros que eu criei55. Tem aqui, essas criançadinhas são todos

que eu cuidei. Essa aqui é minha irmã. Essa foto é de quando eu tinha uns catorze anos. Essa

era a casa de uma amiga minha. Aqui mesmo, no jardim Maringá. Essa daqui já é médica em

São Paulo. Essa outra é a irmã dela, também é médica ginecologista, em Piracicaba.

O menininho de cima ali também eu cuidei. A menininha de lá também cuidei dela Toda essa

criançadinha. Essa aqui é a minha sobrinha, meus amigos, minha irmã. Minha sobrinha e meu

irmão ali em baixo. Ele mora ali em cima, perto da padaria. Aqui no bairro. Essa ai é uma

amiga minha, mora lá em Sorocaba, era enfermeira do Regional.

Aquele menino ali também, no convite de casamento dele. Ele é engenheiro, da madeireira.

Ele mora aqui, naquele bairro novo ali em cima. Nasceu o filhinho dele esses dias. Trabalhei

treze anos na casa dele. Eu criei ele! Ele tinha seis anos. Tem a irmã dele que é médica lá em

Alphaville, e tem a outra irmã dele que esta se formando em enfermeira padrão.

Ah, mas ela onde eu vejo... eu só escuto o grito: “Má, vai lá em casa”. Eles sempre vêm aqui,

a mãe deles sempre vem e a tia também.

Eu trabalhei na vó deles muito tempo. A vó dele me adora, nossa! Tem ali na família

Rezende, nossa senhora, tem uma coisa por causa de mim. Eu vou sempre lá também.

Esse de vermelhinho também eu cuidei. A minha sobrinha – que trabalhava junto comigo - e

as meninas, também cuidei delas. Essas meninas também gostam muito de mim, nossa. São

todas aqui de Itapeva, moram lá no Jardim América. Tão tudo mocinha já.

Essa do lado...Essa ai é minha mãe e minha sobrinha.

Essa de cá então, ela é uma belezinha. Eu fazia almoço ela falava: “ai, D. Maria, mais eu

gosto tanto dessa comida que a senhora faz”. É uma belezinha ela. São muito educados. A

mãe dela trabalha no Banco do Brasil.

Nossa, eu gosto muito delas. Vou nas casas visitar. Todos os lugares onde eu trabalhei eu vou

passear, Sorocaba, nossa também eu vou.

                                                                                                                         55 Mostra, no canto da sala, uma mesinha repleta de porta retratos.

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Foi tranquilo vim pra cá. Eu já conhecia o bairro São Camilo. Não teve problema de vir morar

aqui. Aqui é bem localizado, porque a gente vai pro centro a hora que a gente quer. Tem

ônibus na porta.

Lá no centro também é muito agitado, lá onde a minha irmã mora é bem agitado e aqui não,

aqui é tranquilinho, gostoso, eu me dou com todo mundo, gosto de todo mundo. Eu não tenho

nada contra aqui, nada.

Eu não sinto saudade de nada. Eu acho que não.

Adoro minha casa, adoro morar aqui. Eu vou, saio, assim, mas quando chego aqui é um alivio

parece... É que aqui eu sei que só vou sair daqui pra últimas moradas. E, se ficar dependente,

vou pra um asilo ou, na casa de familiar.

A minha irmã ontem mesmo estava falando, essa irmã que não deixava eu jantar, ela não

deixa pôr no asilo. Hoje ela me adora.

Ela me liga todo santo dia. Ontem eu estava no hospital e ela ligou umas três vezes. Ah, então

agora ela mudou bastante. Da outra eu também gosto muito. Ela é muito boa pra mim.

Não tenho só três irmãos, tem mais. Do meu pai, vivos, só tem eu e minhas duas irmãs. A

gente sempre esta juntas. Os outros irmãos – filhos do meu padrasto - alguns andam meio

assim...

Eu sempre fui assim: eu queria ter uma família. Eu queria assim, ter minha casa. Eu sempre

falava: “o dia que eu tiver a minha casa eu junto a minha família pra almoçar na minha

casa”. E essas coisas não acontecem. Os meus parentes quase não vêm aqui. O pessoal ai

mesmo fala “credo Maria os seus parentes não vem na sua casa”. Eu falo, “eles não vêm

mesmo”. Só essas legítimas. Elas vêm sempre aqui, mas os outros não.

Eu tenho uma irmã que eu encontrei com ela anteontem e até falei pra ela: “nossa, você não

ligou nem pra saber como que eu tava”. Ela sabia que eu tinha caído. Não veio nem saber

como que eu tava. Moram tudo aqui em Itapeva e eu, nossa, qualquer coisa que acontece com

elas eu já ligo pra saber se querem que eu vá ajudar.

Ontem, eu no hospital, a enfermeira falou: “escuta, você não tem parente?” Eu falei:

“tenho”. Ela falou: “mas você tá sozinha aqui”.Eu falei: “tô né, infelizmente eu tô”. Dai a

moça que organiza as coisas lá do CREAS, eu encontrei com ela ontem no “postão” e ela

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falou: “você sozinha aqui?”. Eu falei “tô”. Ela falou: “nossa, mas você corre tanto pelas

pessoas e quando chega a sua vez ninguém corre por você?”. Eu falei “ah, infelizmente né”.

Mas, quem sou eu pra julgar? Quem vai julgar isso é Deus.

Ontem eu encontrei com a minha sobrinha no “postão”. Ela nem sabia que eu tinha caído.

Quando ela me viu fez uma cara tão ruim pra mim, mas nem conversou comigo, não disse um

“A”. A amiga dela, que estava com ela, é que falou: “nossa, o que aconteceu?” Eu falei que

tinha caído. Ela não disse nada! Então, a gente sente, mas deixa pra lá. Porque agora eu estou

bem, tenho bastante amigos.

Hoje cedo eu saí e a moça disse assim: “engraçado, você nem parece que tem 63 anos,

porque você é divertida”. Eu falei: “mas eu gosto de ser assim”. Eu falei: “eu tenho que ser

assim senão não tem qualidade de vida”. Eu converso com criança, converso com gente de

idade, converso com moço, converso com todo mundo.

E essa irmã que liga pra mim também. Se você ver ela, é pior do que eu. Outro dia ela falou

pra mim: “você já pensou Maria, se eu morasse na sua vila eu ia animar o pessoal lá”. Mas

ela é terrível. Tem 67. Mas você não diz que ela tem 67. As velhinhas falam: “ai velha”, ela

fala “não existe velho, velho é um trapo velho que a gente joga no lixo”.

Eu não me acho velha porque eu tenho o espírito jovem - não vou também ficar usando uma

coisa de jovenzinha, eu sei me colocar. Ah, mais assim de... se tem que ir num lugar assim...

eu agito também. As turmas aqui que fala: “ai Maria, você não tem jeito né”. Eu falo: “ah,

preciso animar”. Os idosos já tão... coitados, tudo triste, eu também vou ficar triste? Eu não.

Ah, eu não tenho nem idéia de como seja envelhecer. Não tem gente velha né? Velho é assim:

aquela pessoa que está em cima de uma cama, que não pode mais se locomover,...

Eu não, eu ando, vou ao supermercado. A turma pede pra ir comprar as coisas eu vou, pedi

pra ir à padaria eu vou, e ando por ai, e faço amizade com todo mundo.

Se eu passo perto de um já falo: “ai, mas hoje tá frio não?” O fulano já fala: “ah é” e já faço

amizade. Se eu vou passear também eu me divirto no passeio, eu... nossa!

Ah, eu acho que não vai dá tempo de envelhecer. E se der, eu me cuido, tento manter a

qualidade de vida. Eu não faço extravagância, como o que é pra comer, não fico que nem...

Eu tenho uma irmã que não se cuida, ela come gordura, ela agora está fazendo regime com o

médico, porque ela tem o colesterol – triglicério muito alto.

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Então, ela é assim, eu já não, eu escolho o que comer, o médico “tá” sempre me orientando.

Agora mesmo eu estou com a nutricionista e a endócrino - a nutricionista eu vou na APAI, ela

é médica lá, e a endócrino, Drª Valéria, é legal pra cuidar também. Pra mim não tem erro.

Passo com o drº Leonardo, que ele também cuida das pessoas de idade. Ele vem aqui. Dia 14

ele esta ai. Então, eu tô sempre procurando ter orientação.

Porque se vem um e fala assim, ou o médico fala: “tal coisa é assim”, eu já falo: “o senhor

me explica melhor? Porque eu quero ter qualidade de vida boa”. Então eu como o que é pra

comer, não fico comendo gordura, não como nada embutido, o que o médico manda.

Na minha casa eu não como nada de assado, nada de sazon, caldo knorr, nada destas coisas,

refrigerante, nada, suco em pozinho. Eu tento me cuidar.

Às vezes eu falo ai pra turma: “ai gente, vocês vão comer isso? mas você tem que ter

qualidade de vida pra vocês viverem mais”.Se depender disso então eu vou ficar pros 100

anos.

Ah, mas eu não quero chegar lá, porque daí a cabeça da gente começa a ficar muito...

Apesar que a dona Maria Duffet tem 85 anos e todo mundo fala que ela vai passar dos 100!

Aquela é demais. Você vê ela seguindo sozinha, ela vai passeando. Vai pra cidade todo dia,

pra ela não tem tempo quente. Um dia nós demos tanta risada que a psicóloga veio ai, a

Vanessa – ela vem toda segunda – daí, ela falou assim: “ai, Dona Maria às vezes a senhora

quer falar do passado...” Ela falou assim: “eu não vou falar do passado sabe porque? Quem

vive do passado é museu e eu não sou museu”. Nós demos tanta risada.

Nossa, eu adoro ela! Ela já levanta cedo, passa aqui gritando de lá: “tudo bom Dona Maria”.

Ela vai pro centro pergunta se eu quero alguma coisa pra ela comprar, se ela tem coisa ela

divide comigo eu divido com ela. Nos damos muito bem! No outro bairro eu não tinha

amigos, assim não. É que lá, no Jardim Maringá, onde eu morava era mais assim: “oi fulano,

oi cicrano”. Agora, a dona Maria não. Eu vou na casa dela, ela vem aqui.

Acho que aqui a turma cuida muito de mim.

Porque se eu levantar aqui e ninguém vê eu ir pra lá, o povo já vem tudo aqui. Saber se eu

estou bem, o que esta acontecendo. E também não pode ter inimizade aqui dentro. Pra mim é

muito bom assim, eu gosto.

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O que eu quero da vida é passear bastante. Eu já falei que a partir do ano que vem eu vou

economizar um pouco pra passear mais. Minha vida financeira melhorou, bem mais, depois

que eu vim pra cá. E também eu como melhor - o que eu não comia antes eu como de tudo

que eu quero. Como muita fruta, verdura, não deixo faltar essas coisas.

Que eu sou assim; se falar que a verdura verde escuro não deixa dar muito Alzheimer, eu já

procuro comer as verduras verde escuro.

Aqui tem a casa do Mais Sabor, então lá vende muito tipo de coisas diet, castanha - também

procuro comer tudo essas coisas, só que tem coisas também que não pode comer.

No Mais Sabor é bom porque lá é o verdadeiro, se você comprar no mercado já vem

misturado.

A nutricionista deu agora pra eu tomar farinha de berinjela, mas tenho que comprar lá. Eu já

achei a farinha de berinjela, eu só não comprei no mercado porque eu fiquei com medo de não

ser a pura, e lá no Mais Sabor é puro.

Eu era católica, agora sou da cristã do Brasil. Não sou batizada, eu só sigo a Igreja, por

enquanto. Não pode assim também ir se batizando...

Faz uns cinco anos já que freqüento essa igreja. Ela fica lá no Jardim Maringá, é pertinho, eu

vou a pé, ando muito a pé.

Medo de ficar velha? Ah, eu tenho medo assim, de ficar com cem anos e perder a memória.

Eu tenho muito medo. Eu tenho medo do mal de Alzheimer por causo disso. Eu leio bastante

e também a gente faz atividade aqui pra cabeça, de jogar, de pintar alguma coisa.

Se depender de usar a cabeça, então, isso aí [Alzheimer] eu não vou ter nunca. Eu sou muito

ativa.

Ah, não sei não se mudaria alguma coisa da minha história. Filhos, ah, seria só um problema.

Eu não me arrependo de não ter filhos. Agradeço à Deus todos os dias. Porque eu acho assim,

se Deus não me deu um filho é porque ele não queria.

Eu podia ter um filho que fosse cuidar de mim, mas podia ter um filho que me desse trabalho

com droga, um filho ruim.

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Eu tenho uma irmã, do segundo pai, a vida dela é um martírio - hoje mesmo eu tava falando

dela. A minha irmã é uma pessoa que não vive. Eu não gosto nem de conversar com ela. Eu

falo pra ela: “mas saia, conversar”. Ela é assim: “eu vou sair alguém vai dizer alguma coisa

pra mim, eu vou ficar triste, aborrecida, é melhor eu ficar dentro da minha casa”.

Eu digo: “não, você vai encontrar quem vai falar coisa pra você que vai te deixar triste, mas

você não pode se deixar levar, ficar triste, tem que deixar pra lá, a vida que continua. Você

não pode querer fazer justiça, porque a justiça é Deus que faz, não a gente”.

Ai, você chega lá ela fala assim: “eu tô desgostosa da minha vida, eu tenho vontade de pegar

e dar um tiro na cabeça”. Um dia eu fiquei brava com ela... Porque ela tem um...

Agora a filha dela casou, vai fazer um mês. Ela tem ainda uma filha solteira, com 32 anos, e

uma menina de treze. Se as crianças fazem alguma coisa ela fala: “que não pode pegar e por

um veneno na panela de comida e dar pra essas crianças”.

Você vê! Ela é da igreja cristã. Não perde um dia de missa. Se você faz alguma coisa pra ela,

ela não é capaz de perdoar você. Ela já fala: “eu não gosto daquele fulano porque não sei o

que...” Se ela passa perto de uma casa bonita lá ela fala: “não é assim, eu faço tudo da vida,

todo domingo...”.

Depois que eu comecei a estudar a bíblia eu mudei completamente. Minha vida é outra coisa.

Eu alcanço muita graça de Deus! Quando eu fui morar sozinha eu não tinha nada. Minha irmã

deu uma xícara, minha sobrinha me deu um garfo, uma colher e um prato.

A outra minha sobrinha me deu uma panela. Eu cozinhava alguma coisa na panela, virava

num prato, pra poder cozinha outra, e nem por isso eu ia maldizer a Deus.

Daí eu andava na rua minha irmã falava bem assim: “você não vai comprar um fogão?”

A minha irmã só tinha me dado um fogão de duas bocas, minha prima me deu o gás. Eu

falava: “eu vou, o dia que Deus achar que eu tenho que ter um fogão. O dia que eu tiver um

fogão é porque Deus achou que eu merecia”.

Ai, um dia eu vinha vindo na rua, falei: “Ah, Senhor, o dia que o Senhor acha que eu devo ter

um fogão me dê a oportunidade de ter”. Cheguei de noite na minha casa, chegou uma mulher

e falou assim: “viu, eu tô com um fogão na minha casa”. Aquele dia eu fiquei com o fogão.

Então é assim!

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Agora, minha irmã não, se ela passar lá e ver uma casa bonita ela fala assim: “ai credo, ai

como Deus é injusto não? Dá uma casa bonita, tanto pros outros e não dá nada pra mim”.

Mas ela tem a casa dela. A casa dela não é ruim.

A gente viu um casarão: “Deus é injusto que deu um casarão pro fulano e não deu uma casa

assim pra mim. Por que será? Acho que Deus é tão injusto”. Mas não é assim.

Eu falo pra ela: “mas não é assim, se Deus ainda não te deu é porque ele acha que você

ainda não mereceu e que não é hora. Tem que ter hora pra tudo”.

Eu, se vou comprar um coisa, eu falo assim: “se Deus achar que é pra eu ter aquela coisa,

Deus vai permitir que eu vou poder comprar”.

Tudo que eu tenho eu comprei depois que vim morar aqui. Tudo que eu tenho aqui eu

comprei. Agora só falta comprar a mesa, o fogão. A semana que vem eu vou comprar uma

cama de casal, porque a minha é pequenininha. Falei: “eu vou comprar se Deus permitir”.

Estou terminando de pagar essas coisas e, acabando, compro a cama. Então, eu não posso

dizer assim: “eu vou comprar, vou fazer aquela coisa”.

Não, eu falo: “Não, você vai fazer se Deus quiser que você faça”.

E a minha irmã é assim. Se ela vai lá numa festa, você esta lá, que ela não topa muito, ela não

fala assim: “vou na festa, vou ficar em tão canto lá e...”

Ela fala: “eu não vou, porque tem gente lá que eu não gosto, porque não sei o que...” Se ela

chegar e você tiver lá ela fala assim: “ai, não deveria nem ter vindo porque fulano tá lá”.

Então, ela é uma pessoa muito assim.

Eu falo pra ela: “mas não é assim fulana, deixa os outros, quem vai fazer justiça é Deus, não

é você. Deixe os outros viver a vida deles. Não interessa”. Ela fala “ah, não, porque não sei o

que...”. Ai, meu Deus, eu não gosto nem de conversar com a minha irmã.

Eu já sou diferente, agradeço à Deus todo santo dia por ter conseguido essa casa. Eu nem sei

como agradecer tanto Deus. Todo dia que eu faço a oração eu falo: “eu e minha casa

servimos ao Senhor”. Todo santo dia!

Eu nem sei o que é solidão. Essa minha irmã vive falando: “ai Maria, você mora sozinha,

porque não sei o que... aí, a gente sente uma solidão, você não sente solidão?”.

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Eu falei: “eu? Nem sei o que é isso, nem tenho tempo de pensar na solidão. Não tenho

mesmo!” Todo dia eu arrumo uma coisa pra fazer, e todo dia eu sou a mesma coisa.

Não sei quem falou pra mim: “ai, tô brava”. Eu falei: “Olha, que vantagem tem você ficar

brava? Tem dois tempos, um de ficar brava e outro de ficar boa. Então porque já não anda

boa o tempo inteiro?” Mas não é mais fácil? Vai ter que ficar brava? Você vai sofrer. Você

não vai ter que ficar boa depois? Então porque já não andar o tempo inteiro bem com a vida?

Eu adoro viver aqui, que delicia!

Aí, acho que não quero arrumar um namorado, eu não, credo. Vou ter que ter tanto

compromisso... Ah não, traz muito problema pra gente. Eu vivo tão bem! Adoro viver!

Tudo que eu falava antigamente, que eu não queria mais viver, hoje eu falo, “eu amo viver,

que coisa mais gostosa”.

Sim, já fiquei cansada da vida - no tempo que eu sofria. Mas hoje, eu adoro viver, nossa, eu

amo viver.

Sempre agradeço à Deus, porque viver é muito bom.

Deus só te da uma perna boa, não tem deficiência, você não está doente - pense em várias

pessoas que estão lá em cima de uma cama querendo andar, querendo viver, coitadas.

E a gente reclamando, Af, eu nem reclamo. Não reclamo56.

Eu adoro, adoro minha casa, adoro o lugar que moro... Ah, eu gosto da minha cozinha.

Eu adoro cozinhar, fazer coisas diferentes, copiar receitas...

Olha o tanto de livro de receita57. Quando eu quero fazer uma coisa assim, que eu não posso

comer muito, eu faço e divido com o pessoal - levo um potinho na casa de um e fico só com

um pouquinho pra mim. Eu já divido com os outros.

Eu cuidei da senhora ali da Casa 1 - fiquei três dias com ela lá na Santa Casa.

O dia que ela saiu pra ir pro asilo, eu fui com ela até na porta - fui muito bem, mas cheguei

aqui à zero, todo mundo percebeu.

                                                                                                                         56 Se oferece para me prepara um chazinho com torradinhas, pra que eu fique com fome nas próximas entrevistas. Aproveita pra me perguntar: “essa entrevista é pra mostrar pras pessoas que também neste núcleo de Vila, as pessoas vivem bem e que devia o governo então fazer mais? Explico à ela que a proposta do projeto é pensar formas de moradia alternativas aos asilos (Instituições de Longa Permanência). 57 Mostra, no rack da T.V, a parte destinada aos livros de receita.

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Na hora que aquela mulher chegou no asilo eu chorei tanto, de ver que ela tem tanto filho,

neto e a mulher ter que ficar no asilo. Eu não me conformava. Foi difícil convencer ela que

tinha que ir pro asilo - no dia que falaram eu já, pronto, pra mim...

Eu acho assim, que devia ter um lugar, por exemplo: em Piracicaba tem uma coisa muito boa

no asilo, eu achei o asilo de lá excelente. É assim: tem aqueles que não podem se locomover -

eu fui lá há anos, mas não me esqueço - então, eles ficam num lugar que ficam só as pessoas

cuidando no quarto.

Mas, dentro do asilo, é como se fosse aqui, cada um tem sua casa - uma belezinha, as casas

tudo com seu jardinzinho, eles cuidam. Ai que coisa mais linda! Muito lindo! Eu lembro que

quando eu fui visitar eu falei: “ah, quando eu ficar velha eu quero morar aqui”.

Então eu acho que devia ter um lugar assim pra pôr as pessoas. Não deixar jogado. Passa tanta

entrevista, as pessoas falam: “jogaram eu aqui, não vem nem me ver”. Deve ser uma mágoa

pra pessoa. Deus me livre de acabar a vida de um jeito tão triste.

Aqui todo mundo tem mais de 60 anos, mas todo mundo fala que aqui não tem idoso, que

aqui todo mundo se vira. E é um lugar pra morar até o fim da vida.

E todo mundo que vem aqui fala: “mas que lugar que inventaram, o governo teve uma

excelente idéia”. Eles acham aqui maravilhoso.

O governo devia fazer mais esse projeto. Inclusive já comentaram: porque que não compra ali

pra fazer mais casas?

As pessoas nunca viram esse projeto58. Tem em Avaré, mas a melhor é aqui. Aqui, quando o

médico não vem, a enfermeira vem e ele vai vir agora dia 1, em seguida. Já consulta todo

mundo, dá os remédios. Aqui não tem muito problema, tem problema com o CREAS - porque

o CREAS não dá conta, às vezes a gente pede eles não vem atender59 - e tem o problema das

lâmpadas, que não ascendem todas.

Então são esses pequenos probleminhas, só. Mas, no mais não. E, coitada da Beth, ela

também tem muita coisa pra fazer. Ela adora aqui e fala que aqui é a Vila dela - o que ela

pode fazer ela faz.

                                                                                                                         58 Pergunta se eu terei, aqui em São Paulo, como mostrar pras pessoas, pela internet, como é o Condomínio. 59 Me diz que a água da sua caixa esta vazando e eles não vem. Um ano e cinco meses que esta vazando a caixa, e ela esta enjoada de pedir – e tem medo de infiltrações.

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Sabe que veio um senhor, a irmã dele mora aqui, mora lá naquela vila nova, e ele veio de

Marília. Ele falou: “eu não conhecia esse projeto e eu vou levar daqui pra ver se esse projeto

sai em Marília”. Sempre vem gente pra levar o projeto pra outras cidades.

A construção desse projeto é um dos mais baratos né? Eles são caros, mas eles são mais

baratos do que fazer uma CDHU que dá muito problema.

Vem gente aqui e fala assim: “será que vai sair mais?”Tem gente que, olha a minha sobrinha,

ela é nova ainda, ela fala assim: “eu acho que eu já vou começar me inscrever”.

Esse programa do Centro Dia, aqui em cima, nossa, vai ser muito bom: os filhos têm que

trabalhar, traz o idoso o dia inteiro ai. É um projeto muito bom também.

Itapeva, pra idoso, esta bom e diz que a área da saúde aqui esta muito boa, uma das melhores.

A Santa Casa daqui atende muito bem. Agora vai inaugurar a UPA. E tem a clinica do Dia

que é aonde a gente vai.

E estão fazendo mais, vão fazer o hospital do câncer aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Capitulo III: A Casa é onde quero estar: Lugar, Memória e Velhice

Neste capítulo intentamos mergulhar nos significados da Casa. Num primeiro

momento nossa exploração esta ancorada nos saberes da antropologia ampliados pelas

percepções impressas em letras de musicas.

Em seguida, as histórias narradas por nossos colaboradores são postas no centro do

debate como fundamento da reflexão proposta. Tecendo as narrativas construímos uma

interpretação do discurso social, que ilustra como se apresentam, para o grupo de idosos

entrevistados, as questões do morar, as possibilidades de viver a velhice e de habitar o mundo.

A aprendiz de antropóloga interpreta o discurso social pensando como se apresenta a

idéia de proteção, tema tão recorrente em sua área de atuação – a política de assistência social.

Por fim, investigamos como o Estado brasileiro, ao longo de seu processo de

formação, contempla os direitos sociais e a proteção – civil e social - de seus cidadãos.

* * *

3.1  Saberes  que  se  entrelaçam  arquitetando  as  percepções  da  Casa  

A Casa é tema de investigação recorrente nas Ciências Humanas e Sociais e nas Artes.

Primeiro lugar em que nos situamos no espaço, lócus da existência humana e parte

constituinte de nossa identidade e subjetividade. São freqüentes estudos que a abordam, sobre

as mais diversas perspectivas: na Literatura, na Arquitetura e na Psicologia.

Na Antropologia, trabalhos significativos foram desenvolvidos por Gilberto Freyre60 e,

mais recentemente, por Roberto DaMatta abordando a Casa como alegoria para compreensão

da sociedade brasileira e sua formação cultural. No entanto, nas Ciências Sociais, constatamos

limitada bibliografia sobre este tema.

Esta escassez nos fez trilhar novos caminhos na busca pela compreensão do

imaginário social que paira sobre a idéia de Casa. Para investigarmos as sensações do morar,

recorremos a outras fontes e nos aproximamos da musica.

                                                                                                                         60 Principalmente os clássicos Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 25ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1987 e Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.

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Como é característica das artes anteciparem questões debatidas por teóricos das

Ciências Humanas e Sociais as letras de musica que têm a Casa como inspiração se

apresentaram como alternativa valiosa à analise antropológica pois acrescentaram poesia e

sutilezas de uma realidade própria deste gênero artístico ampliando nossas possibilidades de

percepção deste lugar.

DaMatta, preocupado com as relações em nossa sociedade, explorou a Casa em

contraposição à Rua. Em sua obra A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no

Brasil61, o autor nos mostra que, além de espaços físicos, tais metáforas são conceitos repletos

de significados; importantes para a compreensão das contradições, ambigüidades e

complementaridades das relações sociais no Brasil.

Este autor nos diz que “o espaço é como o ar que se respira. Sabemos que sem ar

morremos, mas não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutre de força e vida”

(DaMatta: 1997), portanto, é preciso nos situarmos para vermos e sentirmos os distintos

espaços e as temporalidades que neles se desenvolvem; afinal, na sociedade brasileira:

[...] o espaço não existe como uma dimensão social independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado ou ‘embebido’ como diria Karl Polany - em outros valores que servem para a orientação geral.

DaMatta: 1997: 20

De acordo com esses valores, DaMatta nos mostra que o espaço da Casa é o universo

privado da família, parentes, compadres e amigos; lugar privilegiado do aconchego, do

repouso e da hospitalidade; espaço das ações que podem ser condenadas na rua e do tempo

dos finais de semana – tempo interno, de lazer e para ser vivido em família. Em

contraposição, a rua é o lugar da individualização, de sujeitos anônimos submetidos à frieza

da lei, às relações impessoais e ao tempo externo, marcado pelo ritmo do trabalho.

Ampliando a perspectiva de DaMatta algumas canções, que fazem parte de nosso

repertório musical62, nos ajudaram a pensar esse lugar denominado Casa. Iniciamos nossa

incursão pela Casa de Arnaldo Antunes (A casa é sua: Iê, iê, iê: 2009) que tem quintal, sala de

estar, sala de jantar, cozinha, quartos e banheiro.

                                                                                                                         61 DaMatta, R; A Casa & a Rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil; Rocco; Rio de Janeiro; 1997. 62A escolha destas canções se deu de forma aleatória. Ao ouvi-las, durante o processo de produção desta dissertação, percebemos que poderiam ser exploradas em nossa analise.

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Os espaços desta morada, como evidencia DaMatta, misturam-se aos sentidos que

regem as relações pessoais e intimas de seus habitantes; dependem deles para superar a

impessoalidade e a condição de objetos inanimados e dar vida ao lar.

O antropólogo sugere que “de casa vêm também casamento, casadouro e casal,

expressões que denotam um ato relacional, plenamente coerente com o espaço da moradia e

da residência” (DaMatta: 1997: 54). O musico, em sua composição, relaciona plenamente

Casa e casamento e, abrindo mão da racionalidade, descreve os espaços de sua Casa

utilizando unidades de medida puramente emocionais.

Para dimensionar sua solidão, decorrente da ausência do companheiro, Antunes

mergulha nos espaços da casa, transformando-os em instrumentos catalisadores de seus

sentimentos. Nada de material lhe falta: tapetes, relógio, abajur, se integram aos espaços,

caracterizando e compondo-os para seus distintos usos. No entanto, a solidão, e a ausência de

quem se ama, torna insuficientes os objetos e incompletos os espaços da Casa. A sala nada diz

sem “você sentada... sem você estar”. Não falta tapete, mas “falta o seu pé descalço pra

pisar”. Não falta cama, mas “falta você deitar”.

Os objetos, vivos por testemunharem e partilharem a intimidade do casal, estão à beira

da loucura e a desordem, decorrente da ruptura da relação e ausência da parceira, é tamanha

que “até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora” e é sentida também pelo cachorro que

pede socorro com seus uivos incessantes.

Antunes tem Casa, mas “falta ela ser um lar”. Lar que, como bem demonstra o

Dicionário Houaiss, em sua origem, se relaciona com lareira, local da cozinha onde se

ascende o fogo que com suas chamas iluminam, aquecem e transformam os alimentos (apud

Fellipe: 2010). O fogo, que tem como combustível a presença da amada, faz com que os

pássaros voltem a cantar, a nuvem desenhe um coração flechado, o chão volte a se deitar e a

chuva batuque no telhado.

A presença – amor - aquece a vida da Casa e a eleva à condição de Lar; a ausência –

solidão - torna os objetos impessoais e desencadeia intenso processo de desumanização da

Casa - o fogo latente do lar se apaga. Quando extraída da Casa a carga emocional, que

frutifica do acolhimento e promoção de trocas afetivas entre as pessoas que habitam esse

lugar, ela deixa de ser a concha protetora e perde sua função de habitar – estar presente,

permanecer (Houaiss).

Lugar de estar bem. Os sentimentos que lhes são suscitados se associam naturalmente

a elementos da natureza: estar possibilita abundancia de sol da manhã para acordar; permite

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que as janelas se abram e o vento brinque no quintal - embalando as flores do jardim,

balançado as cores no varal; permite que os pássaros cantem e as nuvens desenhem um

coração no céu.

A dosagem destes elementos naturais com a companhia de alguém que se ama,

transformam a Casa em Lar: Casa idealizada e projetada a partir de relações afetivas - do

amor de quem se quer bem. Fortaleza que protege as relações afetivas, Casa sem amor não é

lar! A casa é automaticamente associada ao mundo material enquanto que o Lar relaciona-se

com o mundo afetivo denotando lugar de proteção.

Entre os romanos e os etruscos Lares eram os deuses familiares e protetores do lar

doméstico (Dicionário Houaiss). O artista parece utilizar-se do mito para distinguir e

contrapor Casa e Lar. Casa que não é lar, pois cadeira, sofá e cama, na ausência de quem se

quer ter, perdem a vida, e se reduzem a objetos que servem apenas à composição e otimização

dos espaços. Casa que é Lar traz a segurança que tem como pilar as relações afetivas.

Nesta casa sem vida o tempo é árduo e difícil de ser suportado: nem o prego agüenta o

peso do relógio - que marca um tempo pesado e lento; sem calor, sem afeto, tempo morto.

Outra canção, do grupo Biquíni Cavadão (Meu Reino: 1989), apresenta uma Casa

aparentemente menor e mais modesta em sua composição que a Casa de Arnaldo Antunes:

sala, cozinha e quarto; mas imensa em sua função: Casa guardiã de bens, sensações e

impressões que alimentam corpo e alma e formam as idéias sobre o mundo.

Atrás da porta, o morador guarda seus sapatos, no armário suas roupas, na sala os

livros e na geladeira o sabor das refeições. O significado dado a Casa está à altura de sua

função: “minha Casa é o meu reino” cantam os compositores. Reino que não se reduz ao seu

interior, ganha sentido e se amplia com a conexão com o mundo externo, com as relações que

tece com as diversas temporalidades e processos externos ao lar e em tudo que vem de fora,

junto com seus habitantes.

Enquanto a Casa de Antunes adquire/ perde significado na relação estabelecida entre o

casal que habita o Lar, o morador de Biquíni Cavadão dá sentido à sua Casa na relação que

estabelece com o mundo. Mais uma vez, é DaMatta quem nos ajuda a entender a relação do

espaço interno da Casa com o mundo externo, este autor nos diz que a Casa é:

[...] espaço que somente se define e deixa apanhar ideologicamente com precisão quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. Assim, se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo exterior: ao universo da rua. Ou seja: o

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que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido por meio de uma fita métrica, mas - isso sim - por intermédio de contrastes, complementaridades, oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste.

DaMatta: 1997: 15-16.

Os sujeitos se constroem e se constituem socialmente na relação com o mundo

externo. Assim, a Casa Reino é também, espelho do mundo, onde idéias e sentimentos se

refletem. Seu habitante se define como a soma de tudo que vê, daí precisar de outros sapatos,

roupas e temperos para formar suas idéias e sentimentos.

A Casa Reino é o lugar de estar em paz. Lugar seguro para os devaneios: à noite, na

intimidade de seu quarto, o morador sonha com as coisas mais loucas. Os sonhos são a fuga

ou o lugar de ser - nos sonhos lembranças perdidas e sem sentido se juntam, para além da

razão, e soam como música.

É também nos sonhos que o mundo externo - violência, dúvida, dinheiro e fé - invade

a Casa habitando os devaneios de seu morador. Os sonhos carregam a imagem das ruas por

onde passou e de alguém que não sabe quem é: “E que provavelmente eu não vou mais ver”;

mas que pela empatia entrou em seu Reino: “Mas mesmo assim ela sorriu pra mim. Ela sorriu

e ficou na minha casa que é meu reino”.

A Casa de Biquíni Cavadão é lugar de ser: lugar privilegiado para construir a si

mesmo e a relação com o mundo.

Elis Regina também cantou a Casa (Casa no Campo: 1971) ou seu desejo de Casa. Em

contraposição à agitada vida urbana, a intérprete idealiza uma Casa no Campo, que lhe dê

apenas a certeza dos amigos do peito, dos limites do corpo e nada mais.

A Casa de Elis Regina é modesta, confeccionada com os elementos mais rudimentares

e simbólicos de nossa cultura rural: pau à pique e sapé. Sua dimensão é ideal para plantar

amigos, livros, discos e lhe permitir ficar do tamanho da paz.

As esperanças em relação à Casa são imensas. Que ela seja o lugar de provimento das

necessidades do corpo e conhecimento de seus limites: “eu quero carneiros e cabras pastando

solenes no meu jardim [...] eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal”. Espera,

ainda, que esta Casa seja lugar de criação: “onde eu poça compor muitos rocks rurais”. E que

seja o lugar seguro para viver a velhice: “eu quero a esperança de óculos”.

A Casa de Elis é a fortaleza em que ela pretende proteger seus bens mais valiosos: os

amigos, os livros e os discos e encontrar a paz, a tranqüilidade do Lar.

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Nas três canções escolhidas para subsidiar nossa discussão percebemos que a noção de

Casa se vincula à segurança dos afetos. Ela é a grande guardiã das emoções, da

individualidade e da subjetividade de seus moradores. Lugar da intimidade protegida, a partir

do qual as pessoas se projetam no mundo e o apreendem.

Bachelard se dedicou ao estudo da poética do espaço, tendo como instrumento a

literatura, e nos alertou de que “há um sentido em tomar a casa como instrumento de analise

para a alma humana” (Bachelard: 2008). Acreditamos que assim procedendo ampliaríamos

seu valor de proteção e, desde o inicio desta pesquisa, inspirado neste autor, tomamos a Casa,

conforme sua concepção:

[...] a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela? Os escritores da ‘casinha humilde’ evocam com freqüência este elemento da poética do espaço. Mas essa evocação é excessivamente sucinta. Como há pouco a descrever na casinha pobre, eles quase não se detêm nela.

Bachelard: 2008: 24

Estamos investigando como velhos trabalhadores pobres percebem a Casa. Suas

residências são simples, pequenas e modestas. Não foram por eles projetadas, mas concedidas

pelo poder público. Apesar disso, materializam o sonho de toda uma vida de trabalho.

Nosso interesse diante da percepção de espaços tão modestos é tocar na segurança que

eles podem garantir aos seus habitantes. Segurança que tem sua importância ampliada quando

nos direcionamos para pessoas que enfrentaram as mais diversas situações de risco, incerteza

e vulnerabilidade e que chegaram à velhice sem condições de prever o amanhã.

Diferentemente de Bachelard, que tem sua investigação ancorada principalmente nos

campos da filosofia e da psicanálise, nossa preocupação, como cientistas sociais, perpassa

pela importância que a conquista da Casa tem para o sujeito – enquanto reconhecimento e

fortalecimento de sua identidade -, mas esta centrada na importância social de garantir às

pessoas o direito à moradia e, na incompletude deste direito, a necessidade do poder público

criar formas de acolhimento para as pessoas idosas, para além da velha e histórica

institucionalização dos sujeitos nos asilos de velhos, hoje denominados Instituições de Longa

Permanência.

Como microcosmo reprodutor das relações sociais a Casa é lócus do debate sobre

estar seguro. Na arte, as musicas nos mostraram que a segurança expressa no ideário de Casa

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refere-se à proteção dos afetos. Com os idosos questionamos quais os sentidos de ter ou não

ter Casa e quais proteções a propriedade desse lugar/espaço pode lhes assegurar? Junto com

os idosos exploramos os modos com que as pessoas inventam socialmente este espaço e qual

a importância dele para os sujeitos que envelhecem.

3.2  Tecendo  narrativas  de  idosos  

[...] os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão [...] Trata-se portanto, de ficções no sentido de que são “algo construido”, “algo modelado” – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento. Geertz: 1973: 25 - 26

Aqui tem inicio o exercício interpretativo do antropólogo que parte da costura das

narrativas de nossos colaboradores. Como num jogo de quebra cabeças, fragmentos das

histórias individuais vão se encaixando e dão forma a um discurso social, que o antropólogo

constrói a partir das construções de outras pessoas (Geertz: 1973), representativo de um grupo

com características muito comuns e que, por essa razão, formam uma comunidade de destino

- conjunto de sujeitos idosos que em razão de sua condição humana e de sua interação, possui

unidade argumentativa diante de uma problemática comum (ATAIDE: 2002).

As opiniões e pontos de vista dos idosos emergem diretamente da experiência, são

argumentos do senso comum que não se baseiam em coisa alguma a não ser na vida como um

todo (Geertz: 2000) e, em conjunto, formatam um pensamento deliberadamente organizado,

que emerge num contexto bem definido e que nos conduz a conclusões bastante úteis sobre o

morar na velhice.

3.2.1 Possibilidades  de  morar  edificadas  pelo  Trabalho

Conversando com os idosos percebemos que os modos de estarem no mundo são

impregnados pelas formas com que, ao longo da vida, se relacionaram com o trabalho. A Casa

é lugar que, em sua plenitude, se conquista pelas condições materiais que seus ofícios lhes

proporcionavam. Do trabalho derivam as possibilidades de morar, bem como, os lugares e

localidades em que a Casa se insere e as relações que são estabelecidas.

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Ouvir as trajetórias individuais e as histórias de vida de cada idoso nos permitiu

recontar o percurso de consolidação dos direitos sociais e da efetivação de políticas públicas

no Brasil de um ângulo pouco conhecido por administradores e gestores públicos: a

perspectiva de quem viveu à margem e com limitado acesso aos bens sociais e culturais

produzidos pela sociedade capitalista.

Quando olhadas em conjunto as narrativas nos dão pistas de um ponto importante que

a pesquisa pretendeu explorar: Quais seguranças a propriedade da Casa garante às pessoas

idosas? Questão que mostra sua relevância quando nos vemos diante de pessoas que somente

na velhice puderam conhecer e desfrutar da segurança de um Lar.

Nos bastidores da história oficial os colaboradores desta pesquisa - velhos

trabalhadores, em sua maioria provenientes de zona rural; expulsos do campo pela pobreza,

falta de trabalho ou mesmo pela força do imponderável (doença, viuvez, morte dos pais) -

lutavam pela sobrevivência.

Ao falarem do passado nos revelam a trajetória de incertezas e inseguranças que

marcaram suas vidas. Exceto por Dona Maria Duffet que, no segundo casamento, pode

desfrutar de mais conforto e estabilidade financeira, todos os demais se mantiveram no grupo

social a que pertencem desde o nascimento e mesmo ela, após a morte do marido, retorna à

sua posição inicial.

Tal constatação nos dá provas dos entraves para a mobilidade social em nosso país.

Apesar de toda uma vida dedicada ao trabalho apenas uma pequena parte de nossos

colaboradores consegue que, ao menos seus filhos, avançassem um degrau na escala social.

Seu Antonio é um deles; dois de seus filhos conheceram a Inglaterra e descobriram novas

possibilidades de ganhar a vida – montaram uma empresa de curtir couro para exportar para

Europa – enquanto que um terceiro tentava entrar na vida política candidatando-se a vereador.

Aos filhos dos demais idosos restou uma vida semelhante à dos pais: de muito

trabalho, sufoco para criar seus filhos, escassez de recursos e incertezas quanto ao futuro. A

fala de Dona Geni nos dimensiona tanto a necessidade por que passam seus filhos, quanto o

alivio por agora estar numa situação de maior segurança e independência: “Me ajudam como

podem, mas não com dinheiro. Com dinheiro não podem ajudar a gente, são apurados e a

crise esta difícil. A gente que tem que se virar. Mas graças a Deus já me ajudaram bastante e

hoje eu não preciso mais da ajuda deles”.

Dona Zélia também aponta para as necessidades de seus filhos ao justificar que não

recebe visita porque moram longe e não podem vir à pé: “Pra vir pra cá tem que usar ônibus

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ou usar moto ou tomar um taxi, então fica difícil, porque todo mundo precisa de dinheiro. O

pouquinho que sobra é pra investir em alguma coisa”.

O trabalho nunca amedrontou nossos narradores, é força motriz em suas vidas. Pelo

trabalho se fizeram, conquistaram dignidade e descobriram o mundo. Homens e mulheres que

dedicaram suas vidas ao trabalho tornaram-se ‘especialistas em atividades árduas’.

Dona Maria Duffet, dentro de Casa, realizando trabalhos domésticos: “esses

‘domesticão grosso’ que teve antes, as casas eram tudo difícil de limpar. Cuidar de criança.

Depois a gente tinha que ir na escola também, às vezes eu ia um dia e faltava dois, pra ficar

cuidando da casa e dos irmãos pequenos”.

Dona Geni, por sua vez, tornou-se grande conhecedora dos serviços da lavoura:

“Serviço de lavoura eu conheço tudo. Eu roçava, carpia, quebrava milho [...] Eu gostava da

lavoura, criava porco, galinha, tinha bastante fartura. Quando vim morar pra cá eu senti muito.

Mas o trabalho lá é cansativo, nossa... Mesmo que eu pudesse agora não voltava mais pra

lavoura, porque não agüento mais nada: roçar, carpir.”.

Seu Adelino, outro mestre da lavoura, aprendeu com o pai a lidar com a terra e nos

ensina a base para plantar cada tipo de alimento: “Muitos anos fazendo lavoura, roçando

mato. Derrubava mato com meu pai. O pai ensinou a roçar. Derrubava mato, cortava no

machado e queimava e fazia a lavoura e plantava cana verde; plantava milho - plantava três,

quatro sementes, eu pegava a base, já sabia a base de ‘ponhá’. O feijão plantava duas

sementes, três - não pode plantar um montão de feijão, é duas sementes”.

A vinda para a cidade não tornou o trabalho menos duro, ao contrário, a vida adulta de

nossos narradores se fez no exercício de atividades desgastantes, e, para as mulheres, quase

sempre sem direitos assegurados, na margem do sistema produtivo. Elas tornaram-se

costureiras, lavadeiras ou empregadas domésticas enquanto que os homens atuaram como

ajudantes de pedreiro – os que cresceram profissionalmente tornam-se pedreiros autônomos -

e caminhoneiros. Em comum toda uma vida de trabalho incessante, desgastante e, por vezes,

degradante.

Seu Adelino, que veio para a cidade com mais de 60 anos, após perder os pais e os

irmãos, “garrou” emprego de trabalhar de servente de pedreiro. Seu Antonio, que também

dedicou mais de vinte anos de sua vida à construção civil, reconhece o lugar de seu trabalho

no sistema produtivo: “[...] era uma época que a construção civil não tinha valor, pedreiro não

tinha valor. Trabalhava um monte, fazia um monte de serviço e não tinha preço, poxa vida!”.

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Seu Abel e Seu Irineu dedicaram suas vidas à profissão de caminhoneiro. Os homens

da estrada lembram com orgulho do trabalho desempenhado com muito esmero. Seu Irineu,

desde que criança, vendo o pai caminhoneiro, sabia que aquele seria o seu destino, e

aguardava ansioso pelo momento de poder se tornar também um caminhoneiro: “Meu pai era

motorista, eu herdei a profissão dele. Era menino quando peguei o diploma do quarto ano, ele

me chamou e perguntou: ‘Você quer continuar estudando? Eu pago o seu estudo, ou você

prefere trabalhar pra ganhar o seu dinheiro? Ou quer ir viajar comigo?’ Quando ele falou

‘quer ir viajar comigo’, nossa! Pulei pra cima. A minha vontade era de andar de caminhão e

aprender a guiar”.

Seu Abel conheceu a profissão um pouco mais tarde, antes trabalhou como Ajudante

Geral em empresas de laminação e no mêtro de São Paulo. Mesmo assim, teve tempo pra

passar trinta e dois anos na boléia de um caminhão: “Trabalhei a maior parte da minha vida

como caminhoneiro. Trabalhei trinta e dois anos! Com insalubridade deu os trinta e cinco pra

aposentar. Só contou o trabalho de caminhão pra me aposentar”.

O trabalho possibilitou, aos nossos colaboradores homens, longas viagens e o contato

constante com pessoas, lugares e costumes diferentes. É pelo trabalho que conhecem o mundo

para além de suas cidades de origem; seu Antonio, construindo casas, andou pelo Rio Grande

do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Curitiba, São Paulo e Sorocaba.

Seu Abel, na boléia do caminhão conheceu o mundo: “Por isso que eu falei que

conheço tudo. Eu gostava muito de ser caminhoneiro, é bom! A gente sofre mais é divertido”,

saia de São Paulo levava a carga para Porto Alegre ali, outra carga lhe esperava, ia

descarregar em Minas, de lá pra Bahia e, assim, passava um mês fora de casa, até para fora do

país viajou; Argentina, Paraguai: “eu andei por todo canto do mundo!”

Seu Irineu não ficou atrás, viajava de São Paulo para Porto Alegre e depois ia para

Ponta Grossa, para só então retornar pra Itapeva. A diferença é que todo final de semana

conseguia estar em casa e, sempre que podia, levava Dona Tereza, sua esposa, na boléia do

caminhão. Ela também pôde conhecer São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Porto Alegre e

Santa Catarina e assim, ficava mais fácil aceitar as ausências do marido.

O que não aconteceu com a mulher de seu Abel, que há tempos é divorciado: “Difícil

ser mulher de caminhoneiro... a mulher cansou! [...] eu vivia na estrada”. Mais adiante em sua

narrativa, nos deixa saber que, além do longo tempo na estrada, este trabalhador, e sua

família, enfrentaram o problema do alcoolismo.

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Para as mulheres as oportunidades foram diferentes, mas também possibilitaram

conhecer outros lugares – as casadas seguiam os maridos em busca de trabalho e as solteiras

iam sozinhas atrás de melhores oportunidades.

Dona Geni toda vida trabalhou, para ajudar o marido que sempre foi pobre, apesar de

“trabalhador e honesto”. Quando veio para a cidade lavava roupa: “Tem uma casa que eu

lavei roupa dois anos a fio: roupa de açougue, ‘roupaiada’ suja, roupa de fazenda. Lavava pra

cinco casas!”. Ainda hoje não pode descansar, todos os dias ela percorre a cidade vendendo os

sonhos que seu filho padeiro prepara.

Dona Zélia, também trabalhou a vida toda, no campo foi bóia fria, plantava feijão,

milho, carpia roça. Quando veio para a cidade continuou fazendo serviço de roça, mas

também trabalhou em casas de família e na rodoviária: “Agora eu faço bico lá (na rodoviária)

de vez em quando. Quando falta gente eu vou atender no guarda volume”.

Dona Maria Rosa, por sua vez, passou toda a infância e juventude trabalhando pesado

nos afazeres da casa e da roça ajudando na sobrevivência da família adotiva e, posteriormente,

da biológica. Quando decide mudar para a cidade a jovem se torna empregada doméstica e

num período em que as empregadas eram tidas como propriedades de seus patrões, suportou

extensas jornadas de trabalho: “Então, eu trabalhei olha, sem quase descanso, o tempo todo

[...] Antigamente a gente trabalhava no domingo, então eu trabalhava a semana inteira. Eu não

tinha descanso. Eu vim descansar mesmo, agora que sou aposentada. Quando meu vô morreu

eu fui embora, eu falei: “aí, eu vou embora pra São Paulo”.

Aos dezessete anos a jovem parte para São Paulo em busca de trabalho, de lá vai para

Sorocaba e depois para Piracicaba; “mas, lá também era sofrido. Trabalhei com gente ruim”.

Retorna para Itapeva depois de adulta, quando a mãe esta no leito de morte, mora com a irmã

e segue, até a aposentadoria, cuidando do cotidiano das famílias de seus patrões.

Quando os irmãos de Dona Maria Duffet cresceram ela teve tempo para se torna uma

grande costureira: “Eu fazia vestido de noiva, costurava calça, camisa pra homem. Naquela

época não tinha esses figurinos que agora a gente vê na vitrine, então, eu saia, quando podia,

ia nas cidades que tinham aquelas vitrines com alguma coisa pra ver os modelos tudo. Ia pra

Avaré, Sorocaba, Itapetininga. Eu viajei bastante. Conheci esses lugares depois que casei e

que fiquei livre dos meus irmãos. Então, costurei muito, muito, muito, muito”.

Realizar bem as tarefas que a vida lhes designava sempre foi motivo de orgulho e o

trabalho, por mais sofrido que fosse também foi fonte de alegria. A satisfação e

contentamento de Seu Irineu, ao falar de como foi um caminhoneiro zeloso, colore sua

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narrativa; em mais de vinte anos na estrada, nunca sofreu um acidente: “[...] graças a Deus e

ao São Cristovão, que sempre me acompanhou, eu nunca tive problema, assim de bater

caminhão, comigo não.”

Até o patrão reconhece a prudência e o zelo do motorista: “Oh, Negão, você já tem o

seu santo protetor e tudo, continue firme com ele e rezando, sempre rezando e pedindo,

porque você sabe, nós estamos com onze caminhões, dez já bateram, só você que nunca

bateu, nunca aconteceu acidente”. Eu falei: “continuarei rezando”, e, graças a Deus,

trabalhei com ele um tempão e nunca aconteceu nada”.

Dona Maria Rosa também sente orgulho por fazer bem o seu trabalho: “[...] eu fui

assim, muito dedicada ao serviço. Então, todas as patroas falavam que eu tinha uma excelente

qualidade. Eu cuidava bem dos filhos delas, fazia o serviço tudo direito. Eu trabalhei todo

esse tempo, nunca cheguei um dia atrasada no serviço. Nunca faltei no serviço, porque eu

achava que eu tinha aquela responsabilidade no meu serviço, então, todo mundo admirava

isso de mim”.

As profissões de nossos colaboradores, por vezes, os expunha à riscos. A prudência de

Seu Irineu decorre dos perigos reais, encontrados todos os dias nas estradas do país: “Eu

viajei nove anos na estrada que liga São Paulo à Curitiba, Regis Bittencourt, conhecida como

rodovia da morte. Fazia o trecho de São Paulo a Porto Alegre, as viagens tinham horário e eu

viajava a noite inteira. Graças a Deus eu nunca sofri um acidente e vi tanto acidente ali que, se

não tivesse um pouco de coragem, largava mão até de trabalhar”.

Além de arriscados os trabalhos são extenuantes e muitas vezes levam ao esgotamento

da força física. Seu Antonio nos fala do desgaste provocado pelo trabalho na construção civil:

“É um trabalho que desgasta e a gente se machuca naquele sobe e desce de andaime, nossa!

Chegou um ponto que não agüentei, por isso vim de Santa Catarina, larguei o serviço lá

porque não pude fazer, muita dor na coluna, muita pressão alta”.

A estafa, ainda que inconsciente, é tamanha e leva a maior parte de nossos narradores

à invalidez. Dos homens, somente Seu Abel conseguiu exercer a atividade profissional até a

aposentadoria. Os demais, quase que como uma coincidência, de um destino por vezes,

previsível, aposentaram-se por invalidez.

Seu Antonio, por conta de um erro médico sofreu um começo de derrame - a injeção

para baixar a pressão foi aplicada em grande quantidade: “A injeção era pra baixar a pressão e

nem precisava ter tomado porque a pressão estava 18 por 10, qualquer comprimido já

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resolvia”. Por conta deste incidente “[...] parei de trabalhar porque me tirou a força do quadril

e o braço ficou com seqüela”.

Também Seu Adelino quando se aposenta é por invalidez: “Aposentei, não foi por

idade, foi por invalidez, a aposentadoria não veio pela idade certa. Foi invalidez que eu

aposentei. É esse o salário que eu estou com ele”.

Seu Irineu, por sua vez, dedicou-se tanto à profissão que descuidou da saúde. Num

acidente de percurso, perdeu a visão – em decorrência do diabetes – e não conseguiu

completar o tempo necessário para a aposentadoria: “Por incrível que pareça eu trabalhei vinte

e cinco anos com caminhão. Na carteira profissional tenho quase vinte e um anos registrados

como caminhoneiro, só que quando deu o problema de saúde fiquei encostado e não

aposentei. Eu fiquei encostado e parei de recolher INPS [...] Eu estou recebendo um salário

mínimo, é um salário que o governo me dá, até completar 65 anos e poder aposentar por idade

e invalidez, porque sem visão não tem jeito de dirigir mais”

Seu Abel, único trabalhador que consegue exercer a profissão até a aposentadoria, não

ficou imune aos acontecimentos imponderáveis da vida que o levaram ao esgotamento das

forças físicas: “[...] em 2009 deu AVC em mim, daí que eu fui pro asilo. Tinha 60 anos

quando aconteceu. [...] Eu morava com a minha mãe e eu fiquei dependente de tudo, tudo,

tudo, tudo! [...] E os médicos disseram que o AVC foi por conta da bebida”.

Entre as mulheres entrevistadas, Dona Maria Rosa, a única solteira do grupo, é também, a

única mulher a se aposentar. Sozinha escreveu a sua história e, recentemente, conseguiu

descansar: “[...] vai fazer três anos que estou aposentada. Desde setenta e três, quando saiu o

registro pra empregada, eu já tava registrada. Mas eu podia ter aposentado há mais tempo. Eu

trabalhava, as patroas descontavam o INSS de mim e não pagavam, por isso que eu demorei a

me aposentar”.

As demais trabalhadoras, quase que como uma coincidência do destino, que também se

mostra previsível entre as mulheres, têm como renda a pensão de seus falecidos maridos.

O fruto destas vidas de trabalho foi uma velhice de escassez. O trabalho inseguro –

associado à espoliação do capital imobiliário, ausência de políticas públicas de moradia e

outros agravantes - não lhes proporcionou, no decorrer da vida produtiva, adquirir suas Casas

garantindo por conta própria as seguranças de um lar.

Com as baixas aposentadorias ou pensões, restou aos nossos velhos trabalhadores a

ocupação dos bairros periféricos da cidade - muitas vezes negligenciados pelo poder público e

mais expostos à violência urbana.

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Antes da inclusão no Programa Vila Dignidade a maioria deles vivia em moradias sem

qualquer conforto (porões, casas úmidas e emboloradas). Estiveram sempre ameaçados pelo

risco de não conseguir assumir as elevadas despesas de aluguel, pela vontade dos

proprietários dos imóveis que, às vezes, sem aviso prévio solicitavam a entrega da casa ou

pelos perigos do bairro – assaltos, brigas de porta de bar, comércio e consumo de drogas,

entre outros. Para quase todos esses trabalhadores a inclusão no Programa pôs fim a uma

longa trajetória de incertezas.

Desfrutando, no presente, da segurança de ter um novo lar, é mais fácil perceber as

carências de suas residências anteriores. Dona Zélia faz uma longa descrição de como era a

sua casa: “Antes de morar aqui eu morava na Vila Nova numa casinha feinha. Essa aqui dá de

cem à zero. [...] a casinha era muito, muito mal arrumada, mal feita mesmo [...] Eu morava de

frente com outra casa. Era uma entrada bem menor que aqui. De um lado uma casa do outro

lado outra casa e, no fundo tinha mais dois cômodos pegados com a minha casa [...] Fizeram

uma “valetona” deste tamanho, de frente da minha casa[...] Dai ficou aquela coisa horrível,

tudo que era sujeira parava ali. Quando chovia enchia aquela valeta de água, estava feio

mesmo. Tudo isso na porta da minha casa”.

Dona Maria Rosa aponta para as dificuldades, de saúde e financeiras, que a antiga

moradia lhe impunha: “Ah, a casa era assim.... Muito, muito embolorada. Não batia sol. E

então, eu comecei a ter problema de muita tosse por causa da umidade. Morei lá uns três anos.

Uns três ou quatro anos. Pagava R$ 240,00 de aluguel. Caro! Lá, tinha dia que eu passava

sem comer o meu viradinho de farinha com café. Porque não dava pra pagar o aluguel”.

Para Seu Adelino o problema maior se relacionava à violência, praticada por seus próprios

parentes: “Morei muitos anos no porão. Lá que eu era roubado. Volta e meia “tavam” me

roupando. A minha sobrinha achou que eu tava condenado ali”.

Seu Antonio encontrou uma forma de se livrar do aluguel - ele cuidava de um terreno e ali

pôde construiu um barraco para descansar o corpo, mas estava sempre inseguro porque sabia

que a qualquer momento teria de deixar o lugar, pois a intenção do proprietário era desfazer-

se do terreno: “Eu morava no Sítio, no Pilão D’água, pertinho daqui [...] fiz uma casinha pra

mim – um barraquinho [...] Lá fiquei dois anos até que o dono me falou que iria construir, e

então iria fazer uma casa pra colocar o pedreiro. Eu então pensei: “está pedindo a casa para

colocar o pedreiro”.

A vida de Dona Geni foi marcada pelas constantes mudanças de endereço decorrentes da

dificuldade em pagar os elevados aluguéis ou, ainda, do alcoolismo do filho – que sempre a

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indispunha com os proprietários: “Mudei bastante, nossa! Nem estranhei quando vim pra cá,

porque lá era muito sofrimento, eu não gostava de lá. Era sofrido pela situação que a gente

passava”.

Também para Dona Maria Duffet a vida, após o falecimento do segundo esposo, foi

marcada por constantes mudanças. Se casada pode desfrutar da segurança de um lar, viúva

precisou se deslocar em vários momentos: “[...] depois da sua morte (segundo marido), foi um

tal de mudança. A gente que não tem casa muda pra cá, muda pra lá, encaixota as coisas,

depois larga lá e vai ficando. A gente também vai perdendo o gosto. É complicado! Ah, agora

esta tudo “simplesinho” mas, antes, nossa! A gente pagava faxineira pra fazer faxina na casa,

limpar aqueles vidros, aquelas “coisaradas” tudo”.

Seu Abel, que vivia a recuperação de um AVC antes de ser incluído no Programa,

desfrutou de segurança: “No asilo, pelo menos esse daqui de Itapeva, os outros eu não sei, é

muito bem cuidado. Eu devo muito obrigação pra todo mundo lá. Os funcionários treinados te

respeitam, porque o importante é o respeito. Porque, se você me respeita eu tenho que te

respeitar”. No entanto, tanto cuidado era pago com a perda da autonomia financeira: “Mas,

veja bem, lá não é ruim de ficar, só que o que é seu fica tudo lá. Por exemplo, eu já estava

aposentado, o cartão já ficava lá com a presidente, então, você não vê dinheiro e não ter

dinheiro é uma situação ruim, pra qualquer pessoa”.

Dentre todos os nossos colaboradores apenas a vida de Seu Irineu esteve livre da

instabilidade de freqüentes mudanças de residência. Neste ponto, sua narrativa destoa das

demais, pois este velho trabalhador morou toda vida na mesma casa, algo incomum no grupo

pesquisado.

Teve muita dificuldade em sair da casa onde viveu a infância, a descoberta da profissão e

do amor, a chegada do filho e depois da nora e dos netos. Na verdade ele até torceu escondido

- para não ser contemplado no Programa – para não decepcionar Dona Tereza que nunca

gostou de morar ali e sempre quis ter a sua própria Casa.

Alguns de nossos colaboradores puderam desfrutar, em determinado momento da vida, da

posse de seus próprios lugares, mas, por diversas razões perderem estes lugares. Dona Geni

teve sua casa, mas o marido, tentando realizar o sonho de ter um terreno maior, trocou-a e, no

meio da transação, faleceu. Dona Geni ficou sem documentos, sem nada: “[...] antes de

morrer passou a Casa. Eu tentei segurar e não consegui, ele era brabo. Ele “breganhou” a

Casa, fez uma “breganha”, uma troca. Ele era louco por terra e trocou a Casa por um

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terreninho, um sitio. Só que ele morreu e ficou sem documento nenhum. Daí tomaram tudo...

Fiquei sem nada... Como não tinha documento, quem era o dono ali tomou de novo”.

A sorte de conquistar a Casa própria só poderia bater à porta de nossos colaboradores pela

inclusão em programas habitacionais, logo, nenhuma possibilidade de inscrição poderia ser

desperdiçada. Dona Geni descreve com precisão sua peregrinação e frustração em busca do

imóvel próprio: “[...] Sabe, eu andava se batendo que nem barata no açúcar. Fiz inscrição num

lugar, fiz inscrição noutro. Fiz inscrição lá naquelas casas que estão fazendo agora. Fiz

inscrição lá naquela vila que tá construído umas casas ali do lado da estação. Fiz inscrição lá,

fiz inscrição aqui. Alguns nem ficaram prontos, não saíram da terra. Só ficou na gaveta o

papel mesmo. Fiz a inscrição ficou na gaveta... Sempre falei “Deus vai preparar uma casa

pra mim” e Deus preparou aqui”.

Seu Irineu, atendendo às vontades da esposa também fez sua inscrição em programas

implantados no município: “A Tereza sim, sempre teve vontade (de se mudar), tanto que

fizemos a inscrição, uma época, no CDHU, mas nunca tivemos sorte de ser sorteado”.

Dona Maria Duffet foi a única dos entrevistados que revelou ter condições de comprar

seu imóvel, mas por azar do destino, teve sua poupança confiscada pela política

governamental do presidente Collor: “A gente tinha um dinheiro bom, dava pra comprar uma

Casa muito boa aqui em Itapeva, mas daí o Collor pegou nossa poupança [...] Essa casa era

pra ter sido comprada quando meu marido estava vivo, mas quando viemos ver uma, aqui no

Parque São Jorge, em frente à delegacia e perto da minha irmã, o pessoal dele não quis que

nós comprássemos [...] Eu sei que quando foi dali uns dias veio o tal plano que caçou tudo”.

Para nossos colaboradores, com exceção de Seu Irineu, o sonho de ter a casa própria

embalou muitas noites de sono e esteve no topo da lista de pedidos para Deus: “Quando saiu a

inscrição pra essas casas aqui, nossa, eu dei graças à Deus. Eu pedia todo dia pra Deus que eu

queria ter essa casa. Quando eu fui chamada pra pegar a casa, pra mim parecia que eu tava no

céu[...]” , nos revela Dona Maria Rosa.

3.2.2  As  seguranças  do  morar:  a  vida  após  a  inclusão  no  Programa  Vila  Dignidade  

Ao abordarem o momento presente é nítida a ruptura que a inclusão no Programa Vila

Dignidade causou nas vidas destes idosos, muitos experimentam, pela primeira vez: a certeza

de como será o amanhã, a estabilidade financeira, a segurança - de poder escolher o que

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comer, de ter onde dormir, de poder dormir a hora que desejar, de poder adquirir bens como

mobiliário ou vestimentas novas-, a certeza de estar protegido durante uma chuva forte.

Dona Maria Duffet, apesar de agora estar num lugar que considera “simplesinho”,

reconhece que a conquista da Casa pôs fim a incerteza de não ter onde morar e às constantes

mudanças: “A gente que não tem casa muda pra cá, muda pra lá, encaixota as coisas, depois

larga lá e vai ficando”.

Com sua fala nos damos conta do desgaste físico provocado por tantos deslocamentos,

afinal ela já era de idade quando viveu o período de maior incerteza em relação à moradia.

Além dele, a força de suas palavras dimensiona o desgaste emocional provocado pela

necessidade de se desfazer de seus pertences - objetos que carregou por toda a vida e que

carregam sua biografia. Como nos lembra Bosi:

[...] há algo que desejamos que permanece imóvel, ao menos na velhice: o conjunto dos objetos que nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a quietude, a disposição tácita mas expressiva. Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade. Bosi: 1994: 441

Certamente a perda destes objetos representou mais que a dos espaços – que nunca lhe

pertenceram e, por isso, sabia que não seriam definitivos. A passagem escolhida para dar o

tom de sua narrativa tem haver com o sentimento de frustração diante da necessidade de abrir

mão de suas coisas: “Foi difícil desfazer das minhas coisas, a gente fala “nossa, tantos anos”.

Mas também a gente não pode se apegar às coisas toda a vida”. Sua fala nos revela o

descontentamento provocado pelo desapego forçado: “A gente também vai perdendo o

gosto”. Com cada objeto que se vai, vai um pedaço de sua vida.

O drama de Dona Maria Dufett é exclusivo entre o grupo de idosos entrevistado, pois

para os demais a realidade era bem diferente. Exceto Seu Irineu e Dona Tereza, que já tinham

tudo na Casa anterior, os outros idosos, não tinham o que carregar pra mobilhar a Casa nova.

A carência da maioria dos moradores da Vila Dignidade contrasta com a carência de

Arnaldo Antunes, que tem tudo em sua casa, só falta alguém chegar. Na realidade pesquisada

faltava quase tudo: fogão, sofá, armário. Só agora os idosos experimentam a felicidade de

mobilhar seu Lar, construir a identidade de suas casas, ao mesmo instante em que

reconstroem suas próprias identidades.

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Se ver no mundo de um jeito diferente, poder desfrutar do privilegio de ter objetos

para imprimirem parte de suas memórias - a memória de uma nova vida, ou uma nova fase na

velha vida sofrida - é firmar-se no mundo numa outra posição.

Seu Antonio é um dos que não tinham muita coisa pra trazer: “Eu só tinha fogão,

geladeira - uma geladeira branca, que estragou, ai comprei essa. Eu não tinha cama, guarda

roupa, sofá - o sofá eu comprei aqui -, não tinha guarda louça, mesa, não tinha nada. Fui

comprando aos poucos. Essa mesa grandona eu comprei por causa da criançada, quando eles

vêm enchem a casa”.

Agora ele tem uma Casa montada e que cuida com muito carinho. Como nos revelou:

“Eu gosto da coisa bem caprichada, eu gosto mesmo. As pessoas que vem aqui falam que

parece que tem uma mulher morando aqui”.

Dona Maria Rosa fez questão de nos falar das dificuldades enfrentadas no passado

para mobilhar sua Casa: “Quando eu fui morar sozinha eu não tinha nada. Minha irmã deu

uma xícara, minha sobrinha me deu um garfo, uma colher e um prato. A outra minha sobrinha

me deu uma panela. Eu cozinhava alguma coisa na panela, virava num prato, pra poder

cozinha outra, e nem por isso eu ia maldizer a Deus”.

A satisfação de poder, na velhice, consumir algum bem, é fator de segurança que

merece destaque. Livrar-se dos aluguéis pesados possibilita o investimento em outras

necessidades essenciais, como aponta a própria Dona Maria Rosa; “Minha vida financeira

melhorou bem mais, depois que eu vim pra cá. E também eu como melhor - o que eu não

comia antes eu como de tudo que eu quero”.

A mudança é tão expressiva que, além de comer melhor, é possível pensar em trocar

os móveis velhos e materializar o desejo de ter tudo novo na Casa nova: “[...] Tudo que eu

tenho eu comprei depois que vim morar aqui. Tudo que eu tenho aqui eu comprei. Agora só

falta comprar a mesa, o fogão. A semana que vem eu vou comprar uma cama de casal, porque

a minha é pequenininha. Falei: “eu vou comprar se Deus permitir”. Estou terminando de

pagar essas coisas e, acabando, compro a cama”.

Seu Abel, que sofria por não ter independência financeira no tempo em que morou no

asilo, hoje comemora com orgulho: “Eu não tinha nada, porque no asilo não precisava, fui

comprando tudo. Tudo fiado! O que tem aqui é tudo fiado. E agora já está tudo pago. Agora é

tudo meu”.

Enquanto a maior parte dos moradores exibe com orgulho os móveis que, em suaves

prestações, foram adquiridos para dar uma cara nova para a Casa, e para a vida nova, Seu

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Adelino, nos impressiona ao revelar mais uma das muitas facetas das relações que os velhos

podem estabelecer com os objetos.

Descreve com detalhes de onde veio cada um dos móveis que estão em sua casa: “Eu

não tinha esse armário, o armário de cá é usado, o outro eu comprei lá na casa que vende

roupa usada. Comprei pra ter, porque não tinha armário. O armário que eu mandei fazer é esse

armarinho velho, era pequeno pra ponha as coisas. Agora vasilha, uns deu vasilha pra mim.

Cadeira, essas cadeira não são minhas. A minha sobrinha que deu. Não é meu, eu não comprei

ela que me deu. O sofá a mulher de baixo comprou do homem e me deu de presente. Esse

outro foi a mulher do João, minha sobrinha, que me deu, porque fizeram o roubo de mim, se

favoreceram do meu dinheiro. Eu sei que é errado, sei que está lá o roubo, mas me deram de

presente. É velho mas serve, tá bom. É presente que eu peguei. Lá no quarto, o guarda roupa

foi a minha sobrinha que me deu, agora esses dois armários eu comprei”.

O excesso de desapego em relação ao mobiliário de sua casa – tem móveis porque os

ganhou - nos comove e, na seqüência, a lucidez de suas razões é revela: Algumas pessoas me

dizem: “O que você vai fazer com o seu dinheiro quando você morrer? Você deixa de

comprar um móvel, uma coisa que você pudia ter na casa, pudia ter mais coisa pra aparecer

na casa”. Mas eu pergunto: “o que eu vou fazer com esse móvel? Eu não sei o dia que Deus

vai me levar, eu compro hoje, amanhã pode Deus me levar, o que eu vou fazer com o móvel?

Não faz mais nada. Então tanto faz ter um móvel na casa como o seu dinheiro, a pessoa não

leva, não leva nada”.

Além de evidente na organização e cuidados que todos os idosos, com exceção de Seu

Adelino, depositam em suas Casas, a sensação de bem estar, é experimentada nos afazeres do

cotidiano. Livrar-se do pesado fardo de ter que sobreviver do suor de seu trabalho tornam as

ações do dia a dia mais satisfatórias, pois são realizadas com menos esforços.

A facilidade de deslocamentos, a preparação dos alimentos, os momentos de lazer,

que agora são desfrutados sem preocupação: os finais de semana passados na companhia de

parentes, a leitura de um livro, a possibilidade de ter novos amigos, tudo isso pode ser

percebido e vivido com mais intensidade agora que não precisam mais despender todo o

tempo da existência na luta pela sobrevivência.

É poética a descrição do momento presente feita por Seu Adelino: “[...] Agora eu

estou nessa vida de regalo. De olhar aqui os outros que tá passando na rua, outro tá lá na

cidade, outro tá noutro lugar e prosear com os velhos murcho que nem eu mesmo. É essa

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vida! Hoje não tenho necessidade de trabalhar. É pescar, fiz um covo feio que nem eu mesmo.

Mas o feio tem direito de ir no rio pescar”.

E não é só isso, Seu Adelino que teve uma vida marcada por carências ganhou muita

coisa depois que se mudou: “Depois que vim viver aqui eu tenho mais amigos e ganhei a

aposentadoria - há muito tempo eu sou aposentado, mas pra mim não há dinheiro, com tanto

roubo. Aqui eu estou segurando mais dinheiro, dou ajuda lá na igreja, mas estou segurando

dinheiro. Tenho mais companheiros, aqui todos olham por mim. Muita gente que era estranho

agora é conhecido meu e esta me protegendo”.

O relacionamento com a vizinhança é outro ponto que merece destaque, pois nos

esclarece sobre os ganhos que uma concepção arquitetônica bem planejada pode proporcionar

às pessoas que se utilizam de equipamentos públicos. No caso da Vila Dignidade permite que

as pessoas circulem, se vejam e estejam em constante contato umas com as outras. A

sociabilidade entre os idosos faz surgir redes espontâneas de cuidados, o que também é fator

de segurança, uma vez que se tem a certeza de ter com quem contar quando alguma situação

adversa acontecer.

Como evidencia seu Abel que, além de se relacionar bem com todos os vizinhos, conta

com a solidariedade e ajuda de Dona Tereza para organizar as atividades do dia a dia: “Em

casa eu não faço nada. Pago pensão pra mulher do Chaminé, a Dona Tereza. Daí, ela cozinha

pra mim e trás aqui. Ela também lava a minha roupa, faz tudo. Só que eu pago. A amizade é

bom por causa disso aí. A amizade e o respeito. Afinal: “[...] o mundo, dá muitas voltas, dá

muitas voltas, e numa dessas voltas, pra você cair é fácil, fácil. Depois que você cai, pra

levantar é difícil. E as pessoas podem te ajudar”.

Dona Maria Rosa também evidencia a importância desta rede de solidariedade: “Acho

que aqui a turma cuida muito de mim. Porque se eu levantar aqui e ninguém vê eu ir pra lá, o

povo já vem tudo aqui. Saber se eu estou bem, o que esta acontecendo. E também não pode

ter inimizade aqui dentro. Pra mim é muito bom assim, eu gosto”.

Dona Zélia, que tinha sérios problemas com os vizinhos de sua residência anterior nos

fala que seu contato com a vizinhança é melhor agora e conclui: “[...] Por essa e por outras,

aqui é melhor. Aqui me sinto muito segura. Me relaciono bem com os vizinhos, não vou na

casa de ninguém, mas tenho um bom relacionamento”.

Dona Geni também já sente diferença na relação com os vizinhos: “Os vizinhos aqui

são tudo bom, só que eu vou falar bem a verdade, eu não conheço tudo ainda. As vizinhas

aqui são muito boas”. Dona Geni observa que até com a família o relacionamento é melhor:

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“Até com a minha família ficou melhor, ficou bem melhor, porque agora eles vêm mais na

minha casa. Principalmente a filha que ficava um ano sem ir na minha casa”. E no relembrar

se dá conta de que vivia mesmo sozinha antes da inclusão no Programa: “Pensar bem uma

coisa, o Natal e o Ano Novo eu passava sozinha. Só o que morava em cima de mim, esse

Gilson morava em cima e eu morava em baixo, que ia na minha casa, porque tava do lado”.

A Vila possibilita também fazer novas amizades através do contato com pessoas que

vão ao Condomínio, para conhecer o Projeto, ou realizar ali projetos acadêmicos. Seu Abel

gosta da presença dos convidados: “Aqui sempre vêm estagiários. Semana passada estiveram

aqui uns de Santo André, vieram com o Projeto Rondon, uma molecada jovem e animada,

vieram fazer exercícios com a gente. Isso aqui foi tudo eles que fizeram pra mim”.

Dona Maria Duffet também aprecia as visitas: “[...] tem o pessoal que vem de fora e

faz amizade com a gente. Nossa já veio tanta gente. Agora mesmo teve aqui o projeto

Rondon, tinha gente de São Paulo, Santo André, Mauá, Poá, Sorocaba, Campinas”.

A melhora no estilo de vida é tamanha, que repercuti na saúde dos moradores da Vila.

Dona Maria Duffet gosta de ter assistência médica e enfermeiros visitando-a em sua casa.

Dona Geni, que recentemente foi incluída no Programa Vila Dignidade já sente melhoras em

sua vida: “Ter vindo pra cá me trouxe muitos benefícios: tenho mais saúde, tranqüilidade,

trouxe paz pra minha vida. É uma benção, nossa!”.

Seu Adelino demonstra tranqüilidade por ter profissionais que se preocupam com ele:

“Está vindo uns médicos preparar a minha vida: um exame, uma coisa ou outra. Já veio uma

dentista examinar se eu queria uma dentadura - escreveram, pegaram o RG e o cartãozinho do

SUS, pra pedir uma dentadura. Tão fazendo tudo isso ai”.

Sei Irineu também aponta para os cuidados de saúde de que antes não dispunha: “Eu

acho que as mudanças que tiveram depois de virmos pra cá foi tudo pra melhor, tudo coisa

boa [...] A saúde minha graças a Deus está controlada: o diabetes, a pressão, o coração está

tudo controlado. Temos o posto de saúde aqui pertinho, dois ou três quarteirão, o médico é

muito bom. Ele vem aqui a cada dois meses e o que a gente precisa vai no postinho e eles

atendem. Tem a enfermeira padrão que é uma pessoa muito boa, atende muito bem a gente, dá

muita atenção. Então, aqui é bom por causa disso”.

Seu Abel traz um novo elemento, a autonomia financeira conquistada recentemente:

“[...] então, você não vê dinheiro (no asilo) e não ter dinheiro é uma situação ruim, pra

qualquer pessoa. Agora, aqui já é o contrário. Saí de lá já me devolveram o cartão. Eu não

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gasto um salário mínimo pra passar um mês aqui. Agora sobra um pouco. Então, pra mim “tá”

ótimo!”.

E Dona Zélia, aponta principalmente o ambiente, a estrutura física da casa, sem

umidade, lixo no quintal e sem a feiúra da casa anterior: “Minha vida mudou em todos os

sentidos, principalmente no ambiente. Aqui é mais arejado, você já não precisa estar correndo

pondo pano pra não derramar água”.

Dona Maria Rosa, Dona Maria Duffet e seu Irineu apontam para a questão da

acessibilidade: a Vila esta bem localizada e é de fácil acesso ao centro, o ônibus passa na

porta e, em quinze minutos se chega à cidade.

É evidente, nas narrativas, que a inclusão no Programa Vila Dignidade representou

melhoria na qualidade de vida dos idosos, garantindo-lhes segurança e proteções que, de outra

forma, não acessariam.

No entanto, despertou nossa atenção, o fato de nenhum idoso identificá-lo como

política social ou alternativa aos asilos. Para todos eles, é proeminente a questão da moradia;

as demais políticas públicas, que se inter-relacionam na execução do Programa, não são

percebidas como conjunto articulado capaz de originar outra coisa que não uma Casa.

Nem mesmo as condicionalidades do Programa que partem da obrigação de pertencer

a uma classe etária, ser idoso, ou seja, ter mais de 60 anos - além de ser independente para a

realização das atividades de vida diária, ter rendimento mensal de até um salário mínimo,

vivenciar situações de risco pessoal e/ou social, residir no município há pelo menos dois anos

e não possuir imóvel próprio – caracterizam-no como algo além de uma política habitacional.

Quando incitados a falar sobre velhice e envelhecimento começam a aparecer

elementos que podem nos ajudar a entender porque os idosos compreendem o Programa

apenas como política habitacional. Entre eles – e na sociedade como um todo - é recorrente a

idéia de que a velhice esta no outro ou é um devir que esperam não chegar nunca. O medo de

envelhecer se explica pela associação recorrente de velhice/dependência/ demência. Como já

observou Concone:

Creio que pudemos perceber que há um temor ligado ao envelhecimento, um medo de ser velho. Medo mais que justificado, dado que o envelhecimento é visto quase que exclusivamente como uma fase de perdas: perdas físicas, perdas sociais, perdas psíquicas, perdas afetivas. Não deixa de ser um horizonte tenebroso que é necessário afastar.

Concone: 2007: 29

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Dona Geni é clara: “[...] eu não me considero “veia”, porque, “veio” mesmo, que vai

se entregando, não tem coragem de fazer serviço. Não tem coragem, se acostuma com a

sujeira. Não é mesmo?”

Na fala de seu Irineu essa associação também é marcante: “Falar a verdade, eu não me

considero muito velho. Porque a pessoa quando é muito, uns fala velho outros fala idoso,

quando é muito velho anda mais debilitado. Não pode fazer as coisinhas dele sozinho. A gente

aqui faz as coisas da gente sozinho.”

Dona Zélia também faz questão de frisar: “Eu nem sei dizer como é ser velho. Não sei

dizer porque eu não sou velha e acho que não vou envelhecer. A gente tem o pensamento bom

e enquanto não tiver gaga mesmo, enquanto não esquecer de tudo, eu serei jovem. Quando

começar a esquecer, ai já não poderei mais andar sozinha, não poderei mais lembrar das

coisas, já estarei velha”.

Seu Abel é enfático: “Acho que não existe velho. Acredito que não! Porque, uma

hipótese, você tem trinta anos, eu tenho trinta e dois. Eu sou mais velho, você já me chama de

velho, mas outro que vem 29, 28, vai te chamar de velho. E assim por diante, vamos que

vamos...”

Dona Maria Rosa, apresenta bons argumentos para não se considerar velha: “Eu não

me acho velha porque eu tenho o espírito jovem - não vou também ficar usando uma coisa de

jovenzinha, eu sei me colocar. [...] Ah, eu não tenho nem idéia de como seja envelhecer. Não

tem gente velha né? Velho é assim: aquela pessoa que está em cima de uma cama, que não

pode mais se locomover... Eu não, eu ando, vou ao supermercado. A turma pede pra ir

comprar as coisas eu vou, pedi pra ir à padaria eu vou, e ando por ai, e faço amizade com todo

mundo”.

Embora nenhum dos idosos assuma o medo de envelhecer, no conjunto, as narrativas

evidenciam a força com que este temor se faz presente no imaginário do grupo e alguns

idosos nos dão pistas de como é traumático quando os outros os reconhecem como velhos.

Dona Zélia fica brava e se ofende quando alguém julga que os moradores da vila são velhos:

“Eu não me considero velha. Velho não anda, ou anda caindo os pedaços. Aqui não é um

condomínio de velho é um condomínio de idoso. Idosa eu sou. Tem pessoa que fala que aqui

é a vila dos velhos, são pessoas cínicas, aqui ninguém se considera velho”.

E seu Antonio não fica atrás na indignação: “[...] o pessoal passa lá na rua, às vezes,

gente que vem visitar aqui diz: “vamos lá visitar os velhinhos”, é muito diminuído, sendo que

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a gente está com um pouco de gás ainda. Eu acho essa parte ruim. Até falei pra uma que eu

estava meio de olho nela, é da igreja também, ela vinha aqui fazer culto comigo, eu falei para

ela, ela estava meio investigando eu. Nós estavamos ali nos aparelhos, eu falei pra ela que

esse ponto de vista fica ruim pra nós que ela fala: “Ah, nós vamos lá visitar os coitadinhos

dos velhinhos”.

Diante destes posicionamentos desenha-se um argumento que inconscientemente

justifica o não reconhecimento do Programa como política social. A demanda habitacional é

uma marca de nossa sociedade que não diferencia as pessoas, enquanto que a demanda social

é fator de diferenciação e exclusão. Assim caracterizar o Programa como política social –

como alternativa aos asilos – significa reconhecer-se como diferente e em condição de

inferioridade – é ser velho e depende do poder público para viver. Assim é mais digno habitar

uma Casa que habitar uma instituição.

Para os idosos de idade mais avançada o processo de envelhecimento parece ser mais

consciente, mas no geral, ainda não se consideram velhos porque preservam a autonomia.

Dona Maria Duffet nos diz: “Quando era mais nova não pensava que iria envelhecer, até

alguns anos atrás era tudo normal pra mim; antes de eu ir ao médico e tomar remédio pra

pressão, diabetes e não sei o que. Antes disso eu não achava que era nem nova nem velha. Eu

nem pensava na velhice, achava que eu era conservada e podia fazer tudo sem precisar dos

outros. E quando precisava de alguma coisa a gente pagava tudo numa boa. Hoje ainda não

me acho velha”

Dona Geni também reforça a ideia de Dona Maria: “Eu pensava que não ia ficar

“veia”, pensava que ia morrer logo [...] Por causa do sofrimento eu achava que ia morrer logo

[....] E agora não me considero “veia”. Tô “veia”, mas eu tenho minhas forças pra andar,

tenho aquela disposição de conversar com as pessoas, andar, fazer serviço, limpar as coisas -

limpo uma coisa, limpo outra.”

Seu Antonio admite que é velho, “mas não muito, porque eu tenho espírito de mais

novo, embora agora eu esteja mancando. Saio por ai mancando, mas eu vou para toda parte” .

Seu Adelino é o único que, diante da fraqueza do corpo, já não tem como negar seu

envelhecimento: “Eu considero velho porque já sou de idade. Como vê a palavra está no

registro, no documento e na idade da gente. A gente sente não tendo aquela energia que eu

tinha de moço. Eu já tenho canseira no corpo, tenho cansaço na perna. Tenho canseira,

“tremimento” na perna - passo gelo, às vezes, faço “andada”, como fiz “andada” ontem, mas

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sinto canseira. Subir uma subida ataca o cansaço no colo. Tomo remédio pra bronquite. Acho

que prejudica, é isso que eu acho”.

Diante da constatação da velhice vivida, ou que irá chegar um dia, o melhor é estar no

lugar que eles compreendem como o lugar dos velhos por excelência: “Eu imaginava que ia

morar no asilo, pros outros cuidar na minha vida. Porque parente, às vezes, não tem jeito da

gente se enquadrar com parente, “fugenta”, às vezes, tudo por causa do parente. Acho melhor

“ponhar” no asilo, eu não quero esse sofrimento. Ninguém quer sofrer”

Seu Antonio cogita, sem receio, a possibilidade de morar numa ILPI: “Esses dias

estava pensando que de repente é melhor ir para o asilo do que ficar perturbando a família.

Eles trabalham e tem a cabeça deles, o mundo deles é outro, então a gente velho já é um trem

fora da linha pra eles. Se for preciso, não acho ruim morar num asilo, só se os filhos não

quiserem que eu vá e arrumem um jeito de me cuidar.

Para Dona Zélia o asilo também se apresenta como uma boa alternativa para não

morar ou depender dos filhos: “Meus filhos vivem me falando “mãe, a hora que nós tiver

uma casa a srª vai morar comigo”. Um deles falou assim pra mim “mãe, a hora que eu casar

eu vou levar a srª pra morar comigo”, e eu sempre dou essa frase pra eles: “olha, eu prefiro

asilo a ter que morar com um filho” . Deus me livre de morar com filhos!”

O ideário dos idosos acerca do asilo também nos ajuda a entender porque o Programa

não é, por eles, associado à área social: as instituições sociais são lugares de

velhos/dependentes – é o lugar do outro. Não é lugar de se viver mas lugar de ser cuidado.

Parte deles se quer pode se imaginar demandando por cuidados tão específicos. Para

Dona Geni, é impossível se imaginar vivendo num asilo: “Nem quero pensar em ter que

morar em asilo, Deus o livre! Nem quero pensar nisso. Eu não penso em ir no asilo... Acho

que não dá. Lá é muito misturado e eu sou assim: gosto das coisas quietinho, gosto de fazer

meu serviço quietinho, eu gosto de ficar quieta. Lá tem muito “veio”, eu sou “veia” também,

mas lá tem muito “veio”, tem homem, tem mulher, tem tudo... Nunca fui visitar um asilo, mas

penso que é assim porque, a gente passa de ônibus lá ta aqueles “veio” sentado pra fora. Eu

penso assim comigo”.

Dona Maria Rosa tem a receita para a construção de um asilo que considera ideal,

onde se possa mais que “ficar sentado pra fora”, onde se possa morar “[...] Eu acho assim, que

devia ter um lugar, por exemplo: em Piracicaba tem uma coisa muito boa no asilo, eu achei o

asilo de lá excelente. É assim: tem aqueles que não podem se locomover - eu fui lá há anos,

mas não me esqueço - então, eles ficam num lugar que ficam só as pessoas cuidando no

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quarto. Mas, dentro do asilo, é como se fosse aqui, cada um tem sua casa - uma belezinha, as

casas tudo com seu jardinzinho, eles cuidam. Ai que coisa mais linda! Muito lindo! Eu lembro

que quando eu fui visitar eu falei: “ah, quando eu ficar velha eu quero morar aqui”. Então eu

acho que devia ter um lugar assim pra pôr as pessoas. Não deixar jogado. Passa tanta

entrevista, as pessoas falam: “jogaram eu aqui, não vem nem me ver”. Deve ser uma mágoa

pra pessoa. Deus me livre de acabar a vida de um jeito tão triste”.

Colocações tão expressivas nos indicam como se constroem essas teias de significados

que modelam a percepção dos idosos acerca dos asilos: concebem estes lugares como

exclusivo para idosos dependentes, e/ou abandonados pela família - o que eles definem como

velhos, logo, não são lugares para eles – pelo menos não enquanto preservarem sua

autonomia.

Por isso talvez os idosos não associem o Programa em que estão incluídos como

alternativa ao asilo ou instituição de acolhimento, pois no imaginário geral quem demanda por

estes serviços é o outro, o velho dependente.

Neste sentido, pode ser mais dignificante entender o Programa exclusivamente pela

perspectiva habitacional, já que a necessidade de moradia não é exclusiva de um grupo etário

e não gera distinções pejorativas em relação aos demais integrantes da sociedade, como

normalmente acontece com os idosos que são acolhidos nos asilos.

Além disto, os asilos não devem ser um lugar confortável e bom para se viver, como

nos evidencia Dona Geni, ao contar-nos uma conversa que teve com sua ex vizinha: “A

mulher disse assim pra mim: “Viu Dona Geni, a senhora mudou? A Tereza estava falando

que lá é o asilo”. Aí eu falei: “nossa, não sabia que asilo era bom igual lá. Porque lá é um

condomínio fechado, lá tem tudo. Lá até a água pra senhora lavar o rosto na pia do banheiro

é água quente. Tem água quente na pia pra lavar o rosto, não sei se no asilo existe isso”.

3.2.3  A  Casa  é  onde  quero  estar    

No conjunto as narrativas nos evidenciam que no imaginário dos entrevistados a

instituição não é o lugar de estar. Com suas falas os idosos nos esclarecem sobre seu desejo de

estar em Casa e de nela permanecer até a morte, que muitos esperam ser súbita - querem dali

partir para “uma melhor” sem a necessidade dos cuidados de outrem – família ou instituição.

As seguranças proporcionadas pela conquista deste espaço são tanto afetivas e

psíquicas quanto físicas, materiais e sociais. Assim como nas musicas em que a Casa cantada

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é projetada a partir de relações afetivas, é fortaleza guardiã dos sentimentos e daquilo que

realmente tem valor (amigos, livros, discos, amor e self) e se transforma em Lar ao agregar

elementos naturais à companhia de alguém que se ama, ou ao promover a interação com o

mundo, a Casa real de nossos colaboradores também é fortaleza - projetada a partir de

necessidades materiais e de vulnerabilidades sociais - guardiã da paz e da tranqüilidade. O

calor do Lar é concha que protege do mundo externo, lugar do aconchego e da proteção

divina.

Como nos mostrou DaMatta o espaço da Casa é o universo privado da família,

parentes, compadres e amigos; lugar privilegiado do aconchego, do repouso e da

hospitalidade; espaço das ações que podem ser condenadas na rua e do tempo dos finais de

semana – tempo interno, de lazer e para ser vivido em família.

Nas narrativas dos idosos são claras essas idealizações. Dona Maria Rosa sonhava em

ter Casa e família: “Eu sempre fui assim: eu queria ter uma família. Eu queria assim, ter

minha casa. Eu sempre falava: “o dia que eu tiver a minha casa eu junto a minha família pra

almoçar na minha casa”.

E qual o tamanho de sua frustração por agora ter Casa, mas não conseguir reunir a

família: “[...] essas coisas não acontecem. Os meus parentes quase não vêm aqui. O pessoal ai

mesmo fala “credo Maria os seus parentes não vem na sua casa”. Eu falo, “eles não vêm

mesmo”. Só essas legítimas. Elas vêm sempre aqui, mas os outros não”.

Mas esta triste constatação não diminui o valor e a importância de sua Casa, nem o

apreço que tem por ela: “Eu adoro, adoro minha casa, adoro o lugar que moro...” A percepção

de Lar de Dona Maria Rosa, assim como o Lar idealizado por Arnaldo Antunes, se relaciona

plenamente com lareira, local da cozinha onde se ascende o fogo que com suas chamas

iluminam, aquecem e transformam os alimentos (Fellipe: 2010) e promove relações afetivas:

“Ah, eu gosto da minha cozinha. Eu adoro cozinhar, fazer coisas diferentes, copiar receitas...

[...] Quando eu quero fazer uma coisa assim, que eu não posso comer muito, eu faço e divido

com o pessoal - levo um potinho na casa de um e fico só com um pouquinho pra mim. Eu já

divido com os outros”.

Para Seu Adelino a percepção da Casa se relaciona com riquezas como segurança,

sossego, tranqüilidade, paz e uma “vida de regalo”: “Minha vida mudou bastante eu estou na

casa de Deus. Agora eu tenho a Casa, já tô mais sossegado, mais aliviado [...]A riqueza maior

foi a saúde, que Deus deu pra comer, e agora deu a casa aqui, porque foi feito o papel”.

Livrar-se dos alugueis torna a necessidade de trabalhar menos preponderante e lhe possibilita

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desfrutar de uma vida mais tranqüila, com tempo de sobra para o lazer: “Hoje não tenho

necessidade de trabalhar. É pescar, fiz um covo feio que nem eu mesmo. Mas o feio tem

direito de ir no rio pescar”.

Seu Antonio fala do aconchego e calor do seu Lar. Quando se ausenta não vê a hora de

retornar para Casa: “[...] dei graças quando cheguei aqui, abri a porta e entrei pra dentro,

quando recebi o calor da minha casa”. Sente orgulho de possuir este espaço: “Quando

converso com as pessoas conto com muito orgulho que moro aqui, todo mundo acha que aqui

é uma maravilha. E aqui é muito adequado para os idosos”.

Para Seu Irineu, que passou toda a vida no mesmo lugar, a Casa é sua maior referência

no mundo - o que tem grande significado quando se considera que o mundo de um

caminhoneiro é imenso. Enquanto pilotou caminhão, sua Casa foi o porto seguro onde mulher

e filho estavam sempre à sua espera. O contraponto com as estradas – lugar de passagem onde

viveu a maior parte de sua vida - é o território da Casa, ponto certo de chegada: “A gente

acostuma num lugar, eu acostumei porque, quando trabalhava com caminhão, sabia que toda

semana, pelo menos um dia na semana, passava lá”.

Em sua narrativa Casa e casamento se imbricam dando sentido ao seu lugar de estar no

mundo. Como nos sugeriu DaMatta; “de casa vêm também casamento, casadouro e casal,

expressões que denotam um ato relacional, plenamente coerente com o espaço da moradia e

da residência” (DaMatta: 1997: 54). Por temor de abalar suas relações familiares sentiu

quando teve que se mudar pra Vila: “Francamente, o dia que eu me mudei, eu não sei, parece

que eu saí do ar. Falar a verdade eu até chorei”.

Deixar pra trás o filho e os netos não foi tarefa fácil de realizar, a idéia de perder o

contato com pessoas tão querida lhe assombrava: “Quando eu sai de lá eu pensava: “poxa

vida agora quero ver eu sair daqui, ficar longe dos meus netos, da minha família, do filho,

da nora, ficar longe deles vai ser difícil”. Eu não esperava que seria assim, que eles viriam

me visitar sempre. Toda semana, pelo menos duas vezes, ele vem. Ele vem, minha nora vem,

os netos, todos estão sempre por aqui”.

A certeza de que a mudança não abalaria os vínculos familiares deixou o processo

mais ameno e proporcionou outras reflexões: “Sei que foi difícil pra mim no começo, mas

depois eu fui pegando o jeito, agora acostumei. [...] e analisando bem, eu pensei comigo: “é

uma coisa que, eu sei que tá garantido aqui pra mim até o dia que morrer, porque depois que

morrer, o caminho certo é o cemitério”.

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Para Dona Geni a conquista da Casa pôs fim a uma vida de instabilidade e

inseguranças proporcionando autonomia financeira. Sua percepção de Casa passa também

pela idéia de porto seguro. Lugar de paz e de proteção divina: “Aqui eu sei que é do governo,

é emprestado e quando eu morrer passa pra outra pessoa idosa, mas mesmo assim estou no

céu!”.

Também para Seu Abel a autonomia financeira proporcionada pelo novo lar é fator de

segurança e tranqüilidade: “Não tem lugar melhor no mundo do que aqui viu! [...] Aqui é

muito tranqüilo, graças à Deus!”

Dona Maria Rosa que antes, com muita dificuldade pagava o aluguel de uma Casa

muito embolorada, que não batia sol e que lhe causava problemas de saúde aponta para o

alivio em se livrar do aluguel e, mesmo com a baixa aposentadoria, agora viver melhor: “[...]

eu passei a viver bemmmm mesmo depois que eu mudei aqui. Da minha vida inteira aqui é o

lugar que eu vivo melhor. Ah, nossa, não tem nem comparação, com os outros lugares”. A

segurança em saber que agora não corre o risco de ser despejada nem de ter que ficar sem

comida pra arcar com os custos do aluguel é fator de tranqüilidade: “É que aqui eu sei que só

vou sair daqui pra últimas moradas. E, se ficar dependente, vou pra um asilo ou, na casa de

familiar”.

Para Dona Zélia a segurança da Casa, é física, sua Casa a protege da força da natureza:

o telhado não pinga na chuva, as paredes não mofam e o espaço é arejado. E também lhe

proporciona relações afetivas com a vizinhança, o que a faz se sentir mais segura: “[...] Por

essa e por outras aqui é melhor. Aqui me sinto muito segura”.

Para Dona Maria Duffet a Casa idealizada, desejada e alcançada é relicário imenso,

guardião das histórias impressas em seus objetos. Assim como a Casa idealizada e cantada por

Elis Regina a Casa de Dona Maria Duffet é fortaleza que protege seus bens mais valiosos e a

faz encontrar a paz e a tranqüilidade do Lar - sua conquista pôs fim a uma trajetória de

constantes mudanças e necessidade de se desfazer dos preciosos bens que ainda lhe restaram.

Nenhum dos idosos entrevistados pensa em sair do Programa. A própria Dona Maria

Duffet reforça, inúmeras vezes, que não tem intenção de se mudar dali, mesmo com a

possibilidade de rever o seu dinheiro e assim ter condições de adquirir uma Casa própria:

“Mas se eu chegar a pegar esse dinheiro (poupança retirada no Plano Bresser – Collor)

pretendo ajudar alguma obra de caridade. Tirar o suficiente pra viver, pagar uma faxineira

boa, de confiança, pra vir toda semana fazer uma faxina, mudar alguma coisa aqui dentro, pra

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conforto da gente e o resto... Mas mudar daqui não penso não. Estou muito bem, graças à

Deus”.

Para Seu Irineu é certo que sua desvinculação do Programa se dará apenas pela morte:

“[...] o dia que a gente faltar, o meu filho com a minha nora, podem tirar toda a mudança, tudo

o que tiver aqui dentro, só deixar a casa vazia”. Por esta certeza ele esta sossegado e não tem

mais nada que possa querer na vida “[...] porque eu penso que aqui tem tudo que eu quero, a

minha mulher sabe fazer tudo, ela, como cozinheira, nossa! Tudo que eu gosto ela faz. Cama

pra dormir tem, eu posso dormir o dia inteiro, se eu quiser descansar. O que mais eu vou

querer?”

Seu Abel nem teria porque se mudar, pois esta no melhor lugar do mundo: “Aqui é

muito tranqüilo, graças à Deus! Graças à Deus! Eu me relaciono bem com todos os vizinhos,

com todos eles. É muito bom demais”.

E seu Antonio também reforça a segurança que sente por saber que dali não precisará

se mudar mais: “Essa casa não é minha, mas até a gente apitar na curva, como diz o ditado do

pessoal, posso viver aqui, a gente fica tranqüilo”. Apenas ele, entre todos os entrevistados, se

pudesse, estaria em outro lugar. Seu sonho é em ter um sitio: “[...] o que eu queria mesmo era

estar no sitio. Aqui esta mil maravilhas para mim, mas eu queria estar num sitio plantando e

criando alguma coisa”.

E Dona Maria Rosa, que teve toda a sua narrativa colorida por sua relação com a Casa,

finaliza: “Da minha vida inteira aqui é o lugar que eu vivo melhor. Ah, nossa, não tem nem

comparação, com os outros lugares”.

As seguranças proporcionadas pela Casa permitem aos nossos colaboradores projetar o

futuro – se antes não sobrava tempo pra pensar além das necessidades imediatas, hoje, no

aconchego e tranqüilidade do lar, é possível querer mais que as condições necessárias para

sobreviver.

Seu Antonio quer, no futuro, encontrar uma companheira, desfrutar da herança de seu

avó, comprar um sitiozinho e ter uma plantação.

Dona Geni embora ache que velho não tem futuro, espera, ainda fazer muita coisa na

vida. Com o dinheiro que agora sobra: “comer bem, andar bem limpinha. Futuro a gente não

tem mais porque já é velho, como é que a pessoa vai ter futuro? O que tiver que fazer é pra

comer, pra beber, se vestir, ir pra uma igreja, fazer uma visita. Isso é que eu espero!

Seu Irineu espera viver mais pra poder desfrutar da esperada aposentadoria – que deve

chegar quando completar 65 anos de idade: “[...] o meu sonho é, depois que aposentar, viver

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mais oito ou dez anos pra desfrutar um pouco da aposentadoria. Eu acho que chego nisso[...]

Então, eu acredito que, controlando o diabetes e tomando meus remédios certo, é capaz que

eu dure mais um tempinho, mas não dá pra calcular porque o corpo é que nem uma máquina.

Você vai indo prá rua e, de repente, ‘puf’”.

Seu Abel, com humor, espera ganhar na loteria: “Meu futuro? Só se acertar na mega

sena, porque de aposentadoria não vai passar disso aqui. É isso aqui o resto da vida, é ou não

é?”.

Dona Maria Rosa é a personagem que melhor ilustra nosso enredo das percepções e

seguranças que uma Casa pode proporcionar à pessoa que envelhece. Dona de uma história

marcada por sofrimento e instabilidade, ela experimenta, na velhice, a felicidade que antes

não conhecia e gosto pela vida: “Tudo que eu falava antigamente, que eu não queria mais

viver, hoje eu falo, “eu amo viver, que coisa mais gostosa”. Sim, já fiquei cansada da vida -

no tempo que eu sofria. Mas hoje, eu adoro viver, nossa, eu amo viver”.

Com a vida cheia de novas possibilidades, “[...] nem tenho tempo de pensar na

solidão. Não tenho mesmo!” Todo dia eu arrumo uma coisa pra fazer, e todo dia eu sou a

mesma coisa”.

Essa idosa que já desejou a morte, acreditando ser essa a saída para por fim ao seu

sofrimento, hoje nos dá a receita de sua felicidade: “[...] que vantagem tem você ficar brava?

Tem dois tempos, um de ficar brava e outro de ficar boa. Então porque já não anda boa o

tempo inteiro?” Mas não é mais fácil? Vai ter que ficar brava? Você vai sofrer. Você não vai

ter que ficar boa depois? Então porque já não andar o tempo inteiro bem com a vida? Eu

adoro viver aqui, que delicia!”

O que pode querer da vida agora é desfrutar de tudo de bom que lhe esta reservado: “O

que eu quero da vida é passear bastante. Eu já falei que a partir do ano que vem eu vou

economizar um pouco pra passear mais”.

Nas canções e nas narrativas percebemos que a noção de Casa é estritamente vinculada

à segurança dos afetos, mas, da arte para a realidade, as narrativas nos mostram que esta

segurança se amplia para a proteção social. A Casa é a grande guardiã das emoções, da

individualidade e da subjetividade de seus moradores. Lugar da intimidade protegida, a partir

do qual as pessoas se projetam no mundo e o apreendem, a Casa é o lugar privilegiado para

construir a si mesmo e a relação com os outros, é lugar de ser, mas, é também lugar de ter

tranquilidade, conforto, segurança de acolhida, paz e uma velhice mais protegida e com

qualidade de vida.

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3.3  Estado  e  Proteção  Social:  Breves  considerações  

Robert Castel (2005) nos diz que nas sociedades modernas, constituídas por indivíduos

livres, a proteção é garantida, primeiro, pela propriedade - da vida, da liberdade e dos bens.

Conforme preconizado por Locke, nestas sociedades:

A propriedade é o alicerce de recursos a partir do qual um individuo pode existir por si mesmo e não depender de um patrão ou da caridade de alguém. É a propriedade que garante a segurança em face das circunstâncias imprevisíveis da existência, da doença, do acidente e da miséria de quem não pode mais trabalhar.

Castel: 2005: 18

Assim, o Estado Liberal tem, em sua origem, o dever de proteger as pessoas e seus

bens, ser um Estado de segurança e proteção: a proteção civil fundada no Estado de direito e a

proteção social fundada na propriedade privada.

No Estado Moderno é através da propriedade que o individuo se torna capaz de

proteger-se a si mesmo. Aos não proprietários, ou àqueles que só dispõem de sua força de

trabalho, resta a insegurança social que resulta da vulnerabilidade das condições que condena

as pessoas a viverem “ao Deus dará”, à mercê do mínimo acidente de percurso (Castel: 2005):

A insegurança social é uma experiência que atravessou a história, discreta em suas expressões porque aqueles que passaram por ela quase nunca tinham a palavra – salvo quando ela explodia em motins, revoltas e outras “emoções populares”-, mas carregada de todas as penas e de todas as angústias cotidianas que constituíram uma boa parte da miséria do mundo”.

Castel: 2005: 28

O cerne da problemática da questão social, não resolvida pelos princípios liberais, é a

criação de um desnível entre os membros da sociedade: a separação entre os sujeitos de

direitos (proprietários) e os sujeitos sem direitos (trabalhadores não proprietários) – estes

submetidos à insegurança social.

Para Robert Castel o desenvolvimento de redes de segurança e de sistemas de

“seguridade social”, foi a resposta da Europa Ocidental à insegurança social. A construção

deste sistema teve dois pressupostos como ponto de partida: 1) a proteção do trabalho com a

garantia de direitos aos trabalhadores – acesso à cidadania social através da consolidação do

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estatuto do trabalho; 2) o acesso em massa à propriedade social, uma propriedade para a

segurança, colocada à disposição daqueles que estavam excluídos das proteções garantidas

pela propriedade privada, como exemplo, o direito à aposentadoria – uma propriedade do

trabalhador que visa garantir-lhe segurança fora do trabalho.

A solução encontrada para a insegurança social nos Estados Europeus passou pela

consolidação do Estado de Bem Estar Social, um Estado que não resolveu, de fato, o impasse

da desigualdade de condições, mas criou sistemas de proteção que buscavam superar “o

caráter irredutível da oposição proprietários/não proprietários, graças à propriedade social,

que garante aos não proprietários as condições de sua proteção” (Castel: 2005: 36) 63.

Assim, a cidadania social dos europeus foi conquistada através da consolidação do

estatuto do trabalho, ou seja, a maior parte da população, constituída de não proprietários, era

assalariada com direitos comuns reconhecidos constituindo não uma sociedade de iguais –

como preconizado nos princípios liberais – mas uma sociedade de semelhantes64.

No caso brasileiro, a consolidação de nosso Estado foi marcada pela injustiça e pela

desigualdade. Tereza Sales65 acrescenta mais um elemento, essencial na construção da

cidadania no Brasil, a saber, a relação do mando/subserviência66.

Esta autora nos dá os subsideos para compreendermos a complexa trajetória de

consolidação da cidadania civil e social em nosso país e nos ajuda a compreender porque, por

aqui, as políticas sociais sempre exerceram papel de coadjuvante nos modelos político-

econômicos adotados ao longo de nossa história e porque nossa cidadania social foi sempre

renegada pelos interesses das elites dominantes.

                                                                                                                         63 Este foi o cenário dos países europeus até a década de 70. Nos anos 80 tem inicio o desmantelamento do Estado de Bem Estar Social com o enfraquecimento do Estado e das organizações coletivas. Atualmente nos países europeus a insegurança social é explorada não apenas na mídia e nos discursos políticos, mas evidenciada pelos elevados índices de desemprego, pelo achatamento dos salários e constantes manifestações populares e movimentos de protesto que tomaram contam dos espaços públicos, à partir de 2011, tendo à frente, principalmente, jovens desempregados ou submetidos a “contratos flexíveis” de trabalho, que os colocam, segundo definição recentemente formulada por intelectuais contemporâneos na condição de “precariado”. Para uma analise mais detalhada ver: Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas; David Harvey, ET AL; tradução João Alexandre Peschanski.. ET AL: São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012. 64 Uma sociedade de semelhantes é uma sociedade diferenciada, portanto hierarquizada, mas na qual todos os membros podem manter relações de interdependência porque eles dispõem de um fundo de recursos comuns e de direitos comuns (Castel: 2005: 36). 65 Sales, T. Raízes da desigualdade social na cultura brasileira. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 25, ano 9, junho de 1994 (p. 26 – 37). 66 A autora nos mostra que conceitos como ‘democracia racial’ (Gilberto Freyre) e ‘homem cordial’ (Sergio Buarque de Holanda) funcionam internamente como mediadores das relações de classe, ajudando a dar uma aparência de encurtamento das distâncias sociais. Estes conceitos tão propagandos no pensamento social brasileiro contribuem para que situações de conflito não resultem em conflito de fato, mas em conciliação, evidenciando que a questão da desigualdade social é enrustida pelo fetiche da igualdade.

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Nos primórdios, a transposição do mercantilismo europeu para a colônia brasileira

caracterizou-se por um padrão de povoamento pautado na formação de núcleos dispersos

mantidos pelo trabalho escravo de indios e negros trazidos da Africa – o domínio rural

determinou a ocupação do território e configurou os latifúndios.

Por séculos (1500 – 1888) o trabalho escravo modelou a sociedade e estabeleceu as

relações de produção. Neste período a estratificação social esteve formatada em dois grupos

distintos: escravos (oprimidos) e senhores (‘elite’ opressora). Entre eles existia uma porção

pequena de homens livres e pobres que dependiam da tutela dos fazendeiros locais para

garantir sua segurança.

Donos do poder, estes fazendeiros controlavam os aparelhos de justiça, os delegados

de polícia e as corporações municipais e amparavam o homem comum de todos esses

controles mantendo-o sob a sua proteção. Assim, exerciam sobre ele as mesmas formas de

violência praticadas com suas peças de escravos.

Neste contexto, os direitos básicos: o direito à vida, à liberdade individual, à justiça, à

propriedade, ao trabalho; os direitos civis chegavam a esta parcela de homens livres como

uma dádiva do senhor de terras. Essa é a expressão máxima da cidadania concedida - que tem

seus argumentos na cultura política da dádiva e se vincula, contraditoriamente, à näo-

cidadania do homem livre e pobre, que dependia dos favores do senhor territorial para poder

desfrutar dos direitos elementares de cidadania civil.

Consolida-se no Brasil uma cultura política que, para a autora, é uma espécie de

cimento das relações de mando e subserviência - subserviência como o pedir, para além do

obedecer, que faz parte do cerne da cultura política da dádiva.

O drama do mando e subserviência sofreu mudanças com o passar dos anos, mas não

foi superado, e com o fim da escravidão a subserviência incorporou os escravos libertos67. A

abolição da escravidão, acontecimento que poderia marcar o rompimento com esse modelo,

foi antes, responsável por sua perpetuação, pois se associou ao coronelismo, a patronagem e

ao clientelismo.

Antes da República o homem livre para “estar seguro” dependia da tutela de um

grande latifundiário. Na República, os direitos básicos de cidadania foram suplantados pela

dádiva e as desigualdades aprofundadas - o liberalismo aportado por aqui não rompeu a

relação mando/subserviência e a implantação da República perpetuou a cidadania concedida.

                                                                                                                         67 Exemplos de resistência à violência do mando, apresentado por Sales, foram os cangaceiros e os movimentos migratórios, mas, apesar destas manifestações, a implantação da República perpetuou a cidadania concedida e o liberalismo em nada contribui para instaurar direitos elementares de cidadania.

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A leitura de Sales nos esclarece os porquês da questão social no Brasil historicamente

estar fora das responsabilidades do poder público. Pela lógica da dádiva os donos do poder

local (elite agrária e, posteriormente profissionais liberais e primeiros industriais) respondiam

à insegurança social financiando ações caritativas destinadas aos pobres.

Enquanto poder público a intervenção ficava por conta de suas policias – assim se

eximiam de qualquer aproximação com a questão social e abafavam a construção da cidadania

social. Enquanto figuras políticas, buscavam se destacar na sociedade destinando “recursos

próprios 68 ” para o financiamento de ações caritativas desenvolvidas por organizações

privadas, comumente vinculadas à Igreja Católica69.

Longe da perspectiva do direito, estas organizações tinham seu trabalho fundamentado

na lógica da benesse e da caridade70 e carregavam sentidos específicos e contraditórios: 1 -

aparentavam encurtar as distancias aproximando semelhantes – os filhos de Deus - pelo ato de

bondade do “verdadeiro cristão” (pessoas que compõem o poder local e que, por estarem em

condições privilegiadas, podem praticar a caridade); 2 - perpetuavam uma tolerância social

que reconhecia o mendigo como personagem legítimo do mundo da pobreza - próximo e

acolhido pelas demais camadas sociais através da caridade religiosa e; 3 - na contramão,

evidenciavam as vulnerabilidades dos que nada possuíam reforçando os desníveis sociais e

ampliando o poder de concessão dos grupos privilegiados.

Tardiamente, a década de 30, do século passado, marcou o inicio da urbanização das

cidades brasileiras decorrente da intensificação do processo de industrialização. Neste período

vivemos a alternância cíclica de governos autoritários e democráticos e, mais uma vez, a

política da dádiva substitui os direitos de cidadania.

Neste período as primeiras mobilizações dos trabalhadores urbanos pressionavam o

Estado por algum tipo de proteção que respondesse à crescente desigualdade e a questão

                                                                                                                         68 A expressão vem entre parênteses porque, comumente, quando as doações provinham de agentes públicos esses recursos também eram públicos, frutos de emendas parlamentares estaduais ou federais ou outras fontes de recursos à que o legislativo pode usufruir. No entanto, a maneira como as doações eram noticiadas, por vezes, davam a impressão de se tratarem de recursos próprios, quando na verdade, próprios eram apenas os interesses em doar. 69 Estudando a história de um asilo centenário – o asilo São Vicente de Paula de Itatiba – S.P - para construção de TCC do curso de Especialista em Políticas Públicas, chamou nossa atenção a repercussão destas doações na imprensa local. Freqüentemente os jornais destacavam doações feitas por figuras políticas, não no papel de políticos locais, mas de católicos devotos, que como bons cristãos se sensibilizavam pelas causas sociais. Neste ato é reforçado e ampliado o poder do individuo – e não do Estado - de conceder cidadania para além daqueles que estão sob sua tutela - os despossuídos que perambulavam pela cidade ameaçando as “pessoas de bem”. 70 Aqui o verbo ter poderia ser mantido no presente porque, ainda hoje, parte destas instituições compõem a rede socioassistencial e frequentemente demandam por capacitações para uma pratica garantidora de direitos.

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social, que até então era resolvida pela policia, passa a ser considerada na agenda política do

presidente Getúlio Vargas.

São deste período a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, os

Institutos de Aposentadorias e Pensões e as primeiras legislações trabalhistas que

asseguravam alguns benefícios aos trabalhadores urbanos, mas no geral, o modelo de proteção

social adotado manteve em seu cerne a lógica da dádiva refletindo “uma política

governamental corporativista e personalista, em que predominavam interesses particulares dos

dirigentes, em troca de favores” (Belgini: 2006).

No governo Vargas as ações desenvolvidas pelo Estado fogem da caridade cristã para

desembocarem no assistencialismo, e se caracterizam essencialmente pela distribuição de

ajudas materiais às classes mais empobrecidas71. Belgini nos diz que as medidas de proteção

social assumidas entre 1930 e 1954, trouxeram ganhos para o trabalhador como: a instituição

do salário-mínimo, a jornada de oito horas de trabalho, as férias remuneradas, a proteção do

trabalho da mulher e do menor, a assistência à saúde, à maternidade, à infância e uma série de

outros serviços assistenciais e educacionais.

No entanto, mais uma vez se evidencia, em nossa história, a base da política da dádiva

presente nestas tentativas de construção da cidadania, pois, “Getúlio Vargas estabeleceu uma

política governamental paternalista e, usando os meios de comunicação, difundiu a imagem

de “pai dos pobres”, nascendo daí, as bases populistas de seu governo” (Belgini: 2006: 20).

Estas ações populistas carregavam a áurea de um Estado de Bem Estar que nunca

chegou a ser implantado no Brasil e, ao mesmo tempo em que concediam direitos e benefícios

limitavam a ação política dos trabalhadores e ampliavam a acumulação capitalista por parte

dos empregadores. Tal dualidade, pensada na perspectiva de Sales, tem sua origem na cultura

da dádiva, e se repetirá no período militar, quando:

[...] conhecemos um grande progresso na institucionalização da política social, de que são exemplo a criação do Sistema Nacional de Previdência Social e o BNH, porém essas estruturas são usadas para legitimar o regime militar, com mecanismos de controle, ao eliminar-

                                                                                                                         71 Em 1942, é fundada a Legião Brasileira de Assistência – LBA, visando apoiar as famílias dos soldados brasileiros que lutavam na Itália. É Dona Darcy, mulher do Presidente Vargas quem tomou frente da instituição e liderou as mulheres que participaram do esforço de guerra que se fazia no país. Ao término da Guerra, em 1946, decidiu-se pela continuidade da LBA, agora desenvolvendo um trabalho na área da infância e da maternidade, ainda sob os cuidados da Primeira-Dama. In: Belgini, P. "Assistência Social: Direito Ou Favor – Um Estudo Sobre As Famílias Nos Programas Sociais Da Prefeitura De Itatiba (SP)" Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Serviço Social à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, sob orientação da Profª. Drª. Marta Silva Campos, 2006. Disponível em www.dominiopublico.gov.br.  

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se qualquer participação, além de se dar continuidade ao modelo desigual e fragmentado de atendimento à população.

Belgini: 2006: 21

Sales nos diz que apenas em meados dos anos de 1960 rompemos com a perspectiva

da cidadania concedida, não por vontade própria, mas pela expulsão dos trabalhadores rurais

dos domínios do campo, devido à reestruturação implantada com a introdução de tecnologias

na atividade produtiva agrícola.

Neste período, nos centros urbanos a articulação do movimento estudantil contra

restrições às liberdades civis, impostas pelo regime militar, fomentava a emergência dos

movimentos sociais.

Fontoura (2008) vê com otimismo as manifestações populares que emergiram após a

década de 60, pois carregavam a possibilidade de mudança. Para a autora, os movimentos

sociais foram uma inovação que impulsionou a efetivação de uma cultura mais participativa,

forçou a inclusão de novos agentes na área política institucional, desenvolveu novas

estratégias políticas e contribuiu para a construção de uma identidade coletiva.

A contribuição destes movimentos para o fim da ditadura nos anos 80 é indiscutível e

se expressa no fortalecimento da sociedade civil que, pela primeira vez, participa da

elaboração de nossa Carta Constitucional (1988) imprimindo nela uma perspectiva de

cidadania mais plena.

Na Constituição Federal os direitos sociais são reconhecidos, legitimados e garantidos,

dentre eles, o direito à Seguridade Social, entendida como um conjunto integrado de ações

dos Poderes Públicos e da sociedade, nas áreas de Saúde, Previdência e Assistência Social

destinadas a assegurar direitos” (CF: art. 194).

Fischer nos mostra que em tal conquista configura-se um paradoxo:

Mas esta [Constituição] seria um símbolo do paradoxo que caracterizaria o Brasil nos anos subseqüentes: a consolidação de direitos crescentes e universalistas, que deveriam garantir o acesso dos cidadãos aos mais diversos bens e serviços, encontraria um Estado falido, incapaz de assumir seu papel de provedor.

Fischer: 2002:42

Belgini nos explica que estas conquistas se deram no mesmo momento de

aprofundamento da crise econômica, onde a política de caráter neoliberal trouxe

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privatizações, privilégio do capital financeiro e retração das responsabilidades do Estado,

apostando-se em um Estado Mínimo.

Apesar de toda luta e reivindicação que resultaram na Constituição de 1988, o que

vemos hoje, com a redefinição do papel do Estado à luz das politicas ideológicas neoliberais,

é a supervalorização dos interesses do mercado em detrimento da garantia dos direitos sociais.

Como resultado a descentralização das ações e a terceirização de bens e serviços públicos se

conjuga com o retorno ao debate sobre a sociedade civil e sua responsabilização diante da

oferta de serviços de interesse público.

Neste mesmo Estado as demandas de trabalhadores, rurais ou urbanos, dentre elas a

bandeira da Reforma Agrária e a luta por moradias de interesse social nos grandes centros –

são propagadas quase que como delírios de grupos extremistas e baderneiros, são duramente

criminalizadas, e os movimentos sociais constantemente expostos a confrontos com a policia

repressora.

Em nossa sociedade o direito à moradia - efetivado pela conquista da Casa Própria – é

distorcido e propagandeado como sonho a embalar as noites de expressivas parcelas dos

trabalhadores mantendo-os vivos e dando-lhes forças para continuar vivendo, trabalhando e se

articulando no desejo de realizar este sonho.

Muito além da esfera individual este desejo se propaga no imaginário social, e pode

ser percebido tanto pela intensidade com que impulsiona o setor imobiliário quanto pela

maestria com que tem sido explorado por marqueteiros políticos dos governos Lula e Dilma

Roussef: o Programa de governo Minha Casa, Minha Vida72 lançado, no final do segundo

mandato de Lula, serviu de plataforma para a campanha eleitoral de Dilma garantindo a

continuidade do Partido dos Trabalhadores no comando do Governo Federal.

Contudo, parcela significativa da sociedade não realiza esse sonho ao longo de suas

vidas produtivas e chega à velhice demandando por maiores cuidados tanto da família –

quando as têm - quanto da sociedade e do poder público.

                                                                                                                         72 O Programa Minha Casa Minha Vida foi lançado pelo governo federal em abril de 2009 com a pretensão de ser o maior programa habitacional da história do Brasil. Pensado para reduzir o déficit habitacional do país, inicialmente previu a contratação de um milhão de residências para as famílias brasileiras nos centros urbanos e zona rural, incluindo as famílias com rendimento mensal de até três salários mínimos. Entrevista de Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na cidade de São Paulo, ao jornal El Pais, analisa o cenário atual do Programa e a dinâmica do capital imobiliário especulativo, que envolve o despejo de famílias, o desperdício abusivo de dinheiro público e os investimentos despropositados. Borges, Beatriz; “ O Minha Casa Minha Vida Enxuga gelo”; El País – Política; São Paulo; 27.01.2014; conteúdo virtual disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/27/politica/1390859331_258001.html (último acesso: 06/02/2014).

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Os idosos entrevistados nesta pesquisa são parte deste contingente de pessoas que, na

velhice vivem o acúmulo das desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas, fruto de

nosso processo histórico usurpador que, de forma perversa, delimitou condições bastante

desfavoráveis para a aquisição da Casa própria e preservação da autonomia.

Estes fatores tornam imprescindível a atuação do Estado na oferta de proteção aos

idosos, que por conta própria não podem garanti-la. Neste contexto é relevante discutir a

oferta e a qualificação dos serviços destinados ao atendimento das pessoas idosas.

Nesta discussão investigarmos o que representa para os velhos ter/não ter Casa e quais

seguranças são garantidas pela propriedade desse lugar/espaço nos apresentou outros tons

para pensarmos instituições que promovam a dignidade humana, que não descartem a riqueza

simbólica impregnada no conceito de Casa e que não a destitua dos sujeitos

institucionalizados.

3.3.1  A  proteção  à  velhice  na  politica  de  assistência  social73  

A Constituição de 1988 foi marco na ampliação da compreensão sobre a assistência

social (deixa de se pautar em princípios previdenciários – contributivos para tornar-se política

pública), destinada também à proteção da velhice: garantia de renda (beneficio de um salário

mínimo) ao idoso que não possuir meios de prover sua própria manutenção (Art. 203) e

responsabilização da família, sociedade e Estado pelo amparo às pessoas idosas (Art. 230).

A consolidação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS 74 efetivou a

assistência social como direito do cidadão e dever do Estado e como meio de “prover proteção

                                                                                                                         73 Este texto é resultado da discussão apresentada no Grupo de Trabalho Cultura, Velhice e Envelhecimento: olhares cruzados, da 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia: Desafios Antropológicos Contemporâneos, realizada em julho de 2012, na PUC-SP. Artigo Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_28_RBA/programacao/grupos_trabalho/artigos/gt22/Janete%20da%20Silva%20Lopes.pdf (último acesso em 18/03/2014). 74 Antecede a construção do Sistema Único de Assistência Social a Constituição Federal de 1988, que efetiva a Assistência Social como política pública; a Lei Orgânica da Assistência Social (1993), que inicia o processo de construção da gestão pública e participativa da assistência social através de conselhos deliberativos e paritários nas esferas federal, estadual e municipal; a Norma Operacional Básica (1997) que conceitua o sistema descentralizado e participativo, ampliando o âmbito de competência dos governos Federal, municipais e estaduais e instituindo a exigência de Conselho, Fundo e Plano Municipal de Assistência Social para que o município possa receber recursos federais; a sua reedição em 1998 quando diferenciava serviços, programas e projetos; ampliava as atribuições dos Conselhos de Assistência Social; criava espaços de negociação e pactuação (Comissões Intergestora Bipartite e Tripartite, que reúnem representações municipais, estaduais e federais de assistência social); a Política Nacional de Assistência Social (2004) que estabelece diretrizes e princípios congruentes com a C.F e LOAS para a implantação do Sistema Único de Assistência Social SUAS; reitera a concepção de que só Estado é capaz de garantir os direitos e o acesso universal aos que necessitam de assistência social e, por fim, a Norma Operacional Básica – NOB/SUAS (2005) que constrói as bases para a implantação do SUAS.

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à vida, reduzir danos, monitorar populações em risco e prevenir a incidência de agravos à vida

em face das situações de vulnerabilidade” (NOB/SUAS: MDS: 2005).

Para materializar a proteção social75 o SUAS estrutura-se em rede socioassistencial,

composta por serviços, programas, projetos e benefícios, organizados nas modalidades de

Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, e deve articular-se com outras políticas

sociais para garantir direitos e condições dignas de vida (NOB/SUAS: MDS: 2005).

A Proteção Social Básica é a modalidade de atendimento destinada à prevenção de

situações de vulnerabilidade. Além dos Centros de Convivência para Idosos – CCI e o

atendimento realizado nos domicílios do idoso, prevê o Beneficio de Prestação Continuada –

BPC76, garantia de renda, no valor de um salário mínimo, aos idosos com 65 anos de idade ou

mais, que não recebem benefício previdenciário, ou de qualquer outro regime de previdência,

com rendimento mensal familiar per capito inferior a ¼ do salário mínimo.

A Proteção Social Especial é definida na Política Nacional de Assistência Social

(MDS: 2004) como a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e

indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social77.

Divide-se entre serviços de Média Complexidade78 e de Alta Complexidade. Na Média

Complexidade dispõe do Serviço de Proteção Especial para pessoas com deficiência, idosos e

suas famílias, que pode ser ofertado nos Centros de Referência Especializados de Assistência

Social - CREAS, no domicilio do Idoso ou em Centro-Dia.

A Proteção Especial de Alta Complexidade é a garantia de proteção integral: moradia,

alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram

sem referência, e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo

familiar e, ou, comunitário (PNAS: MDS: 2004).

                                                                                                                         75 A proteção social de Assistência Social consiste no conjunto de ações, cuidados, atenções, benefícios e auxílios ofertados pelos SUAS para redução e prevenção do impacto das vicissitudes sociais e naturais ao ciclo de vida, à dignidade humana e à família como núcleo básico de sustentação afetiva, biológica e relacional (NOB/SUAS: MDS: 2005) 76 O Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social – BPC-LOAS, é um benefício da assistência social, integrante do Sistema Único da Assistência Social – SUAS, pago pelo Governo Federal, cuja a operacionalização do reconhecimento do direito é do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS e assegurado por lei, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência às condições mínimas de uma vida digna. In: http://www.previdencia.gov.br/conteudoDinamico.php?id=23 (último acesso em 01.05.2012). 77 Por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras (PNAS: MDS: 2004). 78 São aqueles que oferecem atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos - familiar e comunitário - não foram rompidos (PNAS: MDS: 2004).

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Ela é ofertada nos municípios, em sua maioria, por organizações sociais79 e entre os

Serviços que compõem sua rede encontram-se o Serviço de Acolhimento Institucional, que

pode ser ofertado na modalidade de Abrigo Institucional ou Casa-Lar, e as Repúblicas de

Idosos. Descrevemos a seguir, as principais distinções do atendimento ofertado em cada um

destes equipamentos:

• Abrigo Institucional: atendimento em unidade institucional com característica

domiciliar que acolhe idosos com diferentes necessidades e graus de dependência. Deve

assegurar a convivência com familiares, amigos e pessoas de referência de forma contínua,

bem como, o acesso às atividades culturais, educativas, lúdicas e de lazer na comunidade. A

capacidade de atendimento das unidades deve seguir as normas da Vigilância Sanitária,

devendo ser assegurado o atendimento de qualidade, personalizado, com até quatro idosos por

quarto (Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais: CNAS: 2009);

• Casa Lar: atendimento em unidade residencial onde grupos de até 10 idosos

são acolhidos. Deve contar com pessoal habilitado, treinado e supervisionado por equipe

técnica capacitada para auxiliar nas atividades de vida diária integral (Tipificação Nacional

dos Serviços Socioassistenciais: CNAS: 2009);

• Repúblicas: serviço destinado a idosos que tenham capacidade de gestão

coletiva da moradia e condições de desenvolver, de forma independente, as atividades da vida

diária, mesmo que requeiram o uso de equipamentos de autoajuda (Tipificação Nacional dos

Serviços Socioassistenciais: CNAS: 2009).

Para facilitar a compreensão do que foi dito, esboçamos abaixo a estruturação da rede

de proteção destinada ao atendimento de idosos nas modalidades Básica e Especial do SUAS

e os serviços e benefícios destinados ao atendimento dessa população:

                                                                                                                         79 Organizações e entidades prestadoras de assistência social que integram o SUAS como parceiras, cogestoras e corresponsáveis pela garantia dos direitos sociais dos usuários (PNAS: MDS: 2004).

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Figura 6: Rede Socioassistencial - Proteção do Idoso

Um olhar mais atento para a Política Nacional de Assistência Social (2004) e a

Tipificação dos Serviços Socioassistenciais (2009) nos mostra que as três possibilidades de

serviços previstos na Alta Complexidade são permeadas pela ideia de instituição, atendem

exclusivamente grupos: maiores, no caso do Acolhimento Institucional; ou menores, no caso

da Casa Lar e das Repúblicas.

Esta ideia de instituição pode se aproximar da fala de Dona Geni, que não quer nem

pensar em ter que morar num asilo, e precisa ser superada: “Nem quero pensar nisso. Eu não

penso em ir no asilo... [...] Lá tem muito “veio”, eu sou “veia” também, mas lá tem muito

“veio”, tem homem, tem mulher, tem tudo... Nunca fui visitar um asilo, mas penso que é

SUAS  

Serviços  

Proteção  Social  Básica  

Serviço  de  Convivência  e  Fortalecimento  de  Vinculo  -­‐  CCI    

Serviço  de  PSB  no  domicilio  

Proteção  Social  Especial  

Média  Complexidade  

Serviço  de  PSE  no  domicilio  

Domicilio   CREAS   Centro-­‐Dia  

Alta  Complexidade  

Acolhimento  InsXtucional  

Abrigo  InsXtucional   Casa-­‐Lar  

República  de  Idosos  

Programas   Projetos   Beneficios  

BPC  

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assim porque, a gente passa de ônibus lá ta aqueles “veio” sentado pra fora. Eu penso assim

comigo”.

Sua fala pode conter percepções equivocadas, mas nos dimensiona a urgência de

possibilidades de atendimento individualizado, que garanta ao idoso um lugar onde ele possa

ser quem é, sem misturar-se, diluir-se e ter sua subjetividade pasteurizada no coletivo, onde

possa gerir o seu cotidiano de acordo com as suas vontades e preferências, mas tendo

garantido o acesso aos bens e atendimentos que possibilitem o exercício pleno de sua

cidadania. Algo que hoje nos parece impensável, ainda uma utopia, distante da lógica que

concebe as politicas universalistas.

No Abrigo Institucional, maioria absoluta dos atendimentos ofertados na Alta

Complexidade, a ideia de instituição é preponderante e ainda que a Tipificação Nacional

(2009) frise a necessidade de se manter características de uma residência muitas destas

instituições foram projetadas há mais de um século, pautadas numa concepção arquitetônica

que, como bem definiu Goffman (1974), pretendia-se total, lugar onde a vida fosse

integralmente administrada. Infelizmente esta lógica ainda pode ser sentida por práticas que

pouco se alteraram ao longo do tempo.

Evidente que muitas destas instituições reordenaram-se e prestam serviços de

incontestável qualidade, atuam na perspectiva da garantia de direitos e são imprescindíveis na

consolidação da Proteção Especial. Mas, é sabido também, e sobre esse tema é comum

vermos noticias estampando as páginas dos jornais, que parte delas vive situações de

abandono, carência e precariedade que exemplificam porque esses tradicionais asilos de

velhos são vistos com resistência e preconceito, tradicionalmente como ‘depósito de idosos’,

lugar de exclusão, dominação e isolamento ou, simplesmente ‘um lugar para morrer’ (Novais,

2003 In: IPEA: 2011)80.

Casa Lar é a modalidade que mais se aproxima de uma concepção mais humanizada e

personalista de moradia. É modalidade de acolhimento institucional que se destina ao

atendimento de até dez idosos com diferentes graus de dependência.

República, como o próprio nome sugere é a coisa pública, comunidade, lugar onde o

coletivo prevalece em detrimento do individuo. São conhecidas experiências exitosas nesta

modalidade de atendimento, no entanto, observando a rede de proteção especial notamos ser

um serviço ainda incipiente.

                                                                                                                         80 Condições de Funcionamento e infraestrutura das instituições de longa permanência para idosos ; Série: Eixos do Desenvolvimento Brasileiro, nº 93; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; maio de 2011.

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Percebemos que a falta de consenso do que seja e como deve funcionar este serviço

explica porque sua oferta é tão reduzida para o público idoso. Muitas vezes, pautados apenas

no preceito de desenvolver gradual autonomia e independência dos usuários, técnicos,

operadores e até mesmo gestores de proteção especial entendem-no, equivocadamente, como

lugares de passagem: o idoso nela permanece até que demonstre condições de garantir sua

independência, construa seu Projeto de Vida e encontre outro lugar para morar.

Essa concepção, enviesada pelo trabalho realizado nas repúblicas para adultos em

processo de saída das ruas, inviabiliza a correta concepção deste equipamento como forma

alternativa à institucionalização dos idosos inibindo a sua implantação e expansão nos

municípios.

Como podemos ver as três modalidades de serviços socioassistenciais que compõem a

rede de proteção ao idoso na Alta Complexidade assemelham-se mais a instituição que a

residências propriamente ditas. São imprescindíveis, mas, representam um leque ainda restrito

diante das inúmeras possibilidades de envelhecer e viver a velhice que, por vezes, culmina na

uniformização dos sujeitos e desta fase da vida.

Pode nos ajudar a compreender essa face institucional dos serviços na Alta

Complexidade o próprio fundamento da politica de assistência, pautado na matricialidade

sociofamiliar. Dele deriva toda a ênfase dada ao trabalho realizado no núcleo familiar, onde a

Alta Complexidade figura como a última alternativa nos cuidados com os idosos - somente

depois de esgotados os esforços para que a família e a comunidade se responsabilizem por

seus idosos é que eles passam a figurar entre o público alvo desta proteção.

Vemos que o enfoque dado à família não se restringe apenas à área da assistência

social. Na contramão das sociedades pós-modernas, mundializadas, de consumo e descarte,

“líquidas” e incertas (Brandão & Mercadante: 2009), cenário onde os arranjos familiares são

(re)desenhados e a proteção à velhice tende a deixar de ser exclusividade da família, o próprio

Estatuto do Idoso (2003) em seu Artigo 3º responsabiliza justamente a família, e

posteriormente a comunidade, a sociedade e o Poder Público, a assegurar com prioridade

absoluta a efetivação dos direitos dos idosos81.

                                                                                                                         81 Esta prioridade absoluta compreende: atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população; a preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas; a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso; viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações; priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência; capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços aos idosos (Estatuto do Idoso: Art. 3º).

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A importância dada à família na responsabilização pelos cuidados com idosos é

marcante também em outras leis como a Constituição Federal (1988), que fortalece a

reciprocidade intergeracional no interior da família, onde os pais tem o dever de assistir, criar

e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na

velhice, carência ou enfermidade (CF: Art. 229).

Na Política Nacional do Idoso (1994) também é marcante a ênfase dada à família: seu

principio primeiro consiste no dever da família, extensivo posteriormente à sociedade e ao

estado, em assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, participação na comunidade,

dignidade, bem-estar e o direito à vida (PNI: Art. 3º).

Segundo Debert e Simões (2002) essa ideia reproduz o mito da universalidade,

naturalidade e imutabilidade da família nuclear e o mito da família extensa perpetuando

visões ambivalentes e contraditórias que associam qualidade de vida, especialmente na

velhice, à família.

Então, gestores públicos, sociedade e universidades têm, para este século, o desafio de

construir novos saberes, capazes de quebrar paradigmas tão enraizados em nossas normativas

legais e em nossos fazeres, bem como, pensar e propor formas de moradia e de cuidados

desvinculados do contexto familiar e que conjuguem as diversas áreas das politicas sociais e

distintos campos do conhecimento na concepção de soluções variadas: instituições inovadoras

de moradias individuais ou coletivas.

Quando saímos da esfera maior de concepção da politica pública - o âmbito federal - e

partimos para as experiências dos municípios na promoção de cuidados para seus idosos,

constatamos a criação de novos projetos, que partem da identificação de demandas locais ou

especificidades territoriais e nem sempre consideram/responsabilizam primordialmente a

família pelos cuidados com idosos.

Diante deles encontramos múltiplas soluções de atendimento – instituições que

oferecem moradias individuais ou coletivas - evidenciando, primeiro, a característica

intersetorial que permeia a concepção destes projetos e desconfigurando-os como ação

exclusiva de uma área restrita da politica social, seja ela, habitação, assistência social, saúde

ou outra.

Na esfera mais ampla, a construção de novos modelos deve considerar não só o

fenômeno demográfico do envelhecimento, mas as diversas formas de sua configuração, as

múltiplas vulnerabilidades a que a velhice esta exposta, os fatores que levam ao

comprometimento da autonomia do idoso: falta de renda ou de saúde, abandono ou tantas

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outras adversidades, bem como, reconhecer a importância do engajamento desses sujeitos

como agentes do seu próprio desenvolvimento e dar possibilidades aos gestores locais para

fomentarem ações que atendam às suas necessidades reais.

Assim, fica claro que a questão do morar na velhice não se descola das proteções

efetivadas pela assistência, mas deve avançar para além desta politica, pois perpassa os

diversos campos do saber e do fazer social. No entanto, apesar de tão evidentes, o que vemos

hoje é a complexidade deste tema padecer diante da perpetuação da histórica

institucionalização da velhice.

Considerações Finais

Entre as novas demandas surgidas do processo de envelhecimento as questões que se

referem à moradia de idosos evidenciam a necessidade de um debate ampliado que proponha

alternativas ao asilamento e que envolva pesquisadores, gestores públicos, movimentos

sociais e demais sujeitos na idealização e objetivação de novas alternativas que atentem para

os diversos modus de envelhecer e viver a velhice, bem-sucedida ou não.

Às velhas formas de institucionalização, perpetuadas em práticas asilares centenárias,

devem ser contrapostas possibilidades das pessoas idosas viverem como parte da comunidade,

nas suas próprias Casas, com a família ou em moradias públicas com suporte social,

segurança e promoção de sua saúde, pelo tempo que desejarem ou puderem.

Pensando nesta direção, a questão da moradia para idosos apresenta-se com outras

tonalidades: não se configura como ação de uma única área das políticas sociais - habitação

ou assistência social – e deve prever múltiplas soluções de atendimento: moradias individuais,

coletivas e outras com oferta de serviços das muitas áreas que tratam as questões do

envelhecimento.

Evidencia-se a necessidade de novos conceitos e caracterizações para essas

instituições que são a Casa de muitos idosos e que, portanto, devem ser concebidas como

local privilegiado das relações, do convívio e da transmissão dos valores socioculturais.

Se no passado a velhice era concebida como problema associado à pobreza, ao

abandono ou a perda de laços familiares que podiam, com certo esforço, ser solucionado por

praticas pautadas na caridade, hoje, um novo paradigma se impõe: é preciso atentar para as

diversas vulnerabilidades presentes nas vidas dos idosos e reconhecer o hibridismo que

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caracteriza e demanda pela criação de novas instituições, que deem conta da multiplicidade

dos cuidados que lhes são requeridos pelas mudanças radicais no perfil dos idosos atendidos.

O estado de São Paulo, por contar com o maior contingente de idosos do país, sente

primeiro as pressões e o impacto que o fenômeno do envelhecimento e da longevidade

humana impõe ao poder público. Em 1997 instituiu a Politica Estadual do Idoso, mas,

somente em 2009 iniciou o processo de construção das ações, programas e projetos

articulados em torno de um Plano Estadual para a Pessoa Idosa, denominado Futuridade82,

que tendo como pressupostos a intersetorialidade e a interdisciplinaridade, agregou gestores

das diversas politicas no âmbito do Estado.

Neste Plano foi criado o Programa Vila Dignidade, local onde esta pesquisa foi

realizada. Aparentemente inovador pela perspectiva de ser uma alternativa ao asilamento,

desde o inicio, o Programa se depara com diversos obstáculos que o impedem de consolidar-

se como Política de Estado - emancipada dos vícios de nossa cultura política que,

intencionalmente, confunde Política Pública com Política Partidária.

Um destes obstáculos se refere à confusão e estranhamento gerado e perpetuado pelos

profissionais da assistência social que, por vezes, o reduz apenas à política de habitação,

negando as interfaces que possa ter com a política de assistência social.

Esta interpretação é compreensível quando olhada à luz exclusivamente da Tipificação

Nacional dos Serviços Socioassistenciais. De fato, o Programa Vila Dignidade é uma

modalidade de atendimento completamente nova e não se enquadra em nada do que esta

prescrito nesta normativa. No entanto, a autonomia do Estado para propor coisas novas,

dentre elas serviços socioassistenciais, desde que estes não contrariem as diretrizes federais, é

garantida por nossa Constituição, e pode ser invocada para justificar a construção de uma

nova modalidade de atendimento de Alta Complexidade especifica do Estado de São Paulo.

No mais, recorrer à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais para

justificar tal argumentação é, no mínimo, contraditório, quando o que se observa é justamente

a resistência do governo estadual em reconhecer e implantar o Sistema Único de Assistência

Social no estado de São Paulo – haja vista a conceituação de promoção social que ainda

vigora na Constituição Estadual (Arts.232 a 236) em detrimento da assistência social

entendida como direito do cidadão, e dever do Estado.

Neste cenário, de atuação de forças complexas e contraditórias, identificamos uma das

fragilidades do Programa: apesar do potencial para se tornar inovação na modalidade de

                                                                                                                         82 Como já mencionado anteriormente hoje este Plano se intitula São Paulo Amigo do Idoso.

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Serviço de Proteção Especial de Alta Complexidade e das boas intenções previstas em

Decreto e Resolução, as amarrações junto à Política de Assistência Social, no âmbito do

Estado, foram mal tecidas: não criaram consensos entre os operadores desta política e não

fomentaram a consolidação de um serviço socioassistencial para ser ofertado no equipamento

tão pouco previu a destinação de recursos estaduais para o custeio das ações a serem

desenvolvidas.

Diante destes entraves, que refletem o posicionamento do Estado, a responsabilidade

pela operacionalização do Programa recai inteiramente sobre os gestores municipais que, no

fazer, identificam as demandas dos idosos, buscam as articulações necessárias e custeiam

integralmente os projetos e ações desenvolvidas. Aqui enxergamos mais uma das fragilidades

do Programa, pois recai sobre o município o custeio total tanto da manutenção da

infraestrutura quanto da garantia de gratuidade de moradia e das ações socioassistenciais

indispensáveis à operacionalização do Projeto Social.

Cabe frisar que, após as entrevistas, ficou evidente que a não utilização dos recursos

dos idosos para custeio do Programa é o que, à primeira vista, o difere integralmente dos

serviços da Alta Complexidade - ILPIs ou Casas Lar - e dá ao equipamento às conotações que

no imaginário dos idosos são atribuídas a concepção da Casa. Esta característica tão peculiar

preserva a autonomia dos sujeitos e promove a ampliação de seu poder de consumo – como

muitos deles nos disseram agora podem comer melhor, adquirir bens, viajar, entre tantas

outras formas de consumo a que eram privados por conta dos altos aluguéis.

Assim, aquilo que ele apresenta como maior inovação: a gratuidade assegurada na

oferta do acolhimento torna-se ônus exclusivo dos municípios. Isso, por vezes, inviabiliza sua

ampliação e implantação em municípios que não possuem receita suficiente para investir na

área social e boa capacidade de gestão.

Após a realização desta pesquisa ficou evidente a necessidade de dar forma ao novo

rompendo com pensamentos fragmentados que, observados de perto, mostram-se fruto da

pouca experiência dos profissionais em pensar intersetorialmente e em promover articulações

entre as diversas políticas sociais. Olhada mais atentamente esta forma de pensar expõe a

carência por formação e atualização profissional - baseada nas novas perspectivas de

construção de políticas públicas - por parte de todo o corpo funcional das repartições,

incluindo aqueles que ocupam cargos de confiança e que normalmente são os que tomam

decisões.

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Todos os sujeitos envolvidos na elaboração, no fazer ou na operacionalização das

politicas públicas precisam avançar na compreensão do que seja uma Instituição de Longa

Permanência e reconhecer que hoje, elas experimentam uma ampliação de seus papéis, o que

exige a intervenção de diversas áreas: sócio sanitária, geronto-geriatricas, assistenciais,

educacionais, lazer, cultura e tantas outras, bem como a reformulação de suas práticas.

Acreditamos que, nesta perspectiva a proposta do Programa Vila Dignidade poderia

ser referencia como inovação em Serviços de Alta Complexidade. As opiniões e pontos de

vista dos idosos nos levam por essa direção: a presença marcante em suas narrativas do

ideário de instituição (asilo) como lugar do outro - o velho dependente que necessita ser

cuidado - evidencia a importância de termos instituições que atentem para as diversas

vulnerabilidades e riscos a que estão expostos, para além dos riscos de saúde, e que

promovam a autonomia, a qualidade e a dignidade da vida na velhice.

Para avançarmos neste debate precisamos escapar das armadilhas impostas pela

cristalização da ideia de instituição ampliando seus sentidos e incorporando os significados da

Casa na concepção de novos lugares/ serviços de acolhimento de idosos.

Nossa hipótese, de que as instituições podem ofertar melhores condições de vida às

pessoas idosas se cultivarem as características deste lugar ancestral que é a Casa; se tomarem-

na como microcosmo das relações sociais, lugar real, com cenários idealizados onde parte dos

nossos sonhos são encenados e reproduzidos, foi testada e as narrativas dos idosos nos dão

pistas de que é possível conceber instituições que realmente protejam e garantam as mais

diversas seguranças – afetivas, emocionais, financeiras, de acolhida -, que preservem a

intimidade, a tranquilidade, o repouso e a simplicidade dos modos de vida de cada morador,

que possam ser a Casa, mundo resumido, protegido, privado por excelência e definido pelo

próprio corpo (Fellipe: 2010) e pelas próprias vontades e desejos dos idosos.

Assim talvez, no longo prazo, os idosos e a sociedade em geral reconheçam esses

lugares como politicas sociais, novas instituições, concebidas e ofertadas por gestores

públicos numa sociedade atenta para as suas necessidades reais. Se isto um dia acontecer

viveremos o fortalecimento e ampliação da percepção das politicas públicas como direito e a

cidadania social como conquista dos homens e não como concessão de alguém ou de Deus.

A subserviência, marca história de nossa formação, fragiliza o processo de construção

da cidadania social no Brasil e precisa ser superada para que falas como a de Dona Geni:

“Aqui é um presente que Deus me deu, nossa uma bênção [...] Sempre falei ‘Deus vai

preparar uma casa pra mim’ e Deus preparou aqui. Deus protege muito a gente, nossa

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Senhora! Deus é muito bom na nossa vida. Não era pra eu tá por aqui, foi Deus que preparou

essa casa pra mim! Não tem palavra pra agradecer a Deus. Eu tava deitada na cama ali e

pensando, ‘o que que eu tenho que fazer pra agradecer à Deus não?’, penso sozinha” ou a de

Dona Maria Rosa: “[...] agradeço à Deus todo santo dia por ter conseguido essa casa. Eu nem

sei como agradecer tanto Deus. Todo dia que eu faço a oração eu falo: ‘eu e minha casa

servimos ao Senhor’. Todo santo dia!” deem espaço para o reconhecimento do direito de estar

ali, não porque Deus julga que elas mereçam mas porque são cidadãs de um Estado capaz de

lhe prover um direito social.

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Marques; Rio de Janeiro: Record; 2012.

2 - Legislação Consultada:

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2010.

3 – Entrevista:

Borges, B. O Minha Casa Minha Vida Enxuga gelo; El País – Política; São Paulo;

27.01.2014; conteúdo virtual disponível em:

http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/27/politica/1390859331_258001.html (último acesso:

06/02/2014).

4 - Musicas:

Antunes, A. & Ortinho. A casa é sua. Álbum Iê, iê, iê. Produção Fernando Catatau.

Gravadora Rosa Celeste. Formato CD. 2009.

Brita, A. Gouveia, B. Flores, M. Fernandes, A, Coelho, C. Meu Reino. Álbum Zé. Produção

Carlos Beni. Gravadora Polygram. Formato LP. 1989.

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Buhr, K. Vira Pó. Álbum Eu menti pra você. Produção Karina Buhr, Bruno Buarque e Mau.

Gravação Independente. Formato CD. 2010.

Rodrix, Z. & Tavito. Casa no Campo. Interpretação de Elis Regina. Produção Roberto

Menescal. Compacto Duplo. Gravadora Philips. Formato LP. 1971.

Buarque, C. Pedro Pedreiro. Álbum Chico Buarque de Holanda Vol. 1. Produção Manuel

Barenbeim. Gravadora RGE. Formato LP. 1966.

5 - Sites consultados:

Fundação Oswaldo Cruz: www.fiocruz.br/icict/media/idosos_tomiko.pdf

Fundação Seade: www.seade.gov.br/master.php?opt=abr_not&nota=251

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: www.ibge.gov.br

Ministério de Desenvolvimento Social: www.mds.gov.br

Portal do Envelhecimento: www.portaldoenvelhecimento.org.br

Prefeitura de Itapeva: www.itapeva.sp.gov.br

Previdência Social: www.previdencia.gov.br

Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social:

www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br

Secretaria Estadual de Habitação: www.habitacao.sp.gov.br

Associação Brasileira de Antropologia: www.abant.org.br

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Domínio Público: www.dominiopublico.gov.br.

Jornal El Pais: www.brasil.elpais.com/brasil

6 - Bibliografia Geral

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Maria Lúcia Pereira; Campinas - S.P; Papirus, 1994, 9ª edição.

Bauman, Z. Comunidade a busca por segurança no mundo atual; Jorge Zahar; Rio de

Janeiro; 2003.

Globalização as conseqüências Humanas; Jorge Zahar; Rio de Janeiro; 1999.

Identidade; Jorge Zahar; Rio de Janeiro; 2005.

Ensaios sobre o conceito de Cultura; Jorge Zahar; Rio de Janeiro; 2012.

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