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IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5
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JÚLIA NÓBREGA – HISTÓRIA DE VIDA DE UMA PROFESSORA DE PIANO
Vania Claudia da Gama Camacho [email protected]
(UFPB)
Resumo
O presente trabalho é um recorte de tese de doutorado em andamento sobre o ensino de piano na Paraíba historiografado a partir das vozes das professoras de piano. Trata‐se de uma pequena biografia de uma das quatro professoras entrevistadas de nossa pesquisa. Ao estudar a professora de piano Júlia Guerra Nóbrega adentramos na história da música de Alagoa Grande particularmente da Instituição Religiosa, Colégio do Rosário do qual a professora foi aluna e, também da instituição de ensino musical, Escola de Música Anthenor Navarro, localizada na cidade de João Pessoa. Nesta escola a professora Júlia foi aluna e professora, o que nos faz entender as configurações do ensino pianístico a partir de duas perspectivas, da discente e da do docente de música.
Palavra‐chave: Biografias de Professores. Ensino de Piano. Professores de Piano.
Júlia Guerra Nóbrega nasceu em 28 de maio de 1912 no município de São Mamede
que à época pertencia a Santa Luzia de Sabugi, atual Santa Luzia. Seu pai, José Claudino de Barros
lidava com a agricultura e sua mãe Felícia de Araújo Guerra cuidava das coisas de casa. Teve uma
infância feliz e tranqüila, aos quatro anos de idade, porém, passa a residir em Alagoa Grande com
os avós, Manoel Corrêa Guerra e Rosalina de Araújo Guerra, só saindo de lá em 1940. A vida difícil
do sertão foi responsável pela sua migração, ela mesma descreve com a precisão de sua memória
a chegada em Alagoa Grande após viagem a cavalo: “Eu vim pra Alagoa Grande, onde meus avós
moravam, então, cheguei muito queimadinha do sol, aí meu avô disse: Isso é uma malvadeza! Essa
menina não volta mais!. Aí eu fiquei com eles. E meus pais continuaram lá no sertão [...]” (D. Júlia
Nóbrega).
A vida em Alagoa Grande sob tutela de seus avós maternos trouxe à Júlia a
concretização de uma vida melhor, inclusive é nesta cidade que vem a desenvolver suas aptidões
musicais de pianista e de professora de música. Em suas recordações sobre as origens de sua
tendência musical Júlia aponta que em sua família sempre houve este contato com a arte musical.
Seu pai, por exemplo, tocava um instrumento de sopro que ela não recorda ao certo qual era e,
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sua mãe dedilhava o violão, além de cantar, o que proporcionava momentos agradáveis na família.
É em Alagoa Grande, portanto, que D. Julinha, nome pelo qual é conhecida por todos, têm a
oportunidade da educação formal na escola e com esta, a educação formal musical. Em 1920, com
apenas oito anos de idade, Júlia começa a estudar música ‐ o piano e a teoria musical ‐ que eram
ministrados no Colégio Nossa Senhora do Rosário, educandário da cidade dirigido pelas irmãs
Dorotéias.
Figura 1. Júlia Guerra no quintal da casa de seu avô em Alagoa Grande – maio de 1933.
Fonte: Acervo pessoal de Júlia Nóbrega, foto cedida à autora.
No início do século XX a cidade de Alagoa Grande passava por um momento especial
de grande desenvolvimento econômico e social. Situada no brejo paraibano, vizinha a cidade de
Areia, já na década de 20, segundo Moura (2001, p.28), “era a Rainha do Brejo, com seus 26
engenhos moendo o açúcar da região e a Wharton Pedroza beneficiando e exportando a produção
algodoeira”. A linha férrea, controlada pela empresa inglesa Great Western Railway, que havia
sido construída pelo empenho de Apolônio Zenaide, desde 1901 encurtava a distância, facilitando
a chegada e escoamento de produtos, além de promover o intercâmbio cultural e de informações
que chegavam da capital, Parahyba e de Recife, tais como as que eram veiculadas pelos jornais A
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União e o Diário de Pernambuco. A energia elétrica inaugurada em 08 de dezembro de 1920, na
gestão de Heretiano Zenaide Peregrino de Albuquerque, determina uma nova etapa na cidade que
respirava progresso. Nesta época são inaugurados: o primeiro cinema da cidade ‐ Cine Brasil, o
primeiro hospital ‐ O Centenário, o Clube Recreativo 31, o Nordeste Esporte Clube, a Caixa Rural, a
beneficiadora de algodão Anderson Clayton, e as duas primeiras revendas de automóveis do
interior do estado – a Ford e a Chevrolet.
É neste cenário de prosperidade que o Colégio Nossa Senhora do Rosário é construído
com a subvenção das personalidades mais influentes da cidade, segundo Moura (2001, p.28) “O
dinheiro circulante permitia à elite local não aguardar pelas ações do poder público. Dava‐se a
esses mimos, respirando ares de civilização”. Em Alagoa Grande: sua história, Freire (1998) indica
nota publicada em 20 de novembro de 1920, no jornal O Monitor referindo‐se a conclusão de
várias obras na cidade e ao seu progresso, entre as obras e medidas educativas podemos destacar:
o Colégio Nossa Senhora do Rosário, o Colégio São Luiz, a Banda de Música Peregrino de Carvalho
além de seis escolas primárias instaladas na cidade.
Sem dúvida o Colégio Nossa Senhora do Rosário servia a mais polida e fina camada da
sociedade alagoa‐grandense, no que Júlia Nóbrega se encaixava perfeitamente. Esta elite
necessitava de um colégio para formação escolar de suas moças. D. Julinha relata ter sido uma das
primeiras alunas a estudar no colégio que foi fundado em 1919, graças ao empenho do padre
Firmino Cavalcanti de Albuquerque.
Eu fui uma das pioneiras, 1919 [...] a estudar no colégio. Porque ele foi fundado em 1919. Então, nessa época eu tinha 7 anos. No ano seguinte eu comecei a estudar piano. Comecei com a teoria com a diretora do colégio chamada Julieta (Júlia Nóbrega).
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Figura 2. Em 1919, Júlia Nóbrega aos sete anos de idade em sua primeira comunhão no Colégio de Alagoa Grande
Fonte: foto cedida do acervo pessoal de Júlia cedida à autora.
A história desta instituição é um capítulo da história de Alagoa Grande pois esta
acompanhou e formou gerações, sendo considerada uma das três melhores da Paraíba. Mas o
sonho do padre Firmino de construir em Alagoa Grande um colégio de freiras só se concretizou
com o apoio de grande parte da cidade que mobilizada otimou forças para tentame. Segundo
Freire (1998, p.82) houve um verdadeiro mutirão onde todos os segmentos da sociedade deram
sua parcela de contribuição, desde o prefeito, plantadores de algodão, senhores de engenho,
fazendeiros, comerciantes, até pessoas de baixa renda. O terreno onde fica o educandário, que
seria utilizado para erguer uma cadeia, teve as obras paralisadas por interferência do juiz
Francisco Peregrino Montenegro e do prefeito Felix Guerra, foi comprado e posteriormente doado
pelo coronel Eufrásio de Arruda Câmara, já a madeira utilizada na construção, foi doação do
capitão Raimundo Onofre Marinho, proprietário da Fazenda Gurinhenzinho. Parte dessa história
encontra‐se resumida abaixo:
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Nos idos de 1918, três freiras da ‘Ordem das Dorotéias’, vinham do convento da cidade de Olinda, para a cidade de Bananeiras em nosso estado, com destino ao colégio dessa Ordem ainda hoje lá existente. A viagem era de trem, e quando chegaram ao povoado de Camarazal, atual cidade de Mulungú, onde havia uma estação (parada) e um cruzamento de linhas de trem, houve a costumeira baldeação, e elas que haviam descido com outros passageiros, no momento de ‘pegarem’ o trem em que viajavam, se enganaram e ‘pegaram’ o trem que vinha para a nossa cidade. Quando perceberam o engano já era tarde demais. Aqui chegando, procuraram a Casa Paroquial e se apresentaram ao padre coadjutor alagoagrandense Firmino Cavalcanti de Albuquerque (o vigário era Luiz José de Araújo, itabaianense) posteriormente vigário e cônego, que as tranqüilizou e providenciou a hospedagem das mesmas na residência de uma solteirona muito católica, conhecida como ‘Dona Cidade’, na hoje Rua Getúlio Vargas, 658, nas proximidades da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem. No dia seguinte, o padre Firmino, comunicou o ocorrido à provincial (superiora delas) em Olinda, e fez ver à religiosa que não permitiria a saída das mesmas de nossa cidade, pois das três precisava para começar a luta pela construção de um Colégio de Freiras. (FREIRE, 1998, p.82)
Figura 3: Colégio do Rosário em Alagoa Grande
No Colégio do Rosário as meninas tinham aulas, entre outras matérias, de música e
trabalhos manuais. Parece ato comum, a atividade musical nos colégios religiosos do século XIX e
de primeiras décadas do século XX. O aprendizado musical, primordialmente, fazia parte de um
ideário da formação escolar feminina, estava presente de forma cristalizada em um currículo que
continha “disciplinas que favoreciam o desempenho da mulher como mãe, esposa e dona de casa”
(TOFFANO, 2007, p. 51). Destacavam‐se nesse ideário feminino as atividades de bordado,
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aprendizagem de línguas, geralmente francesa, e atividades artísticas de dança e música, sendo as
mais freqüentes – a música vocal e o piano.
Consta nos registros da época que a música tinha um lugar sedimentado no currículo das disciplinas oferecidas, principalmente nos colégios particulares ou no ensino em domicílio, como um das prendas domésticas femininas ou como forma estreitamente associada a essas prendas (TOFFANO, 2007, p.51)
A formação educacional oferecida por estas instituições visava antes de tudo uma
formação humana e não deveria ultrapassar determinados limites sociais que deslocassem a
mulher de seu papel social. Deste modo, as instituições confessionais que abrigavam o ensino da
música não tinham a intenção de preparar pianistas ou formar professoras de música. O
conhecimento musical ministrado, em sua maioria reproduzido de instituições confessionais
europeias de onde cada ordem instalada era originada.
O ensino da música nos educandários religiosos era possuidor de uma confiabilidade
que a sociedade expressava através da aceitação e do orgulho de possuir damas bem educadas. O
dedilhar do piano estava restrito às famílias de posses que eram as que poderiam ter acesso à
aquisição tanto do bem cultural como do material – o instrumento piano. Toffano (2007) acredita
que o mundo pianístico era um mundo feminino, principalmente porque era uma atividade ligada
as coisas domésticas, além disso, tocar piano era sinônimo de possuir refinamento e cultura,
qualidades estas que toda moça deveria possuir para ser um bom partido para o casamento. Era
um instrumento, portanto, que se adequava às necessidades prementes de ascensão cultural da
elite paraibana. O ensino pianístico nas escolas religiosas, portanto, era de acesso restrito ao
gênero feminino visando uma proposta educativa porém não profissionalizante. Nas instituições
de ensino religioso masculinas raramente se encontravam a música e especialmente a disciplina
piano em seus currículos.
Esta situação nas escolas laicas de ensino musical do século XIX, porém, se encontrava
invertida. Segundo Toffano apud Saffioti (2007, p.51) havia uma predominância do gênero
masculino nestas instituições, mas
[...] a partir do último decênio do Império, sempre predominou o elemento feminino, pois a música foi e ainda é tida como atividade apropriada ao sexo feminino. Enquanto existiu a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional,
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houve uma ligeira predominância do sexo masculino sobre o feminino [...] em 1882, 100 alunas contra 37 alunos (TOFFANO, 2007, p.51‐52).
Toffano (2007) considera ainda que o ensino da música ao passar a ser realizado de forma
laica, começou a ser repreendido em diversas circunstâncias. Era no mínimo uma atitude ousada
para a mulher que se dispusesse estudar nestas escolas musicais, principalmente porque o acesso
ao conhecimento, que era restrito ao mundo masculino, conduzia a mulher à independência e à
profissionalização. O acesso ao conhecimento musical nas instituições confessionais, portanto, não
oferecia tanto ‘perigo’ à sociedade, e assim, deste modo, foram surgindo professoras de piano e
pianistas sem uma preocupação mais explícita com o desenvolvimento de habilidades para o
exercício de uma profissão de musicista. O ensino do piano
[...] embora estivesse incluído num contexto da educação formal, o instrumento não alcançava em nenhum momento valor algum em termos de profissionalização. Era apenas mais um item no acervo das chamadas ‘prendas domésticas’ necessárias para se fazer um bom casamento e, assim, exercer as funções de esposa e mãe dedicada, papéis para os quais a educação feminina deveria ser orientada e bem cristalizada. (TOFFANO, 2007, p.52)
Em Alagoa Grande existia além da escola de música e do curso de piano que
funcionava dentro da Instituição religiosa do Rosário, outra escola de música provavelmente de
caráter laico e particular. Freire (1998, p.31) nos traz notícias da existência dessa escola musical já
em 1908, onze anos antes da fundação do colégio. Esta escola de música de Alagoa Grande
possuía cerca de 100 alunos, “[...] nos tempos áureos, cinco em cada mil habitantes chegam a
freqüentar suas salas de aula [...]” (MOURA, 2001, p. 29); fato inusitado para uma cidade
nordestina e de interior, mas ao mesmo tempo revela o gosto e o interesse existente na sociedade
pela formação musical do cidadão alagoa‐grandense. Segundo Freire o ensino na escola
Era uma espécie de ensino rudimentar ou primário, nem por isto menos útil à vida local, visando primordialmente a formação de bandas que tivemos: a Peregrino de Carvalho e a Maciel Pinheiro, filiadas a clubes e políticas rivais, a última, fundada por Ernesto Cavalcanti.” (FREIRE, 1998, p.31).
Como temos poucos relatos sobre esta escola de música em Alagoa Grande fica difícil
aquilatar como era seu ensino e se existia o ensino de piano nesta entidade. Podemos apenas
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concluir que se era uma escola primordialmente para a formação de bandas, coisa muito comum
nas cidades interioranas do nordeste, dificilmente poderia haver o ensino de um instrumento
como o piano e provavelmente o lugar da mulher nesta escola era quase inexistente.
Nas primeiras décadas do século XX, em Alagoa Grande, o aprendizado pianístico, de
forma genérica, era ainda elitizado. Já havia, no entanto, um movimento educativo musical
nacional no sentido de estender o acesso a este tipo de conhecimento. Em Alagoa Grande, porém,
e particularmente D. Julinha, ainda se encontrava sob as convenções sociais e preceitos educativos
descritos anteriormente que eram impostos às mulheres de seu tempo. Como pertencia a uma
família influente da cidade, seu tio Felix Guerra foi um dos prefeitos de Alagoa Grande, Júlia tinha
plenas condições para desenvolver as habilidades pianísticas, pois possuía acesso ao
conhecimento musical formal e ao instrumento para dedilhar. No educandário do Rosário
aprendeu a arte pianística, o que era incentivada pela família a despeito do senso comum
presente à época que tratava tal atividade sem nenhum compromisso mais profundo com a
produção intelectual artística. Tal fato a respeito da mentalidade incutida na sociedade local é
retratado nas memórias de D. Julinha quando diz: “Fiz dois anos no curso normal, depois eu fiquei
noiva, aí o meu avô disse: Ah! Quem vai casar não precisa (mais) estudar. (risos) aí eu deixei, não
é?”. E quando relata o estigma de solteira e a destinação musical daquelas moças que não
casavam: “O piano veio para casa de meu avô, não é? Porque minha tia era solteira”. Contra os
prognósticos da época, e a despeito disso, D. Julinha irá se profissionalizar e mesmo após seu
casamento com Raul Onofre Nóbrega que se realiza em 1933, D Julia se mantém atuante como
professora de piano e pianista. Paulatinamente, portanto, novos paradigmas vão sendo
construídos na sociedade paraibana acompanhando os novos rumos impressos pela capital
brasileira que passa a encontrar na profissão de professora de piano e pianista um lugar também
destinado ao feminino.
No educandário do Rosário, o ensino de música, segundo Júlia, acontecia numa rotina
semanal, onde uma hora de aula eram ministradas duas vezes por semana inclusive com aulas de
piano e teoria, às vezes essa rotina era quebrada quando por razões outras as irmãs ministravam
aulas de piano aos sábados. As freiras ensinavam a técnica pianística, métodos como o Hanon – o
pianista virtuose e Czerny eram aplicados, além de obras do repertório erudito. Segundo Júlia, Sor
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Lima ensinava a iniciação ao piano e Sor Braga ministrava aulas às alunas mais adiantadas do curso
médio e superior.
[...] comecei com a teoria [...] a diretora do colégio era Julieta Braga e a minha professora de piano, a primeira, foi... a gente chamava Sor, Sor Lima, aí depois de Sor Lima, foi Sor Braga. Era Julieta Braga o nome dela, a gente chamava Sor Braga, essa era muito competente, tinha um curso no Rio de Janeiro. Na Universidade de lá, aí eu fiquei estudando até...até parece 29 ou 30 [...] fiz o ginásio lá no colégio, né?. aí tem no currículo, tem tudinho. Aí, em 1930,...aí...deixei. Fiz o curso no ginásio, depois o colégio foi equiparado ao curso normal, aí eu comecei a estudar no curso normal. Fiz dois anos no curso normal, depois eu fiquei noiva, aí o meu avô disse: Ah! Quem vai casar não precisa (mais) estudar. (rsrsrs) aí, eu deixei, não é? (Júlia Nóbrega).
As atividades no Colégio, talvez intuitivamente, aconteciam de modo a contemplar duas
vertentes importantes da formação do pianista e do professor de piano. Trata‐se do campo das
práticas pedagógicas vislumbradas nos métodos empregados pelas freiras e na proposta
pedagógica de formação musical que contemplava o ensino teórico e o ensino do instrumento; e o
campo das práticas de performance que contemplava‐se nas freqüentes apresentações musicais
que as freiras organizavam e que, segundo Júlia, aconteciam nos finais de cada ano.
Há uma confusão com relação às datas de conclusão do curso ginasial de Júlia,
segundo informações contidas em seu currículo ela cursa o Ginásio no colégio das Dorotéias de
1925 até 1928. Em sua entrevista, porém, ela relata ter terminado o ginásio apenas em 1929 ou
1930, quando então ficou parada por um tempo e recomeçou os estudos no Colégio do Rosário no
Curso da Escola Normal onde permaneceu por dois anos. Ora, o Colégio Nossa Senhora do Rosário
só foi equiparado em 1930 à Escola Normal do Estado1, portanto Júlia não poderia ter iniciado a
escola normal antes desta data. Há, portanto, uma certeza ou Júlia colocou datas equivocadas em
seu currículo, ou, o que é mais provável, permaneceu sem escola durante dois anos.
1 O colégio foi equiparado ao D. Pedro II em seu ginásio desde 1946, e desde 1948 passou a manter em um anexo a escola primária gratuita.
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Figura 4: Com colegas do Colégio Nossa Senhora do Rosário em 1932, da esquerda para direita é a segunda.
Após a conclusão do Curso da Escola Normal Júlia se dedica a ensinar piano
particularmente e tocar em ocasiões e festas em que era solicitada. Apresenta‐se inclusive como
organista da Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem e sempre com a amiga Dulce Montenegro,
professora de piano e parceira nas apresentações musicais. Dulce também era filha da elite de
Alagoa Grande, seu pai o juiz Francisco Peregrino Montenegro participou ativamente da
construção do Colégio das Dorotéias. Moura (2001) em seu livro sobre a biografia do rei do ritmo,
Jackson do Pandeiro, descreve cena em que o pandeirista trava contato pela primeira vez com o
instrumento piano na casa dos Montenegro.
Foi em um desses, na casa do juiz Francisco Peregrino Albuquerque Montenegro, que o molecote Jackson travou o primeiro contato com o instrumento. De ouvido. Vai passando pela calçada do magistrado e escuta sua filha, Dulce, treinando a escala musical: ‘Lá,lá,lá,ri,lá,lá,lá’. Pára e fica ouvindo por um bom tempo. Não consegue visualizar o objeto que emite aqueles sons, mas grava o timbre e a cadência do ‘bicho’. (MOURA, 2001, p.28‐29).
Havia, portanto, em Alagoa Grande um movimento musical formal e popular, que segundo
Moura (2001, p.29), ia se enfronhando na cidade; as moças em seus pianos, as bandas de música
da cidade, os blocos de carnaval, cantadores e violeiros da tradição popular nordestina, além
disto, o “[...]Theatro Santa Inez abria regularmente suas portas, aos de fino trato, para a
promoção de saraus regados a piano, violino e bandolim”. O teatro Santa Inez, símbolo da
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urbanização da cidade, foi inaugurado em 02 de janeiro de 1905, é um dos mais antigos da
Paraíba, na verdade o quarto para Freire (1998, p.101), “o primeiro é o Minerva, de Areia, 1859; o
segundo, O Santa Cecília, de Mamanguape, da primeira metade da década de 60 do século XIX, há
muitos anos abandonado, em ruínas; o terceiro é o Santa Roza, de João Pessoa, 1889”. Das
performances musicais executadas neste patrimônio cultural, D. Júlia recorda‐se propriamente de
duas. Foram momentos importantes quando a cidade recebeu a ilustre presença dos cantores de
ópera Gean Cavalieri e Peter Caruso, D.Julinha os acompanhou no piano na execução de duas
óperas, Marta e Tosca.
Figura 5: Teatro Santa Inez
O gosto musical alagoa‐grandense era, portanto, preemido da diversidade, o que
caracterizava a mistura ocorrida, em quase todo território nacional, da cultura nativa brasileira
com a cultura formal da tradição musical européia, que havia se infiltrado em todo território
brasileiro como sinônimo de cultura refinada. Na família de D. Julinha, o gosto musical elitizado
tentava imitar os mais refinados e polidos trazidos dos principais centros brasileiros e
conseqüentemente dos europeus. Esse cuidado com a cultura musical familiar era estimulado de
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tal forma, que já na década de 20 sua família possuía um piano. Este foi trazido dos Estados
Unidos pelo seu tio Felix Guerra e chegou na casa de seu avô para sua tia. Este piano americano de
excelente qualidade era compartilhado por D. Júlia:
[...] O piano veio para casa de meu avô. Porque minha tia era solteira. Ele trouxe também uma pianola pra ele. Aí, depois que eu me casei o piano ficou lá, estragou‐se, depois foi vendido, aí o meu esposo comprou a pianola do meu tio. Que é esse piano que eu tenho aí, era uma pianola. Tá com mais de 70 anos, foi fabricado em 1920. (Júlia Nóbrega)
Figura 6: D. Julinha ao lado de seu piano RICCA (foto tirada pela autora)
Freire (1998, p.57) nos relata que na década de 30 chegou a haver quinze pianos em
Alagoa Grande, destes, três pertenciam ao Colégio do Rosário. Antes, porém, já no final da década
de 20, encontramos referências escritas que indicam a presença do instrumento em Alago Grande,
quando
Félix de Araújo Guerra, ex‐prefeito e ex‐deputado estadual, foi de navio à Inglaterra e lá comprou 2 motores, um para gerar energia elétrica para a cidade (o motor Otto Diesel instalado em 1920 pelo prefeito Heretiano Zenaide estava paralisado) tendo montado uma ‘empresa de luz’, e outro para seu curtume São José, o atual relógio da Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem e um piano para sua residência (FREIRE, 1998, p. 57).
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Esse piano relatado nos escritos ao que tudo indica não era o instrumento trazido para casa
de seu avô, ou há um erro quanto às datas. Para D. Júlia o piano chega à residência de seu avô por
volta de 1919 ou 20 aproximadamente, quer dizer, no início da década de 20 e não no final como
nos relata Freire (1998). Outro indício na literatura escrita sobre as datas aparece em Moura
(2001) que relata ser em fins de 19 e começo da década de 20 onde se processaram as maiores
obras de modernização da cidade, inclusive a aquisição de vários pianos pelos moradores da
cidade. Há uma congruência entre as datas indicadas por Moura (2001) e as evidenciadas nas
memórias de D. Júlia. Outro detalhe não menos importante é relatado neste trecho da entrevista:
“[...] foi um tio que trouxe o piano dos Estados Unidos, pra minha tia.” (Júlia Nóbrega). Trata‐se
dos lugares para onde seu tio Félix Guerra viajava. Em outro trecho de Freire (1998, p.57) é
relatada uma viagem de Félix Guerra onde o mesmo comprou o primeiro caminhão ‐ um
International Norte‐americano ‐ do brejo paraibano, entre 1918 e 1920, provavelmente foi em
esta viagem que o piano foi adquirido para a família, principalmente porque a viagem posterior foi
realizada à Inglaterra.
Figura 7: Prefeito e deputado estadual Félix de Araújo Guerra
Fonte: FREIRE, 1998, p.315.
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Júlia relata a destinação deste piano americano, que se estragou e depois foi vendido. Já o
outro piano, na verdade, uma pianola, ainda permanece na família, visto que, após seu
casamento, seu esposo Raul a comprou de seu tio e presenteou‐a com o instrumento, que depois
de adaptado serve até hoje como um piano para seus treinos.
Quando em 1940 Júlia Nóbrega vem residir em João Pessoa, mantém suas atividades
de professora particular e pianista. Aqui, adquiri especializações em sua área de atuação, mas
estas só se concretizam a partir da década de 60. Antes disto, Júlia realiza aulas de teoria e solfejo
com o professor Gazzi de Sá2, que ao que tudo indica pelos arquivos fotográficos de D. Julinha, em
19453 ainda morava em João Pessoa e ministrava cursos de música além de reger o Coral Villa
Lobos, do qual fazia parte Júlia Nóbrega. Professor Gazzi de Sá foi uma personalidade musical de
destaque na Paraíba. É de seu curso de Piano Soares de Sá, um curso particular fundado em 1929
que funcionava em sua residência, que nasce a Escola de Música Anthenor Navarro.
Figura 8. Em 1945 alunos de piano e coral da Escola do professor Gazzi. Na primeira fileira sentados da esquerda para direita: a segunda, Therezinha Guerra, quarta, mãe de Gazzi de Sá e no colo sua filha, ao lado sobrinha de Gazzi, seguindo D. Julinha e Arimar Coimbra (sentada com vestido floral) atrás ao fundo de bigode, filho de Gazzi Fonte: foto do acervo pessoal de D. Júlia cedida à autora.
2 Gazzi de Sá nasce em 1901, estudou no Colégio Nossa Senhora das Neves e no Pio X, sua formação musical deu‐se em Salvador e no Rio de Janeiro, quando então teve a oportunidade de estudar piano com renomado pianista e crítico musical Oscar Guanabarino. Em João Pessoa realizou estudos com a professora de piano alemã Maya Fauser, exímia pianista e professora do Instituto Spencer como relatado anteriormente. Pode‐se encontrar mais detalhes a respeito da vida e dos feitos deste importante professor paraibano na tese de doutorado de SILVA (200?).
3 Pelas referências encontradas Gazzi de Sá se despede da Paraíba fixando residência no Rio de janeiro em 1947.
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Apesar de conhecer o professor Gazzi, Júlia só passa a freqüentar a Escola de Música
Anthenor Navarro anos mais tarde, quando, então, um amigo a incentiva ao estudo mais
especializado e a procurar Luzia Simões que era diretora da escola na época. É através de D. Luzia
que Júlia inicia uma nova fase em sua trajetória como professora. Por seu incentivo e orientação
se matricula no curso oferecido pela escola, faz uma prova de admissão, uma espécie de vestibular
para o Curso de Canto Orfeônico que funcionava no Conservatório de Canto Orfeônico da Paraíba,
situado no mesmo prédio da Escola de Música Anthenor Navarro. Passa nesta prova e é admitida
no curso a partir do ano de 1959.
O curso de canto orfeônico oferecido pelo Conservatório de Canto Orfeônico da
Paraíba estava moldado no mesmo formato do curso de canto orfeônico do Rio de Janeiro. Havia
sido criado em 1952 no governo de José Américo de Almeida através da Lei de nº 838 de 28 de
novembro de 1952. Dentre as disciplinas oferecidas pelo curso estavam prática de regência, teoria
musical aplicada, teoria do canto orfeônico, apreciação musical, didática do som e do ritmo,
organologia e organografia, etnografia e pesquisas folclóricas, prosódia musical, fisiologia da voz e
técnica vocal. Estas disciplinas visavam dar uma formação teórico‐prática na condução do
professor de canto orfeônico, por isto as disciplinas com o canto tinham especial destaque. D.
Julinha conclui este curso em 1962, um ano antes do curso ser extinto.
Figura 9. Vida escolar de Júlia Nóbrega durante o ano de 1959.
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Acerca do Conservatório de Canto Orfeônico da Paraíba, a primeira turma conclui o curso em 1957, chegando a formar sete turmas. Registra‐se ainda a formatura de 35 professores de Educação Artística, registrados e reconhecidos pelo Ministério da Educação e Cultura. A última turma concluiu no ano de 1963. A seguir relaciono as turmas, indicando o ano de conclusão: (os alunos e turmas foram tirados do arquivo de Eliani Bartolini) PRIMEIRA TURMA – 1957: Maria Lídia de Carvalho Atayde, Maria das mercês de Araújo Gambarra, Marne Azevedo, Neuza Nóbrega, Terezinha de Lourdes Avellar Aquino, Vilma Figueiredo Bezerril. SEGUNDA TURMA – 1958 – Beatriz, Djanira Holanda, Iracema Lucena, Irenita Bronzeado Cavalcanti, Irmã Maria Coelis, Zamir Machado Fernandes. TERCEIRA TURMA – 1959: Dalva Stella, Ione ferreira Marinho, Lucemar Navarro, Naide Martins R. Alvarenga. QUARTA TURMA – 1960 ‐: Irmã Veneranda – OSF (Ordem de São Francisco), Imã Maria de Fátima – (OSF), Eulina Maia, Glenda Jorge. QUINTA TURMA – 1961: Dinalva, Isis ferreira Marinho Nicolau, Júlia Nóbrega Guerra, Iaci Ferreira Marinho Nicolau, Maria Iraci Menezes, Maria Sirena Gurgel, Maurício Matos Gurgel. SEXTA TURMA –1962 ‐ Letícia Andrade, Zuleide Fernandes. SÉTIMA TURMA – 1963 : Célia castor, Creusa Teixeira, Laurentino Silva, Osanete, Marilda Eduardo, Ridete Lemos. (SILVA, 2006, p.101)
Havia uma nova proposta educativo‐musical que havia sido implantada por lei em
1962, o Curso Colegial Artístico, que passa a ser efetivado somente em 1963 e pertencia
institucionalmente ao Instituto Superior de Educação Musical4 preenchia os anseios de ter‐se um
curso que preparasse para a entrada no Curso Superior de Música da Universidade.
[...] finda‐se o Curso de Canto Orfeônico em 1963 e inicia‐se o Curso Colegial Artístico, implantado por lei, em 1962, mas iniciado apenas em 1963. Era um curso que equivalia a qualquer outro de segundo grau, como o científico, o pedagógico, porém com uma diferença: preparava especificamente para o curso superior de música. Constava no currículo, além das disciplinas de música, como Teoria e solfejo, Apreciação Musical, Canto Orfeônico, Estética e Apreciação às Artes, disciplinas comuns ao cursos regulares, a exemplo de Português, História, Geografia, Biologia, Inglês e Francês. O curso permitia que seus concluintes ficassem habilitados a prestar exames de vestibular dos cursos universitários e ao ingresso nos cursos superiores de música existentes no Brasil. Foi o primeiro do gênero a funcionar em território nacional. O curso Colegial Artístico funcionava nas dependências da Escola de Música Anthenor Navarro, assim como funcionou o Conservatório de Canto Orfeônico. (SILVA, 2006, p.57)
4 A Escola de Música Anthenor Navarro é o único departamento atualmente do Instituto.
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D. Julinha passa a ministrar aulas de canto orfeônico nos Grupos Escolares, dois anos no
Antonio Pessoa e aproximadamente três anos no Thomaz Mindelo. Mas sua formação continua
sendo realizada a partir de cursos de aperfeiçoamento que eram oferecidos pelo estado.
Figura 10. Carteira de professora do curso de canto orfeônico.
É sob a tutela do estado paraibano, embora as poucas subvenções, que vão sendo
oferecidos cursos de aperfeiçoamento de música para os professores, nesta época a Universidade
Federal da Paraíba apenas estava iniciando suas atividades e a maioria de seu quadro docente era
formado por parte do quadro docente da própria Escola de Música Anthenor Navarro e por alunos
que esta instituição formava. O estado durante grande parte de tempo foi responsável, embora
precariamente, pela formação dos professores de música que atuavam na Paraíba. Esta situação é
invertida a partir da década de 60, especialmente a partir da gestão do reitor Linaldo Cavalcanti
que investe maçiçamente na construção de instalações adequadas ao funcionamento de uma
escola de música, o que o estado nunca ousou fazer e na aquisição de professores e músicos
capacitados. O investimento realizado na área artística, com a conseqüente chegada de diversos
professores estrangeiros à Paraíba para incrementar o quadro docente da Universidade na década
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de 70, desloca o papel que tinha o estado para esta entidade federal, que passa até os dias atuais
a ser o principal foco de formação dos profissionais de música na Paraíba.
D. Júlia vivencia este momento de transição em duas posições distintas. Na posição de
aluna participando ativamente dos cursos oferecidos pelo Estado: Curso Elementar de Teoria e
Solfejo que foi realizado na Escola de Música Anthenor Navarro no ano de 1964, obtendo nota
dez; do Curso de Cultura Musical a cargo do padre Jaime Diniz em 1962; do Curso Intensivo de
Apreciação Musical ministrado pelo professor Gerardo Parente em 1972; do Curso de Folclore na
Educação, a Musica do Século XX, Comunicação e Improvisação através do movimento,
desenvolvimento do sentido rítmico realizado no Primeiro Encontro de Educação Artística
promovido em 1973 pelo Instituto de Superior de Educação Musical. Este Instituto funcionava na
mesma escola de música que a partir de 1973 passa a se chamar Instituto Superior de Educação
Musical. Era uma tentativa dos dirigentes de se adaptarem aos novos tempos. A Escola passou a
ter, desde então, status de escola superior do estado, talvez uma tentativa de se reestabelecer
como instituição e não perder seu lugar social, que de certa forma, passou a ser ocupado pela
Universidade Federal da Paraíba.
E na posição de professora atuando como professora de piano da Escola de Música
Anthenor Navarro e permanecendo na Instituição por 18 anos, até 1978, quando então, se
aposenta por invalidez devido uma queda, que lhe trouxe como conseqüência o deslocamento de
retina e a deixou sem a visão de um olho: “eu perdi essa visão eu ensinava na escola de manhã de
tarde e de noite, tinha as vezes aula a noite também” (D. Júlia Nóbrega). Apesar disto, manteve o
ensino particular em sua casa, onde na medida do possível, recebia algumas alunas e orientava‐as.
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Figura 11: Ficha encontrada no arquivo da EMAN que relata histórico da professora Júlia (arquivo da autora)
Estes cursos acima descritos são recorrentes nas memórias de quase todas as professoras
entrevistadas que se lembram com bastante entusiasmo referindo‐se à excelente qualidade das
aulas ministradas aos professores de piano como parte de um programa de aperfeiçoamento do
quadro docente que era planejado pela direção da escola. Nestas orientações aparece a figura do
professor Gerardo Parente.
O professor Gerardo Parente chegou em João Pessoa para ensinar no Conservatório de Canto Orfeônico da Paraíba, em 1957, depois de ter vivido no Rio, de ter ensinado na Pró‐Arte em São Paulo e de ter feito várias turnês pelo Brasil, pois já era conhecido como um excelente pianista, principalmente como um pianista de música de câmera, motivo pelo qual era convidado para acompanhar artistas de todo o Brasil e do exterior quando aqui chegavam.(SILVA, 2006, p.87).
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Esta orientação5 às professoras permitia que elas tivessem acesso às técnicas, exercícios, e
aos processos de interpretação musical refletindo sobre o ato de tocar piano e conseqüentemente
sobre as atitudes como performances e professoras. Esta atividade desenvolvida pela Escola
Anthenor Navarro e planejada pela professora Luzia Simões, diretora à época, tinham a finalidade
de aperfeiçoar o trabalho dos professores de piano que atuavam na escola de música, deste
modo, melhorando a qualidade do ensino. Adiante discorrerei sobre estes cursos mais
detalhadamente a fim observar como se processava esta forma de curso de capacitação do
docente de piano, talvez o primeiro deste porte realizado na Paraíba.
Figura 12: Júlia Nóbrega (foto de seu arquivo pessoal cedida à autora)
D. Júlia recorda especialmente do professor Gerardo Parente, pois eram em suas aulas
que ela desenvolveu uma metodologia e disciplina de estudo. Ele estabelecia às alunas horas
regulamentadas de prática do piano, uma disciplina estabelecida como método de estudo e
desenvolvimento pianístico. Além disso, ensinava a técnica do piano, e passava exercícios, que
segundo D. Julinha, todas as alunas deveriam fazer para incrementar a técnica pianística. As aulas
eram maravilhosas e davam suporte às professoras para seu desenvolvimento como docentes, 5 Muitas vezes essas aulas e encontros eram realizados na casa do professor Gerardo Parente e eram feitos na sistemática adotada em forma de aula particular, ou seja ministrados individualmente a cada professora.
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além de estabelecer uma unidade de direcionamento técnico, visto que todas elas relatam que
ensinavam tais estudos e técnicas aos seus alunos. Dentre, seus filhos quase todos iniciados em
música6, apenas a filha mais nova Vírginia Lúcia Zolhoff se especializou na atividade musical
estudando com Gerardo Parente e chegando a cursar o Curso Superior de Música em Brasília.
Do seu legado como docente D. Julinha cita João Bosco Padilha, professor e pianista, que
atualmente se encontra na Europa como assessor do grande pianista brasileiro Nelson Freire.
Contestada sobre a qualidade do ensino em sua época e como eram os procedimentos
metodológicos de ensino de piano, D. Julinha esclarece que havia um programa que era seguido,
inclusive um programa de técnica e de exercícios, “era mais músicas clássicas, música brasileira
quase a gente não estudava, era mais o clássico, era só isso...” (D. Júlia Nóbrega). Autores como
Bach e seu livro de Ana Magdalena Bach eram muito utilizados, além de Beethoven, Liszt,
Schumann, Schubert, Francisco Mignone. Quanto aos métodos utilizados “do ensino primário era o
Beyer, o pianista virtuoso, o Beringer, todos esses outros, o Czerny, era muito Czerny”. (D. Júlia
Nóbrega). Além disso, havia toda uma sistemática onde cada professor preparava seus alunos para
audições que eram marcadas em épocas determinadas.
D. Júlia teve dez filhos, sendo que nove foram criados e, atualmente tem sete filhos, trinta
e seis netos, vinte e seis bisnetos e um tataraneto. Todos de certa forma, trazem sua herança
musical impressa, tocam algum instrumento e possuem bastante tendência musical. Esta
disposição para o fazer musical sem dúvida é uma das marcas que distinguem D. Júlia de outras
personalidades musicais que fizeram história na Paraíba. Hoje, já com quase 100 anos continua
atuando como pianista, tocando todos os domingos na missa das 9 horas da manhã na Catedral
Basílica de João Pessoa e quando é solicitada em alguma ocasião especial. E sempre se sentiu
muito valorizada e respeitada por sua profissão.
[...] não nos domingos e às vezes durante a semana quando aparece assim uma missa especial, uma comemoração que alguém nos convida, tem coralzinho de lá da Basílica, aí sou eu que (rsrsrsrr) não querem me largar, gente!! Já esta na época de eu me aposentar... Não senhora!! Eu já vou completar 99 anos, já tá demais (rsrsrsrsr) (D. Júlia Nóbrega).
6 Duas ou três filhas seguiram carreira musical.
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Referências
FREIRE, José Avelar. Alagoa Grande: sua história. João Pessoa: Idéia, 1998.
MOURA, Fernando. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Ed.34, 2001.
SILVA, Luceni Caetano. Gazzi de Sá compondo o prelúdio da Educação Musical da Paraíba: uma história musical da Paraíba nas décadas de 30 a 50. Tese de Doutorado em Letras. UFPB, João Pessoa, 2006. TOFFANO, Jaci. As pianistas dos anos 1920 e a geração jet‐lag – o paradoxo feminista. Brasília: Editora UnB, 2007.