james wood - como funciona a ficção

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- vonlu(l(', nras é como se um rodo de crupiê nos empuÍrasse numa p i l ha s(r todos esses detalhes, diferentes no foco e na intensidade. [35] Wordsworth está olhando pessoalmente esses aspectos de Londres. Está sendo poeta, escrevendo sobre si mesmo. O romancista tam- bém quer registrar detalhes assim, mas é mais difícil se comportar como poeta lírico no romance porque é preciso escrever através de outras pessoas, e então voltamos à tensão básica do romance: quem está notando essas coisas: o romancista ou o personagem? Naquela primeira passagem de A educação sentímental, seráFlaubert quem monta um pequeno e simpático cenário parisiense, e o leitor su- pôe que Frédéric talvez enxergue alguns detalhes do parágrafo, mas é Flaubert quem os todos com o olho do espírito; ou será que a passagem inteira foi escrita basicamente num vago estilo indireto livre, e supomos que Frédéric notatudo o que Flaubert traz à nossa atenção - os jornais fechados, abalconistabocejando, e assim por diante? A inovação de Flaubert foi tornar a pergunta desnecessária, foi fundir a tal ponto o autor e oflàneur que, incons- cientemente, o leitor eleva Frédéric ao nível estilÍstico de Flaubert: concluímos que ambos devem ser ótimos em notar as coisas, e dei- xamos por isso mesmo. Flaubert precisa fazer assim porque ele é, ao mesmo tempo, um realista e um estilista, um repórter e um poeta manqué. O realista quer registrar infinidades de coisas, quer escrever uma matéria balzaquiana sobre Paris. Mas o estilista não se contenta com a verve e as miríades balzaquianas; ele quer disciplinar essa enxurrada de detalhes, convertê-los em frases e imagens impecáveis: as cartas de Flaubert mostram o esforço de tentar transformar prosa em 52 poesia.* Tâo forte é o viés pós-flaubertiano de nossa época que mais ou menos presumimos que um bom estilista de vez em quando es- creva por sobre os personagens (como nos exemplos de Updike e de Saul Bellow), ou que indique um representante seu: Humbert Humbert anuncia que é dotado de um belo estilo em prosa, como maneira, sem dúvida, de explicar a prosa ultradesenvolvida de seu criador; Bellow gosta de nos informar que seus personagens "notam tudo". [36] Quando as inovações flaubertianas chegaram a um romancista como Christopher Isherwood, nos anos r93o, vinham relu- zindo com alto grau de brilho técnico. Ad eus aBerlím, publicado em tg3g,úaz uma declaração que flcou famosa: "Sou uma câmera com o obturador aberto, bem passiva, que registra, nào pensa. Que re- gistra o homem se barbeando na janela em frente e a mulher de qui- mono lavando o cabelo. Algum dia, tudo isso precisará ser revelado, cuidadosamente copiado, fixado". Isherwood cumpre a promessa numa passagem descritiva como a seguinte, no começo do capítulo intitulado "Os Nowak": * três diferenças entre o realismo de Balzac e o realismo de Flaubert: primeiro, Balzac observa bastante em sua literatura, é claro, mas a ênfase sempre recai mais na abundância do que numa seleção cerrada dos detalhes. Segundo, Balzac nâo tem nenhum compromisso especial com o estilo indireto livre nem com a impessoalidade do autor e se sente livre para se intrometer como autor/narrador, com ensaios, di- gressôes e informações sobre dados sociais. §esse aspecto, ele parece decididamente setecentista.) Terceiro, e decorrendo das duas diferenças anteriores: ele não tem ne- nhum interesse tipicamente flaubertiano em apagar a questão de quem é que está vendo tudo. Por tais razões, considero Flaubert, e não Balzac, o verdadeiro fundador da narrativa moderna de ficçâo. 53

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Dicas de como escrever ficção

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vonlu(l(', nras é como se um rodo de crupiê nos empuÍrasse numap i l ha s(r todos esses detalhes, diferentes no foco e na intensidade.

[35]Wordsworth está olhando pessoalmente esses aspectos de Londres.

Está sendo poeta, escrevendo sobre si mesmo. O romancista tam-bém quer registrar detalhes assim, mas é mais difícil se comportarcomo poeta lírico no romance porque é preciso escrever através de

outras pessoas, e então voltamos à tensão básica do romance: quem

está notando essas coisas: o romancista ou o personagem? Naquela

primeira passagem de A educação sentímental, seráFlaubert quem

monta um pequeno e simpático cenário parisiense, e o leitor su-

pôe que Frédéric talvez enxergue alguns detalhes do parágrafo,

mas é Flaubert quem os vê todos com o olho do espírito; ou seráque a passagem inteira foi escrita basicamente num vago estiloindireto livre, e supomos que Frédéric notatudo o que Flauberttraz à nossa atenção - os jornais fechados, abalconistabocejando,e assim por diante? A inovação de Flaubert foi tornar a perguntadesnecessária, foi fundir a tal ponto o autor e oflàneur que, incons-cientemente, o leitor eleva Frédéric ao nível estilÍstico de Flaubert:concluímos que ambos devem ser ótimos em notar as coisas, e dei-

xamos por isso mesmo.

Flaubert precisa fazer assim porque ele é, ao mesmo tempo, umrealista e um estilista, um repórter e um poeta manqué. O realistaquer registrar infinidades de coisas, quer escrever uma matériabalzaquiana sobre Paris. Mas o estilista não se contenta com a vervee as miríades balzaquianas; ele quer disciplinar essa enxurrada de

detalhes, convertê-los em frases e imagens impecáveis: as cartasde Flaubert mostram o esforço de tentar transformar prosa em

52

poesia.* Tâo forte é o viés pós-flaubertiano de nossa época que mais

ou menos presumimos que um bom estilista de vez em quando es-

creva por sobre os personagens (como nos exemplos de Updike e

de Saul Bellow), ou que indique um representante seu: HumbertHumbert anuncia que é dotado de um belo estilo em prosa, comomaneira, sem dúvida, de explicar a prosa ultradesenvolvida de

seu criador; Bellow gosta de nos informar que seus personagens"notam tudo".

[36]

Quando as inovações flaubertianas chegaram a um romancistacomo Christopher Isherwood, nos anos r93o, já vinham relu-zindo com alto grau de brilho técnico. Ad eus aBerlím, publicado em

tg3g,úaz uma declaração que flcou famosa: "Sou uma câmera com

o obturador aberto, bem passiva, que registra, nào pensa. Que re-gistra o homem se barbeando na janela em frente e a mulher de qui-

mono lavando o cabelo. Algum dia, tudo isso precisará ser revelado,

cuidadosamente copiado, fixado". Isherwood cumpre a promessa

numa passagem descritiva como a seguinte, no começo do capítulo

intitulado "Os Nowak":

* Há três diferenças entre o realismo de Balzac e o realismo de Flaubert: primeiro,

Balzac observa bastante em sua literatura, é claro, mas a ênfase sempre recai mais

na abundância do que numa seleção cerrada dos detalhes. Segundo, Balzac nâo tem

nenhum compromisso especial com o estilo indireto livre nem com a impessoalidade

do autor e se sente livre para se intrometer como autor/narrador, com ensaios, di-gressôes e informações sobre dados sociais. §esse aspecto, ele parece decididamente

setecentista.) Terceiro, e decorrendo das duas diferenças anteriores: ele não tem ne-

nhum interesse tipicamente flaubertiano em apagar a questão de quem é que está

vendo tudo. Por tais razões, considero Flaubert, e não Balzac, o verdadeiro fundadorda narrativa moderna de ficçâo.

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