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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - AMB ANO XIII NÚMERO 71 BRASÍLIA, OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 No Brasil e no exterior, comunidades organizadas fazem justiça sem qualquer participação do Estado. Caso dos remanescentes de quilombos da Chapada dos Veadeiros, no interior de Goiás. MAGISTRADO J O R N A L D O

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Page 1: J O R N A L D O MAGISTRADO - AMB · da Bênção, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Estas são facetas pouco conhecidas de algumas das mulheres mais poderosas da magistratura

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No Brasil e no exterior, comunidades organizadas fazem justiça sem qualquer participação do Estado. Caso dos remanescentes de quilombos da Chapada dos Veadeiros, no interior de Goiás.

MAGISTRADOJ O R N A L D O

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO

sta edição do Jornal do Magistrado reafirma nossa disposição de que este se torne um veículo para ser lido em mangas

de camisa. As questões do dia a dia de nossa entidade têm sido tratadas na nossa página na internet (www.amb.com.br)

e no boletim AMB Informa, de circulação quinzenal. Naqueles meios o colega encontrará informações sobre a atuação da

diretoria e sobre as questões mais candentes para a magistratura. Aqui no Jornal do Magistrado não trataremos disso. Este é o

espaço do debate, do resgate da memória, o lugar para o reconhecimento do trabalho de juízes e juízas de todo o País. Nesta

edição, contamos um pouco da trajetória das mulheres na magistratura brasileira, como um reconhecimento da importante

contribuição que elas têm dado ao País. É uma mulher, a juíza Solange Salgado, que está ajudando o Brasil a lançar luz sobre

um dos episódios mais controvertidos da história política recente: a repressão à Guerrilha do Araguaia. Ela determinou que a

União atenda aos familiares das vítimas, fornecendo a eles as informações sobre as circunstâncias das mortes de seus parentes.

E esta história está contada também nesta edição.

Enquanto a ditadura militar desmantelava o estado democrático de direito, muitos de nós dedicávamos a vida à

redemocratização do País. Caso do ministro Sepúlveda Pertence, que tem um pouco de sua história retratada também nesta

edição do Jornal do Magistrado. Vizinho da Guerrilha do Araguaia, o bispo de São Félix do Xingu, dom Pedro Casaldáliga, foi

das poucas vozes que tiveram a coragem de não se calar frente às arbitrariedades do regime de exceção. Agora, aos 75 anos,

em obediência à lei canônica, ele pede o seu afastamento da prelazia de São Félix, onde construiu uma verdadeira trincheira

contra as injustiças sociais, econômicas e políticas do País que ele adotou como seu. Dom Pedro Casaldáliga é o entrevistado

desta edição. Para encerrar, adianto aos colegas que estamos começando, com este número, uma série de reportagens sobre

justiça não estatal, tentando aprender com os erros e acertos desta modalidade, que apresenta vantagens e desvantagens em

relação à estrutura oficial. Portanto, colega, é hora de afrouxar a gravata e desfrutar desta edição do Jornal do Magistrado. Boa

leitura e até breve.

Cláudio Baldino Maciel

Presidente

Prezados colegas

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É uma publicação da Diretoria de Comunicação Social da AMB

EdiçãoWarner Bento Filho – Assessoria de Comunicação da AMB

Tel: 61 328 0166e-mail: [email protected]

Colaboraram nesta ediçãoAntonio Matiello, Letícia Capobianco, Gisele Teixeira, Antônio

Vital, Carlos Bortolas, Walter Sotomayor, Ângela Regina Cunha

DiagramaçãoOficina da Palavra

Tiragem16 mil

Capa:Descendente de escravos do Quilombo Engenho,

em Cavalcante (GO)Foto de Warner Bento Filho

As matérias assinadas são de responsabilidade dos seus autores. A reprodução é permitida desde que citada a fonte.

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SCN Quadra 02, bloco D, torre B, sala 1302Shopping center Liberty Mall

Brasília – DFCEP 70712-903

Tel.: 61 328 0166Fax: 61 328 9790

Internet: http://www.amb.com.bre-mail: [email protected]

PresidenteCláudio Baldino Maciel – Ajuris (RS)

Secretário-geralGuinther Spode – Ajuris (RS)

Diretor-tesoureiroRonaldo Adi Castro da Silva – Ajuris (RS)

AssessoresNelo Ricardo Presser - Ajuris (RS)Ricardo Gehling - Amatra IV (RS)

Vice-presidentesCláudio Augusto Montalvão das Neves – Amepa (PA)

Douglas Alencar Rodrigues – Amatra X (DF)Guilherme Newton do Monte Pinto – Amam (RN)

Gustavo Tadeu Alkmim – Amatra I (RJ)Heraldo de Oliveira Silva – Apamagis (MG)

Joaquim Herculano Rodrigues – Amagis (MG)Jorge Wagih Massad – Amapar (PR)

Luiz Gonzaga Mendes Marques – Amamsul (MS)Roberto Lemos dos Santos Filho – Ajufesp (SP)

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro – Amma (MA)Thiago Ribas Filho – Amaerj (RJ)

Coordenador da Justiça EstadualRodrigo Tolentino de Carvalho Collaço – AMC (SC)

Coordenador da Justiça FederalJosé Paulo Baltazar Júnior – Justiça Federal (RS)

Coordenador da Justiça do TrabalhoHugo Cavalcanti Melo Filho - Amatra VI (PE)

Coordenador da Justiça Militar Carlos Augusto C. de Moraes Rego – Amajum (DF)

Coordenador dos AposentadosCássio Gonçalves – Amatra III (RJ)

Conselho FiscalJoão Pinheiro de Souza – Amab (BA)

Jomar Ricardo Saunders Fernandes – Amazon (AM)Wellington da Costa Citty – Amages (ES)

MAGISTRADOJ O R N A L D O

Seções Especiais

A trajetória das mulheres na magistratura

TV Justiça completa um ano

Página 9

Sessão Especial: Anatomia de um Crime, de Otto Preminger

Página 8

Os cem anos de Candido Portinari

Página 14

Perfil: Ministro Sepúlveda Pertence

Página 16

Entrevista: D. Pedro Casaldáliga

Página 18

Página 10

Página 4

Memória: Juíza manda abrir caixa preta do Araguaia

Página 6

A Justiça onde o estado não está presente

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO

Gisele Teixeira

ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Eliana Calmon Alves é apaixonada por gastronomia. Há alguns anos, surpreendeu os colegas com um livro de culinária prática, com 120 receitas de doces e salgados. No Rio de Janeiro, a juíza Salete

Maccaloz, da 7ª Vara da Justiça Federal, é uma “tribalista”. Solteira, já chegou a ter sobre a mesa 18 mil processos, mas garante que sempre conseguiu encontrar tempo para namorar. Do outro lado do oceano, morando na Holanda, a desembargadora Sylvia Steiner, eleita este ano para compor o Tribunal Penal Internacional, orgulha-se de um de seus atributos: apaixonada por música brasileira, é uma das poucas pessoas que canta em francês o Samba da Bênção, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Estas são facetas pouco conhecidas de algumas das mulheres mais poderosas da magistratura brasileira. Momentos íntimos que não poderiam ser revelados sem constrangimento há alguns anos, quando o sexo feminino brigava contra preconceitos para entrar na carreira judiciária. Naquela época, era preciso mostrar que as mulheres poderiam ser tão competentes quantos os homens. Segundo a ministra Eliana, “era época de calçar botas de soldado alemão”. Hoje o clima permite um pouco mais de descontração. Mas sem esquecer a batalhada história.

A eleição de Sylvia Steiner é emblemática para a maturidade feminina na magistratura. Ela integrará um time de 18 juízes da única corte internacional com competência para julgar acusados de crimes de guerra e contra a humanidade. Steiner é uma das sete mulheres escolhidas pelos 85 países signatários do Estatuto de Roma. Para chegar lá, passou por uma maratona de 70 entrevistas. “Foi um trabalho insano, em que precisei provar que era competente”, disse, à época da eleição, no começo do ano. Para constatar a importância do fato, basta voltar um pouco no tempo. E não é preciso ir muito longe. A hegemonia masculina na mais alta corte do País, o Supremo Tribunal Federal, só foi quebrada nos últimos dias do ano 2000.

Nunca, desde a sua criação, em 1828, o STF havia tido uma mulher em sua composição. Para receber a juíza Ellen Gracie Northfleet, foi preciso mandar construir um novo banheiro na sede do Tribunal. Em 2006, a ministra vai conquistar um novo título: será a primeira mulher a presidir o Supremo.

É verdade que nunca existiu uma lei proibindo as mulheres de fazer carreira jurídica. Mas havia espaço para o preconceito. Hoje, as elas estão por toda a parte, temperando com intuição e charme a indispensável sobriedade de julgar. Não se pode dizer que o resultado dessa revolução de saias tenha implantado um modo feminino de julgar. É apenas um estilo diferente dos homens. Brincos, batons e perfumes – todos discretos, claro – são mais visíveis na base da pirâmide. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, dos 24 Tribunais Regionais do Trabalho, 11 são presididos por juízas e 41% do quadro de magistrados em todas as instâncias já são compostos por mulheres. No topo da magistratura, no entanto, o espaço ainda é reduzido. “Mas é uma questão de tempo”, afirma a única ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Maria Cristina Peduzzi. Junto com ela, no ápice da carreira, o triunvirato do Supremo Tribunal de Justiça – as ministras Laurita Hilário Vaz, Fátima Nancy Andrigui e Eliana Calmon Alves.

Parece pouco, mas foi um grande avanço num curto espaço de tempo. Até a década de 60, as mulheres não ocupavam postos-chave na Justiça. Era possível contar nos dedos de uma só mão o número de juízas em cada estado, embora a evolução feminista estivesse em curso e as militantes mais exaltadas queimassem sutiãs em praça pública. A desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias lembra bem destes tempos. Ela foi a primeira juíza do Rio Grande do Sul, em 1973, e a primeira mulher a ser elevada ao posto de desembargadora daquele estado, em 1996, rompendo uma tradição de 122 anos. “Por ser mulher e divorciada, fui

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E s p e c i a l

AEliana Calmon: na cozinha para relaxar depois de um dia duro no Superior Tribunal de Justiça.

Hoje ninguém estranha

ao ver uma mulher

sentada na cadeira do

juiz. Elas já representam

41% do quadro de

magistrados em todo o

País. Mas foi uma

conquista difícil,

envolvida em

preconceitos.

De toga e batom

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alvo de discriminação na época, o que não deixa de acontecer até hoje, pois me tornei uma feminista ativa”, diz. Atualmente, Maria Berenice é presidente da 7ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça gaúcho, e detém a competência em Direito Família. Entre suas principais bandeiras está o casamento entre pessoas do mesmo sexo, assunto que voltou às páginas da imprensa nacional e internacional em agosto, depois da divulgação de um documento do Papa João Paulo II condenando o homossexualismo. Autora do livro “União Homossexual – Preconceito e Justiça”, a desembargadora já esteve nas páginas da Revista G Magazine e é uma das “musas” do movimento gay, ao lado da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Mas reclama não encontrar solidariedade nem mesmo entre as colegas. “Já fui chamada até de sapatão”, conta. “Para defender as minorias, podem me chamar de homossexual, negra, aidética e vítima de violência doméstica”, acrescenta.

Maria Berenice tem três filhos. São todos adultos, mas ainda moram com ela, que está no quinto casamento. “Fui a pessoa que mais casou no tribunal”, diverte-se. Atualmente, diz que faz “malabarismos” para encontrar o atual parceiro, professor da Universidade de São Paulo (USP). “Vivo viajando”, conta. Também precisa fazer ginástica para driblar os colegas, que ainda torcem o nariz quando ela aparece com echarpes coloridas sob a toga. “Faço questão de usar cores bem vibrantes”, diz. Quem começou nos anos 70 tampouco encontrou o terreno pronto. Única juíza nas regiões Norte e Nordeste na época, Eliana Calmon conta que não era raro ser forçada a elevar a voz para impor sua autoridade. Tinha um agravante: era muito bonita. “O lustro da beleza da mocidade terminou por atrapalhar um pouco”, afirma. Segundo ela, os homens de sua geração esperavam que as mulheres em cargos diretivos fossem feias e usassem coques. Quando iniciou na Procuradoria Geral da República, em Pernambuco, estado tido como machista, Eliana chegou a ser confundida com escrivã. “Foi aí que comecei a adquirir uma postura mais agressiva. Não podia ser terna para ser aceita. Os homens começaram a dizer: Eliana é homem”, relembra, acrescentando que nunca tomou a referência como ofensa. Ela acredita que aos poucos o preconceito foi arrefecendo, mas ainda sobrevive em alguns redutos. “O poder ainda é masculino”, diz a ministra, que recentemente adotou uma nova tese: há sim um olhar feminino e outro masculino do Direito, ao contrário do que muita gente defende. “Até um ano atrás não tinha esta posição. Foi uma descoberta feita a partir das discussões sobre assédio sexual. Hoje penso que a visão dos fatos sociais está diretamente identificada com o gênero”, avalia.

Braços abertos

Nem todas as mulheres que seguiram a magistratura, no entanto, causaram polêmica ou enfrentaram preconceitos. Mais discreta e clássica, a ministra Maria Cristina Peduzzi conta que foi recebida de braços abertos pelos colegas e se sente em casa no TST. Uruguaia de nascimento, mas brasileira de coração, Maria Cristina foi criada no Rio Grande do Sul, migrou para Brasília ainda nos tempos de universidade e começou a advogar perante o TST aos 22 anos de idade. “Acompanhei a construção de cada anexo”, brinca. No entanto, admite que a adaptação não foi instantânea. “Mesmo sendo a advocacia e a magistratura atividades irmãs, demorei alguns meses para me sentir à vontade como juíza”, conta a ministra. Com dois anos de tribunal, completados em julho, ela continua sendo a única mulher da corte. Mas não lamenta. Casada com um advogado e mãe de outro, a ministra Maria Cristina acompanha com serenidade e paciência a chegada das mulheres ao poder. “A ascensão feminina na magistratura é reflexo da entrada das mulheres no mercado de trabalho como um todo, o que é muito recente. Então é natural que se galgue posições aos poucos, é uma conseqüência lógica do processo”, observa.

A desembargadora Elaine Harzheim Macedo, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é da turma que não reclama do preconceito. Mas lamenta não ter mais tempo para a família. Embora jovem, (tem 32 anos), é casada, mãe de dois filhos e já tem até uma neta, que completará um ano em dezembro. A correria faz parte da profissão e administrar o tempo livre não é tarefa fácil. Para a ministra Maria Cristina, dormir é um luxo. “Não tenho hobby e se tivesse ficaria ainda mais tensa, com a sensação de que estou perdendo tempo”, diz. Ela tampouco consegue seprar um tempinho para atividades físicas ou para ler um livro que não tenha relação com o trabalho. “O meu hobby é dormir, porque estou sempre com déficit de sono”, brinca. Para o lazer, a única brecha é a vida social noturna. “Adoro encontrar

pessoas, mas saio no máximo duas vezes por semana, senão meu déficit aumenta”, diz. Mas nem todas as magistradas são tão espartanas. Solteira e sem filhos, a desembargadora Salete Maccaloz diz que sempre encontra um tempinho para se divertir e namorar. E fica “doente” se não consegue abrir um livro. No momento, sua leitura de cabeceira é “Abusado”, do jornalista Caco Barcelos, uma grande reportagem sobre a história da máfia do tráfico na favela Santa Marta, no Rio de Janeiro. Já Eliana Calmon encontra prazer entre as caçarolas ao final de um dia duro. Ela relaxa recebendo amigos para jantar, quando assume pessoalmente o comando da cozinha. Mesmo sendo baiana, raramente se aventura nos pratos típicos de seu estado natal. “A minha faixa etária indica pratos mais leves”, diz. Cuidadosa com o corpo, pratica esportes todos os dias, gosta de nadar e já foi adepta da musculação.E ainda senta-se à frente do computador para se dedicar à sua produção literária. Que não se resume ao livro de culinária. Ela assina várias obras sobre temas que têm relação com a magistratura. O dinheiro arrecadado com o livro de receitas é doado para duas instituições de caridade na região de Brasília. Para adquirir, basta entrar em contato com o gabinete da ministra no STJ (61) 319 8000. Eliane é separada e mãe de um filho de 24 anos, que cursa a faculdade de Direito.

Maria Berenice Dias, do Rio Grande do Sul: ‘‘fui alvo de discriminação’’.

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olange Salgado tinha 13 anos e vivia no Rio de Janeiro, onde nasceu, numa época em que a cidade comemorava o título do Vasco, campeão brasileiro de 1974, e o maior ídolo da torcida era Roberto Dinamite, artilheiro da competição, com 16 gols. No

rádio, tocavam sem parar duas músicas românticas de apelo fácil: “Feelings”, do brasileiro americanizado Morris Albert, e “Na rua, na chuva, na fazenda”, de Hyldon, aquela que tinha no refrão “uma casinha de sapê”.A dois mil quilômetros dali, casinhas de sapê no meio da floresta eram cenário de um drama cuja verdadeira extensão os brasileiros só iriam conhecer anos depois. Mal treinados, mal preparados e sem apoio, poucas dezenas de pessoas, em sua maioria jovens de classe média, tentavam implantar um núcleo guerrilheiro no meio da floresta. Quase 30 anos depois, a história dos guerrilheiros que pretendiam combater a ditadura e criar um estado comunista no Brasil cruzou a vida de Solange, hoje juíza da 1º Vara Federal, em Brasília.

No dia 20 de julho, ela decretou a quebra de sigilo de todas as informações oficiais existentes sobre o confronto entre as Forças Armadas e cerca de 70 militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) entre 1972 e 1975. Dos guerrilheiros, 61 são considerados desaparecidos.A ação judicial tramita na Justiça desde 1982 e foi instaurada por familiares de 22 desaparecidos. A magistrada deu um prazo de 120 dias para a União informar onde estão sepultados os corpos destas 22 pessoas, desaparecidas na região que faz fronteira entre os estados do Pará, Tocantins e Maranhão. Em caso de descumprimento da determinação, a União ficaria sujeita ao pagamento de multa diária de R$ 10 mil.A sentença foi encarada pelos parentes dos desaparecidos como um reconhecimento oficial do que aconteceu no Araguaia. No texto, a juíza afirmou que os guerrilheiros “foram vítimas de extermínio sumário, não tiveram acesso a nenhuma das garantias asseguradas aos acusados e, ao que tudo indica, tiveram seus restos mortais violados, profanados ou ocultados”.

A decisão causou um grande mal-estar no governo, que se viu acuado. Afinal, o PT sempre defendeu a abertura dos arquivos da ditadura. A ação dos 22 parentes dos desaparecidos, para se ter uma idéia, foi assinada por dois ilustres petistas, muito amigos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: os deputados federais Sigmaringa Seixas (DF) e Luiz Eduardo Greenhalg (SP).Por outro lado, o governo não queria mexer em uma ferida ainda aberta nas Forças Armadas. Durante mais de um mês, Greenhalg e os autores da ação ficaram em suspenso. Eles esperavam que o governo não fosse recorrer da sentença. A expectativa do grupo foi frustrada pela Advocacia Geral da União na quarta-feira, 27 de agosto. O porta-voz do Exército, general Augusto Heleno Pereira, chefe do Centro de Comunicação Social, desde então repete para os jornalistas que não há documentos sobre o

A morte e a donzela

Antonio Vital

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M e m ó r i a

assunto. Ao recorrer da decisão, o governo reconheceu o direito dos familiares de localizar os restos mortais de seus parentes, admitiu a obrigação da União de “envidar esforços” para ajudá-los na tarefa, mas alegou que a juíza extrapolou o pedido original dos autores, que queriam apenas saber onde estão os corpos. Foi um banho gelado na esperança de 22 famílias e uma frustração para o petista Greenhalg.

Alheia ao furacão que sua decisão provocou, a juíza Solange Salgado, 42 anos, mantém inalterada sua rotina. Ela divide o cargo de titular da 1ª Vara da Justiça Federal com o de presidente da Associação de Juizes Federais da 1ª Região (Ajufer). A eleição para o órgão representativo da classe foi sua primeira incursão na política.Na época dos fatos, Solange não tinha idéia do que estava acontecendo no Araguaia. “Só fui saber anos depois”, conta. Quase trinta anos depois, ela ficou três meses examinando o processo, de sete volumes, até decidir. “Percebi que havia uma resistência muito grande da União em colaborar com os autos. Sempre havia o argumento de que não havia documentos”, explica a juíza.Segundo ela, o que pesou na hora de decidir foi a convicção de que as famílias têm o direito de saber o paradeiro de seus entes queridos. Para defender o ponto de vista juridicamente, porém, ela foi buscar precedentes internacionais. “As diretrizes que eu encontrei vieram da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, explicou.

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Solange: ‘‘guerrilheiros foram vítimas de extermínio, sem acesso às garantias asseguradas aos acusados’’.

A juíza Solange Salgado, da 1a Vara

Federal, de Brasília, acaba de tomar

uma decisão histórica: determinou que

a União libere informações sobre a

repressão à Guerrilha do Araguaia, onde

desapareceram pelo menos 61 ativistasFo

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO 7

Solange Salgado se formou em Direito em 1985, na Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Em 1997, defendeu a tese “A culpabilidade” no mestrado em Direito Penal, na Universidade Gama Filho, também no Rio. Foi defensora pública e atuou cinco anos como promotora de Justiça, em Minas Gerais, antes de ser juíza. “Fiquei no Ministério Público para adquirir experiência, mas minha vocação mesmo é a magistratura”, disse.Em 1986, saiu do Rio para ser promotora de Justiça na pequena Aiuruoca (MG), cidadezinha perto de Caxambu. Cinco anos depois, passou no concurso para juíza em Minas Gerais. Foi designada para trabalhar em Sabará, a 40 km de Belo Horizonte. Ficou lá sete meses.

Solange Salgado, casada e sem filhos, chegou a Brasília em 1993, vinda de São Luiz (MA), para onde foi como juíza federal depois da experiência no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Foi designada para a 1ª Vara Federal dois anos depois. O processo sobre a guerrilha já estava em tramitação na época, mas a juíza só pôs as mãos nos sete volumes no começo de 2003. Era um caso diferente de tudo o que ela estava acostumada a lidar. Solange tem mais afinidade com as áreas de Direito público e administrativo, que respondem pelo grosso dos processos em tramitação na Justiça Federal.A magistrada explica de maneira simples o que a levou a decidir a favor de um pedido que se arrastava há 20 anos. “O pedido dos parentes não foi o de processar quem atuou contra a guerrilha. Não havia nenhum tipo de revanchismo. O pedido de localização dos corpos é de uma clareza e objetividade tão grandes que o Estado não pode se omitir”, explicou. Segundo ela, as famílias têm o direito de saber o paradeiro dos corpos.

Saia justa

A Advocacia Geral da União recebeu no dia 28 de julho a notificação da decisão judicial que determina à União a abertura dos arquivos sobre a Guerrilha do Araguaia. Antes de ser analisada do ponto de vista jurídico, a decisão sobre o que fazer passou por gabinetes do Palácio do Planalto e de outros importantes setores do governo petista para que houvesse uma solução política.O que fazer em relação à sentença foi objeto de conversas entre Lula, o ministro da Defesa, embaixador José Viegas, e os três comandantes militares - general Francisco Roberto de Albuquerque (Exército), brigadeiro Luiz Carlos da Silva Bueno (Aeronáutica) e almirante Roberto de Guimarães Carvalho (Marinha). A saia justa era tão grande que, em 5 de agosto, o presidente foi obrigado a trocar integrantes da Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça, entre os quais o general da reserva Osvaldo Pereira Gomes. O general havia defendido, publicamente, que o governo recorresse da sentença da juíza, sob o argumento de que a Lei de Segurança Nacional, ainda em vigor, proíbe a divulgação de documentos sigilosos.Um dos principais argumentos usados pela juíza Solange foi justamente a lei 8.159/91, que trata da política nacional de arquivos públicos e privados. A lei diz que o acesso a documentos sigilosos está restrito a um prazo de 30 anos, a contar da data de sua existência. Porém, o artigo 24 da lei diz que ‘’caberá ao Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação pessoal de parte’’. Do lado do governo, o caso não provocou constrangimento apenas em Greenhalg, que preside a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara com apoio do governo. Outros petistas ilustres têm interesse no caso e têm sido obrigados a dar explicações, em decorrência da sentença da juíza Solange. É o caso do presidente do PT, José Genoino (ele próprio um dos guerrilheiros do Araguaia) e do secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda (um dos mais célebres defensores do fim do segredo oficial sobre o caso). Greenhalgh trabalhou – e muito – para que a Advocacia Geral da União (AGU) não recorresse da sentença. O mesmo fizeram os parentes dos desaparecidos. “Em todos os lugares pedimos para o governo cumprir a sentença”, resume a terapeuta Maria Eliana de Castro, 45 anos, irmã de Antônio Teodoro de Castro, o “Raul”, desaparecido em 1973, aos 25 anos, depois de ser preso pelo Exército.Raul foi visto pela família, pela última vez, em 1971. Era farmacêutico e bioquímico. Depois de anos de pesquisas, as únicas coisas que a família descobriu a respeito do destino dele foram informações esparsas, encontradas

nos arquivos da Marinha. “Os documentos diziam que ele foi preso pelo Exército no Natal de 1973. A versão oficial do Exército é de que ele foi justiçado (morto) pelos próprios companheiros, mas é impossível acreditar nisso”, conta Eliana. A sentença foi muito elogiada, também, no Congresso Nacional. Parlamentares do PT e, principalmente, do PCdoB, aplaudiram publicamente a juíza Solange. O PCdoB foi o partido que organizou a guerrilha. “Foi uma decisão histórica”, disse, em plenário, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ).

O movimento organizado pelo PcdoB reuniu um grupo de 69 homens

e mulheres em 7 mil quilômetros quadrados, à margem esquerda do rio Araguaia, entre os estados do Pará, Tocantins e Maranhão. A estratégia era começar a implantação do comunismo pelo campo e, depois, levar o movimento às cidades, a exemplo do que tinha ocorrido em Cuba, a maior fonte de inspiração dos militantes comunistas na época.

Os primeiros guerrilheiros chegaram ao local no final de 1966. Entre os rebelados estavam o atual presidente do PT, José Genoino, Ângelo Arroyo, Maurício Grabois, Elza Monnerat, João Carlos Hass Sobrinho, e Osvaldo Orlando Costa, o legendário Osvaldão, líder do grupo.

O núcleo foi descoberto pelo Exército quatro anos depois, em 1971. Em abril de 1972, as Forças Armadas começaram as investidas. Bases foram instaladas em Marabá (PA) e Xambioá (TO). Em junho, os militares se retiraram da área. Voltaram dois meses depois, com mais soldados, a maioria recrutas. Dessa vez, alguns rebelados tombaram. A terceira investida aconteceu no final de 1974 e deixou poucos sobreviventes.

O Ministério da Justiça contabiliza hoje 61 desaparecidos, além de sete guerrilheiros oficialmente mortos. No Exército, a baixa foi de 17 soldados.

História de poucos sobreviventes

O irmão da terapeuta Maria Eliana desapareceu depois de preso pelo Exército em 1973, aos 25 anos.

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO8

S e s s ã o E s p e c i a l

E s t a n t e

Já nos créditos iniciais, do designer Saul Bass, “Anatomia de um crime” se apresenta como um fora de série, uma raridade entre as centenas de filmes passados em tribunais. O charme da música de Duke Ellington – que faz uma ponta como o band leader Pie-Eye – e a fotografia em preto e branco de Sam Leavitt completam o charme do filme, lançado em 1959 e disponível em DVD no Brasil (Columbia TriStar).

Otto Preminger (1906-1986), fez parte da leva de diretores austríacos que emigraram para os Estados Unidos quando o nazismo começou a ganhar força na Europa. (Fritz Lang estava entre eles). Foi para os EUA em 1935 e substituiu Rouben Mamoulian em “Laura”, um sucesso. Desafiou os rigores do Código Hayes, que censurava filmes de temáticas ousadas, como “Ingênua até certo ponto” (“The Moon is Blue”), em que usava a palavra virgem, e “O homem do braço de ouro” (“The man with the golden arm”), em que tratava de forma crua a dependência das drogas.

A crítica francesa - mais precisamente os intelectuais do “Cahiers du Cinéma” – o descobriram nos anos 60 e incluíram filmes como “Tempestade sobre Washington” (“Advise and Consent”), “O Rio das Almas perdidas” (“River of no return”) e “Bom dia tristeza” (“Bonjour Tristesse”) na lista dos melhores cults.

- Como os jurados podem desconsiderar o que já ouviram? A dúvida do réu, tenente Manny Manion, a certa altura do julgamento que ocupa a maior parte dos 160 minutos de projeção de “Anatomia de um

Crime” (“Anatomy of a murder”), é rapidamente desfeita por seu advogado, Paul Biegler:- Eles simplesmente não podem.Mas é por meio de manhas e explosões quase sempre desautorizadas pelo juiz que o advogado tenta derrubar as teses da promotoria e convencer

os jurados da inocência do réu, que teria assassinado um dono de bar por ele ter espancado e violentado sua mulher. O caso soa desde o princípio como homicídio premeditado, mas o advogado Biegler quer mesmo é deixar no ar a pergunta: é justificável matar o estuprador da esposa? Para ele, é. O roteirista Wendell Mayes, que adaptou o romance homônimo de Robert Traver, optou por levar para o tribunal testemunhas que ajudam a traçar o perfil dos habitantes de uma cidadezinha do Michigan, nos Estados Unidos, com seus pequenos escândalos encobertos pelo puritanismo e pela monotonia de seu dia-a-dia. Preminger, por sua vez, aposta menos nos cenários e mais nas atuações do elenco encabeçado por James Stewart. Um dos atores favoritos de Alfred Hitchcock, Stewart obteve, na pele de Paul Biegler, um dos melhores papéis de sua carreira. Ainda atuam no filme Artur O’Connell, no papel do assistente Parnell McCarthy, Bem Gazzara, que interpreta o réu, tenente Manion. A mulher dele, a bela e vulgar Laura Manion, é encarnada por Lee Remick. E Joseph N. Welch é o juiz Weaver, que faz o gênero simpático mas nada bobo.

O humor também ameniza a violência do crime e as baixarias dos debates no tribunal. Logo no início do julgamento, o meritíssimo Weaver anuncia: “todo juiz é parecido com outro. A única diferença está na digestão ou na tendência para cochilar. Posso digerir um bloco de ferro e, embora pareça cochilar, estou bem acordado, à espera de um bom advogado com um bom argumento”. E bons advogados e bons argumentos não faltam ao filme. Do lado da acusação, a raposa Claude Dancer, vivido por um carismático George C.Scott em início de carreira, dá margem a trocadilhos sobre dança e dançarinos. Mas as melhores falas e os melhores lances da partida estão mesmo a cargo de Biegler. Aparentemente dispersivo e trapalhão, afogado em dívidas, Biegler toca piano, entulha a geladeira de peixes e sonha com um novo motor de popa para seu barco de pesca enquanto tenta receber os honorários de clientes caloteiros. Não pode sequer demitir sua secretária Maida (Eve Arden), que está com o salário atrasado.

(Angela Regina Cunha )

Anatomia de um Crime, de Otto Preminger

O fora de série que se tornou um clássico entre filmes de tribunais

Protagonismo Político dos Juízes: risco ou oportunidade?

A obra, que tem prefácio do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio

Mello, defende a necessidade de iminentes mudanças quanto a determinados

paradigmas que impedem a atuação do Judiciário como agente político. O estudo é

baseado em ampla pesquisa histórica desenvolvida pelo autor. Erick Vidigal é advogado

no Distrito Federal, professor de Direito Processual Civil e de Prática Forense nas áreas

cível e processual civil.

Este volume, o primeiro da série “Grandes Pareceristas” da Editora América Jurídica,

trata de temas como função da lei complementar tributária, adoção do imposto fixo

no direito tributário brasileiro, Cide e ICMS, confissão de dívida e quebra de sigilo

bancário, entre outros. Ives Gandra é especialista em direito Tributário e professor

emérito de algumas das mais importantes universidades do País.

Direito Tributário – volume 1

Teoria da Constituição

O jurista Carlos Ayres Britto, ministro do Supremo Tribunal Federal, nesta obra separa

o Direito Constitucional dos outros ramos jurídicos. Distingue entre Constituição

e emendas constitucionais. Trabalha a Democracia como o cerne de toda a

principiologia constitucional Contemporânea. Reivindica para a Constituição um papel

especificamente reitor ou dirigente. Ela é a “fundamentalidade das fundamentalidades”,

nas palavras do autor.

Em sua tese de doutorado, o magistrado e professor Sálvio de Figueiredo Teixeira

demonstra como na prática um tribunal participa ativa e concretamente da criação

do Direito. A obra contém levantamento da jurisprudência sobre processo civil do

Superior Tribunal de Justiça. O desembargador Sálvio de Figueiredo Teixeira é ministro

do STJ desde 1989.

Menores e loucos no Direito Penal

Uma das principais obras do jurista e professor Antonio Joaquim Ribas, o Conselheiro

Ribas, e praticamente a primeira a realizar a sistematização do Direito Civil no Brasil,

volta a circular no País, em dois volumes, como parte da coleção História do Direito

Brasileiro. A nova publicação é uma reimpressão da 2a edição do livro, datada de

1880.

A obra, publicada pela primeira vez em 1886, enfoca o tratamento dado pela Justiça

aos menores de idade e aos considerados loucos. Reeditado agora pelo Superior

Tribunal de Justiça e pelo Senado Federal, o livro faz parte da coleção História do

Direito Penal. Reconhecido por suas idéias de renovação no ensino jurídico brasileiro,

Tobias Barreto passou a ocupar a cadeira número 38 da Academia Brasileira de Letras

em 1887, dois anos antes de seu falecimento.

A criação e realização do direito na decisão Judicial

Curso de Direito Civil (volumes 1 e 2)Antonio Joaquim Ribas

Erick VidigalEditora América Jurídica

Sálvio de Figueiredo TeixeiraEditora Forense

Tobias BarretoSecretaria Especial de Editoração e

Publicações do Senado Federal

Carlos Ayres BrittoEditora Forense

Ives Gandra da Silva MartinsEditora América Jurídica

Secretaria Especial de Editoração e Publicações do Senado Federal

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO

uando a TV Justiça entrou no ar, às 14 horas do domingo 11 de agosto do ano passado, nenhum de seus telespectadores imaginava que, um ano antes, o projeto despertava ceticismo até mesmo nas pessoas envolvidas com a iniciativa. A primeira pergunta que

todos se faziam era se de fato havia necessidade de um canal exclusivo para o Judiciário. E como aprovar uma lei que viabilizasse a sua criação e distribuição da maneira mais abrangente possível? Ou então, como preencher a grade de programação sem os meios suficientes? Como ter pessoal capacitado para a produção de TV? Enfim, como montar uma televisão em tão pouco tempo?

O então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio Mello, já deixara clara e pública sua determinação em criar a TV. Portanto, o jeito foi arregaçar as mangas e começar a trabalhar. Afinal, não restavam mais dúvidas quanto à necessidade de aproximação do Poder Judiciário com a sociedade brasileira. A partir daí, identificaram-se duas premissas fundamentais para o funcionamento da TV Justiça. A primeira era de que ela não poderia ser exclusiva do STF, nem do Judiciário, mas de toda a estrutura orgânica da Justiça brasileira. E a segunda revelou-se uma decorrência da primeira, ou seja, a necessidade de se montar uma espécie de rede nacional de correspondentes. E assim pouco a pouco a emissora foi se concretizando, ao mesmo tempo em que desvanecia a desconfiança inicial. Fundamental no processo foi a parceria firmada com a Fundação Padre Anchieta, de São Paulo, para que a TV Cultura operasse a técnica da emissora. O assessor de Comunicação da Presidência do STF, Renato Parente, conta que quando a TV começou a funcionar, já dentro deste modelo horizontalizado, a produção contava seis horas diárias de programação que, repetida duas vezes por dia, deixava o canal no ar por 18 horas. “Nossa grade tinha cerca de meia dúzia de programas e o jornalismo era feito a partir de informações disponíveis nos sites dos órgãos de Justiça, com o apoio de bravos 13 correspondentes”.

Sucesso

Os correspondentes eram os assessores de comunicação das entidades do mundo jurídico que davam apoio na produção do “Jornal da Justiça”, o programa de notícias da TV. Em seis meses, eles já eram 81, e hoje, pouco mais de um ano depois, o canal conta com 130 colaboradores externos. A grade de programação conta com 27 programas, dos quais 25 são semanais. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Rubens Aprobato Machado, vê

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T V J u s t i ç a

na TV Justiça um instrumento de informação para o cidadão, que poderá, também, fiscalizar as atividades do Judiciário. “Nesse sentido – diz - ela funciona também como um instrumento para o controle externo da justiça brasileira”.

O Conselho Federal da OAB produz o programa “OAB Nacional”, que vai ao ar todas as semanas. O presidente da Ordem, contudo, reclama maior abrangência para a TV. “Esse espaço ainda precisa ser mais democratizado, no sentido de permitir que cidadãos de todas as camadas da sociedade possam ter acesso à sua programação”. No STF, a expectativa é a mesma. Renato Parente não tem dúvidas que a TV, mesmo transmitida a cabo, projetou muito o Poder Judiciário, mas reconhece que falta chegar a uma parcela maior da sociedade. Por isso, faz parte dos planos futuros a transmissão do sinal em canal aberto. Já o presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), Marfan Vieira, também entende que a disseminação da TV é muito benéfica, mas ele já a vê como um meio de integração. “A TV Justiça, difundindo as atividades dos operadores do Direito em nosso país, firma-se como importante instrumento de integração das instituições jurídicas com o povo brasileiro”.

Assim como os demais chamados “operadores do Direito”, a AMB também está presente na grade de programação da TV Justiça com o “Juízo Crítico”, um programa de reportagens, entrevistas e debates. A principal preocupação da entidade é a mesma da própria TV; aproximar a magistratura e o Poder Judiciário da sociedade em geral. O “Juízo Crítico” já abordou assuntos como o controle externo do Judiciário, a reforma da Previdência Social, juizados especiais, violência e crime organizado, dentre outros temas.

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Antonio Matiello

Uma janela para o Judiciário

O STF assinou acordo de cooperação com a Radiobrás para implantação da Rádio Justiça. Numa primeira etapa, será veiculado um programa semanal às sextas-feiras, nas rádios Nacional de Brasília AM, Nacional do Rio de Janeiro AM, e Nacional da Amazônia OC (Ondas Curtas). O “Rádio Justiça Revista” traçará um panorama da Justiça brasileira. O programa terá três blocos de 20 minutos. O primeiro trará duas ou três das decisões mais importantes da Justiça na semana, explicadas por especialistas. O segundo bloco será de notícias. E o terceiro será para esclarecer dúvidas dos ouvintes, informar a agenda do Poder Judiciário e apresentar um glossário de termos jurídicos. O STF está agilizando também a montagem da Rádio Justiça propriamente dita. A solicitação de outorga de freqüência já foi enviada ao Ministério das Comunicações, que se manifestou favorável.

Rádio Justiça a caminho

Grade da emissora conta com 27 programas, dos quais 25 são semanais, produzidos por 130 colaboradores.

A TV Justiça completa um

ano no ar e se firma como

instrumento de diálogo

da magistratura com a

sociedade brasileira

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enário um: uma aldeia de índios caiapó na região do Xingu. Cenário dois: o cerrado das terras acidentadas ao norte de Goiás. Cenário três: uma favela no Rio de Janeiro. Cenário quatro: um presídio. Cenário cinco: do outro lado do oceano, a alta porta de

uma igreja gótica. As paisagens, aparentemente tão díspares, guardam algo em comum. Todas serão

testemunhas de seções de justiça muito particulares: tribunais privados, criados e mantidos por comunidades que têm suas próprias leis e costumes. Elas desenvolveram regras para resolver desde as disputas mais prosaicas até casos de homicídio, corrupção ou assédio sexual em situações onde a Justiça oficial não chega, não é reconhecida, ou simplesmente não interfere. Alguns destes tribunais, que podem reunir indígenas, descendentes de escravos ou agricultores, não têm sequer uma palavra escrita sobre sua organização, suas leis, penas e autoridades. Outros puseram tudo no papel, como a comunidade dos índios cainganges da região de Palmas, sudoeste do Paraná. Para não serem mal-interpretados pelos brancos, escreveram 16 artigos sob o título de “Código de Ética e Penal”.

Em 1997, o cacique caingange foi denunciado ao Conselho Municipal da Infância e da Juventude, acusado de ter obrigado o casamento entre namorados adolescentes. O chefe alegou a tradição da tribo. Disse que os índios tinham o costume de casar cedo e que, além disso, tradicionalmente era o próprio cacique quem decidia sobre o assunto. Mas as autoridades acharam insuficientes as alegações. O chefe, então, resolveu colocar as regras no papel. O Código trata de homicídios, assalto, estupro, furto, prostituição, agressões, desrespeito a autoridade, desentendimento familiar, alcoolismo, separações, uso de drogas, sedução e casamentos, o artigo mais extenso. O artigo oitavo trata de “agressão moral”. Diz: “Em caso de agressão moral, ou seja, fofocas sem prova, o Cacique e a Liderança poderão aplicar as penas que variam de 24 horas a cinco dias de punição, podendo também aplicar a prestação de serviços à comunidade”.

O Código de Ética e Penal Caingangue está em pesquisa do antropólogo Ricardo

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C a p a

Cid Fernandes, professor da Universidade Federal do Paraná. Ele é doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo e tem trabalhado como consultor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo Cid, este povo habita 29 terras indígenas de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Ocupam regiões altas, campos e matas do Planalto Meridional. Estão ligados ao tronco Ge, o mesmo dos caiapós, dos xavantes e dos timbiras. Costumam se organizar em torno de chefes políticos, que exercem o controle social com extremo rigor. “A punição mais tradicional entre os indígenas é a vergonha pública. Ela foi sendo substituída, no século dezenove, pelo tronco, que era usado pelos brancos para punir os escravos. Depois, os índios passaram a usar as penas de prisão, incentivados pela Funai”, conta o antropólogo.

O rigor com que os chefes cainganges tratam estas questões têm suas razões. Diferente de outros povos indígenas, eles formam grandes grupos, que podem ter duas ou três mil pessoas. “É complicado manter o controle sobre tanta gente”, explica Cid. “Hoje toda as terras cainganges têm prisão”, conta o antropólogo. O primeiro artigo do Código estabelece penas para homicídios entre índios: “fica estabelecido que o autor do delito será transferido para outra reserva por prazo determinado acima de dez anos para cumprir na reserva que foi designado, ou se o Cacique e a Liderança decidirem, poderá ser apresentado o homicida à Justiça para punição dentro da lei civil”. Esta é a maior pena prevista no código. As outras infrações são punidas sempre com prisão de, no máximo, 90 dias, podendo ser apenas de horas. O banimento do homicida é comum entre outros grupos indígenas. O indigenista Guilherme Carrano, que é também advogado, conviveu com índios bororos e xavantes em Mato Grosso. Segundo Guilherme, em casos de homicídio entre os xavantes, quem estipula a pena são os parentes da vítima. Mas ele viu uma situação inusitada, que sequer estava prevista nos princípios morais e éticos do grupo: um índio bebeu demais e acabou matando um parente. “É um crime inconcebível entre eles”, diz o indigenista. Neste caso, obviamente os parentes da vítima eram os mesmos do infrator. “A solução encontrada por eles foi banir o indivíduo da aldeia e proibi-lo de viver em qualquer outra

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Warner Bento Filho

Como se faz justiça quando o Estado

não está presente? Para responder a

esta pergunta, o Jornal do Magistrado

saiu a campo para dar início, com

esta reportagem, a uma série sobre

o assunto. E descobriu um mundo

fascinante de gente que toma para

si a responsabilidade de julgar,

com erros e acertos.

A Justiça longe do Estado

A Chapada dos Veadeiros, a 300 km de Brasília, guarda um mundo desconhecido pelo Estado.

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Almas, outra comunidade remanescente de quilombos na região. Hoje, ela mora sozinha num barraco de palha à beira da estrada, depois de ter sido expulsa de sua casa por um fazendeiro que alegava ser o dono da terra. A grilagem é um dos maiores problemas vividos pelos kalungas.

No Engenho, os moradores se orgulham de produzir grande parte do que consomem: arroz, feijão, milho, mandioca, cana, banana, fava, andu, batata-doce. Cirilo dos Santos Rosa, o líder da comunidade, conta que seus antepassados vendiam sua produção em Barreiras, na Bahia, em viagens feitas a cavalo. “Ia tudo em cangalha com bruaca. Levava 60 dias para ir e voltar. Eles levavam couros de animais, que naquela época podia, rapadura, açúcar mascavo. E traziam sal e querosene”.Dona Joana é testemunha destes tempos. Segundo os vizinhos, ela tem mais de cem anos, 108 nas contas de Cirilo. Ela mesma não diz. “Sei que tenho um bocado de janeiro”, resume. Dona Joana nasceu ali e lembra que os avós já eram filhos daquela terra. Mas os kalungas também receberam migrantes. É o Caso de Pedro Ferreira dos Santos, de 100 anos, amigo de dona Joana, que veio com a família, de Barreiras, para o quilombo, onde casou com uma “kalungueira”, como eles costumam se chamar. Seu Pedro, dona Joana e as pessoas mais velhas da comunidade são deste tempo em que as roupas eram feitas por eles mesmos. Ainda hoje os kalungas plantam seu algodão e fiam. Mas este conhecimento perdura como algo quase folclórico. “Dá muito trabalho”, explica Getúlia Moreira da Silva, que aprendeu a fiar aos sete anos de idade. A conduta social dos kalungas foi forjada pelas dificuldades de sobrevivência. Isolados do mundo por mais de cem anos, aprenderam a conviver em paz e harmonia entre eles. Forçados a viver juntos, por questões de segurança, aprenderam a serem solidários e a tratarem-se com extrema amabilidade. “A gente sempre passa os esclarecimentos para o pessoal. Sempre digo que uma vara sozinha não faz sombra. Mas uma touceira faz. A comunidade tem que ser assim. Sempre unida”, ensina Cirilo.

terra xavante. A mulher dele passou a ser considerada como viúva”, conta Guilherme. Entre os caiapós, o indigenista viu que as regras, embora não estejam escritas em lugar nenhum, são rigorosamente observadas. Quando um caiapó rouba a mulher de outro, o marido abandonado tem o direito de bater no companheiro. “Mas inclusive para isso existem regras. Não é sair batendo. Tem todo um ritual”, conta.

A Justiça dos ex-escravos

Até pouco tempo, os remanescentes de quilombos não tinham qualquer reconhecimento oficial. Recém agora começam a ser vistos como um povo que tem uma cultura própria e, claro, uma justiça própria. Alguns destes descendentes de escravos vivem no norte do estado de Goiás. São os kalungas. Diferente de outros quilombos, que foram destruídos durante o regime servil, o quilombo Kalunga se manteve e chegou até nossos dias. Escondidos em lugares até hoje quase inacessíveis, eles mantém costumes que passam de pai para filho há mais de duzentos anos. Até algumas décadas, eles fabricavam as próprias roupas, começando por plantar o algodão. E ainda hoje é possível ver fiandeiras entre eles.

Segundo a antropóloga Mari Baiocchi, este povo foi levado para o interior do País ainda no século XVII, durante a colonização de Goiás, para trabalhar na mineração. “O quilombo Kalunga se formou no final do século dezoito, quando escravos fugiram em busca da liberdade”, conta a antropóloga. Eles formaram dezenas de agrupamentos isolados, que hoje chegam a quase uma centena, com cerca de 3 mil pessoas, segundo Baiocchi. Estão numa área que se estende por três municípios, na Chapada dos Veadeiros. A região está a apenas 350 quilômetros de Brasília, na divisa de Goiás com o estado de Tocantins, num território de cerca de 200 mil hectares. O advogado Aldo Asevedo é outro estudioso dos kalungas. Publicou um livro sobre o assunto, intitulado Kalunga, o direito de existir. “Eles têm um mundo próprio”, conta o advogado. “Criaram vida independente no seu habitat e são governados pelas lideranças das comunidades isoladas”, diz. Um mundo próprio foi exatamente o que o Jornal do Magistrado viu no quilombo do Engenho, em Cavalcante. Logo no caminho, encontramos dona Florzina Pereira dos Santos, uma senhora que sequer sabe a própria idade. Descendente de escravos, conta que é “nascida e criada” no Vão das

Os kalungas, descendentes de escravos, sobreviveram à perseguição, mantiveram costumes de mais de duzentos anos e hoje se orgulham de produzir a maior parte do que consomem. Dona Joana (no alto), aos 108 anos, e seu Pedro (acima), aos 100, carregam a memória da comunidade.

Fotos: Warner Bento Filho

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C a p a

Cirilo é também uma espécie de juiz da comunidade. “A promotora veio aqui e disse que a gente mesmo é que tinha que resolver os problemas menores”, conta. E ela nem precisava ter dito. Tradicionalmente é assim que funciona. As disputas são resolvidas com base no diálogo. As questões mais polêmicas são levadas aos anciãos, que aconselham os contendores. Mas as disputas são raras. O próprio Cirilo trata de apaziguar os espíritos. “Quanto tem alguma briga, explico as desvantagens da violência”. A questão é resolvida ali mesmo, sem muito nhenhenhém. “Acabou de discutir, já faz as pazes”, conta o líder. Mesmo em ocasião de festas, quando quilombolas de outras comunidades visitam o Engenho, dificilmente a situação foge do controle. “Na última festa não teve nem uma pequena conferência”, lembra Cirilo, que sabe o valor de se manter a comunidade unida, evitando a dispersão de seus integrantes. “Boi erado em terra alheia é bezerro”, costuma dizer.

O advogado Aldo Asevedo anotou esta organização em seu livro: “O ‘morador’ respeita e acata os ‘chefes’, que são os mais velhos (mulher ou homem) dos núcleos. A chefia não se exerce com autoritarismo. Os conselhos e admoestações representam a prática usual. O indivíduo nasce com a estrutura básica da sobrevivência (terra e moradia) garantida e imbricada no conceito ‘morador’. (...) Ao contrário da nossa sociedade, nestas comunidades o código não está escrito, mas exercido de fato”. Curiosamente, este espírito de preservação coletiva é algo muito presente também nos presídios. Algumas das falhas consideradas mais graves estão ligadas a fatos que colocam em risco o bem-estar do grupo. O respeito às visitas é algo a ser rigorosamente observado, por exemplo.

Carandiru

O médico Drauzio Varella trabalhou alguns anos na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecido como Presídio do Carandiru. Depois escreveu um livro, o Estação Carandiru, publicado pela Companhia das Letras. Lá estão, em vários depoimentos, alguns dos princípios de conduta mais importantes na vida entre as grades. Inclusive em relação ao respeito às visitas. Um preso explicou a Varella esta importância: “Se na visita não tiver respeito, doutor, elas vão ficar com medo de voltar, onde que uma conta para outra algum fato lastimável sucedido e, daqui a pouco, entre elas: eu não vou mais lá! Se você não vai, eu também não, é perigoso! Pronto, oi nós aqui no maior veneno e elas curtindo lá fora, que Ricardão é o que mais tem, pronto para dar o bote traiçoeiro na fragilidade da mulher solitária. É sem chance!”.

No Carandiru, desativado em setembro de 2002, a turma da faxina, encarregada da limpeza e de servir a comida, funcionava como uma espécie de tribunal, autorizando penas, vetando vinganças ou determinando prazo para o cumprimento de decisões. “A faxina é absolutamente fundamental no controle da violência interna. Se alguém deve e não paga, o credor não pode soltar a faca sem antes conversar com o encarregado-geral, que ouve as partes e dá um prazo para a situação ser resolvida. Antes que este expire, pobre do credor que ousar agredir o outro. Sem o aval do encarregado geral, nada pode ser feito”. Um exemplo desta autoridade está na página 101 do livro de Varela. Ele escreveu que um preso chamado Zico reconheceu um recém-chegado e pediu licença ao encarregado-geral da faxina para se vingar. O novato teria estuprado uma conhecida dele. O encarregado pediu então que o reclamante apresentasse cópia do registro do caso na Polícia. Zico fez o papel chegar ao encarregado, comprovando a versão. E foi autorizado a matar o estuprador. Mas logo depois Zico desistiu daquilo. Achou que não era uma boa idéia. Seria condenado a muitos anos mais e já estava prestes a conseguir a transferência para o regime semi-aberto. Zico foi chamado pelo encarregado, de apelido Bolacha, que na presença de testemunhas deu seu veredicto: “Zico, agora você me desapontou! Pede para matar o cara, traz a prova do estupro e depois muda as idéias. Arruma tuas coisas e atravessa para o (pavilhão) Cinco, que o Nove ficou pequeno para você. Você não é do crime, meu. Você é um cômico”. A rotina do encarregado é árdua, segundo o doutor Varella. “Vivem atarefados. Na enfermaria, atendi dois deles com sintomas visíveis de estresse, como se fossem altos executivos de multinacional ou, como prefere dizer o Bolacha, como se fossem juízes de direito. Nas fases mais agitadas do pavilhão, nem na cama Bolacha tinha sossego”:

- No silêncio da noite, a mente trabalha solitária porque a decisão final é minha e dela depende a sorte de um ser humano. Sou o juiz do pavilhão. Só que o juiz da rua trabalha aquelas horinhas dele e vai para casa com o motorista; eu, é 24 por 48. Ele só tem que julgar se o acusado vai preso; no máximo, dar uma pena mais longa. Eu assino pena de morte.

Dona Getúlia cresceu vestindo roupas feitas pela própria família, mas hoje prefere comprá-las. ‘‘Fazer dá muito trabalho’’.

Presídio do Carandiru, desativado em 2002: turma encarregada da faxina funcionava como uma espécie de tribunal.

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Tribunais na favela

A ausência do Estado dá espaço para a criação de tribunais macabros. Em livro lançado este ano, o jornalista Caco Barcellos conta a história de uma gangue como tantas do Rio de Janeiro, a do morro Dona Marta. A publicação, da Editora Record, já se tornou um dos livros mais vendidos este ano no País. Caco Barcellos vê na exclusão boa parte dos problemas vividos pelos moradores do morro. “Os homens que podiam mudar a vida miserável dos moradores da Santa Marta naquele ano de 1987 eram seus vizinhos mais próximos. Os muros do Palácio da Cidade faziam divisa com a favela. Os barracos de alvenaria e madeira, que cobriam o morro de cima a baixo, eram a única vista do gabinete do prefeito, que podia vê-los a toda hora, mas que parecia nunca lembrar de trabalhar por eles. Ao lado da Prefeitura estavam as duas ruas de acesso ao morro pelo bairro de Botafogo. Os servidores poderiam levar a pé ou de carro algum benefício aos favelados. Mas o morro sempre pareceu longe demais para os homens e as máquinas do município”, escreveu o jornalista.Este abandono se refletia nas condições de vida da população. “Por causa da falta de higiene, os idosos tinham diarréia crônica e as crianças sofriam das mesmas doenças dos vira-latas: eram atacadas por piolhos e pela epidemia de sarna. A mortalidade infantil era duas vezes maior que a vergonhosa média nacional”.

Entregue à própria sorte, a população vive sob o domínio das organizações criminosas. No Santa Marta, segundo conta Caco Barcellos, funcionavam os famosos “tribunais CV”. A sigla representa o Comando Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do Rio de Janeiro. O jornalista descreve uma dessas seções, em que dois adolescentes de 14 e 15 anos, acusados de consumir droga que não lhes pertencia, receberam, cada um, como pena, um tiro na palma da mão. “Jairzinho parecia decidido, mas não estava. Frações de segundos antes de Raimundinho disparar a pistola, ele conseguiu desviar a mão do tiro. Os ajudantes tiveram que segurar o braço dele para a sentença ser executada. O único tiro disparado no meio da palma da mão provocou faturas, destruição dos nervos e o choro de dor e de pânico. Jairzinho foi socorrido pela mãe, que o encontrou a caminho de casa em estado de choque, com os olhos arregalados, fixos na mão destroçada”, escreveu Caco Barcellos. Para executar a sentença do segundo acusado, Marco Ferrô, o traficante-juiz teve mais dificuldade: “O primeiro disparo falhou. O segundo também. Raimundinho mandou o avião Pardal providenciar um porrete. O menino estava trêmulo, chocado com a ordem, mas tratou de cumpri-la. Algumas mulheres se afastaram, assustadas, para não ver a cena. Segundos depois, os gritos de horror de Ferrô foram ouvidos no ambulatório e trouxeram o missionário Kevin de volta ao local do tribunal, para prestar os primeiros socorros. O gerente da endolação estava com os ossos da mão fraturados pela porretada”.

A Organização não-governamental Viva Rio desenvolve, desde 1997, uma experiência bem-sucedida em intermediação de conflitos em favelas cariocas. É um projeto batizado de Balcão de Direitos. “Por meio deste projeto, temos resolvido questões de família, vizinhos, lajes, questões trabalhistas do universo informal. Estas questões raramente chegam à Justiça, porque o balcão consegue resolver”, conta o coordenador da ong, Rubem César Fernandes. Organizados de maneira quase artesanal, os balcões mostram como é possível dar agilidade à Justiça, com base ma mediação de conflitos. “Mais de 90 por cento dos casos que chegam aos balcões são resolvidos lá mesmo. Só os dez por cento restantes vão aos tribunais”, conta o coordenador. Estas estruturas estão presentes hoje em sete comunidades do Rio de Janeiro, inclusive no morro Santa Marta. A iniciativa foi reconhecida pelo Ministério da Justiça como modelo para todo o País. “Nos pediram para implementar a idéia em outros lugares e hoje os balcões já funcionam em 14 estados”, adianta Rubem César.

Uma Corte de mil anos

Reconhecer a autoridade de um tribunal privado não é exatamente uma novidade. Em Valencia, na Espanha, funciona o tribunal privado mais antigo de que se tem notícia, o Tribunal das Águas de Valencia, que já conta mais de mil anos. Sia autoridade jamais foi contestada pelos reis espanhóis. Este tribunal, que se reúne todas as quintas-feiras ao meio-dia em frente à Porta dos Apóstolos da Catedral de Valencia, julga questões relacionadas ao uso da água numa área de 17 mil hectares. A região recebe água do rio Turia, transportando-a por sete aquedutos construídos pelos romanos há 2.100 anos. As precipitações nesta região são comparáveis às do Sertão Nordestino, variando entre 400 e 600 milímetros por ano. Mas, ao contrário do cenário brasileiro, as terras de Valencia são altamente produtivas.

O Tribunal é formado pelos próprios agricultores, eleitos para mandato de dois anos. O denunciado é citado pelo guarda do aqueduto para a quinta-feira seguinte. Se não comparece, é citado outras duas vezes, antes de ser julgado à revelia. Em toda a história do tribunal, nunca se usou a força pública para garantir o comparecimento. As denúncias envolvem o furto de água em tempos de escassez, a ruptura dos canais ou muros, alteração dos turnos de irrigação, a obstrução dos aquedutos. Todos falam em nome próprio, sem advogados e sem qualquer documento escrito. O tribunal ouve as partes e condena ou absolve o acusado. As penas, segundo a infração cometida, são estabelecidas pelo próprio grupo de irrigantes ao qual pertence o infrator. As decisões são inapeláveis. É assim desde o ano 960, sempre às quintas-feiras, quando o campanário da torre gótica da Catedral de Valência toca as doze badaladas do meio-dia e os agricultores pousam suas ásperas mãos sobre os joelhos, sentados nos bancos de couro em frente à Porta dos Apóstolos.

No morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, funcionavam os famosos ‘‘tribunais CV’’, onde traficantes ligados à organização crim-inosa Comando Vermelho julgavam e conde-navam seus desafetos, inclusive menores de idade da própria gangue. A casa de um deles virou posto da Polícia Militar.

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO

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O Brasil comemora o centenário do nascimento de Candido Portinari com uma série de eventos em pelo menos doze capitais, incluindo lançamento de livros, exposições e montagem de espetáculo. No exterior, as sedes da

ONU, em Nova Iorque, e da Unesco, em Paris, recebem exposições

do autor de Baile na Roça

Baile no mundo inteiro

Carlos Bortolas

andinho ia muito bem na Escola Nacional de Belas Artes (Enba), onde havia sido admitido

em 1918, aos 14 anos. A Enba era o único lugar no Brasil que ministrava o ensino formal

de artes plásticas e arquitetura. Por isso, Candido Portinari deixou Brodósqui, sua cidade

natal, no interior de São Paulo, para estudar na então capital federal. Portinari participava das

exposições gerais da escola, chamadas de “salões anuais”. Nem todos os trabalhos apresentados

pelos alunos eram aceitos. Havia uma seleção com certo rigor. Os trabalhos selecionados e

expostos concorriam a uma série de prêmios. Para o primeiro lugar, uma viagem de estudos

à Europa. Candido sonhava em conhecer a região do Vêneto, na Itália, onde nasceram seus

pais, Dominga Torquato e Baptista Portinari.Em novembro de 1922, enquanto era realizada

em São Paulo a famosa Semana da Arte Moderna, o jovem Portinari, nascido em 29 de

dezembro de 1903 e então com 18 anos, participava do Salão da Enba com um retrato do

escultor Paulo Mazzucchelli. Recebeu menção honrosa do júri. No ano seguinte, com outro

retrato, conquista medalha de bronze. Entusiasmado com o reconhecimento, em 1924 o aluno

inscreve outros sete retratos e uma surpresa: um quadro chamado Baile na Roça. Uma cena mal-

iluminada, onde aparecem vários casais. Brasileiros e brasileiras de roupas simples, dançando

ao som de uma sanfona. Era a primeira mostra do que viria a ser, ao longo da vida, um artista

eminentemente brasileiro. O júri, no entanto, recusou a obra. Não era desta vez que Portinari

ganharia sua viagem à Europa. Não foi preciso muito tempo, porém, para que se percebesse

que o problema não estava no Baile na Roça, mas na própria Enba. A instituição era o reduto do

conservadorismo nas artes brasileiras, caráter que só começaria a perder depois da passagem

de Lúcio Costa pela sua direção, em 1930. Candido Portinari, quem sabe, passou pela escola

alguns anos antes do que deveria, como se vê agora, quando comemora-se o centenário de seu

nascimento. “Portinari é talvez o único pintor de exportação brasileiro”, elogia o colega Glênio

Bianchetti, um dos fundadores do Clube de Gravura do Rio Grande do Sul. “Ele está para a

pintura brasileira assim como Oscar Niemeyer está para a arquitetura, ou Villa-Lobos para a

música”, diz o artista.Mais de 40 depois de sua morte, em 6 de fevereiro de 1962, decorrente

de envenenamento por chumbo das tintas que utilizava, a obra de Portinari retorna ao primeiro

plano com uma série de eventos promovidos Associação Cultural Candido Portinari, criada em

1979 para resgatar a memória do artista.

O Projeto Centenário Portinari, dirigido pelo filho do pintor, João Candido Portinari, prevê

12 grandes exposições e eventos, que poderão ser vistos em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo

Horizonte, Brasília, Vitória, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Natal.

E ainda estão previstas exposições nas sedes da ONU e da Unesco, em Nova Iorque e Paris.

Está no programa, ainda, a remontagem do espetáculo Baile na Roça, dirigido por José Possi

Neto e apresentado pela Companhia de Balé da Cidade de São Paulo, com músicas originais de

Jaques Morelembaum, Caetano Veloso, Hermeto Pascoal, Sérgio Assad e Egberto Gismonti. O

espetáculo estará em cartaz no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em outubro. Rio de Janeiro e

Belo Horizonte também estão na lista das cidades que receberão a exposição Visões Múltiplas –

Portinari Revisitado, ainda não confirmada. São trabalhos de 30 artistas, entre pintores, escultores,

músicos, poetas, escritores, carnavalescos, designers, estilistas, fotógrafos, cineastas e cartunistas

que farão leituras contemporâneas da obra O Lavrador de Café.

Outro projeto da Associação pretende transformar fachadas e empenas de diversas

capitais do País em espaço de exposição para grandes réplicas dos quadros do pintor. Esta grande

exposição ao ar livre está marcada para dezembro, mês do aniversário de Portinari, e deve

envolver, simultaneamente, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Vitória, Curitiba,

Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Natal. A sede da Organização das Nações

Unidas (ONU), em Nova Iorque, onde estão os painéis Guerra e Paz, os maiores pintados pelo

artista, sedia a exposição Portinari, o Pintor da Paz, que reúne réplicas digitais de 50 dos cerca de

150 esboços, estudos e maquetes das obras encomendadas pelo governo brasileiro. De Nova

Iorque, a exposição viaja para a sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (Unesco). Em novembro, a mostra desembarca no Palácio do Itamaraty, em

Brasília.

Para o artista plástico Wagner Barja, professor da Universidade de Brasília (UNB), Portinari

foi um “artista comprometido”. E a obra dele, “gestada dentro de um partido de esquerda”,

explica, referindo-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), pelo qual Portinari disputou e

perdeu eleições para a Câmara dos Deputados e o Senado. A temporada em Brasília será

marcada ainda pelo lançamento do Catálogo Raisonné Candido Portinari - Obra Completa. O

Raisonné é uma completa fonte de referência sobre a obra de um artista, e o de Portinari, com

Baile na Roça: obra do aluno Candido Portinari rejeitada pela Escola Nacional de Belas Artes em 1924.

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A segunda edição da Revista Aurora, com lançamento previsto para dezembro, dedicará a capa a uma obra de Candido Portinari. E terá trabalhos dos artistas plásticos Siron Franco e Gustavo da Liña, entre outros. Colaboram escritores com Régis Bonvicino, Álvaro Alves de Faria e Hélio Pólvora, além do cartunista Aroeira.

quatro volumes, será o primeiro de um artista da América Latina.

Barja define Portinari como produto da entressafra entre o primeiro movimento

modernista, marcado pela ruptura com o neoclássico, e o segundo, que ganha corpo na Bienal de

1951, quando começa a se afirmar o movimento concretista. “Ele não pertence ao primeiro nem

ao segundo movimentos. Esteticamente, é resultado da acomodação do processo de grandes

rupturas ocorrido a partir de 1922”, explica. É na formação clássica, “e não acadêmica”, que Glênio

Bianchetti encontra explicação para o esmero técnico da obra que aflorou a partir da adesão de

Portinari à escola do expressionismo. “Ele foi um pintor preocupado com a temática, um excelente

retratista, um excelente desenhista”, ressalta. “O apuro técnico é surpreendente”, reforça Barja.

Eis aí parte dos frutos colhidos pelo artista em oito anos de Escola Nacional de Belas Artes.

A mesma escola que rejeitou o Baile na Roça em 1924 acabou concedendo ao pintor o prêmio

máximo em 1928: a tão sonhada viagem à Europa. Portinari já sabia direitinho o que a academia

gostava. E queria muito visitar a Europa, de onde voltou, em 1931, decidido a abandonar as

tradições e a pintar as coisas e gentes da sua terra. Para Bianchetti, o alcance e a repercussão das

obras de Portinari residem exatamente no desenvolvimento de temas regionais. “Ele desenvolveu

algo maior”, completa Bianchetti, que se considera um discípulo indireto do pintor. “Meu

professor, José Moraes, foi aluno de Portinari”, explica. Do único contato que teve com o pintor,

em 1950, Bianchetti carregou a impressão “de um sujeito simples, que não tinha a pretensão de

ser grande mestre”.

Barja afirma que o legado portinariano continua atual porque a realidade brasileira

que retratou em séries como Favela e Retirantes não se dissipou, “apenas mudou

de endereço”. Esse legado não é pequeno. São mais de 4,6 mil pinturas, desenhos e

gravuras, além de 30 mil documentos. Testemunhas de um Brasil desigual que, infelizmente,

sobrevive.

A Aurora de Portinari

O pintor, que morreu envenenado com o chumbo das tintas que usava, será homenageado no próximo número da Revista Aurora.

Criança Morta é uma das pinturas mais famosas de Portinari, que tornou-se conhecido com obras que denunciam a miséria do País.

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P e r f i l

A contribuição de João Paulo Sepúlveda Pertence para o restabelecimento do estado de direito no País é uma das marcas mais profundas da

sua carreira e bastaria por si só para deixar qualquer pessoa com a sensação do dever cumprido. Para ele, no entanto, esse pode ser apenas

um aspecto de sua biografia. Incansável, não perde a oportunidade de defender, com energia juvenil, o aperfeiçoamento das instituições

democráticas do País. Esta personalidade combativa, no entanto, convive com um homem tímido e estudioso dedicado à família e, como bom

mineiro, com a capacidade de desarmar os ânimos em momentos delicados.

Avesso a badalações e com uma timidez quase intransponível, o ministro se ressente de um certo distanciamento com a vida cotidiana de

Brasília, cidade onde chegou quando tinha 24 anos, em 1961, quando o lugar era pouco mais que o sonho de Juscelino Kubitschek. Juntou-se a

um amigo, também advogado, para alugar uma sobreloja na então principal avenida da capital, a W3. E teve um começo de carreira como o de

tantos juristas: “Começamos a fazer desde advocacia no Supremo Tribunal Federal até porta de xadrez”, diz. Este advogado que empoeirava os

sapatos nas ruas sem calçamento da nova Capital foi capaz também de participar do que ele hoje chama de “a grande aventura”, que foi a criação da

Universidade de Brasília (UnB): um esforço liderado por Darcy Ribeiro para formar uma universidade pública voltada para os interesses da maioria

da população. Darcy e sua equipe lutavam contra o tempo e, depois de 1964, contra a nova ordem política instituída pelos militares.

O sonho não durou muito. Em 1965 Pertence integrava um grupo de professores que foi dispensado pelo governo militar. Em 1969, o

cerco fechou-se ainda mais, quando a Junta Militar o aposentou com base no Ato Institucional nº 5. Eram tempos difíceis em Brasília. A cidade era

pequena e todos se sentiam vigiados. Uma amiga desta época, a empresária Vera Brant, então funcionária da Universidade, conta como eram estes

dias: “Quando veio o golpe militar, passamos a nos encontrar, professores e funcionários, nos lugares mais estranhos: comprávamos ingressos no

Cine Brasília e, em lugar de assistir ao filme, ficávamos no saguão ouvindo as novidades, fazendo planos para um futuro completamente incerto para

aqueles duzentos professores ameaçados de demissão. Pertence era dos mais agitados, angustiados, tensos. Quando tudo desmoronou, ele foi

advogar, junto com o Victor Nunes Leal. Durante todos os anos seguintes, nos encontramos. Demitida da Unb, abri uma imobiliária e o escritório

ma non troppoO ministro Sepúlveda Pertence

dedicou boa parte de sua vida

à luta pela redemocratização do País.

Hoje, às vésperas de completar 66

anos, defende o aprimoramento das

instituições democráticas brasileiras

Walter Sotomayor

Mineiro

Pertence: a certidão de nascimento em Sabará (MG) não o impede de dizer com franqueza o que pensa.

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Sepúlveda Pertence

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do Pertence era o Departamento Jurídico da minha empresa”.

Cassado pelo regime militar, Pertence dedica-se inteiramente à advocacia a partir de

1969. Cria, com outros colegas, a Sociedade de Advogados Nunes Leal. Mas, em lugar de

se acomodar, faz de sua carreira uma militância sem trégua pela redemocratização do País.

Presos políticos estavam em sua lista de clientes. “Lutei dentro das possibilidades, sobretudo,

nessa época, pela militância na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em busca de uma

retomada do processo democrático”, diz. O advogado José Gerardo Grossi, amigo desde

os bancos escolares em Minas, colega de UnB e cassado pelo AI-5 na mesma lista do

ministro Sepúlveda Pertence, lembra com certa saudade dessa OAB que teve um papel

muito importante na luta contra o arbítrio. Grossi, que também foi colega no escritório de

advocacia por mais de 15 anos, entre 1969 e 1985 – período em que ambos defenderam

presos políticos - destaca a capacidade do amigo. “Eu o reputo como a melhor cabeça

jurídica em matéria de Direito Público”, diz.

Hoje o ministro se sente um pouco distante do calor das ruas. É com certa resignação

que fala da sua atual rotina, que limita o contato com a cidade à imagem que lhe chega

pela janela do carro que o transporta pelos cerca de dez quilômetros que separam a

porta do elevador do prédio onde mora, numa quadra residencial de B r a s í l i a ,

à porta do elevador do Supremo Tribunal Federal (STF),

seu principal local de trabalho há quase 15 anos, ou do

Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde atualmente exerce

a presidência pela segunda vez. O ritmo de trabalho no

seu gabinete do Supremo é intenso, e seus funcionários,

meio sem jeito, já perguntaram se podiam encomendar

mais arquivos para acondicionar mais e mais pastas com

processos. O gabinete está localizado num belíssimo

prédio de forma elíptica e de fachada espelhada, chamado

prosaicamente de Anexo 2, construído há seis anos para

atender ao extraordinário aumento de demanda da mais alta instância judicial do País. A

decoração do gabinete é muito austera e nem as gravuras penduradas na parede conseguem

dissimular o espaço ocupado pelas pastas dos processos. A rotina do trabalho ou a pompa

do cargo não conseguem esconder o desconforto com o aumento da altura das pilhas

de processos, com essas montanhas de pastas de cores pastel que são evidência de uma

profunda anomalia no funcionamento da justiça. Ele descarta de entrada o raciocínio mais

simplista que sugere o aumento de juízes e de estrutura para melhor enfrentar a demanda

do Judiciário. “Como todo apego à utopia, ela às vezes é uma boa desculpa para não fazer

nada, porque efetivamente com os bolsões de miséria com que convive o país, é manifesto

que não podemos pensar numa solução que seja a multiplicação sem fim de uma máquina

judiciária que é necessariamente cara”, pondera. Para ele, “é preciso investir, sobretudo, na

simplificação de tudo aquilo que possa ser simplificado nos procedimentos judiciais”.

O ministro Sepúlveda Pertence, assim como foi uma das vozes mais atuantes ao exigir

o restabelecimento do estado de direito no País, é hoje um dos mais firmes defensores de

um esforço de racionalização administrativa, além de uma eventual reforma do Judiciário,

tanto no texto constitucional quanto na legislação ordinária. Ele constata que muito do que

se fala em termos de reforma do Judiciário é visto como reforma constitucional, quando na

verdade os maiores problemas a serem tratados se encontram na primeira instância, isto

é, não precisam de soluções via emenda constitucional, mas sim alterações processuais,

soluções alternativas e racionalização administrativa.

Fazendo jus à escultura de Dom Quixote de la Mancha de seu gabinete, o ministro

Sepúlveda Pertence é também um defensor de um órgão nacional de planejamento e

administração superior, algo similar ao Conselho da Magistratura existente em países da

Europa. Ele considera que o Judiciário brasileiro precisa de um mecanismo de controle

disciplinar supletivo das instâncias administrativas normais do Judiciário. Como a maioria de

seus colegas, reage à expressão “controle externo”, porque é consciente da tradição de

independência e do uso freqüentemente político dado a essa expressão. O desenho do

sistema brasileiro, de autonomia e independência administrativa, se fez a partir de uma visão

atomizada e por isso exige algum mecanismo disciplinador, segundo avaliação do ministro.

“Hoje há mais de uma centena de tribunais, em que cada um se assume como uma ilha

absolutamente autônoma e aplica de forma diferente a mesma lei. Por isso, este órgão

central me parece essencial”, diz o ministro.

Posições como esta não raramente deixam de encontrar consenso. Entre os 11

ministros do Supremo as discussões podem ser bastante acaloradas, mas sempre há alguém

que consegue esfriar os ânimos com uma intervenção fulminante. O ministro Sepúlveda

Pertence tem exercido esse papel de desarmador dos espíritos, até no Plenário da Corte.

Quem vive a rotina do tribunal conta que no debate de um processo de extradição de um

cidadão norte-americano de sobrenome Walker a argumentação acalorada de dois ministros

foi interrompida por um aparte de Sepúlveda Pertence que queria saber quem era esse

Walker, já que ele só conhecia um, o Johnnie Walker!

Como bom mineiro (nasceu em Sabará e estudou na

Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte) o

ministro é conhecido por sua paixão pelo Atlético Mineiro, que

considera uma religião. Mas toda essa mineirice não o impede

de dizer com franqueza o que pensa. Recentemente, ao falar

durante a cerimônia de formatura de alunos de direito de uma

faculdade particular de Brasília, Sepúlveda Pertence afirmou que o

Poder Judiciário brasileiro passa atualmente por sua pior crise de

credibilidade. O discurso do ministro foi notícia de destaque nos

principais jornais do País. “ A crise judiciária brasileira alcançou nos

últimos anos dimensões inéditas, que se desdobram a cada dia em prismas de dramática

gravidade. É amargo ser juiz honrado no Brasil de hoje. E honrada, não duvidem, é a imensa

maioria da magistratura brasileira”, trasncreveu o jornal O Globo.

Mas ao lado de frustrações como esta, Sepúlveda Pertence contabiliza avanços como

o promovido pela nova estrutura do Ministério Público. “Não tem paralelo no mundo, tal

a amplitude de poderes, de atribuições e de garantias de independência que o Ministério

Público brasileiro passou a ter”, avalia o ministro. O atual procurador geral da República,

Cláudio Fonteles, o considera um divisor de águas na história da instituição. “Quando, em

1985, foi escolhido pelo então presidente José Sarney para o cargo, liderou um grupo

de jovens procuradores na definição do órgão num novo contexto histórico. A partir daí

nasce a concepção de que, num verdadeiro Estado Democrático de Direito, organizações

e movimentos sociais legitimam-se ao questionar a condução de atos e contratos

administrativos e à persecução criminal daqueles que agridem o bem público. Pertence é o

artífice e construtor de um novo tempo, em que o Ministério Público passou a ser a voz da

Sociedade brasileira diante do Poder Judiciário”, disse Fonteles.

Sepúlveda Pertence, como presidente do TSE, além de organizar as eleições

municipais do ano próximo, tem viajado pela América Latina para assinar acordos de

cooperação que se traduzem na exportação do sistema eletrônico do voto. As urnas

eletrônicas brasileiras estão sendo emprestadas do México até a Argentina, com excelentes

resultados. Mas longe da pompa da vida oficial ou das cerimônias a que seu cargo lhe obriga,

ele preferiria voltar à leitura de um despretencioso romance policial de Georges Simenon

ou tirar uns dias de folga para sair da estressante rotina numa praia distante em companhia

de mulher, dona Suely, e os netos.

“É preciso investir,

sobretudo, na simplificação

de tudo aquilo que possa

ser simplificado nos

procedimentos judiciais”

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO

No Brasil, o senhor foi hostilizado, perseguido pelos militares e até hoje é acusado de impedir que o progresso chegue à sua região. Ainda assim se sente bem e quer ficar neste País?

D. Pedro Casaldáliga - Sim, sim, sim (risos). Eu sei que quem me acusa não merece uma excessiva consideração neste particular. Quem me acusa está interessado demais em lucro próprio e é bastante menos brasileiro do que eu. Porque quando se fala em progresso cabe perguntar: progresso a serviço e a favor de quem? Progresso a custa de que e de quem? Eu sou o primeiro a querer o progresso. Temos trabalhado bastante aqui na região pela reforma agrária, pela organização do povo, pela saúde, pela educação, pelas comunicações, pela intersolidariedade. Acho que tudo isso é progresso. E me parece muito mais verdadeiro progresso do que implantar o latifúndio.

O Brasil melhorou ou piorou nestes 35 anos?

Apesar dos pesares, eu sou o homem da esperança. Evidentemente que neste 35 anos tem crescido a consciência. Saímos de uma ditadura militar e estamos em uma democracia. Mais ou menos formal, mas é uma democracia. O povo vem se organizando, sobretudo em áreas que permaneciam caladas, como os indígenas, os afro-brasileiros, as mulheres, o mundo camponês. Estamos vivendo esta força viva do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que interesses espúrios e arcaicos estão querendo satanizar, mas que é um dos melhores exemplos de consciência, de organização e de participação do povo na América Latina. E numa área que é vital, que é a reforma agrária. Nestes aspectos todos é evidente que o Brasil tem melhorado.

Mas há muitos problemas. Por exemplo, a violência está aí e cresceu, não só no Brasil, mas no mundo. E ainda estamos sob o neo-imperialismo neo-liberal que massacra no mundo inteiro e que impede inclusive que muitas iniciativas a favor do povo possam se realizar. Infelizmente, estamos dependendo do FMI e do Banco Mundial. Carregamos uma pesadíssima dívida. O governo Lula é um governo misto, um governo feito de várias alianças, num leque relativamente grande. E onde há alianças há concessões. O próprio Lula nos dizia na visita que fez aos bispos na assembléia da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil): os senhores não esqueçam que nesta máquina somos intrusos. Eu sinto, eu sei que Lula gostaria de poder governar de outro modo.

O senhor acha corretas as ocupações do MST?

As ocupações de terra são legítimas. Altas figuras do Poder Judiciário, além de advogados, procuradores, professores de direito consideram constitucional ocupar terras. A propriedade rural deve cumprir funções sociais. Quando não cumpre, deve-se partir para uma solução, que às vezes poderá não parecer legal, mas é mais do que legítima. Eu sou plenamente a favor destas ocupações. Evidentemente que sem violência. Por outra parte, todos sabemos que todo o latifúndio particular é nefasto e iníquo.

Por que?

Porque a acumulação é necessariamente exclusão. E ainda com muita freqüência o latifúndio é monocultural. A monocultura é um atentado à natureza. Está mais do que comprovado historicamente que enquanto houver latifúndio não haverá justiça e por isso

18

E n t r e v i s t a D . P e d r o C a s a l d á l i g a

o bispo de São Félix do Araguaia, D. Pedro

Casaldáliga, está prestes a pendurar as

chuteiras. Ou melhor, a mitra. Ao completar

75 anos, pediu sua aposentadoria ao Vaticano, por força

da lei canônica, que impõe aos bispos o afastamento do

cargo nesta idade. “Mandei a carta de renúncia ao papa.

Dois meses depois, recebi a resposta. Aceitavam minha

renúncia, mas me pediam que continuasse até que

chegue o sucessor. Estou esperando”, conta.

D. Pedro, espanhol da Catalunha, chegou ao

Brasil aos 40 anos, em 1968, “o ano do AI-5”. Daquela

época até hoje, seu endereço foi um só: a prelazia de

São Félix: uma cidadezinha perdida na Amazônia Mato-

grossense.

Em plena ditadura militar, D. Pedro manteve sua

postura combativa, o que lhe valeu pelo menos duas

tentativas de assassinato e diversas acusações. A mais

grave foi a de colaborar com a Guerrilha do Araguaia,

que se organizava a algumas centenas de quilômetros

dali (leia matéria na página 6). Homens do Exército

vigiavam a prelazia, assistiam às missas disfarçados e

uma vez fizeram uma busca por suspeitos que incluiu até

uma revista na caixa d’água.

Na Igreja, D. Pedro é tido como uma figura

polêmica, com críticas ao conservadorismo dominante,

à atuação da Igreja, aos colegas e ao próprio papa. Entre

políticos e proprietários de terra da região e inclusive

ente seus próprios fiéis, D. Pedro é conhecido como

alguém que impede a chegada do “progresso” à região.

Ele é contra hidrovias, contra desmatamentos, contra

queimadas, contra as grandes lavouras. E é a favor da

causa indígena, da reforma agrária, da preservação dos

recursos naturais, da distribuição eqüitativa da riqueza.

Envolvido em tantas questões tão polêmicas quanto

importantes para o País, D. Pedro tornou-se uma figura

fundamental para os brasileiros. Certamente, a história

seria diferente sem ele.

Agora, ao aposentar-se, pretende continuar

vivendo no País. “Meu sonho era ir à África, mas não

estou bem de saúde. Seria só para dar mais problemas à

pobre África, que já tem muitos”, diz. Teria a opção de

voltar para a Espanha, onde vivem seus parentes. Mas

quer continuar no Brasil. De preferência em São Félix,

no coração do País.

De lá, ele concedeu a seguinte entrevista, por

telefone, ao editor do Jornal do Magistrado, Warner

Bento Filho.

O intruso

O bispo de São Félix: ‘‘o próprio Lula nos disse para não esquecermos que nesta máquina somos intrusos’’.

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OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO OUTUBRO A NOVEMBRO DE 2003 JORNAL DO MAGISTRADO

mesmo não haverá paz.

A que o senhor atribui o agravamento da violência no País?

Em grande parte, por não se resolverem os problemas sociais básicos. Estou plenamente convencido de que se os lavradores todos tivessem terra, se todas as famílias tivessem moradia, se todos os trabalhadores e trabalhadoras tivessem emprego, os índices de violência desabariam. Há uma violência matriz, mãe de todas as violências que é a dramática situação social.

O senhor chegou ao Brasil aos 40 anos, há 35 anos. Se chegasse hoje, com a mesma idade, o que o senhor acharia que seria mais importante fazer? Iria para a Amazônia?

D. Pedro Casaldáliga - Sim, para a Amazônia. Porque hoje estamos vivendo inclusive um problema urbano na Amazônia. No Brasil temos vivido, além do êxodo rural, o êxodo urbano, da cidade para o campo. Muitos membros do MST são citadinos. Gente sem emprego. Só em São Paulo há um milhão e seiscentos mil desempregados. Muitos deles vêem no campo uma perspectiva de futuro, de paz, de liberdade e este campo em grande parte é a Amazônia, com tudo o que ela significa. Ela não deixa de ser um reservatório de vida para o Brasil, para os países limítrofes e para a humanidade. Eu sugeri para a CNBB que a Campanha da Fraternidade para o ano 2005 deveria ser a Amazônia. E a CNBB efetivamente assumiu a região como um desafio específico e urgente.

O senhor é testemunha da ocupação da Amazônia há 35 anos. Como vê este processo?

D. Pedro Casaldáliga - Primeiro, há uma grande falta de sensibilidade ecológica. Não no sentido romântico da palavra, mas no mais realista possível. A natureza não é inesgotável. Os recursos da água são limitados. Os recursos da floresta são limitados. Até o ar é limitado. Como recordava Ghandi, no universo há recursos para toda a humanidade e muito mais humanidade que houver. Mas não há recursos para o esbanjamento. Para o consumismo enlouquecido, para a exploração descontrolada.

Em segundo lugar, a Amazônia tem sido ocupada fundamentalmente por impérios, por oligarquias, por latifúndios. Nos 35 anos que estou aqui, 80% da área entre Barra do Garças e a divisa do Pará foram desmatados. Pasto, pasto e pasto que muitas vezes sequer são aproveitados. Áreas infinitas de pasto e umas pingadas cabeças de gado.

Depois, a cobiça do minério, a cobiça da madeira, a cobiça hidrelétrica, a falta de uma verdadeira política rural, agrária, de uma verdadeira política energética.

A Funai tem uma nova relação com os índios, inclusive...

D. Pedro Casaldáliga - (interrompendo a pergunta) Olha, a Funai, como reconheceu o próprio ministro Dirceu (José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil) está sucateada. O problema da Funai não é trocar de presidente. Em 35 anos foram nomeados 31 presidentes. Isto já indica que o problema não são os presidentes, mas a instituição. A causa indígena deveria ser diretamente vinculada à Presidência da República. O pior crime que a gente poderia cometer contra a causa indígena seria terceirizá-la, deixá-la a mercê de um prefeito ou de um governador de estado ou de entidades.

É correta a relação da Igreja Católica com os índios?

D. Pedro Casaldáliga - Ao longo dos séculos, como Igreja temos pecado muito (risos). No famoso mal chamado descobrimento, na evangelização compulsória, ao andar de braços com os impérios e com as oligarquias. Felizmente, nas últimas décadas, a partir de um famoso encontro de antropólogos na Ilha de Barbados, lá pelos anos 50, a Igreja reagiu em alguns setores e concretamente no Brasil criamos em 1972 o Cimi, Conselho Indigenista Missionário. Teria sido bem pior a sorte dos povos indígenas do Brasil se nestes últimos anos não tivesse existido e atuado o Cimi. Como seria bem pior a sorte do povo camponês no Brasil se não tivesse atuado a CPT.

Como o senhor vê a conversão dos índios ao cristianismo?

D. Pedro Casaldáliga - Nós cada vez mais temos chegado felizmente à conclusão de que a fé não se pode impor de nenhum modo. Que cada povo tem direito a viver a sua religião e cada pessoa tem direito a uma plena liberdade religiosa, que é uma espécie de liberdade básica de consciência. Se algo não pode ser imposto é a religião.

A CPT vai passar a trabalhar o problema da água?

D. Pedro Casaldáliga - Sim. Há algumas semanas, um pouco de brincadeira e um pouco

sério eu lancei a idéia de que a CPT deveria se chamar Comissão Pastoral da Terra e da Água, mas de fato já nos últimos anos, nas duas últimas assembléias nacionais, tem-se acentuado a preocupação com a problemática. Porque sabemos que o nosso planeta é o Planeta Água. E sabemos que nós somos corpo-água. E que a água está sendo cada vez mais o bem fundamental, patrimônio da humanidade ameaçado.

Segundo análise dos especialistas, neste século haverá guerras por causa da água. Já há praticamente há um bilhão de pessoas no mundo que não têm acesso à água potável.

A CNBB escolheu, para o ano de 2004, a água como tema da Campanha da Fraternidade.

O que a CPT pode fazer por esta questão?

D. Pedro Casaldáliga - O nosso trabalho basicamente é conscientizar, conscientizar, conscientizar. Também denunciar, denunciar, denunciar e, sobretudo, estimular a organização do povo, as reivindicações em nível nacional, internacional ou local. Cada vez mais se está vendo que há soluções locais. Há, por exemplo, esta campanha de um milhão de cisternas. Uma campanha possível que está dando efeito.

O senhor defende que o papa também deve se aposentar?

D. Pedro Casaldáliga - Acho que seria mais normal. Não me parece oportuno um cargo vitalício.

Por que?

D. Pedro Casaldáliga - Quando chegamos a uma certa idade, somos limitados. O papa também é um ser humano. As vezes a atuação do papa dá até pena, parece uma figura violentada por ter que cumprir espartanamente uma missão. Além do mais, ninguém é indispensável neste mundo. Reconheço no papa uma postura heróica, não discuto de maneira nenhuma, mas me pareceria normal que, pela idade, que já é muita idade, renunciasse. Deveria fazê-lo aos 75 anos, como os bispos, deixando espaço para novas lideranças.

O senhor pretende se aposentar efetivamente?

D. Pedro Casaldáliga - Do Evangelho e do Reino de Deus evidentemente que não vou me aposentar (risos). Só que eu não vou responder diretamente por uma diocese. Nisto consiste a aposentadoria. Eu continuarei fazendo o trabalho que eu posso, de evangelização, as celebrações. Como eu ainda não decidi o que eu vou fazer de concreto, onde vou morar, não tenho programa. Tenho sobretudo a esperança.

Com posições tão progressistas, o senhor se sente à vontade dentro de uma instituição tão conservadora como a Igreja Católica?

D. Pedro Casaldáliga - As instituições todas, explicavelmente, tendem à segurança, ao controle e a uma certa uniformidade. Nós o que fazemos é pedir cada vez mais o legítimo pluralismo. E a aculturação da fé evangélica, da fé cristã nas diferentes áreas do mundo. Evidentemente que se pode e se deve viver o cristianismo de um modo na Holanda e de outro no interior da Amazônia, sendo o mesmo Evangelho, sendo a mesma fé. Inclusive, ao longo dos séculos, a explicitação da fé e a expressão comunitária da fé variam também. Os princípios básicos são os mesmos, mas a expressão e a forma de doutrina é diferente. Há uma liberdade hoje que não se dava antes. Até se considerou natural a escravidão e hoje achamos isso uma aberração absurda. A Igreja na América Latina teve escravos em certos conventos e em certas dioceses. Ainda na Igreja a mulher não tem o pleno reconhecimento em igualdade com o homem. Há problemas que são um pouco frutos de um processo histórico. A Igreja acontece na história e é afetada pela história e deve afetar a história.

Como o senhor vê a Justiça brasileira?

D. Pedro Casaldáliga - Olha, eu estou muito preocupado com o Poder Judiciário do País. Tenho uma mágoa no coração. Tenho muito respeito por certas figuras, que merecem até carinho, e eu poderia citar vários nomes. Mas o Poder Judiciário necessita uma reforma. Estou torcendo para que se faça, além das outras reformas que se anunciam, fundamentalmente uma boa reforma agrária e uma boa reforma do Judiciário.

Para o senhor, o que deveria mudar?

D. Pedro Casaldáliga - Não sou especialista, mas espero ver um poder Judiciário renovado, livre, que seja realmente a palavra da justiça para o povo brasileiro.

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