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Linguagem e epistemologia em Tomás de Aquino | 1 Linguagem e epistemologia em Tomás de Aquino

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Linguagem e epistemologia em Tomás de Aquino

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Linguagem e epistemologia em Tomás de Aquino

Ivanaldo Santos (Org.)

Ideia João Pessoa

2011

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Todos os direitos reservados. Diagramação / Capa Magno Nicolau (www.ideiaeditora.com.br)

Os textos são de inteira responsabilidade dos respectivos autores.

EDITORA

[email protected]

Foi feito o Depósito Legal

S485h Linguagem e epistemologia em Tomás de Aquino.

Ivanaldo Santos (Orgs.). - João Pessoa: Ideia, 2011. 180 p. 1. Literatura Brasileira

CDU: 869

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SUMÁRIO

Apresentação Mauricio Beuchot Introdução O “De Natura Verbi Intellectus” como texto gênese para a compreensão das teorias do conhecimento e da linguagem em Tomás de Aquino: introdução, tradução e notas Paulo Faitanin O negativo na epistemologia de Tomás de Aquino e as rationes necessariae de Anselmo Jean Lauand O problema da linguagem em Tomás de Aquino Ivanaldo Santos A linguagem da alteridade em Tomás de Aquino Sergio de Souza Salles Gêneros literários e formas do saber na Universidade de Paris do século XIII Sávio Laet de Barros Campos Da metafísica à epistemologia: a filosofia primeira Lucas Kattah Macedo Sobre os autores

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Apresentação

O livro organizado pelo professor Ivanaldo Santos

sobre a filosofia da linguagem e a epistemologia de Tomás de Aquino é de grande atualidade. Com efeito, é um livro que promove o diálogo filosófico, neste caso, principalmente, com a atual filosofia analítica, a qual teve grande desen-volvimento no século XX e que tem centrado suas invés-tigações em estudar os problemas da linguagem e do conhecimento. O presente volume é uma aproximação com esse diálogo, o qual tem dado muitos frutos, tanto para o tomismo como para a filosofia analítica.

Com justiça, deve-se considerar o professor Ivanaldo Santos como um dos representantes do tomismo analítico, o qual é uma expressão do tomismo que tem ganhado grande respeitabilidade dentro da filosofia contemporânea. Com efeito, a filosofia analítica é uma das correntes mais influen-tes dentro do cenário filosófico atual. Por sua vez, o tomismo, que está em constante diálogo com a filosofia produzida em cada século, não podia deixar de se interessar por essa corrente. Por esse motivo, tem havido notáveis autores que fazem uso do método de análises para trabalhar com a tradição tomista. Entre esses autores cita-se: Anthony Kenny, Peter Thomas Geach e John Haldane.

Nessa linha se coloca o professor Ivanaldo Santos, da UERN, no Brasil. Ele tem apresentado o diálogo entre a tradição tomista e a analítica em diversos artigos e agora nos brinda com a organização do presente livro.

Algo muito importante para a filosofia da linguagem em Tomás de Aquino é a mediação que existe entre o verbo exterior, a coisa significada e o verbo interior. Por isso, é

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fundamental o trabalho de Paulo Faitanin sobre o De natura verbi intellectus do Aquinate, o qual é o texto onde se encontra o núcleo da sua teoria do significado e, ao mesmo tempo, é o que distingue sua teoria de muitas que foram desenvolvidas contemporaneamente.

Uma comparação muito interessante realiza Jean Lauand entre a epistemologia de Tomás de Aquino e as rationes necessariae de Anselmo. É conhecido o fato do filó-sofo de Cantorbery desejar essas razões para demostrar, sola ratione, os conteúdos da fé, fundamentado pela existência de Deus, porém o Aquinate buscou um caminho mais a posteriori, com uma epistemologia mais atenta ao empírico.

Mostra-se como fundamental o trabalho de Ivanaldo Santos sobre o problema da linguagem em Tomás de Aqui-no. É a exposição da intercessão e a articulação da discussão realizada com a filosofia analítica. É precisamente o tipo de trabalho que esperam os cultivadores das análises filosóficas, às quais se pode associar Tomás de Aquino.

O ensaio de Sergio de Souza Salles sobre a linguagem da alteridade em Tomás de Aquino é muito pertinente. Essa discussão foi algo que o Aquinate desenvolveu constante-mente, pois sempre falou, de diversas formas, acerca do outro. Parodiando Wittgenstein, poderíamos dizer que Tomás se esforçou para dizer o que só se podia mostrar e que, por isso, terminou juntando o dizer e o mostrar. E uma das formas dele fazer essa junção é por meio da alteridade.

Sávio Laet de Barros Campos fala-nos dos gêneros literários e formas do saber na Universidade de Paris, no século XIII, o qual é o âmbito onde Tomás de Aquino desen-volveu grande parte de sua importante obra filosófica. Esses gêneros literários influenciaram o Aquinate a compor seu discurso.

Ademais, uma questão muito importante é abordada por Lucas Kattah Macedo, o qual discute a transposição da metafísica à epistemologia, no âmbito da filosofia primeira.

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Com efeito, Tomás de Aquino, o qual foi muito cuidadoso ao construir seu pensamento ontológico, com as condições de possibilidade do mesmo a partir da dimensão epistemo-lógica, a partir do ponto de vista semântico da mesma forma como procedeu Aristóteles.

Todos esses assuntos estão presentes no volume que temos em mãos. Por esse motivo, trata-se de um instrumento de estudo muito útil para continuar o diálogo, a partir do tomismo, com as correntes que na atualidade fazem uso da filosofia da linguagem e da epistemologia. Por tudo isso, temos que agradecer o esforço de Ivanaldo Santos, que nos entrega esse volume, produto de sua organização, e aos demais pesquisadores que contribuíram para sua realização.

Mauricio Beuchot,

UNAM, México, 2011.

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Introdução

Tomás de Aquino (1225-1274) foi o grande filósofo da

escolástica medieval. Todavia, sua contribuição ao pensamento universal não está preso à Idade Média. Pelo contrário, ao longo da modernidade, um grande número de pensadores, tomistas e não tomistas, recorreram as suas ideias para dar continuidade a suas investigações. No século XX e no início do XXI, a realidade não é diferente. Tomás de Aquino é convocado, por meio de sua vasta obra, a contribuir com os debates intelectuais. Sem Tomás é difícil pensar na história das ideias no Ocidente.

Ao longo do século XX e na primeira década do XXI, houve um esforço para se estudar uma dimensão diferente dos tradicionais estudos em torno da obra do aquinate. Estudos que o apresentam como um estudioso da metafísica e a ética. É claro que Tomás de Aquino é um grande estudioso dessas duas dimensões, mas sua obra atinge outros níveis, como, por exemplo, a lógica, a linguagem, a epistemologia e a hermenêutica.

Foi com esse propósito que, no final do século XX, surgiu o chamado tomismo analítico, o qual propõe um diálogo entre Tomás de Aquino e uma das correntes filosóficas mais influentes do século XX, ou seja, a filosofia analítica. Esse diálogo versa sobre temas importantes para a tradição filosófica e para o tomismo, como, por exemplo, a linguagem, o conhecimento e o método.

O presente livro não se enquadra diretamente na categoria de tomismo analítico. Pelo contrário, sua pretensão é bem mais simples, qual seja: apresentar uma pequena coletânea de artigos produzidos por estudiosos da obra do Aquinate sobre dois temas caros à tradição filosófica e aos estudos realizados no século XX, que são, a linguagem e a

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epistemologia. E por isso o título do livro é Linguagem e epistemologia em Tomás de Aquino.

Nesse livro, o leitor encontrará uma grande variedade de problemas que o Aquinate abordou, ao debater os temas da linguagem e da epistemologia. Ficará espantado ao ver que, em pleno século XIII, Tomás de Aquino tinha um profundo conhecimento da tradição filosófica e dos pro-blemas que realmente angustiam a filosofia. Problemas que, de uma forma ou de outra, atravessaram a modernidade e chegaram até o século XXI.

Paulo Faitanin apresenta uma ótima tradução, com um estudo introdutório, do De Natura Verbi Intellectus de Tomás de Aquino. Um texto necessário para a compreensão das teses desenvolvidas pelo Aquinate sobre a linguagem e a epistemologia.

Por sua vez, Jean Lauand apresenta um estudo sobre o papel do negativo na epistemologia de Tomás de Aquino, em comparação com as rationes necessariae de Anselmo.

Ivanaldo Santos apresenta a linguagem enquanto problema filosófico na obra de Tomás de Aquino e Sergio de Souza Salles expõe um brilhante estudo sobre a linguagem da alteridade no Aquinate.

Já Sávio Laet de Barros Campos apresenta um estudo sobre os gêneros literários e formas do saber na Universidade de Paris do século XIII. Trata-se de um estudo onde podemos vislumbrar o ambiente intelectual, no qual Tomás de Aquino produziu grande parte de sua obra. E Lucas Kattah Macedo apresenta um estudo sobre a relação entre a metafísica e a epistemologia.

Por fim, é preciso realizar um agradecimento especial ao renomado filósofo Mauricio Beuchot, pesquisador do Centro de Estudos Filosóficos da Universidade Autônoma do México (UNAM), o qual gentilmente realizou a apresentação do livro.

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O ‘De Natura Verbi Intellectus’ como texto gênese para a compreensão das teorias do

conhecimento e da linguagem em Tomás de Aquino: introdução, tradução e notas1

Paulo Faitanin

Introdução A Filosofia da Linguagem tomasiana é fundamental para

entender a sua doutrina acerca do significado analógico dos conceitos. A comunicação da verdade resulta da ordem que a razão estabelece internamente nos seus conceitos e expressa pela linguagem. Por isso, a linguagem que procede da dialé-tica é instrumento para a comunicação da verdade. O conhe- 1 Nossa intenção, neste artigo, é, primeiramente, apresentar algo da filosofia da linguagem de Tomás de Aquino, em alguns parágrafos e, secundariamente, apresentar uma tradução não crítica e analítica do De natura verbi intellectus. Justifica-se esta tradução pelo fato de que, neste texto, Tomás explica como o conceito – o verbum entendido como verbo mental, palavra mental – é gerado pelo intelecto. A assertividade do conceito pautada em sua adequação com a realidade assegura uma teoria do conhecimento que rela-ciona o intelecto com o real e estabelece uma teoria da linguagem que exige uma análise1 apurada das palavras que forem usadas para expressar o real. Desta maneira, trabalharemos um texto ‘gênese’ da teoria do conhecimento, extremamente importante para compreender sua teoria da linguagem e o modo como esta deve ser utilizada para fazer ciência, na medida em que se observa a conveniência e a proporcionalidade dos nomes usados para darem conta de um conceito que expressa a verdade de uma realidade.

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cimento intelectual do homem traduz-se, exteriormente, num conjunto de sinais sensíveis, falados ou escritos, que compõem a linguagem humana. Sinal é aquilo que serve para o conhecimento de outra realidade2. A fala é a mani-festação, pela voz, da palavra interior que se concebe com a mente3. A palavra é uma voz convencional significativa de um conceito, que por sua vez é uma similitude da coisa4, produzida pelo intelecto, ao abstrair da realidade sua simi-litude inteligível5. A voz é um sinal material, sensível da palavra, que permite a sua comunicação aos demais homens6 e consiste na emissão oral dos sons como efeito orgânico das cordas vocais7, dando sentido ao que se emite.

A palavra significa, pois, a coisa mediante o conceito, pois segundo o modo como se lhe entende, assim se lhe nomeia8. O nome é uma voz significativa, isto é, uma voz que tem significado9. Em síntese, o nome é um sinal inteligível do conceito10 manifesto numa palavra falada ou escrita. A signi-ficação do nome se dá segundo aquilo a que é imposto ao nome significar11. O verbo é uma voz significativa declinável com o tempo, presente, passado e futuro, utilizado, às vezes, como substantivo ou considerado em si mesmo, em seu ato abstrato, no infinitivo12. As palavras e os nomes, que com-põem a linguagem e que expressam os conceitos elaborados pelo intelecto, podem ser utilizados para significar outras

2 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. III, q60, a4,c. 3 TOMÁS DE AQUINO, S. De veritate, q9, a4. 4 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Perih. Lec. 10; STh. I, q13, a1, c. 5 TOMÁS DE AQUINO, S. De natura verbi intellectus. 6 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Perih. Lec. 4. 7 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q51, a3, obj4. 8 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q13, a1, c. 9 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Perih. Lec. 4. 10 TOMÁS DE AQUINO, S. In IX Met. Lec. 3. 11 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. II-II, q92, a1, ad2; I, q31, a1, ad1. 12 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Perih. Lec. 5.

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coisas. E isso ocorre porque se distingue o significado de uma palavra, do modo como é utilizado para significar13. Neste sentido, evidencia-se que os termos da linguagem, como as palavras e os nomes, nem sempre conservam o mesmo significado.

Por este motivo, cabe considerar com muita atenção se um nome é aplicado a uma realidade enquanto significa a essência ou não da realidade nomeada. Por meio de um nome, os conceitos podem ser utilizados para significar outras coisas. E isso ocorre porque se distingue o significado de uma palavra, do modo como é utilizado para significar14. Diz-se, por exemplo, que um nome é unívoco quando signi-fica uma mesma essência, que se diz de uma única natureza, ou seja, a conveniência do nome com a natureza15, como quando se toma o nome coelho para designar uma espécie de animal e que conserva sempre este mesmo sentido ou como no caso do nome Deus16. Por outro lado, diz-se equívoco, quando um nome tomado significa várias coisas distintas17, como ocorre na ambiguidade, onde não se toma a similitude entre as realidades, mas a unidade do nome18. Neste caso, não há proporcionalidade entre o nome e a essência, ou seja, o nome é comum, mas as substâncias diversas19, como quando se toma o nome quarto para significar um número ordinal ou um cômodo da casa ou com o nome cão, dito

13 TOMÁS DE AQUINO, S. CG. I, c. 30. 14 TOMÁS DE AQUINO, S. CG. IV, c. 49. 15 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q5, a6, ad3/ q13, a10, c; In II Sent. d. 22, q.1, a.3, ad2. 16 TOMÁS DE AQUINO, S. STh.I, q5, a6, ad3/ q13, a10, c; In II Sent. 22, 1, 3, ad2. 17 TOMÁS DE AQUINO, S. CG. IV, c.49. 18 TOMÁS DE AQUINO, S. CG. I, c.33. 19 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q4, a2, c.

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univocamente do animal, para referir-se à constelação ou ao temperamento irascível de algum homem20.

Mas é dito análogo, quando um mesmo nome é atri-buído comumente a muitas realidades distintas entre si, mas de algum modo relacionadas21, na medida em que esta correlação segue uma comparação por proporção22 do que há de comum e semelhante entre as distintas realidades referi-das por aquele mesmo nome. Assim, pois, o nome saudável, tomado analogamente, pode ser dito do alimento e do corpo que dele se alimenta, porque há uma correlação entre o alimento saudável e o corpo saudável, enquanto um é causa do outro. Deste modo, a analogia supõe a aplicação dos primeiros princípios, como o da causalidade, neste exemplo dado.

A analogia é, pois, uma comparação que pode ser por proporcionalidade23, quando os sujeitos possuem semelhante perfeição, mas significada de modos diversos24 como, por exemplo, ser dito do homem, do anjo e de Deus. A analogia também pode ser uma comparação por atribuição, quando um dos sujeitos possui a perfeição em sua plenitude e os demais por participação ou de modo derivado, como, por exemplo, intelecto dito de Deus e por atribuição do homem e do anjo. Assim, diz-se que um nome é análogo, se ele é aplicado comumente a muitos indivíduos25, respeitando a comparação por proporção ou por atribuição.

O Aquinate concebe o ente analogamente, porque ente não é um nome genérico, uma vez que, enquanto tal, não

20 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q4, a2, c. 21 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Sent. d.22, q.1, a.3, ad2. 22 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, 13, a5, c. 23 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q.13, a5, c. 24 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q.13,a 10, c. 25 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Sent. d.22, q1, a3, ad2.

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inclui todas as diferenças26 predicáveis do ente que fazem parte da definição do gênero, como, por exemplo, o conceito de animal, que inclui as diferenças racional e irracional27. E, dado que o nome atribuído a uma realidade deve indicar o que significa o conceito desta realidade, para uma melhor análise do nome, parece proeminente entender o que é o conceito e como ele é gerado. Assim, mediante esta apuração analítica, poder-se-á melhor usar os nomes e as palavras para referirem às diversas realidades.

Texto e Tradução

THOMAS DE AQUINO TOMÁS DE AQUINO

De natura verbi intellectus28.

A natureza da palavra no intelecto.

Prooemium Introdução Quoniam circa naturam

verbi intellectus, sine quo imago Trinitatis non invenitur in homine expressa, multiplex difficultas et prolixitas nimia animum involvit; ideo

Porque a consideração da palavra no intelecto, sem a qual não se encontra expressa no homem a imagem da Trindade, traz consigo inúmeras dificul-dades e um sem número de

26 TOMÁS DE AQUINO, S. In I Met. Lec.9, n.139. 27 TOMÁS DE AQUINO, S. STh. I, q3, a5, c. 28 Este opúsculo filosófico atribuído a Tomás tem a autenticidade controvertida. Sobre sua autenticidade: FAITANIN, P.S. “A controvérsia acerca da autenticidade de sete opúsculos atribuídos a Tomás de Aquino”, Aquinate, n.1 [2005], 9-20. Quanto ao título, há certa uniformidade nas edições pesquisadas: De natura verbi intellectus. Quanto ao tempo de composição, não há certeza, mas pensamos ter sido escrito no período entre 1268-1272, durante a Segunda Regência, em Paris. O texto, que se divide em dois capítulos, procura responder a duas questões: o que é a palavra e como se gera a palavra no intelecto. O texto latino encontra-se em: http://www.corpusthomisticum.org/xti.html

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summatim eius naturam tradere intendimus, insuper et difficultates ipsum tangentes simul manifestare.

questões para o entendimento, tentaremos, por essa razão, con-siderar, brevemente, sua nature-za e demonstrar, ao mesmo tempo, aquelas dificuldades que recaem sobre ela.

Caput 1

Capítulo 1

Quid sit verbum O que é a palavra? Sciendum est igitur primo,

quod verbum cum re dicta per verbum convenientiam habet maiorem in natura sua quam cum dicente, licet in dicente sit ut in subiecto. Unumquodque enim ab illo naturam sortitur a quo speciem accipit et nomen sortitur, cum species sit tota natura rei. Verbum autem speciem accipit a re dicta, et non a dicente, nisi forte quando dicit se: sicut verbum lapidis differt specie a verbo asini; verbum etiam dictum a diversis de eadem re, idem specie est. Et huius ratio est, quia effectus quilibet magis convenit cum principio quo agens agit, quam cum agente, cui solum assimilatur ratione ipsius principii: hoc enim est quod communicatur effectui per actionem agentis.

Em primeiro lugar, deve saber-se, pois, que a palavra, no que se refere à sua natureza, ela tem maior conformidade com a realidade que se expressa pela palavra, do que com a natureza de quem a profere, ainda que ela exista em quem a diz, como em seu sujeito. Na verdade, cada coisa recebe um nome daquilo que recebe da natureza, do que pertence à espécie, sendo a espécie toda a natureza da coisa. Ora, a palavra toma a espécie da realidade que ex-pressa e não de quem a profere, exceto no caso de que alguém expresse pela palavra algo de si mesmo: desta maneira, a pala-vra ‘pedra’ difere da palavra ‘asno’; uma mesma palavra pode, também, ser dita de muitos da mesma realidade, e a mesma realidade é a espécie. E a razão disso é que qualquer efeito tem mais relação com o princípio, pelo qual o agente age, do que com a ação mesma do agente, com o qual somente

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se assemelha em razão do princípio mesmo: e isso é o que realmente é comunicado, pelo agente, ao efeito.

Similitudo autem rei dictae est principium quo verbum rei efficitur, quae etiam in verbo reperitur a dicente sibi communicata: et ideo ipsum verbum quandoque dicitur similitudo rei, quandoque vero verbum rei, ubicumque illa similitudo exprimitur, sive in parte imaginativa, sicut phantasma Chartaginis est verbum Chartaginis, secundum Augustinum29; sive in intellectu nostro, ubi perfecta ratio verbi invenitur quod, ad imaginem pertinet.

Ora, a semelhança da reali-dade que é expressa pela pala-vra é o princípio pelo qual se produziu a palavra, semelhança que, também, se encontra comu-nicada na palavra que o falante profere para si mesmo: e é por essa razão que a própria palavra é denominada semelhança da realidade, seja na imaginação, quando verdadeiramente se ex-pressa pela palavra da realidade aquela semelhança, tal como ensina Santo Agostinho, quando disse que a palavra ‘Catargo’ é a imagem de Catargo; seja em nosso intelecto, onde se encon-tra a natureza perfeita da pala-vra a que se atribui a imagem.

In verbis enim quae in imaginativa fiunt, non est ratio verbi expressa. Aliud namque est in ea unde similitudo exprimitur, et aliud in quo terminatur. Exprimitur enim a sensu, et terminatur in ipsa phantasia, cum phantasia sit motus factus a sensu secundum actum, secundum philosophum in tertio De

Na verdade, a natureza da palavra não é expressa naquelas palavras que se produzem na imaginação. O fato é que um é o lugar onde se expressa a seme-lhança e outro onde termina. Na verdade, a semelhança é expres-sa pelo sentido e termina na própria fantasia, sendo a fanta-sia o movimento causado pelo sentido, segundo o ato, tal como

29 SANTO AGOSTINHO, De Trinitate, VIII, c. 6 [PL 42, 954-955].

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anima30. Sed supra intellectum nihil est in quo ab ipso aliquid exprimatur; et ideo non est aliud quod exprimit ab eo in quo exprimitur, sicut nec in Deo aliud est pater exprimens, et aliud in quo recipitur expressum.

ensina o Filósofo, no terceiro livro do De anima. Mas, não existe nada além do intelecto em que algo possa ser expresso, tal como no intelecto mesmo o é; e isto porque não é outro que a expressa por ele o que nele se expressa, como nem em Deus um é o que o Pai expressa e outro em que se recebe o expresso.

Sed adhuc in intellectu nostro est defectus, quia aliud est quod exprimit, aliud ipsum verbum expressum; quod in Deo non invenitur: et ideo verbum Dei est Deus, intellectus autem noster verbum suum non est, neque etiam est suum dicere, quod est proxima causa verbi.

Mas, até nisso há defeito em nosso intelecto, porque algo é o que a expressa e outro é a pró-pria palavra expressa, o que não ocorre em Deus; e isto porque a Palavra de Deus é Deus; no entanto, em nosso intelecto, a palavra não é sua, nem mesmo é o seu dizer, que é a causa pró-xima da palavra.

Nascitur enim verbum nostrum ex notitia alicuius habiti apud memoriam nostram, quae nihil aliud est in hoc loco quam ipsa receptibilitas animae nostrae, in qua etiam tenet se, secundum Augustinum31, etiam cum se non discernit, sed alia quae ab extra acquirit.

Na verdade, a nossa palavra origina-se a partir do conhe-cimento de alguma natureza que há em nossa memória, que não é outra coisa senão o lugar em que há a própria receptibi-lidade de nossa alma, na qual ela existe e que, segundo Santo Agostinho, também não se dis-tingue dela, mas daquelas coisas que ela percebe e que vêm de fora.

Primus ergo processus in Portanto, o primeiro processo

30 ARISTÓTELES, De anima, III, c. 3, 428b 10-17 [Comentário de Santo Tomás, lectio 6]. 31 SANTO AGOSTINHO, De libero arbitrio, II, c. 19 [PL 32, 1268].

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gignitione verbi est cum intellectus accipit a memoria quod ab ea sibi offertur, non eam spolians quasi in ea nihil relinquens, sed similitudinem habiti in se assumens; et hoc est simile illi quod in memoria habetur, et ideo vocatur aliquando illud quod ab intellectu accipitur verbum memoriae; sed adhuc non habet perfectam rationem verbi; haberet tamen, si intellectus solum reciperet a memoria exprimente. Sed cum memoria non habeat actum aliquem, sed in loco actus solum tenet libere quasi parata capienti a se, intellectus vero in lumine suo capit ea; adhuc perfectam rationem verbi non habet.

de formação da palavra ocorre quando o intelecto recebe da memória o que dela lhe é oferecido, não a privando, como se nada deixasse nela, mas tomando para si a semelhança da natureza; e isso é semelhante ao que havia na memória e, por esse motivo, denominou-se, algumas vezes, de palavra da memória, àquilo que é recebido pelo intelecto; mas isso ainda não é suficiente para que tenha a perfeita natureza de palavra; seria, todavia, suficiente, se o intelecto somente recebesse para a formação da palavra o que lhe exprime a memória. Mas, não tendo a memória al-gum ato, exceto aquele ato livre local pelo qual está preparada para compreender-se, o inte-lecto, em sua luz, a compreende perfeitamente; mas, mesmo assim, ainda não se estabelece a perfeita natureza de palavra.

In divinis vero pater, cui respondet memoria in ratione ordinis, vel originis, complete generat, quia pater id quod habet, non solum tenet ut memoria apud nos, sed quia est suppositum completum cuius est agere, ideo generat filium. Non enim in generatione ista praesupponitur aliquid quasi a patre accipiens, et aliud

Mas, nas Pessoas divinas, o Pai, a quem corresponde a me-mória, em razão de ordem, ou origem, gera perfeitamente a Palavra, porque isso que tem o Pai não é somente o que é a memória para nós, porque Ele é o suposto completo a que per-tence o operar e, por isso, Ele gera o Filho. Com efeito, não se pressupõe isto na geração da Palavra divina, como se algo

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quasi acceptum: sic apud nos intellectus accipit a memoria, et praesupponitur generationi; ibi vero filius generatur a patre, sicut si totus intellectus noster esset a nostra memoria, et non similitudo ista vel illa.

fosse recebido do Pai e algo fosse recebido de outro: tal como ocorre conosco, em que o intelecto recebe algo da me-mória e o pressupõe para a ge-ração de sua palavra; naquele outro caso, o Filho é efetiva-mente gerado pelo Pai, como se o mesmo intelecto fosse total-mente a nossa memória e não apenas esta ou aquela seme-lhança.

Cum ergo intellectus informatus specie natus sit agere; terminus autem cuiuslibet actionis est eius obiectum, nititur agere circa obiectum; obiectum autem suum est quidditas aliqua cuius specie informatur, quae non est principium operationis vel actionis nisi ex propria ratione illius cuius est species. Obiectum autem non adest ipsi animae illa specie informatae, cum obiectum sit extra in sua natura; actio autem animae non est ab extra, quia intelligere est motus ad animam, tum ex natura speciei quae in talem quidditatem ducit, tum ex natura intellectus, cuius actio non est ad extra. Prima autem actio eius per speciem est formatio sui obiecti, quo formato intelligit; simul tamen tempore ipse format, et

Estando, pois, o intelecto informado pela espécie, ele está apto por natureza para operar; ora, o término de qualquer ope-ração é o seu objeto, por isso, o intelecto inclina-se a operar sobre o objeto; mas, o seu objeto é alguma quididade, que é informada pela espécie, que não é o princípio da operação ou da ação, senão da prórpia natureza daquilo de que é espécie. Mas, o objeto, que foi informado à alma por aquela espécie, não se en-contra na própria alma, do mes-mo modo que existe em sua natureza, fora dela; ora, a ação da alma não se dá fora dela, porque o inteligir é um movi-mento intrínseco para a alma, tanto quando ela considera a natureza da espécie, que resulta na apreensão de tal quididade, como quando atua por parte da natureza do intelecto, cuja ação não se dá fora dela. Ora, a sua

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formatum est, et simul intelligit, quia ista non sunt motus de potentia ad actum, quia iam factus est intellectus in actu per speciem, sed est processus perfectus de actu in actum, ubi non requiritur aliqua species motus.

primera ação é a formação do seu objeto pela espécie, que o entende quando formado; con-tudo, no mesmo instante que o forma, é formado e entende, porque isso não é um movi-mento de potência ao ato, por-que já é feito pelo intelecto em ato, mediante a espécie, mas é um processo perfeito de ato em ato, onde não se requer alguma espécie de movimento.

Et quia, ut dictum est, huiusmodi obiectum in ipsa anima formatur, et non extra, ideo erit in anima ut in subiecto; est enim similitudo rei extra. Quod autem est in anima ut in subiecto, efficitur in ea ut habitus. De perfecta autem ratione habitus est, quando actui coniungitur: in hoc enim natura perficitur. Perficitur autem per lumen naturale intellectus, involvens speciem intelligibilem in quo et sub quo intelligatur.

E porque, tal como foi dito, que o objeto desta maneira é formado na própria alma, e não fora dela, por isso, existirá na alma como em seu sujeito; com efeito, é similitude da realidade externa. Ora, o que existe na alma como num sujeito, se pro-duz nela por hábito. Mas a perfeita natureza do hábito se dá quando se une ao ato: com efeito, a natureza se aperfeiçoa mediante isso. Ora, se aper-feiçoa pela luz natural do inte-lecto, envolvendo a espécie inte-ligível na qual e sob a qual se entende.

Idem enim lumen quod intellectus recipit cum specie ab agente, per actionem intellectus possibilis informati tali specie diffunditur, cum obiectum formatur, et manet cum obiecto formato; et hoc habet plenam rationem verbi, cum in eo quidditas rei

Ora, a mesma luz que o inte-lecto recebe com a espécie, pelo agente, é difundida pela ação do intelecto possível que informa tal espécie, que se forma com o objeto, e permanece com o obje-to formado; e isso tem a plena natureza de palavra, pois nela a quididade da coisa é entendida.

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intelligatur. Sicut in principio actionis intellectus et species non sunt duo, sed unum est ipse intellectus et species illustrata; ita unum in fine relinquitur, similitudo scilicet perfecta, genita et expressa ab intellectu: et hoc totum expressum est verbum, et est totum rei dictae expressivum, et totum in quo res exprimitur; et hoc est intellectum principale, quia res non intelligitur nisi in eo. Est enim tanquam speculum in quo res cernitur, sed non excedens id quod in eo cernitur. Efficitur enim opere naturae ut in eo aliquid cernatur: natura autem non agit aliquid superflue, et ideo non excedit speculum hoc, idest id quod in eo videtur.

Assim como no princípio da ação não são duas coisas o intelecto e a espécie, porque um é o próprio intelecto e a espécie ilustrada; do mesmo modo é uma mesma realidade lograda no fim, ou seja, a perfeita simi-litude, gerada e expressa pelo intelecto: e esse todo expresso é a palavra, na medida em que é toda a realidade dita de modo expressivo e tudo no qual a coisa é expressa; mas isso é o intelecto principal, pois a coisa não é entendida senão nele. Com efeito, ele é como um espe-lho no qual a coisa se reflete, mas não excedendo o que nele se reflete. Na verdade, se pro-duz a obra da natureza quando nele se reflete algo: ora, a natu-reza não opera algo inutilmente e, por isso, não excede a esta imagem, isto é, àquilo que nela se vê.

Verbum igitur cordis est ultimum quod potest intellectus in se operari. Ad ipsum enim, ut est in quo quidditas rei recipitur, immo quia ipsemet est quidditatis similitudo, terminatur intelligere. Sic enim habet rationem obiecti intellectus. Ut vero est per intellectum expressum, ei coniungitur dicere; et sic ipsum idem verbum est effectus actus

Portanto, a palavra interna é a última coisa que o intelecto pode em si mesmo produzir. Com efeito, o inteligir é finali-zado nele mesmo, na medida em que ele recebe a quididade da coisa, pois que isso mesmo é similitude da quididade. Com efeito, é assim que se tem a na-tureza do objeto pelo intelecto. Como, de fato, [a palavra] é expressa pelo intelecto, diz-se que ela se une a ele; e, assim,

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intellectus, qui est formativus obiecti, et ipsius dicere.

esta mesma palavra é efeito do ato do intelecto, que forma o objeto e é sua própria expressão.

Sed in hoc reperitur differentia quaedam: quod enim intelligitur, potest esse in intellectu et manere in intellectu non intellectum actu; quod autem dicitur, potest esse dictum, sed non potest manere dictum, nisi cum actu dicitur: unde in intellectu potest manere species obiecti in habitu. Illud enim dico quod formatum est, sed non manet id in quo formatum est sine lumine in quo actu aliquid intelligitur. Inde est quod verbum non est sine intelligere in actu, licet ipsum intellectum nudum in habitu manere possit. Habitus hic dicitur non ipsa potentia memorativa tantum, quae praecedit intellectum: immo ipse intellectus est natus retinere suum obiectum, propter tamen naturam memoriae, quae prior est. Unumquodque enim prius salvatur in suo posteriori; et ideo ipsa perfectio obiecti habetur in ipso habitu intellectus, ut dictum est, et ibi posita est perfectio verbi superius.

Mas nisso se encontra alguma diferença: com efeito, o que se intelige pode existir no intelecto e permanecer no intelecto, mas não em ato no intelecto; ora, o que se diz, pode ser dito, mas não pode permanecer dito, a não ser se dito em ato: daí que, no intelecto, as espécies do objeto podem permanecer em hábito. De fato, digo que aquilo é formado, mas não permanece naquilo em que é formado, sem a luz pela qual algo é inteligido em ato. Daí que a palavra não existe sem o inteligir em ato, ainda que a mesma possa per-manecer privada em hábito, no intelecto. Hábito aqui não se refere somente à própria potên-cia da memória, que precede ao intelecto: mas, também, ao pró-prio intelecto que é apto natu-ralmente a reter o seu objeto, por causa, também, da natureza da memória, que lhe é anterior. Ora, qualquer coisa que é prévia se encontra salvo em seu pos-terior; e, por isso, se tem a per-feição mesma do objeto no pró-prio hábito do intelecto, como foi dito, e aí se encontra a per-feição mais superior da palavra.

Ex his manifestum est qualiter apud nos deficit a

Do anterior fica claro de que modo nos falta para representar

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repraesentatione filii in divinis; quia scilicet ipsa intelligentia nostra non est educta de memoria nostra, a qua tamen principium et rationem agendi habet. Quae, si esset de memoria totaliter educta, ipsa esset verbum memoriae suae: unde non diceret se, nec exprimeret nisi dictatum et expressum a memoria sua, quia aliter falso diceret et exprimeret se: sicut verbum in divinis non dicit seipsum gignendo et exprimendo, sed dicit seipsum genitum et expressum.

a Filiação divina; pois a nossa própria inteligência não é pro-duzida a partir de nossa memó-ria, de onde ela tira, portanto, o seu princípio e a natureza de sua ação. A qual, se fosse pro-duzida totalmente da memória, a mesma seria palavra de sua memória: donde não poderia dizer-se senão de si mesma, nem expressaria senão o que é dito e expresso por sua memó-ria, porque, de outro modo, se diria e expressaria algo falso de si mesmo: tal como a Palavra nas Pessoas divinas não se refere a si mesmo gerando e exprimindo, mas refere-se a si mesmo como gerado e expresso.

Rursum manifestum est quare verbum proprie dicitur personaliter tantum. Verbum enim nostrum semper est in continuo fieri, quia semper perfectum esse suum est in fieri; sed hoc non est imperfectum, quasi totum simul non existens, sicut est de aliis quae sunt in fieri, quae etiam semper sunt imperfecta; immo verbum in principio sui est perfectum, quia conceptio perfecte formata est, et nihilominus esse eius perfectum servatur eodem modo quo gignebatur. Non enim transit formatio verbi ipso formato, sed cum actu

Além do mais, fica claro por que a palavra, propriamente, se diz somente de um modo pes-soal. De fato, a nossa palavra sempre está num contínuo fazer-se, porque o seu ser per-feito sempre está por fazer-se; mas isso não é uma imperfeição, como se o todo não existisse simultaneamente, tal como aquelas coisas que estão por serem feitas e, que, também, sempre são imperfeitas; a pala-vra, ao contrário, é perfeita em seu princípio, porque sua con-cepção foi formada perfeita-mente e o seu ser perfeito conserva-se, do mesmo modo que foi gerado. De fato, a

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intelligitur continue formatur verbum, quia semper est ut in fieri et ut in egrediendo ab aliquo, scilicet a dicente. Et hoc cum personarum processionibus convenit. Intelligere vero, ut in quiete accipitur, et essentiale est in divinis, dicere vero, sicut et verbum, personaliter dicitur.

formação da palavra não passa ao próprio formado, mas, inte-ligindo em ato, se forma conti-nuamente a palavra, porque sempre está como num fazer-se e como num elevar-se por algo, ou seja, por quem a expressa. E isso convém à processão das Pessoas. Na verdade, o inteligir, enquanto se encontra em re-pouso e de modo essencial está nas Pessoas divinas, é verda-deiro, como a Palavra, que é dita pessoalmente.

Caput 2

Capítulo 2

Quomodo generetur verbum

Como se gera a palavra?

Nunc restat videre, utrum verbum gignatur per reflexionem actus intellectus vel per actum rectum.

Resta considerar, agora, se a palavra foi gerada por um ato de reflexão do intelecto ou se foi por um ato direto.

Ad cuius evidentiam considerandum est quod verbum quod est expressivum rei quae intelligitur, non est reflexum; nec actio qua formatur verbum, quod est expressivum quidditatis rei quae concipitur, non est reflexa; alioquin omne intelligere esset reflexum, quia semper cum actu intelligitur aliquid, verbum formatur. Unde manifestum est quod intellectus infra se ipsum actionem rectam exercere potest, et haec semper est actio

Deve-se considerar, para o esclarecimento desta questão, que a palavra, que é uma ex-pressão da coisa que é inteli-gida, não é uma reflexão, nem uma ação pela qual se forma a palavra, expressiva da quidi-dade da coisa que se concebe, não é uma [ação] reflexa; se fosse assim, todo inteligir seria [um ato] reflexo, porque sempre que algo fosse inteligido em ato, se formaria a palavra. Daí ser manifesto que o intelecto infe-rior pode exercer ação direta sobre si mesmo e esta é sempre

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sua propria, quae terminatur ad obiectum factum in se et a se.

sua própria ação, que tem o seu término no objeto produzido nele e por ele.

Unum enim constituitur ex intellectu et specie, quae est principium actionis suae, et huius est agere; unde species haec est prima qua agitur, non autem ad quam: non enim intellectus noster inspiciens hanc speciem tanquam exemplar sibi simile, aliquid facit quasi verbum eius. Sic enim non fieret unum ex intellectu et specie, cum intellectus non intelligat nisi factus unum aliquid cum specie, sed in ipsa specie formatus agit tanquam aliquo sui, ipsam tamen non excedens.

Com efeito, a unidade se constitui de intelecto e espécie, que é o princípio de sua ope-ração e do seu agir; daí que esta espécie é a primeira pela qual se opera, mas não para qual se opera: de fato, o nosso intelecto não considera esta espécie como um exemplar semelhante a si mesmo, mas o considera como uma palavra sua. Assim, pois, não haveria unidade de inte-lecto e espécie, se o intelecto não inteligisse algo produzido em unidade com a espécie, mas opera na própria espécie forma-da como em algo seu, mas que não a excede.

Species autem sic accepta semper ducit in obiectum primum. Unde manifestum est quod ipsum verbum intellectus perficitur per actum rectum; tamen, quia non mittit ad aliquid aliud conceptiones suas, sicut facit sensus, hinc est quod potest super actus suos reflecti cum vult, quod non potest sensus: non enim utitur medio corpore cuius non est percipere quod in eo fit.

Mas a espécie assim consi-derada sempre se dirige ao seu primeiro objeto. Daí ser mani-festo que a própria palavra do intelecto se aperfeiçoa pelo ato direto; mas, porque não aban-dona alguma outra de suas concepções, como faz o sentido, é assim que ele pode, quando quer, refletir sobre os seus atos com as imagens que não aban-donou, o que não pode fazer o sentido: ora, o intelecto não faz isso mediante o corpo, que não percebe o que nele se produz.

Sed cum sit unum agens, cum quo et species ipsa

Mas porque é um agente, com o qual a própria espécie se

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efficitur unum spiritualiter in participando vitam eius, percipit actum suum cum vult, complete, quod non potest sensus. Non enim indiget anima, ad hoc quod a se intelligatur specie illa, sed ad hoc ut intelligat: de se namque habet ut intelligatur, sed non quod intelligat. Intelligit enim se sicut alia, secundum philosophum: hoc autem est per speciem, quia alia sic intelliguntur. Sensus autem indiget organo ad hoc ut agat; organum autem non redit supra se, unde non est reflexio in sensu.

torna una espiritualmente, participando de sua vida, o seu ato percebe, mediante imagens, de um modo completo, o que não pode fazer os sentidos. Ora, a alma não necessita desta imagem para entender-se, mas somente para compreender esta espécie: a tem, pois, em si, para entender, não para que se entenda. Ora, [ela] se entende a si e as demais coisas, segundo o Filósofo: mas isto é pela espécie, porque assim são entendidas as outras coisas. Mas o sentido necessita do órgão para sentir, enquanto opera; mas o órgão não se volta sobre si, daí que não há reflexão no sentido.

Considerandum tamen est, quod generatio verbi videtur propinquissima cognitioni reflexae: unde multi putaverunt eam reflexam. Cum enim anima informata specie format verbum in se, non format ipsum in aliquo sui non informato specie, quasi aliquid sui extendat a se non informatum specie prima, ut in eo verbum primum formetur, et ipsum esset informatum verbo in eo formato: sic enim videretur extendi quasi in rectum, et sic per actum rectum formaretur verbum; sed in se specie prima formata, eo quod

Deve-se considerar, também, que parece que a geração da palavra está muito mais próxi-ma do conhecimento reflexo: por isso, muitos consideraram-na um [ato de] reflexão. Na verdade, quando a espécie é informada na alma, forma nela mesma a palavra, mas, não formaria nela mesma, se não fosse informada pela espécie, como se desdobrasse de si algo que não fora informado primei-ro pela espécie, como se for-masse nela primeiro a palavra e a própria [alma] seria informa-da pela palavra que nela se formou: assim, pois, pareceria desdobrar-se como em operação

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formata est, actu gignitur verbum, et non in aliquo sui nudo. Unde videtur haec gignitio simillima reflexae. Sed sciendum est, quod cum reflexio fiat redeundo super idem, hic autem non sit reditio super speciem, nec super intellectum formatum specie, quia non percipiuntur quando verbum formatur; gignitio verbi non est reflexa.

direta, e assim, pelo ato direto, se formaria a palavra; mas, a partir da primeira espécie, nela formada, que nela é formada, e a palavra é gerada em ato, e não a partir de alguma coisa sua desprovida [de espécie]. Daí que esta geração parece asse-melhar-se à reflexão. Mas deve-se saber que, com a reflexão, o intelecto volta-se sobre si mesmo, mas não se trata aqui de um voltar-se sobre a espécie, nem sobre a espécie formada pelo intelecto, porque não se perceberia quando a palavra se formaria; a geração da palavra não é um [ato de] reflexão.

Non enim generatur verbum ipsum per actum intellectus, nec eius similitudo, nec etiam similitudo illius speciei qua intellectus informatur, quasi verbum esset eius expressivum, sed similitudo rei. Illius enim similitudo generatur quod in sua similitudine cognoscitur. Est tamen ipsum verbum similitudo illius speciei tanquam eius quo factum est et est sibi simillimum. Similitudo vero rei est ut ad quod formatur, et tanquam ad eius exemplar.

Ora, a palavra mesma não é gerada pelo ato do intelecto, nem sua similitude, nem mesmo a similitude daquela espécie pela qual o intelecto foi infor-mado, como se a palavra fosse a sua expressão, mas [a palavra é uma] similitude da coisa. Na verdade, a sua similitude é ge-rada na medida em que em sua semelhança é conhecida. Não obstante, a própria palavra é similitude daquela espécie, na medida em que é produzida [na alma] e [isso] lhe resulta seme-lhante. De fato, diz-se que é similitude da coisa enquanto é formada por ela e é seu exem-plar.

Nec propter hoc oportet Não é necessário, por causa

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ipsum formantem prius rem intueri, et post ad eam verbum seu imaginem ipsam in se formare: quia habere speciem rei apud se, est sibi loco aspectus exemplaris. Artifices namque, intuentes sua exemplaria, nihil aliud acquirunt nisi ipsas species exemplarium. Haec autem species quam habet intellectus, advenit sibi a re quam ipse non est intuitus, sed sensus. Et quia est rei similitudo, est principium generationis huius. Unde in intellectu potest esse generatio per rectum, cum nihil eius generetur.

disso, que a palavra fosse formada previamente à intuição da coisa, e depois se formasse nela a palavra ou a prórpia imagem: pois, possuir a espécie da coisa em si, é para si a posse de um modelo e de um exem-plar. Assim, pois, os artistas, intuindo os seus exemplares, não fazem outra coisa senão adquirirem as próprias espécies dos exemplares. Mas esta espécie que o intelecto tem lhe advém da coisa, que ela mesma não intuiu, mas sentiu. E porque é similitude da coisa, é o seu princípio de geração. Daí que no intelecto pode haver geração por ato direto, enquan-to nada é gerado dela mesma.

Directe igitur a specie ipsa itur in ipsum verbum, cum non percipitur eius subiectum, sed res cuius est prima similitudo. Huic etiam similitudini tanto intimius est verbum, quanto perfectius genitum est. Ideo verbum intelligentis intimum est principio intellecto, ex quo et specie fit unum; nec tamen informatur subiectum simul diversis accidentibus eiusdem speciei, quia impossibile est eamdem superficiem simul duabus albedinibus informari: hoc enim est impossibile, quando utrumque accidens est

Portanto, se passa direta-mente da própria espécie para a própria palavra, já que não se conhece o seu sujeito, mas a coisa que é a primeira simili-tude. Contudo, tanto mais ínti-ma é a palavra desta similitude, quanto mais perfeitamente será gerada. Por isso, a palavra intel-igida é princípio íntimo ao intelecto, pelo que a espécie e o [intelecto] se tornam um; nem mesmo quando o sujeito é infor-mado, ao mesmo tempo, por diversos acidentes, da mesma espécie, porque é impossível que na mesma superfície fossem informadas, ao mesmo tempo,

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in ratione eius quo aliquid fieri habet.

duas brancuras: com efeito, isso é impossível, quando há ambos acidentes na sua natureza para que algo tenha de ser feito.

Verbum autem est in quo aliquid intelligitur, sicut lux in qua videtur aliquid; species autem est qua perficitur cognitio, sicut species coloris in visu exteriori; et foret simillimum si lux ex specie coloris generaretur, sicut ibi fit verbum ex specie: exteriora enim deficiunt a repraesentatione interiorum.

Mas a palavra é aquilo pelo qual algo é entendido, como a luz é aquilo pelo qual algo é visto; mas a espécie é aquilo pelo qual o conhecimento é aperfeiçoado, como as espécies de cor são aquilo pelo qual as coisas exteriores são vistas; e seria mais semelhante, se a luz fosse gerada pela espécie, como aí ocorre quando se produz a palavra pela espécie: ora, as representações exteriores fazem falta para as interiores.

Et propter hoc licet utrumque sit accidens, species scilicet et verbum ex specie genitum, quia utrumque est in anima ut in subiecto; verbum tamen magis transit in similitudinem substantiae quam species ipsa. Quia enim intellectus nititur in quidditatem rei venire, ideo in specie praedicta est virtus quidditatis substantialis spiritualiter per quam quidditas spiritualiter intus formatur, sicut in calore est virtus formae ignis per quam attingitur in generatione ad formam substantialem ignis, ad quam accidens per se non attingeret: unde verbum, quod

E por causa disso, embora ambos sejam acidentes, a espé-cie, isto é, a palavra, é gerada da espécie, porque ambas existem na alma como em seu sujeito; não obstante, a palavra se torna mais semelhante à substância do que a própria espécie. Ora, porque o intelecto vem a inclinar-se à quididade da coisa, há, por isso, na referida espécie, a capacidade da quididade substancial tomada de modo espiritual, pela qual a quididade é formada espiritualmente lá dentro do intelecto, como no calor há a virtude da forma do fogo, pela qual se chega, pela geração, à forma substancial do fogo, à qual o acidente, por si

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est ultimum quod potest fieri intra per speciem, magis accedit ad ipsam rem repraesentandam quam nuda species rei.

mesmo, não alcançaria: daí que a palavra, que é o último que se pode produzir no interior [do intelecto] pela espécie, se apro-xima mais da própria realidade representada, do que a espécie abstraída da coisa.

Quia igitur res intelligibilis eo ipso intelligitur quo intellectus formatur sua specie actu; prius natura est informari quam intelligere, sed non tempore: ideo videtur verbum, quod sequitur speciem rei, similiter sequi intelligere eius. Hoc autem non esset, si per speciem rei tenderet intellectus in ipsam rem ut in se, sicut visus videt colorem extra se existentem, et tunc formaret verbum in se de re prius intellecta. Sed quia intellectus accipiens speciem a re per sensus, non ducitur per ipsam in rem ut est in sui natura, sed ut in se est, quia ipse facit in se obiectum quod est in eo intellectum; obiectum autem naturaliter prius est actione potentiae circa obiectum: ideo verbum quod est intra ipsum intellectum, prius est ipso intelligere ad ipsum terminato. Aliud enim est hoc a quo accipitur species, scilicet res ipsa, et aliud ad quod terminatur actio intellectus, scilicet similitudo

Por isso, porque a coisa inte-ligível ela mesma é inteligida na medida em que sua espécie é formada em ato pelo intelecto; [o próprio da] natureza é primeiro informar, que inteligir, mas isso não no tempo: por isso, parece que, do mesmo modo que a palavra é obtida a partir da espécie da coisa, simul-taneamente é obtido o seu inte-ligir. Porém, isso não ocorreria se o intelecto tendesse pela espécie da coisa à própria coisa considerada em si mesma, como a visão vê a cor que existe fora de si, e, então, se formaria a palavra nele antes que a coisa fosse inteligida. Mas porque o intelecto apreende a espécie da coisa pelos sentidos, [o inte-lecto] não é conduzido pela própria [espécie] à coisa, como existe na natureza [do objeto sensível], mas como ela existe nele mesmo, porque é o próprio intelecto que representa em si mesmo o objeto que nele é inte-ligido; mas o objeto existe natu-ralmente antes da capacidade do [intelecto] considerá-lo: por

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rei formata ab intellectu. isso, a palavra que é formada internamente no próprio inte-lecto, é anterior ao próprio inte-ligir e ao próprio término. Com efeito, uma coisa é aquilo pelo qual é tomada a espécie, ou seja, a coisa mesma, e outra é aquilo em que se finaliza a ação do intelecto, ou seja, a similitude da coisa formada pelo intelecto.

Ex dictis manifestum est quomodo attenditur prioritas unius eorum ad alterum.

Do exposto, fica claro o modo como se entende a prioridade de um deles sobre os outros.

Prius enim natura est intellectus informatus specie, quae est primum sufficiens intelligendi, quam gignatur verbum: et ideo intelligere in radice prius est verbo, et verbum est terminus actionis intellectus. Sed quia obiectum non habetur nisi in verbo, ut dictum est; obiectum autem prius est quam quaelibet actio ad eum terminata, ideo verbum prius est quam intelligere. Et hoc totum ideo contingit, quia non terminatur actio intellectus ad rem extra, a qua acquirit speciem ut in se est. Si enim species nata esset ducere intellectum ad rem ut in se est, ut species coloris ducit in colorem, omnibus modis praecederet intelligere verbum.

Com efeito, primeiro a natu-reza do intelecto é informada pela espécie, que é princípio suficiente do inteligir, pelo qual se gera a palavra: e, por isso, o inteligir no início é prévio à palavra, e a palavra é o término da ação do intelecto. Mas não se possui o objeto, senão na pala-vra, como foi dito; porém, o objeto é prévio à qualquer ação por ele determinada, por isso, a palavra é anterior ao inteligir. E isso tudo acontece por isso, a saber, a ação do intelecto não termina na coisa externa, da qual adquire a espécie tal como ela é em si. Ora, se a espécie tivesse por natureza a capa-cidade de conduzir o intelecto à coisa, tal como é em si, como a espécie da cor conduz à cor, de qualquer modo, o inteligir pre-cederia à palavra.

Unde manifestum est quod Disso se evidencia que a

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verbum non est quod sequitur intellectum immediate post rationem intellectus: sic enim simpliciter praecederet verbum actum intellectus, qui est intelligere; sed verbum sequitur immediate intellectum in actu per speciem, a qua procedit verbum ut actus ex actu, et non ut actus ex potentia. Unde verbum posterius est actu intelligendi a parte intellectus; et sic verbum sequitur ad intelligere non in se, sed in sua radice, ut dictum est.

palavra não é o que se segue imediatamente ao intelecto de-pois da consideração do inte-lecto: ora, [se fosse] assim, a palavra precederia, de modo absoluto, ao ato do intelecto, que é o inteligir; mas, a palavra imediatamente segue o intelecto em ato, pela espécie, da qual procede a palavra enquanto em ato pelo ato, e não enquanto em ato pela potência. Daí que a palavra é posterior ao ato de inteligir por parte do intelecto; e, assim, segue-se à palavra o inteligir, não em si, mas em sua raiz, como foi dito.

Si vero intellectus a verbo acciperet speciem prius quam intelligeret ipsum verbum, et rem in verbo, impossibile foret per illud intelligere, vel verbum formare per eius principium, sicut impossibile est intellectum facere rem extra, a qua speciem trahit.

Na verdade, se o intelecto tomasse a palavra da espécie antes de inteligir a própria palavra e a coisa na palavra, seria impossível inteligir deste modo, e a palavra seria formada por seu princípio, como tam-bém seria impossível que o inte-lecto produzisse a coisa externa, da qual toma a espécie.

Ex dictis facile est scire quare intellectus non dicit se, quando format verbum secundum rem.

Do exposto é fácil saber como o intelecto não diz a si, quando forma a palavra conforme a coisa.

Anima enim quasi transformata est in rem per speciem, qua agit quidquid agit; unde cum ea informatus est actu, verbum producit, in quo rem illam dicit cuius speciem habet, et non se. Cum

Ora, a alma é como que transformada na natureza pela espécie, enquanto faz o que faz; donde, sendo ela informada em ato, produz a palavra, pela qual significa aquela coisa da qual se teve a espécie, e não a si mesma.

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vero nititur se apprehendere, quia non est cognoscibilis, nisi sicut alia per speciem aliorum, quia non indiget specie ut intelligat (hoc enim potest de se), non habet in se, ut intelligens est, speciem qua formetur verbum sui, sed accipit a se intelligibilem speciem non sui, sed rei qua necessario informatur ut intelligatur, ut dictum est. Cum igitur illa specie informatur, statim se intelligit; et hoc est per reflexionem, quia haec species prius est accepta a re quam a se informata et intellecta.

[A alma] inclina-se efetivamente para entender-se, porque ela não é cognoscível somente tal como os outros são pela espécie de outros, pois não necessita de espécie para conhecer (de fato, isso ela o tem em si), não tendo em si mesma, para inteligir, a espécie pela qual se formaria a sua palavra, mas toma para si a espécie inteligível, não dela mesma, mas da coisa pela qual, necessariamente, é informada para inteligir, como foi dito. Quando, pois, se informa aquela espécie, imediatamente compre-ende-se; e isso é por reflexão, porque esta espécie é previa-mente tomada da coisa do que informada e inteligida em si.

Nec oportet prius formare verbum quam intelligere; sed cum intellexerit, format verbum sui; et ideo intelligere non tempore, sed natura praecedere necesse est, cum se ipsum intelligit. Non enim cum se intelligit, facit totum obiectum, sed aliquid circa ipsum: induit enim se, et hoc est verbum sui, cum se intelligit; non enim est aliud a quo accipitur species, ab eo ad quod terminatur, sed idem.

Nem é necessário que primei-ramente se formasse a palavra que o inteligir; mas, quando intelige, forma a sua palavra; e, por isso, não intelige no tempo, mas é necessário que seja prévia à natureza, quando se intelige a si mesm. Ora, quando se inte-lige, não produz todo o objeto, mas algo acerca do mesmo: pois, volta-se sobre si mesma, e isso é a sua palavra, quando se intelige; pois não é de outro que se toma a espécie, mediante a qual se determina [a palavra], mas dela mesma.

Sed quia ista est species rei, et non genita de essentia

Mas porque esta espécie é da coisa e não é gerada somente da

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nuda, formatum verbum de anima per speciem rei non est purum verbum animae, sed rei dictae. Si vero nudatam ab omni re se apprehenderet, et similitudinem sui in se gigneret, hoc eius verbum esset purum, nihil extraneum habens admixtum.

essência abstraída, se forma a palavra da alma pela espécie da coisa, não sendo [neste caso] pura palavra da alma, mas [palavra] dita da coisa. Com efeito, se [a alma] se compren-desse abstraindo-se de toda realidade, a sua similitude seria gerada em si mesma; e, neste caso, a sua palavra seria pura, por não ter nada de exterior que se lhe mesclasse.

Tale est verbum Dei, quod idem est in natura cum patre dicente ipsum verbum. Verbum tamen animae tali modo se dicentis foret accidens, et pro tanto diversae naturae foret ab anima, cum accidens sui foret, et a se et de se factum: ipsa enim substantiam facere non potest. Deus autem nihil diversitatis in sua natura habet; ideo verbum suum Deus, virtus et substantia vera est.

Tal é a Palavra de Deus, que é idêntica em natureza com a do Pai, que diz a própria Palavra. Contudo, se a palavra da alma fosse expressa de tal modo, seria um acidente e, portanto, seria de natureza diversa à da alma, seria, pois um acidente seu, por si e em si produzido: ora, a alma não poderia pro-duzir a substância. Mas não há nenhuma diversidade na natu-reza de Deus; por isso, Sua Pa-lavra é verdadeiramente, Virtu-de e Substância de Deus.

Deus autem quia omnia unico intuitu videt, uno verbo omnia dicit; nos vero multa verba habemus propter impotentiam intellectus nostri in intelligendo. Et horum quaedam oriuntur ex aliis, sicut verbum conclusionis ex principiis; quaedam vero non, sicut in rebus quae non habent connexionem ad invicem, ut

Mas porque Deus por uma única intuição vê todas as coi-sas, uma única palavra Sua diz todas as coisas; mas nós neces-sitamos ter muitas palavras, por causa da impotência do nosso intelecto ao inteligir. E algumas destas [palavras] originam-se de outras [palavras], como a palavra conclusiva extraída de princípios; outras [palavras]

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patet de lapide et ligno; quaedam statim offeruntur intelligenti, quaedam non; quaedam etiam cum maiori, quaedam cum breviori discursu. Ideo verba nostra quaedam plus, quaedam minus habent de cognitione, et quaedam citius et quaedam tardius formantur, sicut scire quarumdam conclusionum tardius et difficilius, quarumdam vero facilius et citius acquiritur. Et haec de verbo dicta sufficiant.

efetivamente não, como nas coisas que não têm conexões umas com as outras, como se evidenciam nas [palavras] para pedra e para madeira; algumas são imediatamente apresen-tadas ao intelecto, outras não; algumas também são oferecidas mediante um discurso um tanto longo, outras, mediante um discurso um tanto breve. E, por isso, algumas de nossas pala-vras oferecem mais e outras menos conhecimentos e, al-gumas, são formadas mais ime-diatamente e, outras, menos imediatamente, como entender algumas conclusões nos são menos imediatas e mais difíceis e outras nos são efetivamente mais fáceis e mais imediatas. E são suficientes dizer estas coisas sobre a palavra.

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O negativo na epistemologia de Tomás de Aquino e as

rationes necessariae de Anselmo

Jean Lauand Introdução Neste estudo, examinaremos alguns aspectos da

proposta de Teologia como ciência, em Tomás de Aquino (1225-1274) em contraste com as “rationes necessariae” ansel-mianas, particularmente no caso da Teologia da Redenção. Esse confronto será contextualizado pelo quadro geral do pensamento de Tomás, particularmente no que se refere ao conhecimento e à theologia negativa.

Uma questão fundamental - que cedo ou tarde acaba surgindo – para as grandes religiões é como lidar com a reflexão racional: definir o papel que se estabelece para a razão face à fé. Essa questão é uma das constantes, na Idade Média, e encontra ampla gama de respostas, aliás, muito se-melhantes, no cristianismo, no judaísmo e no Islã: da rejeição da pura razão ao acolhimento; da suspeita à confiança. Claro que o papel dado à filosofia e à razão, numa determinada concepção de religião, depende da particular visão que se tenha do papel que o próprio Deus desempenha nessa concepção e também do papel reservado ao homem e à inteligência deste.

A escolástica Para além da semelhança dessa gama de posicio-

namentos para com as religiões monoteístas, o problemático

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conteúdo da fé do cristianismo (pense-se, por exemplo, na Trindade, na Encarnação ou na Redenção) exigirá aprofun-damentos para que se estabeleçam as diversas posições de relacionamento entre fé e razão.

Entre os significados contidos na multidimensional palavra “Escolástica” (PIEPER, 1973, p. 42-43), destaca-se um, que faz Boécio ser considerado, por um Grabmann, “o primeiro escolástico” e seus escritos, “as primícias do método escolas-tico”: um radicalismo sem precedentes na afirmação da razão, que - a seu modo - estará presente também em Anselmo, 500 anos depois1.

O De Trinitate de Boécio traz esse “racionalismo”. Já o título desse seu opúsculo (Como a Trindade é um único Deus e não três deuses) expressa o propósito de esclarecer racional-mente a verdade de fé. Certamente, isso não é algo de novo; Agostinho e outros tinham escrito textos com o mesmo intuito. Aliás, Agostinho (1994) havia afirmado a necessi-dade de cooperação entre fé e razão (Sermones, CCL 0284, sermo 43, Sl 41, 182): intellige ut credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "crê a fim de que entendas"2. Para Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque cojunge, "conjuga a fé e a razão"!, conselho com que encerra a carta ao Papa João I.

À primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, está em que esse propósito tenha sido assumido explicita-mente, programaticamente: aquilo que antes podia ser

1A audiência de Bento XVI (2009), de 23-09, foi dedicada a Anselmo e o Papa o qualificou de “fundador da teologia escolástica”. Não é de estranhar que, sendo a Escolástica uma tarefa racional, os que acentuam extremadamente a razão – Boécio ou Anselmo – sejam considerados seus fundadores. 2Já Bento XVI (2009) recorda a versão anselmiana dessa fórmula “não procuro compreender para crer, mas creio para compreender".

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unicamente uma atitude fática tornava-se agora um princí-pio. Nova é também a radicalidade do projeto. No seu De Trinitate, encontram-se várias concepções platônicas e neo-platônicas; as dez categorias, os gêneros, as espécies e diversos outros conceitos de Aristóteles; todo tipo de análi-ses filosóficas e de linguagem. Mas não há sequer uma única citação ou referência à Bíblia, e isso num tratado teológico sobre a Santíssima Trindade!

Como diz Pieper (1973) (e este trabalho apoia-se em boa medida no “Scholastik”), a Escolástica traz consigo o perigo – “fundacional” de Boécio – da supervalorização da razão, que vai encontrar em Anselmo um expoente original, ao pretender, com suas “rationes necessariae”, deduzir todas as razões da redenção. Se um Tomás de Aquino e os grandes teólogos medievais conseguiram superar essa ameaça e fazer uma teologia equilibrada (o que talvez requeresse o prece-dente radical anselmiano...) foi graças a um notável corre-tivo desse racionalismo.

O corretivo do racionalismo: Pseudo-Dionísio Areopagita Na mesma época em que Boécio escreve seu De

Trinitate, surgem no Oriente uns livros – Sobre os nomes de Deus; Sobre a hierarquia celeste; Sobre a hierarquia eclesiástica; Sobre a teologia mística – cujo autor declara ser Dionísio do Areópago (cf. At. 17, 34), discípulo de São Paulo, o apóstolo. Por mais inverossímil que fosse essa declaração, o fato é que enganou a Idade Média, que julgou Dionísio um grande santo, inspirado pelo Espírito Santo. Pseudo-Dionísio exer-ceu enorme influência nos teólogos medievais: Tomás de Aquino deve a ele sua philosophia negativa e sua theologia negativa:

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Tomás de Aquino formulou os princípios de uma philosophia negativa e também de uma theologia negativa. […] o fato de a discussão sobre Deus da Summa Theologica começar com a sentença: "Não podemos saber o que Deus é, mas sim, o que Ele não é". (...) e o pensamento, expresso por Tomás em seu comentário ao De Trinitate de Boécio: o de que há três graus do conhecimento humano de Deus. Deles, o mais fraco é o que reconhece Deus na obra da cria-ção; o segundo é o que O reconhece refletido nos seres espirituais e o estágio superior reconhece-O como o Desconhecido: tamquam ignotum! E aquela sentença das Quaestiones disputatae: "Este é o máximo grau de conheci-mento humano de Deus: saber que não O conhecemos". (PIEPER, 2000).

A theologia negativa está bem consciente de que, quando

nosso discurso se volta para Deus, nossa linguagem mostra-se ainda mais inadequada. Sim, por analogia com as criaturas, diremos que Deus é justo, que Ele é bom, eterno etc. Mas, há diversos problemas de insuficiência de língua-gem quando predicamos de Deus. Por exemplo, qualidades, que são separadamente nas criaturas, teriam que ser unifica-das na “essência” de Deus. E é unicamente sobre nosso âmbito de experiências, sobre nosso conceito de tempo que falamos em “justo”, “eterno” ou “bom”.

Sim, não é descabido dizer que Deus é

justo. Mas nosso conceito de justiça procede do único mundo de experiências que nos é acessível; e nele “o justo” manifesta seu dever para com o outro, com o qual tem uma pen-dência: precisamente nisto consiste a justiça. Mas, pertence à essência de Deus não ser devedor de ninguém. Então tem sentido dizer

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que “a justiça” de Deus é necessariamente tão diferente, que não pode se chamar “justiça” em sentido estrito. (PIEPER, 1973, p. 62).

Certamente, estes aspectos “negativos” não são os que

os epígonos de Tomás destacam; na verdade, os “tomistas” costumam ocultá-los; mas são essencialíssimos e o tributo fundamental de Tomás a Pseudo-Dionísio. O caráter nega-tivo da filosofia de Tomás é o que torna problemático a própria ideia de um “tomismo”, em sentido estrito: como enfiar em um “ismo”, em uma filosofia de manuais com resposta para tudo...? Diz Pieper sobre a negatividade e a impossibilidade de um tomismo3:

E, quanto ao elemento negativo da

philosophia de Tomás, encontramos aquela sentença sobre o filósofo, cuja aplicação ao conhecimento não é capaz sequer de esgotar a essência de uma única mosca. Sentença que, embora esteja escrita em tom quase coloquial, num comentário ao Symbolum Apostolicum, guarda uma relação muito íntima com diversas outras afirmações semelhantes. Algumas delas

3 Junto com a negatividade, Pieper vê a impossibilidade de um “tomismo” por conta também da extraordinária abertura de pensamento de Tomás: "Não pode haver um 'tomismo' porque a grandiosa afirmação que representa a obra de S. Tomás é grande demais para isso [...]. S. Tomás nega-se a escolher algo; empreende o imponente projeto de 'escolher' tudo [...]. A grandeza e a atualidade de Tomás consistem precisamente em que não se lhe pode aplicar um 'ismo', isto é, não pode haver propriamente um 'tomismo' ('propriamente', isto é: não pode haver enquanto se entenda por 'tomismo' uma especial direção doutrinária caracterizada por asserções e determinações polêmicas, um sistema escolar transmissível de princípios doutrinais)" (PIEPER, 1981, p. 27).

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são espantosamente "negativas" como, por exemplo a seguinte: Rerum essentiae sunt nobis ignotae; "as essências das coisas nos são des-conhecidas". E esta formulação não é, de modo algum, tão incomum e extraordinária, quanto poderia parecer à primeira vista. Seria facil-mente possível equipará-la (a partir da Summa Theologica, da Summa contra Gentes, dos Comentários a Aristóteles, das Quaestiones disputatae) a uma dúzia de frases semelhantes: Principia essentialia rerum sunt nobis ignota; formae substantiales per se ipsas sunt ignotae; differentiae essentiales sunt nobis ignotae. Todas elas afirmam que os "princípios da essência", as "formas substanciais", as "diferenças essenciais" das coisas, não são conhecidas. (PIEPER, 2000).

Tomás cita cerca de 2.000 vezes Dionísio; Anselmo o

ignora (menciona-o uma única vez e não para endossar seu pensamento). Esses dados guardam profunda relação com as concepções de Teologia: Anselmo carece do corretivo dioni-siano e se aproxima de um racionalismo, embora, técnica-mente, não se possa aplicar sem mais esse qualificativo a seu pensamento, marcado pela fé, que pressupõe o “dado” da fé. Dois ilustres medievalistas assim ressalvam:

Naturalmente, um teólogo como

Anselmo não pode jamais cair na aceitação formal da tese de que não há nada que supere a capacidade cognoscitiva da ratio humana. Não obstante, não causa a mínima estranheza que seu pensamento se aproxime continuamente de um tal racionalismo. (PIEPER, 1973, p. 68).

Anselmo trata ex professo das relações

entre fé e razão, resumindo-as na fórmula:

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Credo ut intelligam, de inspiração nitidamente augustiniana. Segundo ele, devemos come-çar por acreditar na existência de Deus, na Trindade e em todas as verdades da revela-ção cristã. Depois, a nossa razão poderá justi-ficar todas essas verdades "rationibus necessa-riis", por motivos decisivos e necessários e não - como diria Tomás de Aquino - por motivos apenas prováveis e sem valor de-monstrativo. Segundo Anselmo, a fé ensina que assim é; a razão confirma mostrando porque assim deve ser. A racionalização da fé, proposta por Anselmo, não podia degenerar logicamente em racionalismo, pois, a razão, neste sistema, não pode discrepar da fé, uma vez que o conhecimento racional é concebido - conforme Plotino e Agostinho - como fruto da iluminação natural por parte de Deus e este naturalmente não pode contrariar a fé, que é resultado da revelação, sobrenatural, divina. Mas [...] a posição anselmiana levava a tolher o mérito da fé e a justificar de antemão as recriminações de Gregório IX contra o uso da demonstração em teologia. (VAN ACKER, 1983, p. 13).

“Atenuantes” à parte, Pieper (1973, p. 78) também

observa:

[Há em Anselmo] uma observação suspeita que diz que à argumentação que se segue não se deve exigir mais certeza “de que a que possa minha opinião supor provi-soriamente [interim] enquanto Deus não me revele coisa melhor”. Esta observação é enga-nosa porque só aparentemente constitui um abrandamento; o que, na realidade, se diz é que a ratio não capitula perante o mistério,

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mas só diante de um argumento mais forte e, assim, “provisoriamente” mantém o “que até aqui lhe parece ser”.

O fato é que a teologia de Anselmo nos vai pôr a um

passo de considerar que Deus forçosamente tinha que agir de tal e tal modo...

A antiga teologia da redenção Anselmo, espírito inovador e originalíssimo, investirá

contra a doutrina teológica tradicional da Redenção e da Encarnação.

A doutrina tradicional da redenção – comum até Gregório Magno – apoia-se numa interpretação de Colos-senses 2:14-15. Apesar de seu enorme potencial dramático – convocando efeitos especiais cinematográficos – esses ver-sículos não costumam ser recordados na pregação contemporânea: em décadas de prática religiosa católica, não me lembro de uma única menção a eles em homilias das missas. E ganhei já um par de apostas com evangélicos – praticantes e muito cultos – que simplesmente os desconhe-ciam e duvidavam que tais versos estivessem no corpus paulino. Versículos que não são mencionados uma vez sequer no Catecismo da Igreja Católica!

Neles se diz que, na redenção, Cristo eliminou um decreto, um título de dívida escrito (quirógrafo) contra nós, e cravou-o na cruz (Col. 2, 14) e, vencendo os principados e potestades, despojou-os e os expôs publicamente ao des-prezo (como nos desfiles triunfais romanos, nos quais os chefes vencidos eram ridicularizados ante a multidão).

A interpretação tradicional era a de que, desde o pecado de Adão, o diabo tinha adquirido direitos sobre o homem decaído; direitos “escritos” que o próprio Deus respeitava e que só podiam ser revogados se Satanás, talvez

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por engano, se lançasse contra um homem inocente, sem pecado (Cristo), fora de seu legítimo domínio.

Nesse sentido, está a intocável autoridade de Agostinho: vigorava contra todos nós o decreto conquistado pelo diabo, que possuía àqueles a quem enganara. Ao se derramar o sangue sem pecado, foi abolido esse quirógrafo, a caução do pecado:

Ut pro toto mundo sanguis innocens

funderetur, et omnium credentium peccata delerentur; quia ille est mortuus, in quo peccatum non potuit inveniri. Tenebatur cautio nostrorum pec-catorum, tenebat contra nos chirographum diabolus; possidebat quos deceperat, habebat quos vicerat. Debitores omnes eramus, cum debito hereditario omnes nascuntur; fusus est sanguis sine peccato, et delevit cautionem de peccato. (AGOSTINHO, 1994, CCL 0284, sermo 229E, p. 468).

São Leão Magno explica com detalhe: Cristo ludibriou

o diabo e, como se diria popularmente, “cavou” um pênalti… e o diabo “caiu como um patinho”. Cristo vem como homem, escondendo sua divindade e engana o astuto inimigo. Cristo nasce como todo mundo, chora como qualquer bebê, é envolto em panos, circuncidado e levado ao templo para que se cumpra o preceito da purificação legal. O diabo percebe também sua infância e crescimento normais e pensa que pode ofendê-lo, agredi-lo e matá-lo, sem se dar conta de que Ele não tem parte no pecado e não está incluído no quirógrafo4.

4Cum igitur misericors omnipotens que saluator ita susceptionis humanae moderaretur exordia, ut uirtutem inseparabilis a suo homine deitatis per uelamen nostrae infirmitatis absconderet, inlusa est securi hostis astutia, qui natiuitatem pueri in salutem

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Encontramos ecos do drama do “direito do diabo”, ao longo de toda a Idade Média, como na popularíssima lenda de Teófilo, contada, por exemplo, por Gonzalo de Berceo (c.1198-c.1274) (BERCEO, 2010). Nas diversas versões medievais do Teófilo, é a Virgem Maria quem resgata o quirógrafo, no melhor estilo Auto da Compadecida, no qual o diabo se queixa de que assim não vale: “Ela termina desmoralizando tudo”.

Mas quem poderia supor que uma ideia teológica da velha patrística iria, em estrondoso sucesso, conquistar o século XXI e render, em seu fim de semana de estreia nos EUA, 65,5 milhões de dólares em sua versão cinema-

humani generis procreati, non aliter sibi quam omnium nascentium putauit obnoxiam. Vidit enim uagientem atque lacrimantem, uidit pannis obuolutum, circumcisioni subditum et legalis sacrificii oblatione perfunctum. Agnouit deinceps solita incrementa pueritiae, et usque in uiriles annos de naturalibus non dubitauit augmentis. Inter haec intulit contumelias, multiplicauit iniurias, adhibuit maledicta, obprobria, blasphemias, conuicia, omnem postremo in ipsum uim furoris effudit, omnia temptamentorum genera percucurrit, et sciens quo humanam naturam infecisset ueneno, nequaquam credidit primae transgressionis exortem, quem tot documentis didicit esse mortalem. Perstitit ergo inprobus praedo et auarus exactor in eum qui nihil ipsius habebat insurgere, et dum uitiatae originis praeiudicium generale persequitur, chirographum quo nitebatur excidit, ab illo iniquitatis exigens poenam, in quo nullam repperit culpam. Soluitur itaque letiferae pactionis malesuada conscriptio, et per iniustitiam plus petendi, totius debiti summa uacuatur. Fortis ille nectitur uinculis suis et omne commentum maligni in caput ipsius retorquetur. Ligato mundi principe, captiuitatis uasa rapiuntur. Redit in honorem suum ab antiquis contagiis purgata natura, mors morte destruitur, natiuitas natiuitate reparatur, quoniam simul et redemptio aufert seruitutem, et regeneratio mutat originem, et fides iustificat peccatorem. (LEO MAGNUS, 1994, SL 138, XXII).

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tográfica: O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa, de C. S. Lewis (LEWIS, 2010).

Todos conhecem o enredo: a feiticeira adquiriu direito de posse sobre Edmund, induzindo-o a trair seus irmãos. Direito que Aslan (obviamente, imagem de Cristo) reconhece. Aslan diz à feiticeira que a ofensa de Edmundo não fora dirigida a ela e pede a libertação do pecador. Começa o jogo da “Magia profunda” da aurora dos tempos (cap. 13): a feiticeira recorda a Aslan o decreto escrito, gravado em letras muito profundas e até no cetro do Imperador de Além-mar (Deus Pai): “You know that every traitor belongs to me as my lawful prey and that for every treachery I have a right to a kill” (...) “"It is very true," said Aslan, "I do not deny it" (LEWIS, 2010, s/p).

Aslan, então, em conversa privada com a feiticeira, se oferece em troca de Edmundo para ser sacrificado na Mesa de Pedra, onde os traidores são entregues à Feiticeira para sacrifício. No capítulo seguinte (cap. 14), a feiticeira descarrega todo seu ódio em Aslan, submete-o a torturas, a mofas e à morte (LEWIS, 2010, s/p).

No capítulo 15, Aslan ressuscita (para enorme surpresa de todos) e explica que há uma magia ainda mais profunda, anterior à aurora dos tempos e desconhecida pela feiticeira, segundo a qual matar uma vítima inocente implica a perda do direito do quirógrafo: “She would have known that when a willing victim who had committed no treachery was killed in a traitor's stead, the Table would crack and Death itself would start working backwards” (LEWIS, 2010, s/p).

Estamos no Brasil e não é descabido relacionar essas ideias com o rei Pelé, num memorável episódio, relembrado por Luiz Zanin, colunista de O Estado de São Paulo:

Ouço, no programa do Milton Neves na

Rádio Bandeirantes, a gravação de uma partida entre Santos e São Paulo em 1974. Nela, um lance famoso. O São Paulo ganha por 1 a 0 e o

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Santos não consegue empatar. Já no finzinho do jogo, a bola sobra na mão do goleiro Valdir Perez. Bola dominada. Pelé, dentro da área, arregala os olhos e parte para cima do goleiro, como se ele tivesse largado a bola. O zagueiro Samuel, assustado com a presença do Rei e de costas para o goleiro, agarra Pelé e comete a falta, marcada pelo juiz Armando Márquez. Pênalti que Brecha cobra e converte: 1 a 1, resultado final. O interessante é que Milton Neves reproduz as gravações da época e os jogadores do São Paulo elogiam a malícia de Pelé. Não o recriminam. Depois de repetir a gravação do jogo, Milton entrevista ao vivo o Valdir Perez de hoje, morando em Vitória, no Espírito Santo. Ele, que foi o goleiro da seleção de 1982, relembra o lance com humor e fala da capacidade inventiva única de Pelé, da sua inteligência capaz de tirar do nada um lance desses para decidir uma partida difícil. (ZANIN, 2006).

Anselmo e a teologia; a redenção e o Cur Deus Homo? Anselmo volta-se radicalmente contra essa linha

tradicional, que, desde então, foi abandonada, dando lugar à sua nova proposta, – no Cur Deus Homo? (ANSELMO, 1952) - que vai ser, em suas linhas fundamentais (e esquisitices à parte), aceita na teologia.

Uma formulação atual, por exemplo, é a dada por Pe. Garrigou-Lagrange – “O dogma da Redenção e sua explica-ção teológica” – usual na catequese cristã de hoje:

Na verdade, a injúria é tão mais grave

quanto maior a dignidade da pessoa ofendida; é mais grave insultar um magistrado do que um qualquer que nos apareça pela frente. O

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pecado mortal [...] pelo qual o homem se desvia de Deus, tem uma gravidade infinita, porque ele praticamente nega a Deus a dignidade infinita de fim último e coloca falsamente este fim num miserável bem criado. Se a ofensa cresce com a dignidade do ofendido, a injúria feita a Deus pelo pecado mortal tem uma gravidade sem limite; ela lhe recusa a digni-dade de Bem Supremo. [...] Para reparar essa desordem era preciso um ato de amor a Deus de valor infinito. Ora, nenhuma criatura, que permanece sempre criatura, pode dar a seu ato de amor esse valor infinito; seu ato, mesmo sendo sobrenatural, fruto da graça e da caridade infusa, continua finito como a criatura de que procede, como a graça e a caridade criadas, apesar de se dirigirem a um objeto infinito que é o próprio Deus. Podemos amar a Deus, mas não podemos amá-lo infinitamente. Só Ele é capaz de se amar assim. E então, para que houvesse na terra, numa alma humana, um ato de amor a Deus de valor infinito, era necessário que essa alma humana fosse de uma pessoa divina. Tal foi a alma do Verbo feito carne: seu ato de amor extraía da personalidade divina do Verbo um valor infinito para satisfazer e merecer. Era o ato de amor de uma alma humana, mas também de uma pessoa divina; é chamado por essa razão de ato teândrico, ao mesmo tempo divino e humano. (GARRIGOU-LAGRANGE, 2010).

O Cur Deus Homo?, diálogo entre Boso e Anselmo,

começa indicando que não se trata de chegar à fe pela razão, mas, dada a fé, atingir as razões, a necessidade (ratione vel necessitate) pela qual Deus se fez homem e, pela sua morte, deu vida ao mundo. (I, 1). O conteúdo da argumentação traz elementos plausíveis e outros nem tanto.

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Boso pergunta por que essa libertação, trazida por Cristo, é chamada de redenção (I, 6). De que cativeiro se trata? De fato, falar em Cristo “redentor” e “redenção” pres-supõe um cativeiro (em nossa história, redentora é a Princesa Isabel …). Seja como for, Satanás não tem direito de posse sobre o homem e o “decreto” (de Col. 2, 14) não se refere ao demônio, nem a um seu domínio sobre o homem, mas a Deus, que impõe ao pecador a servidão do pecado. (I, 7) Sim, Deus é livre, mas essa liberdade não pode contradizer aquilo que compete a Deus. (I, 12) etc.

Outros argumentos soam a nossos ouvidos como bizarrices. Como quando em I, 16, Anselmo dá, por evidente, ou facilmente demonstrável, que havia um número exato, o mais conveniente, de criaturas racionais para adorar a Deus e, com a queda dos anjos, necessariamente homens deveriam ocupar seu lugar, posto que nenhuma outra natureza seria capaz dessa substituição.

Todavia, o que mais nos interessa não é o conteúdo, mas o modo como Anselmo propõe sua teologia. Trata-se de “razões necessárias”: necessariamente seres humanos devem substituir os anjos caídos; sem nenhuma dúvida, Deus tinha que nascer de uma mulher virgem; é necessário que o Verbo Divino e o Homem se juntem numa pessoa só etc. De fato, já no “Prefácio” do Cur Deus Homo, Anselmo lança seu manifesto: apresentar argumentação racional, que prove, por razões necessárias, que é impossível a qualquer homem salvar-se sem Cristo, que o Verbo devia se encarnar etc.

Tomás e a Teologia Se o “provisório” da razão em Anselmo é, afinal, um

reforço de seu racionalismo; em Tomás, o provisório é uma recusa do racionalismo. No começo da Suma Teológica, depois das questões De Deo Uno, nas quais se dão muitos dos “preâmbulos da fé”, acessíveis à razão (e mesmo esses foi

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necessário que Deus os revelasse porque só seriam atingidos por poucos, depois de muito tempo e com mistura de muitos erros “a paucis, et per longum tempus, et cum admixtione multorum errorum, homini proveniret” I, 1, 1), Tomás vai tratar de Deus Trino (I, 32).

Nessa q. 32, já começa o artigo 1, dizendo ser impossível à razão chegar ao conhecimento da Trindade. E, na resposta à 2ª objeção, distingue entre dois tipos de razões: 1) as que demonstram cabalmente um fato raiz x, e 2) razões que não provam5 x, mas simplesmente, dado x, que é certo, essas razões se mostram compatíveis com o x dado; não o provam, mas ajustam-se de modo congruente a ele: como na ciência da astronomia, os epiciclos e excêntricos de Ptolomeu dão conta dos fenômenos que vemos no céu, que poderiam ser alcançados por outro modelo diferente!6

Podemos dar razões do primeiro tipo para provar que há um único Deus; mas para a Trindade (e tantos outros temas da Teologia) só podemos apresentar razões do

5 E isto, no dizer de Bruce D. Marshall, “sounds strikingly modern” (GRIFFITHS; HÜTTER, p. 65). 6 Ad aliquam rem dupliciter inducitur ratio. Uno modo, ad probandum sufficienter aliquam radicem: sicut in scientia naturali inducitur ratio sufficiens ad probandum quod motus caeli semper sit uniformis velocitatis. Alio modo inducitur ratio, non quae sufficienter probet radicem, sed quae radici iam positae ostendat congruere consequentes effectus: sicut in astrologia ponitur ratio excentricorum et epicyclorum ex hoc quod, hac positione facta, possunt salvari apparentia sensibilia circa motus caelestes: non tamen ratio haec est sufficienter probans, quia etiam forte alia positione facta salvari possent. Primo ergo modo potest induci ratio ad probandum Deum esse unum, et similia. Sed secundo modo se habet ratio quae inducitur ad manifestationem Trinitatis: quia scilicet, Trinitate posita, congruunt huiusmodi rationes; non tamen ita quod per has rationes sufficienter probetur Trinitas Personarum. (I, 32, 1 ad 2).

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segundo tipo: dada a Trindade (pela fé), apresentar um modelo coerente ...

Pieper esclarece mais aspectos da posição “negativa” de Tomás. Contrapondo sua concepção de Teologia à de Anselmo, Ockham e outros, Pieper afirma:

Como “teste” pode servir a questão:

Deus teria se feito homem, se o homem não tivesse pecado? É claro que há aqui inúmeras tentadoras possibilidades de especulação meta-física para a razão que pensa em conexões universais [...] poder-se-ia argumentar que seria absurdo o homem levar vantagem com o pecado etc. [...] [A resposta de Tomás é:] “A verdade sobre essa questão só a pode saber Aquele que nasceu e se encarnou porque quis” e “Não há nenhuma razão demonstrativa naquelas coisas que pertencem à fé” (PIEPER, 1973, p. 173).

[Ante a questão de Ockham, se Deus

poderia ter se encarnado em uma pedra ou asno] Tomás não fala de pedra nem de asno, nem de nada do que poderia ter sido; mas, refletindo sobre a verdade de fé de que Deus se fez homem, diz simplesmente que não saberíamos nada em absoluto se não tivesse sido revelado; e mesmo quando tenta tornar compreensível o fato da Encarnação como algo “congruente”, sua atitude é muito mais de silencioso respeito ante o mistério [...]. (PIEPER, 1973, p. 179).

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Referências

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O problema da linguagem em Tomás de Aquino

Ivanaldo Santos

Com toda certeza, Tomás de Aquino (1225-1274) é um dos grandes pensadores que a humanidade teve o privilégio de possuir. Ele não é o tipo de pensador específico ou então programado, ou seja, que discute um único ou um pequeno conjunto de temas. Pelo contrário, ele se abriu para debater quase todos os temas a que a cultura ocidental tinha acesso, no século XIII. Ele debateu sobre temas variados, como, por exemplo, Deus, a alma, a razão, a lógica, a ética e a língua-gem.

É por isso que Tomás de Aquino é um dos grandes arquipélagos da filosofia, ou seja, juntamente com pensa-dores como Platão, Aristóteles, Kant e Heidegger, Tomás conseguiu produzir uma rara obra filosófica que, ao mesmo tempo, reflete sobre temas de suma importância e influen-ciou e continua influenciando a cultura ocidental.

Este estudo não objetiva estudar a gigantesca obra do Aquinate, mas unicamente apresentar um problema dentro dela, ou seja, a linguagem enquanto problema filosófico. A importância da reflexão filosófica, desenvolvida pelo Aquinate sobre a linguagem se dá pelo motivo de que, como bem salientou Mauricio Beuchot, muitas teses e análises sobre a linguagem, desenvolvidas, no século XX, pelos filó-sofos analíticos, já estavam presentes, mesmo que de forma embrionária, em filósofos medievais como Tomás de Aquino (BEUCHOT, 1991). Além disso, as reflexões do Aquinate continuam a influenciar correntes filosóficas contempo-

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râneas que estudam a linguagem, especialmente a filosofia analítica (BRASA DÍEZ, 1976; BEUCHOT, 2010).

No entanto, não se deve imaginar que Tomás de Aquino e o pensamento filosófico cristão sejam uma unani-midade na sociedade contemporânea; justamente num momento histórico marcado pelo secularismo e por um profundo espírito anticristão. Na sociedade contemporânea, existe até mesmo um fundamentalismo secular, o qual deseja banir toda e qualquer forma de pensar oriundo do cristianismo.

Tomás de Aquino é uma das vítimas do funda-mentalismo secular. Muitas vezes seu rico pensamento é mal interpretado ou simplesmente ignorado. Por exemplo, no tocante específico ao problema da linguagem, objeto de análise do presente estudo, encontramos algumas inter-pretações impregnadas pelo secularismo e que não conhe-cem ou simplesmente negam sua profundidade filosófica. Um bom exemplo disso é a pesquisa realizada por João Wanderley Geraldi sobre os fundamentos das percepções judaico-cristãs da linguagem (GERALDI, 2010). Para ele, as ideias linguísticas do sistema judaico-cristão são equivo-cadas e preconceituosas. Isso se deve pelo fato de o mito bíblico da Torre de Babel, o qual seria o fundamento linguístico do sistema judaico-cristão, colocar a diversidade linguística como sendo um pecado, um erro diante de Deus. Segundo João Wanderley Geraldi, a consequência disso é que os teóricos do sistema judaico-cristão, e nesse caso encontra-se Tomás de Aquino, passaram a ver qualquer forma de diversidade linguística como sendo uma contra-dição, um erro, que deve ser extirpado (GERALDI, 2010).

O que faltou a João Wanderley Geraldi e a muitos outros teóricos que se pautam pela cultura secular foi uma leitura mais atenta e até mesmo menos preconceituosa dos pensadores cristãos. Por exemplo, uma criteriosa leitura da obra de Tomás de Aquino mostrará que ele não abomina a

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diversidade linguística. Pelo contrário, ele vê essa diver-sidade como sendo produto da vontade divina e uma missão, a qual o homem não pode deixar de cumprir. Ele apenas faz a justa ressalva que é preciso fazer uso ético da dimensão da diversidade linguística. O homem não é Deus. Ele não pode fazer o que bem quiser.

É preciso esclarecer que a posição de João Wanderley Geraldi não encontra apoio dentro dos estudos sobre a pers-pectiva linguística dos pensadores judaico-cristãos. Especi-ficamente quando se trata de Tomás de Aquino, as posições são bem diferentes da tese defendida por João Wanderley Geraldi. Por exemplo, Roig Gironella (1972) demonstra que há, no Aquinate, uma autêntica reflexão sobre a linguagem; Kenny (1981) apresenta as interfaces entre o Aquinate e a filosofia contemporânea, especificamente a filosofia da linguagem e Lohmann (2000) demonstra que o pensamento de Tomás de Aquino pode ser utilizado par compreender o sistema língua/pensamento. Já Jean Lauand demonstra como o pensamento de Tomás de Aquino pode ajudar a compreender a linguagem do cotidiano (LAUAND, 2002a) e, ao mesmo tempo, a metafísica das línguas indígenas, espe-cialmente as línguas Bantu e Tupi (LAUAND, 2002b). Como é possível perceber pelos exemplos apresentados há em Tomás de Aquino, uma expressiva reflexão sobre a lingua-gem.

Sobre esse aspecto, é bom recordar o que diz Paulo Faitanin sobre a posição do Aquinate diante da linguagem, ao afirmar que Tomás de Aquino não escreveu um tratado sistemático onde expôs sua teoria sobre a linguagem. No entanto, em diversas obras de sua Opera Omnia, discute e analisa a linguagem. Dentro desse quadro, é preciso destacar as doutrinas e discussões que se encontram nas principais obras do Aquinate, sendo elas: Summa Theologiae, Contra Gentiles, De Veritate, De Anima, Sententia Libri de Anima, Sententiam Super Metaphysicam, De Natura Verbi Intellectus, De

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Interpretatione, De lallacis, De Demonstratione, De Quatuor e II Analyticos Posteriora (FAITANIN, 2010).

Na Suma Teológica (III, q. 60, a4, c), Tomás de Aquino afirma que a linguagem é o veículo pelo qual o ser humano exterioriza o conhecimento intelectual. E essa exteriorização é feita por meio de sinais sensíveis, falados e escritos, ou seja, por todo o conjunto da linguagem. Para ele, a linguagem é a grande ferramenta humana para simultaneamente se comu-nicar e transformar o mundo exterior à mente. Se não houvesse a linguagem, o ser humano estaria limitado à dimensão interna do intelecto, e, com isso, não haveria comunicação entre os indivíduos, com a sociedade e com o mundo físico. A linguagem tira o homem da solidão, do isolamento pessoal e social. E, por usa vez, joga-o dentro do universo das relações interpessoais, sociais, culturais e em contato com o mundo físico. Essa é uma concepção sofis-ticada sobre a linguagem. Em grande medida, o século XX retoma, com mudanças, essa concepção. Por exemplo, nesse século, o filósofo pragmático Richard Rorty defende a tese de que a linguagem, ao tirar o homem do isolamento, da soli-dão – concepção que está presente no Aquinate – torna-se a ferramenta que possibilita ao homem ser uma espécie de ação e transformação de si mesma, da sociedade e da natu-reza.

No século XIII, o Aquinate demonstrou ser a língua-gem um dos problemas que, de forma direta ou indireta, precisam ser pesquisados pela filosofia. Para ele, o homem não pode manipular a linguagem da mesma forma que um cientista manipula uma fórmula química em laboratório, ou seja, com precisão e rigor. Se fosse possível manipular a linguagem com precisão e rigor, o homem seria Deus, e, por conseguinte, todos os problemas da vida humana estariam resolvidos. Entretanto, a realidade é outra. A linguagem é um ente vivo que, muitas vezes, extrapola os limites da estreita compreensão humana.

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Para o Aquinate, ao invés de haver uma compreensão absoluta da linguagem, é preciso haver um "tratamento" conceitual sobre ela. É preciso esclarecer que a palavra “tratamento” é utilizada não no sentido de compreensão lógica, de construção de uma metalinguagem, da forma como é encontrada em Wittgenstein – principalmente na primeira fase da sua pesquisa filosófica, representada em grande medida pelo Tratado lógico-filosófico – e em grande parte da análise filosófica sobre a linguagem desenvolvida no século XX. Utiliza-se a palavra “tratamento” apenas como sendo a necessidade de se investigar a linguagem. Junto com todas as outras questões metafísicas (ser, realidade, Deus, etc), é preciso pensar sobre e com a linguagem. No entanto, é surpreendente que Tomás de Aquino, em pleno século XIII, tenha tido uma percepção sobre a linguagem que viria a ser profundamente investigada no século XX, especialmente por Wittgenstein e seus seguidores. Neste sentido, é preciso ver que o Aquinate realizou uma reflexão perene sobre proble-mas filosóficos e, no caso específico, sobre a linguagem.

Seria demasiadamente cansativo apresentar toda a reflexão do Aquinate sobre a linguagem. Isso consumiria um tratado ou um manual de filosofia tomista; algo que não é o objetivo do presente estudo. Por isso, optou-se por realizar um estreitamente na discussão e apresentar, mesmo que de forma tangencial, a discussão da linguagem realizada por Tomás de Aquino, a partir da Suma Teológica, doravante ST. Essa apresentação será feita por meio de quatro questões expostas pelo Aquinate.

A primeira questão é a formação do conceito ou da palavra pensada. Para o Aquinate, a palavra só pode ser expressa por meio do som, se antes ela for pensada. Só é possível um indivíduo olhar para um objeto singular e dizer “cadeira” ou outro nome, se existir um conceito de “cadeira” e os demais conceitos. Sem o conceito, é quase impossível haver o reconhecimento de um objeto; sem ele, o objeto é

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sempre novo e o indivíduo não saberá pronunciar seu nome. É por esse motivo que, dentro de uma compreensão da linguagem, é preciso saber como se dá a formação do conceito no intelecto.

Para Tomás de Aquino (ST, I, q. 30, a3, ad2), o conceito se forma pela simples apreensão da essência de um objeto, na medida em que, simultaneamente, o intelecto nega ou afirma algo sobre o objeto e, com isso, vai produzindo um conceito. Por exemplo, uma “cadeira” não possui as mesmas características e funções de uma “mesa”. Então, por compa-ração, por processo de negação e afirmação, o intelecto constrói e, ao mesmo tempo, separa o conceito de “cadeira” e de “mesa”. Com isso, verifica-se que há um ente individual do tipo “cadeira”, “mesa” e outros. Essa discussão permitiu ao Aquinate avançar rumo à questão da singularidade.

Para Tomás de Aquino (ST, III, q. 13, a12, c) o conceito é fruto da concepção que o intelecto faz, pela abstração, ao considerar a dimensão universal de um ente particular. Por exemplo, o intelecto percebe que não existe apenas uma “cadeira” ou uma “mesa” no mundo, mas que existem milhares e milhares desses objetos. São objetos que, apesar de terem cores e outros acidentes diferentes, possuem a mesma essência. Por isso, ao invés de se criar milhares de nomes diferentes para as milhares de “cadeiras” ou “mesas” que existem, simplesmente cria-se uma única palavra para designá-los, ou seja, cadeira e mesa.

Com isso, o intelecto cria uma similitude que é capaz de expressar, mesmo que de forma parcial, o objeto. Essa similitude é a palavra (ST, I, q. 27, a2, ad2). É preciso esclarecer que, para Tomás de Aquino, a palavra não reproduz ou copia o objeto. Se isso acontecesse, não haveria separação entre palavra e objeto. Quando um indivíduo olhasse para um objeto, automaticamente estaria presente a palavra ou, então, quando uma palavra fosse pronunciada, automaticamente o objeto se materializaria. O problema é

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que na prática isso não acontece. A palavra não possui o poder de literalmente materializar o objeto. Ela apenas o recorda. Ela é uma semelhança do objeto, composta por som, sinais gráficos e conceito, mas não o próprio objeto. Em Tomás de Aquino, há uma separação entre palavra e objeto; entre conceito e objeto.

É por causa disso que R. H. Robis afirma que a teoria da linguagem, no Aquinate, é um realismo moderado de inspiração aristotélica. Para essa teoria, os universais são abstraídos das propriedades reais dos objetos singulares, os quais não existem independentemente, fora do intelecto. A mente abstrai os modi essendi dos objetos, considerando-os como modi intelligendi, e, com isso, a linguagem permite que tais abstrações sejam comunicadas por meio dos modi significandi (ROBINS, 1983).

A partir do século XVIII, uma série de pesquisas realizadas demostraram que as línguas diferem entre si quanto a sua constituição gramatical e quanto às categorias semânticas associadas às suas mais importantes caracte-rísticas formais. A consequência dessa demonstração é que houve uma série de objeções e críticas à teoria do Aquiante. Sem dúvida a teoria do realismo moderado tem seus limites. Até porque, no século XIII, o Aquinate não tinha acesso aos estudos sobre gramatica comparada. No entanto, é preciso ver que a teoria do Aquinate é importante porque demons-tra, com certa precisão, a formação do conceito no intelecto e, por conseguinte, como o intelecto distingue um objeto de outro. Essa distinção é uma das bases linguísticas do princípio de nomeação dos objetos.

A segunda questão, a qual emerge como consequência da primeira, é a singularidade. Segundo Tomás de Aquino, o intelecto, ao contemplar o mundo exterior, a mente encontra objetos expressos de forma singular, individual. O intelecto formula um conceito e uma palavra que são universais, ou seja, são acoplados aos objetos singulares, mas são distintos.

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Para ele, o individual, o singular é algo que de nenhum modo pode ser comunicável a muitos (ST, I, q. 11, a3, c) e cuja essência é ser único e distinto de todo o resto (ST, I, q. 13, a9, c). Por exemplo, o singular “cadeira” não pode ser confundido ou fundido com outro singular. Por mais que uma “cadeira” seja diferente e exótica, ela sempre será reconhecida como cadeira. Em casos específicos, como, por exemplo, quando um artista pega uma cadeira e transforma-a em objeto de arte, o singular continua existindo. Neste caso, existe o objeto de arte construído a partir da cadeira. Do ponto de vista do conceito e da palavra, os objetos não se fundem ou se confundem. Eles são separados, distintos. E por isso é possível nomeá-los isoladamente.

Sobre essa questão, Tomás de Aquino afirma, no estudo O princípio de individuação (n. 5), que, diante do objeto próprio de uma potência, a outra não se dirige senão por acidente; ou seja, as potências são distintas, singulares, individuais. O que existem são acidentes comuns, a vários tipos de potências diferentes. Por exemplo, a cor “verde” pode estar contida em várias potências, como, por exemplo, em “cadeira”, “mesa” e outras. No entanto, essas potências apenas possuem o acidente “cor verde”, mas continuam sendo individuais. Quando uma pessoa olha para uma “cadeira” e uma “mesa”, vê objetos diferentes, apesar de am-bos possuírem a mesma cor ou terem outras características semelhantes.

A terceira questão é a formação da palavra expressa por meio do som. Para Tomás de Aquino, existe a palavra pensada ou verbo mental, a qual é a expressão inteligível do conhecimento do mundo sensível. Apenas a palavra pensada é limitada ao intelecto. Ela não é expressa por meio do som e das sílabas. É uma palavra que está apenas no pensamento. O problema é que o ser humano não se comunica por meio da pura transmissão do pensamento, por telepatia. Em

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grande medida, a comunicação humana se dá por meio da palavra falada, da palavra mediada pelo som.

Em Tomás de Aquino, a palavra falada significa a coisa mediante o conceito (ST, I, q. 13, a1), ou seja, quando se pronuncia uma palavra não se está emitido apenas um som, mas também um conceito, o qual indica um objeto. É por esse motivo que ele (ST, I, q. 51, a3, ad4) considera a voz como sendo o som material sensível da palavra, o qual permite a comunicação entre os seres humanos. É surpre-endente que, em pleno século XIII, Tomás de Aquino já demonstrasse a dimensão material da palavra e do som. Essa demonstração só vai (re)aparecer no século XX, com filósofos analíticos, como, por exemplo, Austin e Searle.

A quarta e última questão é o significado. Tomás de Aquino distingue o significado de uma palavra de como é utilizado para significar. Por essa distinção é possível que uma palavra realmente indique um objeto singular ou, então, que esteja significando outro objeto. Para ele, a palavra nem sempre conserva o mesmo significado. Por isso ele criou uma tríplice divisão para explicar a relação palavra e significado.

Primeira, existe o termo unívoco (ST, I, q. 5, a6, ad3,), ou seja, a palavra que indica uma mesma essência, que se diz de uma única natureza. Neste caso, há a concordância entre a palavra e o objeto. Por exemplo, quando se diz a palavra “cadeira” e realmente está se referindo a uma cadeira.

Segunda, existe o termo equívoco (ST, I, q. 4, a2, c), ou seja, é quando uma única palavra indica várias coisas. Neste caso, não existe uma proporcionalidade entre a palavra e a essência dos objetos, pois há uma única palavra e vários objetos. Um bom exemplo é a palavra “sete”. Essa palavra pode significar o número, o nome de uma marca de sapato e até mesmo o nome de um indivíduo. Nesse caso quem vai demostrar qual a verdadeira relação entre palavra e objeto é o contexto sociocultural em que a palavra é pronunciada.

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Mais uma vez, Tomás de Aquino se antecipa às pesquisas realizadas no século XX, pois é, nesse século, que filósofos da linguagem, como Grice, irão pesquisar a dimensão sociocul-tural e interacional da linguagem.

Terceira, existe o termo análogo (ST, I, q. 13, a5, c), ou seja, é uma palavra que comumente se aplica a muitos objetos ou situações sociais. Para Tomás de Aquino (ST, I, q. 13, a10, c), nesse caso, há uma comparação por proporção, na qual uma palavra, de acordo com o significado aceito socialmente, é posta na definição da mesma palavra sendo com outro significado. Por exemplo, a palavra “prisão” pode ser tomada em seu significado jurídico ou, então, como uma situação psicológica vivenciada por um indivíduo.

Por fim, afirma-se que, de um lado, as pesquisas em filosofia da linguagem, realizadas no século XX, apontaram erros e limitações nas teses apresendas por Tomás de Aquino, mas, por outro lado, demonstraram que o Aquinate, com intuição genial, antecipou essas pesquisas. No século XXI, os rumos da pesquisa em filosofia da linguagem não podem deixar de olhar para a tradição filosófica. A tradição não pode ser renegada. E, nesse caso, o estudo acurado da obra de Tomás de Aquino poderá ajudar no avanço da investigação filosófica sobre a linguagem.

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A linguagem da alteridade em Tomás de Aquino1

Sergio de Souza Salles

I. Introdução Uma das razões para um estudo da linguagem da

alteridade em Tomás de Aquino é justamente a sua visão conciliadora e complementar da abordagem filosófica e teológica da categoria do outro (“alius”). É o que procura-remos demonstrar, ao longo dessa reflexão, cujo ponto de partida é a análise dos significados de “alius”, “diversitas”, “differentia” e “alteritas” em Tomás de Aquino.

Outra razão pode ser obtida da literatura contem-porânea sobre o tema da alteridade em Tomás de Aquino. Afinal, há quem defenda o uso do termo alteridade para expressar a distinção das pessoas divinas. Nessa linha interpretativa, encontram-se os estudos de Mario Pangallo (1998) e Gilles Emery (2007). É nosso intuito, ainda que secundário, questionar se o termo (“alteritas”) é atribuído realmente por Tomás de Aquino para significar as pessoas da SS. Trindade.

A fim de alcançar esses objetivos, procedemos à análise por pares de termos para facilitar o acompanhamento não só do léxico tomista, mas, sobretudo, das questões e respostas abordadas pelo autor. Guiam-nos os seguintes pares concei-tuais, na tentativa de estabelecer a síntese filosófico-teológica

1 O texto aqui apresentado é uma adaptação de: SALLES, S. S. Diversidade e alteridade em Tomás de Aquino. In: Conhecimento & Diversidade, n. 1, p. 45-58, jan/jul, 2009.

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genuína do Doutor Angélico sobre o tema do outro: 1) alius-diversus; 2) diversitas-differentia; 3) differentia-alteritas.

II. Alius e diversus Tomás de Aquino volta-se intensamente, em sua obra,

para o tema do outro. Ele o faz com frequência como teólogo que procura aprofundar os mistérios de sua fé, dando-lhe o necessário suporte intelectual. Com efeito, desde seus pri-meiros escritos, o Aquinate (2002a, p.332) procura resolver se o Filho é outro (“alius”) em relação ao Pai. Essa é uma questão que o acompanhará ao longo de sua carreira acadê-mica e cuja solução depara-se com dificuldades presentes na própria linguagem, ou seja, com o nosso modo imperfeito de significar o outro.

O que permanece constantemente da leitura das questões relativas à distinção do Filho em relação ao Pai é o caráter filosófico e analítico da resolução proposta pelo autor, que não concebe a noção de outro como unívoca. Ao contrário, o Aquinate entende-a como possuindo duplo significado análogo, a saber:

1) Em sentido estrito, “outro” diz-se em relação ao que é diverso (“diversum”);

2) Em sentido lato, do que é distinto (“distincto”), mas não necessariamente diverso.

A analogia da noção de “outro” funda-se na noção

comum de distinção (“distinctio”), pois todo diverso é dis-tinto, ainda que nem todo distinto seja diverso. Nessa primeira aproximação ao tema do outro, vê-se claramente o elo estabelecido entre a noção de “alius”, “diversus” e “distinctus”. O outro enquanto “alius” pode ser “diversus” ou “distinctus”.

Por que razão haveria Tomás de Aquino de estabelecer uma distinção entre o alius qua diverso e o alius qua distincto?

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Como veremos, isso resulta, primeiramente, da categoria filosófica do “diversum” que, desde Aristóteles, supõe ser esta uma diversidade essencial, enquanto a categoria do “distincto” é mais universal e indeterminada a esse respeito. Em segundo lugar, a flexibilidade e a abertura das categorias filosóficas, incluindo-se, aí, a de “outro”, é uma necessidade para o teólogo que procura saber se o Filho é ou não outro em relação ao Pai.

Em relação ao duplo modo de significar outro (“alius”), acrescenta Tomás de Aquino (2002a, p.334; 2002c, p. 309) novo desdobramento. Trata-se de uma precisão a respeito do primeiro sentido, pois, em sentido metafísico, o outro, como diverso, diz-se do que não é o mesmo quanto à substância (“substantia”2), mas, como substância, pode ter igualmente duplo sentido. Portanto, é preciso explicitar os significados de outro em razão dos significados de substância.

Nessa nova comparação conceitual, Tomás de Aquino passa a empregar o termo “outro” em dois sentidos:

3) Um universal, para designar o diverso quanto à essência (“essentia”);

4) Um particular, para significar o distinto quanto à subsistência3, ao supósito (“suppositum”)4 ou à pessoa (“persona”)5.

2 Por “substância”, entende-se o ente, cuja essência compete ser em si e não em outro. Noção oposta à de “acidente”, que denota o ente, cuja essência compete ser em outro e não em si. A substância pode ser designada ainda por três outros nomes: 1) o de coisa da natureza (“res naturae”); 2) o de subsistência (“subsistentia”); 3) o de hipóstase (“hypostasis”). Sobre essas noções, confira Tomás de Aquino (2001, p. 525-527). 3 Por “subsistente”, entende-se todo ente individual que subsiste em um único ato de ser (“actus essendi”). Na filosofia tomista, o ente é o que tem ato de ser (“id quod habet esse”) e, por isso, não se deve confundir a noção de ente (“ens”) com a de “ser” (esse). Para o Aquinate, o ser é o ato de todos os atos e a perfeição de todas as

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Nesse último caso, deve-se acrescentar que “outro” supõe um nome particular a fim de indicar a distinção da substância, em razão de sua dignidade em ser pessoa (2001, p. 549).

É aqui que Tomás de Aquino revela-se portador de uma tradição filosófica, cuja origem está no cristianismo. Afinal, em sua análise filosófica de “alius”, compreende o outro como incomunicável por ser pessoa. A noção do outro enquanto pessoa é irredutível à noção de outro-ser (“aliud”) e à de ser-outro (“alter”), conforme veremos.

É importante observar que o sentido universal de “outro” é uma clarificação do seu sentido estrito, enquanto o sentido particular de “outro” é um caso de seu sentido lato. Em síntese, poderíamos resolver os quatro sentidos acima apresentados, em dois:

1) Em sentido estrito e universal, “outro” diz-se do diverso quanto à essência;

2) Em sentido lato e particular, “outro” diz-se do que é distinto em razão de ser pessoa.

Graças à compreensão da riqueza semântica de “ou-tro” (“alius”), Tomás pode afirmar, sem contradição e por analogia, que o Filho é outro em relação ao Pai, no sentido de que é distinto (quanto à pessoa), mas não diverso (quanto à essência e ao ser). Assim, o Pai e o Filho são “outro e outro” (“alius et alius”) quanto às pessoas, mas não são “outro-ser e perfeições do ente. A esse respeito, confira Tomás de Aquino (2003, p. 184-185). 4 Por “supósito” (“suppositum”) ou “hipóstase” (“hipostasis”), compreende-se o ente singular completo, ou seja, o singular subsistente, p.ex., Sócrates, Platão, etc. Daqui resulta que o “supósito” é o que é por si mesmo subsistente e incomunicável a outro. 5 “Pessoa”, por fim, é o nome dado ao ente singular subsistente (“suppositum”) que possui a dignidade de uma natureza racional e espiritual.

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outro-ser” (“aliud et aliud”) quanto à essência (2002a, p. 333; 2001, p. 547-548; 2002c, p. 82-85).

Cabe aqui, ainda, uma nova distinção entre o sentido de “outro” como “alius” e como “alienum”, já que, nesse último termo, expressa-se não só o conceito de desseme-lhante, mas, sobretudo, do outro enquanto estranho/ extrínseco (“extraneus”); o que não é pressuposto na noção de “alius”. Em suma, “alius” sempre pressupõe a distinção (em sentido lato e particular) e a diversidade (em sentido estrito e universal), mas não se refere ao ser estranho/extrínseco (TOMÁS DE AQUINO, 2001, p. 549).

No vocabulário filosófico de Tomás de Aquino, o que há de comum nos modos de dizer o “outro” é sempre a pre-sença de uma distinção (“distinctio”) e não necessariamente da diversidade (“diversitas”), da diferença (“differentia”) ou mesmo da alteridade (“alteritas”).

À primeira vista, pode parecer alheio ao senso comum que o “outro”, em seu sentido lato, possa significar o que não pressupõe a diversidade, a diferença e a alteridade, mas somente a distinção. Todavia, esse desconforto nocional tende a desaparecer, no momento em que aprofundarmos os significados de diversitas, differentia e alteritas no corpus thomisticum.

III. Diversitas e differentia

O locus clássico da abordagem da diversidade e da

diferença para um autor medieval é a Metafísica de Aris-tóteles (CENTORE, 1972). A leitura do capítulo nono do quinto livro e do terceiro capítulo do décimo livro da Meta-física apresenta o contraste entre diversidade e diferença, que encontraremos mais tarde nas obras do Aquinate.

É mister destacar que os distintos significados de diversidade e diferença são múltiplos como múltiplos são os significados de ente. Aristóteles esforçou-se por classificá-los

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em sua Metafísica. Entretanto, não é necessário enumerá-los todos aqui para delimitar em que consiste a distinção entre o diverso e o diferente na filosofia aristotélica, pois a diferença é uma noção mais restrita ou menos extensa do que a de diversidade.

Com efeito, para Aristóteles (REALE, 2002, p.217-219), todo diferente é diverso, mas nem todo diverso é diferente. Deduz-se isso do fato de que diversas dizem-se as coisas que não são únicas e idênticas, seja quanto à substância, à espécie ou à matéria. Já diferentes dizem-se as coisas que, mesmo sendo diversas, são por alguma razão a mesma. Da com-paração entre coisas diferentes, resulta que são diferentes, por exemplo, os indivíduos que pertencem à mesma espécie e as espécies que pertencem ao mesmo gênero. A identidade aqui exemplificada é, obviamente, a específica e a genérica. Em suma, devemos procurar a diferença somente naquelas coisas que, em parte, são idênticas e, em parte, diversas, enquanto a diversidade encontra-se naquelas coisas que de nenhum modo são idênticas.

Em seu Comentário à Metafísica (1995, p. 650-657), Tomás de Aquino acompanha a distinção aristotélica entre diversidade e diferença, aprofundando-a e incorporando-a à sua própria filosofia. Para o Aquinate, o diverso (“diversum”) diz-se do que é total e absolutamente oposto ao mesmo, enquanto o diferente (“differens”) do que é parcial e relati-vamente oposto ao mesmo. Acrescenta, ainda, que as coisas ditas diversas o são por si mesmas (“seipsas diversa sunt”), enquanto aquelas ditas diferentes o são por outro (“aliquo alio”). Por definição, portanto, toda diferença pressupõe a conveniência em algo, pois toda coisa diferente em parte coincide com a outra da qual difere. Por seu turno, toda diversidade funda-se no ser que é por si mesmo outro (“esse quod est aliud”). Do ser-outro se diz que é propriamente diverso e não diferente.

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Recupera-se, assim, coerentemente, aquele primeiro sentido estrito e universal do outro como ser que é diverso, a partir da reflexão sobre o diverso como ser que, sendo oposto ao mesmo absolutamente, é por si mesmo outro.

Não obstante, reconhece Tomás de Aquino que o sentido próprio de diverso e de diferente não impede um uso no qual ambas as noções se aproximam, ainda que impropriamente. É o que ocorre com as coisas que, sendo de gêneros distintos e nada possuindo em comum, são ditas diferentes. Há, assim, um duplo significado de diferente/ diferença em Tomás:

1) Um próprio, distinto de diverso/diversidade; 2) Um impróprio, sinônimo de diverso/diversidade. Em suas demais obras, Tomás de Aquino retomará a

mesma distinção conceitual, proposta por Aristóteles, entre diversidade e diferença, no âmbito de sua reflexão teórica sobre o “outro” (“alius”). No Comentário às Sentenças (2002a, p.281-283), ao investigar se Deus é o ser de todas as coisas, depara-se com uma objeção que conclui pela identidade de Deus e das coisas em razão da inexistência de diferença entre os mesmos. Com efeito, sustenta a objeção que todas as coisas que são e em nada diferem são a mesma. Ora, como Deus e as coisas são e em nada diferem, então são o mesmo, conclui sua objeção.

É justamente por negligenciar a distinção entre o diverso e o diferente que a objeção proposta infere a plena identidade do ser divino e do ser das coisas. Mas, pondera Tomás de Aquino (2002a, p. 282), os entes primeiros são di-versos por si mesmos e os entes provenientes dos primeiros são diferentes por diversidades primeiras. Com Aristóteles, novamente, reafirma que o diverso diz-se absolutamente, enquanto o diferente é dito relativamente. Por essa razão, o ser de Deus e o ser criado não diferem por alguma diferença acrescida, mas são diversos por si mesmos. Como todo

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diverso é o ser que é por si mesmo outro, então Deus é outro (“aliud”), em sentido próprio e estrito em relação às demais coisas.

Em suas Questões sobre a Potência Divina, por ocasião da questão sobre a simplicidade da essência divina, Tomás de Aquino (2003, p. 195) reitera que o diverso e o diferente são distintos. O diverso diz-se do que não é o mesmo em absoluto (“non est idem absolute”), enquanto o diferente diz-se em relação a algo (“ad aliquid”), pois todo diferente o é por algo. Lembra-nos que o termo “diferente” pode ser utilizado em sentido estrito, significando o que difere por algo, ou em sentido abrangente, para significar o que difere por si mesmo (“per se ipso”). Nesse último caso, diferente torna-se sinônimo de diverso, enquanto no primeiro não o é.

A fim de esclarecer a importância teórica da distinção entre o diverso e o diferente, o Doutor Angélico aplica sua análise ao exame da veracidade da seguinte proposição: “Todas as coisas que são e em nada diferem são a mesma”. Tal proposição, aliás, que servira de base, em seu Comentário às Sentenças, para a formulação da objeção que identificava Deus e o ser das criaturas. No sentido estrito de diferença, uma tal proposição é falsa pois todas as coisas que são e em nada diferem não são necessariamente a mesma. Afinal, embora não sejam diferentes, podem ser diversas. Mas, como todo diferente é diverso, então, em sentido lato, a proposição é verdadeira, pois diferente pode assumir, ainda que impropriamente, o significado idêntico ao de diverso.

O mesmo vale para a interpretação da seguinte proposição: “Deus é diferente das outras coisas”. No sentido estrito de diferença, a proposição é falsa, pois Deus e as criaturas não coincidem em nada e não diferem em razão de alguma diferença ulterior. No sentido lato, porém, é legí-tima, em razão da mesma ressalva anterior, a saber: o dife-rente, em sentido impróprio, significa o mesmo que o diver-so. Nessa acepção imprópria, Deus é diferente das outras

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coisas porque é diverso. A diversidade, doravante, implicará sempre que o ser é por si, e não por alguma diferença, outro distinto absolutamente do mesmo.

Duas observações são oportunas. Em primeiro lugar, embora o argumento de Tomás não explicite a consideração inversa, é fácil entender que a proposição “todas as coisas que são e em nada divergem são a mesma”, bem como a proposição “Deus é diverso das outras coisas” são sempre consideradas verdadeiras. Em segundo lugar, as proposições que privilegiam o uso do termo diferente, quando verda-deiras, graças ao sentido impróprio, não são verdadeiras porque as coisas diversas são diferentes, mas porque as diferentes são diversas.

Também na Suma Teológica e na Suma Contra os Gentios, Tomás de Aquino (1977, p. 21-22; 2002b, p. 595) apresenta a distinção aristotélica entre o diferente e o diverso, por ocasião da resposta à terceira objeção, segundo a qual “todas as coisas que existem e que não diferem de modo algum são idênticas”. Trata-se, aliás, da mesma premissa maior que acompanhava as objeções no Comentário às Sentenças e nas Questões sobre a Potência Divina.

Em sua resposta, vincula a mencionada distinção conceitual ao seu fundamento ontológico. Com efeito, duas coisas diferentes entre si o são por diferenças que as consti-tuem. Por essa razão, coisas diferentes são necessariamente compostas. Mas duas coisas diversas, que o são por si mesmas, não o são por diferenças que as constituem. Logo, duas coisas diversas não são necessariamente compostas. É por isso que os seres simples (p. ex., os anjos) são necessa-riamente diversos por si mesmos e não por diferenças acrescidas à sua constituição ontológica.

Ainda na Suma Teológica, acrescenta Tomás de Aquino (2001, p. 549), por ocasião da questão se o Filho é outro (“alius”) em relação ao Pai, uma ulterior precisão. Não só na escolástica medieval, mas também hoje, há quem indique a

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pluralidade em Deus graças à diferença das pessoas divinas. Tomás, porém, recusa enfaticamente a atribuição de qual-quer diferença às pessoas divinas. Alega, para tanto, que toda diferença importa uma distinção da forma. Aqui, To-más não utiliza a noção de diferença em seu sentido estrito e próprio, mas lato e impróprio. Afinal, o diferente só é o mesmo que o diverso quando há distinção da forma, ou seja, diversidade da essência, natureza ou substância.

É evidente que há, para o Aquinate, um uso próprio e um impróprio do termo “diferença”, sendo o contexto Téo-rico que esclarecerá o seu uso. É justamente em razão do contexto teológico do debate que o próprio Tomás de Aqui-no prefere o uso da linguagem da distinção (“distinctio”) à da diversidade e da diferença.

É o que se pode notar, na Suma Teológica, quando Tomás interpreta o termo “differentia”, nas obras dos Padres da Igreja, em particular na tradução latina do De Fide Orthodoxa, de Damasceno. Aqui, explica a fórmula “diferen-ça das pessoas” como empregada no sentido de “distinção das pessoas”. A análise filosófica dos significados do termo diferença promove, assim, uma releitura das fórmulas dos Padres, que evita qualquer contradição com o sentido filosófico dos termos empregados pelo teólogo.

Em suma, o Doutor Angélico ora correlaciona a diferença à diversidade, ora a diferença à distinção. Mas sempre o faz consciente de que se trata de um uso impróprio e abrangente. Em seu sentido propriamente filosófico, a diferença só convém às coisas que em parte coincidem e em parte não. Por seu turno, em seu sentido próprio, a diver-sidade só convém às coisas que são por si mesmas distintas, ou seja, que são distintas pela forma, essência ou substância. Mas, em seu sentido impróprio, tanto a diferença quanto a diversidade podem ser empregadas para significar a distin-ção.

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IV. Differentia e alteritas Dos pares que nos propusemos analisar, resta-nos

apenas um, aquele que compara a diferença (“differentia”) à alteridade (“alteritas”). O debate escolástico em torno da alteridade remonta ao De Trinitate, de Boécio, que discute se a mesma é o princípio da pluralidade.

A herança teórica de Boécio faz-se notar em seus comentadores medievais do século XII, para os quais onde há pluralidade há também alteridade (EVANS, 1975). Não só a pluralidade pressupõe a alteridade, como também a mutabilidade. Por essa razão, os comentadores latinos de Boécio excluíam categoricamente de Deus a alteridade e, com ela, a pluralidade e a mutabilidade.

No primeiro artigo da quarta questão de sua exposição ao De Trinitate de Boécio, Tomás de Aquino (2008) questiona se a alteridade (“alteritas”) é a causa da pluralidade (“pluralitas”). Propõe-se tratar, especificamente, da alteridade e, por meio dela, da diversidade e da diferença a fim de estabelecer, em última instância, a(s) causa(s) da pluralidade.

Em sua resposta à questão, afirma, com Aristóteles, que uma coisa diz-se plural em razão de ser divisível ou dividida e diz-se uma, na medida em que é indivisível. Assim sendo, a causa da pluralidade deve ser a mesma que a da divisão. Tomás de Aquino, assim, reinterpreta o tema boeciano da alteridade à luz da divisão.

Em seguida, faz uma ressalva críptica: não é a mesma a causa da pluralidade nas coisas posteriores e compostas, em relação à causa da pluralidade nas coisas primeiras e simples. Mas, antes mesmo de determinar a diversidade das causas da pluralidade nos entes simples e compostos, lembra que a divisão na ordem da quantidade não é a mesma da divisão na ordem do ser.

Com efeito, a parte de uma linha é dividida de outra parte em razão da diversidade de lugares. A diferença entre

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as partes da linha e a pluralidade daqui decorrente tem sua razão na divisão do contínuo quantitativo pela extraposição de suas partes integrantes. Já no caso da divisão na ordem do ser, uma coisa distingue-se de outra, nos diz Tomás, em razão de diversas diferenças constitutivas (“diversas differentias constitutivas”). Em outros termos, a razão para a diversidade encontra-se na própria constituição ontológica do ente, pois mesmo os indivíduos diferentes entre si e pertencentes à mesma espécie são diversos segundo o seu ser (WINIEWICZ, 1977).

Ainda assim, restaria determinar a causa da diver-sidade, na constituição ontológica dos entes simples e com-postos, o que conduz Tomás de Aquino à sua filosofia do outro enquanto uma noção transcendental conversível com a de ente. O outro enquanto “aliquid” reveste-se de impor-tância decisiva para a filosofia tomista dos transcendentais e para o tema particular de nossa investigação.

Para o Aquinate, o ente (“ens”) enquanto tal não pode ser dividido. Afinal, o ente só pode ser dividido por sua negação, ou seja, pelo não-ente (“non ens”). Daqui Tomás conclui que este ente não pode se dividir daquele outro se não houver neste a negação daquele outro ente. Como destaca Jan Aertsen (2003, p. 218-219), é patente que a divisão, para Tomás de Aquino, pressupõe a afirmação e a negação, mas também a relação de um ente com outro ente.

Daí a importância do conceito transcendental “aliquid”, que literalmente quer dizer “outro que”. Como todo ente é determinado em seu modo de ser (ou seja, em sua essência), o mesmo traz em sua própria constituição ontológica a negação de outro ente que também é determinado em seu modo de ser. É justamente em razão de seu modo determinado de ser que cada ente pode ser dito outro que (“aliquid”).

Essa compreensão pressupõe que todo ente que não é o seu próprio ser é distinto de outro pela sua própria essência.

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Essa também é a razão, como demonstra John Wippel (2000, p. 178-190), pela qual Tomás sustenta que Deus, que é o seu próprio ser (“ipsum suum esse”), distingue-se, verdadei-ramente como outro-ser (“aliud”), de tudo o que é, mas não é o seu próprio ser.

Em síntese, o argumento poderia ser descrito do seguinte modo. Todo ente, enquanto ente, não pode ser dividido. Entretanto, como todo ente possui em si, em sua constituição ontológica, um determinado modo de ser, cada ente traz consigo, intrinsecamente, a negação de outro ente, que é, intrinsecamente, outro em seu determinado modo de ser. É neste horizonte que se deve entender a afirmação, segundo a qual a pluralidade dos entes compostos não é a mesma que a dos simples, pois não possuem o mesmo determinado modo de ser.

A conclusão do Comentário ao De Trinitate, de Boécio, é clara: cada ente é outro por si mesmo enquanto é diverso por si mesmo, por sua própria constituição ontológica, por seu determinado modo de ser. Ora, como vimos, não é a mesma a causa da diversidade e a causa da diferença nos entes compostos e simples. E, aqui, mostra-se relevante a compa-ração da noção de alteridade à de diversidade.

A alteridade (“alteritas”), diz-nos Tomás (2008), em acordo com Boécio, só se atribui aos entes compostos que são diferentes pelo gênero, pela espécie ou pelo número – o que, evidentemente, não pode ser atribuído a Deus. A diver-sidade (“diversitas), porém, atribui-se a todo ente por si mesmo enquanto possuidor de um determinado modo de ser (de uma essência), distinto(a) daquele outro ente (“aliquid”).

Na Suma Teologócia, Tomás de Aquino (2002c, p. 84) apresenta a alteridade como uma noção menos extensa e mais restrita do que a de diferença. Com efeito, toda alte-ridade pressupõe uma diferença acidental e não uma dife-rença essencial. A alteridade, afirma o Aquinate, vincular-se-

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á sempre às diferenças de qualidade, quantidade e relação, por exemplo, que pertencem à ordem do que é em outro, mas não é em si mesmo.

Assim como a noção de diferença opõe-se à de diversidade, porque as coisas diferentes coincidem em algo e em parte são diversas, assim também a noção de alteridade pressupõe a coincidência em algo e, em parte, a diferença. Mas tanto a coincidência quanto a diferença, no caso da alteridade, pertencem somente à ordem acidental.

Em outros termos, enquanto as coisas ditas diferentes podem sê-lo na ordem essencialmente genérica ou específica, p. ex., as coisas, às quais Tomás de Aquino atribui a alte-ridade, são em razão de uma diferença acidental (qualitativa, quantitativa, local, etc.).

Não só a alteridade pressupõe a diferença acidental, mas encontra nesta última a sua causa. Como é dita dos acidentes e não da própria essência ou substância, a alteri-dade pode pertencer ao mesmo supósito, subsistente ou à mesma pessoa. É o que ocorre nos entes criados quando, num mesmo sujeito, numericamente idêntico, podem inserir distintos acidentes (p. ex., Sócrates é branco e baixo).

Entretanto, se é possível, nos entes criados, a coexis-tência da alteridade (leia-se, diferença acidental), num mesmo sujeito, não é possível a coexistência da diversidade no mesmo sujeito. Afinal, nos entes criados, num mesmo sujeito, não podem subsistir e coexistir diversas essências ou naturezas.

Nesse quadro teórico, Tomás de Aquino pode afirmar, em termos análogos, que a diferença acidental está para a alteridade assim como a diferença essencial está para a diversidade. Trata-se de uma analogia de proporcionalidade própria, em que a diferença é entendida como a causa de um efeito determinado, seja a alteridade para a diferença aci-dental (nos entes compostos), seja a diversidade para dife-rença essencial (nos entes simples e compostos).

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A analogia de proporcionalidade pode ser formulada ainda correlacionando os termos, em função da distinção entre os irredutíveis sentidos de dizer o outro na filosofia tomista. Com efeito, afirma o Doutor Angélico que a alteridade está para a diversidade assim como um ser-outro (“alter”) está para outro-ser (“aliud”). O que a analogia enfatiza, agora, é a impossibilidade de reduzir o significado de um ser-outro ao de outro-ser, pois ambos possuem razões ou causas distintas.

A fim de tornar isso mais evidente, devemos recordar que a diferença acidental é suficiente para que se possa afirmar, em relação ao mesmo sujeito, que é um ser-outro (“alter”), mas não é suficiente para que se diga de um mesmo sujeito que é um outro-ser (“aliud”), ou seja, que é diverso quanto à substância. Em que condição ontológica, portanto, podemos afirmar que um mesmo sujeito é outro-ser (“aliud”)?

Para o Aquinate (2002c, p. 309), como a substância tem duplo significado (um relativo à essência, um outro relativo ao supósito), um ente só pode ser dito próprio e suficiente-mente um outro-ser (“aliud”) quando há diversidade da essência e do supósito. Por essa razão, Tomás distingue o sentido absoluto do outro que corresponde ao que é diverso quanto à essência e ao supósito do sentido relativo, no qual não há diversidade do supósito, mas tão só da essência.

Em síntese, tanto “alius” quanto “alter” significam “outro”, mas de modo distinto. A diferença acidental perfaz suficientemente um ser-outro (“alter”), uma alteridade, um diferente quanto à qualidade, à quantidade, à relação, etc. Por seu turno, a diversidade substancial é a causa de um outro-ser, de uma diversidade ontológica (“aliud”), um di-verso quanto à substância.

Daqui resulta uma importante conclusão filosófica, que será objeto decisivo para o entendimento da linguagem teológica de Tomás de Aquino. Afinal, vimos que a noção de

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diferença só se aplica aos entes compostos, mas não aos entes simples. E isso vale de modo especial para a diferença acidental que é a causa da alteridade. Se nos entes simples não há, em sentido próprio, diferença, então neles, a fortiori, não há alteridade. É por essa razão que Tomás jamais, em suas obras, utiliza o termo “alteritas” para se referir a Deus.

É importante ressaltar que, como manifestodo anteriormente, Tomás de Aquino utiliza também o termo “differentia” para se referir a Deus. Entretanto, sempre o em-prega como algo impróprio, interpretando-o como sinônimo de “diversitas” ou de “distinctio”. Se essa licença é concedida no uso do termo diferença, o mesmo não se verifica no uso do termo alteridade. Caso se atribuísse a Deus o termo “alteritas”, tal como o entende o teólogo medieval, não se empregaria o mesmo em sentido impróprio, mas sim equívoco. Eis a razão para a exclusão da “alteritas” em Deus desde, Severino Boécio e seus comentadores medievais. E essa exclusão foi plenamente assumida por Tomás de Aquino.

V. Considerações finais Na cultura escolástica, o tema do outro (“alius”)

encontra-se indissociavelmente vinculado à teologia e à filosofia.

É um tema teológico porque tem sua fonte revelada no mistério cristão do Deus uno e trino. Com efeito, no âmbito da escolástica, compete à ciência teológica a demonstração da não-contraditoriedade da fé6 na distinção das pessoas

6 Deve-se observar que não se trata, neste caso, de demonstrar o próprio conteúdo da fé, mas a sua não-contraditoriedade, ou seja, a sua não oposição à razão humana. Em outros termos, é tarefa do teólogo demonstrar que as duas proposições “Deus é uno” e “Deus é trino” não são contraditórias. Ou ainda, é sua responsabilidade

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divinas e na identidade e unicidade essencial de Deus – o que o teólogo cristão, aliás, não pode fazer sem o recorrer à filosofia.

É tema filosófico e, em particular, metafísico, pois remete à procura pela(s) causa(s) última(s) da distinção entre os entes e entre os princípios constitutivos do ente enquanto tal. Mas, sobretudo, a fonte das especulações medievais sobre o outro é aquele espírito de síntese entre a teologia e a filosofia. Síntese, ainda que imperfeita, do conhecimento do outro, quer seja humano, quer seja divino, quer seja ainda, à luz da fé, humano e divino.

Tudo indica que, para o Aquinate, o “outro” diz-se de muitos modos. Com efeito, a análise dos pares alius-diversus, diversitas-differentia, differentia-alteritas manifestou o cuidado de Tomás de Aquino em não assumi-los ou empregá-los sem um acurado exame das possibilidades de seu uso em âmbito filosófico e teológico.

O “outro”, em Tomás de Aquino, fez-nos refletir sobre o que é ser diverso (“esse diversum”) ou ser outra-pessoa (“alia persona”). Conduziu-nos, ainda, à reflexão sobre o outro-ser (“aliud”) e o ser-outro (“alter”). A leitura atenta revelou que há sempre, na semântica filosófica do Aquinate, uma atenção especial de discernimento do sentido próprio em relação ao impróprio, do universal em relação ao parti-cular, do estrito em relação ao abrangente. Todos respon-sáveis pelos distintos modos de dizer e conhecer o outro.

Esse cuidado intelectual atende à necessidade de ser fiel à polissemia da linguagem humana e, ao mesmo tempo, orientá-la em direção ao seu uso mais científico e, quando necessário, mais adequado ao mistério teológico.

A tentativa de conciliar e integrar a perspectiva filo-sófica com a teológica conduziu o Aquinate à delimitação

conciliar, de modo razoável, as proposições “Deus é um só“ e “O Pai, o Filho e o Espírito são um só Deus”.

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dos usos legítimos do termo “outro”, especialmente quando aplicado ao mistério da Trindade. Entretanto, se nossa interpretação é justa, o termo “alteridade” supõe sempre, por uma diferença acidental, que é causa de um ser-outro e não de outro-ser ou de outra-pessoa. No léxico tomista, portan-to, não há espaço para o uso, senão equívoco, do termo alteridade em relação a Deus e às pessoas divinas. Tomás de Aquino é enfático, ao preferir o uso de “alius” a “alter”, e, portanto, de privilegiar a noção de distinção à de alteridade no que se refere à SS. Trindade.

Por outro lado, dentre as diversas noções do outro presentes na linguagem filosófica do Aquinate, aquela que merece um ulterior aprofundamento é a que vincula o outro justamente à dignidade daquele que é pessoa pelo seu próprio ser. Todo valor irredutível do outro, como pessoa humana, encontra sua raiz última no ser (“esse”), que é ato participado por Deus aos entes. É à luz dessa original raiz intensiva do ser que o outro emerge como pessoa.

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Gêneros literários e formas do saber na Universidade de Paris do século XIII

Sávio Laet de Barros Campos

1. Introdução O assunto do qual nos ocupamos neste trabalho versa

acerca dos gêneros literários e formas do ensino que vigo-raram no século XIII, sobremaneira na Universidade de Paris. A finalidade precípua do nosso texto é discriminar quais foram estas formas do saber e os gêneros literários vigentes na Universidade de Paris, no século XIII.

Com isso, objetivamos entender um pouco melhor a literatura conducente à filosofia produzida, nesse período, a fim de nos abrirmos à reta compreensão das críticas que esta filosofia e as demais formas de saber desenvolvidas no período irão sofrer por parte dos pensadores que viverão no interstício entre a Idade Média e a Idade Moderna, que comumente chamamos de Renascimento.

Com o fito de darmos cabo a esta empresa, vamos proceder da seguinte forma: consentâneo a alguns historia-dores da educação medieval, dividiremos o interregno de quase mil anos, que separa a antiguidade pagã da renascen-ça do século XIV e que chamamos de período medieval, em quatro fases: da queda do Império Romano, no século V, até o reinado de Carlos Magno, no final do século VIII; do final do reinado de Carlos Magno até a primeira renascença do século XII; do começo do século XIII até o final deste; finalmente, da decadência da Escolástica, no século XIV, até o início do humanismo renascentista.

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No decorrer do texto, arrolaremos algumas caracte-rísticas de cada fase, máxime no que tange ao século XIII. Na verdade, das demais fases faremos apenas um arrazoado geral, breve intróito que servirá mais de prolegômeno para adentrarmos no século que mais nos interessa: o século XIII. Por fim, coligiremos alguns aspectos condizentes ao nasci-mento das universidades, enfocando, sobremodo, o que tange à Universidade de Paris e apontando, de forma conci-sa, para os paradigmas filosóficos e teológicos que eram predominantes nela.

Doravante, perquiriremos, acerca das universidades, sempre com ênfase maior na Universidade de Paris: o que liam e ensinavam (as faculdades) e como ensinavam e pro-duziam, mormente no que concerne à filosofia e à teologia. De resto, aduziremos algumas considerações no que toca à concepção de formação universitária que era adotada em Paris, no século III. Por fim, ao abordarmos a questão da formação, iremos tentar verificar quem ensinava e quem aprendia no ambiente universitário. Feito isso, teremos o ensejo de concluir o nosso tramite.

Passemos à análise crítica da bibliografia a ser utilizada.

2. Contextualização Crítica Para maior exação e brevidade, iremos distinguir as

fontes das quais nos valemos da bibliografia. Adotamos o termo “fontes” na seguinte acepção: os textos e autores clássicos, do período, que nos auxiliam nesta indústria; por bibliografia, os comentadores e historiadores dos quais lançamos mão para justificarmos certas asserções.

A começar pelas fontes, são basicamente dois autores que utilizaremos: Alberto Magno e Tomás de Aquino. Os textos de Alberto que citamos remetem-nos à obra Filosofia Medieval: Textos (2000), organizada por Luis Alberto De Boni,

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da PUCRS. A obra traz uma série de textos do período medieval, traduzido para o vernáculo pelo Professor De Boni. Dentre estes textos, encontram-se alguns de Alberto Magno. As citações a Tomás de Aquino são um tanto avulsas, abrangem uma sobeja série de opúsculos e comen-tários do Aquinate, compostos em momentos distintos da sua rica produção e carreira e a cujas referências biblio-gráficas específicas faremos menção no corpo do texto.

No que toca aos comentadores e historiadores do período, teremos comércio mais íntimo com os seguintes: Henrique Cláudio de Lima Vaz, na sua clássica obra: Raízes da Modernidade (2002). Em textos redigidos, entre 1997 e 2001, Lima Vaz enceta mostrar como algumas das ideias geratrizes do pensamento moderno já se encontravam – ainda que em estado latente – presentes no século XIII. Do mesmo autor, o clássico: Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira, que reúne textos publicados entre 1963 e 1984 em torno de um tema comum: as incertas fronteiras que cercam e delimitam o espaço da filosofia do espaço da teologia. A nossa edição remonta ao ano de 2002.

Utilizamos também a celebrada obra de Etienne Gilson: La Philosophie au Mon Âge. De Scot Érigène à Guilllaume d’Occam (1922), em sua versão modificada – La Philosophie au Mon Âge. Dès Origines Patristiques à la Fin du XIV – de 1944. No caso, a tradução que seguiremos será a brasileira, feita por Eduardo Brandão e lançada pela editora Martins Fontes, em 1995: A Filosofia na Idade Média. Ainda do mesmo autor, desta feita em parceria com Philotheus Boehner, a não menos apreciada: História da Filosofia Cristã: desde as Origens até Nicolau de Cusa (1951), trazida ao vernáculo pelo Prof. Raimundo Vier, em 1970, a partir da edição alemã: Christliche Philosophie – von ihren Anfaengen bis Nikolaus von Cues (1952 a 1954).

Vale citar, ainda, como referências obrigatórias que foram deste ensaio: La Philosophie Médiévale (1989), de Alain

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De Libera, na sua tradução brasileira, autorizada da primeira edição francesa, também do mesmo autor e com o mesmo nome, La Philosophie Médiévale (1993), que tem tradução para o português de Nicolás Nyimi Campanário e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva, em edição de 2004 pelas edições Loyola. É a mais atualizada história da filosofia medieval em português.

Indicamos ainda Storia della filosofia – Volume II: Patristica e Scolastica, do historiador da filosofia Giovanni Reale, com tradução brasileira de Ivo Storniolo, lançada pela Paulus em 2003. Por fim, permanece, como referência a toda abordagem sobre a história da educação medieval no Brasil, a célebre obra do Professor da FEUSP, Rui Afonso da Costa Nunes: História da Educação na Idade Média.

Passamos à análise do objeto de estudo proposto. 3. Desenvolvimento Do ponto de vista da educação, podemos dividir a

“Idade Média” em quatro fases.1 3.1. Primeira fase A primeira fase compreende o período que abarca da

queda do Império Romano, Século V, até o reinado de Carlos Magno, final do século VIII. Esse período foi marcado pelo fechamento das escolas da antiguidade tardia, bem como pelo nascimento do monaquismo. Coube aos monges – no am-biente recolhido dos mosteiros – conservar e transmitir aos

1 Para adotarmos tal divisão e coligirmos as características de cada uma dessas fases, seguimos de perto: NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. Disponível em: <http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/sine> Acesso em: 09/05/2010.

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povos germânicos cristianizados a cultura da antiguidade pagã. Note-se que, nessa primeira fase, a função preponderante dos monges era não deixar a cultura antiga desaparecer. Destarte, tornaram-se escribas ou escritores (scriptor): faziam cópias das obras clássicas sem nada lhes modificar.2

3.2. Segunda fase A segunda fase compreende o período que vai do

reinado de Carlos Magno, século VIII, até a primeira renascença do século XII. Com o fim das invasões bárbaras, dá-se início a profundas mudanças, tanto na vida civil quanto no âmbito eclesiástico. Dentre outras coisas, houvee o crescimento da população, o desenvolvimento econômico e a organização feudos. Houve, também, significativas mudan-ças na política da Igreja. É a época das grandes cruzadas e das investiduras.3

Ademais, nos séculos seguintes – máxime no século XII – com o gradativo crescimento da vida urbana, ocorre um verdadeiro renascimento da cultura vetusta, que começa a sair dos mosteiros para circular na civitas que nascia. Há, desta sorte, a necessidade de se criarem – para além das chamadas escolas monacais (anexas a uma abadia) – outros redutos onde o saber poderia ser ministrado. Nascem, desta feita, as escolas episcopais (anexas a uma catedral) e as escolas palatinas (anexas à corte), para atenderem às nascentes populações urbanas. 2 GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 627: “Com efeito, na Idade Média, distinguia-se entre o escriba (scriptor), que só é capaz de recopiar as obras de outrem sem nada modificar (...)”. 3 Para uma descrição alternativa dessa fase e também das outras, vide: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. 2ª ed. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. São Paulo: Paulus, 2004. p. 120.

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Nesse período, a fim de transmitir a cultura ao povo, vai nascendo, ademais, a figura do compilador (compilator) que, de acordo com o tema a ser ministrado, compila as prin-cipais sentenças dos filósofos e teólogos de antanho. Nasce, além disso, também a figura do comentador (commentator), que começa a acrescentar aos textos o estritamente neces-sário para que ele possa ser compreendido.4

Geralmente o trabalho do comentador, na primeira metade do século XII, resumia-se em produzir glosas (glosae), sempre obedecendo, rigorosamente, à ordem de leitura imposta pelo texto. Já na segunda metade do mesmo século, introduziam-se nos comentários, fundidas ao texto de leitura, as “paráfrases” de tipo aviceniano.5 Com o “adven-to” da entrada das obras de Averróis, a segunda metade do século XIII conhecerá outras formas mais sofisticadas de comentários ao texto às quais a paráfrase, gradativamente, vai cedendo lugar.6

4 GILSON. Etienne. A Filosofia na Idade Média. p. 627: “(...) o compilador (compilator), que acrescenta ao que copia, mas sem que seja sua; o comentador (commentator), que põe coisa sua no que escreve, mas só acrescenta ao texto o necessário para torná-lo inteligível (...)”. 5 LIBERA, Alain De. A Filosofia Medieval. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 25: “Até o século XII, a leitura de um texto é essencialmente uma glosa. Privilegiadas nas escolas, as glosae e as glosulae, ilustradas principalmente por Guilherme de Conches (1080-1154) e Pedro Abelardo (1079-1142), são comentários literais, que seguem o programa de leitura imposto ao texto. (...) Na segunda metade do século XII, e até por volta de 1230, a forma dominante do comentário é a ‘paráfrase’ de estilo aviceniano, em que o texto de partida é fundido numa dissertação”. 6 LIBERA, Alain De. Op. Cit. p. 25 e 26: “A partir da ‘entrada’ de Averróis, a paráfrase cede terreno a diversas formas de

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Nesse período nasciam ainda as Sentenças, que eram compilações de textos escriturísticos e patrísticos, mormente os de Santo Agostinho. A mais famosa delas, e que será muito comentada nos séculos seguintes, são os quatro Livros das Sentenças (Libri quattuor sententiarum) de Pedro Lombardo.7

3.3. Terceira fase A terceira fase é, sem nenhum favor, um dos períodos

de maior efervescência intelectual da história humana. Estamos na era de ouro da Escolástica, que perdura ao longo de todo o decorrer do século XIII. Nela surgem as universi-dades e, com elas, as novas sínteses do saber, consignadas, destarte, nas sumas. Nesse momento, também a doutrina escolástica é consolidada. Ademais, com a conturbada recepção das obras de Aristóteles no Ocidente cristão, um novo modo de ensinar nasce e se desenvolve.

3.3.1. As universidades no século XIII Ares de novos tempos com a instituição das univer-

sidades. Sobre esse momento, mister é nos determos com maior minudência. Acerca da universidade (universitas), im-porta, antes de mais nada, dizer que não se deve imaginá-la como um centro de estudo, mas como uma “associação” ou

comentários literais aparentados aos Comentários Médios e aos Grandes Comentários”. 7 REALE, ANTISERI. Op. Cit. p. 183: “(...) Pedro Lombardo os seus Libri quattuor sententiarum – que seriam comentados por todos os grandes escolásticos – no período que vai de 1150 a 1152. Trata-se de uma obra que se apresenta como compêndio da doutrina cristã, extraída da Escritura e da autoridade dos Padres (...). A obra de Pedro Lombardo não é, certamente, obra original; é muito mais uma obra de compilação na qual ‘desembocam todas as correntes anteriores’”.

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“colégio” de alunos e professores, espiritualmente compro-metidos com o conhecimento e que se encontravam em diversos pontos da cidade, perfilhando, não sem entreveros e tergiversações, as diversas áreas do saber.8

Portanto, a universitas nasce como sendo a união corporativa de estudantes e mestres, que era, em princípio, presidida por um Chanceler. Esse Chanceler, além de conferir os graus acadêmicos, era o legítimo representante do poder eclesiástico. Entretanto, no próprio decurso do século XIII, estes agrupamentos de estudantes e professores foram crescendo e organizando-se cada vez mais – primeiramente na faculdade de Artes, pelo que a liderança desses mesmos agrupamentos passou a ser confiada a um Reitor que, pouco a pouco, tornou-se responsável por todas as atribuições do Chanceler.9

Portanto, o nome “universitas” não se devia tanto ao fato de nela haver aquela aspiração à “universalidade do saber”; tampouco a uma pretensa unidade do saber, haja vista que, nas suas origens, a universidade era um lugar de constantes celeumas e querelas entre ao menos duas visões contraditórias ou antagônicas: havia os que queriam trans-formá-la num centro de estudos puramente científico e autônomo e os que insistiam em preservá-la subordinada a uma finalidade religiosa, notadamente controlada pela política papal.10 Em verdade, o nome “universitas” devia-se ao fato de nela encontrarem-se estudantes provindos de

8 GILSON. Etienne. A Filosofia na Idade Média. p. 483: BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Rio de Janeiro: Vozes, 2000, p. 355. 9 Idem. Ibidem. pp. 355 e 356. 10 Idem. Ibidem. p. 357. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 485.

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todas as partes com um mesmo objetivo: a conquista do conhecimento.

Aliás, uma das características mais notáveis e inovadoras das universidades – mormente da universidade parisiense – era a abertura que ela proporcionava aos estu-dantes oriundos das mais diversas classes sociais. A Univer-sidade de Paris não nasce como uma realidade aristocrática, mas “popular”, pois acolhia, inclusive com privilégios (privilegium= lei privada, isto é, que vale apenas para uma pessoa ou grupo de pessoas em virtude de uma dignidade ou eminência), isenção de taxas, “bolsas de estudo” e até de alojamento gratuito – filhos de camponeses e artesãos paupérrimos, que podiam, doravante, completar os seus estudos. Vale a pena acompanhar a descrição que Reale dá a essa realidade, assaz inovadora:

O segundo efeito ou dado característico

foi a abertura da universidade parisiense a mestres e estudantes provenientes de qualquer camada social. Embora posteriormente a universidade se tornasse aristocrática, na Idade Média ela era “popular”, no sentido de que também recebia estudantes pobres, filhos de camponeses e artesãos, que, por meio de alguns privilégios, como a isenção de taxas, bolsas de estudos e alojamento gratuito, conseguiam completar os rigorosos cursos de estudo.11

E não é só. Depois do ingresso na universidade,

desapareciam os abismos sociais que diferenciavam os estudantes fora dela. Desta forma, a política universitária começou a transformar, gradualmente, a própria ordem social medieval. Entre o sacedotium e o regnum, acrescentava-se um terceiro poder, o studium. Através das universidades, a

11 REALE, ANTISERI. Op. Cit. pp. 124 e 125.

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“nobreza” deixou de ser o privilégio de um segmento social específico, e passou a ser uma conquista da cultura adquirida pelo estudante, mediante a universidade:

Depois do ingresso na universidade,

desapareciam as diferenças sociais entre os estudantes: os goliardos (clérigos pobres) e os clérigos constituíam mundo à parte, cuja “nobreza” não era mais representada pelo segmento de origem, mas pela cultura adquirida. Esse era o novo conceito de “nobreza”, ou, como se dizia então, de “gentileza”.12

Há mais. Outra característica que pode ser considerada

renovadora e que adquiriu consistência na cultura univer-sitária foi a consolidação de um sodalício de mestres, contu-bérnio formado por sacerdotes e leigos, designados pela Igreja, para o ensino da doutrina revelada. De fato, até então o direito de ensinar a sacra doctrina era reservado à hierar-quia eclesiástica. Doravante, com a abertura da universidade aos estudantes de todos os segmentos sociais, esta realidade foi cedendo terreno à outra: leigos que podiam ensinar: não só as philosophicas disciplinas, mas também a sacra scientia:

O primeiro constitui-se pelo surgimento

de um sodalício de mestres, sacerdotes e leigos, ao qual a Igreja confiava a tarefa de ensinar a doutrina revelada. Trata-se de um fenômeno de grande alcance histórico, porque até então a doutrina oficial da Igreja era (e sempre tinha sido) confiada à hierarquia eclesiástica.13

12 Idem. Op. Cit. p. 125. 13 REALE, ANTISERI. Op. Cit. p. 124.

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Deste modo, pode se verificar que as universidades foram, na verdade, uma necessidade decorrente da própria caducidade das chamadas escolas urbanas, “episcopais” ou “palatinas”, que já não podiam atender ao grande afluxo de novéis aspirantes ao conhecimento, que vinham de todos os lados.

Portanto – ratificamos – a universidade nasce como uma “corporação” ou espécie de “sindicato” de alunos e professores com o fito de aprenderem e ensinarem, e que passou, paulatinamente, a adquirir um vínculo jurídico estável, tornando-se, destarte, uma instituição portadora de direitos próprios.14

Por fim, as universidades medievais também não podem ser confundidas com uma outra realidade, muito viva na época, a saber, o studium. O studium não era, em primeiro lugar, um recinto onde era ministrado o conhe-cimento. Era, antes de tudo, um centro de estudos onde os estudantes eram recebidos. Havia o studium generale, universale ou commune, que abrigava estudantes procedentes de diversas províncias; o studium particulare, que acolhia apenas estudantes oriundos de determinada província; finalmente, existia o studium solemne, mais celebrado, por-quanto mais frequentado. Além disso, cumpre dizer que o “Studium” era uma realidade muito ligada às Ordens religiosas15 e não gozava dos mesmos direitos de uma uni-versidade.16 14 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 355; REALE, ANTISERI. Op. Cit. p. 123. 15 No século XIII, nascem as Ordens Mendicantes. Entre elas estão os franciscanos e dominicanos. Estas Ordens começam, de forma gradativa, a ocupar as cátedras da Universidade de Paris. Em princípio, houve fortes resistências por parte dos seculares, mas o processo se dá, de forma intermitente e com a anuência dos Papas, em três etapas: em 1220, quando o Papa Honório III confia várias cadeiras universitárias aos franciscanos e dominicanos; depois, em

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3.3.1.1. O processo de organização da Universidade de Paris Paris, no século XIII, era chamada de “A Nova

Atenas”. Alberto Magno a chamava de Civitas Philosophorum (A Cidade dos Filósofos). Para lá, acorriam jovens do mundo inteiro, procurando inteirar-se do saber que de lá irradiava para todo o orbe conhecido. Os grandes mestres da cristan-dade habitavam em Paris, interagindo-se. Os reis de França acolhiam com alento todos estes provincianos e mestres estrangeiros, que vinham de todas as partes do reino e da Europa. Via na presença deles um modo de aumentar a sua influência para além dos seus territórios e domínios.17

Ora, para garantir a paz e a liberdade desses estu-dantes, que procuravam instruir-se nas ciências, urgia que os reis da França, que viam nessa afluência de franceses e provincianos de toda a Europa uma atmosfera espiritual que lhes era favorável, lhes proporcionassem segurança, orga-nizando-os.18 Aliás, os próprios estudantes e mestres foram, com o passar do tempo, ganhando consciência de que formavam uma unidade.

1231, quando o Papa Gregório IX estabelece mais frades franciscanos e dominicanos na Universidade; finalmente, a partir do decreto de Alexandre IV, em 1257, é sancionado aos religiosos mendicantes o direito de estudar e ensinar na Universidade de Paris. Os mendicantes acabam tornando-se a solução mais profícua encontrada pelos Papas para combater as heresias na Universidade. 16 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 356. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 485. 17 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 356. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 484. 18 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 356. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 484.

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Entretanto, foram os papas que consolidaram a constituição da Universidade de Paris, e foi sob o Pontificado de Inocêncio III que o studium parisiense recebeu o status de universidade. E foram os sucessores de Inocêncio III – particularmente Gregório IX – que estabeleceram as dire-trizes para a vida universitária.

Desta maneira, conquanto a universidade pudesse ter nascido sem a intervenção de reis e papas, é fato que o nasci-mento da universidade de Paris se deu pelo consórcio destes fatores: o patrocínio dos reis e, principalmente, a anuência dos Papas.19

3.3.1.1.1. As faculdades da Universidade de Paris do século XIII: o que ensinavam os medievais? No caso específico da Universidade de Paris do século

XIII, podíamos encontrar nela quatro faculdades. A faculdade de Teologia, a de Artes (Filosofia), a de Direito (Decretais) e a de Medicina.20 Ora, os estudos em Medicina eram ainda pouco desenvolvidos na Universidade de Paris do século XIII e, por conta disso, tinha uma importância secundária na época.

Na faculdade de Direito, os mestres ensinavam, em princípio, quase que exclusivamente, o antigo Direito Romano, fundamento de uma ordem civil autônoma e depen-dente unicamente de si mesma. A bem da verdade, a maioria destes mestres tinha uma acentuada resistência à ideia de tornar-se canonista. No entanto, com o passar dos anos, por ingerência dos Papas, passou a ser estudado, na Faculdade de Direito parisiense, tão-somente o Direito Canônico, funda-mento de uma sociedade religiosa e de toda a sociedade civil

19 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 356. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 484. 20 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 356.

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que quisesse incorporar-se ou integrar-se, em estreito conúbio, a um organismo religioso.21

No entanto, a que se expandia mais rapidamente entre as faculdades era a de Artes, onde se estudava, no início do Século XIII, o corpus lógico de Aristóteles, já que o resto do corpus aristotelicum, até metade do século XIII – por razões análogas às da Faculdade de Medicina – vinha sofrendo reiterados interditos dos Papas. De fato, isto se devia às suspeitas traduções árabes e a algumas teses duvidosas do próprio Aristóteles que parecia não se coadunar com a doutrina cristã.22

Para se entender com correção a atitude cautelosa dos Papas em relação à recepção comedida que tiveram frente às obras de Aristóteles, deve-se levar em conta que, tanto para Inocêncio III quanto para Gregório IX, Paris era um ponto estratégico, isto é, o lugar de onde poderiam desencadear-se: não só a difusão das verdades cristãs por todas as partes do mundo, mas também toda sorte de erros. Diante disso, como poderia a autoridade eclesiástica permanecer neutra? Daí a razão das ingerências em barda, mas que nem sempre conseguiam interromper ou mesmo conter o processo. Foi

21 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 484. BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 357. 22 Sofreram as obras do Estagirita – A Física, A Metafísica, etc. – vários interditos. O primeiro, em 1210, pelo concílio provincial de Sens, reunido em Paris. Em 1215, Roberto Gourçon, legado papal, reiterou a proibição conciliar. O primeiro passo para a liberação da leitura das obras de Aristóteles, deu-se em 1231, quando Gregório IX incluiu o De Anima no currículo de ensino da Universidade, e declarou que a Física passaria por criterioso exame a fim de expurgar-lhe os erros. Sobre a complexa crise desencadeada pela recepção das obras de Aristóteles até a sua aceitação integral no currículo obrigatório de ensino, em 1255, Vide: VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia VII: raízes da Modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. pp. 31 a 38.

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assim com as doutrinas de Aristóteles, que continuaram a se propagar, inobstante os interditos papais.23

Porém, é tempo de passarmos a falar da faculdade de Teologia. Nela, liam-se os principais livros da Bíblia e os quatro livros das Sentenças de Pedro Lombardo.24 Entretanto, dentre outros fatores que iremos coligir, a influência das obras de Aristóteles modificará a forma de fazer teologia, no século XIII.

Com efeito, a Teologia, no século XIII, com o começo do declínio do mundo feudal, o crescimento das cidades e o surgimento das primeiras sociedades urbanas, deixa de ser uma teologia alegórica, denominada por alguns historiadores de teologia monástica, porquanto cultivada nos mosteiros, e passa a ser uma teologia urbana, de caráter mais dialético e que obedece aos pressupostos da teoria das ciências aristotélicas, que começa a se alastrar a despeito da precaução da hierar-quia. A forma mais acabada desta trasladação da teologia simbólica em teologia científica, que é propriamente a teologia escolástica, está consignada nas sumas. A mais peculiar delas é a Summae Theologiae de Tomás de Aquino.25

3.3.1.1.1.1. A querela entre a faculdade de Artes e a faculdade de Teologia na Universidade de Paris do século XIII Os mestres em Artes, desde a segunda metade do século

XIII, já de posse de todo o corpus aristotelicum, traduzido diretamente do grego e com aprovação eclesiástica, come-çaram a ter pretensões maiores para a Faculdade de Artes.

23 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 357. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 487. 24 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira. 3ªed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 22. 25 Idem. Ibidem. p. 80:

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Queriam que ela deixasse de ser o que havia sido até então: uma faculdade de função essencialmente propedêutica para a Teologia. Queriam “autonomia” para as suas pesquisas, sem precisarem responder aos teólogos.

Isto aconteceu porque, enquanto na primeira metade do século XIII, os estudantes e mestres em artes dispunham apenas do corpus lógico de Aristóteles e, portanto, uma vez concluído o estudo deste, não tinham mais onde aplicá-lo senão na própria teologia, na segunda metade do século, diferentemente, eles possuíam A Física, a Metafísica, a Psicologia, a Ética e, mais tarde, a Política do Estagirita, e, assim, podiam, doravante, aplicar livremente as leis da lógica aristotélica a esses novos campos do saber. Ora, diante disso, eles começaram a reclamar e a reivindicar uma maior liberdade para permanecerem no campo da Filosofia, sem, necessariamente, precisavam passar para a Teologia. Estava, pois, em crise o ideal cristão dos “pie philosophantes”. Sobre essa questão, Lima Vaz chega a dizer que:

A partir de 1255, data em que nos novos

estatutos da Faculdade de Artes da Univer-sidade de Paris impõem a obrigatoriedade do corpus aristotelicum como texto didático, a Faculdade de Artes passa a ser uma Faculdade de Filosofia no sentido próprio. Ela começa a configurar, assim, um espaço autônomo da reflexão filosófica, que logo estará em confronto com a Faculdade de Teologia.26

Como se não bastasse isso, o próprio corpus

aristotelicum se prestava muito bem aos interesses desses contendedores. De fato, até a primeira metade do século XIII,

26 LIMA VAZ. Escritos de Filosofia VII: raízes da Modernidade. p. 42. BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 357. GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 486.

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prevalecia uma filosofia de cunho mais neoplatônico, cuja referência direta eram alguns textos de Agostinho, Dionísio e Boécio. Ora, a filosofia neoplatônica parecia não oferecer nenhuma resistência à teologia agostiniana, que era a predo-minante na época. Todo o contrário acontecia com o sistema de mundo construído por Aristóteles. Com efeito, este, além de ser completo e poder dispensar o auxílio da teologia, era, o mais das vezes, acentuado por teses hostis aos dogmas cristãos. De fato, estamos diante, conforme salienta Lima Vaz:

(...) de um novo e completo sistema de

explicação do mundo, do ser humano e de Deus, independente e autônomo com relação à teologia, ou seja, a filosofia, obra da razão natural. Diante do fato irrecusável dessa presença, a interrogação passa a ser assim enunciada: que filosofia é compatível com a teologia enquanto expressão intelectual da fé?27

Nesse estado de coisas, os espíritos se dividiam quanto

às soluções a serem propostas. Alguns mestres da faculdade de Artes começam a ver com entusiasmo que, “(...) renasce em seu seio a concepção antiga da filosofia como saber autônomo, justaposto senão contraposto à teologia”28. Por outro lado, a nascente escola franciscana responde afirmando a continuidade do paradigma philosophia ancilla theologiae, “(...) concepção herdada da tradição patrística, e princi-palmente de Santo Agostinho, que aceita a filosofia apenas como saber subordinado à teologia e seu instrumento”29. Por fim, um mestre dominicano daqueles idos, Tomás de

27 LIMA VAZ. Escritos de Filosofia VII: raízes da Modernidade. p. 43. 28 Idem. Ibidem. p. 44. 29 Idem. Ibidem.

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Aquino, propõe uma via intermediária, que se coloca acima destes dois excessos. Eis o prospecto que Pe. Vaz apresenta da visão de Tomás:

A via intermediária é seguida por Tomás

de Aquino. Ela é conseqüência do axioma teológico gratia non tollit naturam sed perficit e reconhece, de uma parte, a legitimidade do uso da razão argumentativa em teologia e, de outra, a autonomia do universo das razões filosóficas, que deve, porém, harmonizar-se com as razões da Fé, uma vez que se admita ser Deus a única fonte das duas ordens de verdade.30

3.3.1.1.1.1.1. Os paradigmas teológico-filosóficos vigentes nas faculdades de Artes e Teologia da Universidade de Paris no século XIII O seguinte conspecto apresenta um compêndio con-

densado dos paradigmas teológico-filosóficos, que vigora-vam no século XIII.31

A. Paradigmas teológicos A.1. Agostinismo

A doutrina de Santo Agostinho, mediante a Suma

Sentenciarum, de Pedro Lombardo, prevaleceu sendo a principal fonte teológica da Idade Média. Porém, a

30 Idem. Ibidem. pp. 44 e 45. 31 Para uma consulta mais pormenorizada sobre o tema dos paradigmas, vide: LIMA VAZ. Escritos de Filosofia VII: raízes da Modernidade, pp. 39 a 53. Seguiremos de perto as páginas indicadas na nossa sucinta exposição dos paradigmas.

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assimilação dessa autoridade não se deu da mesma forma entre os mestres medievais do século XIII. Antes de tudo, há um agostinismo fundamental, que é aceito por todas as escolas. Há, ademais, um agostinismo crítico como o de Tomás de Aquino; há, além disso, um “neo-agostinismo”, proveniente da escola franciscana e que encontrou a sua mais abalizada construção na proba pena de São Boaventura. O “neo-agostinismo” foi, na verdade, uma contundente reação, por parte de alguns teólogos franciscanos, contra certas teses ventiladas pelo “aristotelismo heterodoxo”. Neste sentido, pode-se dizer que este “neo-agostinismo” foi, de certa forma, “anti-aristotélico”.

A.2. Dionisismo O Dionisismo teve influência decisiva na filosofia e

teologia medieval. Na verdade, os medievais acreditavam que o autor anônimo dos opúsculos De Caelesti Hierarchia, De Ecclesiastica Hierarchia, De Divinis Nominibus e De Mystica Theologia, que viveu no século VI, era o mesmo personagem convertido por São Paulo, quando da sua pregação no Areópago de Atenas (At 17,34). Suas obras ganharam várias traduções do grego e o seu neoplatonismo cristão influenciou, veementemente, a teologia medieval, inclusive Alberto Magno e o próprio Tomás de Aquino.

B. Paradigmas filosóficos B.1. Platonismo Conquanto os medievais conhecessem, no século XIII,

o Mênon, o Fédon – traduzidos pelo italiano Henrique Aristipo (1156) – e um fragmento do Timeu (17a-53c), traduzido pelo cristão neoplatônico Calcício, não foi através de nenhum destes textos de Platão que o filósofo grego

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compareceu à vida intelectual da Idade Média. O platonismo medieval, na verdade, é o neoplatonismo de Agostinho, Dionísio, Boécio e de algumas fontes árabes. A filosofia platônica permanece uma referência até a suspensão dos interditos às obras de Aristóteles, acontecida, na segunda metade do século XIII. A partir de então, o platonismo vai, progressivamente, perdendo espaço na faculdade de Artes para o corpus aristotelicum, cujo estudo passaria a ser obrigatório.

B.2. Aristotelismo Houve vários aristotelismos, no século XIII. Antes de

tudo, na primeira metade do século, vigora um aristotelismo eclético, oriundo de fontes neoplatônicas, por vezes de origem árabe; a partir da segunda metade do século, quando as principais obras de Aristóteles já se encontram traduzidas diretamente do original grego, temos grandes mestres procurando interpretá-lo a partir destes textos. É o caso de Alberto Magno e Tomás de Aquino. Contudo, há ainda alguns mestres da Faculdade de Artes que, além de estarem ávidos pelas traduções do original grego, estão também muito interessados na palavra daquele que consideravam o comentador de Aristóteles: Averróis.

Esse tipo de exegese do texto aristotélico, que levava às últimas consequências a literalidade do texto, foi chamado, pelos historiadores modernos, de “aristotelismo hetero-doxo”, porquanto ele não está preocupado com a concor-dância ou não do texto de Aristóteles com a verdade cristã. De resto, aquele Aristóteles neoplatônico, da primeira meta-de do século, prevalece ainda – decerto com nuances diver-sas – nas obras de Alberto e Tomás, e, principalmente, nas dos “neo-agostinianos” como o franciscano São Boaventura.

Consoante ao que dissemos sobre a literatura filosófico-teológica do século XIII, mormente na sua segunda

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metade, passamos a analisar como eles apreendiam e ensi-navam esse cabedal de ideias e concepções.

3.3.1.1.2. Ensino e formação nas faculdades de Artes e Teologia da Universidade de Paris no século XIII32 C. A lectio e a disputatio Mas, de fato, como se articulava o ensino adotado nas

universidades? Antes de tudo, havia a chamada lição (lectio), que consistia na leitura de um texto, geralmente de uma perícope de alguma obra de Aristóteles – para os estudantes de artes – ou de um fragmento das Sentenças ou da Bíblia, para os estudantes de teologia. Ora, a lectio tinha um proce-dimento peculiar: em primeiro lugar, ocorria uma divisão de capítulos: partes principais e partes secundárias; seguia-se a isso o que se chamava de sententia: destacava-se a substância doutrinal dos textos; depois, acontecia a expositio litterae: análise do texto palavra por palavra. Só então surgiam as primeiras quaestiones e, com elas, a disputatio. Estas questões giravam em torno de grandes temas que, no decorrer da lectio, não ficavam suficientemente elucidados.

Nas disputationes, havia espaço aberto para os prós e os contras. Nelas, quem propunha a questão a ser debatida era geralmente o mestre. Os auditores, por sua vez, eram os responsáveis por levantar as objeções e defendê-las. Por fim, o próprio mestre, mediante a determinatio, dava a solução e respondia às objeções sugeridas. As disputationes podiam

32 As referências bibliográficas das quais nos valemos: LIBERA. A Filosofia Medieval. pp. 21 a 30; BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. pp. 358 a 360; GILSON. A Filosofia na Idade Média. pp. 492 e 493; VAZ. Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira. pp. 22 a 24; REALE, ANTISERI. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. pp. 126 e 127.

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ocorrer em dois níveis: privata e publica. A disputatio privada ocorria na presença do mestre e seus alunos, e a disputatio publica acontecia em presença de alunos e mestres de outras turmas. Vale mencionar ainda a existência das quaestiones quodlibetales – desdobramento das quaestiones disputatio tradi-cionais – que eram organizadas em torno de temas livres, levantadas por qualquer auditor. Eram disputationes públicas e ocorriam ao menos duas vezes por ano: na Páscoa e no Natal.

Os argumentos usados nessas disputationes eram de dois tipos: autorictas, isto é, argumento de autoridade, fundado ou na Escritura ou num autor clássico, e a ratio, que era um argumento de razão e obedecia, rigorosamente, à lógica aristo-télica. Através deste argumento de razão é que a Idade Média começou a conhecer os seus primeiros autores.

Com efeito, o autor (auctor) era aquele que falava por si mesmo e, obedecendo tão-somente às regras do pensamento, não recorria às autoridades senão enquanto elas poderiam confirmar as suas teses. Gilson diz do autor: “(...) o autor (auctor), cujo objetivo principal é expor suas próprias idéias, só apelando para as idéias alheias a fim de confirmar as suas (...)”33.

O mesmo medievalista francês acena para o fato – até então inaudito – da existência de autores vivos, no século XIII. Alberto de Colônia (1206/1207-1280), chamado Magno, era um autor. Ora, por sê-lo, era, por isso mesmo, uma autoridade (autorictas=auctor). Por conseguinte, os seus próprios textos eram objeto da lectio e da disputatio:

Para os homens do século XIII, Aberto

Magno é incontestavelmente um autor; por um privilégio reservado até então a alguns douto-res ilustres e já mortos, é citado como uma

33 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 627.

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“autoridade” (autorictas=auctor) e suas obras são lidas e comentadas em público nas escolas, ainda em sua vida.34

34 Idem. Ibidem. Não é o caso de sequer esboçarmos as ideias de Alberto ou tampouco o seu sistema. Contudo, vale a pena frequentar algumas passagens de suas obras, a fim de constatar-mos como ele se coloca criticamente frente às autoridades. Questiona a autoridade de Agostinho nas ciências naturais: ALBERTO MAGNO. II Sent. D 13, a 2. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 179: “Tome-se pois por princípio que, em questões de fé e de bons costumes, Agostinho deve ser preferido aos filósofos, caso haja idéias diferentes entre eles. Mas, em se tratando de medicina, tenho mais confiança em Galeno ou Hipócrates que em Agostinho; e se falar sobre ciências naturais, tomo em maior consideração a Aristóteles ou a outro especialista no assunto.” Questiona a própria autoridade de Aristóteles: ALBERTO MAGNO. Física 8, tr. 1, c. 14. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 180: “(...) A uma tal pessoa respondemos que quem acredita que Aristóteles foi um Deus, deve também crer que ele nunca errou. Se, porém, acredita que ele foi um homem, então sabe sem dúvida que ele podia errar tanto quanto nós.” Abaliza a experiência repetida diversas vezes como o melhor modo (per modum authenticum) de se proceder nas ciências da natureza: ALBERTO MAGNO. Sobre os Animais. 1, c. 19. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178: “A experiência, através de repetidas observações, é a melhor mestra no estudo da natureza”. E ainda: ALBERTO MAGNO. Sobre os Vegetais. n. 1. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178: “Só a experiência leva à certeza no estudo da natureza (...)”.ALBERTO MAGNO. Sobre os Minerais. 2, tr. 2, c. 1. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178. “Compete à ciência natural não aceitar simplesmente o que foi narrado. Cabe-lhe, muito mais, a serviço da filosofia natural, buscar as causas das coisas naturais”. Por fim, relativiza a autoridade dos antigos em

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geral, submetendo-os ao crivo da razão: ALBERTO MAGNO. Livro das Causas. 1, tr. 1, c. 1. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178. “Aceitamos dos antigos aquilo que eles afirmaram corretamente”. Critica a ingerência da Teologia nas ciências: ALBERTO MAGNO. Sobre Lucas. 1, 5. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 180: “A Teologia deve permanecer casta dentro dos limites da fé, a fim de não fornicar através de fantasias.” E ainda: : ALBERTO MAGNO. Sobre o Céu e o Mundo. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Filosofia Medieval: textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 179: “Nas ciências naturais não nos cabe pesquisar como Deus criador, em sua libérrima vontade, utiliza-se de suas criaturas a fim de, através de um milagre, mostrar a sua potência. Cabe-nos, tão somente, pesquisar o que pode ser feito naturalmente nas coisas naturais através de causas da própria natureza.” Seu mais ilustre aluno, Tomás de Aquino, não foi menos contundente. Em filosofia, Tomás dizia: TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao Tratado do Céu. I, 22, 8. In: NASCIMENTO, Carlos Arthur R. de. Santo Tomás de Aquino: o Boi Mudo da Sicília. São Paulo: EDUSC, 1992. p. 50: “O estudo da filosofia não visa saber o que os homens pensaram, mas como se apresenta a verdade das coisas.” Sobre o uso das autoridades nas disputationes, reza: TOMÁS DE AQUINO. Quodlibet. IV, a. 3, n. 18. In: MARIE, Joseph Nicolas. Introdução à Suma Teológica. Trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 32: “Quando o debate é debate de escola, ‘magistral’, não para refutar um erro, mas para instruir os ouvintes e levá-los à compreensão da verdade que se ensina: é necessário apoiar-se em razões que procuram a raiz da verdade, que fazem saber como é verdadeiro o que é dito. Caso contrário, se o mestre determina uma questão por autoridades nuas, o ouvinte estará, por certo, assegurado de que a coisa é assim, mas nada adquirirá de ciência e de inteligência, e voltará vazio.” No que concerne às demonstrações que, nas disputationes, têm lugar na determinatio, coloca a simples citação de uma autoridade no mesmo nível de quem emite uma opinião : TOMÁS DE AQUINO. Quodlibet. III, 31, ad 1. In: MOURA, D. Odilão. Introdução à Suma Contra os

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Vale lembrar que essas questões eram também anotadas pelo mestre, ainda no decorrer da calorosa discussão. Esta primeira anotação denominava-se reportatio. Porém, o mestre ainda fazia uma correção (correctione) das suas anotações. Tal correção era chamada de redactio ou ordinatio. Muitas delas foram “publicadas” já nesta forma. Os comentários às Sentenças nasceram assim e a sumas também obedeciam à mesma ordem, com a diferença de que estas se avantajavam de muito aos comentários pelo caráter pessoal da síntese. As sumas eram obras de um auctor e não mais de um mero comentador.

D. A formação nas Faculdades de Artes e Teologia da Universidade de Paris no século XIII Pode-se ainda perguntar: como se formava um mestre,

numa universidade medieval? Como era o processo de formação? Atendo-nos às faculdades de Filosofia e Teologia, poderíamos apresentar a seguinte estrutura de funciona-mento. Como acima havíamos dito, na faculdade de Artes eram lidas, a partir da segunda metade do século XIII, as obras de Aristóteles. Na faculdade de Teologia, liam-se os livros básicos da Bíblia e as Sentenças de Pedro Lombardo. Entrava-se na faculdade de Artes por volta dos 15 anos de

Gentios. Porto Alegre: Sulina, 1990. p. 11: “Provar recorrendo a uma autoridade, não é provar demonstrativamente, mas pela fé opinar sobre uma coisa.” Assevera que, em filosofia, não importa quem diz, mas o que diz: TOMÁS DE AQUNO. In. Trin. 2, 3, ad 8. In: LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: vida e pensamento. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 3: “Os argumentos filosóficos não são acolhidos pela autoridade de quem diz, mas pela validade do que se diz.” Por fim, diz Tomás: TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. I, 1, 8, ad 2: “(...) o argumento de autoridade fundado na razão humana é o mais fraco de todos.”

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idade e para tornar-se licenciado ou docente em Artes, eram necessários cerca de dez anos de estudos e a idade mínima de 20/21 anos.

Nos dois primeiros anos, a atividade do aspirante resumia-se em ouvir as “lições” e as “disputas” referentes ao “corpus lógico” de Aristóteles e à gramática de Prisciano. Progressivamente, tornava-se o aspirante um oponente (opponens), isto é, podia opor-se a uma ideia durante a disputatio. Após dois anos, passava a ser um “respondente” (respondens in disputationibus), ou seja, poderia responder a uma objeção levantada na disputatio. Enfim, no quarto ano, depois de passar por um exame ante três ou quatro mestres, era admitido para, na disputatio, poder “determinar” a questão, como fazia o próprio mestre. Esta “determinatio” acontecia, geralmente, no período quaresmal e sempre sob a presidência do mestre.

Destarte, tornava-se um bacharel em artes. Tinha ainda a opção de tornar-se um licenciado em Artes ou, como se dizia, um magister artium. Para tanto, seriam necessários mais dois ou três anos. Nestes dois ou três anos, participaria o bacharel em várias disputas sobre temas ligados à lógica aristotélica; ademais, tornava-se auditor das lições e disputas concernentes ao resto do corpus aristotelicum. Findo este período, recebia a licentia docendi em Artes e tornava-se um magister artium. Doravante, poderia ministrar lições e disputas que envolviam todo o corpus aristotelicum. E, se não se “passava” à faculdade de Teologia, esta atividade, que, em princípio, deveria durar ao menos dois anos, poderia prosseguir por um tempo indefinido.

Para a docência em Teologia, deveria o aluno ser filho legítimo, ter o mestrado em Artes e ser aceito por um mestre, a cujas aulas passaria a frequentar assiduamente. Eram quinze anos de estudos e três bacharelados para poder obter a licenciatura: “bacharel bíblico”, “bacharel sentenciário” e “bacharel formado”. Os sete primeiros anos consistiam

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simplesmente na “audição” das lições e disputas ministradas: ou pelos mestres ou por um bacharel.

Para ser “bacharel bíblico” (baccalaureus biblicus), o aspirante explicava, durante dois anos, alguns livros da Bíblia e disputava sobre temas relativos também à Bíblia, tudo sob a assistência do mestre. Para obter o título de “bacharel sentenciário” (baccalaureus sentenciarius), explicava e disputava, durante dois anos, os quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, também assistido pelo mestre. Como “bacharel formado” (baccalaureus formatus), deveria passar ainda quatro anos como partícipe de todos os atos escolares da universidade: as lições e as mais diversas formas de disputas. Só então recebia a licentia docendi e se tornava um magister in sacra pagina – no século XIII, magister in theologia. O mestre em Teologia só poderia começar a ensinar Teologia com 34/35 anos completos.

Ao fim deste trabalho, devemos reconhecer que ficamos bem longe de uma obra de fôlego. Seria de todo necessário, num texto de maior alento, abordar, com descor-tino e denodo; o nascimento das Ordens Mendicantes, as fontes árabes e judias e o trabalho de tradutores como Gui-lherme de Moerbeke, que traduziu, diretamente do grego, boa parte do corpus aristotelicum. Passemos às breves consi-derações finais consoante o tema, capitulando os principais movimentos do texto.

4. Conclusão Para os historiadores da educação medieval, esta deve

ser entendida como a história da libertação do pensamento filosófico em relação aos dados da tradição.

Da glosa ao comentário; dos Comentários às Sumas; dos simples escribas aos compiladores; dos compiladores aos comen-taristas e destes aos autores; das escolas monacais às episcopais e palatinas e destas últimas aos studia, que deram origem às

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universidades; da lectio às disputationes; da autorictas à ratio; da crítica de Alberto às autorictas nas ciências da natureza, à crítica de Tomás às auctoritates em filosofia e no ensino dela, a ponto de Gilson dizer que, “Se tivesse querido, santo Tomás teria podido escrever uma metafísica, uma cosmologia, uma psicologia e uma moral concebidas de acordo com um plano estritamente filosófico (...)35; enfim, tudo isto aponta para uma progressiva emancipação da razão em relação às autoridades, que irá desembocar na decadência da Escolás-tica, que não estava preparada para a recepção deste novo mundo, e na crise do Renascimento, que nada mais foi além das dores do parto do mundo moderno. Gilson chega a dizer que:

Se a característica do pensamento moder-

no é a distinção entre o que é demonstrável e o que não é, foi de fato no século XIII que a filosofia moderna foi fundada, e é com Alberto Magno que, limitando a si mesma, ela toma consciência de seu valor e de seus direitos.36

Com respeito à formação universitária parisiense do

século XIII, De Libera sintetiza de modo tão feliz o seu espírito que, ao final deste texto, só nos resta ceder a palavra a ele:

A carreira universitária é longa, compre-

endendo muito tempo de formação: para um cursus completo levando das artes até a teolo-gia, estudos e ensinos sucedem-se, entrelaçam-se durante mais de vinte anos. O estudante que ingressa nas Artes é ainda uma criança; é homem feito quando alcança o mestrado em

35 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 657. 36 Idem. Ibidem. 631.

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Teologia. No intervalo, terá praticado todas as atividades universitárias, passando constante-mente da posição de aluno à de professor.37

Feita de leitura e de disputas, a formação

do mestre é contínua, homogênea e agonística. O pensamento tem dimensão social dialógica. Seja mestre ou estudante, o “artista” ou o “teólogo” está essencialmente diante de outros homens, preso como eles a uma rede complexa de prestações e de contra-prestações reguladas por usos fixados pelos estatutos. O ritual acadêmico faz parte da vida no espírito. É seu alimento e sua estrutura. O “intelectual” dos séculos XIII e XIV pensa como vive: dedicado aos textos, é sempre um homem de palavras e, como o diz o anônimo parisiense dos anos 1230, de disciplina scolarium, falsamente atribuído a Boécio: “Mestre, ele nunca se esquece de que foi estudante”.38

Esperamos ter feito um trabalho acurado, certos de

que, por maior desvelo e probidade que pudéssemos dispensar ao concurso deste trabalho, num consórcio com tema tão complexo, é quase inevitável certa incúria.

37 LIBERA, Alain De. A Filosofia Medieval. 2ª ed. Trad. Nicolás Nyimi Campanário e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva. Rev. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2004. pp. 373 e 374. 38 Idem. Ibidem. pp. 375 e 376.

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Da metafísica à epistemologia: a filosofia primeira

Lucas Kattah Macedo

Divido meu texto em quatro momentos: (§1) explici-

tação da divisão das ciências feita por Aristóteles e comen-tada por Tomás de Aquino, focando-me, principalmente, na divisão das ciências teóricas, (no qual utilizo a Metafísica VI 1 e Física II 2, de Aristóteles, e os Comentários de Tomás à Metafísica VI 1 e ao De Trinitate do Boécio Q.5); (§2) caracterização da filosofia primeira, no proêmio de Tomás de Aquino do seu comentário da Metafísica; (§3) breve caracte-rização da metafísica como ontologia, i.e. na sua análise do ser enquanto ser, (no qual utilizo a Metafísica IV 1 e textos complementares); e (§4) introdução a uma epistemologia tomista (no qual recorro às questões 84-89 da Summa Theologiae).

§1. Como é sabido, Aristóteles dividiu o campo dos

conhecimentos (epistêmai em grego, scientiae em latim) em três grandes classes, conforme as qualidades do pensamento (dianoia1): (i) produtivo (poiêtikê, factiva), (ii) prático (praktikê, activa sive operativa) e (iii) teórico (theoretikê, theorica sive speculativa).

Em (i), encontramos todo o saber técnico-artístico (relativo a tékhnê, ars), cujo princípio (arkhê), que está no

1 Na Metafísica, E 1 1025b 25, esta palavra foi traduzida simplesmente por scientia na versão moerbeckiana, da qual Tomás de Aquino se utilizou (e não por mens ou intellectus, como poderia-se esperar).

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fabricante (poiounti, faciente), é, primeiro, o intelecto (nous), que descobriu inicialmente a arte; segundo, a arte, que é uma habilitação do intelecto, e, terceiro, alguma potência (dynamis tis) executora como a potência motora, pela qual o artesão executa a concepção da arte [Comentário de Tomás à Metafísica L.VI, 1.i 1153], e cujo fim (télos) é a fabricação (poiêsis) de algo, isto é, o artefactum. Fora as artes mecânicas, como a engenharia, a agropecuária e a cosmética, os exemplos maio-res desse saber técnico, para o qual Aristóteles contribuiu com dois tratados, é a retórica e a poética. Em sentido muito amplo2, inclui as três tékhnai, que Platão enumera na República (X, 601d), das quais duas Aristóteles retoma na Física II 2: a que utiliza3 (khrêsoménê em Platão, khrôménê em Aristóteles), a que fabrica (poiêsousa em Platão, tês poiêtikês arkhitektonikê, em Aristóteles) e a que imita (mimêsoménê).

Em (ii) encontramos todo o saber relacionado à ação humana (práxis), cujo princípio é a escolha (proáiresis, electio) e está no agente (práttonti) e cujo fim é a ação. No coletivo (dêmosíai), a sabedoria prática se revela na política, no particular (idíai), se revela na prudência (objeto central da ética), no familiar (oikeíôi), se revela na economia.

Tomás de Aquino faz uma distinção mais sutil das ciências activae e factivae, ausente no trecho da Metafísica que está comentando, e o faz pela diferença do agere e do facere, ações fundantes daquelas ciências, respectivamente: “Com efeito, agir e produzir [facere] diferem, pois o agir se dá de acordo com uma operação que permanece no próprio

2 Pois no sentido forte incluiria somente a segunda 3 Esta é a que melhor conhece o objeto da fabricação, pois, por utilizar, como diria Platão, sabe o que se constitui como bom ou mal para sua excelência (aretê) e, como diria Aristóteles, conhece sua forma (eidos) e, portanto, é em certa medida, arkhitektonikê, (comanda o que irá propriamente produzir, o téktôn, que conhece antes a matéria, hylê do objeto).

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agente, como é escolher, inteligir e semelhantes. Donde as ciências ativas serem ditas ciências morais. Mas, produzir se dá de acordo com uma operação que passa exteriormente para a mudança da matéria, como cortar, queimar e seme-lhantes. Donde as ciências produtivas serem ditas artes mecânicas” [L.VI, 1 i 1152]4.

Em (iii), encontramos todo o saber que hoje chama-ríamos, grosso modo, de científico, cujo princípio está no próprio objeto de investigação e cujo fim é simplesmente a verdade (alêtheia, veritas)5. Subdivide-se em três espécies, em três philosophíai6 theôrêtikái: (a) ciência natural (physikê), (b) matemática (mathêmatikê) e (c) teologia ou filosofia primeira (theologikê ê prótê philosophíai). Essa subdivisão se dá sob dois

4 Na base dessa argumentação, vemos uma importante distinção escolástica entre ação imanente e ação transiente (a primeira modifica o “sujeito” enquanto a segunda o “objeto”), que será importante na história da filosofia (em Brentano e na fenome-nologia), também para a distinção entre fenômenos psíquicos e fenômenos físicos, em que interessa a noção de intencionalidade característica dos psíquicos. 5 Não que as outras ciências não busquem o verdadeiro, mas este se lhes mostra somente como um meio para o fim próprio de cada uma delas, como diz Tomás de Aquino, ao diferenciar o intelecto especulativo do prático: “Dicendum quod theoricus sive speculativus intellectus in hoc proprie ab operativo sive practico distinguitur quod speculativus habet pro fine veritatem quam considerat, practicus vero veritatem consideratam ordinat in operationem tamquam in finem” (Comentário ao De Trinitate do Boécio, Q.5 a.1 responsio). 6 Como bem nota Nascimento, na introdução ao Comentário de Tomás ao Tratado da Trindade de Boécio, “o próprio vocabulário do texto, que usa de maneira intercambiável os termos ‘ciência’ e ‘filosofia’, bem como ‘filosofia natural’, ‘ciência natural’ e ‘física’, indica que se trata de um texto no qual não se tem em conta a distinção moderna (na realidade pós-kantiana) entre filosofia e ciência” (2004, p. 15).

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critérios7: segundo o sujeito (no sentido de tema, objeto) e segundo o modus definiendi dessas ciências8.

Em (a), o sujeito começa a ser caracterizado do seguinte modo: “a ciência natural não é acerca do ente dito simplesmente (circa ens simpliciter), mas acerca de um certo tipo de ente [perí génos ti tou óntos]; a saber, a cerca da substância [ousían] natural, que tem em si o princípio do movimento e do repouso [en êi hê arkhê tês kinêseôs kai stáseôs en autêi]” . Trata-se de tudo aquilo que pode se mover, isto é,

7 Tomás acrescenta um terceiro critério, segundo as operações do intelecto, que não analisarei, mas que pode ser resumido na sua resposta da Q.5 a.3: “Encontra-se, portanto, uma tríplice distinção na operação do intelecto: uma, de acordo com a operação do intelecto que compõe e divide, que é chamada propriamente de separação; esta compete à ciência divina ou metafísica; outra, de acordo com a operação pela qual são formadas as quididades das coisas, que é a abstração da forma da matéria sensível; esta compete à matemática; a terceira, de acordo com esta mesma operação, [que é a abstração] do universal do particular; esta compete à fisica e é comum a todas as ciências, porque em toda ciência deixa-se de lado o que é acidental e toma-se o que é por si”. 8 É interessante lembrar uma possível falsa divisão, rejeitada por Tomás: é verdade que, acerca da razão teórica em geral, três são suas virtudes ou habilitações/disposições (hêxeis, habitus), isto é, coisas que aperfeiçoam suas operações, como determina Aristóteles na Ética VI; a inteligência (nous, intellectum), que é a disposição dos princípios evidentes por si mesmos (axiomas), a sabedoria (sophía, sapientia), que é a disposição das causas supe-riores, que fundamentam as ciências; e a ciência, que é propria-mente a disposição demonstrativa (apodeiktikê), que evidencia enunciados por meio de outros (de causas inferiores); no entanto, quando se distinguem as ciências, na medida em que são certas habilitações, é preciso que sejam distinguidas de acordo com seus objetos, como é dito no Comentário ao De Trinitate do Boécio, Q.5 a.1 ad primum.

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o móvel (to kinêtón, ens mobile)9. Assim, é patente que a ciência natural não seja nem produtiva nem ativa, visto que, enquanto estas têm seus princípios no produtor e no agente, aquela tem seu princípio, isto é, o princípio de movimento das coisas naturais, nas próprias coisas naturais [1153-4]. Outra característica do sujeito da ciência natural, por ser móvel, é depender da matéria, i.e., ser inseparável dela (ou khôristón tês hylês), pois “a cada matéria sensível compete o movimento próprio” [1158]. Assim, seu modo de definir a quididade (to tí estin horízesthai) dessas coisas naturais deverá envolver a matéria, como na definição do ser humano é preciso incluir a carne e os ossos e na definição do achatado (to simón) é preciso incluir o nariz côncavo (koilê rhis). Exemplos da ciência natural são o que hoje chamamos de física, botânica, zoologia, metereologia, química e psicologia (pois, como lembra Tomás em 1159, a definição da alma no De Anima II envolve o “corpo físico orgânico que tem a vida em potência”, a saber, ela é seu ato primeiro).

Em (b), no entanto, apesar de seu sujeito depender da matéria para existir10 (não ser separável secundum esse), pois “são nos corpos (sômata) naturais que se dão a superfície, o sólido, o comprimento e o ponto”, o matemático não se ocupa desses atributos enquanto atributos de tais e tais

9 Lembrando aqui que kínêsis não se limita ao campo semântico da palavra portuguesa movimento, mas talvez ao de mudança (metabolê, mutatio). Como é sabido, nos livros IV e V da Física, Aristóteles determina quatro tipos específicos de mudança: uma coisa pode mudar em termos de substância (por geração e corrupção, génesis kai phtorá) e em termos de acidentes, isto é, de qualidade (por alteração, alloiôsis), de quantidade (por aumento e diminuição, auxesis kai phthisis) e de lugar (por locomoção, phorá). 10 E aqui se vê rejeitada sem mais a teoria platônica dos entes matemáticos.

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corpos11 (oudé ta symbebêkóta theôrei hêi toioutois ousi symbébêken), ou enquanto limites (péras) do corpo natural, e por isso os abstrai/separa (khôrízei). De fato, todos eles, assim como o par e o ímpar, o reto, o curvo e o côncavo (koilon, em contraste com o supracitado simón) podem ser definidos, e, portanto, inteligidos, sem a matéria, pois “são separáveis do movimento ao intelecto” (khôristá gar têi noêsei kinêseôs esti) [Física II 2 193b 24-5 e 34]12. Os exemplos típicos da ciência matemática, que trabalha com os entes enquanto quantidades absolutas, e, portanto, com um sujeito imóvel (to akínêton), são a geometria, acerca da magnitude (mégethos), e a aritmética, acerca do número (arithmós). Vale notar que, dentro dessas disciplinas, existem aquelas que são mais naturais (ta physikôtera tôn mathêmátôn), visto se interes-sarem por tais atributos matemáticos aplicados no corpo natural, como a ótica, a harmonia (música) e a astrologia (astronomia)13. Assim, fica claro que a matemática não é nem

11 Como ilustração, nenhum professor de matemática demonstra as propriedades do triângulo enquanto propriedades de um trângulo, a saber, daquele feito sob a losa e com giz branco e não azul, de tal modo que, depois de apagado, seria preciso demonstrar que o próximo triângulo desenhado tem também as mesmas proprie-dades. Já Platão percebera isso (cf. Repúplica, VI 510d). 12 Esse acréscimo, tê noêsei, é fundamental ao distinguir a insepa-rabilidade da matéria secundum esse e secundum intellectum/ rationem, usado reiteradamente em Tomás, mas ausente na Metafísica VI 1. 13 As ditas intermediárias, bem caracterizadas por Tomás em Q.5 a.3 ad sextum: “Algumas [ciências], porém, que aplicam os princípios matemáticos às coisas naturais, são intermediárias, como a música, a astronomia e similares. Estas são mais afins às matemáticas, pois, na sua consideração, o que é físico é como que material e o que é matemático é como que formal, assim como a música considera os sons, não na medida em que são sons, mas na medida em que são proporcionáveis de acordo com os números, e

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ciência ativa nem factiva, “cum mathematica consideret ea quae sunt sine motu, sine quo actio et factio esse non possunt” [L.VI, 1.i 1160].

Levanta-se, no entanto, a hipótese de um terceiro tipo de sujeito especulável [ei de tí estin..., si vero est... 537], que, diferente dos da física e da matemática, não depende da matéria para ser (é khôristón), e é, portanto, eterno (aidion) e imóvel (pois só o que é material está submetido à mudança). Assim, “se não houver substância afora (pará) as naturais, a ciência natural será a ciência primeira14; mas se houver alguma substância imóvel, esta será anterior (protéra) e a filosofia [que dela trata] primeira, e universal (kathólou) por ser primeira”. Sabemos, no entanto, que essas substâncias existem e são divinas15, e, por isso, serão tratadas propria-mente pela filosofia primeira ou teologia16. Concluindo,

de modo semelhante nas demais; é por isso que demonstram suas conclusões acerca das coisas naturais, mas através de meios matemáticos. Assim, nada impede se consideram a matéria sensível, na medida em que se comunicam com a ciência natural. De fato, são abstratas, na medida em que comunicam com a matemática” (grifo meu). 14 Como o era para os antigos (sc. pré-socráticos), como lembra Tomás em [1152], que antes de filósofos eram, acima de tudo físicos. 15 Nota-se que Aristóteles segue o mesmo espírito da maioria dos pré-socráticos (como Tales e Anaximandro), que chamava seus primeiros princípios de divino (theon). E é por isso que a filosofia primeira é dita também teologia, “pois se o divino existe (hypárkhei), existe em tal natureza [sc. de uma substância imóvel, eterna e imaterial]” [Metafísica. VI 1 1026a 20]. Como se vê na Metafísica XII, partes mesmas do céu são consideradas divinas. 16 Apesar de alguns objetos dessa ciência, como a substância, a qualidade, o ato, a potência, o uno e o múltiplo, existirem na matéria em alguns casos, o fato de não existirem em outros, ou o fato de Deus ou dos anjos nunca serem encontrados na matéria,

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“enquanto as ciências teóricas são preferíveis (airetôterai) às outras, esta o é às outras ciências teóricas” [Metaf. VI 1 1026a].

§2. Os critérios da subdivisão das ciências teóricas,

como se pôde ver, seguem a ordem de afastamento da matéria e do movimento, pois (como defende Tomás no responsio do a.1 Q.5) a distinção entre os especuláveis deve se dar pelo que lhes é substancial enquanto especuláveis, i.e., pelo correlato da parte especulativa da alma, que é imaterial, e pela sua necessidade (“porque a ciência diz respeito ao necessário, como se prova no livro I dos Segundos Analíti-cos”), o que implica na sua imobilidade (“todo necessário enquanto tal é imóvel; pois, tudo o que se move, enquanto tal, é possível ser e não ser pura e simplesmente ou sob um certo aspecto”, como se diz no Livro IX da Metafísica). Assim, o modus definiendi dessas ciências, pela própria natureza de seus sujeitos (uma móvel e outra imóvel), é diverso; “pois enquanto algumas demonstram mais necessariamente [anankaióteron], como as ciências matemáticas, outras menos firmemente [malakôteron], isto é não por necessidade; assim tomam demonstrações daquilo que não sempre subsiste, mas frequentemente [hôs epi to poly, ut in pluribus/frequenter]” [1149].

A fim de entendermos melhor a filosofia primeira, retomemos essa ordem de afastamento da matéria e do movimento, acrescida de outras reflexões, no proêmio de Tomás à Metafísica, onde “mostra que a ciência mais comum a todas as outras versa acerca das coisas maximamente inteligíveis e universais, e de onde conclui que a ela três são os nomes de direito: teologia, metafísica e filosofia primeira”.

basta para afirmarmos que seus objetos não dependem dela, tanto para serem inteligidos como para existirem.

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Aqui, Tomás afirma que “todas as ciências e técnicas ordenam-se a algo de uno, isto é, à perfeição do homem, que é a sua felicidade (beatitudo)”. Então, como quando muitas coisas são ordenadas a algo uno, uma delas deve ser reguladora e diretriz e as outras reguladas e dirigidas, “deve haver uma ciência ordenadora17 de todas as outras, a qual reinvidica, com razão, o nome de sabedoria (sapientia), pois, compete ao sábio ordenar os demais”. Com a comparação do domínio do sábio, isto é, daquele que é intelectualmente superior, sobre o homem de corpo robusto, mas deficiente quanto ao intelecto, devemos procurar a ciência que seja ao máximo intelectual (maxime intellectualis) para ordenar as outras, e para isso devemos procurar a ciência cujo objeto seja ao máximo inteligível.

As coisas que são ao máximo inteligíveis são ditas de três modos: como causas primeiras (pois é a partir das causas que as ciências adquirem certeza), como princípios maximamente universais (pois é [próprio] do intelecto comprender o universal, enquanto é do sentido o particular; trata-se, portanto, do ente e o que se lhe segue, como o uno e o múltiplo, a potência e o ato, pois estes devem ser deter-minados anteriormente às ciências particulares, que preci-sam deles) e como coisas que são ao máximo separadas da matéria (pois mais adequa-se ao intelecto aquilo que mais se lhe assemelha, e o intelecto é imaterial; e porque a matéria significa potência, e enquanto tal é indeterminada, diferente da forma pura que é máxima determinação e, por conse-guinte, inteligibilidade), portanto separada dela não só quanto à concepção (secundum rationem, como no que é

17 Tanto no sentido de uma ciência imperativa, que faz as outras obedecerem, como de uma que põe ordem (kosmos) a elas, como mostram as palavras utilizadas por ele, ao longo do proêmio (rectrix, regulatrix, domina, princeps).

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matemático), mas também quanto ao ser (secundum esse, como Deus, as inteligências e o ente em geral).

Acontece que essas substâncias separadas são justa-mente as causas universais e primeiras do ser (essendi), de tal modo que coincidem os sujeitos maximamente inteligíveis e, portanto, devam ser atribuídos não a diversas ciências, mas a uma única, pois cabe à mesma ciência considerar as causas próprias de determinado gênero (no caso as substâncias su-pracitadas) e o próprio gênero (no caso as substâncias sepa-radas e o ente em geral)18. “Portanto, esta ciência recebe três nomes a partir da tríplice consideração supracitada da qual provém sua perfeição. É denominada ciência divina ou Teologia, na medida em que considera as substâncias19 separadas. Metafísica20, na medida em que considera o ente21 e o que lhe é consequente. [...] Filosofia primeira, na medida em que considera as causas22 primeiras das coisas”.

18 Vê-se, portanto, que não são tão conflitantes as duas descrições que Aristóteles dá para o tema dessa ciência, a de que lida com o ente como um todo e geral e a de que lida com uma espécie particular de ente, a saber, a substância divina; pois, quando ele afirma que a primeira filosofia estuda o todo do ente, ele está designando a esta todo o campo que se deve explicar, e quando ele afirma que ela é a ciência do divino, está consignando a esta seus princípios últimos de explicação. 19 Pela qual receberia hoje o nome de usiologia (< ousía). 20 Lembrando, como é muito sabido, que este nome não aparece na Metafísica de Aristóteles por lhe ser posterior, e que o título “original” (posto provavelmente não pelo estagirita, mas pelo editor de suas obras Andrônico de Rhodes), TA META TA PHYSIKA, significa “as coisas (ou os escritos) depois das coisas (ou escritos) físicas(os)”. Esta também é apenas uma versão da origem do nome, ainda discutível. 21 Pela qual receberia hoje o nome de ontologia (< on). 22 Pela qual receberia hoje o nome de aitiologia (< aitia).

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§3. Entendidos melhor o sujeito dessa ciência, sua relação com as demais ciências e por quais nomes é deno-minada, gostaria de concluir entrando um pouco no seu conteúdo.

Afirmar, como Aristóteles o faz no início da Metafísica IV, que “existe uma ciência que estuda o ente enquanto ente (theôrei to on hêi on)” não significa dizer que seu objeto de investigação é algo misterioso tal como um “ente-enquanto-ente”, pois isso não existe (da mesma maneira que não existe um “homem-enquanto-animal”), mas simplesmente que seu objeto de investigação é o ente visto de uma maneira específica (quanto ao conteúdo, na verdade, da maneira mais geral e universal possível), a saber, daquilo que compartilha com todas as outras coisas que existem: sua condição existencial ou as características da coisa que são relevantes (essenciais) para sua existência.

Entenderemos melhor, talvez, se lembrarmos que também todas as outras ciências estudam o ente (caso contrário, elas nada estudariam), mas o fazem enquanto são entes deste ou daquele tipo (como que lhe cortando uma parte e estudando seus acidentes, ao invés de estudá-lo universalmente23), e são, por isso, chamadas de particulares (en mérei). A biologia, por exemplo, estuda os entes enquan-do são entes vivos, a botânica enquanto são plantas, a aritmética enquanto são entes contáveis, a geometria en-quanto são entes extensos, a ciência natural enquanto são entes móveis e assim por diante. A metafísica, no entanto, estuda o ente não enquanto deste ou daquele tipo, mas simplesmente na medida em que são entes, isto é, coisas que são. E a questão não está exatamente em que, desse modo, a metafísica se diferencia das outras ciências porque estuda

23 Metafísica. IV 1 1003a 24-5: oudemía gar tôn allôn episkopei kathólou perí tou óntos hêi ontos, allá méros autou ti apotemómenai perí toutou to symbebêkós.

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todos os entes, pois, mesmo se, por exemplo, a matemática investigasse todos os entes (supondo que os números fossem aplicáveis a todas as coisas), ela não o faria numa maneira completamente geral e, simplesmente, na medida em que eles são (existem), e, mesmo se todas as ciências particulares fossem somadas, de tal modo que incluiriam todos os entes enquanto sujeito delas, a metafísica não seria essa soma (pelo mesmo motivo acima).

Aristóteles continua a definição do sujeito da meta-física: “ciência que estuda o ente enquanto ente e as coisas que lhe correspondem/subsistem/inerem enquanto tal (kai ta toutô hypárkhonta kath’ autó, et quae hui insunt secundum se, ou o que nele é por si)”. Essa precisão: falar “o que nele é por si” e não simplesmente o que nele é, como Tomás lembra [531], significa “que não cabe a uma ciência considerar o que se encontra de maneira acidental (per accidens, kata symbebêkós) em seu sujeito, mas somente o que aí se encontra por si (per se)24”. Com o exemplo do geômetra, que não se pergunta a propósito dos seus sujeitos, como o triângulo, se são de cobre ou de madeira, Tomás conclui que “não convém que esta ciência cujo sujeito é o ente se ocupe de tudo o que se refira acidentalmente a ele, pois, assim, consideraria os

24 Para a compreensão do que signifique per se e per accidens, visto que entra em outros problemas que não pretendo analisar, tomo um trecho de Anthony Kenny: “Um construtor é per se a causa de uma casa, ele a constrói qua construtor. Mas se calhar de o construtor ser também cego, então a sentença “Homem cego constrói casa” fornece não a causa per se mas sim a causa per accidens da casa. [...] Naturalmente, a distinção entre per se e per accidens não é a mesma que entre substância e acidente. Acidentes, de modo confuso, são seres per se [como todas as categorias fora a primeira]. A substância-definida-por-um-acidente é que vem a ser um ser per accidens. Assim, enquanto a sabedoria de Sócrates é um ser per se, o sábio Sócrates não o é, ele é um ser per accidens” (Uma nova história da filosofia ocidental, vol.I, Loyola - p.258)

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acidentes pesquisados em todas as ciências, visto que todos os acidentes inerem a algum ente, não porém na medida em que é ente”.

Entendido isso, deparamo-nos com outra questão, a tese da polivocidade do ente: “o ser é dito de muitos modos, mas em ordem a uma só coisa e a certa natureza única [...e a um só princípio, 1003b6], e não equivocadamente (to de on légetai men pollakhôs, allá pros hen kai mian tiná physin [pros mian arkhên] kai oukh homônymôs)” (1003a 33-4). Como explica Tomás, neste trecho, e como explica Aristóteles, no início das Categorias25, um predicado ou um atributo é equivoco (homônymon) se significa coisas completamente diversas ao sujeito que lhe é atribuído, como “ser cão” não significa o mesmo se o atribuímos à constelação e ao animal (ou como “ser manga” pode significar tanto uma fruta como uma parte da camisa). Como é afirmado, “ser ente” não é atributo deste tipo, no entanto tampouco é um atributo unívoco (synônymon), que possui uma significação idêntica para diversas coisas (como “ser animal” o é tanto para um cavalo quanto para um boi), pois a tese é justamente a de que o ente é dito de muitos modos26. Trata-se, portanto, de um tipo intermediário de predicação (mais próxima da unívoca), a

25 Vale lembrar que, na explicação de Aristóteles, são as coisas no mundo e não os predicados ou atributos, que são homônimas ou sinônimas, como ocorre no português (em Tomás, parece haver ainda uma ambiguidade). As primeiras possuem apenas o nome (ónoma) em comum, enquanto estas possuem em comum tanto o nome quanto as definições (lógoi tês ousías). 26 Já Platão percebera que o ser não pode ser entendido somente num sentido absoluto (monakhôs) para não cairmos na cadeia lógica das consequências inaceitáveis de Parmênides (negação do movimento, da multiplicidade, etc.), e que, portanto, “de algum modo, o não-ser é e, por outro lado, num certo sentido, o ser não é” (Sofista 241d; o que seria contradição, se ele não concebesse o ser já como dito pollakhôs).

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analógica ou proporcional (parônymon27 nas Categorias), que inicialmente tem referências diversas, mas estas, por sua vez, se referem a algo de uno e idêntico (uno numericamente, como na atribuição unívoca, e não somente segundo a noção). O mesmo caso se dá com o atributo “ser saudável”, que Aristóteles toma a título de ilustração: atribuído à dieta significa “conservar saúde”, ao medicamento, “produzir saúde”, à urina, “sinalizar saúde” e ao homem, “ter saúde”; no entanto, todo “saudável” se diz em relação a uma mesma e única saúde: “a mesma, com efeito, é a saúde que o animal recebe, que a urina sinaliza, que o medicamento produz e que a dieta conserva” [537].

Mas o que é esse algo uno, natureza única ou princípio único ao qual todos os entes se referem? É a substância (ousía); princípio que, no entanto, como nota Tomás, “não é fim ou eficiente, como nos exemplos precedentes, mas é sujeito” [539]. De fato, como diz claramente Aristóteles depois dos exemplos do saudável e do medicativo: “Assim também o ser se diz em muitos sentidos, mas todos em referência a um único princípio: algumas coisas são ditas ser (onta légetai) porque são substâncias, outras porque são afecções (pathê, passiones) da substância, outras porque são caminho que leva à (hodós eis) substância, ou porque são cor-rupções ou privações, ou qualidades ou causas produtoras ou geradoras (phthorá ê sterêsis ê poiótês ê poiêtiká ê gennêtiká), seja da substância, seja do que se refere a ela, ou porque são negações (apofáseis) de algumas dessas, ou negações da substância (por isso que falamos que o não-ser é não-ser [‘o que não se diria, a não ser que o ser coubesse de algum modo à negação’ 539])”.

Tomás de Aquino tenta reduzir essa lista de referências dos entes, agrupando-a em quatro gêneros de entes, de força

27 Pessoalmente achei “derivativa” uma boa tradução do inglês (ed. Loeb das Categorias).

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e perfectibilidade crescente: (i) o mais débil, que está apenas na razão, é a negação e a privação, e “dizemos estar na razão porque a razão trata delas como de certos entes, na medida em que afirma ou nega algo delas”; (ii) outro, próximo em debilidade e imperfectibilidade, é o movimento (de geração e a corrupção)28, na medida em que tem misturado (admixtum) algo de privação e negação; (iii) o terceiro, que apesar de não ter nada de não ente misturado, não é por si e só é em outro, são as qualidades, quantidades e outras propriedades da substância; (iv) o último gênero, mais perfeito por ter o ser na natureza sem mistura de privação e um ser firme e sólido, como que existindo por si (habet esse firmum et solidum, quasi per se existens), são as substâncias. É ao (iv), portanto, que todos os demais se referem como o primeiro e principal.

Antes de concluirmos, é interessante não ignorar as descrições que Tomás deixa “escapar” en passant aqui [543] do ente como “existens”, como“quod habet esse (firmum....)” e anteriormente[535] como “quod est”, na medida em que elas podem nos ajudar a compreender o significado real de to on. Vemos nelas que o ente se “decompõe” primeiramente numa coisa, num o-que é (ou tem o ser), ao qual se dá normal-mente o nome essentia ou quidditas (a resposta ao quid est algo?), e secundariamente no ato de ser dessa coisa, no actus essendi ou simplesmente no esse (ser) dela que lhe dá atualidade/existência (antes do qual a coisa não é nem nega-da nem afirmada). É, portanto, a partir daí, que entendemos porque to on é gramaticalmente um particípio em grego (ou ens em latim), pois participa tanto da natureza do substan-tivo (como mostra a substantivação pelo artigo neutro to., ausente no latim em que não existe artigo) quanto do verbo (einai).

28 “[...] pois o movimento é um ato imperfeito (atelês)” como se diz no livro III da Física [541.]

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Tendo mostrado em que sentido, portanto, a metafísica implica fundamentalmente numa usiologia, introduzindo um pouco de seu conteúdo afora seu aspecto formal, concluo aqui o terceiro momento do texto.

§4. A distinção tomista que acabamos de ver entre

essência e ato de ser, central na sua metafísica, será também fundamento último para sua epistemologia. Como formula Nascimento, fazendo essa passagem: “é porque a essência se distingue do ato de ser nas criaturas que a mesma essência pode ter um ser material e individualizado nas coisas e imaterial e universal no intelecto”29. O próximo passo será, portanto, relacionar por semelhança essas duas essências, sem o qual não “adequaríamos o intelecto à coisa” e vice-versa30, e, posteriormente, caracterizar o modo de passagem entre estes dois estados da essência.

Para o primeiro passo, é importante explicitar dois axiomas (entendidos como enunciados primeiros e inde-monstráveis, caracterizados pela sua evidência imediata e pela sua função fundante de princípio), que estão na base da doutrina tomista: o axioma da semelhança e o da recepção. O primeiro, enunciado no De Anima I (5, 409b 26)31, diz que “o semelhante se conhece pelo semelhante” (gnôrízein tôi homoiôi to hómoion). Duas são as possíveis interpretações deste axioma: uma que podemos chamar de “materialista”, na qual se transfere a constituição das coisas materiais para a alma e o intelecto, como fizeram alguns pre-socráticos como Empédocles (ao dizer que as coisas são constituídas pelos quatro elementos – terra, água, ar e fogo – associados ou

29 Cf. Nascimento, 2004, p. 26. 30 Não entrarei, no entanto, pela delicadeza da questão, no problema da verdade e falsidade no intelecto. 31 Cf. Suma de Teologia Iª 84, 2: “cum ergo simile simili cognoscatur”.

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dissociados pelo amor ou ódio, e que a alma poderia conhecer isso tudo por ter também a mesma constituição); e outra que podemos chamar de “idealista”, na qual ocorre o contrário, como fez Platão, ao dizer que o que é conhecido pelo intelecto é dotado dos mesmos atributos de universa-lidade, imaterialidade e necessidade do conhecimento inte-lectual, transferindo-os para a realidade.

É para evitar ambas as interpretações, consideradas por ele inaceitáveis, que Tomás recorre ao axioma de recepção, que diz que “tudo o que é recebido, é recebido ao modo do recipiente”. É-nos interessante aqui acompanhar sua própria argumentação: “Isto [sc. a interpretação platô-nica], porém, não é necessário. Pois, mesmo nos próprios sensíveis vemos que a forma está num dos sensíveis de um modo distinto de como está em outro; por exemplo, quando a brancura está em um mais intensamente, em outro mais fracamente; também numa a brancura está com a doçura e em outro sem a doçura. Também, asssim, a forma sensível está na coisa que está fora da alma de um modo distinto do modo como está no sentido, que recebe as formas sensíveis sem a matéria, assim como a cor do ouro sem o ouro. Semelhantemente, o intelecto recebe a seu modo, imaterial e imutavelmente, as espécies dos corpos que são materiais; pois o recebido está no recipiente ao modo do recipiente [nam receptum est in recipiente per modum recipientis]. Cumpre, pois, dizer que a alma conhece os corpos pelo intelecto com conhecimento imaterial, universal e neces-sário” [Suma de Teologia, Iª 84 1 respondeo; grifo meu]. Desse modo, fica clara a distinção entre o modo de ser da coisa (modus essendi) e o modo do intelecto inteligi-la (modus intelligendi/cognoscendi), como ele deixa claro no comentário ao livro I da Metafísica: “é necessário que um seja o modo de inteligir pelo qual o intelecto intelige e outro seja o modo de ser pelo qual a coisa exite [existit]. Pois, embora aquilo que o

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intelecto intelinge precise estar na coisa [in re], não precisa estar do mesmo modo” [158].

Passemos, à guisa de conclusão, ao segundo passo. Para caracterizar o modo de passagem entre a essência do que está na coisa e a essência no intelecto, Tomás utiliza-se de duas analogias: a abstração (analogia mecânica de extrair) e a iluminação (ótica). Quanto à primeira: “conhecer o que está na matéria individual, não na medida em que está em tal matéria, é abstrair a forma [abstrahere formam] da matéria individual, que as fantasias representam [quam repraesentant phantasmata]. Por isso, é necessário dizer que o nosso intelecto intelige o que é material abstraindo das fantasias”. A outra analogia se trata da nossa capacidade de “iluminar” a matéria sensível de tal modo a tornar inteligível em ato o que está contido ali como potencialmente inteligível. Esta capacidade “iluminativa” é denominada já por Aristóteles de “intelecto agente, que está para as fantasias como a lumino-sidade para as cores, a qual não abstrai algo das cores, mas antes influi nelas”, em contraposição ao intelecto possível, a quem cabe receber as espécies/formas já abstraídas [Suma de Teologia, Iª 85 3 e respondeo].

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Referências AQUINATIS, S. THOMAE. Duodecim libros Metaphysicorum Aristotelis Expositio. Torino: Marietti, 1950. ______. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: questões 5 e 6. Tradução e introdução Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. São Paulo: UNESP, 1999. ______. Suma de Teologia: Primeira parte – questões 84-89. Tradução e introdução Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia: EDUFU, 2004. NASCIMENTO, Carlos A. R. Introdução. In: Suma de Teologia: Primeira parte – questões 84-89. Tradução: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia: EDUFU, 2004 ARISTÓTELES. Categories. Edited and translated by Harold P. Cooke. Cambridge: Harvard University Press, 2002. ______. Metafísica. Edición trilingüe por Valentin García Yebra. 2. ed. Madrid: Editorial Gredos, 1998. ______. On the soul. Translated by W. S. Hett. 2. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1957. ______. Physique. Tome I. Traduit par Henri Cateron. Paris: Les Belles Lettres, 2002. KENNY, A. Uma Nova História da Filosofia Ocidental. vol. 1. São Paulo: Edições Loyola, 2008. PLATÃO. Sofista. In: Diálogos I. Traduzido por Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2007. ______. Republic. Translated by Paul Shorey. Cambridge: Harvard University Press, 2006.

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Sobre os autores

Paulo Faitanin é doutor em Filosofia Medieval pela Universidade de Navarra, Espanha, professor do Departa-mento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência ‘Raimundo Lúlio’ (IBFCRL), da S.I.T.A. - Seção Brasil, do Instituto Aquinate, e colaborador do Gabinete de Filosofia Medieval da Universidade do Porto, Portugal. Sua área de investigação é Filosofia Medieval, com ênfase em Tomás de Aquino. Publicou vários títulos no exterior: Tomás de Aquino: sobre el principio de individuación. Introducción, texto bilingüe, y notas; Tomás de Aquino: sobre la naturaleza de la materia. Introducción, texto bilingüe, y notas; Introducción al ‘problema de la individuación’ en Aristóteles; Ontología de la materia en Tomás de Aquino; El individuo en Tomás de Aquino. No Brasil publicou: Atualidade do Tomismo; Opúsculos Filosóficos de Tomás de Aquino, vol. 1, Redempsionem Misit: Bula de canonização de Santo Tomás de Aquino; Mirabilis Deus: Bula de proclamação de Santo Tomás de Aquino como Doutor da Igreja. E-mail: [email protected].

Jean Lauand é professor Titular do Departamento de

Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Pesquisador Emérito do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Universidade do Porto. Membro (correspondente) da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Fundador e Diretor do CEMOrOc: Centro de Estudos Medievais-Oriente e Ocidente USP (FE-EDF) e de suas revistas internacionais. É autor de: En diálogo con Tomás de Aquino, (Ediciones del Orto, Madrid, 2005), Cultura e Educação na Idade Média (São Paulo,

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Martins Fontes, 1988). É tradutor de Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento (Martins Fontes, 1999); Sobre o Ensino e Os sete Pecados capitais (Martins Fontes, 2004), e A Prudência (Martins Fontes, 2005). E-mail: [email protected].

Ivanaldo Santos é filósofo, doutor em estudos da

linguagem pela UFRN e professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN. Já publicou dezenas de artigos em revistas científicas nacionais e internacionais. Além disso, publicou os seguintes livros: Nietzsche: discurso introdutório (Ideia, 2007), Aborto: discursos filosóficos (Ideia, 2008), Poemas para refletir (Ideia, 2009), Método de pesquisa: perspectivas filosóficas (Edições UERN, 2010) e Teologia da Libertação: ensaios e reflexões (Letra Capital, 2010). Além disso, é um dos organizadores do livro: De memória e de identidade: estudos interdisciplinares (EDUEPB, 2010). E-mail: [email protected].

Sergio de Souza Salles é filósofo e doutor em Filosofia

pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Atualmente é professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP); do Instituto de Filosofia João Paulo II, conveniado à PUC-RJ; do Instituto Filosófico e Teológico do Seminário São José de Niterói; e do Instituto Superior de Ensino La Salle. Dentre suas publicações, destacam-se: Análise e Síntese em Tomás de Aquino (2009); A tríplice via do conhecimento de Deus em Tomás de Aquino (2009) e As resoluções metafísicas de Tomás de Aquino (2009). E-mail: [email protected]; [email protected].

Sávio Laet de Barros Campos é Bacharel em

Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é estudioso da filosofia medieval, no Grupo de Pesquisas da UFMT, cujo nome é “Pesquisas em Filosofia

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Antiga e Medieval” e pós-graduando em Filosofia pela UFMT. E-mail: [email protected].

Lucas Kattah Macedo é Bacharel em Filosofia pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É estudioso de grego e latim. E-mail: [email protected].

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